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Rostos e Vozes Da Imigração
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Rostos, Vozes e Silêncios: uma pesquisa biográfica colaborativa com
imigrantes em Portugal
Organização de
Elsa Lechner
(participação) Maria Clara Keating, Giovanni Allegretti, Olga Solovova, Marina
Galvanese, Carlos Nolasco, Joana Sousa Ribeiro
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Índice
Agradecimentos
Introdução
A pesquisa biográfica no estudo das migrações: construindo um trabalho em
colaboração no contexto português, Elsa Lechner.
I Parte: reflexões teórico-epistemológicas sobre a pesquisa biográfica no estudo de
experiências migratórias.
Capítulo 1
Pesquisa biográfica e experiência migratória, Christine Delory-Momberger.
Capítulo 2
Histórias de Vida na Antropologia: Novidades Transnacionais, Brian Juan O’Neill.
Capítulo 3
Espaços biográficos, colaboração e migração: diálogos sobre entrevista narrativa,
Elizeu Clementino de Souza
Capítulo 4
“Eu vim para Portugal…”. Narrativas de subjetividade migratória, Carlos Nolasco.
II Parte: Desdobramentos temáticos, o género, a língua, as linguagens, as religiões e
o espaço na/da cidade.
Capítulo 5
“Desxenofobando”: dinâmicas materiais e movimentos dos sentidos nas oficinas
biográficas, Clara Keating.
Capítulo 6
Discursos, representações de imigração e oficinas biográficas: espaço de agência e
negociação identitária, Olga Solovova.
Capítulo 7
“Religiões em movimento”. Reflexões em torno de uma oficina sobre religião, Teresa
Toldy.
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Capítulo 8
O peso dos espaços: imaginando políticas públicas partilhadas através de uma oficina
biográfica sobre alojamento estudantil, Giovanni Allegretti.
III Parte: Pesquisa partilhada, colaborativa e com recurso a meios audiovisuais:
desafios e potencialidades.
Capítulo 9
COMpartilhar histórias de vida: (inter)subjectividades, (inter)reconhecimentos e
(i)migrações, Joana Sousa Ribeiro.
Capítulo 10
Pesquisa partilhada e co-construção de conhecimentos: oficinas biográficas com
imigrantes em Coimbra, Marina Galvanese e Elsa Lechner.
Capítulo 11
O medo do Outro. Planeamento através de diálogos terapêuticos em comunidades
altamente conflituais, Giovanni Attili e Leonie Sandercock.
Capítulo 12
Metodologias visuais participativas, mediação de conflitos e planeamento de políticas
públicas, José da Silva Ribeiro.
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Agradecimentos
Este livro resulta de trabalho realizado no âmbito do projeto “Pesquisa das migrações e
abordagem biográfica: construindo um trabalho em colaboração no contexto português”,
financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e desenvolvido no Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra no quadro das atividades do Núcleo das
Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz.
Desejamos agradecer assim, em primeiro lugar, aos avaliadores que valorizaram a nossa
proposta de investigação considerando-a particularmente inovadora e pertinente para o
estudo das experiências de imigração em Portugal, encorajando-nos a prosseguir com a
nossa pesquisa biográfica colaborativa e conduzindo ao respectivo financiamento por
parte da FCT.
Igualmente decisivo foi o apoio do Gabinete de Gestão de Projetos do CES que nos
ajudou, ao longo dos três anos e meio da pesquisa, com enorme profissionalismo e
competência no trabalho administrativo e de gestão orçamental. Agradecemos muito
especialmente à Hélia Santos o excelente acompanhamento que nos prestou, sempre com
receptividade perante as nossas dúvidas e demandas, com toda a proficiência e grande
simpatia. A Hélia é a melhor gestora de projetos do país! Ainda no seio do CES, queremos
agradecer o auxílio experiente e amável da Biblioteca Norte/Sul, muito especialmente da
sua coordenadora Maria José Carvalho, e vice-coordenador Acácio Machado que sempre
nos ajudaram com tocante amabilidade na aquisição dos muitos livros do projeto e
consulta de demais obras necessárias à consecução do trabalho. O apoio do Gabinete de
Comunicação e Imagem também foi igualmente grande, em especial, na organização dos
cursos de verão (2011 e 2014), colóquio final, e disseminação da informação do projeto.
Agradecemos assim à Alexandra Pereira, Rita Cássia Oliveira, Inês Costa, Pedro Abreu,
André Pena, Alberto Pereira, Brassalano Graça e Pedro Dias da Silva todas as diligências
prestadas ao longo da pesquisa. Estendemos estes agradecimentos internos a todos
aqueles e aquelas que, de uma forma ou de outra, contribuíram ou apoiaram as actividades
desenvolvidas por esta pesquisa que, a bem dizer, não deixou de ter um caráter algo
experimental. Obrigada pela vossa confiança e respeito!
O trabalho realizado no âmbito desta investigação envolveu igualmente pessoas e
instituição externas ao CES a quem muito agradecemos. Na procura de voluntários
participantes da nossa investigação participativa e de colaboração, contactámos a Câmara
Municipal de Coimbra, que entrou em dálogo com a equipa do projeto através do seu
Serviço de Habitação, Educação e Família. Agradecemos em particular à Dra. Marisa
Gonçalves, Chefe da Divisão de Ação Social e Família, que nos proporcionou vários
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encontros com as responsáveis do Sector Habitacional da Câmara, do Centro de Emprego
e de Segurança Social de Coimbra, bem como com o responsável pelo Serviço de
Desenvolvimento Social e Família do Município, Dr. João Gaspar. Através dos seus
apoios conseguimos chegar a centenas de potenciais voluntários, conquistando o
entusiamo de alguns dele/as. Também pudemos realizar um seminário aberto ao público
na Casa da Cultura, onde apresentámos o projeto e angariámos mais participantes.
Para além da Câmara Municipal, foi muito importante a colaboração do Centro de
Acolhimento João Paulo II associado ao Centro Local de Apoio à Integração do Imigrante
de Coimbra. Ambos nos cederam os seus espaços para realizarmos uma das oficinas do
projeto, e ajudaram a reunir o grupo de mulheres migrantes que a compuseram. A Dra.
Sandra Nunes, assistente social do CAJPII, brindou-nos com a sua simpática diligência e
boa vontade, mesmo sacrificando algum tempo das suas múltiplas e importantes tarefas
dedicadas a centenas de pessoas muito necessitadas. Concedeu-nos ainda uma entrevista
junto com o Dr. Armando Garcia, Director do CLAII, serviço a quem agradecemos todo
o apoio, antes, durante e depois da oficina aí realizada. Tanto junto da CMC, como do
CAJPII, a mediadora Natalyia Bekh cumpriu um papel fundamental. Agradecemos à
Natalyia a sua esmerada dedicação, contactos estabelecidos, e interesse pelo projeto.
O projeto realizou cinco oficinas biográficas integralmente filmadas pela equipa técnica
do Canal de TV da Universidade de Coimbra. Eles e elas acompanharam-nos nas horas e
horas de escuta, partilha e ressonâncias destes trabalhos de grupo que chamamos de
oficinas biográficas ou rodas de histórias e que duraram, em média, três dias inteiros cada
um. Aceitaram a imprevisibilidade do nosso trabalho de campo, adaptaram-se aos
calendários conseguidos entre as agendas de todo/as (sobretudo dos participantes que
trabalhavam ou tinham filhos pequenos para cuidar), e acompanharam-nos igualmente às
idas ao terreno na cidade para realizar entrevistas individuais e filmar os espaços urbanos
(nomeadamente durante o curso “Espaços e Transições: biografias e projectos em torno
do Centro Comercial Avenida”). Na base desta entrega está o Professor Sílvio Santos,
Diretor da TV UC, que desde o início abraçou esta nossa actividade “incerta” sem
reservas e com total permeabilidade. Esta-mo-vos imensamente grato/as pela paciência!
Os nossos parceiros institucionais Associação Internacional de Pesquisa Biográfica Le
Sujet dans la Cité, em Paris, e Instituto da África Ocidental para a Transformação Social
(IAO), em Cabo Verde, através das suas Diretoras Professoras Doutoras Christine
Delory-Momberger e Djénéba Traoré, cumpriram connosco o objectivo de divulgar além-
fronteiras a pertinência da pesquisa biográfica no estudo das migrações em geral e da
imigração em Portugal, realizando acções conjuntas úteis a públicos académicos,
científicos, de organizações governamentais e ONG’s, em Portugal, França e Cabo Verde.
Muito lhes agradecemos a parceria e frutífera colaboração. Pela mesma ocasião, não
queremos deixar de agradecer a colaboração do Professor Doutor André Corsino
Tolentino, signatário do protocolo de colaboração com o CES no âmbito deste projeto,
bem como do Senhor Renato Frederico, assistente adjunto da Direção do IAO, que nos
acolheram na Cidade da Praia em Setembro de 2013 para a realização de um seminário
de parceria. Ambos receberam ainda, junto com a Doutora Djéneba Traoré, a Professora
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Christine Delory-Momberger, em Fevereiro de 2014, para a realização do segundo
encontro científico do projeto na Cidade da Praia. Neste contexto, devemos muito a
enorme cordialidade, abertura e generosidade do Diretor do Instituto Superior de Ciências
Sociais e Jurídicas, Doutor José de Pina Delgado, que ofereceu o auditório do ISCSJ para
o primeiro evento referido, que contou com a presença de ilustres participantes locais,
bem como de meios de comunicação social da Praia (rádio, jornais,TV). O nosso colega
Carlos Elias Barbosa, meree um agradecimento especial por ter cumprido um papel
fundamental nesta parceria e intercâmbio, tendo sido o seu mentor e apresentador de uma
comunicação de abertura no primeiro seminário na Praia. Ao Carlos e a todo/as o/as
colegas cabo verdianos, como o Doutor Odair Varela que se juntaram a nós no seminário,
um muito obrigado. Sabemos que pudémos aí inspirar tanto o Serviço de Emigração,
como o de Imigração do Governo de Cabo Verde, através das atuações dos seus
responsáveis, Dra. Carla Barros, Diretora da Unidade de Coordenação da Imigração, e
Dr. Francisco Carvalho, Diretor Geral das Comunidades. Sentimo-nos honrados por isso.
Ao longo do projeto contámos com a valiosa contribuição dos nossos consultores
externos, a quem agradecemos toda a disponibilidade prestada em seminários abertos ao
público no CES, reuniões com a equipa, participação nos cursos de verão, no colóquio
final, e contribuições neste livro. São eles/as, por ordem alfabética: António Lousa, Brian
Juan O’Neill, Carlos Martín Beristain, Carole McGranahan, Ceasar McDowell, Celso
Álvarez Cáccamo, Christine Delory-Momberger, Daniel Feldhendler, Djénéba Traoré,
Elizeu Clementino de Souza, Giovanni Attili, José da Silva Ribeiro, Michèle Koven, e
Paulo Providência.
Agradecemos igualmente a todo/as o/as estudantes que se inscreveram nos nossos cursos
de formação financiados pelo projeto; aos colegas do Nhumep Miguel Cardina e Tatiana
Moura, que co-coordenaram connosco o curso de verão de 2011 “Lives and History: a
comprehensive course on biographies and society”; aos colegas de arquitetura, António
Lousa e Paulo Providência que co-organizaram com a equipa o curso “Espaços e
transições”; e ainda à colega Teresa Toldy, Coordenadora do Observatório da Religiões
do CES, que se disponibilizou para participar numa oficina dedicada a esse importante
tema identificado no terreno, durante três dias consecutivos. Todos estiveram connosco
ao longo de vários dias para os cursos e oficina. Teresa Toldy participou ainda no
colóquio final do projecto como oradora, e é autora de um dos capítulos deste volume.
Muito obrigada a todo/as vós, companheiro/as desta bela caminhada!
Aos colegas e alunos que frequentaram os seminários oferecidos pelos consultores, o
seminário público “Rumina©ções urbanas: conte a sua cidade numa roda de histórias”, e
o colóquio final, também queremos agradecer. Todo/as contribuíram para o
enriquecimento deste trabalho, fazendo ainda estender as nossas colaborações académicas
e científicas em Portugal e no estrangeiro. A todo/as, muito obrigada, gracias, grazie,
merci, thank you, danke, spasibo!
Esta foi uma pesquisa que procurou ser colaborativa e que contou, para tal, com a
participação de voluntário/as, imigrantes na cidade de Coimbra. Sem eles e elas o trabalho
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não teria sido possível, e são elas e eles que dão rosto,voz e silêncio com espessura
analítica, às delicads questões que podem ser ditas, reconhecidas e dadas a conhecer neste
livro, a um público mais vasto e anónimo. Para além da enorme importância que
acordamos à vossa participação no projeto, queremos ainda agradecer todo o entusiamo
e prazer com que nos brindaram ao longo das actividades da pesquisa, e a amizade que
ficou, apesar das distâncias que entretanto se impuseram entre nós (alguns voltaram aos
seus países de origem, outros emigraram para novos destinos, ou foram viver para outras
cidades de Portugal). Encontrar-nos-emos, pelo menos, sempre aqui, nestas linhas e
páginas que também são vossas! Obrigada, por ordem alfabética, a Abdurafik Rahimov,
Alda do Vale, Arsénio Martins, Bernardino Tavares, Cristina Zhou Miao, Dália David,
Elisabete Febras, Kouassi N’da Koffi Augustin, Louise George, Lyubov Danylova,
Marcos Amazonas, Maria Flávia Batista, Maria Lucinda Cruz, Maria da Penha Carrico,
Reginaldo Souza, Rosana Patané, Rosantina Có, Shakhnoza Rahimova, Socorro Souza,
Sofia Herrera, Veronika Sokotnyuk, Virgílio Mandinga.
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Capítulo 5
DESXENOFOBANDO: dinâmicas materiais e movimentos dos sentidos nas oficinas
biográficas
Maria Clara Keating.
1. Introdução
Num momento de desencanto com as assimetrias que subjazem aos procedimentos da
pesquisa social e antropológica, mesmo a mais progressista, sobre migrações em Portugal,
a abordagem da história de vida adota uma noção estimulante de trajetória como uma
«série de posições ocupadas pelo agente num espaço que é dinâmico e sujeito a
transformação» (Castañeda & Morales, 2011:12-13). Um enfoque em trajetórias de vida
traz para primeiro plano o cruzamento de dinâmicas de movimento e mobilidade de
objetos, pessoas, bens e capitais simbólicos inerentes ao próprio fenómeno migratório,
tanto no espaço como no tempo. Abre assim a possibilidade de se ir para além de um
entendimento previsível sobre a “condição migrante” em termos de nacionalidade,
etnicidade, língua, religião, para tornar explícita a complexa diversidade de “motivos,
padrões e itinerários de migração, processos de inserção nos mercados de trabalho e
habitação das sociedades de acolhimento […]” (Blommaert & Rampton, 2011:1). Se esta
orientação para a superdiversidade é relevante para os estudos das migrações (Vertovec,
2006), ela torna-se particularmente significativa nos estudos sociolinguísticos e da
linguagem, que assumem o princípio desta complexidade e desenvolvem a perspetiva
discursiva e etnográfica crítica já enunciada em outros capítulos deste livro. Em co-
existência com múltiplas outras abordagens ao campo (antropologia, sociologia,
arquitetura e urbanismo, educação, entre outras), assumimos desde o início a nossa
identidade de linguistas neste projeto. Alinhámos numa ordem de pesquisa qualitativa a
partir da etnografia linguística, com um olhar intencionalmente focado para as dinâmicas
de produção, receção, negociação e circulação de material semiótico (verbal, não verbal
e multimodal), tal como ele foi recolhido em filmes, fotografias, entrevistas em
profundidade, relatos etnográficos, objetos e artefactos textuais (Creese, 2008).
O detalhe no processo de recolha permitiu-nos registar e identificar muitas dinâmicas de
sentido em jogo nas rodas de histórias com migrantes em Coimbra que de outro modo
correriam o risco de ter passado despercebidas. Incluimos, entre outras, a possibilidade
de seguir as dinâmicas de participação de pesquisadores e pesquisados nas rodas de
histórias assim como os mecanismos de colisão e desvio das linhas narrativas por eles
produzidos; a atenção co-construída entre participantes na interpretação de silêncios; a
organização dos corpos e olhares e os seus processos de negociação; produção, escuta e
co-construção de significados produzidos nas dinâmicas da fala, para além da negociação
intersubjetiva das narrativas produzidas dentro e fora das rodas de história, e de uma roda
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de história para outra. Seguimos alguns dos percursos de grupos e indivíduos, suas
narrativas, e também alguns dos temas que delas surgiram e circularam por vários tempos
e lugares da cidade de Coimbra, ao longo de um período de quase dois anos de trabalho
etnográfico.
A abordagem etnográfica, material, performativa e discursiva adotada tentou seguir as
cadeias de ação e inscrição de sentidos nos vários eventos. Pretendo ilustrar neste capítulo
como este olhar tornou visível a complexidade da negociação de algumas das narrativas
apresentadas, e ao mesmo tempo permitiu identificar alguns dos mecanismos de poder e
ideologia inerentes a esta mesma negociação. Sigo de perto para isto as cadeias de ação
semiótica cujo ponto de partida é uma história de assédio sexual narrada por F. Foco-me
no fluxo, na circulação e na metamorfose de sentidos produzidos, desde o episódio
enunciado por F em entrevista pessoal, depois tornado coletivo em oficina biográfica,
retomado por outra participante na produção de um conjunto de cartoons, finalmente
exposto num evento público, pela própria participante, em momento do congresso final.
Ao seguir a textualização desta experiência ao longo destes eventos concretos, pretendo
tornar visíveis, não só alguns mecanismos materiais do processo de biografização desta
experiência individual, mas também o modo como estes se ancoraram em dinâmicas
eminentemente sociais, políticas e discursivas. Foram os dispositivos materiais do
contexto que enquadraram a experiência desta falante e lhe propiciaram algumas (mas
não outras) disposições identitárias – como mulher, imigrante e brasileira em Portugal.
Demonstrando como estas condições materiais – radicalmente locais – influenciam o
processo de biografização, avalio as potencialidades, mas também os limites dos efeitos
transformadores deste exercício biográfico sustentado ao longo do tempo, deixando
também em aberto algumas questões sobre a reflexividade ética e crítica associadas a esta
pesquisa, à sua abordagem performativa e às armadilhas das políticas de representação
em que todos participantes – pesquisados e pesquisadores – se viram envolvidos neste
processo.
O capítulo inicia-se com uma reflexão sobre colaboração e biografização quando
pensadas à luz dos movimentos de construção de sentidos materializados em suportes
distintos: na fala, situada em conversa informal e na organização do género da narrativa
biográfica orquestrada na oficina biográfica, na escrita, e na inscrição da imagem e dos
desenhos, e em performance pública. Esta perspetiva é sustentada por uma abordagem
sociolinguística e etnográfica que explora as condições materiais que propiciam os usos
(a ação semiótica, se quisermos), e que aqui conta como se fosse linguagem (Butler,
1997). Na segunda parte deste capítulo, identificamos os eventos, os textos e as práticas
narrativas identificadas através da oficina, da produção dos cartoons e do evento final.
Concluímos esta análise com um reflexão sobre os processos de de-territorialização,
territorialização e re-territorialização observados ao longo do projeto, que podem ajudar
a pensar os mecanismos de diferença, hierarquia e poder que sustentam o processo de
biografização, não só dos artefactos materiais e das condições materiais dos contextos de
enunciação observados, mas também das próprias falantes, alertando para o eixo da
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desigualdade linguística envolvida. No final debatemos algumas questões de ética que
foram surgindo ao longo do tempo do projeto.
2. As âncoras da biografização. Arbre à palabre: da metáfora, pela língua, à
performatividade material
O enquadramento colaborativo e biográfico da pesquisa permite-nos colocar três questões
específicas: 1) Quais são as perspetivas dos migrantes sobre as suas experiencias vividas
de migração? 2) Que impacto tem este tipo de investigação na vida dos migrantes e da
sociedade de acolhimento? 3) Como reconhecer as subjetividades dos migrantes com
quem trabalhamos para além do fim objetificado de uma pesquisa que se assume como
social? Tentando encontrar uma forma de representação colaborativa sobre a experiência
migrante, o encontro dialógico entre pesquisados e pesquisadores tornou-se um dos
nossos campos fundamentais de questionamento. O contexto de pesquisa é, assim, objeto
de estudo, análise, e reflexividade por si só. Apesar de preparado, regulado, planeado,
múltiplas contigências tornaram-se constitutivas do trabalho biográfico, exigindo
profunda reflexividade sobre esse mesmo processo, em si eminentemente semiótico.
Lugar ancestral para a narrativa de histórias e participação política, central à vida pública
de muitas comunidades africanas, o conceito de arbre à palabre surge, no âmbito do
projeto, pelo trabalho de Jeanne-Marie Rugira (Rugira, 2008). Ele surge também
associado ao título de uma antologia de poetas contemporâneos de língua francesa
oriundos da Algéria, Camarões, Chade, Congo Brazzaville, República Democrática do
Congo, Djibouti, Costa do Marfim, Líbano, ilhas Maurícias, Marrocos, Senegal e Tunísia,
que numa relação complexa de forças com a língua colonial – simultaneamente em
unidade e divisão— fazem coexistir o francês com outras línguas maternas e/ou nacionais,
incluindo o árabe, fula, bambara, bérbere, uólofe, crioulo maurício. Esta antologia usa
como exemplo deste exercício o trabalho de Khaal Torabully, cujo longo poema, Cale
d'étoiles, Coolitude, termina do seguinte modo:
Coolitude : parce que je suis créole de mon cordage, indien de mon mât, européen
de la vergue, je suis mauricien de ma quête et français de mon exil. Je ne serai
toujours ailleurs qu'en moi-même parce que je ne peux qu'imaginer ma terre
natale...
Est-ce pour cela que ma vraie langue maternelle est la poésie?
Coolitude: porque sou crioulo de cordame, indiano de mastro, europeu de verga,
mauritano de busca e francês de exílio. Estarei sempre noutro lado em mim porque
não posso senão imaginar a minha terra natal… Será por isso que a minha
verdadeira língua materna é a poesia? (minha tradução)
Partimos daqui para ilustrar a complexidade que um olhar explícito para os usos da
linguagem cria numa abordagem crítica e colaborativa às oficinas biográficas. Como
dispositivo para os estudos das migrações em português, o espaço da roda de histórias
teria forçosamente de lidar com a extrema diversidade de conhecimentos e repertórios
linguísticos de todos os participantes. Deste ponto de enunciação, se assumiu desde logo
a assimetria e a hierarquização de saberes, organizados numa economia semiótica
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importante de identificar. Os ecos de aparente colaboração e simetria da metáfora da
arbre à palabre – afinal um lugar de poder, hierarquia e políticas participativas públicas
– levaram-me a tentar encontrar os espaços de tensão e dinâmica linguísticas marcantes
e constitutivas dessa economia de saberes, inerente ao próprio projeto biográfico.
Ancorada numa “língua de acolhimento” – o português – assim como num conjunto de
“práticas comunicativas de acolhimento” em torno do próprio ato de biografização, a roda
de histórias tentou a cada momento, perante os hábitos linguísticos e comunicativos de
todos os participantes, negociar a colaboração pelo exercício dialógico da partilha e
contribuição da narrativa biográfica de cada um/a e da escuta e ressonância das narrativas
dos outros, tendo em vista o guião pré-estabelecido no contrato anterior aos eventos
(Lechner 2012). Assim se tentou contornar constrangimentos produzidos pela língua de
acolhimento mas também o bloqueio da letra, da escrita, ou da alfabetização, propondo a
cada passo outros meios e modalidades de representação. Fizemo-lo através do uso de
outras línguas e recursos que não a partir do português – dado o repertório multilingue de
todos os participantes do projeto, inclusive pesquisadores, na sua maioria migrantes
também – e do recurso a outros repertórios para além do verbal – visual, como a produção
de desenhos, fotografias, imagens em movimento, objetos materiais (mapas, objetos
trazidos pelos participantes), corporal e performativa, inerente aos atos de contar e escutar
histórias, únicos e culturalmente situados de participante para participante e negociados
em conjunto em cada evento constitutivo do projeto.
Nunca é demais repetir a natureza simbólica, icónica e indexical da linguagem, e o
discurso como lugar da negociação de identidades e subjectividades, indissociável da
acção performativa quotidiana, que constrói, cria, reinventa e distorce representações do
mundo. Assumimos, por isso mesmo, apesar de nem de longe explorarmos as
potencialidades desta metodologia, a vontade de entender as oficinas biográficas na sua
complexidade etnopoética, ou seja, na performatividade intrínseca de linhas e estruturas
narrativas que, combinando aspetos cognitivos, emocionais, afetivos, culturais, sociais e
estéticos, organizam de modo implícito a experiencia vivida, como parte de uma política
social e semiótica de reconstrução e reconhecimento de modos de dizer, e não apenas e
necessariamente línguas (Hymes, 1974, 1996; Blommaert, 2005). Diz Hymes sobre as
abordagens sociolinguísticas:
… não chega começar com a língua, ou com uma descrição linguística
normal e daí partir para o contexto social. Um dos aspetos cruciais da abordagem
sociolinguística é assim como que olhar de dentro para a linguagem, a partir da
sua matriz social. Começar com a linguagem ou com um código individual é o
mesmo que convidar à limitação de uma abordagem puramente correlacional, e
perder a maior parte da organização do fenómeno linguístico (Hymes 1974: 75,
minha tradução)
Focar na língua para entender a vida social limita-nos no entendimento do que
conta como organização simultaneamente social e linguística, diz-nos Hymes. Não é
possível dissociar a matriz social da vida e atividade humanas da sua organização pela
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linguagem, dado que toda a atividade humana é semiótica. Se nos focamos nas vidas
humanas em movimento e nas dinâmicas da mobilidade implícitas nas migrações
humanas, é possível então concebê-las olhando para as dinâmicas de nomadismo e
movimento dos produtos semióticos produzidos, consumidos, e em circulação. Deste
ponto de vista, linguagem e migração estão intrinsecamente ligadas, e uma não pode ser
dissociada da outra.
As abordagens da sociolinguística da globalização articulam uma reflexão sobre
a superdiversidade dos contextos que resultam da multiplicidade de movimentos
populacionais globais (e da justaposição de escalas de espaço-tempo resultantes de
processos globais contemporâneos), com uma reflexão sobre o papel da atividade humana
da linguagem nestes processos; este exercício de articulação força as próprias ciências da
linguagem a repensar algumas das suas proposições fundadoras: o que conta como língua,
linguagem, norma, mudança e variação, diversidade linguística (Blommaert, 2010).
Aceitar o desafio de entender as dinâmicas semióticas nas rodas de histórias a partir desta
perspetiva é utilizar esta oportunidade para observar in-loco os processos de negociação,
socialização e participação em modos situados de narrar experiencias migratórias que
cruzam múltiplas historicidades. Ou seja, desenvolver um olhar atento para as dinâmicas
de co-construção das linhas e estruturas narrativas, negociadas a partir dos repertórios
semióticos das pessoas envolvidas no estudo, mas ao mesmo tempo em momento de se
construírem como novos falantes, ou sujeitos em narração.
Assumindo esta dinâmica do uso linguístico em contextos permeados por
movimentos globais, olhamos o fenómeno e organização da atividade da linguagem a
partir, não de estabilidades mas antes de mobilidades; as línguas surgem então como
recursos em repertórios fragmentados, não sistemas totalizantes (cf. Blommaert and
Backus, 2011); observam-se as dinâmicas de interação e circulação material de
reificações da linguagem de contextos para contextos seguindo as suas cadeias de ação1
(Barton & Hamilton, 2005; Kell, C.,2009, 2013; Lemke, 2000; Wortham, 2001), e não
como sistemas gramaticais estabilizados; neste sentido, os recursos linguísticos – visto
aqui a partir de géneros, registos e estilos – entram em negociação dinâmica, e podem
funcionar como portais de acesso ou exclusão, em que falantes não adquirem, antes se
socializam, investem e participam em práticas dinâmicas de transformação pessoal e
social – ou seja, aprendizagem e desenvolvimento (Norton, 2013; Lave & Wenger, 1991;
1 A abordagem material, performativa e circulatória aqui explorada, ainda que muito superficial, quer reconhecer as potencialidades que as abordagens de ator-rede (Latour, 1996, 2005) propiciam ao entendimento da atividade semiótica, humana e não humana; elas complementam outras abordagens que assumem as dinâmicas de circulação e mobilidade linguística, sustentadas na natureza humana dessa mesma atividade. Uma reflexão sobre o corpo é fundamental, aqui (Butler, 1993). Explorei a historicidade destas ações em trabalhos anteriores inspirada pela teoria da atividade (Engenström, et al., 1999). A dissonância entre abordagens propostas por teorias de atividade, teorias de ator-rede, estudos do discurso, novos estudos de escrita e leitura e antropologia linguística é um desafio que assumo a longo prazo no meu trabalho; ele providencia-nos instrumentos válidos para uma reflexão aprofundada sobre a natureza local, pragmática, nomádica, poética e assumidamente material, histórica, simultaneamente humana e não-humana da atividade comunicativa, sujeita a múltiplas escalas de espaço-tempo.
13
Wenger, 1998). A significação surge, assim, como um movimento centrípeto e expansivo
(não apenas centrífugo) que permite seguir as trajetórias de alguns dos nossos objetos
semióticos em momentos de encontro, reconhecimento, reinvenção de materiais
fragmentados, cujas condições contextuais de sobrevivência e mobilidade são permeadas
por poder e ideologia.
A natureza pragmática, performativa e rizomática deste tipo de abordagem não é
relativista nem celebra a informalidade do caos ou da diversidade extrema, pois este seria
um ponto ingénuo de partida. Sendo o caos o que sobra da ordem, não é possível escapar
da prática institucional, cujos princípios de ordenação foram sendo sedimentados em
processos semióticos de longa duração. Assumindo isto, exploramos as oficinas
biográficas como um dispositivo, ou seja, um lugar de controlo institucional que
condiciona conhecimentos, e logo, propício a resistência, colisão e colusão. Com um
olhar intencional para as dinâmicas de uso e negociação linguística, discursiva e semiótica
(mecanismos lexico-gramaticais, pragmático-discursivos, textuais) em articulação com
um enfoque nos produtos materiais que agem e fazem a mediação da atividade humana
da linguagem (fala, lectoescrita, artefactos multimodais), o ângulo de análise da
etnografia linguística permite identificar a colaboração, participação e atenção partilhada
das pessoas em eventos concretos, e cartografar as reificações das dinâmicas narrativas,
na sua circulação de um evento para outro evento, de um evento para um texto, de um
texto para uma prática discursiva; mais ainda, estes momentos permitem identificar
repetições, recombinações, reconhecimentos ou silenciamentos de alguns fragmentos em
prol de outros, sustentado, muitas vezes propiciado, pelo uso de múltiplos suportes:
audio-oral, video, observação etnográfica, memórias de participação em eventos, a
transcrição colaborativa de materiais, seleção de fotografias, organização conjunta de
guião para o documentário, entre muitos outros exemplos.
3. Ilusões biográficas, biografização e narrativas em circulação
Partimos de um entendimento do trabalho biográfico como ilusões que surgem em nexos
de trajetórias narrativas (Bourdieu, 1986; Castañeda & Morales, 2011), manifestas tanto
na performatividade das narrativas como nos contextos da sua produção. Relatos
biográficos fazem parte de processos mais abrangentes de biografização seguindo a linha
proposta por Christine Délory-Momberger (Délory-Momberger,2009: 70-74). De acordo
com esta autora, o trabalho biográfico faz-se em momentos e lugares de transição e
incerteza, apropriando recursos e subjetividades através da reflexividade e da
racionalização das experiências, organizados por estruturas narrativas. Sendo modos de
ação em relação aos outros e ao contexto, e cruzando espaço-tempo individual com
espaço-tempo social, estas dinâmicas são complexificadas, no nosso caso, pela interação
grupal que engloba múltiplas historicidades. O ato de biografização é eminentemente
performativo – ou seja, ao narrar a sua identidade, a pessoa encontra formas de dar
continuidade e coesão à experiencia de um mundo fragmentado, descontinuado e em
dinâmica transformação. Assumindo as múltiplas historicidades deste processo, mas não
14
nos detendo nelas neste texto, decidimos explorar a performatividade da biografização a
partir da circulação semiótica e material de alguns dos relatos narrados. A biografização
consistiu, assim, não apenas na socialização pela pessoa nos recursos semióticos e
materiais à sua disposição e alcance, dando uma forma pública à experiencia
anteriormente privada, escondida, tantas vezes indizível; ela foi re-semiotizada em outros
eventos e contextos (cf. Kell, 2013; Lemke, 1999), pela falante e por outros, tornando
visíveis outras formas de dizer, narrar e representar. Múltiplos aspetos do contexto já
mencionados atrás fazem a mediação desta circulação e negociação. O ritmo lento das
rodas de histórias – incluindo o tempo da produção das narrativas e escutas longas,
registados em suporte video – providenciou excecionalidade a estes eventos, fora dos
ritmos acelerados e dos espaços da vida quotidiana, o que seria de esperar do trabalho
biográfico. Dada a aturada recolha de material, foi possível identificar não só a dinâmica
das narrativas produzidas (e já amplamente estudadas, cf. Wortham,2001; Hymes, 1996;
Koven, 2007; de Fina,2003; de Fina & Baynham, 2005), mas também as trajetórias dos
objetos materiais e dos falantes envolvidos.
Um enfoque explícito nas materialidades do projeto – ou seja na articulação entre fala
gravada, interação filmada, artefactos de lectoescrita, entre outras formas de inscrição –
abre-nos este outro olhar e permite adicionar uma outra perspetiva ao papel político da
pesquisa biográfica, a uma escala micro mas não só, dado que se torna possível seguir a
simultaneidade do local e do não local nas reificações que circulam de um contexto para
outro (Barton & Hamilton, 2005; Kell, 2013, Brandt & Clinton, 2002). Demorou um ano
para tornar visível para a cidade a ideia das rodas de histórias. A procura de participantes
foi mediada por eventos intensos de escrita de anúncios e entrevistas em jornais e radio
locais, contacto com associações, juntas de freguesia, paróquias e a câmara municipal,
em eventos comunicativos de materialidades muito variadas. O formato das rodas de
histórias foi-se desenvolvendo ao longo do tempo: por exemplo, os princípios de
interação que envolviam a escrita de histórias e o uso do português foram renegociados
com a presença de migrantes, cujos repertórios multilingues orais e de alfabetização
eram profundamente distintos; o formato pré-determinado de oficina, transformou-se
gradualmente em roda de histórias com um só propósito: “conte a sua história”. Outros
ângulos de desenvolvimento da compreensão da experiência migrante surgiram: um,
explorando a experiência de mulheres; o outro, orientado para o papel da religião nas
migrações. Dada a recolha de grande parte do material escrito, desenhado, rascunho e
produzido nestes eventos, foi possível, em fases posteriores com participantes, trabalhar
detalhes que surgiram de alguns desses artefactos, da visualização conjunta dos vídeos,
de entrevistas posteriores aos eventos, com o intuito de produção conjunta do
documentário.
Relevante para o propósito deste texto foi a produção de um número de cartoons
produzidos por uma das participantes mais envolvidas no projeto – Socorro – cujas
versões da experiência biográfica, quando colocadas à luz das produções faladas,
tornaram visível a renegociação de perspetivas produzidas in loco por diferentes
falantes/escreventes. Depois da oficina de mulheres – que apresentarei a seguir – Socorro
15
desenhou uma caricatura para cada uma das participantes na roda de histórias, entre outros
desenhos representando temas associados à migração. Neles, Socorro propôs alternativas
para a representação sobre migrações e migrantes nos discursos oficiais e institucionais:
por exemplo, imigrantes em situação ilegal perseguindo o serviço de fronteiras, em vez
do contrário; a existência de motivações para os movimentos migratórios situadas no
desejo e na vontade própria, em vez da necessidade ou a miséria económica; libertação
da discriminação sexual, racial ou económica. Em fases posteriores, Socorro recorreu a
este seu talento para desenhar alguns dos relatos produzidos em roda, entre elas, a história
de F, por ela publicadas em Facebook, em formato de álbum, intitulado Desxenofobando.
Socorro tentou, assim, a partir desta experiência biográfica, explorar um lugar para o
desenvolvimento de uma voz pública – a sua – como imigrante em Portugal.
4. A história do senhorio: trajetórias, materialidades e contextos
Detenho-me nesta secção em dois lugares fundamentais destas trajetórias: primeiro, as
materialidades explícitas, recolhidas e gravadas dos contextos de enunciação da narrativa
de F numa sequência de momentos e lugares concretos; o segundo, identificando os
pontos de entextualização das narrativas produzidas, e as forças que enquadraram e
determinaram a indexicalização a determinados discursos mas não outros. Motivada pela
palavra da autora Socorro – Desxenofobando – pretendo seguir, nos passos de descrição
desta trajetória narrativa, os pontos de tensão e as cadeias de ação que levaram à criação
da significação pública da história de F como exemplo das experiências de assédio sexual
por mulheres migrantes.
A especificidade da experiência das mulheres nas migrações ficou clara desde cedo,
decorrendo de alguns dos relatos produzidos nas duas primeiras oficinas do projeto –
sendo recorrente a alusão a experiências traumáticas em relações de namoro ou a
dificuldade em ser mãe num país estrangeiro. Outros fatores contribuíram para a decisão
intencional de criar uma roda de histórias composta apenas por mulheres: alguns relatos
de violência doméstica em entrevistas em profundidade; o apoio social, pelo centro de
acolhimento por nós contactado, orientado explicitamente a mães solteiras oriundas de
outros países, que por múltiplas razões se veêm sem trabalho nem apoio ao cuidado das
crianças, colocando-as em situação altamente fragilizada. Outros sinais desta necessidade
surgiram nas dinâmicas de interação grupal no seio das primeiras oficinas, nomeadamente
a gestão de silêncios de algumas mulheres participantes em roda de história vis a vis as
suas vozes proactivas fora do evento programado, em conversas informais, jantares, ou
outros lugares de interação. A vida complicada das mulheres participantes da roda
obrigou a flexibilizar a sua organização: três das seis mulheres que aceitaram participar
eram mães que não tinham com quem deixar os filhos pequenos; uma das participantes
estava grávida de sete meses e tinha dificuldades em se deslocar; outras trabalhavam ou
faziam cursos de formação do Centro de Emprego e não podiam faltar. Uma delas, sem
emprego e sem dinheiro, deslocava-se por Coimbra, com duas crianças pequenas, a pé.
16
Tentando encontrar alternativas, até mesmo no cuidado e alimentação dos filhos nos dias
da oficina biográfica, conseguimos a grande custo criar um espaço de exceção à vida
quotidiana destas mulheres2. Transportámos a roda de histórias da zona alta para uma
zona mais baixa da cidade, evocando uma trajetória histórica e social da própria cidade
de Coimbra: do contexto académico, assético e laboratorial na alta, a roda de histórias
entrou no ruído da baixa da cidade, e por isso mesmo lidou com a falta de silêncio e a
justaposição de múltiplas tarefas, atividades e ocupações das mulheres que acederam
colaborar no projeto, com repercussões para a performatividade narrativa. Pela primeira
vez, nas salas contíguas e frias da associação, muitas destas mulheres se sentiram ouvidas
e aliviadas – quanto mais não fosse pelo espaço de duas ou três horas – das tarefas
domésticas e familiares do final de dia. O calor afetivo desta partilha solidária
transformou estas oficinas num ponto de viragem marcante para o resto do
desenvolvimento do projeto.
F e o senhorio
A história de migração de F surge no primeiro dia da oficina. Tentámos nesse dia seguir
o guião pré-formatado: cria-se o espaço de partilha a partir do silêncio, de um exercício
de escuta do silêncio, da verbalização por cada uma dessa mesma experiência; segue-se
um relato individual, um período de eco e ressonância grupal do relato inicial. F foi uma
das primeiras participantes a partilhar a sua história, e a sua voz dominou parte muito
significativa do tempo da oficina, seja no relato, seja na ressonância das histórias
partilhadas por outras pessoas. De forma muito resumida, F saiu de Minas Gerais, Brasil,
para viver em Portugal com o marido que migrara anos antes para trabalhar na construção
civil. O objetivo do casal era juntar dinheiro para comprar uma casa no Brasil. Como a
família do marido estava já a viver em Vila Nova de Poiares, Coimbra, o marido de F
emigrou. Ainda antes de conseguir a regularização, conseguiu enviar dinheiro para que F
se mudasse com os filhos para Portugal. Foi ela que, chegando aqui, conseguiu emprego
e viabilizou a regularização do casal. Contudo, os problemas de F com o SEF persistiram:
no seu relato (e em outros momentos da oficina biográfica) foram óbvias as dificuldades
em obter informações junto da instituição. Em Portugal, F teve seu terceiro filho, mas
contudo, o casamento acabou, e o marido regressou ao Brasil. Dada a falta de segurança
das grandes cidades brasileiras, F decidiu não regressar. As narrativas de F detiveram-se
nesta sua identidade de migrante brasileira, as dificuldades da burocracia, a integração
em Vila Nova de Poiares, enunciando uma perspetiva da provedora da família, dos bens
e do cuidado dos filhos.
A narrativa em que nos focamos surge no segundo dia; ela surge a seguir ao relato de
outra mulher e enquadrada na evocação entretanto explicitada nesta oficina, de
experiências de “discriminação por se ser mulher”, um tema já em circulação em outras
oficinas:
À data deste episódio, F vivia sozinha com os seus três filhos,
recentemente separada do marido. O senhorio do apartamento onde
2 Cf. relatório do projeto.
17
viviam bateu à porta de madrugada, surpreendendo-a. Tratando-a
de forma distinta daquela que a tratara até então – deixando o
tratamento de “a Dona F” para apenas de “a F”, o senhorio tenta
entrar dentro da casa com o intuito de cobrar favores sexuais em
troca de renda, colocando um pé na ombreira da porta, de um modo
ameaçador. Diante da recusa de F em ceder, o senhorio disse que
ela e seus filhos deviam abandonar a casa. Enunciando o receio e a
fragilidade sofridos por este evento, a sensação de insegurança e o
medo pelos seus filhos pequenos, F procurou uma nova casa no
período de uma semana, cuja renda fosse viável a uma mulher
sozinha e com três filhos a cargo. Revelando uma vez mais o
estereótipo que vitima mulheres brasileiras sozinhas pelo mundo
afora, esta história abordou, também, um outro problema
enfrentado por migrantes: o alojamento e a habitação, mais tarde
retomado em outras linhas narrativas (descrição densa3).
Não foi esta a primeira vez que este episódio foi enunciado. Ele surgiu pela primeira vez
em conversa com uma das pesquisadoras do projeto, parte dos primeiros encontros
informais e em espaço anónimo. Ele é recolocado aqui, em eco com outras narrativas
entretanto enunciadas por outras mulheres e pelas orquestradoras da oficina, mas servindo
outro propósito, o de enunciar um outro tópico recorrente nas narrativas desta
participante: as dificuldades de alojamento e as condições de habitação. A história do
senhorio é mais tarde representada nos cartoons de Socorro, que analisaremos de seguida.
É também a representação deste episódio nos cartoons de Socorro que leva F, em
conversa com outras participantes e pesquisadoras, a considerá-lo importante para os
objetivos do projeto. Juntamente com outra participante, F propõe voluntariamente narrar
a sua experiência na conferência final, como forma intencional de denunciar e ilustrar
publicamente algumas formas de discriminação de migrantes por razões de corpo e
sexualidade. Esta narrativa é apresentada por F no evento público, em pranto, um
momento performativo a que ninguém ficou indiferente. Detemo-nos nas secções
seguintes, nesses dois momentos de entextualização da experiência pessoal de F, não sem
antes apresentar a trajetória de existência dos cartoons da Socorro.
Os cartoons da Socorro
Socorro começou relatando a sua vinda para Portugal. Seu marido, que
fizera um curso de gastronomia no Brasil, foi convidado para trabalhar
num restaurante em Portugal. Reginaldo veio para o país apenas com um
visto de turismo, esperando conseguir a documentação quanto chegasse.
Contudo, nessa altura, a legislação dificultava a legalização no país, razão
3 Por razões práticas, apresentamos a descrição densa e sucinta dos momentos de performatividade narrativa de F nos momentos de enunciação da sua história. Assumimos a necessidade, para uma análise rigorosa destes momentos performativos, de uma transcrição discursiva e interacionista que não cabe neste texto.
18
pela qual ele ficou em situação irregular por quatro anos Durante este
período, Socorro estava com seus filhos em Fortaleza, Brasil. Quando o
marido se mudou para Coimbra e conseguiu, finalmente, os documentos,
o patrão decidiu ajudá-lo a trazer a família do Brasil para Portugal. Socorro
embarcou com os filhos ainda pequenos e depois de passar algumas
dificuldades nos serviços de imigração do aeroporto, chegou a Coimbra.
Aqui, ela trabalhou nas limpezas em casas de família até engravidar da
terceira filha. O marido, que inicialmente tinha um emprego estável, viu-
se em dificuldades pouco depois da chegada da família. Com a crise
financeira que estourou em 2008, ele foi demitido. Desde então, tem tido
dificuldade em se estabilizar em um emprego, e muitas vezes, os patrões
não o pagam ou não fazem os devidos descontos para a segurança social.
Socorro, a despeito das dificuldades financeiras, afirma não querer voltar
para o Brasil. Segundo ela, o que a motivou a vir e a motiva a ficar é a
segurança e o sossego que encontra em Portugal para criar os seus filhos.
Socorro criou um forte vínculo com a equipa do projeto. Em Portugal,
conta com a ajuda da Igreja que frequenta (Igreja do Jesus Cristo dos
Santos dos Últimos Dias). Criativa e talentosa, ela representou, em
desenhos, alguns momentos da oficina biográfica da qual participou e
mantem, na sua conta do Facebook, o álbum “Desxenofobando”, em que
publica bandas desenhadas de sua autoria acerca da vida de imigrantes
(descrição densa).
Desde o início, a produção de desenhos e riscos é um aspeto essencial do modo de
participação de Socorro no projeto. Grávida de sete meses nos nossos primeiros
encontros, Socorro ouvia atentamente as histórias produzidas por outras participantes no
projeto, tendo sido ela, a primeira a lançar a sua narrativa logo na primeira oficina. De
facto, os desenhos da Socorro permitiram tornar visíveis muitos aspetos e detalhes que
não havíamos tomado atenção nos nossos momentos de observação, tendo-se tornado um
instrumento eficaz para a própria colaboração etnográfica. Na figura que apresento em
baixo, os desenhos de Socorro tornaram-se parte da análise dos próprios dados,
permitindo-nos seguir algumas pistas de inscrição de alguns dos momentos significativos
do projeto: o fragmento do pré-formato do guião da biografia – por exemplo, a fase da
escuta; a filmagem em vídeo dessa fase na oficina concreta; no final a reificação desta
mesma experiência em desenho, revelando uma observação cuidadosa de Socorro durante
todo o processo. No exemplo aqui apresentado, o desenho torna visível e dá informação
crucial sobre a natureza eminentemente corporal dos momentos de paragem e escuta, mas
também entextualiza as preocupações iminentes de cada uma das participantes, no
momento desta paragem – o desconforto da grávida e do movimento do feto; a
preocupação financeira, a obcessão com o lixo, enunciadas pelas participantes aqui
representadas, e mais tarde repetidas e recombinadas com outros elementos na construção
19
das suas subjetividades, navegando ao longo do tempo e do espaço de ação de
biografização destas mulheres dentro e fora das rodas de história.
A criatividade, o traço e a capacidade de inscrição do detalhe revelada pelos desenhos da
Socorro, a atenção repetida dada à partilha destes desenhos como parte integrante do
projeto, tiveram resultados transformadores, não só no âmbito do projeto mas na vida
concreta desta participante, que abriu uma conta em facebook com o intuito de tornar
públicos os seus desenhos e a sua arte. Os “cartoons da Socorro” começaram a ter vida
própria, não-local, autónoma dos seus contextos de produção e receção, ou seja reificados
como objetos semióticos próprios e com estruturas e padrões de organização comuns. É
esta dimensão textual, se quisermos, que ilustro nos dois exemplos que apresento de
seguida.
Demonstrando uma avaliação moral comum, as narrativas que subjazem os cartoons de
Desxenofobando celebram e providenciam uma identidade visual aos “imigrantes”, que
parte dos estereótipos xenófobos e negativos para os desmontar e ressignificar. Por
20
exemplo, o verbo morrer, surgindo em “os pretos e brasileiros devem morrer”, recoloca-
se e expande-se para “nós morremos sim, mas de vergonha, de pena e de vontade de
chutar o seu…”. O mesmo processo de ressignificação se encontra na expressão verbal
“garota de programa”, que, do significado pejorativo inicial se re-coloca de modo
celebratório na vinheta seguinte, desta vez na figura de “garota de programa TV”,
reforçada pela representação da parafernália material das câmaras e dos vídeos, de um
público em estúdio TV, e da força da visibilidade mediática. Evocando os contextos
materiais de produção do projeto colaborativo – afinal as oficinas são acompanhadas por
uma equipa técnica de áudio-visual, e fazem parte de um projeto académico financiado e
institucional – esta representação aponta para discursos que combinam os mídia e a
academia, e assim assumem voz e visibilidade públicas capazes de denunciar as
experiências vividas de migração em Portugal. Nestes discursos, a pessoa migrante
liberta-se da sua posição de vítima, reclama voz, identidade e ação e submete a figura
opressora a uma condição de subalternidade, fragilidade, fraqueza, cobardia e miséria
moral. É neste sentido que podemos dizer que as narrativas desenhadas por Socorro no
âmbito do projeto parecem seguir uma dinâmica performativa de ressignificação, no
sentido enunciado por Butler (1997, 2005).
Intitulado de “O Senhorio Vacilão”, o texto aqui apresentado segue de perto a estrutura
narrativa produzida nos outros exemplos e utiliza, tal como os outros, os ingredientes
necessários para a sua construção genérica como cartoon (vinhetas de apresentação,
representação de um lugar de tensão, resolução da tensão, avaliação moral implícita ou
explícita). Ele expande o tema do aproveitamento sexual das imigrantes brasileiras, já
referido e evocado em outros exemplos, ressignificando, no momento final de avaliação
moral, a reação da personagem F perante a visita noturna do senhorio. Ao longo do
processo, coloca-se literalmente em espelho a proposta do senhorio - experimentar uma
brasileira vs experimentar um europeu – a partir da reprodução de um estereótipo situado
numa imaginação de um centro geopolítico e territorial sem lugar para o território
português (Brasil vs. Europa, e não Brasil vs. Portugal), e re-articulando o verbo
21
experimentar, com a inscrição de uma outra ‘arma’, um outro falo protésico, se
quisermos, a motosserra. Nesta representação se resgata a assimetria e se recolocam as
personagens, demonstrando uma mulher imigrante brasileira capaz de afugentar um
senhorio homem, português, europeu e vacilante perante a força de uma reação.
À luz de outras textualidades negociadas na fala produzida no contexto das oficinas,
podemos ainda verificar que esta representação, para além de tornar visível um fragmento
apenas da narrativa anterior, secundariza a enunciação de medo e fragilidade verbalizada
por F na roda de histórias; aqui, se entextualizam alguns dos implícitos e não-ditos que
foram surgindo nessas dinâmicas grupais de interação – marcados pelas reações
silenciosas de empatia, desconforto e indignação, os esgares e movimentos de corpo das
participantes, as vozes e os suspiros, os risos, os comentários secundários jocosos,
presentes na memória e no corpo de quem esteve na oficina (e registados em vídeo),
também enquadrados no reconhecimento em grupo da proatividade de F em outros
momentos de narração da sua vida, em que esta migrante revelou capacidade de ação, luta
e transformação das suas próprias condições.
A análise que faço aqui da narrativa de F ‘como se fosse’ cartoon parte de uma
abordagem textual e representacional, algo bidimensional, se quisermos, que reifica um
objeto semiótico passível de descontextualização, dá ênfase aos traços genéricos e
abstratos, não-locais, móveis, transportáveis – ou seja – fáceis de deslocar e apropriar em
outras escalas discursivas (Blommaert, et. al. 2005a, 2005b; Kell, 2009). Este ato de
reificação não pode ser dissociado do processo de participação material em prática
discursiva, logo parte intrínseca da socialização discursiva (Keating, 2009; Wenger,
2000). Dado que nos detemos na performatividade da biografização, estas representações
sedimentadas são apenas uma parte do processo. Seguindo o álbum Desxenofobando,
agora como artefacto material e digital, detenho-me na sua apropriação à luz de um outro
evento – o encontro final do projeto – em que F apresenta a sua narrativa. Sendo um lugar
público de reconhecimento social, político e académico das histórias narradas em oficinas
(e das suas contadoras), este é também um momento de socialização desta participante na
performatividade académica, um nexo de práticas culturais hegemónicas que materializa
a transformação de uma narrativa sobre um incidente pessoal para um relato de
experiência de discriminação sofrida por mulheres migrantes4. Este ato semiótico de re-
escala faz-se à custa do desconforto e sofrimento da própria contadora da história, o que
levantou questões éticas quanto às políticas de representação envolvidas.
O encontro final
4 Hymes descreve este processo através da expressão Breakthrough into performance, ou seja, o ato de consumar a transformação de uma perspetiva incidental de uma história para a significação cultural, identitária e grupal em jogo na performance dessa mesma narrativa (cf. Hymes, 1981: 12).
22
O encontro final do projeto realizou-se na cidade de Coimbra no
início de 2014 e teve como título “Biografias e(m) migrações: construindo
um trabalho em colaboração no contexto português”. O colóquio tinha dois
objetivos principais: (i) possibilitar o encontro e o diálogo entre todas as
pessoas que nele estiveram envolvidas (investigadores/as, consultores/as,
voluntários/as e instituições); (ii) apresentar o projeto e alguns dos
resultados do trabalho a um público mais vasto (demais investigadores/as
do CES e de outros centros de investigação). Assim, membros/as da equipa
e consultores/as foram convidados/as a participar e a apresentar
comunicações sobre os principais eixos temáticos do projeto;
voluntários/as foram convidados/as a relatar na primeira pessoa a
experiência de participação nas oficinas biográficas e, por fim, outros/as
colegas do CES e de outros centros de investigação vieram comentar os
trabalhos e relatos apresentados. O colóquio foi organizado em mesas que
abordaram os principais temas do projeto: pesquisa biográfica para o
estudo das migrações; atuação das instituições locais; processos de
exclusão e inclusão de imigrantes nas cidades; discursos sobre imigração
e a representação dos imigrantes; o papel das igrejas e religiões nas
migrações; a discriminação de género nos processos migratórios e
pesquisa colaborativa. Ao longo dos dois dias, o colóquio reuniu
aproximadamente 40 pessoas (entre equipa, voluntários/as, convidados/as
e ouvintes) que debateram os temas acima elencados. Procurou-se seguir,
o mais possível, o seguinte formato em cada uma das mesas: a
comunicação de um/a investigador da equipa; a comunicação de um/a
consultor/a ou convidado/a; o relato de um/a voluntário/a; comentários de
um/a colega convidado/a e debate com o público. Nas suas comunicações,
os/as membros da equipa procuraram utilizar, o mais possível, o material
produzido no âmbito das oficinas biográficas, de modo a criar pontes e
estabelecer relações entre o projeto e outras experiências apresentadas
pelos/as consultores e convidados/as (excerto do relatório).
Enquadrada e publicitada como evento público e académico (ver ilustrações), constituída
por sessões públicas com as forças da cidade, comunicações científicas e conferências
plenárias com oradores internacionais convidados, a narrativa de F surge neste contexto
como fazendo parte do “relato voluntário por participantes”, a solução encontrada pelo
23
projeto para possibilitar o espaço e a voz públicas dos relatos de participantes que para
isso se voluntariaram, também como forma de ilustrar e promover in loco o diálogo
público participativo dos múltiplos atores envolvidos nas questões associadas às
migrações – migrantes, cientistas, ativistas, gestores de políticas públicas locais,
nacionais, transnacionais. Preparada para o segundo dia do colóquio, ela surge na sessão
dedicada às questões de género e sexualidade nas migrações e à pesquisa colaborativa.
Partindo da apresentação do material e dos artefactos produzidos nas oficinas biográficas
(relatos, textos manuscritos, desenhos, entre eles o álbum Desxenofobando), a minha
apresentação, como investigadora do projeto, abordou os preconceitos de género
associados aos estereótipos sobre os/as migrantes, seguida da comunicação de Ana Costa,
ativista do Graal, sobre as ações desta organização não-governamental nos cuidados da
saúde de mulheres imigrantes em Coimbra. De acordo com o formato pré-estabelecido,
seguiram-se as intervenções de duas participantes, entre elas F, cujo intuito era o de
relatar situações pessoais de preconceito e violência simbólica sofridas em Coimbra por
serem mulheres e brasileiras, tendo ficado o comentário destas intervenções para uma
investigadora do CES, especialista em estudos feministas.
Detenho-me aqui no momento de intervenção de F, já depois do relato pela outra
participante, que através de uma apresentação esperada, recorrendo a géneros, registos e
estilos académicos, ilustrou com eficácia (ou seja obedecendo às estruturas narrativas e
performativas esperadas naquele evento) os temas do aproveitamento sexual em relação
próxima de namoro, assim como a ação dos estereótipos raciais, étnicos e classistas
envolvidas na representação das mulheres brasileiras em Portugal. Entrando em
performatividade de modo nervoso e trémulo, F iniciou o seu relato com hesitações,
apresentando fragmentos da narrativa aparentemente sem coesão; numa sequência
intermitente de fala e silêncios, cada vez mais tensos, F entrou em pranto, levantou a voz,
pegou num ponto da linha do relato do senhorio, e continuou num longo desabafo pessoal,
emocional, e profundamente afetivo, num ato inesperado e surpreendente para todos os
envolvidos no evento, e difícil de gerir para os moderadores da mesa. Foi claro, durante
esta intervenção, o modo como a participante reviveu os medos, as emoções e as
fragilidades sentidas no momento do evento traumático. Em atuação surpreendente, F
entrou em profunda dissonância com a representação e a denúncia emancipada e
emancipatória do cartoon narrado por Socorro – entretanto em projeção na parede, em
modo académico powerpoint. A manifestação de F rompeu com o evento, sendo clara a
preocupação e tentativa de re-orquestração pelos vários responsáveis envolvidos na
sessão de trabalho: depois da intervenção de F seguiu-se um longo momento de silêncio,
embaraço e desconforto, tanto da parte do público como da parte dos participantes
sentados na mesa, resolvido apenas com a intervenção final da investigadora do CES que,
aproveitando este momento performativo, tomou a palavra e retomou os assuntos da
sessão, articulando a narrativa apresentada com as intervenções anteriores e re-alinhando
a ação verbal conforme a estrutura esperada e apropriada ao evento.
As reações posteriores não se fizeram esperar e foram de natureza múltipla: em conversas
informais ainda no local, o público enunciou, por um lado, a aceitação normal – óbvia,
24
quase politicamente desejável – deste momento performativo perante o assunto
traumático relatado; por outro lado, o questionamento ético perante a necessidade sentida
pela participante de reviver o trauma perante um público académico, e assim conseguindo
demonstrar in loco o sofrimento, afinal ainda tão fresco, resultante deste episódio (“deve
a vítima sangrar por nós?” foi a pergunta colocada). Em conversa pessoal imediatamente
a seguir, F referiu a surpresa que sentiu pelo assalto dos sentimentos de fragilidade e medo
revividos pelo momento, a violenta percepção e tomada de consciência da não resolução
deste episódio na sua vida, motivada, principalmente, pela sua frustração por “não ter sido
capaz de reagir, naquela hora, como no desenho da Socorro”. Afinal, disse F, reviver o
episódio em situação de denúncia pública foi, para ela, um amargo de boca que em nada
a transformou.
Vista agora como uma parte – entre outras – da experiência vivida do corpo e da
sexualidade no movimento migratório destas mulheres, a performatividade da narrativa
de assédio sexual por F, foi sendo articulada em intersecção com outros eixos de
experiência da vulnerabilidade, enunciados pelas participantes em termos de etnicidade,
raça, pobreza, cidadania. Funcionando simultaneamente como lugar de denúncia e resgate
– e logo supostamente de emancipação, ação e transformação –, a revisitação final da
narrativa – apesar de planeada em colaboração e por vontade própria –, colocou em F
sentimentos mistos, fundamentados na memória do medo e da opressão sofrida. Isto
levantou questões éticas sobre os direitos e os deveres da denúncia, do resgate da
experiência pela sua visibilidade, mas simultaneamente o direito ao resgate da experiência
pelo silêncio e silenciamento de memórias de dor. Ao mesmo tempo demonstrou como o
episódio de F deixou de ser pessoal, sendo re-escalado em performatividade para
discursos públicos de acesso e exclusão, com resultados ambíguos para a própria
contadora, o que levantou questões éticas como: afinal, a quem servimos neste projeto?
Quem ganhou com ele?
5. Discussão e conclusão
Sustentada no exercício constante de reflexividade ética e crítica, foi objetivo da equipa
do projeto identificar alguns aspetos em que uma abordagem biográfica contribui para os
estudos das migrações em Portugal. No texto aqui apresentado exploro um olhar focado
na acção semiótica e nos mecanismos performativos da biografização, no intuito de
contribuir para uma compreensão mais aprofundada do processo constitutivo dos saberes
partilhados. Adotando um olhar etnográfico para os usos linguísticos – comunicativo,
oral, letrado e multimodal – tentei explorar a biografização a partir de alguns dos traços
materiais da atividade humana da linguagem. Assumindo que o trabalho narrativo surge
da sua performatividade social, tentei explorar explicitamente os produtos destas
narrativas, não somente situadas em pontos espaciais e temporais concretos, ou seja, na
sua organização narrativa, mas na sua circulação por trajetórias locais, mas
simultaneamente não-locais.
25
Um olhar detalhado para as trajetórias e as cadeias de ação de três entidades – falantes (a
F), artefactos (os cartoons da Socorro) e organização narrativa (do episódio do senhorio)
– permitiu-nos observar que a narrativização da experiência de F foi ancorada de formas
distintas nos três lugares de enunciação observados: no primeiro evento (a oficina das
mulheres), apesar de ilustrar um exemplo de discriminação, o episódio surgiu como parte
da estrutura de ação de uma outra narrativa – ou seja parte de um problema que
necessitava de resolução na vida de F como migrante em Portugal – a do alojamento e da
habitação. No segundo momento, agora re-semiotizado em cartoon, este episódio seguiu
as linhas do álbum Desxenofobando, libertando-se dos traços locais da enunciação e
contextualização anteriores, e adquirindo traços genéricos não-locais, entextualizando
então outros discursos, apenas implícitos no evento anterior – a rebeldia, revolta e
resistência face à discriminação vivida como mulheres migrantes. Tornado visível e coeso
através de outra modalidade – o desenho – e inscrito agora em materialidade própria, a
narrativa de F tornou-se transitável de contexto para contexto. Isto permitiu-nos olhar
para a sua metamorfose, propiciada pelas características materiais dos lugares de
enunciação: a primeira fala de F negociada em oficina, o desenho inscrito em género
textual cartoon, a relocalização material deste artefacto de contexto para contexto,
culminando, em modo de ilustração dissonante da última fala de F, na sua projeção em
evento académico.
A configuração do artefacto tornou possíveis outras subjetividades e providenciou outros
lugares de identidade à própria contadora da história. Como objeto semiótico, o episódio
do “Senhorio Vacilão” tinha outro potencial de ressignificação — criou em F o desejo de
participar ativamente no ato de denúncia e resgate propiciado pelo encontro final do
projeto académico, em que todos se mobilizaram para a divulgação pública da experiência
migrante. Sendo um contexto formatado por discursos académicos e políticos, o colóquio
final seguia, porém princípios implícitos e não ditos de interação e organização: assim, as
exigências da performatividade académica formal, a presença simultânea da
representação emancipatória da migrante no cartoon em suporte digital e projetado no
écran da sala de conferências, a performatividade titubeante e emocional de F criou
constrangimentos, tensões e emoções imprevistas. Foi este imprevisto que revelou a
profunda assimetria na distribuição dos recursos em jogo neste evento comunicativo
académico, criando aquilo que Maryns & Blommaert denominam por lacunas pré-
textuais (pre-textual gaps), ou seja, dissonâncias entre as expectativas de ação
comunicativa e a atuação pela parte dos participantes naquele evento comunicativo
concreto.
Maryns & Blommaert partem de um entendimento da desigualdade linguística sustentado
na noção de pré-textualidade, ou seja, as condições prévias para a comunicação. Fazendo
parte da esfera dos traços invisíveis da linguagem em sociedade, e dando ênfase à
dimensão instrinsecamente política e económica de um facto linguístico, a ideia de pré-
textualidade surge, nestes autores, a par com outras noções mais familiares, como
intertextualidade, por eles definida como os traços visíveis de um facto linguístico
passível de identificação porque regulado pela sua historicidade: “cada facto linguístico
26
transporta consigo uma história de (ab)uso (intertextualidade), assim como uma história
de avaliação e tributação de valor social e sociocultural (pré-textualidade)”. Definida em
termos da atribuição de valor sociocultural, político e económico a determinados
significados, da existência de recursos passíveis de criação de dinâmicas de textualidade
(possíveis mecanismos de coesão, coerência, entre muitos outros), assim como da criação
de potenciais entextualizações (evocando determinadas configurações discursivas), um
olhar sobre a pré-textualidade ajuda-nos a entender como se criam vazios ou lacunas pré-
textuais no evento comunicativo, em que as diferenças de recursos por participantes num
determinado evento criam tensão, agem na ação futura, e colocam a nu as economias
linguísticas e as hegemonias discursivas em jogo – e logo, a meu ver, o seu potencial
contra-hegemónico (cf. Maryns & Blommaert, 2002: 12-13, minha tradução).
Esta ideia de pré-textualidade é útil para entender as dinâmicas de participação de F, da
outra colega e de Socorro nos vários eventos observados: ele permite-nos explorar mais
um eixo na intersecção de assimetrias subjacente às cadeias de ação inerentes ao processo
de biografização – o da desigualdade linguística, ou seja, o modo como os repertórios
comunicativos e linguísticos destas falantes agiram de forma eminentemente assimétrica
na produção e na circulação de narrativas biográficas. Dado que os vazios pré-textuais
têm alguma fluidez e são sempre negociados em interação, conseguimos explicar o eixo
da desigualdade linguística sem recorrer a perspetivas deterministas deficitárias, tão
recorrentes quando se fala de línguas. Ao mesmo tempo, propicia um olhar sustentado na
reconstrução destes mesmos repertórios, que nos permite descrever e explicar os
processos performativos e materiais da construção de novos falantes, em que estes
preenchem as lacunas e constroem novos lugares de enunciação, ou seja, espaços para o
desenvolvimento de repertórios comunicativos, nunca antes por si imaginados mas parte
essencial da sua biografização (e subsequentemente da sua aprendizagem e
desenvolvimento).
Um olhar para as cadeias de ação semiótica permitiu-nos, assim, estar ainda mais alerta
para as dinâmicas envolvidas nas políticas de representação que a pesquisa biográfica em
colaboração traz para a praça pública. Entre a determinação dos (e pelos) contextos e a
sua desconstrução, a enunciação propiciada pela pesquisa biográfica arrisca-se por
terrenos minados por traumas entretanto esquecidos, sendo aí, no risco da armadilha, que
ela encontra a sua potencialidade transformatória, que sempre acontece a escalas
imprevistas.
Tentámos, neste capítulo, exercitar um entendimento da biografização a partir da sua
performatividade material, radicalmente situada, não só em trajetórias, mas também nos
pontos de encontro em que as linhas se cruzam, mesmo quando em fuga rizomática
(Deleuze & Guattari, 1987). Pela sua natureza etnográfica, colaborativa, multidisciplinar
e participativa, mas também pelo olhar sustentado para o material produzido ao longo do
projeto, as oficinas biográficas providenciaram uma oportunidade única de recolha,
registo e colaboração sobre os processos semióticos de construção da experiência
migratória, de que só riscámos a superfície. Olhar a linguagem à luz das migrações, assim
como olhar as migrações à luz da linguagem tem destes mistérios: como diz Michaela
27
Fay: a mobilidade não só pede dos que se movimentam uma participação diferente na
linguagem; é no empenhamento em outras definições de linguagem que se criam outras
formas de ver e experimentar a mobilidade. Daí se depreende que linguagem tem tanto
de mobilidade como a mobilidade tem de linguagem; dado que os trajetos se fazem tendo
em conta pontos concretos de partida e chegada, o movimento dos sentidos não pode
senão enunciar os mecanismos de poder, diferença e hierarquia entretanto percorridos.
Olhar para o inferno dos detalhes é, por isso mesmo, um ato de desxenofobar, até mesmo
a ecologia dos saberes que sustenta a perspetiva reflexiva deste lugar de conhecimento.
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