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Rogério Pena Masi
A Autoadvocacia e a Educação Sociocomunitária
UNISAL
Americana
2012
2
Rogério Pena Masi
A Autoadvocacia e a Educação Sociocomunitária
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Educação Sociocomunitária, do
Centro Universitário Salesiano
de São Paulo, como parte dos
requisitos para obtenção do
título de Mestre em Educação
Sociocomunitária, sob a
orientação da Prof. Dr.ª Maria
Luísa Amorin Costa Bissoto.
UNISAL
Americana
2012
3
Autor: Rogério Pena Masi
Título: A Autoadvocacia e a Educação Sociocomunitária
Dissertação apresentada como
exigência parcial para obtenção
do grau de Mestre em Educação
Sociocomunitária.
Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado em 10/08/2012, pela
comissão julgadora:
________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria Luísa Bissoto - Orientadora Centro Universitário Salesiano de São Paulo
________________________________________ Prof. Dr. Luís Antonio Groppo Centro Universitário Salesiano de São Paulo
________________________________________ Prof.ª Dr.ª Débora Costa Ramires Universidade Metodista de Piracicaba
UNISAL
Americana
2012
4
AGRADECIMENTOS
Esta dissertação é o resultado de um trabalho coletivo. Contou com o
apoio e a colaboração de diversas pessoas. Algumas serão citadas, outras,
injustiçadas pela minha memória, mas não esquecidas pela minha eterna
gratidão, não terão seus nomes nesta lista de agradecimentos.
A minha Orientadora, Maria Luísa Bissoto, pelos ensinamentos,
compreensão, apoio e incentivos constantes, amizade, paciência,
generosidade, iluminação e competente orientação, concedendo-me total
liberdade intelectual na condução de meus estudos e escrita desta pesquisa,
que foram fundamentais para que esta dissertação alcançasse seu objetivo e
para que este pesquisador se transformasse em um novo homem.
Aos Professores do exame de qualificação, Prof. Dr. Luís Antonio
Groppo e Prof.ª Dr.ª Débora Costa Ramires, pela generosa aceitação de meu
convite e pelos preciosos comentários e sugestões, que foram fundamentais
para o aprimoramento da minha pesquisa.
A Mara, o amor das minhas vidas. Agradecer pela dedicação, amor,
respeito, generosidade, apoio incondicional e companheirismo seria
insuficiente, além de um lugar-comum vulgar para o tanto que representa em
minha vida.
A minha amada mãe, exemplo de educadora e incentivadora
incondicional de meu progresso intelectual, que foi o alicerce da minha
educação moral e que contribuiu para que eu me tornasse a pessoa que sou,
em todos os aspectos positivos. Minha eterna gratidão.
A D. Valda, minha amada sogra, que sempre me apoiou
incondicionalmente em todos os momentos, colaborando com a viabilidade da
conclusão desse curso.
5
A todos os Professores do Programa de Pós-Graduação, especialmente
o Prof. Dr. Paulo de Tarso Gomes e o Prof. Dr. Luis Antonio Groppo, pelos
ensinamentos generosamente compartilhados, pela iluminação da minha
consciência crítica e pela contribuição fundamental para minha formação
política.
Aos Colegas, especialmente Carolina Defilippi, Vivian Kauling, Sandra
Bittencourt, Eglon Pinto da Fonseca, Suzana Coutinho, entre outros igualmente
importantes, mas que a memória não alcançou seus nomes, pelos momentos
de reflexão e descontração, fundamentais para que o caminho fosse trilhado
integralmente, com alegria e motivação.
Aos funcionários da UNISAL, especialmente a Vaníria Felippe, pelo
apoio em todos os momentos do programa.
A todos os trabalhadores voluntários e “famílias assistidas” pelo Grupo
Espírita Caminheiros, que ajudaram a tornar possível este trabalho e me
ajudam a tornar-me uma pessoa melhor.
A todos que, de alguma forma, contribuíram para o êxito desta
dissertação.
Finalmente e principalmente, a Deus.
6
“Amar sem esperar ser amado e sem aguardar
recompensa alguma. Amar sempre.”
(Francisco Cândido Xavier)
7
RESUMO
Além de seu viés teórico, o presente trabalho procura demonstrar as
dificuldades que os educadores que optam pela pedagogia freireana como
norte político de ação, especialmente aqueles que trabalham com pessoas
oprimidas pela ideologia neoliberal, têm para reconhecer a sua parte
opressora, estar dispostos e terem coragem de mudar a si próprios para que
torne-se possível, então, compreenderem as finalidades e as bases
libertadoras de Paulo Freire. Este estudo tem também como objetivo identificar
e analisar as condições e fatores necessários para o desenvolvimento da
autoadvocacia em pessoas selecionadas dentre um grupo de famílias,
moradoras na periferia miserável de Campinas e região, assistidas por meio de
atividades assistencialistas e empoderadoras do Grupo Espírita Caminheiros. A
autoadvocacia no presente estudo é entendida como uma ação crítica,
organizada e consciente de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, em seu
próprio nome, sem a intervenção de terceiros, na luta pela efetivação de seus
direitos e na conquista de novas demandas, visando colaborar para o
rompimento do ciclo de miséria e opressão em que vivem, por meio da
devolução de sua palavra, da sua efetiva participação em todas as esferas da
sociedade, formando a sua autonomia, responsabilidade e independência. Para
tanto, este estudo adota como referencial teórico a pedagogia libertadora de
Paulo Freire.
Palavras-chave: Autoadvocacia. Opressão. Educação Sociocomunitária.
Práxis educativa.
8
ABSTRACT
Besides its theoretical approach, this dissertation search to demonstrate the
difficulties that the educators, which works with freirian pedagogy as orientation
of their political action, especially those who deals with oppressed people,
victims of neoliberal ideology, have in recognizing their own oppressive
attitudes, and therefore to be willing, and having courage, to change themselves
own, in order to understand the goals and the bases of the liberating Paulo
Freires´s pedagogy. This study has also the purpose to identify and analyse the
conditions and factors necessary to the development of the self advocacy in
people selected from a group of families living in the miserable outskirts of
Campinas and region, that are assisted through welfare and empowering
activities implemented by the Grupo Espírita Caminheiros. The self advocacy in
this study is understood as one critical action, organized and conscious of a
person or a group of persons, in their own name, without the intervention of a
third parties, in the struggle for the realization of their rights and the conquest of
new demands, seeking to break the cycle of misery and oppression in which
they live, through the rescue of their voice, their effective participation in all
spheres of society, and thus forming their autonomy, responsibility and
independence. Therefore, this study adopts as its theoretical referential the
Paulo Freire´s liberating pedagogy.
Key-words: Self advocacy, Oppression, Education Socio Community,
Educational praxis.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO………………………………………………………………….…….01
1 ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E MOVIMENTOS SOCIAIS: teorizações e
reflexões………………………………………………………………….………..07
1.1 Estado e justiça social…………………….…………………………...07
1.2 O papel da sociedade civil……………………………………………...13
1.3 Movimentos sociais como organização social…………………….….20
1.3.1 Breve historização dos movimentos sociais como forma de organização social……………………………………………….28
2 EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA……………………………….……………44
2.1 A educação como história possível de transformação……………...46
2.2 A Educação para a autonomia e a Pedagogia da Libertação……....50
2.3 Formas, tempos e espaços para uma Pedagogia da Libertação…..59
2.4 A Educação para a autonomia: a autoadvocacia como possibilidade
de uma Pedagogia da Libertação………………………………..…….65
2.4.1 A autoadvocacia………………………..…………….…………...66
3 A AUTOADVOCACIA COMO POSSIBILIDADE DE AUTONOMIA NA
EDUCAÇÃO SOCIOCOMUNITÁRIA…………………………………….……89
3.1 Percurso metodológico…………………………………….…………...89
3.1.1 Procedimentos metodológicos……………………..…………...93 3.1.2 Campo de estudo: famílias assistidas pelo Grupo Espírita
Caminheiros…………………………………………………..…...94 3.1.3 População participante………….…………………..…………...97 3.1.4 Instrumentos de coletas de dados qualitativos.…….………..100 3.1.5 Considerações sobre a ética no estudo…………..…………..101
3.2 A educação para a autoadvocacia junto às famílias assistidas pelo
Grupo Espírita Caminheiros……………………………….………….102
4 CONSIDERAÇÕES DE UM FINAL EM ANDAMENTO………..…….………141
5 REFERÊNCIAS………………………………………………………………..…145
6 ANEXOS………………………………………………………………………..…153
10
Introdução
A discussão sobre o que significa ser “cidadão”, bem como os direitos
implicados a essa condição, tem sido recorrente internacionalmente, nas
últimas décadas, acompanhando transformações socioeconômicas como a
globalização, a expansão da perspectiva neoliberal e, com ela, o aumento da
desigualdade entre aqueles mais ricos e aqueles mais pobres, os avanços da
biotecnologia e a crescente tecnificação do modo de vida, que nos põem
questões éticas e relacionadas à justiça social.
Na atualidade, especialmente em nosso país, o ordenamento jurídico,
balizado pela Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em
05 de outubro de 1988, conhecida como a “Constituição Cidadã”, porque
estabelece a cidadania como princípio e regra, é considerada moderna e
democrática. A maior parte dos direitos e dos deveres dos cidadãos está
disciplinada nesta Carta, de maneira equânime. Entretanto, esses direitos, com
muita frequência, não são respeitados. E não são respeitados justamente por
aquele que deveria ser o “guardião” da carta Magna, o garantidor da realização
dos direitos dos cidadãos: o Estado1.
Isto é agravado pela descrença, da sociedade civil, em relação ao poder
público diante da percepção da ausência do cumprimento da obrigação do
Estado como provedor de bens coletivos básicos e de fomentador de iniciativas
que visam reduzir as desigualdades sociais. Tal descrença desestimula a luta
por responsabilizar o Estado e a participação política como meio de
representação e defesa de interesses desta sociedade, principalmente por
parte daqueles que se sentem injustiçados, ou socialmente excluídos - quando
chegam a se compreender nessa situação - tornando-se, este exercício de
cidadania, mera ficção (FERREIRA, 1999, p. 99).
Coerentemente a essas reflexões, o objetivo central deste trabalho é
analisar as consequências da aplicação da autoadvocacia, como prática da
1
Conforme conceituação moderna, atribui-se ao Estado a função ativa de organizar a sociedade, de modo a reduzir as desigualdades naturais e sociais, promovendo a justiça social (RAWLS, 2000).
11
educação sociocomunitária, junto aos grupos familiares de baixa renda
“assistidos” pelo Grupo Espírita Caminheiros, na cidade de Campinas.
A Autoadvocacia pretende apresentar-se como uma prática da educação
sociocomunitária, desenvolvendo a consciência crítica no homem, constituindo-
se como uma alternativa ao assistencialismo, que cala e oprime, que rouba do
homem a sua ação e a oportunidade de tornar-se um ser consciente, crítico,
responsável, integrado e participante da sociedade e do processo democrático
do país. Rompendo com a sua invisibilidade e tornando-o advogado de si
mesmo, para que contribua para o seu empoderamento, com a finalidade de
que aja nas suas circunstâncias de modo a transformá-la e, ao fazer isso,
mobilize outros sujeitos a fazer o mesmo, formando grupos que agirão na
defesa de interesses comuns.
Esse objetivo se justifica porque, em nossa sociedade, como já
considerado acima, ainda há poucas ações comunitárias de organização
sociopolítica, pelas quais os cidadãos, de forma autônoma, procurem a
efetivação de direitos de cidadania, já legalmente conquistados. Parte-se do
pressuposto de que essa carência se deve: 1. ao desconhecimento dos direitos
mais elementares de cidadania e à falta de experiência de “coletivismo”, ou
seja, de agir grupal e organizadamente para efetivar melhorias de vida para si e
para a comunidade, 2. à “insuficiência” de consciência mínima quanto ao que
significa uma vida digna, e de que essa, numa sociedade pautada pelo
neoliberalismo, nunca é dada, mas deve ser conquistada e 3. à
desesperança/desmotivação e descrença de que é possível lutar pelos direitos
de cidadania.
Entendemos autonomia, neste trabalho, como uma produção histórica e
social, a liberdade de o indivíduo agir e tomar decisões com consciência e
capacidade crítica, mediante o respeito à vontade pessoal e ao grupo ao qual
pertence, e assumir as responsabilidades delas decorrentes. É esse o conceito
de autonomia de Freire (2002, 2011a, 2011b), que a compreende como um
processo resultante do desenvolvimento do indivíduo relacionado ao fato dele
tornar-se capaz de resolver questões por si mesmo, de tomar decisões de
maneira consciente e pronto para assumir uma maior responsabilidade e arcar
com as consequências de seus atos.
12
Parece-nos evidente a importância da autonomia, como assim
compreendida. Essa percepção dessa importância foi e está sendo construída
em nossas experiências como trabalhador e educador social voluntário em
diversas instituições filantrópicas e advogado militante, que mais e mais se
desaliena, e se conscientiza da sua função social, como cidadão e como
elemento indispensável à administração da Justiça. Conforme preceitua o art.
133 da Constituição Federal de 1988, devemos participar ativamente do
processo de transformação da sociedade para que a igualdade possível seja
conquistada por meio do reconhecimento de direitos, consolidando-se o Estado
democrático em nosso país, e que os direitos fundamentais, sociais, humanos
e políticos já reconhecidos legalmente sejam, enfim, respeitados, efetivados,
concretizados. Notadamente para aqueles que se encontram em posição
econômica, financeira, educacional e cultural desvantajosa, por meio da sua
própria ação autônoma, consciente e crítica.
Gonçalves (1994, p. 125) relaciona a urgência da transformação social
pensada coletivamente com a educação:
Participar conscientemente do processo de humanização do homem significa, na dimensão social, criar condições concretas de organização da vida comunitária, em que se efetivem valores como liberdade, justiça, e verdade, e na dimensão pessoal, propiciar a todos os indivíduos oportunidade de enriquecimento pessoal, que lhes permitam uma participação ativa no processo de construção da vida social.
Parte-se da hipótese de que, na ausência mais efetiva de movimentos
de educação popular crítica nas grandes periferias urbanas, a questão da
educação para a autonomia tem se diluído, perpetuando condições de
“nulificação” da população que aí vive. Parte-se, aqui, do conceito de educação
freireana:
Enquanto seres humanos conscientes, podemos descobrir
como somos condicionados pela ideologia dominante.
Podemos distanciar-nos da nossa época. Podemos aprender,
portanto, como nos libertar através da luta política na
sociedade. Podemos lutar para ser livres, precisamente porque
sabemos que não somos livres! É por isso que podemos
pensar na transformação. (FREIRE, 2011c, p. 33).
13
A proposta aqui posta, de articular as bases de uma educação para a
autoadvocacia, visa desenvolver a consciência crítica nos indivíduos, em
especial com aqueles que historicamente vem sendo consistentemente
negados acerca de seus direitos, e abrir perspectivas para caminhos que
devem e podem ser percorridos, individual ou coletivamente, favorecendo a
organização e a luta pela transformação da realidade injusta em que vivem,
participando ativamente da construção de uma sociedade que possa ser, de
fato, denominada de justa e solidária.
Concordamos com Freire (2011b), que defende o processo educativo
como um possível meio de humanização dos sujeitos histórico-sociais, no qual
é necessário que os professores, especialmente os progressistas, posicionem-
se politicamente e engajem-se na luta contra o fatalismo presente na sociedade
atual. O neoliberalismo corrompe e distorce as práticas educativas,
notadamente nas instituições públicas, tornando-as alienantes. E, invertendo
suas bases, faz com que priorizem e limitem-se à formação profissional dos
indivíduos, preparando-os para ocupar espaços subalternos nos mais diversos
segmentos da sociedade, perpetuando, alimentando, mantendo o sistema
opressor.
[…] as doutrinas neoliberais procuram limitar a educação à prática tecnológica. Atualmente, não se entende mais educação como formação, mas apenas como treinamento. Creio que devamos continuar criando formas alternativas de trabalho. Se implantada de maneira crítica, a prática educacional pode fazer uma contribuição inestimável à luta política. A prática educacional não é o único caminho à transformação social necessária à conquista dos direitos humanos, contudo acredito que, sem ela, jamais haverá transformação social. A educação consegue dar às pessoas maior clareza para “lerem o mundo”, e essa clareza abre a possibilidade de intervenção política. É essa clareza que lançará um desafio ao fatalismo neoliberal. A linguagem dos neoliberais fala da necessidade do desemprego, da pobreza, da desigualdade. Penso que seja de nosso dever lutar contra essas formas fatalistas e mecânicas de compreender história. Enquanto as pessoas atribuírem a fome ou a pobreza que as destroem ao destino, à fatalidade ou a Deus, pouca chance haverá de promover ações coletivas (FREIRE, 2001b, p. 36).
14
Como metodologia, essa é uma investigação de cunho qualitativo,
baseada em observação participante, periodicamente realizada nos finais de
semana, no período de agosto de 2011 até maio de 2012, concomitante ao
trabalho de acompanhamento de uma comunidade localizada na periferia de
Campinas, pelo grupo espírita “Caminheiros”. Como coleta de dados, além da
observação foram realizadas entrevistas com membros dos grupos familiares
citados. Para a condução dessas optamos por questões abertas, nas quais não
havia nenhuma restrição ao aprofundamento dos tópicos postos, por meio de
questões outras, que emergiam durante a realização das entrevistas. Os
referenciais teóricos que apoiaram a pesquisa estão nos pressupostos da
educação popular e na educação crítica, especialmente aquela de Paulo Freire.
Pretende-se, dessa forma, averiguar as possibilidades educacionais de
desenvolvimento do “acordar” da consciência crítica por meio da discussão
(sempre interpretativa) das condições de vida feitas pelos grupos participantes
da pesquisa, e do empoderamento desses quanto à “autodescoberta” de que
podem interferir nas condições de vida consideradas angustiantes, mediante
ações organizadas de busca pelos direitos de cidadania.
E, no âmbito das especificidades dessa proposta, é que se busca
articulá-la ao contexto da Educação Sociocomunitária, pois esse “acordar” da
consciência crítica perpassa diversas esferas da vida do sujeito - históricas,
sociais, econômicas, políticas, psicológicas, dentre outras - exigindo um olhar
que as integre e, concomitantemente, as transcenda, na construção dialética
de novas sínteses de compreensão da realidade vivida.
No primeiro capitulo, discutiremos sobre as ações e movimentos sociais
como organização política, que lutam pela conquista e respeito de direitos,
suas características e objetivos, bem como o papel ambiguo que o Estado
assume em relação a esses.
No segundo capítulo, veremos que, na atualidade, parte da
movimentação dos atores sociais passou a ter como foco, no Brasil, a luta para
que os direitos já reconhecidos pela Constituição da República Federativa do
Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, sejam respeitados, efetivados.
Desta forma, o objetivo principal no segundo capítulo é instigar uma reflexão
sobre como essa luta vem se dando, buscando encontrar caminhos que
15
favoreçam seu sucesso. Argumentar-se-á que uma condição necessária para
tanto está na aprendizagem de formas de organizar-se coletivamente, como na
autoadvocacia, e de olhar para a realidade de maneira crítica, ou seja,
compreendendo as desigualdades de modos de vida não como algo natural,
mas como historização do jogo de poder e dominação, socialmente
estabelecido.
No mesmo capítulo trataremos sobre a educação para a autonomia e a
Pedagogia da Libertação de Freire, viés teórico que possibilita pensar a
questão da história como possibilidade e a relevância desse tema para os
oprimidos na luta para a autotransformação e a transformação social.
Discorreremos brevemente sobre a educação para a autoadvocacia como
possibilidade de uma Pedagogia da Libertação.
Finalmente, no terceiro e último capítulo, o tema da educação para a
autoadvocacia será desenvolvido, tendo como base a investigação realizada
durante a ação social do grupo “Caminheiros”. Pretende-se averiguar as
possibilidades de desenvolvimento do “acordar” da consciência crítica por meio
da discussão sobre as interpretações das condições de vida feitas pelos grupos
familiares de baixa renda “assistidos” pelo Grupo Espírita Caminheiros, e do
empoderamento desses quanto à “autodescoberta” de que podem interferir nas
suas condições de vida, colaborando para que assumam maior participação
social e autonomia para falar por si próprios.
16
1. Estado, Sociedade Civil e Movimentos Sociais: teorizações e
reflexões
Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros... (FREIRE, 2000, p. 32).
1.1. Estado e justiça social
As desigualdades sociais, em suas múltiplas expressões, perpassam,
historicamente, as sociedades humanas, embora, também de forma histórica,
sempre tenha havido vozes e tentativas por reduzi-las. No âmbito do viver
coletivo, as “cidades”, conforme Aristóteles (1997), são uma forma de
organização natural ao Homem, com a finalidade de satisfazer as suas
necessidades, visando o seu bem estar integral. Pode-se, aqui, discutir os
conceitos que Aristóteles associa à cidade como “estado de bem-estar”: uma
constituição forte, que regre particularidades da vida cotidiana como o
casamento, a expressão artística e cultural, a forma de associação de uns
cidadãos com outros, de criar filhos, dentre outros; uma educação que prepare
as crianças para seguir tal ordenamento legal; legisladores justos, preocupados
com o bem-comum; um estado de virtude generosa, fazendo com que os mais
ricos zelem pelas necessidades básicas dos mais pobres; o controle
populacional, de modo a não tornar as cidades ingovernáveis, dentre outros.
Pode-se também discutir pressupostos subjacentes a esses conceitos, como a
ideia do que significava ser cidadão (homem, adulto, não-escravo, não
estrangeiro, nascido na cidade) e o nível de perda da autonomia individual que
a observação estrita da legislação comporta, considerado por Aristóteles como
“necessário” para o viver bem (REEVE, 1998, p. 70).
Mas o discurso aristotélico - bem como outros, como aqueles de Platão -
a favor de se criar mecanismos para um viver coletivo mais igualitário, já
17
significou um avanço na organização social, que possibilitaria outros tantos
avanços subsequentes. E observa-se que outras sociedades, anteriores à pólis
grega, já percorriam esse caminho.
Segundo Dallari (2007) podemos reduzir a três eixos principais as
teorias acerca da época do aparecimento do Estado. O primeiro eixo, a
exemplo de Eduard Meyer (1855-1930) e Wilhelm Koppers (1886-1961),
entende que o Estado sempre existiu, pois desde que o homem vive sobre a
Terra acha-se integrado em uma organização social, em que pese a
denominação “Estado” ter aparecido pela primeira vez em “O Príncipe”, de
Maquiavel, escrito em 1513. Uma segunda ordem de autores, a exemplo de
Lawrence Krader (1919-1998) e Hermann Heller (1891-1933), argumenta que o
Estado foi constituído para atender às necessidades ou às conveniências dos
grupos sociais, de acordo com necessidades e condições concretas de cada
lugar, formando-se em diferentes épocas e em diferentes localidades. A última
posição, defendida por Balladore Pallieri (em A doutrina do Estado,1969), Karl
Schmidt (1888-1995) e pelo brasileiro Ataliba Nogueira (1901-1983), apenas
admite como Estado a sociedade política dotada de certas características muito
bem definidas, tratando-se de um conceito histórico concreto, a ponto de
Pallieri indicar o ano de 1648, com a assinatura da paz de Westfália, como o
ano do nascimento do Estado.
Conforme conceituação moderna, atribui-se ao Estado a função ativa de
organizar a sociedade, de modo a reduzir as desigualdades naturais e sociais,
promovendo a justiça social (RAWLS, 2000). Em definição do jurista Dalmo de
Abreu Dallari (2007, p. 118), o Estado se constitui como “[...] uma ordem
jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em
determinado território”. Além dessa, outras conceituações não menos
importantes quanto as ora colacionadas acima, a exemplo do Estado Social, do
Estado Democrático de Direito, poderiam ser aqui citadas, igualmente trazendo
em seu bojo, via de regra, a proposta de uma entidade civil, denominada
Estado, com a legítima função de redução das desigualdades naturais e
sociais. O que, infelizmente, ao menos no caso nacional, não alcançou ainda
esse seu mais nobre objetivo.
18
A relação, muitas vezes problemática, do indivíduo com o Estado
mereceu sempre o interesse de pensadores em todas as épocas da história,
que manifestavam opiniões muitas vezes antagônicas sobre o sentido, a
natureza e a finalidade do Estado.
Wolkmer (2000, p. 65) comentando sobre as diferentes concepções
ideológicas de Estado, esclarece:
O Estado pode ser compreendido ora como um jogo de papéis e funções que se interligam e se complementam na esfera de uma estrutura sistêmica, ora como um aparelho repressivo que tende a defender os interesses das classes dominantes no bloco hegemônico de forças. A primeira concepção se aproxima das teses liberais que encaram o Estado como um órgão acima dos conflitos, responsável pela manutenção da ordem, do bem estar, do consenso e da justiça social. Já a segunda orientação perfila-se na tradição do marxismo ortodoxo que concebe o Estado como superestrutura do modo de produção capitalista.
No liberalismo político de Locke (1632-1704) o Estado, legitimado pelo
consentimento expresso da maioria, porque consciente da necessidade da sua
intervenção, mantém a ordem e o equilíbrio no emaranhado de interesses e
necessidades dos membros constituídos. Para Rousseau (1712-1778) o
homem é essencialmente bom e livre e a sociedade é que o acorrenta e o
desvirtua por meio de seu artificialismo. A colocação da “primeira cerca”,
delimitando uma propriedade individual, marcaria a ruptura com o estado
natural, criando situações de desigualdade e levando ao surgimento do
contrato social e do Estado Civil, formas socialmente desenvolvidas para lidar
com os conflitos sociais.
Os anarquistas, por sua vez, que formaram um dos mais importantes
movimentos ideológicos do século XIX, embora seus principais representantes
nem sempre pensassem de maneira semelhante, colocaram em xeque a ideia
de necessidade do Estado como figura organizadora da sociedade. Mikhail
Bakunin (1814-1876), que acusou Marx de haver traído o movimento proletário
por oportunismo, porque este fazia objeções ao uso da violência nas lutas pelo
poder, pregava a eliminação da religião, da propriedade privada e do Estado,
por serem expressões da primitiva natureza do homem. Acreditava na evolução
do gênero humano, lançando mão, sempre que necessário, da violência,
19
usando-se medidas revolucionárias e admitindo, pela necessidade, sacrificar
temporariamente a ordem pública.
Para Bakunin o Estado representava um instrumento utilizado para
organizar e manter a exploração dos pobres pelos ricos. Enquanto que
Kropotkine (1842-1921), em franca oposição a Bakunin, acreditava no
anarquismo empreendido por meio da assistência e cooperação recíproca e
pacífica, que tomará a forma de equidade, justiça e simpatia (teorias
evolucionistas). Também divergiu de Karl Marx por não admitir transigências
com as instituições burguesas. Para Kropotkine o Estado só apareceu quando
as relações de propriedade dividiram a sociedade em classes reciprocamente
hostis, baseando-se equivocadamente na ideia da necessidade da coação para
que o homem tenha uma atitude socialmente correta, impedindo as ações
livres e espontâneas e fazendo com que as classes pobres obedeçam as mais
ricas (DALLARI, 2007; WOLKMER, 2000).
Já o anarquista teórico ultraindividualista e extremado Max Stirner
(1806-1856) entendia que o terrorismo e a insurreição deveriam ser
considerados justos porque visavam à eliminação das injustiças perpetradas
pelo Estado, que é “mau porque limita, reprime e submete o indivíduo,
obrigando-o a se sacrificar pela comunidade” (DALLARI, 2007, p. 35).
Partimos para a ideia de um Estado Constitucional, “como aquele que
limita os poderes do Estado, organiza sua estrutura, distribui competências e
declara e garante direitos fundamentais da pessoa humana” (MAGALHÃES,
1999, p. 31), cujo processo de afirmação fora marcado pelas revoluções
burguesas do século XVIII, na América do Norte, em 1776, e pela Revolução
Francesa, em 1789. Esta última revolução provocou a declaração dos direitos
dos homens e dos cidadãos e inaugura o modelo de Estado liberal
constitucional, que não prosperou, em que pese ter perdurado até a Primeira
Guerra Mundial. Quando, então, surgiram o Estado socialista, que rompe com
o pensamento liberal por meio de uma crítica contundente ao capitalismo, feita
por Marx, e a Constituição social, inaugurada em 1917 no México e em 1919
na Alemanha, com a finalidade de reformular o modelo liberal, admitindo a
intervenção do Estado no domínio econômico e na assistência aos excluídos
(MAGALHÃES, 1999).
20
Em decorrência do fracasso de todos os modelos propostos até então,
surge a proposta de um Estado Democrático de Direito, que
[…] baseado numa democracia econômica, social e política, propõe um rompimento democrático das estruturas socioeconômicas, por meio de nova leitura dos textos constitucionais, a partir da reconstrução do conceito de democracia. […] Essa nova perspectiva faz com que tenhamos uma premissa básica para a compreensão dos direitos fundamentais como direitos humanos: a indivisibilidade desses direitos. […] Democracia não é somente votar, mas participar do processo de construção do Estado e da sociedade, por intermédio de canais amplos de comunicação entre os cidadãos e as diversas instituições privadas ou estatais (MAGALHÃES, 1999, p. 35).
O grande dilema das proposições de Estado acima mencionadas é que
em nenhuma delas percebemos o rompimento definitivo com o modelo
econômico fomentador de desigualdades, de modo que os perseguidos e
festejados direitos fundamentais constitucionais consolidaram-se como direitos
de privilégio ou de superioridade. Não se efetivam como direitos humanos.
Aqueles que têm poder e capacidade de acessá-los terão esses direitos
garantidos pelo Estado e, inclusive, contra o Estado, enquanto que os demais
são abandonados e esquecidos. Os indivíduos excluídos não são capazes de
efetivar seus direitos mais elementares, até mesmo direitos universais básicos,
como a vida, porque são considerados pelo Estado como assuntos menos
importantes do que questões relacionadas à ordem econômica e preservação
da dominação. Não há que se falar em um Estado Democrático de Direito sem
que existam mecanismos que garantam o exercício dos direitos já
reconhecidos por todos os indivíduos, tendo em vista que a simples declaração
dos mesmos na Constituição não é suficiente para garantir a sua eficácia.
Conceitos como aqueles de “bem estar integral”, de “justiça social”, ou
do “bem comum”, entendidos como um conjunto de fatores que assegurem o
desenvolvimento total da personalidade humana, conferindo ao homem
autonomia, responsabilidade e criticidade de consciência (FREIRE, 2011) se
mostram ideológica e constantemente associados àquele do Estado como
elemento organizador da vida social de uma coletividade. Por esses conceitos
se traduz que o Estado, por meio do seu poder-dever, deveria regrar o zelar
21
pelo bem estar de seus cidadãos, intervindo para assegurar que as
desigualdades sociais fossem reduzidas ao máximo.
Na definição de Hely Lopes Meirelles (2007, p. 599), o conceito de “bem
estar social” abrange aqueles de “bem estar integral”, “justiça social” e “bem
comum”:
O bem estar social é o bem comum, o bem do povo em geral,
expresso sob todas as formas de satisfação das necessidades
comunitárias. Nele se incluem as exigências materiais e
espirituais dos indivíduos coletivamente considerado; são as
necessidades vitais da comunidade, dos grupos, das classes
que compõem a sociedade.
O Estado, ao não cumprir essa que, em nosso entender, seria a sua
principal e mais elevada proposta, a de criar e implementar políticas públicas
visando a redução das desigualdades sociais, converte-se em instrumento de
injustiça, torna-se “[...] o mais frio dos monstros. Mente também friamente, e eis
que mentira rasteira sai da sua boca: Eu, o Estado, sou o Povo.’” (NIETZSCHE,
2002, p. 72).
Esta falta de capacidade, ou vontade política, do Estado em cumprir a
sua razão de existência intensifica as desigualdades, acentuando e
“eternizando” a miséria e as mazelas sociais na medida em que causa a
privação do básico, do essencial: dos alimentos, da saúde, do lazer, da
educação, da consciência, da liberdade, dos direitos, da justiça.
Este fato gera efeito destrutivo na sociedade civil, conceito de difícil
definição, não por acaso. A propósito, Pinheiro observa (apud AVRITZER,
1994, p. 06):
[…] para compreender os percursos recentes e os presentes
impasses, é essencial que voltemos ao debate sobre a
sociedade civil, um dos conceitos mais citados e, ao mesmo
tempo, mais obscuros na teoria política contemporânea.
Esclarecemos que preferimos neste trabalho enfatizar abordagens de
conceitos de Estado e de sociedade civil de acordo com entendimentos
22
relacionados à área jurídica, tendo em vista que consideramo-os mais
alinhados com a proposta da autoadvocacia.
1.2. O papel da sociedade civil
A dificuldade na conceituação de sociedade civil decorre do fato de que,
diferentemente de Estado, aquela não tem atrás de si uma longa tradição. O
conceito de sociedade civil, que deriva de Hegel, é usado de modo menos
técnico e rigoroso, com significações oscilantes, exigindo cautela na
comparação (BOBBIO, 1982, p. 26). Tal fato é agravado na medida em que a
“sociedade civil” e o Estado passam por modificações rápidas e constantes
atualmente, decorrentes da globalização moderna.
Para os jusnaturalistas, o Estado foi criado através do consentimento
dos indivíduos, por meio do “contrato social”, um pacto que cria o “soberano”,
tornando seus aderentes súditos (teoria baseada em uma explicação lógica e
não em uma busca histórica). Utilizam a expressão sociedade civil (societas
civilis) como sinônimo de Estado, em oposição ao “estado de natureza”, este
entendido como uma primeira forma de estado social, fase pré-estatal da
humanidade, em que havia a predominância de relações sociais reguladas por
leis naturais (BOBBIO, 1982).
Locke considera Estado e sociedade civil palavras sinônimas, assim
como para Rousseau état civil significa Estado. Referida oposição, entre
sociedade civil e “estado de natureza”, torna-se evidente quando Rousseau
(2005, p. 30) afirma:
A passagem do estado natural ao estado civil produziu no
homem uma mudança considerável, substituindo em sua
conduta a justiça ao instinto, e imprimindo às suas ações a
moralidade que anteriormente lhes faltava. […] o qual
transformou um animal estúpido e limitado num ser inteligente,
num homem.
Para estes autores, além de Hobbes, Ferguson, Smith, Montesquieu e
Hume, entre outros, o termo sociedade civil estava intimamente relacionado ao
23
conceito de civilidade, enquanto respeito mútuo pela autonomia individual. Para
Kant, a sociedade civil é entendida como sociedade política, ou seja, o Estado,
que é uma sociedade “que garante o meu e o teu através de leis públicas”
(apud BOBBIO, 1982, p. 28). À tradição jusnaturalista, Hegel inova
radicalmente, ao entender a sociedade civil como equivalente do estado de
natureza ou sociedade natural, período pré-estatal da humanidade (BOBBIO,
1982). Abandona as análises predominantemente jurídicas dos jusnaturalistas
e entende a sociedade civil (período pré-estatal) como momento do
desenvolvimento das relações econômicas, que precede e determina o
momento político (período estatal). A recusa das concepções jusnaturalistas
decorre do entendimento de que o homem é um ser social e, portanto, não
existem indivíduos antes e depois do Estado, mas uma sociedade pré-
política/estatal e outra sociedade política/estatal. A posição crítica de Hegel a
respeito do estado de natureza das teorias do Jusnaturalismo é resumida na
seguinte passagem da Enciclopédia das Ciências Filosóficas (apud RAMOS,
2011):
A expressão direito natural, que chegou a ser ordinária na
doutrina filosófica do direito, contém o equívoco entre o direito
entendido como existente de modo imediato na natureza e
aquele que se determina mediante a natureza da coisa, isto é,
o conceito. O primeiro sentido é aquele que teve curso outrora:
assim que, ao mesmo tempo, foi inventado um estado de
natureza, no qual devia valer o direito natural, e frente a este, a
condição da sociedade e do Estado parecia exigir e levar em si
uma limitação da liberdade e um sacrifício dos direitos naturais.
Porém, em realidade, o direito e todas as suas determinações
fundam-se somente na livre personalidade: sobre
uma determinação de si que é o contrário da determinação
natural. O direito da natureza é, por esta razão, o ser-aí da
força, a prevalência da violência, - e um estado de natureza é
um estado onde reinam a brutalidade e a injustiça do qual nada
mais verdadeiro se pode dizer senão que é preciso dele sair. A
sociedade, ao contrário, é a condição onde o direito se realiza;
o que é preciso limitar e sacrificar é precisamente o arbítrio e a
violência do estado natural.
Bobbio (1982) entende que em Marx e Engels encontra-se a antítese
sociedade civil/Estado (sociedade civil/sociedade política), em que a expressão
24
societas civilis designa a sociedade pré-estatal e se identifica com o momento
estrutural, tese derivada da sociedade civil de Hegel. O Estado é a instituição
que monopoliza o poder, é usado como instrumento das elites e fomentador
das desigualdades. É o órgão repressivo de dominação política e de
manutenção da exploração econômica, da qual se beneficia a classe burguesa,
destacando que este não age necessária e diretamente de forma coercitiva,
possuindo também a capacidade de regular a sociedade ideologicamente
(BORON, 2001). Enquanto a sociedade civil representa o momento ativo e
positivo do desenvolvimento histórico, sendo o verdadeiro centro de toda
história, o Estado, a ordem política, é o elemento subordinado. Esta teoria está
consolidada no seguinte trecho marxiano:
A forma determinada de relações das forças produtivas
existentes em todos os estágios históricos que se sucederam
até hoje, e que por sua vez as determina, é a sociedade civil
[...]. Já se pode ver aqui que essa sociedade civil é o
verdadeiro centro, o teatro de toda a história [...]. A sociedade
civil compreende todo o conjunto das relações materiais entre
os indivíduos, no interior de um determinado grau de
desenvolvimento das forças produtivas. Ela compreende todo o
conjunto da vida comercial e industrial de um grau de
desenvolvimento e, portanto, transcende o Estado e a nação
[...] (MARX; ENGELS apud BOBBIO, 1982, p. 31)
Para Marx, o Estado deriva da sociedade civil atendendo aos interesses
dos dominantes.
Gramsci, seguindo inicialmente as pegadas de Marx, em que pese ele
próprio declarar que seus conceitos efluem de Hegel, conforme afirmação de
Bobbio (1982, p. 34), asseveração esta contestada por Martins e Groppo
(2010, p. 111) que entende tratar-se de um desvirtuamento da “concepção
dialética que Gramsci tem da relação estrutura-superestrutura”, introduziu uma
profunda inovação em relação a toda a tradição marxista e desenvolveu nova
concepção sobre o conceito de sociedade civil. Para Gramsci o “Estado =
sociedade civil + sociedade política” (apud MARTINS e GROPPO, 2010,
p. 106), sendo a significação gramsciana de sociedade civil e a sociedade
política, conforme interpretação de Martins e Groppo (2010, p. 106):
25
Pela nova acepção que conferiu ao termo “sociedade civil”, esta era para ele o conjunto de aparelhos, estruturas e processos sociais que buscam dar direção intelectual e moral à sociedade, o que determina a hegemonia cultural e política de uma das classes sobre o conjunto da sociedade; e a sociedade política uma extensão da sedimentação ideológica promovida pela sociedade civil, que se expressa por meio dos aparelhos e atividades coercitivas do Estado, visando adequar as massas à ideologia e à economia dominantes.
A esta altura Gramsci (apud BOBBIO, 1982, p. 32) entendia que
poderiam ser fixados dois grandes planos superestruturais:
[…] o que pode ser chamado de “sociedade civil”, ou seja, o conjunto de organismos habitualmente ditos privados, e o da sociedade política ou Estado. E eles correspondem à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade; e à do domínio direto ou de comando, que se expressa no Estado e no governo jurídico.
A exemplo de Marx, Gramsci entendia que a sociedade civil, e não mais
o Estado como pensava Hegel, representa o momento ativo e positivo
(estrutural para Marx e superestrutural para Gramsci) do desenvolvimento
histórico. Em linha com Hegel, Gramsci compreende a sociedade civil além da
extensão de suas relações econômicas: também as corporações e sua primeira
e rudimentar regulamentação no Estado de polícia.
Martins e Groppo (2010), discordando de Bobbio, entendem que para
Gramsci há uma relação dialética, um “nexo marcado por relações concretas”
entre estrutura e superestrutura, formando um ‘bloco histórico’, que torna
impossível qualquer separação de seus elementos componentes. Afirma que a
leitura equivocada de Gramsci por Bobbio causa distorções profundas
comprometendo sua “coerência com o conjunto da obra gramsciana”.
Para Semeraro (1999, p. 75), Gramsci vai além do conceito moderno de
sociedade civil: a liberdade, a laicidade, o espírito de iniciativa, a consciência
crítica, a subjetividade, a dinâmica e a historicidade das relações sociais.
“Gramsci parte das necessidades concretas das classes subalternas […] onde
os indivíduos chegam a se organizar socialmente e a conquistar espaços
hegemônicos para o seu projeto de sociedade”, provando que uma ‘vontade
coletiva’ é capaz de operar uma relativização do modo capitalista de
26
dominação e introduzir uma ruptura entre dominadores e a classe subalterna,
que demonstra querer sair de sua condição.
Semeraro (idem, p. 76) entende que para Gramsci:
a sociedade civil é o terreno onde indivíduos “privados” de sua dignidade e pulverizados em suas vidas podem encontrar condições para construir uma subjetividade social, podem chegar a ser sujeitos quando, livre e criativamente organizados, se propõem a desenvolver, juntamente com as potencialidades individuais, suas dimensões públicas e coletivas. O percurso, nesse sentido, vai do ser privado ao ser social. O indivíduo, aqui, sem deixar de ser centro autônomo de decisões, consciência livre e ativa, nunca é entendido como ser isolado e “mônada” auto-suficiente em si mesma, mas é sempre visto dentro de uma trama social concreta, como um sujeito interativo com outros sujeitos igualmente livres, com os quais se defronta e constrói consensualmente a vida em sociedade.
Significa dizer que há espaços, institucionalizados ou não, para o
surgimento constante das relações livres e conscientes de massas populares,
antes amorfas e que agora devem demonstrar seu potencial mobilizador, que
visam construir e exercer a sua cidadania e lutar, coletiva e organizadamente,
contra a hegemonia da classe dominante e dirigente com a finalidade de
conquistar espaço ativo na ordem socioeconômica, cultural e ético-política. A
participação popular ativa deve garantir que as leis e o Estado sejam o
resultado de decisões livres e autônomas e não de imposições heteronômicas
e autoritárias. “O valor mais importante não é que o camponês se torne
agrônomo ou que o pedreiro se torne mestre, mas que o cidadão chegue a ser
governante” (GRAMSCI apud SEMERARO, 1999, p. 78).
Observa-se, pela citação a seguir, que ao longo da história a sociedade
civil tem sido entendida como “[…] uma esfera não-estatal, antiestatal, pós-
estatal e até supra-estatal” (GÓMEZ, 2003, p. 11). Ademais, muitos estudiosos
dos autores retro mencionados têm interpretações diferentes sobre o que estes
entendiam sobre o conceito de sociedade civil. Alguns, a exemplo de Marx,
mudaram suas definições iniciais no decorrer da sua vida. E o que já era
complexo e controvertido torna-se cada vez mais enredado pelo advento e
desenvolvimento de uma sociedade civil global. Ela é caracterizada pela cada
vez maior fragilidade do estado de “bem estar”, pela alienação social e pelo
27
individualismo, que centra a ideia da “sociedade civil” principalmente nos
direitos e deveres individuais, antes do que numa configuração coletiva.
A desconfiança e desânimo em relação ao poder público, diante da
percepção da ausência do cumprimento das obrigações do Estado como
provedor de bens coletivos básicos, de fomentador de iniciativas que visam
reduzir as desigualdades sociais, entre outras, desestimulam a participação
política como meio de representação e defesa de interesses desta sociedade,
tornando-se, este exercício de cidadania, mera ficção.
Por sua vez, os indivíduos, que em decorrência de sua condição
econômica, posição social e política, poderiam atenuar os efeitos causados
pela inércia do Estado na redução das desigualdades sociais, ao perceberem
que uma população portadora de consciência crítica seria uma ameaça à
manutenção de seus privilégios, agrupam-se, criando estratégias para
manterem aqueles alienados.
Esses indivíduos repelem qualquer forma de manifestação que
represente expressão livre do povo, e criam instituições e práticas
assistencialistas, numa forma de antidiálogo, que impõe aos oprimidos o
mutismo e a passividade, ao mesmo tempo em que retiram a dignidade e
responsabilidade desses para com a construção de sociedades mais
democráticas e igualitárias. E tudo o que ameaça uma ordem social repleta de
injustiças, imposta por uma elite dominadora, é taxada de subversiva e,
portanto, deve ser reprimida (FREIRE, 2011a). O resultado é que temos uma
população tantas vezes ingênua, que se mostra desanimada e apática, que se
autodeprecia, assumindo uma postura de inferioridade, que se sente “sem
direitos” e convertida em espectadora das suas próprias “mazelas”.
São Gregório de Nissa (apud FREIRE, 2011b, p. 42) fala sobre a miséria
decorrente deste assistencialismo “generoso”, oficializado:
Talvez dês esmolas. Mas, de onde as tiras, senão de tuas
rapinas cruéis, do sofrimento, das lágrimas, dos suspiros? Se o
pobre soubesse de onde vem o teu óbolo, ele o recusaria
porque teria a impressão de morder a carne de seus irmãos e
de sugar o sangue de seu próximo. Ele te diria estas palavras
corajosas: não sacieis a minha sede com lágrimas de meus
irmãos. Não dês ao pobre o pão endurecido com os soluços de
meus companheiros de miséria. Devolve a teu semelhante
28
aquilo que reclamaste e eu te serei muito grato. De que vale
consolar um pobre, se tu fazes outros cem?
Importante esclarecer que se considera presentemente “elites
dominadoras” ou “elites opressoras”, por um viés freireano, como classes
contrárias antagônicas das massas populares. As elites são necrofilamente
ansiosas do esmagamento e manutenção da alienação destas massas por
meio de manipulação, mitificação, ocultamento, violência física e emocional e
outros meios (FREIRE, 2011b).
Interessante destacar, ainda, observações sobre as “crenças de auto-
eficácia”, conforme Bandura (2008, p. 101):
Essencialmente, as crenças de auto-eficácia são percepções
que os indivíduos têm sobre suas próprias capacidades. Essas
crenças de competência pessoal proporcionam a base para a
motivação humana, o bem-estar e as realizações pessoais.
Isso porque, a menos que acreditem que suas ações possam
produzir os resultados que desejam, as pessoas terão pouco
incentivo para agir ou perseverar frente a dificuldades.
Pelo conceito de “crença da auto-eficácia”, como acima definido, e que
pode assumir tanto um viés individual como um coletivo, pode-se idealizar
como os diversos grupos sociais, principalmente aqueles que se consideram,
de forma geral, mais “eficazes” - pelo acesso a bens materiais e ao exercício
mais constante do poder - podem exercer poderosas influências
desmobilizadoras, enfraquecedoras e desvitalizadoras em relação a outros
grupos, ao persuadirem-nas negativamente quanto aos seus direitos,
responsabilidades e potencialidades. No entender desse conceito afirma-se
que o “nível de motivação, os estados afetivos, e as ações das pessoas
baseiam-se mais no que elas acreditam do que no que é objetivamente
verdadeiro” (BANDURA, 2008, p. 102).
Há toda uma complexa problemática social causada pela figura de um
Estado socialmente fraco, ou seja, por aquele que tinha como um dos deveres
primordiais, legais e morais sustentar e gerir a trama social, de modo a
assegurar condições de vida satisfatórias, dignas e justas à coletividade, e que
não o faz de maneira eficaz - o que termina por fragilizar a trama social dessa
29
coletividade, repercutindo em um estreitamento das perspectivas de vida, mais
de uns, menos de outros, mas afetando à sociedade civil como um todo.
Entende-se, no contexto desse trabalho, que o Estado somente se faz
ou se fará (mais) presente, em termos de organizar a vida social de forma mais
justa e igualitária, se - e quando - todos os grupos sociais, que compõem uma
coletividade, tiverem condições de, autonomamente, discutir, propor e
consolidar as bases sobre as quais essa igualdade será estabelecida.
Interessa-nos, então, mais bem compreender como esse “estreitamento”
político - como participação na organização da polis - de perspectivas de vida,
que tantas vezes se percebe nos grupos sociais marginalizados, pode ser
rompido. Tema que será aprofundado abaixo, pelo viés dos movimentos
sociais.
1.3. Movimentos sociais como organização social
A definição de movimento social não é consensual. Gohn (2002), a
exemplo, aponta quatro grandes paradigmas de movimentos sociais: o
marxista, o norte-americano, o dos novos movimentos sociais e o latino
americano.
De forma geral o paradigma marxista aplicado à análise dos movimentos
sociais é equivocadamente visto como sinônimo de exame do movimento
operário, da revolução em si. Na realidade, trata-se de processo de lutas
históricas das classes e camadas sociais em situação de subordinação, que
visam transformar as condições existentes.
Diversos autores reconhecem a importância do pensamento de Marx na
formação de teorias explicativas sobre os movimentos sociais, além da sua
contribuição na orientação prática desses movimentos. As teorias marxistas
não são apenas explicativas, não estão voltadas tão somente para um
entendimento analítico, mas são também orientadoras para os próprios
movimentos, assemelhando-se a um guia de ação da prática, que se tornará
30
práxis política e histórica. Apontando a importância de Marx para a análise dos
movimentos sociais, Scherer-Warren (1987, p. 34) observou:
Marx foi um dos mais importantes criadores de um projeto de
transformação radical da estrutura social, projeto este de
superação das condições de opressão de classe. Para sua
realização, além do amadurecimento de condições estruturais
propícias, exige-se também uma práxis revolucionária das
classes exploradas. A efetivação desta práxis, porém, requer a
formação da consciência de classe e de uma ideologia
autônoma de forma organizada, para as quais sugere o partido
de classe.
O paradigma marxista clássico é dividido em duas grandes correntes. A
primeira delas é decorrente do “jovem Marx”, conhecida como heterodoxa, que
criou uma tradição histórica-humanista, seguida por Rosa Luxemburgo,
Gramsci, Lukács e a Escola de Frankfurt. É a que é utilizada atualmente em
maior número nas análises marxistas contemporâneas sobre os movimentos
sociais.
A segunda corrente, denominada ortodoxa, deriva do Marx “maduro”, de
seus trabalhos elaborados de 1850 em diante, que privilegia os fatores
econômicos, macroestruturais da sociedade. No modelo ortodoxo marxista
destaca-se que o uso da força, a violência e a coerção são admitidos
preferencialmente como táticas de luta, tendo como referências mais comuns a
Revolução Francesa (1789) e a Revolução Russa (1917). Essas ideias, com
exceção dos trabalhos de Lenin e Trotsky, não tiveram boa recepção tanto
entre os teóricos dos movimentos sociais não-marxistas quanto por marxistas,
que criaram na Europa uma corrente de estudos sobre os movimentos sociais
através de uma releitura crítica do marxismo ortodoxo, fundamentada
principalmente pela teoria da alienação desenvolvida por Lukács e pela Escola
de Frankfurt, e a de Gramsci sobre a hegemonia. Esse movimento fora
denominado neomarxista (GOHN, 2002).
A revisão crítica dos trabalhos de Marx pelos chamados neomarxistas
resultou na atenuação do peso das determinações estruturais e na valorização
de pressupostos que conferem maior autonomia de ação aos atores sociais.
31
Esta transição recebeu influências do emergente e contemporâneo paradigma
dos Novos Movimentos Sociais (NMS).
Os NMS passaram a ocorrer na Europa a partir dos anos 1960. Em
termos práticos, os NMS têm como característica maior heterogeneidade dos
movimentos sociais do que o paradigma marxista, tendo em vista que têm uma
tendência de rompimento com a tradição que busca a mobilização de uma
classe social que represente os trabalhadores. Johnston, Laraña e Gusfield
(apud GOHN, 2007, p. 126), apresentam oito características básicas dos NMS:
1. O papel estrutural dos participantes não é claramente definido. A
base social dos NMS tende a transcender a estrutura de classe.
2. As características ideológicas dos NMS contrastam com a
concepção marxista de ideologia e com os movimentos da classe
trabalhadora.
3. Os NMS reclamam a emergência de novas dimensões da
identidade.
4. A relação entre o coletivo e o individual é obscurecida.
5. Os NMS envolvem aspectos pessoais da vida humana.
6. Utilizam táticas radicais de mobilização de ruptura e resistência que
diferem das utilizadas pela classe trabalhadora.
7. A crise de credibilidade dos canais convencionais de participação
nas democracias ocidentais causam a organização e a proliferação
dos NMS.
8. A organização dos NMS ocorre de maneira difusa, segmentada e
descentralizada.
Já o paradigma norte-americano não foi homogêneo, mas teve como
características comuns: a teoria da ação social como núcleo articulador das
análises; a meta principal, que correspondia à busca de compreensão dos
comportamentos coletivos, os quais eram considerados pela abordagem
tradicional norte-americana como fruto de tensões sociais; e a ênfase na ação
institucional, contraposta a não-institucional, sendo esta entendida como
aquela não guiada por normas sociais existentes, mas formada por situações
que representavam a quebra da ordem vigente (GOHN, 2007).
32
Quanto ao paradigma latino-americano, a dependência histórica em
relação ao mercado externo, o passado colonial, a natureza escravocrata e a
servidão indígena, a monocultura e a exploração externa econômica e de
recursos naturais, têm importância fundamental para a compreensão da sua
análise. Destacam-se neste paradigma: a diversidade de movimentos sociais
existentes; o destaque dos movimentos populares e o crescimento dos “novos”
movimentos (de mulheres, ecológicos, de negros); ideologias presentes;
partidos políticos como parceiros; heterogeneidade; Estado como um “inimigo”;
questão agrária gritante; entre outros.
Dentre os autores europeus teóricos dos movimentos sociais populares
destaca-se a influência de Manuel Castells. Proveniente de uma tradição
marxista, que nos anos 1970 liderou um processo de renovação no debate
sobre as questões urbanas, Castells enfatiza o papel das chamadas “novas
contradições urbanas”, com base em análises dos textos de Marx sobre a
realidade social. A propósito, Gohn (2002, p. 190) afirma, enfatizando a
influência de Castells como importante suporte teórico de pesquisas sobre os
movimentos sociais populares em toda a América Latina:
O quadro metodológico de análise dos Movimentos Sociais
Urbanos (MSU) de Castells consistia em entendê-los a partir da
determinação estrutural do problema que encerram (ou
reivindicam). Isto implica captar nos movimentos suas
perspectivas, sua estrutura interna, suas contradições, seus
limites e possibilidades, suas relações com a cidade e com o
Estado. O método de abordagem mais eficaz para o estudo
dos MSU seria, para Castells, a partir de sua observação
concreta, registrar a forma pela qual se desenvolvem e as
ações e organizações que integram. Isto feito, dever-se-ia partir
para uma nova etapa: relacionar o observado anteriormente
com: a) as contradições estruturais do capitalismo; b) a
expressão estrutural do movimento no urbano; e c) o processo
político mais geral do país nos últimos anos.
A metodologia desenvolvida por Castells relaciona os movimentos
sociais com problemas relativos à voracidade do capitalismo e seus
desdobramentos e com o burocratismo da administração, e coloca os
movimentos sociais como fatores de transformação. No Brasil este papel dos
33
movimentos sociais parece ser controvertido e variável, quanto ao seu
potencial político e transformador.
Para Castells (1999) os movimentos sociais, como movimentos mais
culturais e menos políticos, porque buscavam mudar a vida e não tomar o
poder, notadamente a partir de 1968, tiveram importância relevante na
conformação da sociedade atual, ao reagirem contra o uso arbitrário da
autoridade, ao agirem com energia contra a injustiça social e ao buscarem a
liberdade. Os movimentos sociais correspondem, assim, a ações coletivas
empreendidas com um determinado propósito e seus resultados, quaisquer que
sejam, transformam os valores e instituições da sociedade, tendo em vista que
não existem movimentos “bons” ou “maus”, progressistas ou retrógrados, pois
todos levam à transformação.
Castells (1999) entende que a construção de identidades coletivas pode
desenvolver-se de três formas diferentes, desde que ocorram em contextos
marcados por relações de poder: a identidade legitimadora; a identidade de
resistência; e a identidade de projeto, sendo esta última, por suas próprias
características, a mais relevante para a conquista de transformação da
estrutura social, capaz de reconstruir uma nova sociedade civil e, finalmente,
um novo Estado.
O sociólogo francês Alain Touraine também estabeleceu novas bases
teóricas para os movimentos sociais. Touraine entendia que os movimentos
sociais representavam uma ação conflitante de agentes com interesses
opostos, que lutam pelo controle do rumo do desenvolvimento da sociedade.
Touraine (apud PICOLOTTO, 2007, p. 06) entende que o conceito de
movimento social abrange o princípio de identidade; o princípio de oposição; e
o princípio de totalidade, de maneira que a existência de um movimento social
é caracterizada pela existência simultânea do ator, seu adversário e o objeto do
conflito. Os movimentos sociais teriam o papel de desenvolverem sujeitos livres
e autônomos e servir de mediadores entre o sujeito e o Estado, visando a
construção da democracia e da cidadania.
A ideia de sujeito implícita nesse pensamento, semelhante ao tipo de
processo de construção de identidade coletiva, denominada por Castells de
identidade de projeto, corresponde ao indivíduo que luta para ter seus direitos
34
reconhecidos, que resiste contra a lógica do sistema imposto pelas classes
dirigentes, que vão se tornando dominantes, e luta pela democracia e pelo
reconhecimento da sua cidadania. Destaca-se que, para Touraine (1994), o
processo de formação do sujeito só é possível por meio do diálogo e do
relacionamento com outros indivíduos do mesmo grupo social, porque jamais
pode ser alcançado individualmente. O indivíduo sem engajamento social corre
o risco de dissolver-se na individualidade, enquanto que sua transformação em
sujeito componente de um movimento social, que luta pela sua liberdade e
responsabilidade, o “desaliena” e torna-o parte de um processo transformador
do sentido da história.
Touraine contrapõe-se à utilização habitual da denominação “movimento
social”, sob a alegação de que a banalização do termo traria prejuízos à correta
definição da ação. Propõe distinguir os movimentos sociais para evitar que
sejam assim chamados qualquer tipo de ação coletiva, de grupos de interesse
ou de instrumentos de pressão política. Desta forma, Touraine diferencia os
movimentos sociais atuais através de uma hierarquização quanto ao seu
alcance, que se compõe basicamente em três tipos: movimentos culturais,
históricos e societais 2 . Esses últimos são portadores de características
conflituosas e ideológicas mais marcantes, o que os transforma no tipo de
movimento mais adequado para resolver os problemas da fragmentação do
sujeito e da crise da modernidade, conferindo-lhe grande poder de
transformação; enquanto que os demais tipos de movimentos são frágeis, a
ponto de Touraine alertar para a possibilidade de transformarem-se em
antimovimentos sociais.
Já Castells (2003, p. 113), de maneira geral, define os movimentos
sociais atuais nos seguintes termos:
A definição de movimento social só é útil se permite pôr em
evidência a existência dum tipo muito particular de ação
coletiva, aquele tipo pelo qual uma categoria social, sempre 2 Touraine (2003) entende que nos conflitos a ordem social é excedida, motivo pelo qual
prefere substituir a expressão “movimentos sociais” por “movimentos culturais”. O sociólogo francês chama de “movimentos históricos” aqueles que designam os “conflitos surgidos em torno da gestão da mudança histórica”, e esclarece que o uso do termo se dá em decorrência da “falta de melhor expressão” (p. 25). Por “movimentos societais”, Touraine entende que correspondem às ações que combinam um conflito social com um projeto cultural e que defendem um modo diferente de uso dos valores morais.
35
particular, questiona uma forma de dominação social,
simultaneamente particular e geral, invocando contra ela
valores e orientações gerais da sociedade, que ela partilha com
seu adversário, para privar este de legitimidade.
O sociólogo Alberto Melucci (1996) apresenta caminhos distintos dos até
então aqui abordados. Tendo em vista a sua formação e atuação profissional,
relacionada à Psicologia Clínica, Melucci afasta-se das concepções clássicas
de movimentos sociais. Entende que os atores ou sujeitos sociais se constroem
na ação coletiva, não sendo por ela determinados, não a precedendo, e propõe
o estudo de uma classe de fenômenos mais geral, denominando-a de “ações
coletivas” (gênero), extraindo dessas ações princípios de análise,
características e processos constituintes divididos, basicamente, em três
dicotomias – processos pelos quais as coletividades se constituem; se
posicionam ante outras coletividades; e se posicionam ante o sistema social
vigente; para que, então, seja possível estabelecer distinções entre as
diferentes orientações das ações coletivas dividindo-as em classes, entre as
quais os movimentos sociais estão inscritos. Esta análise depende do sistema
de relações em que cada ação ocorre e para o qual se direciona.
Melucci define a teoria da ação coletiva como:
[...] um conjunto de práticas sociais que envolvem
simultaneamente certo número de indivíduos ou grupos que
apresentam características morfológicas similares em
contigüidade de tempo e espaço, implicando um campo de
relacionamentos sociais e a capacidade das pessoas de incluir
o sentido do que estão fazendo (apud GOHN, 2000, p. 154).
Gomes (2011, p. 8) organizou a tabela abaixo conforme a proposta de
Melucci, para melhor visualização, compreensão e “estudo das orientações das
ações coletivas, compondo, como resultado, uma tipificação das ações
coletivas, por meio das quais os grupos sociais constituem suas identidades”:
Tabela 1 – Conjunto de formas de ação social
36
Fonte: GOMES, 2011, p. 8.
Desta forma, verifica-se que, para Melucci, uma ação coletiva deve ser
considerada um Movimento Social apenas quando o motivo pelo qual o
indivíduo é levado a participar da ação seja a solidariedade, que na sua própria
definição é entendida como a “habilidade de reconhecer a si mesmo e ao outro
como pertencentes à mesma unidade social” (apud GOMES, 2011, p. 5). A
capacidade dos indivíduos compartilharem uma identidade coletiva fortalece os
laços internos da coletividade contra desgastes e rupturas. É necessário
também que a ação coletiva se configure sob a forma de conflito, quanto ao
modo pelo qual uma coletividade posiciona suas ações ante outras
coletividades. Ou seja, para Melucci o conflito se caracteriza pelo confronto,
disputa, combate e antagonismo reconhecido entre grupos que disputam os
mesmos recursos. É o oposto do consenso. Finalmente, para que seja
considerada por Melucci como Movimento Social a ação coletiva deve ser
também orientada à ruptura dos limites do sistema. Ou seja, a ação coletiva
deve ter objetivos e orientações, que exigem mudanças para além do espectro
aceitável de variações, para além do que o sistema pode tolerar, de maneira
que a demanda só poderá ser satisfeita desde que haja uma alteração
estrutural no sistema. A manutenção é o seu oposto. Melucci (1996, p. 27),
visando uma melhor compreensão acerca do assunto, já que bastante
inespecífico, propõe a divisão em quatro sistemas:
O sistema produtivo, composto dos elementos que asseguram a produção de recursos sociais;
O sistema político, de decisões sobre a distribuição desses recursos;
O sistema organizacional, que define regras de trocas e abastecimento desses recursos;
Movimento Social Solidariedade Conflito Ruptura
Competição Solidariedade Conflito Manutenção
Reação Solidariedade Consenso Ruptura
Cooperação Solidariedade Consenso Manutenção
Agregação Conflito Ruptura
Agregação Conflito Manutenção
Agregação Consenso Ruptura
Ritual Agregação Consenso Manutenção
Desvio
(Marginalidade)
Forma de Ação
Coletiva
Processo
constitutivo
Posicionamento ante
coletividades
Posicionamento ante ao
sistema vigente
Resistência
Individual
Mobilidade
Individual
37
e, por fim, o sistema reprodutivo, o mundo da vida, a reprodução cultural no cotidiano.
A partir do final da década de 1980, Melucci, tendo em vista a dinâmica
social recente, chega a afirmar que prefere substituir a expressão movimento
social por redes de movimento ou áreas de movimento, já que passaram a se
organizar de maneira inter-relacionada. Enquanto que para Melucci as redes
são os canais de intercomunicação entre os atores sociais transformadores,
para Castells as redes são instrumentos de dominação da sociedade atual
(PICOLOTTO, 2007).
Importa ressaltar que Freire (2011c) alertou para a importância dos
movimentos sociais como “ambientes alternativos” para o desenvolvimento e
prática da educação libertadora, revelando a sua predileção em trabalhar com
os movimentos sociais populares no campo e na periferia das cidades a
trabalhar em escolas, embora ressalte que ambas as atividades sejam
igualmente importantes. Cita como exemplo o movimento de libertação das
mulheres, o movimento ecológico, o movimento das donas de casa contra o
custo de vida, indicando que de “todos esses movimentos de base emergirão
como uma tarefa política muito vigorosa […]. Na intimidade desses
movimentos, temos aspectos da educação libertadora que algumas vezes não
percebemos” (FREIRE, 2011c). A educação libertadora, crítica, visa a
autonomia do indivíduo e que ele internalize a confiança (sentido de auto
eficácia) de que poderá fazer parte de um processo de transformação social,
de que é possível alterar os rumos da história. As ações coletivas transformar-
se-ão e tornar-se-ão muito mais eficientes. No próximo capítulo
desenvolveremos esse tema relacionado à educação libertadora freireana.
1.3.1. Breve historização dos movimentos sociais como forma de organização social
A historicidade das ações coletivas de organização social, visando a
transformação das condições de vida, pode ser útil para que possamos
compreender a sua importância. Dentre alguns exemplos de ações coletivas de
38
contestação do povo em relação ao sistema político-econômico vigente,
destacam-se os movimentos dos camponeses europeus, que após a
disseminação da Peste Negra, na Europa Medieval, em meados do século XIV,
tiveram a sua já precária situação agravada. A retração econômica, o aumento
do trabalho para suprir a falta dos inúmeros mortos e o aumento dos impostos,
cujo pagamento era imputado pelos senhores feudais (classes detentoras de
terras) à classe servil, para a manutenção de seus privilégios, criaram o
ambiente apropriado para a deflagração de várias revoltas camponesas,
relativamente organizadas, na França e na Inglaterra. Essas visavam,
notadamente, diminuir a exploração sob a qual viviam e conquistar alguns
direitos elementares. Na mesma época, nas cidades (burgos) ocorriam ações
coletivas dos artesãos, que explorados pelos comerciantes ricos (burgueses),
desejavam melhores condições de trabalho e de direitos, chegando a se
organizarem em corporações de ofício (GOFF, 2005).
Na Idade Moderna, segundo relata Funck-Brentano (1968), o monge
alemão Martim Lutero deu início à reforma luterana, que consistia em contestar
os dogmas da Igreja Católica e lutava para que o povo tivesse mais autonomia
e participação na vida de fé. Ainda conforme Funck-Brentano (1968), por volta
de 1524 houve uma luta camponesa relevante na Alemanha. Liderados pelo
Frade Thomas Muntzer os camponeses se revoltaram contra a Igreja, em
decorrência da cobrança de dízimos e reivindicavam a reforma agrária, a
abolição dos privilégios feudais e a igualdade absoluta entre os homens. O
movimento foi duramente contido pelos príncipes da Saxônia. Muntzer foi
preso, torturado e decapitado, e milhares de camponeses foram massacrados.
A Revolução Inglesa, que se iniciou em 1640 e terminou em 1688/89,
transformou a estrutura política, social e econômica da Inglaterra, lançando as
bases de importantes transformações mundiais. Antecipando-se em 150 anos
às revoluções Americana e Francesa, foi fundamental para a Revolução
Industrial no século seguinte, que modificou as relações econômicas
globalmente.
Até aproximadamente 1760 a Inglaterra ainda era um país
predominantemente agrícola. Por volta de 1800 a Revolução Industrial se
precipitou. Em períodos anteriores os artesãos se agrupavam e todos
39
dominavam integralmente todas as etapas do processo de produção daquilo
que produziam e, portanto, conheciam seu valor. Contudo, os progressos
tecnológicos, o vanguardismo das políticas liberais inglesas, a abundância de
mão-de-obra disponível, e o incentivo ao desenvolvimento da economia
burguesa foram acompanhados de profundas transformações sociais, com o
rápido crescimento da população e o aparecimento de novas cidades
industriais.
A industrialização inglesa ocorreu quase um século antes de qualquer
outra. A maneira como as máquinas automatizadas operavam tornaram os
operários em trabalhadores autômatos. Tinham responsabilidade e domínio de
apenas determinada fase do processo produtivo, convertendo-o em alienado
quanto ao valor de seu trabalho. Tal fato, aliado às péssimas condições de
trabalho, fábricas abafadas, sujas e mal iluminadas, baixos salários, mão-de-
obra feminina e infantil, castigos físicos impostos pelos patrões, jornadas
diárias extenuantes (de até 18 horas) e ausência de direitos trabalhistas,
causaram o surgimento das primeiras greves e revoltas operárias que, mais
tarde, deram origem aos movimentos sindicais.
Neste período destaca-se ainda o movimento de insurgentes contra as
alterações nas relações de trabalho ocasionadas pela Revolução Industrial,
que ocorreu principalmente entre 1811 e 1812, e foi denominado de Ludismo.
As máquinas, consideradas as grandes responsáveis pelo desemprego
crescente no país, em que pese tal movimento ter tido importantes reflexos
também na França e Bélgica, entre outros países europeus, foram o objeto da
ira dos trabalhadores mobilizados nesta ação coletiva, que afetou tanto aos
operários quanto os camponeses.
A destruição das máquinas representava prejuízo imediato aos patrões e
a interrupção da exploração dos trabalhadores, porque não havia outro meio de
produção e significava a abertura para uma negociação coletiva. Uma técnica
sindical de negociação dos direitos dos trabalhadores, alternativamente a
greves ordeiras, naquela época não surtiam o efeito almejado. Depois os
operários organizaram-se em associações, que atendiam aos seus interesses,
o que, consequentemente, deu origem aos sindicatos. Hobsbawm (2000) não
classifica esse movimento como ingênuo e inconsequente. Para esse autor os
40
operários tinham plena consciência de que não eram as máquinas o real
motivo de sua desgraça, e sim o sistema que os utilizava indecentemente. De
acordo com Hobsbawm:
[...] não há realmente nenhuma desculpa para ignorar de
qualquer modo a força destes primeiros movimentos na
Inglaterra; e a menos que percebamos que a base do poder
estava na quebra das máquinas, nas arruaças e na destruição
das propriedades em geral (ou em termos modernos, na
sabotagem e na ação direta), não vemos sentido neles (2000,
p. 18).
Chegamos agora ao último e mais complexo problema: qual a eficácia da destruição de máquinas? É, acho eu justo afirmar que a negociação coletiva através do tumulto foi pelo menos tão eficiente como qualquer outro meio de exercer pressão sindical, e provavelmente mais eficiente do que qualquer outro meio disponível antes da era dos sindicatos nacionais para grupos tais como os tecelões, marinheiros e mineiros. [...] Além do mais, o tumulto e a destruição de máquinas proporcionaram aos trabalhadores vantagens valiosas em todas as ocasiões. O patrão do século XVIII estava constantemente consciente de que uma exigência intolerável produziria, não uma perda de lucros temporários, mas a destruição de equipamento importante [...] (2000, p. 26).
Hobsbawm (2006) afirma, ainda, que as repercussões da Revolução
Industrial não se fizeram sentir de uma maneira óbvia e inconfundível fora da
Inglaterra antes de 1840 aproximadamente; quando seus efeitos sociais
começaram a ganhar atenção e a fluir com a grande corrente de literatura
oficial e não oficial. O proletariado, rebento da revolução industrial, e o
comunismo, que se achava agora ligado aos seus movimentos sociais, abriram
caminho pelo continente. “Sob qualquer aspecto, este foi provavelmente o mais
importante acontecimento na história do mundo, pelo menos desde a invenção
da agricultura e das cidades.” (HOBSBAWM, 2006, p. 20).
Destacam-se no Brasil do século XVII e XVIII as intensas, duradouras,
autênticas e importantes ações coletivas populares dos grupos quilombolas. A
mais conhecida foi aquela do quilombo dos Palmares, localizado na atual
região de Alagoas. Na realidade, Palmares era um local que abrigava diversos
quilombos. Os refugiados se organizavam nestas comunidades como uma
forma de manifestação de resistência quanto à opressão da cruel ordem
41
escravocrata vigente. Durante os séculos XVII e XVIII o Brasil teve centenas de
quilombos espalhados, principalmente pelos atuais estados da Bahia, Alagoas,
Pernambuco, Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais. Os quilombolas viviam de
acordo com a cultura africana, plantavam e produziam em comunidade e
lutavam, principalmente, pelo direito à liberdade e por uma vida digna. A
prosperidade e a capacidade de organização e resistência dos quilombos
apresentava séria ameaça à elite dominante da época, notadamente dos
Palmares, que conseguiu derrotar aproximadamente trinta expedições militares
organizadas com a finalidade de destruírem-no.
Em 1776 houve a Revolução Americana, motivada, principalmente, pela
aspiração patriótica de independência. Em que pese o fato de a revolução não
ter chegado a tocar na escravidão, e sua solução para os problemas
relacionados às terras do oeste tenha favorecido os interesses dos grandes
proprietários, não lhe faltaram aspectos revolucionários e caráter social das
lutas, tendo, inclusive, influenciado diretamente as ações coletivas que
conduziram à independência do Brasil, a partir da Conjuração Mineira. As lutas
pelo fim do despotismo feudal e pelo advento de uma era de liberdade e justiça
inspiraram ações coletivas de libertação em diversas partes do mundo até o
princípio do século XIX. Com a vitória sobre a Inglaterra, a Revolução
Americana pôde proclamar-se a causa direta da Revolução Francesa.
A Idade Moderna “termina” em 1789, com a Revolução Francesa, ou a
Grande Revolução, como viria a ser chamada. Hobsbawm (2006, p. 38) afirma
que “Se a economia do mundo do século XIX foi formada principalmente sob a
influência da revolução industrial britânica, sua política e ideologia foram
formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa.” A França, no período
pré-revolucionário, era um país basicamente agrário e semifeudal e
encontrava-se em período de crescimento demográfico (cerca de um a cada
cinco europeus era francês, o que tornou as consequências da sua Revolução
mais evidentes e profundas). Tais fatos, aliados aos seguidos anos de
péssimas colheitas, levando à subprodução agrícola e consequente elevação
dos preços dos alimentos e o aumento da miséria e da fome entre os
camponeses e trabalhadores urbanos, resultou em uma ascendente crise
econômica. A monarquia absolutista, até então no poder, passava por
42
momento crítico, tendo em vista a inércia de décadas frente à crise econômica,
financeira e social, que se agravava com o passar dos anos, fato este majorado
pelo fortalecimento econômico da burguesia. Nesta época a sociedade
francesa era dividida em clero (primeiro estado), nobreza (segundo estado) e
povo (terceiro estado, constituído por camponeses, trabalhadores urbanos,
pequenos proprietários, comerciantes e a burguesia), sendo que apenas este
último carregava o pesado fardo dos impostos para suportar os gastos
necessários a fim de manter os luxos da nobreza e da corte real e os custos
das guerras.
Este panorama provocou a Revolução Francesa (1789-1799), que
visava, principalmente, derrubar o antigo regime e instaurar um Estado
democrático, que representasse e assegurasse os direitos de todos os
cidadãos. As ações coletivas eram chamadas de “revolucionárias”, tendo em
vista a violência com que eram empreendidas, e a Revolução Francesa foi
marcada como uma das mais violentas, mais profundas, mais surpreendentes,
com amplas repercussões no mundo inteiro e investida de um caráter social
sem precedentes. Tornara-se um marco em todos os países, tanto que
Tocqueville (apud HOBSBAWM, 2006, p. 39) afirmou que a Revolução
Francesa foi “o primeiro grande movimento de idéias da cristandade ocidental
que teve qualquer efeito real sobre o mundo islâmico”. Foi, diferentemente de
todas as revoluções que a precederam e a seguiram, uma revolução social de
massa, com traços marcadamente radicais. As guerras empreendidas contra a
aristocracia feudal, guerras que instauraram uma ditadura do Terror, cujo
símbolo, a guilhotina, se tornou universal, visavam à formação de um regime
social baseado no direito à propriedade e igualdade entre os homens e
impulsionou o nascer, mais tarde, do que seria chamado de socialismo.
No Brasil do século XVIII destacara-se a mobilização das elites não
monárquicas e da classe popular, dentre outros, no movimento que foi
denominado como a Inconfidência Mineira. Motivada pelo inconformismo de
parte da população com os abusivos e pesados impostos e taxas cobrados
pela Coroa Portuguesa, majorados pela instituição da Derrama e dos confiscos
dos bens pessoais dos colonos, que não conseguiam cumprir as exigências
das autoridades portuguesas, e influenciados pelas ideias de liberdade, que
43
vinham do Iluminismo europeu, tinham como objetivo a proclamação da
independência de uma região de Minas Gerais.
Durante o século XIX houve importantes ações coletivas e lutas sociais
no Brasil envolvendo tanto as zonas rurais quanto as urbanas, tendo em vista
que ainda que a população estivesse concentrada em maior número nas zonas
rurais, a estrutura hegemônica para a monocultura do açúcar, no início,
passando para o café em meados do século XIX, funcionava com a produção
ocorrendo no campo e a comercialização do produto e da mão-de-obra na
cidade, notadamente no sudeste (Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo).
Gohn (2001a, p. 18) destaca como motivos gerais para as ações
coletivas ocorridas no Brasil os seguintes: a questão da escravidão, aquelas
relacionadas às cobranças do fisco, de pequenos camponeses contra
Legislação e Atos do Poder Público, pela mudança do regime político e entre
diferentes categorias socioeconômicas (comerciantes brasileiros versus
comerciantes portugueses, por exemplo). Alerta que, em que pese a extensão
territorial nacional e a falta de comunicação entre as províncias da época,
houve relevante adesão da população às reivindicações feitas.
Interessante destacar ainda que Manuel Correia de Andrade (apud
GOHN, 2001a, p. 19) observa que movimentos populares autênticos, liderados
por homens do povo, como a reação indígena, os quilombos negros, revoltas
do período regencial e imperial, em especial aquelas ocorridas no Norte e
Nordeste, foram ignorados e ocultados em nossa história, sendo seus
participantes e líderes rotulados de bárbaros e bandidos.
As grandes lutas camponesas no Brasil coincidem com o fim do império
e a instauração da República. Com a abolição das sesmarias no Brasil, a terra
começa a adquirir valor comercial e os pequenos agricultores e assalariados
passaram a vislumbrar a oportunidade de adquirirem um pedaço de chão.
Contudo, a Lei das Terras, de 1850, criou enormes e praticamente
intransponíveis dificuldades para aqueles adquirirem suas terras, servindo mais
aos interesses econômicos e políticos do Estado e dos grandes latifundiários,
que produziam monoculturas para exportação através da utilização da mão-de-
obra escrava e superexplorada. Nesta época, especialmente a partir de 1850
até 1890, houve diversos movimentos conhecidos como messiânicos,
44
denominação esta que remete impropriamente a ideia de tratarem-se de ações
fanático-religiosas. Contudo, em verdade, foram lutas pela terra, lutas coletivas
populares envolvendo questões de reforma agrária e de resistência às
oligarquias rurais, a exemplo da Revolta dos Muckers no Rio Grande do Sul,
Canudos na Bahia e Contestado no Paraná e Santa Catarina (GOHN, 2001a).
Igualmente importantes são os movimentos chamados de banditismo no
nordeste brasileiro, também chamados de cangaço, que perduraram com
grande intensidade até a década de 1940. Tratava-se de lutas empreendidas
por lavradores, camponeses, sitiantes e posseiros, que foram expulsos de suas
terras, com a finalidade de se vingarem de seus algozes (aqueles que os
expulsaram), matando, inclusive seus familiares. Depois da execução de seu
intento, em decorrência da sua nova condição de criminosos e excluídos
socialmente, unem-se a bandos de cangaceiros. Para Martins (1986, p. 60):
O cangaceiro era principalmente o camponês que fora
expropriado, expulso, esbulhado por um fazendeiro ou
comerciante determinado, mas que em respostas se vinga da
classe, percorrendo vínculos de sangue de seus desafetos
para exterminar parentes.
Destacam-se também, neste mesmo período inicial, as importantes e
inúmeras ações coletivas com viés social denominadas de Associações de
Auxílio Mútuo que, para alguns autores, tratou-se de movimentos que
precederam o sindicalismo ou o anarco-sindicalismo, e, para outros, referiam-
se à associação das classes populares para assegurar condições básicas para
os miseráveis das cidades (LUCA, 1990).
A Revolução Russa de 1917 também foi marcada pela participação
popular e pela violência. Os camponeses eram explorados e viviam em
condições precárias, em decorrência de um governo que preservava os
privilégios feudais da classe aristocrática. A classe operária, ainda tímida e
igualmente oprimida e explorada, não tinha força para exigir seus direitos. As
desigualdades sociais foram agravadas pelos gastos do Governo com a
primeira guerra mundial. Os efeitos do “capitalismo selvagem” e a evolução das
ideias socialistas ampliaram o clima de insatisfação. Os camponeses, até então
irresolutos, começaram a empreender por conta própria ações violentas contra
45
as grandes propriedades. Eram massas desorganizadas e fortalecidas pelos
soldados “autodesmobilizados”, que voltavam ao campo levando consigo o
lema bolchevique “paz, pão e terra.”
Em relação ao nosso país, Gohn (2001a, p. 61) mapeia e aglutina em
seis etapas as principais lutas e movimentos sociais ocorridos no século XX no
Brasil:
1.ª) Primeira República: até 1930; 2.ª) Revolução de 1930 e
Estado Novo: 1930-45; 3.ª) Populismo: 1945-64; 4.ª) Regime
Militar, 1.ª fase: 1964-74; 5.ª) Regime Militar, 2.ª fase: 1974-84;
6.ª) Nova República e Restauração Democrática: 1984-95.
As primeiras décadas do século XX têm como personagem central o
trabalhador imigrante. O quadro de pobreza reinante no país durante a Primeira
República era agravado por ciclos de epidemias e pelo descaso do Estado e
das elites quanto aos direitos daqueles terem suas necessidades mais
elementares atendidas. Contudo, nesta época, esses trabalhadores, que já
tinham vivências e ideologias de mobilização social (sendo um exemplo o
movimento anarquista), começavam a se mobilizar, cada um conforme a
afinidade de interesses e necessidades. Criaram, assim, diversos sindicatos de
categorias e se organizaram em Federações e Confederações, tornando-se
uma constante os movimentos grevistas em vários setores. Os
anarcosindicalistas combatem o Estado, as Forças Armadas, a Igreja e toda
forma de organização burocratizada e rígida.
Especial referência deve ser feita aos militares de média patente e aos
funcionários públicos, que tendo atingido certo grau de status social, fazem
emergir vários movimentos a partir de ações coletivas, como o Tenentismo e o
Modernismo. Diversas instituições foram fundadas, notadamente
representativas de interesses profissionais, classistas e particulares, e
inúmeras revoltas organizadas e desorganizadas eclodiram neste período
(GOHN, 2001a, p. 61; SANTANA, 1999).
Em São Paulo os sindicatos denunciavam casos de jornadas
extenuantes nas fábricas, utilização de mão de obra infantil e feminina,
exploração econômica, exposição a condições de trabalho insalubres e
perigosas, e lutavam pela regulamentação e ampliação de direitos trabalhistas
46
elementares. Nesse clima eclodem as greves lideradas principalmente pelos
anarquistas (anarcosindicalistas), que trouxeram da Europa suas experiências
na organização dos movimentos revolucionários. As reivindicações
relacionadas a questões humanas básicas, não trabalhistas, também eram
defendidas pelos trabalhadores, que se mobilizaram por meio de ligas, uniões e
sindicatos, contra a carestia de gêneros alimentícios e o precário
abastecimento da cidade, protestaram contra as condições de moradia, os
preços excessivos dos aluguéis e contra a Lei do Inquilinato, de 1913.
Reclamaram do transporte público, exigindo a ampliação da rede e custos mais
baixos. Ocuparam as ruas e praças públicas, fazendo comícios e passeatas,
invadindo comércios e fábricas em funcionamento (FERREIRA; REIS FILHO;
KHOURI, 2007). Até a década de 1920 as lutas operárias eram lideradas pelos
anarquistas e socialistas.
Em que pese já haver certo nível de organização nas ações coletivas
desta época, a violência era traço marcante tanto do lado dos manifestantes
quanto do Estado e das elites em toda a América Latina. As ações eram
tratadas pelo Estado e pelas elites como casos de polícia, muitas vezes pela
oportunidade política na manutenção da opressão pela falta de regulamentação
mínima dos direitos da classe popular. As ações coletivas eram travadas para
que direitos elementares sobre saúde, transporte, alimentação, trabalho,
moradia etc. fossem reconhecidos. O povo era tratado como “escravos
emergentes”, ainda sem direitos, apesar dos primeiros traços de um governo
populista, que surgia na primeira república, para abrandar a onda de revoltas.
Sobre as desigualdades sociais agravadas pela busca desmedida do
capital através da exploração do homem, Bulla (2003, p. 4) cita oportunamente
Marx e Engels:
Grande parte da obra de Marx e Engels (1982) se constitui
numa tentativa de mostrar ao movimento operário como o
modo de produção capitalista desvirtua a vida e as relações
sociais humanas, sob múltiplas formas, com o intuito de
satisfazer as exigências da reprodução do capital. A
consciência crescente da exploração e o agravamento dos
problemas sociais, ligados à acumulação capitalista, levaram
os trabalhadores a se organizar em movimentos e lutas por
melhores condições de vida e de trabalho.
47
Na América Latina destaca-se o grande, intensamente nacionalista e
violento movimento popular, anti-latifundiário, anti-imperialista e anti-Estados
Unidos denominado de Revolução Mexicana, que foi desencadeada em 1910
para, em princípio, resolver um problema político: a sucessão do Presidente
Porfírio Diaz. Entretanto, as massas populares em todas as regiões latino-
americanas aproveitaram a movimentação e logo se envolveram em uma luta
para exigir reformas econômicas e políticas. A luta terminou em 1917 com a
promulgação da nova e revolucionária Constituição mexicana, considerada
extremamente progressista e, segundo alguns, a primeira do mundo a
reconhecer as garantias sociais e os direitos coletivos dos trabalhadores,
conquistada graças à grande pressão popular. A Revolução Mexicana foi
considerada “a primeira revolução social do século XX”, sendo comparada à
Revolução Russa e à Revolução Chinesa (WOMACK, John. apud BETHELL,
2008).
Contudo, é interessante destacar a percepção de historiadores
profissionais dos efeitos causados pela Revolução Mexicana, quando
examinados depois de 1940:
[…] o desenvolvimento do México seguiu muito mais as linhas
do antigo regime do que as da alegada Revolução. As
instituições revolucionárias permaneceram formalmente
intactas e a retórica revolucionária continuou a fluir, mas os
benefícios para os camponeses e os trabalhadores foram
menores do que antes, ao passo que os negócios, sobretudo
as empresas norte-americanas, multiplicaram-se, cresceram e
converteram seus lucros num indicador do bem-estar nacional.
(WOMACK, John. apud BETHELL, 2008, p. 106).
Tal opinião leva a crer que a Revolução Mexicana foi mais uma luta pelo
poder, em que se envolveram, além dos operários, camponeses e miseráveis,
também a elite nacional e estrangeira, descontente com a sua situação, que
teria manipulado aqueles para atingir seus objetivos, e menos um movimento
social autêntico. Ademais, apesar de o movimento ter sido taxado de
revolucionário, “na prática, as reformas econômicas e sociais não foram muito
48
diferentes das realizadas nos mesmos anos, sem guerra civil, no Peru, no Chile
e na Argentina”. (WOMACK, John. apud BETHELL 2008, p. 108).
As lutas sociais no Brasil, após a Revolução de 1930 até a Queda do
Estado Novo, marcam a segunda das etapas propostas por Gohn. O cenário
urbano passa gradativamente a ser objeto de atenção das políticas públicas e o
Estado aumenta a interferência na economia e na sociedade. O caráter das
lutas sociais adquire novos contornos, na medida em que as classes populares
começam a adquirir alguns direitos graças às mobilizações anteriores. As
ações coletivas concentram-se na realização dos parcos direitos já
promulgados e na sua ampliação, apaziguando a impressão de anarquia e
ilegalidade (GOHN, 2001a, p. 82). Destaca-se nesta época a fundação do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campos/RJ, em 1932, constituído por
pequenos lavradores e cortadores de cana-de-açúcar. Considerado o primeiro
sindicato de trabalhadores rurais do Brasil, tornou-se modelo para outros
sindicatos criados posteriormente.
Nas décadas de 1940 e 1950 o movimento operário voltou a crescer
com relativa liberdade, tendo em vista a promulgação da Constituição Brasileira
de 1946 que, em termos gerais, era considerada uma Constituição liberal, uma
vez que assegurava aos cidadãos liberdade de organização, opinião,
propriedade, entre outras. Contudo, a referida Constituição estava alinhada
muito mais aos interesses dos latifundiários e dos empresários urbanos do que
aos trabalhadores.
Entretanto, em 1946, com uma conjuntura relativamente favorável, ou
menos repressora, a CGTB (Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil),
criada pelos comunistas e trabalhistas, reaparece juntamente com o Partido
Comunista do Brasil, sendo que este foi logo proibido.
Notadamente a partir da década de 1950, tanto no Brasil quanto em toda
a América Latina, houve crescimento extremamente expansivo e caótico das
camadas urbanas, acentuando ainda mais a brutal exclusão das classes
populares dos serviços e ações públicas mais básicas, fato este que continua
ocorrendo e sendo agravado ao longo das décadas seguintes (ARROYO,
2003). Até esta época os artesãos e pequenos produtores rurais
predominavam nos países localizados na América Central, e quando as
49
indústrias começaram a se instalar na região, acabaram provocando a
migração do povo do campo para as cidades, forçando a execução acelerada e
precária de obras públicas de infraestrutura, construção de grandes edifícios e
parques, aperfeiçoamento do sistema viário e de transporte; trazendo a
“civilização” ao novo personagem social, o migrante, por meio do acesso a
pequenos progressos nas ciências, como os serviços médicos e os
medicamentos, e à educação “universal” (CARDOSO, 2008, p. 258).
O período compreendido entre meados de 1940 e 1964 ficou
denominado como populista ou nacional-desenvolvimentista. Nesta época, com
o processo de redemocratização instaurado no país após 1945, houve
multiplicação dos sindicatos, de partidos políticos e de ações coletivas a partir
da sociedade civil, todos muito ativos na reivindicação de múltiplas questões,
como novas políticas de controle social, notadamente para atender com uma
estrutura básica os grandes contingentes humanos, que se deslocavam do
campo para a cidade em busca do sonho de melhores condições de vida. Mas
que se viam explorados pelas grandes corporações internacionais, que aqui
aportavam, atraídos por benefícios concedidos por líderes governistas e baixos
salários. As reivindicações incluíam reformas de base, Reforma Agrária, direito
de greves de operários, reformas de Base na Educação, casa própria, entre
outros. Pela primeira vez o povo surge com algum poder de pressão no cenário
político nacional (GOHN, 2001a).
Até a década de 1960 a abordagem ortodoxa marxista, baseada na
práxis social revolucionária das classes exploradas, articulava a ação e a
concepção dos movimentos sociais, visando a transformação das estruturas
do Estado para a emancipação política e social e distribuição radical de bens,
através das lutas de classes entre a burguesia e o proletariado, utilizando como
referência a violência e a coerção como táticas de luta. Nesta época o país
continuava em forte processo de expansão industrial. Entre 1950 e 1962 o
fortalecimento dos movimentos sindicais e a migração do camponês para as
cidades gerou uma forte e crescente classe operária, que passou a se
organizar e se mobilizar participando ativamente dos acontecimentos políticos
e sociais do Brasil, conquistando a ampliação de seus direitos, como o décimo-
terceiro salário e férias em dobro.
50
Contudo, a instalação da ditadura militar nos países latino-americanos
nas décadas de 1960 a 1980 foi marcada pela censura às liberdades
individuais, que se estabeleceu pelo uso da força. As ações coletivas que
buscavam justiça social e que ganhavam vigor no continente foram brutalmente
abafadas por esses governos autoritários.
No Brasil o regime autoritário e repressivo foi instituído em 1964, através
de um golpe de Estado perpetrado pelas Forças Armadas. Sua duração foi de
vinte e um anos. As ações coletivas mais relevantes durante este período
foram as manifestações de 1968 e as campanhas pelas “Diretas Já”
(GROPPO, 2005, p. 87).
Neste período a Igreja Católica, menos como instituição e mais pelos
seus padres, freiras e leigos através de suas práticas pastorais, teve grande
contribuição nas lutas sociais. A Teologia da Libertação, segundo informa
Scherer-Warren (1996), teve como objetivo, engajando-se nas lutas contra as
variadas formas de opressão, desencadear um processo histórico de libertação
dos povos latino-americanos para que o homem pudesse tomar seu lugar como
sujeito de seu destino pessoal e da história, reconstruindo sua dignidade
humana, solapada em sua vivência marginalizada. A Teologia da Libertação foi
criada e desenvolvida a partir do Documento do Conselho Vaticano II, nos anos
1960, que recomendava uma doutrina socialmente orientada.
Outros movimentos organizados internos da Igreja Católica reafirmaram
os princípios básicos de uma Igreja comprometida com os oprimidos3, em que
pesem forças conservadoras resistentes à divulgação da Teologia da
Libertação, porque esta representava um desafio à antiga e sólida aliança até
então existente entre a Igreja Católica, o Estado e as classes dominantes.
Na América Latina, entre 1968 e 1979, mais de 1.500 cristãos foram
aprisionados, exilados, torturados ou assassinados pelo seu comprometimento
com a Teologia da Libertação, ao adotarem uma postura mais enfática ao lado
dos oprimidos (os pobres, as mulheres, as crianças e jovens, os negros e os
3 A encíclica Populorum progressio, do Papa Paulo VI, dirigida especialmente à América Latina
para combater a miséria e a injustiça. A criação do CELAM (Conselho Episcopal Latino Americano), em 1955, que proporcionou aos bispos da América Latina manifestarem e partilharem novas idéias relacionadas ao tema da opressão. A realização da Segunda e Terceira Conferência do Episcopado Latino-Americano, em 1968 e 1979, respectivamente, consolidando a mesma proposta. (SCHERER-WARREN, 1996, p. 34).
51
índios) da América Latina em suas lutas por uma nova ordem econômica e
política, por sua libertação como pessoa humana, pela descoberta da sua
dignidade (SCHERER-WARREN, 1996).
Destacam-se alguns fatos que marcaram o período de meados da
década de 1940 ao início daquela de 1980 no Brasil: grande intervenção do
Estado na economia, início e ampliação de grandes e importantes obras de
iniciativa pública e privada, como rodovias, usinas, siderúrgicas, indústrias;
guerra fria; aprofundamento da exploração da mão-de-obra barata dos
migrantes do campo pelas grandes corporações internacionais que aqui
passaram a fixar seus negócios; fortes movimentos de esquerda e estudantis,
notadamente contra a repressão do regime militar; intensa articulação de forças
políticas no Brasil visando instalar uma nova sociedade no país, operando na
clandestinidade, em ações violentas; e diversas intervenções na sociedade
empreendidas pelo Estado por meio de políticas sociais de cunho clientelístico
(GOHN, 2001a).
O crescimento urbano acelerado e desordenado e a incapacidade (e
inércia e corrupção) do Estado de administrar este novo panorama continua até
os dias atuais. Desde os anos de 1980, em muito sob a vigência de novas
formas do capitalismo, em especial pelo avanço global do neoliberalismo, há
um novo ciclo de recuo da organização social e também o aumento dos
processos de exclusão social em toda a América Latina, multiplicando a
pobreza (que nunca foi solucionada), a violência organizada e desorganizada,
a anomia defensiva e de outras condutas de crise.
Na década de 1990 em diante, o MST (Movimento dos Trabalhadores
sem Terra), as ONGs (Organizações não Governamentais) e o Terceiro Setor
se destacaram ao lado das lutas sindicais como forma de manifestação em prol
da construção de um conjunto de práticas democráticas:
Alguns deles não são exatamente novos, mas é nesse
momento que se tornam mais expressivos, tornando-se
conhecidos para além das fronteiras de seus países de origem.
São movimentos rurais, como o MST (Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra) no Brasil; urbanos, como os
piqueteiros na Argentina; de caráter étnico, como os
movimentos indígenas na Bolívia, Peru, Equador e México.
(GALVÃO, 2008, p. 8).
52
Para Gohn (2003), os movimentos sociais do novo milênio são distintos
dos das décadas de 1970 e 1980, embora, naturalmente, existam pontos de
convergência. Antes a luta era focada em causas e projetos coletivos de vida,
“olhavam para o outro”, lutavam pelo direito de terem direitos. Enquanto que
atualmente, em decorrência de uma conjuntura social e política contraditória,
os movimentos são movidos principalmente por interesses individuais por um
lado, e, por outro, há um Estado que reconhece e “legitima” as ações coletivas
e age como se as respeitasse, mas que, no fundo, as controla de cima para
baixo e define suas estruturas, enfraquecendo sua autonomia e propósitos.
Esse breve retrospecto histórico leva a algumas considerações.
Observa-se que os movimentos das classes populares a favor de melhores
condições de vida estão aninhados num conjunto de circunstâncias complexas,
marcadas, no mais das vezes, por diversas situações-limite, em termos de
sobreviência. E, também, a importante força de lideranças, capazes de
catalisar os anseios dos diversos grupos populares. Nota-se, da mesma forma,
pensando-se em termos de Brasil, poucas mas importantes ações coletivas, a
exemplo daquelas ligadas à Teologia da Libertação. Daquelas impulsionadas
pelo exemplo e modelo freireano, mais recentemente pelas escolas do MST, ou
de ações pontuais no interior de movimentos sociais rurais e urbanos, do
interesse ou dos esforços por uma Educação Popular “de base”, ou seja, de
uma prática educativa para a vida pública, entendida essa como ação política.
Argumenta-se aqui que essa é fundamental para que o processo de
consolidação de uma condição de luta por igualdades sociais, e para o
despertar da consciência política cívica, vigore sempre. Significa caminho não
só para a emersão de lideranças, mas para a reordenação de perspectivas da
organização da vida social. Sem essa, subsistirão, por exemplo, movimentos
como esses, acima mencionados? Como favorecer uma educação para a vida
pública, principalmente em contextos como aqueles contemporâneos urbanos,
caracterizados por uma concepção marcadamente alienada e individualista?
Nos próximos capítulos se discutirá a questão da educação para a
autonomia, e os rumos que essa pode tomar, em termos de uma educação
sociocomunitária, pautada por uma perspectiva freireana.
53
2. Educação para a Autonomia
Não há educação sem amor. O amor implica luta contra o
egoísmo. Quem não é capaz de amar os seres inacabados não
pode educar. Não há educação imposta, como não há amor
imposto. Quem não ama não compreende o próximo, não o
respeita. (FREIRE, 2002, p. 15)
Na atualidade, parte da movimentação dos atores sociais passou a ter
como foco, no Brasil, a luta para que os direitos já reconhecidos pela
Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro
de 1988, sejam respeitados, efetivados. Desta forma, temos como objetivo
principal no presente capítulo refletir sobre como essa luta vem se dando,
buscando encontrar caminhos que favoreçam seu sucesso. Argumentar-se-á
que uma condição necessária para tanto está na aprendizagem de formas de
organizar-se coletivamente, como na autoadvocacia, e de olhar para a
realidade de maneira crítica, ou seja, compreendendo as desigualdades de
modos de vida não como naturais, mas como historização do jogo de poder e
dominação, socialmente estabelecido.
Muitos direitos foram conquistados por meio das ações coletivas e lutas
sociais, as quais contribuíram e continuam contribuindo sobremaneira na
transição para a democracia e a sua consolidação no Brasil; na conquista
permanente dos direitos da cidadania, ainda hoje negados ou parcialmente
reconhecidos.
Entretanto, não se pode considerar que a democracia, o Estado
Democrático de Direito, esteja consolidado plenamente no país enquanto o
próprio Estado constranger os cidadãos, que estão sob sua tutela, a buscarem
o Poder Judiciário a fim de exercerem efetivamente seus direitos, já
reconhecidos legalmente, o que tantas vezes acontece quando o Poder Público
não garante aos indivíduos seu direito mínimo à igualdade de oportunidades, à
integridade física, psíquica e moral, seu direito à educação, à saúde e à
habitação, à liberdade de expressão e participação política, enfim, quando o
Estado não garante aos cidadãos o acesso ao estado de bem-estar, que inclui
o respeito à dignidade humana. Menos ainda enquanto este mesmo Estado
54
mantiver estruturas políticas que desvalorizam e sucateiam o sistema
educacional e o poder judiciário, dificultando, e muitas vezes inviabilizando, o
reconhecimento, o acesso e o alcance da efetivação de direitos.
Estamos diante de uma situação em que, ao mesmo tempo em que a
coletividade mostrou ser capaz de conquistar direitos através de movimentos e
lutas, ainda há um distanciamento entre o reconhecimento legal desses direitos
e a falta da implantação de políticas sociais e educacionais voltadas para a
construção de uma educação crítica, emancipatória e libertadora do indivíduo;
a que fomentasse, exatamente, uma organização social propulsora de outras
tantas ações coletivas e lutas sociais. Na falta dessa educação, apenas uma
pequena parcela da população tem ciência de alguns de seus direitos, os quais
estão relacionados, via de regra, a questões elementares, como o fornecimento
de medicamentos listados pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e outros de
cunho assistencialista, como é o caso do “Bolsa Família”.
Ou seja, ainda que o Direito já tenha pontos de contato com a justiça,
especialmente a social, o indivíduo que tem necessidade de que seus direitos
se transformem em fatos concretos, o indivíduo que depende da efetivação de
seus direitos para que consiga sobreviver, para em um segundo momento viver
com o mínimo de dignidade, ainda mostra não conhecer seus direitos ou os
caminhos a trilhar para sua efetivação. Outras vezes parece não se considerar
deles merecedor, tal o nível de alienação em que é mantido.
Para que tenhamos êxito em nosso tentame é imprescindível que os
indivíduos conquistem sua autonomia, e por autonomia entendemos, neste
trabalho, como uma produção histórica e social, a liberdade de o indivíduo agir
e tomar decisões com consciência e capacidade crítica, mediante o respeito à
vontade pessoal e ao grupo ao qual pertence, e assumir as responsabilidades
delas decorrentes. É esse o conceito de autonomia de Freire (2002, 2011a,
2011b), já enunciado na introdução, que a compreende como um processo
resultante do desenvolvimento do indivíduo relacionado ao fato dele tornar-se
capaz de resolver questões por si mesmo, de tomar decisões sempre de
maneira consciente e pronto para assumir uma maior responsabilidade e arcar
com as consequências de seus atos.
55
2.1. A Educação como história possível de transformação
As mudanças sociais alcançadas em decorrência das lutas e
movimentos empreendidos em todo o mundo, inclusive os relacionados direta
ou indiretamente à educação, confirmam o entendimento de Paulo Freire
quanto ao que esse denomina de “história como possibilidade”. Freire opunha-
se ao futuro como algo inexorável e entendia a história como possibilidade de
transformação, reconhecendo a “importância da decisão como ato que implica
ruptura, a importância da consciência e da subjetividade, da intervenção crítica
dos seres humanos na reconstrução do mundo” (2001a, p. 47).
Essa forma de conceber a Educação se coloca como possibilidade
outra para as teorizações feitas por diversos autores das décadas de 1970 e
1980, dentre eles Louis Althusser (Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado,
1970) e Bourdieu e Passeron (A reprodução, 1974), que apontam para o papel
reprodutor da escola, como instrumento de dominação social. Enquanto
Althusser se inspira nas teses de Marx, aqueles optam pelo referencial
weberiano, argumentando que a “função” da escola é a de reproduzir a
estrutura social através de um trabalho de "inculcação" de
um habitus favorável à manutenção de uma estrutura de classes. A propósito
de Althusser, Dore comenta (2006, p. 1):
Althusser situa a instituição educacional como um dos aparelhos ideológicos do Estado dominantes nas formações sociais capitalistas maduras (idem, ibid., p. 60-61). Como os aparelhos ideológicos do Estado reproduzem as relações de produção, então a escola realiza essa função. Por meio da aprendizagem, é massivamente inculcada a ideologia da classe dominante com o objetivo de reproduzir as relações de exploração que caracterizam a sociedade capitalista, embora esse mecanismo seja camuflado e a escola apresentada como um terreno neutro. Assim, é a ideologia que faz os sujeitos pensarem que o sistema escolar é universal, quando, ao contrário, ele serve para manter os interesses dos grupos dominantes.
Na década de 1970 chega ao Brasil a análise da escola sob o enfoque
da teoria da reprodução produzida por estudiosos norte-americanos. Os
56
sociólogos Bowles e Gintis (1976) afirmam que a escola eterniza as formas de
consciência, personalidade e de comportamento, necessárias para a
reprodução das relações capitalistas de produção. Para Carnoy (1977, p. 14) a
educação formal constitui parte da “dominação imperialista”, exercendo
atividades de acordo com os interesses dos colonizadores. As fortes críticas à
escola pública vinham de intelectuais pertencentes a países que tinham
universalizado a escola fundamental e média (Estados Unidos, França e
Inglaterra), enquanto que no Brasil sequer as primeiras séries do ensino
fundamental tinham sido universalizadas.
Freire, teorizando contra uma compreensão mecanicista - e positivista -
da história como “o retorno do mesmo”, que entende o futuro como repetição
predeterminada, inexorável, do passado, defende que a “função reprodutora”
da escola não é acontecimento inevitável. Entende que é imprescindível para a
educação popular, como um processo de superação do senso comum - do
“sempre foi assim”, do “deixa como está”, - em direção a uma compreensão
mais esclarecedora do mundo, que a coletividade deva ter suas experiências,
experiências decisórias e, por meio dessas, (re)inventar o futuro.
Argumenta-se a favor da rejeição da ideia de uma escola reprodutora da
sociedade desigual, da educação bancária, que termina por manter alienados
os oprimidos. Desta forma, a apreensão da história como possibilidade para
todos os indivíduos como sujeitos dela, e o conhecimento e compreensão da
realidade “desocultada” dos fatos passados, que construíram o mundo como é
hoje, significam a construção de uma consciência crítica. Potencialmente capaz
de transformar o marginalizado em um sujeito livre e autônomo, capaz de
interferir conscientemente na história da sociedade em que vive, de forma
ética.
Como processo de conhecimento, formação política, manifestação ética, procura da boniteza, capacitação científica e técnica, a educação é prática indispensável aos seres humanos e deles específica na História como movimento, como luta. A História como possibilidade não prescinde da controvérsia, dos conflitos que, em si mesmos, já engendrariam a necessidade da educação (FREIRE, 2001a, p. 10).
57
Groppo (2011, p. 75) atribui o termo alienação ao “jovem Marx” quando
se refere “à incapacidade dos seres humanos (dominados) em compreender os
fundamentos da realidade social, em decifrar as bases materiais e históricas do
presente […] ao tomarem como natural o que é histórico”; sendo este estado
de coisas alimentado pelos “dominadores” e pelo Estado como representante
dos interesses destes. Ou pela “sociedade burguesa”, que, para Marx (1985),
oculta ou altera a realidade por meio de ideologias coercitivas, utilizando-se de
diversos mecanismos com a finalidade de exploração contínua e duradoura dos
oprimidos. Ocorre, então, a negação da historização da opressão, dessa como
construção histórica: humana.
Na negação dessa historização decreta-se a “conformação” social, a
transformação como impossibilidade, como “beco sem saída”, discurso
alienante e castrador tantas vezes repetido pelas vias educacionais. Scocuglia
(2001, p. 48) afirma que em decorrência disso “A participação comunitária, de
classe, individual, de grupos de pais, alunos, professores, estaria impedida ‘por
decreto’”.
E a ideologia que professa a história como reprodução de desigualdades
está tão arraigada, especialmente nos “esfarrapados”, que esses pouca ou
nenhuma opção encontram para confrontar tal ideia. Ideologia, que dessa
forma, passa a ser dominante, a “viver” dentro de nós, efetivando-se em
práticas sociais que naturalizam e tornam ‘hereditários’ os mecanismos de
exclusão. Temos exemplos práticos.
Participamos voluntariamente de uma entidade sem fins lucrativos,
denominada Grupo Espírita Caminheiros, que objetiva a assistência
humanitária e o desenvolvimento social da população que vive em uma
periferia miserável da grande Campinas.
No contexto da investigação realizada, quando da apresentação de uma
proposta de inclusão digital para oito crianças com idade entre 8 e 13 anos de
idade, em 08 de outubro de 2011, percebemos que dois deles não
frequentavam a escola, porque abandonaram-na, sem que tal fato parecesse
ter causado “espanto” ou qualquer censura séria por parte de seus pais ou
responsáveis, ou mesmo temores outros que não a perda do benefício da
bolsa-família ou o a censura do Conselho Tutelar.
58
Outros, que representam a maior parte, apesar de comparecerem à
instituição de ensino com certa regularidade, mostram parecer descontentes e
sem motivação para as aulas e se dirigem à escola com o intuito de encontrar
os amigos e praticar esportes, também com o conhecimento e aquiescência
tácita de seus responsáveis. A partir desses indícios, foi criada uma espécie de
“ficha de inscrição” para o programa de inclusão digital, contendo informações
básicas sobre essas crianças, com o consentimento dos pais/responsáveis. Ao
final solicitamos que as crianças escrevessem seu nome, o que seria o
equivalente à assinatura de um documento, para que incorporassem uma
noção de seriedade, responsabilidade, compromisso com o programa. E duas
crianças informaram não saber escrever seu nome completo, mas apenas
“desenhar” seu primeiro nome, revelando, em algum grau, seu analfabetismo.
Tal fato fez com que a proposta inicial de inclusão digital - prevista para
letrados - fosse modificada, envolvendo atividades relacionadas à alfabetização
e ao letramento, com a utilização de computadores.
Consideramos que essas explanações favoreçam a compreensão da
argumentação referente à cristalização da ideologia acerca das concepções
fatalistas da história, em termos das desigualdades sociais, que se mostra tão
impregnada em nossa sociedade. Considerando-se os discursos dos adultos
responsáveis por essas crianças, colhidos no mesmo contexto da pesquisa,
num momento de diálogo direcionado à importância atribuída por eles à escola
para a vida dos filhos/dependentes, observa-se que as respostas se mostram
impregnadas pela ideologia de que a escola é necessária, resposta que aflora
quase que mecanicamente.
Contudo, as explicações desses mesmos adultos quanto ao por quê a
escola é necessária, deixa transparecer outras facetas desse pensamento: o
interesse em que as crianças aprendam o básico possível, para que alcancem
rapidamente a condição de exercer alguma atividade remunerada, a fim de que
possam colaborar para atender as despesas da família.
A ideologia de uma história de cartas definitiva e irremediavelmente
marcadas e sem esperanças fomenta e agrava a visão imediatista, causada e
agravada pela miséria econômica e pela alienação, provocando desprezo pela
educação formal. O estudo é visto como perda de tempo, já que a condição
59
econômica em que as famílias se encontram não será alterada pelo grau de
instrução de seus membros.
Concordamos com Freire (2011c, p. 33) quando afirma que “Se essa
dominação interna e externa fosse completa, definitiva, nunca poderíamos
pensar na transformação social. Mas a transformação é possível […]”, porém é
muito difícil e exige o exercício ininterrupto de fé inabalável no ser humano, na
sua capacidade de transformação, uma confiança e um amor tipicamente
freireanos. É preciso aguçar nossa capacidade de estranhamento, tendo em
vista, repetimos, que as desigualdades sociais não são naturais.
Enquanto seres humanos conscientes, podemos descobrir como somos condicionados pela ideologia dominante. Podemos distanciar-nos da nossa época. Podemos aprender, portanto, como nos libertar através da luta política na sociedade. Podemos lutar para ser livres, precisamente porque sabemos que não somos livres! É por isso que podemos pensar na transformação. (FREIRE, 2011c, p. 33).
2.2. A Educação para a autonomia e a Pedagogia da Libertação
A conscientização do oprimido por meio de uma pedagogia da libertação
das classes populares, baseada em uma política de emancipação, traduz-se na
abertura à compreensão dos mecanismos e das estruturas sociais como
formas de dominação e violência.
Não pode haver espaço para projetos políticos que não apostam na
capacidade crítica das classes populares, em uma educação para a autonomia
e para a capacidade de se auto-dirigir, uma educação que forma cidadãos
plenos ou, como defendia Gramsci, uma educação para a “contra-hegemonia
dos subalternos” (SCOCUGLIA, 1999, p. 342).
A educação de qualidade é sempre uma questão política, em que se
prioriza o ato de conhecimento em busca da consciência crítica, crendo que os
indivíduos serão capazes de reinventar o mundo, de colocar-se e agir conforme
uma postura de “sujeitos-objetos” da História, de modo a reconhecer a
natureza política desta luta, de uma “Natureza política que descarta práticas
60
puramente assistencialistas de quem pensa comprar um ingresso no céu com o
que colhe na terra de sua falsa generosidade.” (FREIRE, 2001a, p. 19). É por
isso que o educador consciente deve estar atento, observando com olhar
crítico e lúcido as práticas educacionais, e é por isso que não há pedagogia
neutra, conforme nos alerta Freire. Toda ação pedagógica é, inexoravelmente,
uma ação política, no sentido de que se trata de transformar - ou de fazer calar
- vidas.
O discurso quanto a uma educação gratuita e de qualidade para todos e
todas é tema recorrente na Educação Brasileira. Nesse sentido, quando Freire
escreve sobre isso, defendendo o lutar para construir uma tal “utopia”, ele se
refere a uma utopia “concreta” ao invés de uma utopia abstrata, uma utopia
enraizada no presente, sempre operando na “tensão entre a denúncia de um
presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser
criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens”
(FREIRE, 1997a, p. 47). E esse sonho, essa utopia, exige que o professor ou
educador supere seus próprios medos, inclusive o medo de inovar, de ser
criativo, libertador, o medo de ir contra o sistema dominante, o medo de não
ser compreendido ou aceito pelos que ainda não estão preparados para a
“desocultação” da ideologia que domina e adormece as consciências, daqueles
que não estão preparados para terem suas consciências libertadas, iluminadas.
Aqueles que sonham com uma educação popular crítica emancipadora
de qualidade, que ajuda a gerar, a criar meios que contribuam para que uma
transformação revolucionária na sociedade ocorra, não podem ter medo de ter
medo, devem encarar seu medo com naturalidade e conviver pacificamente
com ele. Sentir medo é uma manifestação de quem está vivo, tomando o
cuidado para que este sentimento jamais os domine e os paralise, porque “[…]
o medo vem de seu sonho político, e negar o medo é negar o sonho” (FREIRE,
2011c, p. 96). O medo não é uma abstração, é algo muito concreto. Ao
trabalhar contra a ideologia dominante em uma sociedade, o educador está
contestando o poder e, por este motivo, é real a possibilidade de perder o
emprego ou de sofrer outros tipos de represália. Mas se o educador está
seguro de seu sonho político em relação à educação então deverá dominar
61
este medo e estabelecer limites para o seu enfrentamento, os limites da sua
criação, descobrir até onde está disposto a se colocar em risco.
É possível conhecer esta fronteira através do chamado “mapa ideológico
da instituição”, como sugerido por Freire (2011c), que consiste em conhecer,
na prática, o espaço em que o educador poderá atuar de forma libertadora.
Brandão (2005, p. 18) afirma que “o bom de se aprender a ler-o-mundo em que
se vive é que, aos poucos, os nossos medos vão desaparecendo. Pois a gente
só tem medo é do que não entende”.
É importante que o educador tenha consciência de que está agindo
contra a ideologia dominante, está nadando contra a corrente, o que significa
correr e assumir riscos.
Coragem essa que foi demonstrada por McLaren (2007) quando,
relatando suas experiências pessoais como educador que utiliza as bases da
pedagogia crítica de Freire na universidade onde leciona - UCLA (Universidade
da Califórnia, em Los Angeles, nos conta sobre as reações adversas por ele
enfrentadas. De acusações de “comunista” àquelas de que vem “tentando fazer
lavagem cerebral na juventude norte-americana”, ao risco de ser demitido a
qualquer instante. Em que pese o fato de não demonstrar qualquer temor,
arrependimento ou sinal de alteração da direção de seu comportamento frente
a seus alunos, ele ressalta o fato de “ter tido sorte” de até o momento a
administração da universidade não ter tomado nenhuma medida visando
silenciá-lo. Ainda que sob a concordância do governo Bush, a partir de 2001,
tenha sido criado um clima de medo ao introduzir medidas legais em nove
estados para suprimir a liberdade acadêmica nas universidades, transformando
professores que seguem as bases da pedagogia freireana em “simpatizantes
do terrorismo”.
Desta forma, o educador libertador deve ter clareza política - porque
educação é política -, para que possa ter esta coragem. A coragem de quem
tem um sonho a perseguir e deseja torná-lo realidade, porque são sonhos
concretos e nos quais se tem convicção. Portanto, o professor deve se
descobrir como político e definir a favor e contra o que está educando, e
questionar-se: “Como conciliar minha prática de ensino com minha opção
política?” (FREIRE, 2011c, p. 82). Ou como diz o Gato de Cheshire, em Alice
62
no País das Maravilhas: “Se você não sabe para onde está indo, qualquer
estrada vai te levar lá”. E um educador que tenha optado em favor de uma
educação libertadora deve pô-la em prática de forma coerente, de maneira a
saber ao menos aonde quer chegar, embora nem sempre se saiba por qual
estrada... Um bom ponto de partida é não ser autoritário na relação com os
estudantes/aprendentes, mas também não cair num vazio laissez-faire, mas
ser democrático, responsável e diretivo.
Claro que o professor que se pergunta a favor de quem e contra quem está educando também deve estar ensinando a favor e contra alguma coisa. Essa “coisa” é o projeto político, o perfil político da sociedade, o “sonho” político. Depois desse momento, o educador tem que fazer sua opção, aprofundar-se na política e na pedagogia de oposição (FREIRE, 2011c, p. 82).
O educador deve também conhecer e respeitar os medos e as barreiras
construídas pelos marginalizados, chamadas de “imunizações” por Freire, sem
o que inviabilizará quaisquer dos seus esforços. O medo e as barreiras que
podem surgir nos “corações”, nas almas, dos oprimidos acabam por gerar a
não crença em suas capacidades. Geralmente isso se traduz em sentimentos
pessoais e coletivos de baixa autoeficácia que, conforme Bandura (2008, p.
101), são, essencialmente, “percepções que os indivíduos têm sobre suas
próprias capacidades […] proporcionam a base para a motivação humana, o
bem-estar e as realizações pessoais.”
E, em consequência desses sentimentos, muitos indivíduos oprimidos,
ao invés de se irmanarem verdadeiramente com outros em semelhante
situação para juntos, fortalecidos, buscarem a solução de seus problemas,
evitam o contato social com os que já despertaram da letargia causada pela
opressão e também por aqueles que já se desalienaram e passaram a lutar
pela liberdade e autonomia de si próprios e da coletividade. Porque supõem
que serão rejeitados ou ridicularizados, ou porque, desanimados, não
vislumbram perspectivas para qualquer alteração positiva em relação as suas
condições de existência.
Observa-se a cristalização da baixa autoeficácia em populações de
camadas populares, sentimento nomeado por Freire de “autodesvalia”, ou de
63
inferioridade; características da alienação que amortece o ânimo criador.
Outrossim, o desânimo e a “autodesvalia” são alimentados pela propaganda
ideológica capitalista neoliberal, que discursa no sentido de que qualquer
pessoa pode progredir quanto desejar, pode alcançar o “sucesso financeiro”,
basta trabalhar duro, tendo em vista que vivemos sob a égide política da “livre-
iniciativa” e do capitalismo democrático, que conferiria oportunidades justas e
equânimes a todos. Contudo, se o indivíduo fracassar, a culpa é
exclusivamente sua. E fracassam muitos, sem ao menos se atreverem a tentar,
porque marcados pela crença num estado “necessário” de conformação social.
Entretanto, de acordo com a própria dialética freireana, dentro de cada
“oprimido” vive um opressor, que pode, desde que em condições “apropriadas”,
oprimir aos demais. Observa Andreola (apud STRECK, 1999, p. 73):
[…] a opressão se configura como uma “dualidade existencial” dos oprimidos, que se tornam seres duplos e contraditórios. Eles hospedam em si o opressor, num processo de introjeção da imagem do mesmo, que se traduz em sentimentos opostos: de rejeição, aversão e ódio, mas, ao mesmo tempo, de admiração, adesão e identificação – torna-se como ele, transformando-se, inclusive, em opressores de outros.
Para o oprimido, plenamente contagiado pelas ideias dominantes e
esfarrapado por uma economia de mercado extremamente excludente e
desumanizadora, “ter” é muito mais importante do que “ser”, porque é somente
através do “ter” que ele deixará de ser uma “coisa” para tornar-se alguém: um
opressor.
O sistema, que hipnotiza profundamente os dominados, alterando a
história e ocultando a realidade que fundamenta e sustenta a globalização
capitalista selvagem, que visa à permanência desses indivíduos oprimidos
como seres inferiores, leais, irremediável e perpetuamente submetido aos
dominadores, falsamente generosos, violenta, limita, interdita, proíbe o
oprimido de ser mais. A única forma que o dominado entrevê de ser ouvido e
respeitado é se submetendo e entrando no jogo do mercado capitalista, no qual
o capital ganhou o status de sujeito, e transformando o dominado em zumbis,
pelas mercadorias que supostamente lhe pertencem. Portador de alguma
riqueza, conquista a posição de consumidor e passa a ser respeitado e
64
admirado pelos oprimidos. Torna-se um opressor alienado, que continua sendo
conduzido pela ideologia dominante, mas agora satisfeito com a sua nova
condição. Passa a adotar uma postura individualista e egoísta, vampirizado e
encantado pelas mercadorias e pela ânsia desenfreada de seu acúmulo.
Na esfera da sociabilidade, levantam-se utilitarismos como regra de vida mediante a exacerbação do consumo, dos narcisismos, do imediatismo, do egoísmo, do abandono da solidariedade, com a implantação, galopante, de uma ética pragmática individualista. É dessa forma que a sociedade e os indivíduos aceitam dar adeus à generosidade, à solidariedade e à emoção com a entronização do reino do cálculo (a partir do cálculo econômico) e da competitividade (Milton SANTOS apud GROPPO, 2011, p. 96).
Aqueles que se submetem passivamente ao poderio da ideologia
capitalista não lutam contra ela, mas também não exaltam Mamom ou o deus
Moloch4, são considerados e rotulados como “preguiçosos”, o cúmulo do ser
sem valor, numa sociedade em que se trabalha para a exploração e a
acumulação do capital, porque os dominados não demonstram iniciativa para
saírem da miséria. Impressionante que não são apenas os dominadores que
assim os rotulam, mas também outros oprimidos e explorados. Uma vez mais
nos deparamos com a figura do dominado exercendo a opressão em
decorrência da internalização das ideias dominantes, que conduzem seus
pensamentos, atos e hábitos sem que se apercebam. Sobre esses
“preguiçosos” assim se coloca Freire (2011a, p. 62):
[…] é o homem simples esmagado, diminuído e acomodado, convertido em espectador, dirigido pelo poder dos mitos que forças sociais poderosas criam para ele. Mitos que, voltando-se contra ele, o destroem e aniquilam. É o homem tragicamente assustado, temendo a convivência autêntica e até duvidando de sua possibilidade. Ao mesmo tempo, porém, inclinando-se a um gregarismo que implica, ao lado do medo da solidão, que se alonga como “medo da liberdade”, na justaposição de indivíduos a quem falta um vínculo crítico e amoroso, que a transformaria numa unidade cooperadora, que seria a convivência autêntica.
4 Mamom e Moloch são deuses ou demônios representantes ou relacionados à avareza, à
riqueza e à iniqüidades, conforme interpretações de textos bíblicos.
65
É lamentável, porque a conscientização, segundo Freire (2011a), é o ato
no qual o indivíduo reconhece-se a si próprio, distanciando-se do animal, em
que reconhece ao outro e ao mundo, para então passar a poder entender,
pensar, optar e decidir para agir. O educador, na busca incessante da
manutenção da transformação crítica, que potencia uma ação emancipadora,
se reinventa para que a prática educativa, notadamente na educação popular,
seja eficiente. O ensino libertador não pode ser padronizado porque o que é
eficiente, gerando resultados satisfatórios para um grupo, pode fracassar em
outro, aparentemente semelhante. Há uma série de variáveis que interferem
tanto na aquiescência ao convite libertador quanto na sua resistência (ou não)
à transformação. “É a ação criativa, situada, experimental, que cria as
condições para a transformação, testando os meios de transformação” (SHOR,
2011c, p. 51).
E os fracassos não podem contaminar negativamente os
professores/educadores ao ponto de firmarem-se numa pedagogia da
“transferência” de conhecimento. Devem ter paciência e acreditar. Freire
(2011c, p. 50) nos alerta que “A ideologia tradicional é tão poderosa que
precisamos de êxitos para sentir que estamos certos, sobretudo os jovens
professores”. O fracasso deve ser encarado com naturalidade pelo professor
porque ele não pode impor a pedagogia progressista libertadora contra a
vontade de quem não deseja recebê-la.
Há muito tempo os estudantes/aprendentes estão acostumados com
uma ideologia dominante, construtora de uma política pedagógica baseada em
uma “aprendizagem” passiva e rejeitam qualquer mudança que represente o
despertamento crítico do indivíduo através do esforço intelectual. Os
estudantes entorpecidos e habituados a serem objetos-receptáculos e
depósitos passivos de informações, ideias e valores prontos têm dificuldade em
entender e acreditar em um professor/educador que não lhes empurre o
conhecimento goela abaixo, que os respeite verdadeiramente e os trate como
sujeitos dentro do processo. Ademais, os educadores devem ter consciência de
que não podem, sozinhos, transformar a sociedade.
Mas a educação pode transformar as pessoas que, por sua vez,
transformam o mundo. Os educadores devem reconhecer seus limites e
66
também os limites da educação libertadora e chegar até esses limites, porque a
transformação social é feita de muitas tarefas, dentre as quais está situada a
tarefa do educador. Freire diz que “a educação não é a alavanca da
transformação social, mas sem ela essa transformação não se dá” (1997b, p.
35).
Escutar, refletir e engajar-se, com responsabilidade, ética e estética,
conhecimento científico e disciplina, raiva, rebeldia, coragem e indignação, com
esperança e paciência impaciente. O professor/educador deve desenvolver
uma educação dedicada a contribuir com a transformação da sociedade,
desvelando a realidade opressora de nossa sociedade, “desocultando” o que
se passa, como e por que, além de situar na história o surgimento de tais
condições. Não pode ter medo de questionar o conhecimento acadêmico e o
senso comum e deve ter claridade política para saber lidar com a perspicácia
política dos dominadores.
É muito importante que o educador parta do conhecimento do aluno no
processo de ensino-aprendizagem, sem descrença, sem menosprezo,
respeitando seus sonhos, suas frustrações, seus medos, desejos e dúvidas. A
aprendizagem é mais eficiente se os novos conhecimentos a serem
construídos forem relacionados com os saberes anteriores dos
alunos/aprendentes. O educador deve dialogar. A educação só é possível
quando o educador educa ao educando e o educando ao educador. O objetivo
do professor é construir a autonomia juntamente com o aluno/aprendente,
horizontalmente. Esta é a finalidade da educação.
Freire pensava que a educação e a pedagogia realizam-se via diálogo,
que prioriza o ato de conhecimento em busca da consciência crítica. O diálogo
no sentido freireano, não é mera técnica. Um diálogo que engana porque a sua
prática nos parece simples, mas não é. Para Buber (1982) o diálogo genuíno,
que não precisa estar revestido de palavras, só se dá quando em condição de
plena reciprocidade, quando o indivíduo experiencia a relação também “do lado
do outro”, sem, contudo, abdicar da especificidade própria. Para Freire, ensinar
é uma forma de transformação dialética tanto do professor/educador quanto do
estudante/aprendente, em que professores atentos podem aprender muito com
os estudantes no silêncio, através de seu comportamento, por sua condição,
67
enquanto a fala deve ser tomada “como um desafio a ser desvendado, e nunca
como um canal de transferência de conhecimento” (2011c, p. 74).
Estamos habituados ao “conhecimento” periférico e memorizado e não
ao diálogo ético, diálogo da investigação, da pesquisa, do “desocultamento”.
Diálogos estes que estão intimamente ligados à criticidade, sem o que não há
emancipação e não há verdadeira democracia, verdadeira educação
democrática que, por sua vez, deve ser fundamentada na crença no ser
humano. A crença de que o excluído deve discutir seus problemas e debatê-
los, analisar sua realidade juntamente com outros, formar uma discussão
criadora, trocar idéias, trabalharem-se mutuamente, a fim de chegar aos meios
para o pensar autêntico, aquele que abre perspectivas e novos horizontes de
possibilidades. Que confere autonomia.
Os professores/educadores não podem aceitar que tolham seu dever de
ajudar o aprendente a desvelar o mundo. Não se pode ficar escondido atrás de
um ensino conteudista, enquanto tantas questões necessárias à vida precisam
ser discutidas, debatidas, aventadas. Uma educação libertadora e para a
autonomia significa também lutar incansavelmente para transformar para
melhor a escola pública, promover sua democratização e a qualidade, lutando
contra todas as formas de elitismo e de autoritarismo e contra todos os
tentáculos perversos de exclusão. Para tanto, é imprescindível que o educador
corajoso tenha, além da claridade política já evidenciada, coerência,
competência pedagógica e científica, para que possa confrontar os atuais
desafios que lhe estão postos sem um otimismo ingênuo e/ou um pessimismo
fatalista. Mas encarar com inteligência a história como possibilidade. Desta
forma, para que a pedagogia libertadora e emancipadora seja eficiente, tanto
no âmbito classificado “oficialmente” como formal quanto no não formal, é
fundamental que o educador tenha uma boa formação, pois há “saberes
necessários à prática educativa”, como dizia Freire (2002, p. 51).
Acreditamos que a classificação (equivocada) do sonho de uma
“educação pública popular”, uma “escola pública cidadã”, como quimérico tem,
basicamente, duas origens: a incapacidade do ser humano em amar; e a falta
de competência da maior parte daqueles que desejam educar de forma crítica
e libertadora. O amor, conforme professado por Freire, um amor ativo,
68
transformador, dialogal, participante, generoso, humilde, responsável, um amor
que não espera ser amado e não aguarda recompensa alguma, que não
espera nada em troca.
Em relação às competências profissionais é imprescindível que a política
educacional brasileira confira condições ao educador para que ele tenha, além
da adequada formação técnica, a criação de condições para seu
aperfeiçoamento contínuo. Uma formação continuada na qual seja realizada
constantemente uma reflexão crítica sobre a sua prática, e que lhe seja paga
uma remuneração digna, também, conforme afirma Gadotti ao descrever o que
Freire considerava necessário para ser professor (2007, p. 44), em uma quase
transcrição dos escritos deste em a Pedagogia da Autonomia:
[…] rigorosidade metódica, pesquisa, respeito aos saberes dos educandos, criticidade, ética e estética, corporificar as palavras pelo exemplo, assumir riscos, aceitar o novo, rejeitar qualquer forma de discriminação, reflexão crítica sobre a prática, reconhecer e assumir a identidade cultural, ter consciência do inacabamento, reconhecer-se como um ser condicionado, respeitar a autonomia do ser do educando, ter bom senso, ser humilde, tolerante, apreender a realidade, ser alegre e esperançoso, estar convicto de que mudar é possível, ser curioso, ser profissionalmente competente, ser generoso, comprometido, ser capaz de intervir no mundo. Ensinar exige liberdade e autoridade, tomada consciente de decisões, exige saber escutar e reconhecer que a educação é ideológica, exige disponibilidade para o diálogo e, finalmente, exige querer bem aos educandos.
2.3. Formas, tempos e espaços para uma Pedagogia da Libertação
O desenvolvimento da educação libertadora pode se dar em diferentes
espaços e tempos educacionais. Um desses está no interior dos movimentos
sociais, local onde Freire gostava de trabalhar. Os movimentos sociais ou
“marchas”, como a esses se referia Freire, marcha dos que não têm escola,
marcha dos que se recusam a uma obediência servil, marcha pela qualidade
na prestação de serviços públicos à saúde, marcha dos que querem ser e
estão proibidos de ser, marcha pela ecologia, marcha pela decência, marcha
69
por uma educação pública popular e crítica, dentre outros, representam
expressões da vida política e cívica do país, porque é preciso “brigar”, no
sentido de empreender a organização pública dos sujeitos, para se consiga
conquistar um mínimo de transformação social. Essas marchas, esses
movimentos não são desmobilizadores da ordem, como a ideologia dominante
pretende que sejam percebidas por aqueles que deles não participam. Freire
diz que “Na intimidade desses movimentos, temos aspectos da educação
libertadora que algumas vezes não percebemos” (2011c, p. 70).
Contudo, não basta apenas cultivar as ideias de Freire para se
considerar “freireano”. “Isso exige, sobretudo, comprometer-se com a
construção de um ’outro mundo possível‘. Sua ’pedagogia sem fronteiras‘ é um
convite para transformar o mundo” (GADOTTI, 2007, p. 45), seja nos
ambientes escolares formais ou não-formais e em qualquer coletividade, que
marcha lutando para ter seus direitos reconhecidos ou para ver seus direitos
respeitados. Tendo em vista que os dominadores têm o poder de usufruir com
facilidade de seus direitos, enquanto que os “esfarrapados” têm dificuldade
para verem respeitados e efetivados seus direitos mais elementares. Os
movimentos sociais representam, na atualidade, uma das mais efetivas
manifestações políticas em decorrência de gozarem de maior autonomia,
dinamismo e mobilidade pela relativa distância do controle oficial, justamente o
que falta nos ambientes escolares formais, por exemplo.
Apreciando um outro lado da questão, deve-se ter em vista que educar
para a liberdade, para a autonomia do indivíduo, significa também entender
que a preocupação central de Freire, ao longo de seus estudos, foi sempre
com o problema epistemológico, visando, mais do que um método pedagógico,
constituir um novo método de conhecimento.
A proposta da “iluminação5”, enquanto processo de conhecimento da
realidade, de como a realidade se forma e se constitui, para que sejam
conhecidos pelos explorados os mecanismos e os agentes da opressão e da
exploração econômica, pode e deve ser realizada nos ambientes coletivos,
formais ou não. Entretanto, “A questão, então, é como desenvolver um tipo de 5 A “iluminação” para Freire se aproxima do Iluminismo no sentido estrito de que busca
desligar-se dos jugos do passado e da verdade pré-fabricada, reivindica a liberdade, a autonomia do indivíduo por meio da razão que busca dissipar as trevas do dogmatismo. Tudo deve ser submetido ao espírito crítico.
70
leitura crítica ou compreensão crítica da sociedade, mesmo face à resistência
dos estudantes e da classe dominante” (FREIRE, 2011c, p. 81), tendo em vista
que não nos convertemos a essa ou àquela concepção epistemológica - a
compreensão que todos temos quanto ao que é o real - apenas em decorrência
de algumas conversas ou discursos que ouvimos, tratando-se de um fenômeno
muito mais complexo e que vai ocorrendo pouco a pouco. Principalmente com
a experiência e vivência que o indivíduo vai construindo, essencialmente
quando se engaja em algum movimento social, porque, então, em companhia,
começa a perceber, a apreender os mecanismos e o modus operandi das
ideologias, de como essas têm relação com a educação e que isso tudo tem
algo a ver com a política e a configuração da realidade.
Contudo, Puiggrós (apud STRECK, 1999, p. 103) alerta que, para Freire,
“Os fatos imediatamente apreensíveis não constituem um saber crítico. Esse
saber começa a ser construído quando se apreende o conjunto das
contradições,” uma vez que a reflexão crítica da realidade é, simultaneamente,
dialética e inovadora. Então haverá um processo de “iluminação” que
despertará o indivíduo para a sua transformação. E esse processo se dá tanto
com o educador quanto com o educando, porque os dois, juntos, são os
agentes da educação libertadora, que implica na iluminação da realidade.
Ambos estão em constante transformação, estão se tornando “algo mais”
durante o processo de conhecimento, sendo esta uma das mais importantes
características do rigor criativo na educação dialógica. Freire (2011c, p. 141),
comentando criticamente sobre a observação passiva do objeto, diz: “Se você
não muda, quando está conhecendo o objeto de estudo, você não está sendo
rigoroso.” Segundo Freire, o indivíduo deve tentar interpretar a realidade, deve
conhecer a razão de ser que explica o objeto, e na medida em que ele se
aproxima criticamente do objeto observado e consegue desenvolver a sua
compreensão sobre ele passa a perceber que o objeto não é porque ele está
se tornando, tendo em vista “que o objeto não é algo em si mesmo, mas está
dialeticamente se relacionando com outros que constituem uma totalidade.”
(2011c, p. 141)
A questão do rigor a que nos referimos corresponde à outra dificuldade
encontrada na prática de métodos libertadores, porque desconhecida sua
71
estrutura, importância e significado. Notadamente quando comparado com o
programas educacionais padronizados e “bancários”, que negam o exercício da
criatividade entre educadores e educandos, que desencoraja os educandos a
serem críticos, que professa o estudo mecânico e de memorização e comanda
e controla a distância suas atividades; o que não ocorre, ou acontece com
menor intensidade, fora dos ambientes formais. Freire diz que esta dificuldade
decorre do fato de que os educadores, por estarem inseguros, pois
acostumados a obedecer a ordens, a não serem responsáveis pela própria
formação, a se recriarem, a si mesmos e a sua sociedade, quando chamados a
uma ação educativa que se configure como pró-ativa, entendem que não há
rigorismo neste processo libertador, por não haver autoritarismo e rigidez nele
envolvidos. “Não aprenderam como organizar sua própria leitura da realidade e
dos livros, entendendo o que leem criticamente” (FREIRE, 2011c, p. 132). Sem
liberdade não há criatividade, mas a abordagem dialógica é permanentemente
muito séria, exigente e rigorosa. Shor, dialogando com Freire sobre a
dificuldade de o professor romper com as velhas e internalizadas formas
tradicionais de ensino baseadas na transferência autoritária e bancária de
conhecimento, afirma:
As autoridades dificilmente abandonarão seu “rigor” porque ele é um modelo autoritário de educação que se ajusta bem ao controle de cima para baixo. Mesmo, porém, que um desvario lá do alto fizesse com que as autoridades abrissem a porta ao ensino transformador, isso não libertaria os professores e alunos, automaticamente, para que tivessem um ensino dialógico. Só criaria as condições para se inventar essa nova educação (2011c, p.135)
Ademais, consideramos plenamente compreensível e legítima a
preocupação e a angústia de educadores que desejam conferir andamento
dialógico, libertador, crítico e emancipatório em suas práticas educativas. Mas
é preciso considerar que podem não alcançar o êxito desejado, seja em
decorrência do desconhecimento dos conceitos e métodos da educação para a
autonomia, da pedagogia freireana e/ou da maneira como esta deve ser
aplicada, seja por falta de competência e domínio técnico, ou até em
decorrência desse educador pensar equivocadamente que se libertou, ele
próprio, das amarras e dos tentáculos ideológicos. Também pela opressão que
72
a política educacional impõe tanto aos educadores quanto aos indivíduos
dominados. Os educadores precisam fazer malabarismos em alta velocidade
para conseguirem “dar” todo o conteúdo que está delimitado inexoravelmente
no programa e na ordem prescrita. São pressionados a adotar determinados
livros didáticos, quando o material já não se encontra apostilado, com
direcionamentos que “engessam” a prática docente, dentro dos parâmetros
desse ou daquele “sistema” de ensino. Não há tempo para revisões e
dedicação maior aos “retardatários”, que são menosprezados. Todo esse
processo é rastreado, monitorado e controlado através de testes e avaliações
externas ao processo cotidiano de ensino-aprendizagem, sem que o professor
tenha tido a oportunidade de participar da sua elaboração. Shor (2011c, p.
147), expõe a sua preocupação quanto ao assunto:
Os professores que se afastam desse procedimento temem ficar mal se seus alunos forem mal em testes padronizados ou nos cursos seguintes. Sua reputação poderia decair. Poderiam ser despedidos. A idéia de analisar uma quantidade pequena de material não tradicional defronta com a preocupação com o currículo que angustia permanentemente o professor.
Ou seja, o educador libertador, que utiliza parte da aula para
considerações e leituras com interpretações críticas, em que a participação
efetiva de todos é incentivada, o educador que se importa e é comprometido
com uma política pedagógica baseada na autonomia do indivíduo, que procura
despertar a consciência ética pode acabar penalizado pelos mecanismos de
avaliação reprodutores e conservadores das provas e exames nacionais.
A responsabilidade daqueles que acreditam na educação libertadora é
muito grande e, portanto, eles devem ser muito exigentes consigo mesmos e
devem estar dispostos a superar obstáculos para que sua prática não seja
corrompida. Primeiro porque, do ponto de vista dos educandos, uma
experiência dialógica que não se baseia na seriedade e na competência,
provoca consequências muito piores do que uma experiência “tradicional”, na
qual o professor simplesmente “transfere conhecimento”, em que a realidade
deve ser apenas descrita e observada, não questionada. Foucault (1996)
alertava para o fato de que um discurso libertador pode se tornar opressor,
porque os indivíduos vão apreendendo ideias e valores que indicam o papel
73
(via de regra propedêutico) que ele precisa desempenhar na sociedade,
notadamente através das escolas e da mídia, ditadas como se fossem o
caminho da verdade. E essas ideias e valores podem estar camuflados para
atender aos interesses daqueles que detêm o poder. É um risco que o
educador corre, inclusive aquele que se considera crítico e libertador.
“Quanto mais seriamente você está comprometido com a busca da
transformação, mais rigoroso você deve ser, mais você tem que buscar o
conhecimento […]” (FREIRE, 2011c, p. 118). E essa seriedade, rigorismo,
competência, visão crítica e responsabilidade devem ser aplicados em
qualquer ambiente que se proponha a desenvolver a educação libertadora. E
não é porque o ambiente não seja formal ou “oficial” é que essas condições de
eficácia devam ser flexibilizadas ou negligenciadas; o rigor precisa ser
apreendido e internalizado por aqueles que optam pela “implantação” da
educação para a autonomia.
O educador consciente, aquele que se preocupa e procura uma possível
mudança social em seu país, deve construir, re-criar sua pedagogia crítica
libertadora ciente de que os problemas educacionais não são apenas técnicos
nem apenas pedagógicos, mas também políticos e econômicos. Gutiérrez
(1985, p. 87) afirma, a propósito, e tendo como eixo o binômio dialético
opressão/libertação:
A libertação do subconsciente supõe que se vá mais longe do que a simples superação da dependência econômica, social e política. Mais profundamente, é necessário ver o futuro da humanidade como um processo de emancipação do homem ao longo de toda a história, processo orientado para uma sociedade qualitativamente diferente, na qual o homem se veja livre de toda escravidão e seja artífice de seu próprio destino. […] Mas para que esta libertação seja plena e autêntica, ela deverá ser assumida pelo povo oprimido mesmo, e para isso deverá partir dos valores próprios deste povo. Somente neste contexto é que pode ser conduzida a termo uma verdadeira revolução cultural.
Assim, o esfarrapado, o marginalizado, o oprimido, o dominado terá a
chance de transformar-se. De um objeto desagregado, alienado, inconsciente,
descomprometido com os outros indivíduos em um sentido humano, em sujeito
fraterno, solidário, que assuma um papel consciente e ativo na transformação
74
de sua vida, de sua comunidade, da sociedade. Que deixa a sua postura
subalterna e passa a agir com a finalidade de libertar tanto os oprimidos quanto
os opressores, porque a realidade atua sobre ambos, desumanizando-os e
imergindo suas consciências na ideologia da exclusão. Deve ter muita coragem
para lutar. Negar, recusar parte do legado que recebeu e produzir algo novo,
diferente, resgatando o seu direito de “ser mais”.
2.4. A Educação para a autonomia: a autoadvocacia como possibilidade de uma Pedagogia da Libertação
Objetivando a construção de formas possíveis de efetivar uma
pedagogia libertadora, que tenha como cerne a transformação dos sujeitos e
de sua coletividade para o desenvolvimento da autonomia, o que propomos é a
investigação da autoadvocacia como práxis educativa. Trata-se de proposta
cuja base epistemológica é eminentemente freireana, de acordo com os
pressupostos já antecipados nesse capítulo. Com a peculiaridade de que o viés
principal se mostra voltado para a educação que organiza e mobiliza os
sujeitos para o acesso e a efetivação de direitos já legitimados numa sociedade
“cidadã”, tanto no âmbito administrativo quanto judicial, mas “não-legitimados”
como cotidiano vivido.
Na concepção a ser aqui defendida, para que a autoadvocacia ocorra,
em essência, é preciso que o educador e o aprendente se coloquem lado a
lado, como partícipes de uma mesma sociedade que ainda “amadurece” em
termos de justiça social, que protege e castra, numa mesma face. E que, por
meio do diálogo (freireano), compreenda as necessidades, as expectativas, os
medos e limites mútuos, respeitando-se integralmente. É ora o educador quem
detonará o início do processo, por ter mais conhecimento e experiência nos
meandros do poder; ora será o educando, que sente, vive e sofre as
consequências desse. Não sendo ambos a mesma coisa, pois é preciso a
tensão dialética de identidades diferentes para que um processo legítimo de
transformação aconteça, educador e aprendente têm instrumentos culturais e
75
caminhos diversos para agir no processo de iluminação da realidade e na luta
pela efetivação dos direitos dos cidadãos.
Mas esses educadores não são missionários, não é imprescindível que
sejam técnicos, contudo também não são “meros” educadores, mas devem ser
ou tornarem-se militantes, no sentido político desta palavra. Devem tornar-se
ativistas críticos, assim como todos aqueles que pretendem tornar-se
educadores libertadores. A militância significa re-criação, crescimento
permanente, não apenas profissionalmente, mas implica em uma
transformação ao mesmo tempo social e de si mesmo.
No próximo capítulo o tema da autoadvocacia como possibilidade de
pedagogia libertadora pela conquista da autonomia, será desenvolvido, tendo
como base a investigação realizada durante a ação social do Grupo Espírita
Caminheiros.
2.4.1. A Autoadvocacia
A história demonstra que sempre existiram indivíduos oprimidos. Em
grande parte, pode-se dizer que talvez representem a maior parte da
população, e que, de alguma forma, garante a manutenção do status quo dos
opressores. E para que este estado não se altere, porque contrário aos
interesses desses, estes alijam os oprimidos de seu direito inalienável,
irrevogável e “garantido” constitucionalmente de serem livres, de
estabelecerem escolhas conscientes e de direcionarem a sua própria vida.
Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua “generosidade” continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A “ordem” social injusta é a fonte geradora, permanente, desta “generosidade” que se nutre da morte, do desalento e da miséria. (FREIRE, 2011b, p. 17).
A autoadvocacia se apresenta como um conceito complementar às
teorias que buscam orientar ações sócio-políticas de indivíduos e grupos
76
desempoderados, oferecendo-lhes a oportunidade de serem advogados de si
mesmos, dai o termo autoadvocacia.
O termo autoadvocacia tem sua origem no campo jurídico e o nome
remete ao exercício de atividade advocatícia, que contém em sua essência a
ideia de representação e defesa dos interesses do outro, ou seja, aquele que
teve um direito seu desrespeitado e não é capaz de buscar a efetivação de
seus direitos em nome próprio, não pode falar por si próprio, e se vê obrigado a
contratar um expert. Esse presumivelmente tem mais conhecimento e
autoridade para representá-lo. Entretanto, não é esse o conceito que mais
propriamente se aplica ao termo autoadvocacia.
A advocacia, em seu conceito tradicional, conforme acima mencionado,
é o oposto da autoadvocacia, na medida em que na primeira, durante a
representação dos interesses do cliente-cidadão, há sempre o risco de o
profissional, ainda que tenha compreendido o móvel da demanda e tenha uma
leitura correta de suas necessidades e do bem da vida perseguido, aja
involuntariamente com paternalismo, projeções e manipulações inerentes à
própria estrutura da relação advogado-cliente. Enquanto que na autoadvocacia
não há a incapacitação do indivíduo ou grupo, mas, pelo contrário, há o seu
empoderamento, um impulso à auto-ajuda e capacitação, para que tenham
poder sobre as suas próprias vidas, assumam o controle dessas, e sejam
responsáveis por suas ações (SEITHEL, 2004).
O pesquisador entende ser oportuno esclarecer que no curso desta
pesquisa encontrou-se preponderância de materiais de pesquisa norte-
americanos sobre a autoadvocacia em relação a qualquer outra nacionalidade;
sendo escassos em quantidade e qualidade, ainda que considerados em
conjunto. Não foi localizado nenhum livro brasileiro ou escrito em português
que tratasse sobre o assunto, mas apenas trabalhos científicos, notadamente
de mestrado. Também notou-se o predomínio absoluto, senão a totalidade, da
preocupação do empoderamento de indivíduos e grupos de pessoas com
algum tipo de deficiência, especialmente intelectual, por meio da
autoadvocacia. O pesquisador não obteve êxito em encontrar a abordagem do
tema autoadvocacia em indivíduos que não apresentassem algum tipo de
deficiência física ou intelectual.
77
Não sem esforço, o pesquisador conseguiu fazer pontes entre os
materiais pesquisados, especialmente daqueles que tratam acerca da
invisibilidade, exclusão e, de alguma forma, da opressão que são vitimadas as
pessoas deficientes, com o presente estudo. Embora a motivação dos grupos
de autoadvocacia de deficientes seja diversa da ora estudada, já que as
pessoas deficientes são excluídas pela ideologia dominante por não se
enquadrarem no conceito elitista e discutível de “normalidade”, observamos
que os oprimidos das periferias também não são percebidos como
completamente “normais”; em decorrência, notadamente, de sua condição
econômica e de “inferioridade” social.
Outrossim, coerentemente com a teoria e prática educacional de Paulo
Freire, a referência aqui assumida na construção da teoria e prática da
autoadvocacia, verificou-se que o desenvolvimento da maior parte das teorias
da autoadvocacia pesquisadas defende a independência/autonomia dos
sujeitos. Os discursos visam ultrapassar o perigoso terreno da imposição
dissimulada ou inconsciente de profissionais ou dos sujeitos tidos como
“normais” sobre os “anormais”. Ainda assim é importante destacar, já que
considerado muito interessante pelo pesquisador, que percebeu que além das
questões relacionadas à “formação” e capacidade dos educadores e à
ideologia predominante, foi identificado mais um importante fator que, na
opinião do pesquisador, agrava a já difícil aplicação da autoadvocacia a
pessoas com deficiências físicas e intelectuais: os próprios parentes ou
cuidadores agem como reforçadores da invisibilidade e exclusão das pessoas
deficientes, na medida em que, na realidade, diferentemente do discurso,
demonstram que não os consideram capazes de tomar decisões por conta
própria, sem a sua “benéfica” interferência, e assumir as responsabilidades
delas decorrentes.
Segundo Garner e Sandow (1995, p. 1), os primeiros movimentos de
autoadvocacia nasceram na década de 1980, na Grã-Bretanha, na Dinamarca
e no Japão. Nelis (apud SCHALOCK, 2002) assevera que a autoadvocacia
originou-se em 1968 na Suécia, com uma organização de pessoas com
deficiências de desenvolvimento, formada por pessoas deficientes e seus pais.
78
O seu lema era “Nós falamos por eles.”6, ou seja, os pais falavam por seus
filhos. No ano de 1968, acompanhando toda a movimentação pela liberdade de
direitos individuais da época, essa organização patrocinou uma reunião com a
participação das próprias pessoas deficientes, sendo que essas decidiram que
queriam assumir falar por si mesmas. Elaboraram, então, uma lista de
mudanças que desejavam que fossem implementadas nos serviços que
utilizavam, conforme suas necessidades, entregando-a à organização para que
tomassem as providências possíveis.
Desta reunião surgiram muitas outras, as quais foram realizadas em
todo o mundo, até que uma das pessoas deficientes participantes, externando
um sentimento coletivo, cansadas de ver apenas os profissionais dominarem a
organização e as discussões que se referiam à situação de vida dos
deficientes, disse “Estou cansado de ser chamado de retardado, somos
pessoas em primeiro lugar.” (Id., 2002, p. 222, tradução nossa). Foi assim
fundada, a 08 de janeiro de 1968, em Oregon/Estados Unidos, um movimento
chamado de “People First”, por meio do qual as pessoas deficientes finalmente
pudessem se reunir, se fortalecer, tomar decisões e assumir as suas
responsabilidades. Seriam, enfim, ouvidas e teriam suas demandas atendidas
por meio da luta solidária, sem a interferência das pessoas não deficientes.
A autoadvocacia se fortaleceu a partir do final dos anos 1970, quando foi
disseminada para outras partes do mundo, além dos Estados Unidos, a
exemplo de Canadá, Grã-Bretanha, Austrália e Suécia, e atualmente se
fortalece e cresce cada vez mais, muito graças ao “People First”. Movimento e
organização que continua atualmente presente e ativo em diversos países e
que já organizou conferências internacionais na Inglaterra (1988 e 2001),
Canadá (1993) e Alaska (1998), as quais já contaram com a participação de
mais de trinta países diferentes.
Seithel (2004) afirma que a autoadvocacia, como atividade sócio-
política, nasceu das reformas sociais do século XIX e tinha como objetivo
estabelecer uma sociedade mais justa. Este mesmo autor assevera que
atualmente a autoadvocacia é muito utilizada em trabalhos político-sociais de
ativistas políticos, assistentes sociais, ecologistas, especialistas em educação e
6 Disponível em: http://www.peoplefirstsv.com/people_first_history.htm Acesso em: 31 mai. 2012.
Tradução nossa.
79
saúde, entre outros profissionais, em favor de indivíduos e grupos
desfavorecidos, notadamente de pessoas com deficiência intelectual ou física.
A autoadvocacia tem o pressuposto da auto defesa de indivíduos e
grupos independentes, que lutam juntos e conscientemente para conquistar a
efetivação de seus direitos e também novas demandas. Esses indivíduos e
grupos colaboram mutuamente para assumir o controle de suas vidas, visando
uma vida mais digna e uma sociedade mais justa. A autoadvocacia, em
parceria com a educação freireana, norteia os indivíduos quanto aos seus
direitos e deveres, busca empoderá-los e ao mesmo tempo torná-los
responsáveis pelos seus atos, procura, por conseqüência, reformular as suas
crenças de auto eficácia (BANDURA, 2008). Também tem o objetivo de
conscientizar os indivíduos sobre a ideologia dominante, que os aliena e
oprime, e a maneira pela qual são direta e indiretamente afetados por ela,
localizando-os neste contexto.
A autoadvocacia tem, ainda, a pretensão de conhecer esses indivíduos
oprimidos e, junto com eles, as suas próprias necessidades, interesses e
expectativas, que muitas vezes se mostram “adormecidas” ou sufocadas. E
ensinar a maneira pela qual poderão seguir para encaminhá-las, se livremente
o desejarem. Espera-se que suas escolhas sejam, assim, conscientes
transformando seus sonhos e esperanças em algo palpável, real e possível. Os
indivíduos apreendem com a autoadvocacia que o apoio, a colaboração
fraterna e a união os fortalece nesse propósito, tornando-os mais fortes e mais
empoderados, a ponto de dispensarem qualquer interferência “externa” e que
pode, mesmo em potencial, lhes ser pernicioso. Risco que todo aquele que
age e escolhe por si, corre.
Resta evidente que a questão da interferência externa é muito
importante e merece destaque, tendo em vista que ela tem potencial de causar
a ruína da prática da autoadvocacia. Importante destacar que a organização
intitulada “People First” foi fundada e atualmente é gerida exclusivamente por
pessoas com deficiência de desenvolvimento que executam tarefas que o
público em geral acredita não ser possível, pelo perfil de seus membros. A
“People First” afirma ter muito a oferecer por meio de seus membros e
evidencia em seu lema o quão inoportunas são quaisquer tipos de
80
interferências externas: “Autoadvogados treinando autoadvogados.” (tradução
nossa). Essa organização é uma das mais fortes representantes da prática do
empoderamento por meio da autoadvocacia de pessoas com dificuldade de
aprendizado ou deficiência de desenvolvimento, como eles próprios preferem
ser chamados, e que conta com representantes formais em 43 países, que
abarcam aproximadamente 17.000 membros. Sua filosofia de empoderamento
pela autoadvocacia é bastante forte7:
Pessoas com deficiências de desenvolvimento são as únicas pessoas capazes de empoderar outras pessoas com deficiências de desenvolvimento. Somente as pessoas que fazem parte de uma determinada cultura, podem "empoderar" pessoas desta mesma cultura; para torná-los fortes, eles têm que tomar decisões e trabalhar em seu movimento, eles mesmos. Este é o caminho do movimento da autoadvocacia. Profissionais e pessoas sem deficiência de desenvolvimento não podem controlar o movimento People First. Isto é o que a autoadvocacia é, pessoas ajudando a seus colegas a aprender a falar por si mesmos, aprender sobre seus direitos e responsabilidades, aprender a tomar decisões e resolver problemas, e ser um membro que contribui com a sua comunidade. (Tradução e destaque nossos).
Estas organizações, “People First”, “Speaking for Ourselves”, United
Together” e “Advocates in Action”, desejam falar por elas mesmas, sem a
interferência de indivíduos fora do grupo ou com interferência mínima desses.
Trata-se de um despertamento de consciências em que indivíduos, unidos
pelas mesmas demandas, lutam de forma autônoma por seus interesses
comuns e especiais, em direção ao pleno exercício de seus direitos e
cidadania. O aprendizado do ser proativo transcorre quando indivíduos,
inseridos na mesma problemática, colaboram para que outros indivíduos se
expressem e tomem decisões conscientes. Os grupos fornecem-lhes a
oportunidade de desenvolverem seu senso de identidade, facilitando o
aprendizado e o compartilhamento de ideias e também a aprender a conhecer
e compreender seus direitos e responsabilidades, para que possam exercer a
cidadania em sua plenitude ou chegando ao mais alto nível possível de
independência.
7
People First Spokane Valley. Disponível em: http://www.peoplefirstsv.com/people_first_history.htm Acesso em: 31 mai. 2012.
81
Browning, Rhoades e Crosson (1980) asseveram que na década de
1960, nos Estados Unidos da América, houve uma intensa e extensa ação de
consumidores, que teve forte impacto nas questões sociais. Os protestos
desses se juntaram aos daqueles que lutavam por amplas reformas sociais,
para que grupos de indivíduos desempoderados e discriminados, que incluíam
mulheres, minorias raciais e pobres, conquistassem sua cidadania por meio da
conscientização de seus direitos, e, no conjunto, repercutiram positivamente.
Este movimento, segundo os mesmos autores citados, que contava com
o slogan “Power to the People”, contou com a participação ativa de indivíduos
pertencentes aos grupos discriminados, e teve como reflexos muitas reformas
marcantes e duradouras.
Para que todas as ações organizadas prosperem e alcancem seu
objetivo de conscientização, visibilidade, participação e empoderamento por
meio da autoadvocacia, é necessários que existam lideranças. Sabe-se que é
necessário que haja organização em todos os ambientes em que se
desenvolvam habilidades e trabalhos coletivamente e, por consequência
natural, surjam ou sejam nomeadas lideranças. A diferença da autoadvocacia é
que indivíduos externos, não pertencentes ao grupo porque não têm as
mesmas características, ainda que possam se identificar com eles, devem
interferir minimamente e apenas no início da formação coletiva organizada da
autoadvocacia. Intervenções no decorrer do desenvolvimento da prática da
autoadvocacia devem ser pontuais e atender a necessidades reconhecidas
pelos membros do grupo, que deve tomar a iniciativa de buscar ajuda.
O referencial freireano tem importância fundamental para entendermos
isso, porque, em primeiro lugar, se refere à liderança como algo a ser
conquistado na comunhão com o povo, sendo que jamais deve ser imposta, e
que esta liderança “se instaura e se autentica na sua práxis com a do povo,
nunca no desencontro ou no dirigismo”; criando juntos, a liderança e o povo, as
pautas para sua ação (2011b, p. 73). Tomando-se o cuidado para que o líder
reduza ao mínimo sua intervenção direta nas decisões do grupo, para que os
integrantes desse descubram, por si, seus desejos, sonhos e aspirações.
Na autoadvocacia, à liderança cabe, inicialmente, mobilizar as
informações solicitadas pelos indivíduos, de acordo com a necessidade de
82
demanda descoberta pelo próprio grupo. Como se percebe, a intervenção deve
ser mínima e interrompida no momento em que o grupo decidir que pode
“caminhar com suas próprias pernas”, tomando suas próprias decisões sem
nenhuma interferência externa. A liderança - ou o educador, numa perspectiva
freireana -, deve saber conduzir o grupo até este ponto e tomar muito cuidado
para que, inconscientemente, não mantenha o grupo dependente de si.
Bordenave (1995, p. 39) afirma que o líder deve fazer com que suas qualidades
pessoais atuem a favor da participação dos membros do grupo.
Browning (1997) escreve um capítulo sobre orientações direcionadas a
pessoas não deficientes que desejam desenvolver grupos de autoadvocacia
para pessoas deficientes, tendo em vista que considera que muitas dessas
pessoas não têm a formação devida e, portanto, habilidades técnicas
desejáveis para liderar o grupo. Além dos principais problemas e questões
enfrentadas pelo grupo, o autor sugere que os não deficientes não interfiram
nas reuniões do grupo, mas dela participem apenas para ajudar aos membros
com dificuldade de aprendizado a compreenderem os assuntos que estão
sendo discutidos; jamais dizendo ao grupo o que fazer. O mesmo autor recorre
a Rhoades (apud BROWNING, 1997, tradução nossa) para discutir três
princípios ideológicos considerados fundamentais para a sobrevivência dos
grupos de autoadvocacia:
Estes princípios indicam que os membros do grupo devem: esforçar-se no sentido de estabelecer uma existência autônoma para garantir o reconhecimento da seriedade e independência da organização; mobilizar-se no sentido de desenvolver um relacionamento cooperativo de trabalho com outras organizações de autoadvocacia e do sistema de prestação de serviços; e lutar para serem reconhecidos como especialistas em suas próprias incapacidades.
É bastante interessante a missão da “People First”, ora sediada em
Oklahoma, Estados Unidos da América, cujo slogan atual também não se pode
omitir, dadas as suas possibilidades de generalização para as populações
oprimidas, que se irmanam no pouco direito que tem à voz: “Nada sobre nós,
sem nós.” O pesquisador considera que as diretrizes dessa missão, abaixo
83
transcritas, resume o propósito da autoadvocacia em qualquer ambiente e perfil
de indivíduos8:
Promover a igualdade;
Ajudar uns aos outros para falar por nós mesmos; Educar nossas comunidades; Realizar reuniões para educar a nós mesmos; Fomentar a autoadvocacia em Oklahoma; e Criar suporte público à “People First”.
Os membros do “People First” de Oklahoma acreditam:
Nós criamos um futuro melhor para todos quando nós exercitamos nossos direitos.
As pessoas devem viver da forma mais independente
possível. As pessoas devem deixar que suas vozes sejam
ouvidas. As pessoas têm o direito de saber, para escolher, e para
fazer o que desejam. Todas as pessoas necessitam de serviços iguais. As pessoas devem ser capazes de lutar pelos seus
direitos, sem medo de serem feridas ou abusadas. As pessoas devem ser capazes de obter atendimento
médico quando necessário. As pessoas devem ter oportunidades iguais para acessar
suas comunidades e todos os seus serviços.
Nós podemos fazer muitas coisas se apenas nos forem dadas oportunidade.
O pesquisador entende que essas afirmações podem tornar-se também
a missão dos oprimidos, objeto do presente estudo. Naturalmente que o
caminho a ser seguido é diferente, mas os objetivos são os mesmos. Chamou
a atenção também que o processo de autoadvocacia, de auto-valorização e
empoderamento, inicia-se pela maneira pela qual as pessoas com deficiência
desejam ser chamadas, guardando uma coerência impressionante. Não
querem ser chamadas de deficientes, mas “pessoas com deficiência”, ou seja,
o princípio orientador, a ênfase é colocada na pessoa e não na deficiência que,
de certa forma, é um rótulo que tem conotação negativa e, portanto,
desvaloriza a pessoa. Uma excelente ideia para utilizarmos daqui em diante
quando nos referirmos aos alienados, pobres, oprimidos e dominados, a fim de
que possamos também guardar coerência com nossa proposta de
8 Oklahoma People First, Inc. Disponível em: http://www.oklahomapeoplefirst.org/mission.html
Acesso em 31 mai. 2012. Tradução nossa.
84
empoderamento pela autoadvocacia e respeito por esses sujeitos. Também
passaremos, a partir deste ponto, a enfatizar a pessoa e não sua condição
passageira: pessoa alienada, pessoa pobre, pessoa oprimida e pessoa
dominada, porque também são pessoas, em primeiro lugar!
Uma das maiores organizações norte americanas e mundiais de defesa
da autoadvocacia para o empoderamento de pessoas com deficiência, é a “Self
Advocates Becoming Empowered”, também conhecida pela sigla SABE. Tem
atuação enérgica em todo o território dos Estados Unidos, e defende o
fechamento de todas as instituições públicas e privadas que não conferem às
pessoas o direito de terem o controle de suas próprias vidas. Defende também
que as pessoas com deficiência possam votar e escolher representantes que
lutem com eles por suas demandas. Entre outras formas de garantia de
representação estão: denunciar crimes de ódio, maus tratos, punições e
castigos para autoridades competentes e para a sociedade em geral, que o
Estado forneça toda a estrutura necessária para que as pessoas deficientes
vivam com dignidade em suas próprias casas e não em hospitais ou
instituições e a implementação de programas estatais que viabilizem o acesso
das pessoas deficientes ao mercado de trabalho. Toda a luta se dá no âmbito
político, com ações junto aos órgãos de poder dos Estados. A SABE tem como
missão9:
É nossa missão garantir que as pessoas com deficiência sejam tratadas com igualdade e que a elas sejam dadas as mesmas oportunidades de decisões, escolhas, direitos, responsabilidades e as chances de falar para empoderarem-se; oportunidades para fazer novos amigos e para aprender com seus próprios erros.
Atualmente a tendência nos Estados Unidos é a de que as diversas
organizações de autoadvocacia se unam com a finalidade de se fortalecerem
para atuarem em âmbito nacional, conquistando visibilidade, empoderamento e
direitos mais relevantes e abrangentes. Para tanto, organizam reuniões e
encontros em diversas regiões norte-americanas, onde ocorrem debates que
visam o aperfeiçoamento das próprias organizações e da autoadvocacia, para
9 Disponível em: http://www.sabeusa.org/user_storage/File/sabeusa/Position%20Statements/30
_%20Aversives.pdf Acesso em: 31 mai. 2012. Tradução nossa.
85
que seus membros tenham suas expectativas atendidas com mais qualidade
(NELIS, apud SCHALOCK, 2002).
Coerentemente a essas reflexões, temos, portanto, por objetivo estudar
as possibilidade de desenvolvimento da consciência crítica nos indivíduos por
meio de articulação das bases de uma educação para a autoadvocacia, em
especial junto àquelas pessoas e grupos que, historicamente, têm visto seus
direitos serem consistentemente negados. A autoadvocacia busca abrir
perspectivas para caminhos que devem e podem ser percorridos, individual ou
coletivamente, favorecendo a organização e a luta pela transformação da
realidade injusta em que os indivíduos oprimidos vivem, participando
ativamente da construção de uma sociedade que possa ser, de fato,
denominada de justa e solidária.
Ademais, nosso compromisso sócio-político de promoção da
autoadvocacia intenciona apresentá-la como uma prática da educação
sociocomunitária. Seguindo a concepção de que a educação sociocomunitária
é aquela que transcorre nos diferentes espaços de convivência - e, assim, de
luta - dos sujeitos, promovendo a escuta e o diálogo entre os diversos sentidos
de mundo existentes nesses espaços (BISSOTO, 2011). Como fomentar a
autoadvocacia nesses espaços? Que sentidos/espaços reforçam a
estigmatização dos oprimidos? Quais as reações e pensares de resistência que
podem ser percebidas, ainda que embrionariamente? Como colocar em conflito
esses sentidos, de modo a ampliar a consciência dos sujeitos? Como pensar
essas questões no âmbito da pedagogia freireana?
Nos raros momentos em que o neoliberalismo volta sua atenção para a
“educação” (ou treinamento?) é porque necessita de mão-de-obra barata e
subalterna, suprida por indivíduos bem treinados tecnicamente, e alienados
ideologicamente. São indivíduos transformados em seres autômatos, nos quais
a manifestação da criatividade, da autonomia, da liberdade e da consciência é
proibida. Transformam os indivíduos em coisas.
A teoria freireana e a concepção de educação sociocomunitária acima
mencionada pretendem, ambas, na pesquisa aqui apresentada, por “luz
naquela obscuridade que a dominação exige” (FREIRE, 2011c, p. 34), com a
finalidade precípua de procurar uma possível mudança social no Brasil.
86
Iluminar as consciências, orientar os indivíduos oprimidos para a luta pela
efetivação de seus direitos e para a conquista de outros, que alberguem as
suas necessidades, significa compreender a ideologia dominante e seus
instrumentos de aniquilamento das autonomias, tornando possível acreditar e
movimentar-se livre, consciente e coletivamente no sentido de inverter os
papéis sociais. Instruir e instrumentalizar as pessoas oprimidas para uma
participação efetiva, motivada e competente na vida política da sociedade.
[…] as doutrinas neoliberais procuram limitar a educação à prática tecnológica. Atualmente, não se entende mais educação como formação, mas apenas como treinamento. Creio que devamos continuar criando formas alternativas de trabalho. Se implantada de maneira crítica, a prática educacional pode fazer uma contribuição inestimável à luta política. A prática educacional não é o único caminho à transformação social necessária à conquista dos direitos humanos, contudo acredito que, sem ela, jamais haverá transformação social. A educação consegue dar às pessoas maior clareza para “lerem o mundo”, e essa clareza abre a possibilidade de intervenção política. É essa clareza que lançará um desafio ao fatalismo neoliberal. A linguagem dos neoliberais fala da necessidade do desemprego, da pobreza, da desigualdade. Penso que seja de nosso dever lutar contra essas formas fatalistas e mecânicas de compreender história. Enquanto as pessoas atribuírem à fome ou a pobreza que as destroem ao destino, à fatalidade ou a Deus, pouca chance haverá de promover ações coletivas (FREIRE, 2001b, p. 36).
Se o Estado neoliberal, alienador, opressor e explorador, precisa de
algum mecanismo para sobreviver e perpetuar a sua injustiça, na população
alienada encontra a sua fonte inesgotável e renovável de suprimentos. A
educação alienante enfraquece as possibilidades de união, mobilização e de
participação capazes de construir uma história diferente.
E não estamos falando aqui da pseudo-participação ou participação
concedida, mas da participação efetiva e consciente, que verdadeiramente
constrói e interfere nos rumos da história que o neoliberalismo pretende
perpetuar.
O chamado “planejamento participativo”, quando implantado por alguns organismos oficiais, frequentemente não é mais que um tipo de participação concedida, e às vezes faz parte da ideologia necessária para o exercício do projeto de direção-
87
dominação da classe dominante. Com efeito, a ideologia dominante objetiva manter a participação do indivíduo restrita aos grupos baseados em relações sociais primárias, como o local de trabalho, a vizinhança, as paróquias, as cooperativas, as associações profissionais, etc., de modo a criar uma “ilusão de participação” política e social. (BORDENAVE, 1995, p. 29).
O artigo 3.º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
também conhecida como Carta Magna, e Constituição Cidadã, elenca o que
considera ser os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Encontramos nos parágrafos, 78 incisos e nas alíneas do artigo 5.º da
Carta Magna, em que estão disciplinados os direitos e deveres individuais e
coletivos, a mais abrangente e precisa definição de direitos e garantias
individuais da história do Brasil. Houve nítido e importante progresso.
Evidenciamos o contraste entre o reconhecimento da universalidade e eficácia
imediata dos direitos humanos e do direito à vida, e o Código Penal de
1940,que enfatizava a defesa do patrimônio.
Verifica-se, portanto, que no Brasil a lei máxima garante a todos os
brasileiros, indistintamente, o direito à igualdade e equidade social, respeitando
a diversidade e valorizando os pressupostos da cidadania. Contudo, ao mesmo
tempo em que reconhece esses direitos fundamentais não cria e implementa
mecanismos que visem garantir a sua efetivação. O Estado faz pior: cria e
implementa mecanismos de alienação e ocultamento desses mesmos direitos;
fomentando o aviltamento e a violação dos direitos à igualdade, à equidade, à
cidadania (inciso II do art. 1.º da Constituição Federal) e à dignidade da pessoa
humana (inciso III do art. 1.º da Constituição Federal). As reformas neoliberais
são despidas de políticas sociais e estão tornando o Brasil em um país
“democrático” sem cidadania, se é que isso seja possível.
88
A propósito, Dallari (1998, p. 14) comenta sobre a importância do pleno
exercício da cidadania:
A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social.
Lamentavelmente, ainda vigora e predomina no Brasil, quando muito, a
visão simplista de que cidadania significa apenas direitos e deveres. As
pessoas e grupos desempoderados e oprimidos têm o direito de serem como
são e ainda assim serem respeitados e ouvidos. Têm o direito de decidir e
participar ativamente dos rumos da sua própria vida, da sua comunidade e da
sociedade, sem serem constrangidos. Têm o direito de se comportarem e se
vestirem conforme a sua realidade, sem serem ridicularizados. Rompendo a
invisibilidade e o assujeitamento, por meio da autoadvocacia, o indivíduo e a
coletividade oprimida desenvolve o sentimento de pertencimento, do
reconhecimento de seus direitos, do reconhecimento do direito legítimo que
têm de terem direito, de sua capacidade de lutar para conquistar seus espaços
na sociedade de forma pró-ativa, livre e consciente, exercendo a cidadania em
sua plenitude. Assim, essas pessoas e grupos vão desenvolvendo e
fortalecendo mais e mais o seu sentido de autoconfiança, não se permitindo
mais serem intimidados, lutando contra a opressão, resistindo e combatendo
conscientemente e com conhecimento de causa as desigualdades sociais
geradas pela ideologia dominante.
Dimenstein (1999, p.11), em uma crítica à cidadania brasileira de papel,
porque afirma que ela não existe na prática, e ressaltando a importância de
conhecermos nossos direitos para que possamos participar integral e
permanentemente da sociedade, comenta:
Está aí à importância de saber direito o que é cidadania. É uma palavra usada todos os dias e tem vários sentidos. Mas hoje significa, em essência, o direito de viver decentemente. Cidadania é o direito de ter uma idéia e poder expressá-la. É poder votar em quem quiser sem constrangimento. É processar um médico que cometa um erro. É devolver um produto estragado e receber o dinheiro de volta. É o direito de ser
89
negro sem ser discriminado, de praticar uma religião sem ser perseguido.
Norberto Bobbio (1986) advertia para o fato de que a apatia política dos
cidadãos compromete o futuro da democracia, e recorre às teses de Stuart Mill
para reforçar a sua opinião, no sentido de que é necessário construir-se uma
educação que forma cidadãos ativos, participantes e críticos; ainda que este
não seja o perfil desejado pelos governantes, que preferem cidadãos passivos,
sinônimo de súditos dóceis ou indiferentes. Benevides (1998, p. 19) ressalta a
importância do pleno exercício da cidadania ativa:
[...] a cidadania ativa através da participação popular aqui considerada um principio democrático, e não um receituário político, que pode ser aplicado como medida ou propaganda de um governo, sem continuidade institucional. Não “um favor” e, muito menos, uma imagem retórica. É a realização concreta da soberania popular como possibilidade de criação, transformação e controle sobre o poder, ou os poderes.
Finalmente, Freire (2002, p. 39) comenta sobre a preponderância da
técnica sobre o sócio-político e seus derivados efeitos nefastos:
É reacionária a afirmação segundo a qual o que interessa aos operários é alcançar o máximo de sua eficácia técnica e não perder tempo com debates "ideológicos” que a nada levam. O operário precisa inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania que não se constrói apenas com sua eficácia técnica mas também com sua luta política em favor da recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra menos injusta e mais humana.
Parece-nos evidente, percepção esta construída em nossas
experiências como trabalhador e educador social voluntário em diversas
instituições filantrópicas e advogado militante, que mais e mais se desaliena e
se conscientiza da sua função social, como cidadão e como elemento
indispensável à administração da Justiça, conforme preceitua o art. 133 da
Constituição Federal, que devemos participar ativamente do processo de
transformação da sociedade para que a igualdade possível seja conquistada
por meio do reconhecimento de direitos. Consolidando-se o Estado
democrático em nosso país, e que os direitos fundamentais, sociais, humanos
90
e políticos já reconhecidos legalmente sejam, enfim, respeitados, efetivados,
concretizados, notadamente para aquelas pessoas e grupos que se encontram
em posição econômica, financeira, educacional e cultural desvantajosa, por
meio da sua própria ação autônoma, consciente e crítica.
A autoadvocacia se candidata a ser mais uma ferramenta de
rompimento dessa condição de marginalidade, de opressão e de desigualdade
calculada, porque procura conscientizar as pessoas e grupos dominados de
que suas necessidades, reconhecidas como tais a partir deles próprios, podem
e devem ser atendidas pelo Estado. E que dessa conscientização brotem
novas perspectivas. Ademais, a autoadvocacia se propõe a, sem interferir na
liberdade de escolha, encontrar com as pessoas e grupos os caminhos pelos
quais suas demandas podem e devem ser atendidas. Seus direitos devem ser
plenamente efetivados. Desta forma, a luta pela cidadania abrange não apenas
a conquistas de igualdade de direitos para todos os indivíduos e da efetivação
desses direitos, mas abarca também a conquista de uma vida digna, em sua
mais ampla acepção, para todos os cidadãos.
Quanto à ideologia dominante que permeia os direitos
constitucionalmente reconhecidos, dificultando ou inviabilizando a sua
efetivação, Farias (1999, p. 91) assevera:
Um dos problemas do nosso sistema jurídico atual é o da não-efetividade de muitos princípios contidos na Constituição de 1988, principalmente aqueles que se referem à justiça social, aos direitos sociais, à cidadania e à solidariedade. No Brasil, “a razão pública” e os princípios constitucionais fundamentais têm desempenhado uma função simbólica, predominando uma retórica política dissimulada e simulada.
O Estado, por meio de suas políticas públicas, reforça o cenário de
segregação social em que as pessoas oprimidas são vitimadas, na medida em
que esse enorme contingente humano não tem acesso à educação de boa
qualidade, que lhes permitiria concorrer a uma vaga em uma universidade
pública, não tem acesso à saúde, ao lazer, à informação de boa qualidade, aos
esportes, a atividades sociais e, por consequência, ao trabalho digno. Quando
teria por obrigação implementar uma cultura política nova que valorizasse e
executasse ações destinadas ao empoderamento desses indivíduos e grupos,
91
garantindo-lhes o pleno exercício da cidadania como preparação do exercício
da autoadvocacia, que podemos conceituar como:
[…] um processo de vivência que imprima sentido e significado a um grupo ou movimento social, tornando-o protagonista de sua história, desenvolvendo uma consciência crítica desalienadora, agregando força sociopolítica a esse grupo ou ação coletiva, e gerando novos valores e uma cultura política nova (GOHN, 2002, p. 29).
A violação contínua dos direitos das pessoas e grupos oprimidos pelo
Estado e pelos detentores do poderio econômico e do poder reclama medidas
urgentes. É necessário que sejam desenvolvidas ações com a finalidade de
conscientizar, iluminar e libertar as pessoas e grupos dominados para que
combatam essas violações com os instrumentos adequados e que resistam à
situação de exclusão social e de invisibilidade, e é neste contexto que a
autoadvocacia se apresenta como um aliado, como uma ferramenta a mais nas
mãos das pessoas e grupos oprimidos para a sua intervenção social. Trata-se,
aliada à Educação Sociocomunitária, de um ativismo, que educa para
promover os indivíduos, de modo que esses se apropriem de instrumentos
socioculturais para a plena realização de uma participação na vida comum
motivada e competente, numa simbiose entre interesses pessoais e sociais.
Mais. A autoadvocacia não se apresenta como um instrumento limitado
de luta, que busca apenas a instrumentalização normativa dos indivíduos e
grupos, do conhecimento de leis e regras, mas busca também contribuir na
formação de indivíduos, que participem conscientemente da vida coletiva e na
construção de cidadãos autônomos e participativos. A autoadvocacia colabora
com a educação para que esses indivíduos e grupos conheçam criticamente a
realidade social em que vivem, que acreditem na possibilidade de mudança e
se solidarizem para que juntos e, portanto, mais fortes lutem para a construção
dessas mudanças. As famílias assistidas pelo Grupo Espírita Caminheiros,
campo desse estudo, buscam conosco essa ruptura da invisibilidade social por
meio da autoadvocacia.
Apesar de a participação ser uma necessidade básica, o homem não nasce sabendo participar. A participação é uma habilidade que se aprende e se aperfeiçoa. Isto é, as diversas
92
forças e operações que constituem a dinâmica da participação devem ser compreendidas e dominadas pelas pessoas. (BORDENAVE, 1995, p. 46)
Entretanto, consideramos que um dos grandes desafios é que esses
indivíduos e grupos em processo de desalienação e de libertação, quando
empoderados, ao invés de tornarem-se novos opressores, consigam de fato se
libertarem e generosa e solidariamente compartilhem suas experiências, seus
conhecimentos e suas perspectivas; para que possam conscientizar, desalienar
e libertar outros indivíduos e formar grupos para que juntos e mais fortalecidos
lutem pela efetivação de seus direitos.
Por meio da organização e união entre pessoas, que se identificam com
seus problemas e condições, amparando-se em comunhão, é que se
conquistará visibilidade e voz na sociedade opressora; movimentando os
recursos adequados para que se façam respeitados. A autoadvocacia se
encaixa perfeitamente nesse contexto, apresentando-se como uma
possibilidade, que tem como objetivo subverter esse quadro histórico de
exclusão social, política e econômica.
O grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam” ao opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivam a dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo. A pedagogia do oprimido, que não pode ser elaborada pelos opressores, é um dos instrumentos para esta descoberta critica – a dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos oprimidos, como manifestações da desumanização […] É que, quase sempre, num primeiro momento deste descobrimento, os oprimidos, em lugar de buscar a libertação, na luta e por ela, tendem a ser opressores também, ou subopressores (FREIRE, 2011b, p. 17).
Outra grande dificuldade encontrada durante a pesquisa foi a questão
relacionada ao educador da autoadvocacia, notadamente daqueles não
familiarizados com a pedagogia freireana, e, principalmente, daqueles que
ainda não se “desalienaram” e não têm consciência deste fato. Aliás, a maior
parte daqueles que participaram como educadores em minha pesquisa não
93
conheciam as ideias de Paulo Freire, mais, nunca haviam tido uma experiência
como educadores. Ademais, acreditamos que, via de regra, não estamos
preparados para nos libertarmos da educação bancária porque, além de
cômoda e simples de ser aplicada, está enraizada dentro de nós, tendo em
vista que a maior parte de nós dela também foi vítima. Crescemos nesta cultura
e com ela concordávamos passiva e alienadamente. A quebra dessa inércia e
comodismo, cristalizados em discursos vazios, que propagam a “liberdade e a
cidadania de todos”, sem contudo transformá-los em ações, é de uma
dificuldade de grande monta.
Freire (2011a, 2011b, 2011c) e Garner, amparando-se em Freire (1995),
alertam para a enorme dificuldade e desconforto dos educadores quanto à
prática da autoadvocacia, esta entendida como um dos meios da educação
para a autonomia. Contudo, Garner não tem o mesmo amor, o otimismo e a fé
de Freire, e é nesse ponto que se distanciam. Garner (1995) expressa sua
preocupação e sugere que há limitações na aplicação da autoadvocacia nos
casos em que os indivíduos são indóceis. Entendemos que Freire (2011b, p.
18) foi muito feliz na leitura da realidade quando, ao abordar a questão
relacionada à resistência do opressor de aplicar uma educação para a
autonomia e liberdade, asseverou que, primeiramente, existe muita dificuldade
e sofrimento em o opressor descobrir-se como tal, libertar-se e solidarizar-se
amorosamente com os homens concretos, oprimidos, injustiçados e roubados.
O “medo de liberdade também se instala nos opressores […] é o medo de
perder a “liberdade” de oprimir”, porque teriam a impressão de que perderiam
também parte de seu prazer, o prazer efêmero e ilusório de oprimir e de gozar
do poder e do império econômico, que estão ao seu serviço graças às massas
oprimidas. São o egoísmo e o orgulho exacerbados em ação. No próximo item
do presente capítulo verificaremos como os educadores se comportaram na
prática da autoadvocacia libertadora.
Finalmente, não podemos deixar de ressaltar que a autoadvocacia tem
utilidade para toda e qualquer pessoa e grupo, indistintamente, inclusive para
os dominadores, que nunca o são integralmente, sendo que em algum
momento são também oprimidos e, portanto, precisam também ser libertados.
Entretanto, em decorrência da linha dessa pesquisa, optamos por ressaltar a
94
aplicação e suas consequências às pessoas e grupos oprimidos e
desempoderados.
Lança-se, agora, um desafio ao leitor não afeiçoado às lides jurídicas.
Citaremos dois direitos que todos temos em potencial, ou seja, desde que,
naturalmente, enquadrados nas condições previstas nas normas
correspondentes. Ao final, reflitam se as conheciam e se, porventura, já tiveram
ou têm direito ao seu gozo e não sabiam.
1. Conforme disposição contida no Decreto n.º 53.352, de 26 de agosto
de 2008, do Estado de São Paulo, o cidadão que tiver seu veículo furtado ou
roubado tem o direito à restituição proporcional do imposto pago, à razão de
1/12 (um doze avos) por mês de privação dos direitos de propriedade.
Em que pese constar na própria norma, em seu § 2.º do art. 2.º, que “A
restituição será processada pela Secretaria da Fazenda, independentemente
de solicitação.”, o que ocorre, na realidade, ao menos nos casos por nós
conhecidos, é que o cidadão alcançado pela violência da natureza ora tipificada
e ciente de seus direitos, se vê obrigado a dirigir-se pessoalmente a um dos
postos de atendimento ao contribuinte da Secretaria da Fazenda, munido de
um rol exaustivo de documentos e atender a mais um sem número de
exigências burocráticas, para que possa, enfim, ter o seu direito satisfeito.
2. O art. 190 da Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1973, dispõe que
“Os emolumentos devidos pelos atos relacionados com a primeira aquisição
imobiliária para fins residenciais, financiada pelo Sistema Financeiro da
Habitação, serão reduzidos em 50% (cinqüenta por cento).” Ou seja, as
pessoas que adquirirem seu primeiro imóvel e, para tanto, utilizarem recursos
do Sistema Financeiro de Habitação (financiamento imobiliário), terão direito a
um desconto de 50% sobre o valor dos emolumentos cobrados pelos Cartórios
para a elaboração da escritura e registro do imóvel.
Contudo, tanto os Cartórios quanto as instituições financeiras
intermediárias dos financiamentos habitacionais, não avisam aos adquirentes
de imóveis sobre o citado direito. Alegam que não é sua obrigação cientificá-
los, evidenciando o descaso com o outro, o egoísmo, o individualismo e o
distorcido conceito de exercício de cidadania, que norteiam a maior parte dos
integrantes da sociedade. Desta forma, pouquíssimas pessoas que têm direito
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porque se enquadram nas condições exigidas pela norma gozam do desconto,
simplesmente porque não o conhecem. É lamentável que uma norma, que já
conta com quase quarenta anos de existência e vigor, ainda seja tão pouco
conhecida e propositadamente não divulgada, especialmente em uma época
de “boom” imobiliário.
No caso de imóveis adquiridos com os benefícios do Programa Minha
Casa, Minha Vida, os descontos aplicados sobre os emolumentos cartorários
correspondentes podem alcançar o percentual de 75% (setenta e cinco por
cento), conforme disposição contida no art. 43 da Lei n.º 11.977 de 7 de julho
de 2009.
Para quem está na luta para adquirir o primeiro imóvel e lança mão,
porque precisa e não porque quer, de financiamento imobiliário, que, diga-se,
cobra juros compostos (outro abuso cometido em larga escala e que se
relaciona com outro direito não exercido pelo cidadão), um desconto que pode
superar o valor de R$ 600,00 é muito bem vindo, notadamente porque nesta
fase há inúmeras outras despesas. Tratam-se, ambas, de leis federais e,
portanto, têm abrangência em todo o território nacional.
Esclarecemos que escolhemos dois direitos que deveriam ser
reconhecidos de plano, sem a intervenção do Poder Judiciário, porque não
paira sobre eles a sombra da incerteza, que reclamem a interpretação de
nossos julgadores.
Ressaltamos que o inciso II do art. 3.º da Lei n.º 12.527, de 18 de
novembro de 2011, determina que tanto a União, quanto os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios têm o dever de divulgar as informações de interesse
público, independentemente de solicitação.
Além dos direitos citados acima, não podemos nos esquecer de que
nossos direitos e garantias fundamentais, reconhecidos constitucionalmente,
também não são respeitados. Estes também, via de regra, nos são
desconhecidos ou já esquecidos, porque, de tão acostumados com o
aviltamento e banalização da violência, desrespeito, imoralidade, falta de ética
de toda ordem, nos esquecemos de que temos incontáveis direitos
reconhecidos e não exercidos e nos acostumamos com uma estrutura social
deturpada. O que podemos dizer das pessoas e grupos desempoderados e
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alienados, que sofrem e são duramente penalizados, porque não conhecem
seus direitos mais elementares?
Certa feita uma senhora me procurou na condição de advogado. Cerca
de quarenta anos, abatida, com sinais de cansaço, visão comprometida mesmo
com a utilização de lentes corretivas, envelhecida precocemente e bastante
desanimada. Esta foi a minha primeira impressão. Era portadora de Diabetes
Mellitus há seis anos e, por falta de medicação adequada recebia auxílio
doença do INSS em importância líquida, que não alcançava um salário mínimo
e, portanto, insuficiente para adquirir os medicamentos, surgiram outras
doenças associadas e consequentes: Retinoplastia, Neuropatia, Transtorno
Ativo Bipolar e complicações neurológicas, elas afetavam severamente sua
visão, seu coração, seus sistemas circulatório, digestivo, urinário, neurológico,
seus rins, sua pele e seus ossos e articulações, sofria de constipação severa e
dispepsia importante, de difícil controle, entre outras.
Atendida em um hospital municipal, o médico que cuidava de seu caso
com mais frequência elaborou um laudo expondo a crítica situação da paciente
e solicitando com muita urgência, sob pena de óbito, determinada medicação,
que não era encontrada nos postos de saúde do município de Campinas. A
paciente levou o laudo e um calhamaço de resultados de exames para a
Secretaria Municipal de Saúde, a fim de solicitar que lhe fossem fornecidos os
remédios prescritos, conforme sugestão do próprio médico. Depois de atender
a uma série de procedimentos burocráticos, teve negado seu pedido. Neste
momento veio a minha procura, porque minha mãe, sua conhecida, lhe sugeriu,
por mais de uma vez: “Procure meu filho, que é advogado. Talvez ele possa lhe
ajudar de alguma forma…”. Quando eu a atendi, percebi que me procurava
mais por pressão de seu marido e de minha mãe do que por vontade própria,
porque não acreditava que algo pudesse ser feito. Desistira de lutar pela sua
vida. Ainda assim, parecia depositar em mim suas parcas esperanças.
Pedi-lhe que me trouxesse todos os documentos e exames e dei-lhe a
conhecer que seu direito ao recebimento dos medicamentos encontrava-se
amplamente amparado pela Constituição Federal, Constituição Estadual de
São Paulo e em leis infraconstitucionais, estando entre os direitos
fundamentais do cidadão, como o direito à vida, previsto pelo art. 5.º, caput, da
97
Constituição Federal, bem como no direito à saúde, previsto nos seus artigos
6.º e 196, o qual representa consequência constitucional indissociável do
direito à vida.
Providenciados e entregues todos os documentos com muita agilidade,
porque sua vida estava se esvaindo perceptivelmente dia a dia, conforme me
relatara, ingressamos com Mandado de Segurança com pedido liminar, o qual
foi atendido integralmente, sem que a cidadã desembolsasse um centavo
sequer porque requerida a gratuidade da justiça em decorrência de sua
condição financeira. Sua vida foi salva, graças ao conhecimento e pleno
exercício de seu direito de cidadania. O processo ainda corre em grau recursal,
em Brasília, porque a municipalidade insiste em ver o fornecimento dos
medicamentos interrompido, lutando pelo perecimento do ser humano.
Finalmente, quando noticiamos os direitos que muitos de nós temos e
não sabemos, e porque os desconhecermos não os exercemos, houve
intervenção de nossa parte? De certo modo, sim, pois, de alguma forma,
agimos educacionalmente, no sentido de levar o outro a descortinar alguma
perspectiva diferenciada de vida. Pois bem, na autoadvocacia esse papel
educativo precisa ser constituído com mais sutileza, pois, ao mesmo tempo em
que o educador necessita prestar informações e esclarecimentos às pessoas e
grupos de oprimidos, precisa fazer isso com base nas necessidades e
expectativas deles próprios, sentidas e apreendidas com eles, a partir da
escuta e discussão. E com o mínimo de ingerência possível. Assim se procurou
proceder com a tentativa de formular uma educação para a autoadvocacia
relatada nessa pesquisa, como será exposto no tópico seguinte.
98
3. A Autoadvocacia como possibilidade de autonomia na Educação Sociocomunitária
Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja essencialmente tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de dominação. Nesta, o que há é patologia de amor: sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados. Amor, não, porque é um ato de coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens. Onde quer que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com sua causa. A causa de sua libertação. Mas, este compromisso, porque é amoroso, é dialógico. (FREIRE, 2011b, p. 45)
3.1. Percurso Metodológico
Existem diversos métodos e critérios ou abordagens pelos quais busca-
se atingir os fins propostos numa pesquisa, mas nenhum deles pode ser
considerado o melhor ou o pior de forma genérica. Conforme Yin (2001) o
método ou o caminho investigativo deve ser escolhido pela afinidade que tem
com o objetivo e as condições nas quais uma pesquisa está sendo realizada.
Ademais, não se verifica a obrigatoriedade de se eleger apenas um método,
havendo a possibilidade de a pesquisa ou investigação lançar mão de mais de
um método, de forma combinada.
O objetivo central deste trabalho é analisar as consequências da
aplicação da autoadvocacia, como prática da educação sociocomunitária, junto
aos grupos familiares de baixa renda “assistidos” pelo Grupo Espírita
Caminheiros, na cidade de Campinas. A Autoadvocacia pretende apresentar-se
como uma prática da educação sociocomunitária, desenvolvendo a consciência
crítica no homem, constituindo-se como uma alternativa ao assistencialismo;
rompendo com a sua invisibilidade e tornando-o advogado de si mesmo e de
sua coletividade. Para que, assim, contribua para o seu empoderamento, com
a finalidade de que aja nas suas circunstâncias de modo a transformá-las e, ao
fazer isso, mobilize outros sujeitos a fazer o mesmo, formando grupos que
agirão na defesa de interesses comuns.
99
Tendo em vista que este tema é relativamente recente no contexto da
educação sociocomunitária, pretendemos responder à seguinte pergunta
central de pesquisa: A aplicação da autoadvocacia nos grupos de famílias
assistidas pode contribuir para com o desenvolvimento da autonomia e, assim,
para seu empoderamento e desalienação? E para que passem a se unir e lutar
por seus direitos?
Para investigar as possibilidades de respostas a tal questão adotamos
uma metodologia qualitativa, porque consideramo-la mais adequada para, além
de buscar a compreensão dos fatos, procurar (re)construir os significados
desses fatos para os sujeitos (MARTINS; BICUDO, 1989).
A pesquisa qualitativa visa compreender, em sentido largo, o significado
que certos fatos e interações, com outros e com a sociedade, têm para
indivíduos pertencentes a um determinado grupo, por meio de informações
produzidas a partir de observações coletadas diretamente do/com o objeto de
pesquisa. Denzin e Lincoln (1994) e Chizzotti (2003) observam que apesar de
certa resistência decorrente dos questionamentos quanto à cientificidade e a
objetividade dos métodos qualitativos, suas técnicas passaram a ser
reconhecidas como fontes fidedignas de geração de conhecimento,
especialmente depois da II Guerra Mundial, quando a pesquisa qualitativa se
consolidou como um modelo de pesquisa. Godoy (1995, p. 21), ao comentar
sobre o assunto, afirma que atualmente
[…] a pesquisa qualitativa ocupa um reconhecido lugar entre as várias possibilidades de se estudar os fenômenos que envolvem os seres humanos em suas intricadas relações sociais, estabelecidas em diversos ambientes.
Chizzotti (2000, p. 81) destaca, como aspectos característicos da
pesquisa qualitativa:
a) a delimitação e formulação do problema como processo indutivo que
se vai definindo na exploração e observação reiterada e participante do objeto
pesquisado e dos contextos ecológico e social do ambiente, ao invés de ficar
reduzido a uma hipótese previamente aventada ou a variáveis avaliadas por
um modelo teórico preconcebido;
100
b) o pesquisador, como parte fundamental da pesquisa qualitativa, deve
despojar-se de preconceitos e predisposições e assumir uma postura aberta
diante de todas as manifestações que observa sem, contudo, deixar de
participar e partilhar da cultura, da prática, das percepções e experiências dos
sujeitos da pesquisa;
c) os pesquisados, que são reconhecidos como sujeitos que elaboram
conhecimentos e produzem práticas adequadas para intervir nos problemas
que identificam. “Supõe-se que “os atores sociais não são imbecis”, na
expressão forte de Garfinkel, mas autores de um conhecimento que deve ser
elevado pela reflexão coletiva ao conhecimento crítico;
d) os dados, que se dão em contexto fluente de relações, não são
entendidos como “dados”, mas como fenômenos que se manifestam em uma
complexidade de oposições, revelações e ocultamentos, e não são coisas
isoladas, acontecimentos fixos, captados em um instante de observação. “É
preciso ultrapassar sua aparência imediata para descobrir sua essência”. O
fato de que algumas pesquisas qualitativas não descartarem, notadamente na
etapa exploratória, a coleta de dados quantitativos, não as desnaturam como
tais;
e) as técnicas utilizadas na pesquisa qualitativa, tais como a observação
participante, história ou relatos de vida, análise de conteúdo, entrevista não-
diretiva, entre outras, não se constituem em um modelo único, exclusivo e fixo,
mas devem incentivar a “acuidade inventiva do pesquisador, sua habilidade
artesanal e sua perspicácia para elaborar a metodologia adequada ao campo
de pesquisa, aos problemas que ele enfrenta com as pessoas que participam
da investigação.”
Godoy (1995, p. 21) destaca a oportunidade da pesquisa qualitativa:
Segundo a perspectiva da pesquisa qualitativa, um fenômeno pode ser melhor compreendido no contexto em que ocorre e do qual é parte, devendo ser analisado numa perspectiva integrada. O pesquisador vai a campo buscar captar o fenômeno em estudo a partir da perspectiva das pessoas nele envolvidas, considerando todos os pontos de vista relevantes. Vários tipos de dados são coletados e analisados para que se entenda a dinâmica do fenômeno.
101
O estudo qualitativo pode ser conduzido através de diferentes caminhos.
Destacamos três possibilidades diferentes de se realizar pesquisa sob a
abordagem qualitativa, tendo em vista a sua larga utilização na atualidade: a
pesquisa documental, o estudo de caso e a etnografia.
Quanto à pesquisa documental, segundo Godoy (1995, p. 21), em que
pese parecer estranho a possibilidade da utilização do estudo de documentos
no âmbito de uma pesquisa qualitativa, estes, entendidos de forma ampla, são
considerados importantes enquanto ricas fontes de dados, tanto quanto a
pessoas presentes quanto ausentes, também abrangendo exames de fatos já
ocorridos em tempos remotos. Trazem contribuições relevantes para a
pesquisa, conquistadas por meio de exames e reexames, confirmações de
interpretações ou novos olhares, desde que haja critério científico na escolha
dos documentos e temáticas a serem examinados.
Quanto às vantagens das pesquisas que se utilizam da abordagem
qualitativa Oliveira (1999) destaca a flexibilidade no uso dos instrumentais de
coleta de dados. A pesquisa qualitativa, considerada como constante exercício
de investigação, não dispõe de estrutura rígida. O que permite aos
pesquisadores ampliarem seus horizontes de imaginação e criatividade,
buscando e explorando novos enfoques.
Oliveira (1999, p. 117) relaciona, ainda, como vantagens dessa
abordagem, a facilidade de:
poder descrever a complexidade de uma determinada hipótese ou problema, analisar a interação de certas variáveis, compreender e classificar processos dinâmicos experimentados por grupos sociais, apresentar contribuições no processo de mudança, criação ou formação de opiniões de determinado grupo e permitir, em maior grau de profundidade, a interpretação das particularidades dos comportamentos ou atitudes dos indivíduos.
Enquanto processo de coleta de dados qualitativos, destacamos o
estudo de caso que, segundo Yin (2001), tem sido escolhido preferencialmente
a outros processos quando os pesquisadores procuram responder às questões
“como” e “por quê” certos fenômenos ocorrem, quando a possibilidade de
controle sobre os eventos estudados é limitada e quando o foco de interesse é
102
sobre fenômenos atuais, que só poderão ser analisados dentro de algum
contexto de vida real.
Já a pesquisa etnográfica, antes associada fortemente com a
antropologia, atualmente é amplamente explorada em outras áreas de
conhecimento. Fetterman (1989, p. 11, tradução nossa) descreve a etnografia
como “a arte e a ciência de descrever uma cultura ou grupo”. Quanto à
rationale do método etnográfico, Fino (2006, p. 5) expõe:
Segundo Michael Genzuk (op. cit.) etnografia é um método de olhar de muito perto, que se baseia em experiência pessoal e em participação, que envolve três formas de recolher dados: entrevistas, observação e documentos, os quais, por sua vez, produzem três tipos de dados: citações, descrições e excertos de documentos, que resultam num único produto: a descrição narrativa. Esta inclui gráficos, diagramas e artefactos, que ajudam a contar “a história”.
Considera-se que o investigador, na pesquisa etnográfica, deve imergir
pessoalmente na vida dos sujeitos e grupos, partilhando de suas atividades e
experiências, na tentativa de romper o distanciamento existente entre o
pesquisador e o grupo pesquisado, presente nos trabalhos mais tradicionais.
Nesse sentido, André (2007, p. 109) alerta para a preocupação e necessidade
crescentes de o pesquisador agir com ética e valor em relação aos sujeitos ou
grupos investigados e aos leitores da pesquisa:
[…] enfatiza-se a necessidade de justificativa clara e objetiva das opções e das interpretações do investigador e defendem-se formas de colaboração e parceria entre pesquisador e
pesquisado, rompendo estruturas e relações de poder.
3.1.1. Procedimentos Metodológicos
O fato de o pesquisador participar ativamente das atividades do Grupo
Espírita Caminheiros e ser membro de sua diretoria, possibilitou o franco
acesso aos documentos e aos grupos familiares pesquisados.
103
Antes de iniciarmos o trabalho de investigação propriamente dito, que foi
motivado pelas atividades assistencialistas já em desenvolvimento pelo Grupo
Caminheiros, o pesquisador conversou individualmente com os membros do
grupo de famílias assistidas, explicando-lhes os objetivos da pesquisa. Nessa
ocasião foi solicitado que preenchessem e assinassem o “Termo de
Esclarecimento e Consentimento Livre” (anexo 1), o qual fora objeto de leitura
direta pelos alfabetizados e indireta pelos não alfabetizados. Não houve recusa
ou resistência por parte de ninguém. Esclarece-se que algumas etapas formais
da pesquisa qualitativa, como a aproximação dos grupos familiares
pesquisados e levantamento de dados para maior conhecimento dos
participantes, já estavam prontas, tendo em vista que prestamos assistência às
famílias há anos. Houve, contudo, aprofundamento no que se refere ao
levantamento de dados de maneira focada e tecnicamente planejada, a
aproximação das pessoas com visão investigativa não intervencionista, com a
adoção do método freireano de apreensão e aprendizado horizontal; com a
finalidade de descobrir com as famílias seus anseios, desejos, medos e
sonhos... E estudo e reflexão dos dados levantados, mais próximo tanto quanto
possível da realidade enunciada por dessas pessoas - e interpretada por esse
pesquisador -, com o propósito de nortear as ações relacionadas à aplicação
da autoadvocacia.
3.1.2. Campo de Estudo: famílias assistidas pelo Grupo Espírita Caminheiros
O Grupo Espírita Caminheiros está sediado em um imóvel alugado,
localizado em um bairro residencial de classe média na cidade de Campinas,
Estado de São Paulo. Dentre as suas atividades, desde aproximadamente o
ano de 1990, antes mesmo da sua constituição formal e legal como uma
associação sem fins lucrativos, o Grupo Espírita Caminheiros entrega cestas
básicas a moradores da periferia pobre de Campinas e região. Atualmente
entrega cestas básicas a 23 famílias, envolvendo diretamente
aproximadamente sessenta pessoas em situação de miserabilidade, residentes
104
nas periferias de Campinas, Sumaré e Monte Mor. Os membros das famílias
têm idades variadas: de zero a setenta anos, e a maior parte dos adultos veio
de outras cidades e estados. Não há quem tenha ensino médio, ainda que
incompleto e, com exceção de uma garota muito vivaz, nenhum deles alcançou
sequer o ensino fundamental II. A maior parte é semi-analfabeta. Há duas
mulheres adultas e uma criança de doze anos que são completamente
analfabetas.
Não são adotados critérios oficiais para a classificação das famílias em
miseráveis ou não miseráveis, mas são realizadas visitas aos locais em que as
famílias estão fixadas e entrevistas com seus membros, com a finalidade de
verificar a sua real situação social e financeira. As impressões daqueles que
tiveram o primeiro contato direto com as famílias, que são, via de regra,
trabalhadores voluntários que participam ativamente dos trabalhos, são
relatadas aos demais membros do grupo, para que depois de exames e
considerações decidam se aquela família passará a receber cestas básicas ou
não. A entrega das cestas visa desde o seu início ao exercício da prática da
caridade ensinada por Jesus, já que se trata de uma entidade Cristã.
Em Campinas e região existem outras entidades sem fins lucrativos que
mantêm atividades análogas, as quais, via de regra, assim como era feito no
Grupo Espírita Caminheiros até a intervenção dessa pesquisa, têm caráter
predominantemente assistencialista.
Há alguns anos a mera entrega das cestas básicas às famílias
incomodava o pesquisador. Pensava que o Grupo tinha a obrigação de
oferecer a estas pessoas algo mais. Quando iniciado o Programa de Mestrado
e especialmente a atual pesquisa, houve a ideia, já dentro do princípio de
“fazer um algo mais”, de criar atividades para as famílias nos dias em que elas
iam até o Grupo para retirar suas cestas básicas. O pesquisador decidiu
conversar com as famílias para conhecer quais atividades lhes despertavam
interesse e o que lhes poderia ser útil. Entretanto, ninguém foi capaz de
responder a essas indagações, sem que houvesse algum nível de intervenção
mais diretiva, por parte do investigador. Enquanto apenas o pesquisador falava
os sujeitos estavam atentos, mas quando foram indagados e convidados a
participarem, olhavam para o lado e para o chão, evitando o contato visual com
105
o pesquisador e demonstravam desconforto na medida em que passaram a se
agitar nas cadeiras. Distraíram-se.
Em que pese, então, a intenção inicial ser a de não interferir ou interferir
minimamente nas respostas, para que se pudesse conhecer suas expectativas
e criar atividades que as atendessem, houve a necessidade de relacionar
algumas atividades, com base na pressuposição do investigador a partir dos
dados documentais já conhecidos e da percepção desse quanto ao contexto
dessas famílias. Elaborou-se, dessa forma, uma lista de atividades que
poderiam ser interessantes e úteis para os membros das famílias, conforme
sexo e idade. Foi um elemento disparador, e solicitou-se que as famílias
escolhessem algumas das atividades listadas.
Finalmente, foram criadas atividades relacionadas à elétrica residencial
para os homens adultos, informática para as crianças alfabetizadas e jovens,
manicure, pedicure e cozinha para as mulheres adultas, além de 30 minutos
para palestras com todos. Essas teriam como base, independentemente do
tema central, a educação freireana e a autoadvocacia. Na sequência, o
pesquisador solicitou uma reunião com todos os trabalhadores voluntários e
frequentadores do Grupo e expôs a ideia da criação das atividades e a sua
motivação. Houve concordância e adesão apenas parcial, mas conseguimos
levar a ideia adiante.
A consciência crítica nos desafiou e também a alguns dos trabalhadores
voluntários, embora a maior parte tenha se incomodado com as novas
propostas e dimensões do trabalho, a ponto de provocar grande evasão dos
membros do Grupo, o que comprometeu seriamente as atividades
anteriormente planejadas com as famílias.
Além de o pesquisador respeitar as famílias pesquisadas, também
respeita a decisão daqueles trabalhadores voluntários que optaram por não
aderir aos novos rumos das atividades. Tanto os trabalhadores voluntários
quanto os membros das famílias pesquisadas são sujeitos de direito e têm
plenas condições e capacidade de exercitar suas escolhas e tomar suas
decisões. Trata-se de uma mudança relativamente traumática, que causa a
ruptura de conceitos e ideologias em todos nós.
106
No entender freireano o opressor também precisa se libertar. E nos
opressores, assim como nos oprimidos, o medo da liberdade também se
instala. “Nos opressores, é o medo de perder a ‘liberdade’ de oprimir” (FREIRE,
2011b, p. 18).
3.1.3. População Participante
As pessoas envolvidas no estudo são as que compõem as famílias
assistidas pelo Grupo Espírita Caminheiros, especialmente os adultos, em
decorrência do perfil da pesquisa. Da pesquisa participaram diretamente vinte
“assistidos”, selecionados por apresentarem, na visão do pesquisador, perfil
mais adequado para a prática da autoadvocacia e da educação
sociocomunitária, porque vivem em situação de risco familiar em decorrência
de histórico atual de vícios, violência doméstica e maternidade precoce, e em
condições econômicas e de habitação das mais precárias, com exceção de
uma das pesquisadas que habitava com sua família uma residência popular de
alvenaria.
O conjunto de sujeitos diretos da pesquisa estava composto por três
homens e oito mulheres adultas, com idade entre dezoito e sessenta e cinco
anos, além de nove crianças e jovens com idade de zero a dezessete anos.
Não houve qualquer distinção quanto ao gênero, idade, opção sexual, cor de
pele, religião, origem, entre outros. Em que pese certa diversidade no perfil dos
membros da pesquisa, é possível relacionarmos algumas características
comuns:
a) Com exceção de uma mulher, todos os demais estão
desempregados (sem emprego formal);
b) Os que exercem alguma atividade remunerada trabalham em
subempregos (informais) ou “bicos”;
c) Recebem ajuda de terceiros (governo ou entidades assistenciais);
d) Residem com filhos próprios e dos companheiros ou companheiras e
com pelo menos mais algum membro da família;
107
e) Nenhum deles alcançou o ensino médio;
f) Não há nenhum negro;
g) Nenhum casal formalizou legalmente o matrimônio;
h) Todos residem na periferia pobre de Campinas ou de cidades
vizinhas;
i) Alguns adultos, homens e mulheres, já tiveram passagem pela
polícia; e
j) Todas as crianças em idade escolar estão matriculadas em escolas
públicas do bairro onde residem.
Os sujeitos da pesquisa não habitam o mesmo bairro, mas têm em
comum o fato de residirem em casebres feitas de madeira montados por eles
próprios em área invadida, com exceção de uma mulher, a única que trabalha
com vínculo formal, que habita com sua família uma casa de alvenaria
adquirida por meio de um programa público de casa popular.
Os sujeitos da pesquisa, com exceção da que reside em casa de
alvenaria, têm sua residência fixada em bairros que não oferecem infra-
estrutura básica. Nos locais verifica-se a existência de muitos casebres que se
espremem, uns bem construídos, simétricos e sem vãos livres, e mantidos com
zelo: pintados, lixados e limpos, em meio a outros que se apresentam como
verdadeiros caixotes, contendo vãos que permitem a visibilidade de todo o seu
interior por quem transita na rua, muito mal construídos, com madeiras de má
qualidade mantidas em seu estado natural. Alguns poucos são construídos de
alvenaria, outros de madeira, e ambos se misturam no ambiente. O chão do
interior dos casebres é de terra batida, mas os parcos móveis são mantidos
asseados, assim como as vestes de seus habitantes. Há uma pequena
“cozinha” e um pequeno banheiro nos casebres. As crianças apresentam-se
limpas, bem vestidas e tem boa aparência, em que pese serem, via de regra,
mirradas e aparentemente sofrerem de algum grau de desnutrição. A exceção
fica por conta de uma das famílias pesquisadas, cujo interior de seu casebre é
lamentável: sujo, móveis, roupas e outras coisas empilhadas, vestimentas com
aparência “ensebada”, assim como seus habitantes. Nesta última residência
não há banheiro e “cozinha”.
108
Não há energia elétrica legalmente instalada nas casas e nas ruas,
sendo que as pessoas fazem ligações clandestinas, chamadas de “gatos”, para
terem energia elétrica em seus casebres, o que sujeita toda a coletividade a
risco iminente de curto circuito e incêndios. Não há saneamento básico
prestado pela concessionária de serviços públicos. As pessoas constroem
fossas em seus banheiros, as ruas não são asfaltadas e permitem acesso
parcial muito precário de veículos. Não há posto de saúde, escola pública e
coleta de lixo. Quando precisam de atendimento médico, se deslocam por
quilômetros até o posto de saúde ou hospital mais próximo. As crianças são
matriculadas em escolas públicas de bairros vizinhos e o lixo é jogado
diretamente nas ruas, sem nenhum acondicionamento, o que representa risco
à saúde de toda a população do bairro e lhe dá aparência degradante de lixão.
O policiamento e os agentes de saúde não chegam até o local. Prevalece o
poder paralelo dos traficantes de drogas que agem livremente no local. O
transporte público não chega até o local. “[…] aspectos típicos de uma área
discriminada.” (FREIRE, 1981, p. 18) Ou seja, o Poder Público, direta e
indiretamente, simplesmente não reconhece que os referidos bairros são
habitados. As pessoas que neles habitam não existem para o Estado.
Uma das mulheres que participou da pesquisa reside em uma casa de
alvenaria, adquirida por meio de um programa público de casas populares. O
bairro, populoso, conta com algumas ruas asfaltadas outras não, uma creche e
serviço público precário de coleta de lixo. Não há escola e posto de saúde. As
crianças são matriculadas em escolas públicas do bairro vizinho e quando é
necessário atendimento médico, as pessoas são obrigadas a se deslocarem
por quilômetros. A casa da pesquisada está localizada em uma rua asfaltada e
apresenta um bom acabamento interior. O exterior é precário. Por dentro a
casa é relativamente limpa mas mal iluminada.
109
3.1.4. Instrumentos de coleta de dados qualitativos
O pesquisador utilizou-se de diversos instrumentos na coleta de dados.
Dentre eles destacam-se a observação participante, pois os dados foram
coletados e construídos em contato direto com as pessoas pesquisadas, tanto
na sede do Grupo, como também em suas moradias. Isso possibilitou a
imersão nas circunstacialidades dos sujeitos, que também se tornaram - ainda
que momentaneamente - àquelas do pesquisador. E a entrevista não-diretiva,
uma vez que o pesquisador colheu percepções e perspectivas dos sujeitos, por
meio de discursos livres dos entrevistados. Para Chizzotti:
A observação direta ou participante é obtida por meio do contato direto do pesquisador com o fenômeno observado, para recolher as ações dos atores em seu contexto natural, a partir de sua perspectiva e seus pontos de vista. […] A entrevista não-diretiva, ou abordagem clínica, é uma forma de colher informações baseadas no discurso livre do entrevistado. (CHIZZOTTI, 2000, p. 90)
Os dados mais “formais” foram coletados desde o início da pesquisa, em
agosto de 2011, o que foi viabilizado e facilitado porque desde 2005 o
pesquisador pertence aos quadros de frequentadores e trabalhadores
voluntários do Grupo Espírita Caminheiros. As falas e depoimentos dos sujeitos
foram registrados, de forma escrita pelo pesquisador, logo depois de
ocorrerem. Não foram gravados em virtude da nítida inibição e desconforto que
tal atitude provocava nos participantes; fato este percebido por meio de seus
gestos e alteração nítida e repentina de comportamento nas primeiras
conversas investigativas que o pesquisador teve com os mesmos, ao
questioná-los sobre a sua anuência para a utilização do recurso da gravação.
Desta forma, além do respeito à decisão dos entrevistados, ainda que esta
tenha se dado de forma implícita, o pesquisador considerou que não seria
positivo arriscar a possibilidade da ocorrência de potenciais desfigurações nos
depoimentos, respostas e/ou nas situações vivenciadas, provocadas pelo uso
do gravador.
110
Isso, contudo, exigiu que o pesquisador escolhesse determinados
momentos para mais propriamente sistematizar a coleta e o registro das falas e
tomadas de depoimentos, que ocorreram tanto na sede do Grupo quanto no
domicílio dos participantes. Cuidados foram tomados para que o contato
pesquisador-participantes fosse de compartilhamento das situações de forma
integrada, estabelecendo-se vinculações de confiabilidade.
O pesquisador transcreveu cuidadosamente as falas e impressões de
forma a garantir a sua fidedignidade, de maneira que o leitor possa conhecer o
que de fato os participantes disseram, respeitando-se as inevitáveis distorções
provocadas pelo viés interpretativo do pesquisador. Desde o início da pesquisa
os dados colhidos foram arquivados em documentos virtuais, no formato Word
do Microsoft Windows, no computador do pesquisador, e foram identificados
por local e data das entrevistas e conversas. Todos os dados foram colhidos
diretamente pelo próprio pesquisador.
3.1.5. Considerações sobre a Ética no Estudo
A “suspensão” consciente de pré-julgamentos foi uma preocupação
constante, tanto na transcrição dos depoimentos quanto na interpretação dos
fatos observados pelo pesquisador. Especialmente pelo hábito, de certa forma
cristalizado nos trabalhadores voluntários do Grupo, ai incluído o pesquisador,
de oferecer para as famílias pesquisadas meras atividades assistencialistas. O
que parece conduzir a um habitus mental de olhar essa população como
“adormecida”. À medida, contudo, em que o pesquisador se aprofundava nos
estudos das disciplinas cursadas e em sua pesquisa, além do precioso
aprendizado tomado junto aos professores do Programa de Mestrado e com
sua orientadora, passava a se desalienar e corrigir a rota das atividades
desenvolvidas com as famílias pesquisadas. Compartilhava suas descobertas e
aprendizados com os demais trabalhadores voluntários do Grupo para
transformar as atividades em uma educação no modelo freireano. E o que
111
antes era apenas assistencialismo barato, embora empreendido com
sinceridade e boas intenções, começou a transformar-se.
3.2. A educação para a autoadvocacia junto às famílias assistidas pelo Grupo Espírita Caminheiros
A intervenção aqui relatada provocou importantes alterações nos rumos
dos trabalhos desenvolvidos pelo Grupo Espírita Caminheiros. É importante
lembrar que a pesquisa foi motivada por questões de foro íntimo do
pesquisador, quanto ao modo como o atendimento às famílias estava sendo
interpretado e conduzido, de modo totalmente assistencialista. As cestas
básicas, já referidas, eram entregues às famílias assistidas todo segundo
sábado de cada mês. As famílias começavam a chegar a partir das 8h,
pegavam um número sequencial e sentavam-se em cadeiras localizadas no
fundo da casa – sede do Grupo -, em um salão, e aguardavam até às 9h / 9h
30min, quando lhes eram servidos pães com manteiga e leite com
achocolatado. Alguns trabalhadores voluntários trocavam algumas palavras
com as pessoas atendidas e logo em seguida eram chamadas a retirarem as
cestas básicas por meio da numeração de que eram portadoras, na ordem de
chegada.
Depois que o pesquisador conversou e procurou conscientizar o Grupo
acerca da necessidade de educar as famílias, visando o seu despertamento
para uma consciência crítica, responsabilidade e autonomia por meio de
conceitos freireanos e da prática da autoadvocacia, foi possível aprovar
mudanças na sistemática assistencialista. O novo projeto de atendimento não
ficou sem resistências, manifestas por aqueles que tiveram a coragem de
assumir, ainda que indiretamente, que da maneira como “historicamente” o
Grupo procedia estava bom para todos. Enquanto alguns trabalhadores
voluntários não opinaram naquele momento, mas demonstraram nítido
desconforto estampado em seus rostos, olhos e movimentos corporais, outros
se manifestaram timidamente no seguinte sentido:
112
Isso não vai dar certo porque eles não vão querer vir mais uma vez por mês sem ganhar nada com isso (mais alimento). Não é possível dividirmos as cestas básicas em duas. Como vamos dividir o saco de arroz, feijão e macarrão? E os itens que são oferecidos unitariamente? Não vai dar. Bom, eu também acho que não vai dar certo. Mas quem vai dar as atividades? Onde as atividades serão realizadas, se a casa é pequena? O espaço não é adequado.
Por outro lado, houve trabalhadores voluntários que disseram,
igualmente acanhados, concordar com a proposta porque se identificavam com
a sua fundamentação, e foi graças a esses que a proposta foi colocada em
prática.
Neste momento o pesquisador procurou desenvolver uma escuta
sensível da reação dos trabalhadores voluntários, ouvindo respeitosamente o
que tinham a dizer. Embora diga respeito aos alunos, o ensino de Freire (2002,
p. 43) sobre a escuta pode ser plenamente aplicado no caso ora relatado:
Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a ferir com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele. Mesmo que, em certas condições, precise de falar a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente. Até quando, necessariamente, fala contra posições ou concepções do outro, fala com ele como sujeito da escuta de sua fala crítica e não como objeto de seu discurso. O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário, ao aluno, em uma fala com ele.
Ademais, Freire alertava para o fato de que os opressores também têm
medo da liberdade e sofrem com isso. “Descobrir-se na posição de opressor,
mesmo que sofra por este fato, não é ainda solidarizar-se com os oprimidos”
(FREIRE, 2011b, p. 19), daí a resistência presenciada pelo pesquisador.
O pesquisador se reuniu com as famílias para consultá-las e mais uma
vez tentou colher suas opiniões, sobre quais os rumos que o trabalho deveria
tomar para mais bem servi-las. Uma vez mais, embora estimuladas por
diversas maneiras, a participação das famílias foi muito aquém do esperado.
113
Alguns se limitaram a opinar apenas depois que algumas sugestões lhes foram
apresentadas, outros nem assim. O pesquisador procurou conscientizar os
sujeitos da pesquisa de que a sua participação era muito importante para o
Grupo também, porque todos temos algo a ensinar, foi quando um dos homens
disse, demonstrando concordância e satisfação por seus trejeitos e cabeça
elevada:
Quando você tá ai falando nóis aprende com você, mais vocêis aprende com a gente também. A gente tem coisas pra ensina pra vocêis também. Não é?
Foi quando alguns “assistidos” manifestaram-se ironicamente,
zombando do participante e rindo. Imediatamente, o pesquisador concordou
com o manifestante e ratificou a importância da participação de todos porque o
Grupo deseja muito aprender com eles e que todos sempre temos, sim, algo a
ensinar e aprender. O pesquisador citou algumas habilidades conhecidas,
como um dos frequentadores, que faz trabalhos esporádicos como pintor de
paredes, outro como eletricista, e algumas mulheres que sabem como limpar
madeira, ou cozinhar, esclarecendo que ele próprio não sabia fazer aquelas
coisas com a mesma destreza e que, portanto, gostaria de aprender com eles.
O pesquisador incentivou os sujeitos a participarem das atividades também
como “instrutores”, valorizando-os em uma tentativa de “aproximá-los” dos
trabalhadores voluntários quanto as suas capacidades. Foi quando este
mesmo “pintor” se manifestou timidamente, demonstrando desconforto pela
sua expressão corporal, voz baixa e olhar “perdido”:
Eu posso ajudar.
O que foi imediatamente aceito pelo pesquisador, que valorizou a sua
colaboração e esclareceu, ainda, que ele poderia ensinar as pessoas de seu
bairro a pintarem as suas casas, assim como as demais pessoas poderiam
compartilhar seus talentos na comunidade em que vivem, impulsionando a
fraternidade e o progresso do local. Não houve mais nenhuma manifestação
depois disso, mas o pesquisador percebeu que, ao menos aparentemente, as
pessoas mudaram a sua postura e passaram a demonstrar mais interesse
114
depois do fato ora relatado, notadamente pela maneira como se sentavam e
andavam: mais eretas. Para o oprimido, participar, ter voz é muito difícil porque
não está acostumado a ser ouvido e muito menos respeitado. Para que
participar se não será ouvido, se sua opinião não será considerada? Os
sujeitos não podem expressar o seu querer por meio de palavras pessoais,
criadoras, “[…] perderam a sua identidade, isoladas, imersas na multidão
anônima e submissas a um destino que lhes é imposto e que não são capazes
de superar, com a decisão de um projeto.” (FREIRE, 2011b, p. 10).
Pensou-se, então, em visitar algumas das famílias para que o
pesquisador pudesse conversar com elas num ambiente mais “seguro”, para
verificar se a participação se faria mais efetiva, o que não ocorreu. Com base
nos parcos elementos extraídos da participação de alguns e do depoimento de
todos os que foram ouvidos, bem como dos documentos referentes às famílias,
existentes na entidade - dados cadastrais - elaborou-se o programa e as
atividades a serem desenvolvidas. Depois desta definição, o pesquisador e
alguns trabalhadores voluntários se reuniram com as famílias e discutiram com
elas sobre as alterações que seriam empreendidas quanto aos horários,
dinâmica de atendimentos, além das opções de atividades. Embora tenha
havido pouca participação ativa, houve clima de contentamento e a “aceitação”
foi unânime. Em que pese serem novamente estimulados, ninguém desejou
sugerir alterações nos horários, formato e atividades.
Essa força condicionante chamada por Freire de “cultura do silêncio” é
muito difícil de ser rompida, porque ainda que as condições de opressão não
estejam presentes, o poder da estrutura dominadora permanece não como
reminiscência, mas como algo concreto para as pessoas oprimidas, o que
interfere no que-fazer novo que a nova estrutura demanda destes. “Nenhuma
“ordem” opressora suportaria que os oprimidos todos passassem a dizer: “Por
quê?”” e participassem (FREIRE, 2011b, p. 43). Historicamente, as classes
dominantes impõem o silêncio como regra aos dominados, que são proibidos
de dizer a sua palavra. Desta forma, na “cultura do silêncio” a única voz é a da
classe dominante.
Esta “cultura do silêncio”, gerada nas condições objetivas de uma realidade opressora, não somente condiciona a forma de
115
estar sendo dos camponeses enquanto se acha vigente a infra- estrutura que a cria, mas continua condicionando-os, por largo tempo, ainda quando sua infra-estrutura tenha sido modificada. (FREIRE, 1981, p. 27)
A seguir, o pesquisador passou a convidar as pessoas, individualmente,
para mais uma conversa. Sentamo-nos em uma sala reservada, na sede do
Grupo, e uma vez mais falou-se sobre as alterações e atividades,
esclarecendo, em linguagem acessível, sobre a intenção e propósito de propor
esse novo formato de trabalho. Nesta mesma oportunidade o pesquisador
explicou sobre a pesquisa acadêmica que estava realizando, e convidou todos
a participarem, porém, com mais ênfase, aos vinte participantes que, pelas
razões anteriormente mencionadas, compuseram os sujeitos desse estudo. A
esses foi solicitado que assinassem o Termo de Esclarecimento e
Consentimento Livre, conforme modelo demonstrado como Anexo 1, o qual foi
assinado por todos os convidados a tanto.
Aproveitou-se para tentar estimular a participação de todas as pessoas
que compareciam à sede do Grupo mais uma vez, ressaltando a importância
dessa participação e a disposição dos voluntários e do pesquisador em
considerar a seriedade do trabalho proposto. Não houve maiores dúvidas, com
exceção das crianças e adolescentes, que desejavam saber se haveria jogos
eletrônicos nas aulas de informática. Finalmente, solicitamos às pessoas que
optassem por apenas uma das atividades oferecidas, já que todas
aconteceriam no mesmo período, e convidamo-las a preencher a Ficha de
Inscrição, conforme modelo demonstrado como Anexo 2.
O momento em que solicitamos o preenchimento da Ficha de Inscrição,
cuja intenção foi a de organizar as atividades conforme o número de alunos e
empreender um caráter de seriedade, responsabilidade, integração e respeito
aos trabalhos, foi aquele em que nos conscientizamos do analfabetismo
absoluto de um jovem de 12 anos que, aparentemente, não é uma pessoa
portadora de deficiência ou limitação intelectual. Impressionou-nos o fato de
que muitos desconhecem o local de nascimento (cidade e estado) e a data
desse, inclusive as crianças. Aqueles que portavam seu documento de
identidade tiveram que consultá-lo.
116
A partir de setembro de 2011, quando a nova proposta foi feita, a
programação passou a ser a seguinte: as cestas básicas passaram a ser
entregues em duas partes, metade no segundo sábado e a outra metade no
quarto sábado de cada mês, para que as pessoas fossem incentivadas a virem
até o Grupo para desenvolver as atividades planejadas, já que considerávamos
pouco o seu contato conosco e o desenvolvimento das atividades apenas uma
vez ao mês. Houve acréscimo na quantidade de leite entregue para as famílias
para reforçar as cestas básicas.
Depois de algumas discussões, o Grupo decidiu custear a ida e volta
das famílias no quarto sábado de cada mês, já que todos informaram, quando
indagados, que não teriam condições financeiras de pagar pelo transporte
público para frequentarem o Grupo um dia a mais por mês, especialmente
porque a maior parte dependia de quatro a seis ônibus para se deslocar da sua
residência até a sede do Grupo.
O horário de chegada passou a ser até às 8h30min, com tolerância de
30min. Pontualmente às 9h inicia-se a palestra, geralmente tendo como tema
central os ensinamentos de Jesus, sempre com ênfase na responsabilidade de
nossos atos, abordando questões atuais com visão crítica, o futuro como
possibilidade, a desmistificação e o desmentir de dogmas, como “destinos”,
punições, pecados e milagres e incentivando as pessoas a buscarem seus
direitos. As palestras são elaboradas cuidadosamente, para que tenham forte
conteúdo da educação freireana, da autoadvocacia e da participação coletiva
nas lutas por demandas da comunidade. O pesquisador, que é quem programa
os temas e os enfoques, e mais dois trabalhadores voluntários, se revezam na
condução das palestras.
Com o fim da palestra, às 9h30min, o pão com manteiga e o leite com
achocolatado passam a ser servidos para as famílias, conscientizando-as de
que os copos descartáveis e os papéis devem ser depositados nas diversas
lixeiras existentes no local. Aproveitamos para abordar temas básicos sobre
higiene, limpeza e consciência ecológica, já que algumas famílias têm sua
habitação fixada em meio a ambientes sujos e insalubres, onde as pessoas
depositam seus detritos diretamente na rua, sem acondicionamento, porque o
serviço de coleta não chega até o local. Alguns dos trabalhadores voluntários,
117
atendendo a uma proposta conscientizadora enérgica da parte do pesquisador,
passaram a tomar o café da manhã junto às famílias, no salão. Nos
“misturamos” a eles e conversamos francamente. Antes, quase todos tomavam
seu leite e comiam seu pão na cozinha, onde as famílias não tinham acesso.
É necessário que os trabalhadores voluntários, notadamente quando
assumem a missão ou pretensão de educar, reconheçam a sua verdadeira
condição e, se reconhecerem-se como opressores, movimentem-se
rapidamente para a sua própria libertação, a qual só será alcançada por meio
do contato respeitoso e do diálogo com as pessoas oprimidas, porque apenas
estas poderão libertá-los. A relação dos trabalhadores voluntários com os
sujeitos da pesquisa, pessoas oprimidas, deve ser horizontal, dialógica e
amorosa, como ensinava Freire. Para tanto, um dos primeiros esforços que os
opressores devem fazer é libertarem-se da ideologia mítica opressora da
“absolutização da ignorância” decretada às pessoas dominadas, a fim de que a
palavra das famílias seja devolvida. Os opressores, aqui representados pelo
pesquisador e pelos demais trabalhadores voluntários do Grupo, devem saber
ouvir e respeitar a realidade e as opiniões das famílias, seus sentimentos e
desejos, seus sonhos e frustrações, sua história e sua falta de perspectiva,
sem que as considerem coisas incapazes e para que compreendam porque
não são coisas incapazes, mas apenas pessoas oprimidas pelo Estado
neoliberal. Para tanto, o pesquisador e os demais trabalhadores voluntários do
Grupo precisam se aproximar amorosa e respeitosamente dessas famílias.
No ato desta decretação, quem o faz, reconhecendo os outros como absolutamente ignorantes, se reconhece e à classe a que pertence como os que sabem ou nasceram para saber. Ao assim reconhecer-se tem nos outros o seu oposto. Os outros se fazem estranheza para ele. A sua passa a ser a palavra “verdadeira”, que impõe ou procura impor aos demais. E estes são sempre os oprimidos, roubados de sua palavra. (FREIRE, 2011b, p. 75)
As atividades que passaram a ser oferecidas foram:
a) Noções de elétrica para os homens adultos, atividade esta
desenvolvida no salão dos fundos, onde todos se reúnem quando chegam. Um
engenheiro e um professor do SENAI, já aposentado, se revezam nesta
atividade. Ambos são trabalhadores voluntários. A intenção é a de que os
118
participantes possam realizar pequenos reparos residenciais, para aumentar as
chances de conquistar um emprego formal e serem capazes de realizar
pequenos trabalhos avulsos.
b) Informática para os jovens e crianças maiores de oito anos, realizada
em um dos quartos da casa, onde existem quatro computadores em perfeito
funcionamento. Um voluntário, com formação em engenharia, conduz as aulas,
visando à inclusão digital dos alunos.
c) Manicure e pedicure, oferecida por uma voluntária, para as mulheres
adultas, com a finalidade de possibilitar que consigam desempenhar uma
atividade remunerada alternativa, enquanto estiverem desempregadas.
d) Culinária, sendo ensinadas receitas que têm como propósito o
aproveitamento completo dos alimentos, inclusive sobras e cascas. Noções de
higiene, organização, manipulação de alimentos, nutrição, entre outros, visando
à aplicação dos conceitos em casa e também na residência onde prestam
serviços. As aulas são conduzidas por duas voluntárias na cozinha da sede do
Grupo e é a atividade que conta com maior número de participantes.
e) Tricô e crochê para as senhoras que não desejam se envolver nas
demais atividades.
f) Educação infantil. Um grupo de cinco voluntários, incluindo uma
pedagoga com experiência de mais de vinte anos de trabalho com ensino
infantil em escolas públicas de periferia, têm propósito de entreter as crianças
de até 7 anos, que são bastante numerosas, para que seus pais possam
participar das atividades e, principalmente, educá-las com base nos conceitos
freireanos. São a esperança maior de um futuro melhor para as famílias.
A intenção maior das atividades é a de aproximar as famílias dos
trabalhadores voluntários, para que possam trabalhar os conceitos de
autonomia, despertar a consciência crítica, desenvolver de forma positiva as
suas crenças de auto-eficácia, conscientizá-los sobre o futuro como
possibilidade e a sua correspondente responsabilidade e desenvolver a
capacidade da prática da autoadvocacia, como possibilidade da educação
sociocomunitária, que possa contribuir para a promoção da transformação
social das famílias e comunidades em que vivem.
119
Essa nova proposta foi iniciada no dia dez, do mês de setembro de
2011, como já mencionado. Nessa ocasião, como já havia feito algumas vezes,
o pesquisador foi até o salão e sentou-se ao lado de pequenos grupos, que se
formavam naturalmente, conforme as afinidades que já haviam se estabelecido
pela convivência naquele ambiente. Conversavam sobre trivialidades. O
pesquisador passou a conduzir a conversa, sutilmente, a assuntos com viés
social e se aprofundou sensivelmente nos pensares e sentires dessas famílias.
Notou-se que as famílias, em regra, são alienadas quanto aos seus
direitos. Desconhecem-nos e o discurso foi muito semelhante quando
questionadas sobre o motivo pelo qual não tomavam uma atitude e não se
engajavam, a exemplo, em associações de bairro, ou se reuniam
organizadamente para lutar por asfalto, creches, escolas, postos de saúde,
ligação de energia elétrica, saneamento básico etc., no bairro e na comunidade
para melhorar a situação em que vivem:
Tá tudo bem. Fazer o que? Não adianta reclamar. Reclamar pra quem? Ninguém tá nem ai com os problemas da gente. E adianta…? Tá bom. A gente dá um jeito.
A leitura do pesquisador é a de que essas falas demonstram desamparo,
desânimo, alienação profunda e percepções negativas quanto as suas crenças
pessoais de auto-eficácia. A ponto de, ainda que “conscientizadas” ou, antes,
informadas de seus direitos, continuarem acreditando que não merecem ou
que não é possível alcançar a sua efetivação. O pouco que o Estado lhes dá -
a atenção precária nos postos de saúde, a não coleta do lixo, a fragilidade do
ensino... - já parece estar “de bom tamanho”. Agem e vivem conforme regras
próprias da comunidade onde vivem. A maior parte não parece ter a
consciência da importância dos estudos para seus filhos, porque o “destino”
deles também já está fixado na miséria e exclusão social, que, obviamente,
eles não percebem como tal. Desejam que os filhos comecem a trabalhar o
mais rapidamente possível, para colaborar na subsistência da casa.
Verificou-se que as pessoas pesquisadas têm noção totalmente
desvirtuada e incompleta do que seja justiça, tanto pela ausência do Estado
120
nos locais onde moram quanto pela atividade e domínio de criminosos, que
estabelecem as suas próprias leis por meio de um poder paralelo. Nestes casos,
a aplicação da autoadvocacia se torna muito complexa e aparentemente impossível,
porque o poder paralelo rompe a coesão social e os traços de liberdade da comunidade
agredida, para a qual a sobrevivência passa a depender da capacidade de adaptação às
regras dos oprimidos-opressores. O instinto de sobrevivência e o egoísmo passam a
prevalecer, a lei do silêncio e a coisificação dominam o ambiente, sem nenhuma
resistência dos sujeitos oprimidos. Ao exigirem a presença da polícia no local a fim de
que seja instituído o poder legal, o denunciante e seus familiares serão executados.
As relações familiares, principalmente relacionadas ao casal, são
estruturadas diferentemente das convencionadas pela sociedade. Há mais de
um caso em que a mulher deixa o marido para ficar com o irmão e todos
continuam convivendo no mesmo meio, sem maiores conflitos. As crianças, via
de regra, são bem cuidadas fisicamente. Tanto nas visitas as suas residências
como na frequência ao Grupo, o pesquisador notou asseio e cuidados
nutricionais, por parte dos cuidadores, mas em ambos os ambientes as
crianças são tratadas com estupidez e violência, física e verbal. Os diálogos
equilibrados são raros.
O pesquisador constatou que, via de regra, a mulher é quem toma a
frente da maior parte dos assuntos em casa. No Grupo, os poucos
companheiros que acompanham as mulheres vão mais para ajudar no
transporte dos mantimentos e menos para participarem.
Outras falas ouvidas aqui e ali consolidam a ideia do quanto a
penetração do discurso assistencialista está corporificada nessa população. O
pesquisador ouviu de uma das frequentadoras que, aborrecida, se lamentava
de que passou a ser registrada pelo “patrão” e por isso perdeu a Bolsa Família.
Apesar de muito pobres, vestem-se muito bem (a sua maneira). As
mulheres comparecem sempre com cabelos cortados e penteados, adultos e
crianças sempre limpos e demonstram vaidade. Alguns usam piercing e
tatuagem. Alguns trazem no rosto as marcas da vida, talvez agravadas pelo
uso de drogas e álcool, traço comum entre eles.
No dia primeiro de outubro de 2011, na companhia de um dos
colaboradores mais ativos do Grupo Espírita Caminheiros, chamado Manoel, o
121
pesquisador foi visitar algumas famílias. As visitas são feitas periodicamente e
as famílias não são avisadas. Não se trata de fiscalização, mas de uma
tentativa de aproximação menos “burocrática” daquela vivenciada na sede do
Grupo, além de verificar eventual grave necessidade não reclamada. Nesse
caso, as famílias visitadas compunham aquela dos sujeitos que aceitaram
participar da pesquisa. No bairro Aparecidinha, em Campinas, foram visitadas
três famílias. “Afundaram-se” bairro adentro até terminar o asfalto. Percorreram
mais uns 500 metros em rua precária de terra. O tempo estava muito bom,
ainda assim havia muitos buracos, que dificultavam a passagem do veículo.
A primeira família visitada vive em um pequeno barraco feito de madeira.
O pesquisador estima que a habitação toda não tenha mais do que 15m2.
Foram atendidos pela mulher, que aparentava desânimo e informou estar
doente, necessitando passar por procedimento cirúrgico. Estava vestida com
discrição e limpeza. Tinha um piercing na sobrancelha. Era sábado, passava
das 10h e o companheiro estava dormindo. Não há divisória, não há banheiro e
não há água encanada. A energia elétrica chega através de “gatos” (ligação
clandestina). A situação é de extrema precariedade. Móveis empilhados, local
abafado, sem circulação de ar, sujo e degradante. As condições gerais de
higiene são lamentáveis, inclusive quanto ao fogão, que acomodado
desalinhadamente ao lado da porta de entrada, apresenta uma crosta escura
de sujeira em toda a sua extensão, principalmente na parte de cima.
Observamos a existência de verduras em contato direto com o móvel
enferrujado. Não há geladeira. Há uma televisão e um vídeo game para a
criança, que é bastante magra, aparentando desnutrição. O entorno da
habitação é um esgoto a céu aberto. A família utiliza o mato em frente à
residência para suas necessidades fisiológicas, sem que aparentem
constrangimento em decorrência disso. Demonstram muita naturalidade, aliás.
O pesquisador conversou com a mulher sobre solicitar à Prefeitura
materiais de construção para a edificação de uma pequena casa de alvenaria,
ao que respondeu que o bairro todo fora habitado por meio de invasão, ainda
não regularizada. Foi esclarecido que, ainda que o bairro esteja habitado
irregularmente, seus moradores devem buscar, junto ao Poder Público,
estrutura para a comunidade que ali vive, especialmente de serviços
122
essenciais, e também nas concessionárias de serviços públicos a instalação de
energia elétrica, água e esgoto. Além de se inscreverem em programas de
moradia popular. Finalmente, o pesquisador procurou conscientizá-la sobre a
higiene dos alimentos e a necessidade de solicitar a ajuda da comunidade para
a construção de um banheiro em sua habitação. A mulher apenas concordava
e não participava ou opinava, limitando-se a dizer que nenhuma das propostas
apresentadas era possível. O pesquisador se colocou à disposição para ajudá-
la.
Enquanto o pesquisador dialogava com a referida mulher, também
tentava discutir sobre possíveis questões que podiam incomodá-la, como a
ausência do banheiro, e buscava provocar a emersão de uma visão critica do
ambiente em que vivia, conscientizando-a sobre seus direitos e lhe oferecendo
alternativas para a sua efetivação. A consequência por ele esperada disso tudo
é que ela vislumbrasse um futuro melhor, tivesse perspectivas de um futuro
como possibilidade, a medida em que interviesse no presente. Mas não é isso
que esta mulher tem presenciado durante toda a sua vida, não é isso que seu
pai/família vivenciou e lhe transmitiu. Ela vem de um ciclo fechado e
“eternizado” de miséria e seu destino está “traçado” neste sentido, e ela
internaliza que não há o que fazer sobre isso. É muito maior do que ela própria
e essa ideologia lhe esmaga e rouba sua ação, sua voz e sua vida.
O pesquisador e o Manoel deixaram o carro na primeira casa visitada
para prosseguirem a pé, já que as duas outras casas eram próximas dali e a
via não apresentava condições de trânsito com o veículo. A segunda casa que
visitaram era vizinha. Lado a lado. Parte de alvenaria e parte de madeira. Estão
construindo um “puxadinho”, que será mais um cômodo. Mesmo o chão sendo
de terra, a casa é limpa, maior e muito organizada. Ao contrário da habitação
anterior, esta estava pintada e havia um portãozinho baixo, feito de madeira,
separando a rua do interior. A “dona da casa” estava varrendo seu “jardim”
(chão de terra), demonstrando muita satisfação e energia. Recebeu-os
aparentando alegria. Contou-lhes sobre a reforma e informou que o marido
estava trabalhando. Conversaram um pouco mais e foram para a outra casa. O
Manoel informou que esta família pegava cestas básicas até aproximadamente
3 meses atrás e que eles mesmos informaram ao Grupo que deixariam de levar
123
os mantimentos porque estavam em condições melhores e que “era para dar
para outra família mais necessitada”.
A terceira casa que visitaram é de alvenaria. Nitidamente mal construída,
rebocos para fora e sem acabamento. Ali moram dois casais jovens e seus
filhos. Todos frequentam o Grupo e retiram uma cesta básica por casal. Não
havia campainha, então decidiram bater palmas. Foram atendidos pelos casais,
que demonstraram muita satisfação com a visita. Convidaram-lhes para entrar
para tomar um cafezinho, que tinha acabado de ser “tirado”. Por dentro a casa
é muito organizada e muito limpa. Poucos e simples os móveis que guarnecem
a residência. Apesar de muito simples, tinha seus encantos. De forma humilde,
as crianças estavam bem vestidas e limpas, assim como os jovens pais. Não
havia ninguém ali sem camisa, embora estivesse calor e a casa fosse pouco
arejada. O café estava pronto e os visitantes foram muito bem recebidos na
sala, conjugada com a pequena cozinha, e convidados a voltar. O pesquisador
e o Manoel conversaram informalmente com os casais e procuraram
conscientizá-los e incentivá-los a buscar melhorar as condições do bairro em
que vivem por meio de ações coletivas, a exemplo do que fizeram com a
mulher na primeira casa visitada. Colocaram-se à disposição para tanto, sem
que houvesse qualquer manifestação imediata.
É importante ressaltar uma vez mais, neste momento, que com a
autoadvocacia e com a educação sociocomunitária o pesquisador não pretende
solucionar todos os problemas das famílias pesquisadas, conforme Paulo
Freire alertava a sua maneira. Mas tentar iluminar a consciência dos sujeitos
pesquisados para que desenvolvam uma visão crítica da realidade e da
ideologia que os domina, alterando seus comportamentos por meio do
empoderamento e da consequente busca por um futuro diferente e melhor,
preferentemente agindo coletivamente. Gomes (2009, p. 7), sobre o assunto
considera:
É preciso, portanto, compreender que ao se propor o estudo da Educação Sociocomunitária, a proposta não é feita como hipótese de resolução de todos os problemas sociais e educativos, mas como problematização das possibilidades de emancipação de comunidades e pessoas em constituir articulações políticas, expressas em ações educativas, que provoquem transformações sociais intencionadas.
124
Na sequência, o pesquisador e o Manoel foram visitar mais duas
famílias, em Monte Mor. Duas casas de madeira, grandes e bem construídas,
em um bom terreno às margens da rodovia. Em uma das casas reside uma
senhora, seu filho e um neto. Casa bem arrumada e asseada. Muito simples.
Passava das 11h e o filho, que conta com mais de 30 anos e tem um filho de
12 anos, estava dormindo no sofá. Usuário de drogas, perambula à noite e
dorme durante o dia. Aparenta pouca saúde, muito magro e sem nenhuma
energia, até para se locomover e falar, mesmo estando “limpo”. Parece estar
em “slow motion”. Seu filho é analfabeto e não frequenta e escola. O pai não
demonstra preocupação. Conversaram com o pai, tentando conscientizá-lo da
importância da educação e frequência escolar para seu filho, o que foi
desdenhado sob a alegação de que “ele não quer ir, o que que eu posso
fazer…”.
Na outra casa, vizinha, moram duas mulheres e os filhos. Um deles de 3
anos ainda é amamentado, o que impede a mãe de trabalhar, segundo ela.
Manoel ofereceu-lhe um trabalho formal de doméstica, em sua residência, que
foi prontamente recusado, sob a mesma alegação: “Não posso porque ele
(apontando para seu filho) ainda mama no peito”. Manoel alegou, de forma
cuidadosa, que a criança já estava bastante grande e que a amamentação
poderia ser substituída por leite industrializado, sem nenhum prejuízo. A mulher
não respondeu, apenas contraiu os lábios e olhou para o lado, demonstrando
contrariedade.
Contudo, ambas as moradoras, muito simpáticas, receberam os
visitantes muito bem e lhes ofereceram café. Casa muito bem organizada e
limpa. Café muito bom e cozinha “brilhando”, em meio ao chão de terra. A que
recusou o emprego deixou de comparecer a uma consulta médica porque é
analfabeta e não soube ler a data do retorno, e foi quando soubemos dessa
sua situação. Nesse momento o pesquisador perguntou se tinha vontade de
aprender a ler e que poderia tentar ajudar, ao que respondeu que “Agora não,
né? Depois de uma certa idade a gente não aprende mais, né?”. O pesquisador
discordou e informou que há muitas pessoas idosas que se alfabetizam e que
125
basta ter força de vontade, especialmente porque conta com pouco mais de
trinta anos e, portanto, está gozando de plena capacidade intelectual.
As pessoas da casa são muito simples e com “alto astral”. Felizes. Uma
delas, mais jovem, está solteira e a outra tem um companheiro, que vive em
outra casa. As visitas ocorrem diariamente. Vivem bem assim. Antes de irem
embora, o pesquisador convidou mais uma vez a mulher analfabeta a se
alfabetizar, desfilando suas vantagens, o que foi recusado mediante a mesma
justificativa: “não tenho mais cabeça pra essas coisas não”. Conversaram com
as famílias, semeando a ideia da autoadvocacia e a melhora em suas crenças
de auto-eficácia.
Em seguida, o pesquisador e Manoel dirigiram-se até Hortolândia, a fim
de visitar uma família composta pela mulher, seu companheiro e três filhos.
Chegando ao local, a casa estava vazia. Obtiveram a notícia com vizinhos de
que o Conselho Tutelar levou as crianças para o abrigo porque o companheiro
(padrasto), embriagado, tentou abusar da menina maior. A mãe, que é também
alcoólatra e usuária de drogas, estava embriagada e fora de casa. Tentaram
localizar a mãe e o abrigo para o qual as crianças haviam sido levadas, mas
não obtiveram êxito. Tentaram contato com o plantão do Conselho Tutelar, mas
ninguém atendia ao celular informado por um Policial Militar. A mãe, segundo
informações de sua irmã que fora contatada, invadiu uma casa “ai pra cima” e
lá está vivendo.
Dirigiram-se, então, para a casa de um jovem casal também na periferia
de Hortolândia. Casal e dois filhos. Casa de alvenaria, bairro sem asfalto. Casa
alugada e relativamente bem arrumada e limpa. Foram muito bem recebidos e
conversaram durante longo tempo. O rapaz demonstra muita disposição e força
de vontade para melhorar de vida. Faz pequenos bicos e agora conseguiu um
emprego formal. Está em período de experiência e disse se esforçar para ser
efetivado, mas diz que não consegue “parar” em emprego nenhum. Corta
cabelo, faz pequenos reparos e a esposa é manicure e pedicure amadora.
Atende em casa, sem estrutura mínima. Tanto na sede do Grupo quanto na
casa visitada observamos que as crianças são tratadas com respeito e
cuidado. Uma exceção. Conversaram com eles sobre os conceitos propostos
no presente trabalho.
126
No dia 08 de outubro de 2011, antes da entrega das cestas básicas,
uma vez mais o pesquisador conversou individualmente com as pessoas que
compõem as famílias “assistidas” pelo Grupo. Explicou que seriam alterados,
de fato, como já combinado e anunciado, a maneira e dias da entrega das
cestas básicas e que o Grupo passaria a oferecer atividades para cada um
deles, de acordo com o gênero e faixa etária. A receptividade foi muito boa a
ponto de o pesquisador ficar surpreso, porque:
1. As pessoas passariam a se deslocar de suas residências duas vezes ao
mês e não uma só vez, e levariam a mesma quantidade de alimentos que
estava sendo entregue anteriormente. A grande preocupação de todos era o
custo do transporte coletivo, porque a maior parte deles vêm de muito longe e
necessita utilizar de dois a quatro ônibus diferentes para chegar ao local das
entregas e atividades. Uma vez que tal fato já era previsto, o pesquisador havia
proposto ao Grupo que adquirisse passes para entregar às famílias a fim de
viabilizar a vinda de todos nos dois dias.
2. A maior parte dos indivíduos, aqui incluídos os trabalhadores voluntários
do Grupo, tem uma percepção de que as pessoas que nasceram e vivem na
extrema pobreza são acomodadas, “preguiçosas”, talvez por desânimo e por
acreditarem que nada que fizerem adiantará para tirar-lhes daquela situação.
Perderam as esperanças em tudo (crenças de auto-eficácia). Em decorrência
dessa percepção, no mais das vezes equivocada, acreditam que os oprimidos
não se interessariam pelas atividades porque implicaria na ideia de terem que
participar para poder pegar as cestas básicas. Ideia não verdadeira,
notadamente porque o Grupo fez questão de enfatizar que o recebimento das
cestas não estava condicionado à participação nas atividades, ou seja, as
famílias continuariam recebendo as cestas básicas, participando ou não.
Apenas três pessoas não desejaram participar das atividades: uma delas
(mulher de meia idade) alegou que cuidava da neta e, portanto, não poderia se
envolver; outro rapaz (homem de aproximadamente 35 anos) alegou que era
pintor e não desejava aprender mais nada porque considerava que o
prejudicaria, porque pensava que deveria focar em sua especialidade; e outra
moça que não justificou seu desinteresse. Esta última moça sempre foi
“arredia”, séria, chegava e logo se sentava no fundo do salão com seu filho
127
pequeno no colo e não conversava com ninguém. Deixou de pegar as cestas
em maio, sob a alegação de que ela e o companheiro haviam terminado de
construir sua casa e, portanto, agora poderiam utilizar seus parcos recursos
financeiros para comprar alimentos.
O pesquisador abordou respeitosamente os “desinteressados”, expondo
algumas vantagens no envolvimento e integração dos mesmos nas atividades,
o que não alterou a opinião de nenhum deles. Em que pese a surpresa do
pesquisador e dos demais trabalhadores voluntários do Grupo com o resultado
alcançado e com a empolgação de todos os que se mostraram interessados, o
pesquisador preferiu aguardar alguns meses para verificar se o interesse
permaneceria.
No momento do preenchimento da Ficha de Inscrição (Anexo 2),
aproximadamente 50% dos “alunos” tiveram dificuldade para se lembrar da
data de nascimento completa, como já observado. Três adultos não souberam
informar sequer o ano de nascimento. O pesquisador desistiu de pedir o RG
porque os adultos não tinham a menor ideia de seu número e não o portavam.
Duas mulheres adultas não assinaram a ficha porque se declararam
completamente analfabetas, e a maior parte escreveu seu nome com
dificuldade.
O pesquisador passou a realizar a inscrição dos jovens que desejavam
participar das atividades relacionadas à informática. Foram chamados para
conversar. Demonstraram muita ansiedade com a informática, mas o
pesquisador percebeu que relacionaram esta atividade com jogos eletrônicos,
talvez por desconhecimento quanto ao que pode ser feito e aprendido em um
computador. Quando o pesquisador solicitou aos jovens interessados para
assinarem as fichas, a maior parte demonstrou muita dificuldade em assiná-la,
mesmo os maiores de 10 anos. Um deles declarou não saber escrever seu
nome e outro informou que sabia escrever apenas o primeiro nome.
O pesquisador questionou sobre a escola e disseram que não se
importavam, uns que quase não iam à aula e outros que não a frequentavam
mais. Indagados sobre os pais, alguns responderam que quase não protestam
e outros que os mesmos não se importam com o fato.
128
Quando o pesquisador teve a idéia da inclusão digital a sua intenção
também era a de enfatizar o reforço escolar para os jovens e crianças, mas
depois deste último contato com os jovens decidiu focar o trabalho no básico,
no reforço da alfabetização e no desenvolvimento da leitura e escrita, utilizando
o computador como meio para que a atenção deles seja despertada,
envolvendo o reforço com atividades lúdicas e jogos, sempre tendo como base
a educação freireana. Freire (2002, p. 18) assevera que um dos maiores e mais
importantes desafios que os educadores, que se propõem a praticar uma
educação crítica, têm é o de propiciar condições para que os educandos, em
suas relações com os outros, possam assumir-se.
Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto.
E o assumir-se como sujeito da própria assunção possibilita que o
sujeito possa ser autônomo.
Nos dias 22 de outubro, 12 e 26 de novembro de 2011 as atividades
foram desenvolvidas com muito êxito. As famílias estavam bastante envolvidas
e o pesquisador estava aperfeiçoando todas as atividades. A adesão das
famílias foi total nesta época. Contudo, o pesquisador percebeu que as
atividades estavam ganhando contornos “profissionalizantes” cada vez mais
intensos e, por esse motivo, passou a se preocupar com os trabalhadores
voluntários. Voltou a enfatizar o propósito das atividades, que está muito além,
e que é muito mais importante, do que o aperfeiçoamento “profissional”
daquelas pessoas. Nitidamente, as atividades tornaram-se “mecanizadas”, com
forte viés profissionalizante, ao modo neoliberal. Os trabalhadores voluntários
“relaxaram”, se “esqueceram” do motivo maior das atividades e aparentavam
desânimo. Para Freire (2002, p. 16) o ensino dos conteúdos e a promoção da
ingenuidade à criticidade não podem dar-se alheias a uma rigorosa formação
moral do educando.
É por isso que transformar a experiência em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador.
129
Começávamos a colher ótimos resultados: algumas mulheres relataram
já ter feito e vendido salgados, cuja receita e modo de preparo haviam
aprendido no Grupo; outras relataram que já estavam ensaiando os primeiros
passos como manicure e pedicure em seus bairros, conquistando algum
retorno financeiro com as atividades; os jovens estavam menos interessados
em jogos e passaram a demonstrar alguma curiosidade com outras utilidades
dos computadores; os homens estavam envolvidos e interessados no “curso”
de elétrica, tendo havido mais uma adesão; as crianças começavam a se
acalmar, viabilizando o início de atividades pedagógicas; os horários estavam
sendo respeitados, sendo que as famílias chegavam cada vez mais cedo; os
pais estavam mais pacientes e dóceis com seus filhos; e o pesquisador estava
conquistando mais e mais olhares atentos quando abordava assuntos
relacionados a conceitos de união, luta por direitos, construção da cidadania,
fraternidade, desocultamento da ideologia neoliberal e a sua relação atual e
histórica com as famílias, noções de pertencimento e reforço dos aspectos
positivos das crenças de auto-eficácia.
De nada adianta o discurso exaltar a autonomia dos sujeitos, a
criticidade, o futuro como possibilidade, se a prática das atividades for
antidialógica, vertical e bancária.
O desânimo e o desvirtuamento da prática dos trabalhadores preocupou
sobremaneira o pesquisador, porque eram flagrantes. O pesquisador procurou,
então, conversar com cada um deles a fim de conhecer o motivo do desalento.
Descobriu-se que alguns daqueles que aparentemente haviam “abraçado” o
projeto o fizeram mais porque acreditavam que não teria êxito ou por amizade
ao pesquisador, do que por consciência de sua necessidade e amor aos
excluídos. E esse é um dos pontos que distinguia Paulo Freire dos demais: ele
nutria um amor e uma fé nos oprimidos que poucos seres humanos são
capazes de alcançar. E isso faz muita diferença quando se tenta aplicar a sua
teoria. Freire (2002, p. 27) afirmava que o educador, o trabalhador voluntário,
consciente politicamente de seu papel na proposta relacionada às atividades,
deve esforçar-se para desenvolver nele próprio a indispensável amorosidade
130
às famílias assistidas, sob pena de fracassar em sua tarefa como educador
numa perspectiva progressista.
O meu respeito de professor à pessoa do educando, à sua curiosidade, à sua timidez, que não devo agravar com procedimentos inibidores exige de mim o cultivo da humildade e da tolerância. Como posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar o meu desconhecimento? Como ser educador, sobretudo numa perspectiva progressista, sem aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os diferentes? Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte? Não posso desgostar do que faço sob pena de não fazê-lo bem. Desrespeitado como gente no desprezo a que é relegada a prática pedagógica não tenho por que desamá-la e aos educandos. Não tenho por que exercê-la mal. A minha resposta à ofensa à educação é a luta política consciente, crítica e organizada contra os ofensores. Aceito até abandoná-la, cansado, à procura de melhores dias. O que não é possível é, ficando nela, aviltá-la com o desdém de mim mesmo e dos educandos.
No mês de dezembro houve o primeiro e grave problema. Nos anos
anteriores, na mesma data da entrega das cestas básicas, em dezembro, era
oferecida uma festa de Natal para as famílias, com cachorro quente,
refrigerante, presentes para as crianças e com a presença do Papai Noel. As
cestas básicas entregues às famílias em dezembro tinham o dobro do tamanho
normal porque em janeiro não havia entrega das cestas, uma vez que os
trabalhadores voluntários “tiravam férias”. Com exceção de um grupo de
pessoas envolvidas em atividades doutrinárias, sob a coordenação do
pesquisador, que não parava em tempo algum, as demais atividades do Grupo
eram interrompidas em meados de dezembro e retornavam apenas em
fevereiro. O Grupo decidiu, não sem os protestos fundamentados do
pesquisador, que em dezembro de 2011 as cestas básicas duplas seriam
entregues em um único dia, no mesmo sábado em que seria oferecida a
festinha de Natal para as famílias e que por este motivo não haveria atividades
em dezembro e janeiro. As famílias deveriam retornar apenas no segundo
sábado de fevereiro.
131
O pesquisador solicitou uma reunião com o Grupo, na qual expôs a
necessidade da continuidade das atividades em dezembro e janeiro,
notadamente pelo propósito movido em direção às famílias, muito além das
atividades em si. Considerou que seria prejudicial às famílias a interrupção das
atividades, especialmente porque estavam envolvidas, animadas, começavam
a colher resultados e o Grupo iniciava a conquistar a sua confiança para que
fosse possível finalmente alcançá-las com a troca de experiências e de ideias.
Disse que a fome, a necessidade, a alienação e a opressão não tiram férias e
que, portanto, o Grupo não tinha o direito desse “luxo” porque tinha assumido
um compromisso político e responsável com as famílias. Os protestos do
pesquisador foram sumariamente rechaçados, sem justificativa inteligível.
Não. Não tem condições. O “Centro” sempre parou em janeiro. Sempre entregamos as cestas duplas em dezembro, as famílias já estão acostumadas e já contam com isso. Eu viajo em janeiro. Não. Sempre funcionou assim. As famílias não vão querer.
No dia 11 de fevereiro houve o retorno das atividades. Nitidamente o
clima era outro. As famílias se atrasaram muito e aquele olhar de desinteresse
e indiferença voltou a se instalar em suas faces. Da parte dos trabalhadores
voluntários houve problemas sérios. Muitos simplesmente abandonaram as
atividades sem ao menos comunicar a alguém, como se pelo fato de serem
voluntários não houvessem assumido um compromisso e, portanto, não
deveriam agir com responsabilidade. Nesta data, faltaram o responsável pelo
“curso” de elétrica, a responsável pelas atividades relacionadas à manicure e
pedicure e a “instrutora” de tricô e crochê. Não havia, assim, a possibilidade de
o Grupo realizar tais atividades nesta data porque outros trabalhadores de
apoio também faltaram, de modo que a defasagem de recursos humanos
repentinamente ocorrida, era grave e incontornável.
Estranhamente, ao menos para o pesquisador, diante dos fatos ora
relatados, os trabalhadores voluntários não tiveram qualquer reação. O
pesquisador estava indignado com o prejuízo que haveria para as famílias em
decorrência das ausências dos trabalhadores voluntários e da sua impotência
132
diante da situação e procurava alternativas, mas os demais trabalhadores
voluntários demonstravam apatia. Não disseram nada e não demonstraram
preocupação ou contentamento com a situação. Não se manifestavam, não “se
mexiam”, apenas aguardavam.
Aproveitando que as famílias já haviam chegado à sede do Grupo para
as atividades e retirada das cestas e que a precária situação já havia sido
identificada e avaliada, o pesquisador, depois da palestra, informou que
naquele dia não haveria as atividades citadas acima, cujos responsáveis
estavam ausentes, tendo em vista que alguns problemas haviam acometido
alguns trabalhadores voluntários, prejudicando os trabalhos a eles relacionados
e que estavam programados para esse dia.
Pedimos desculpas às pessoas prejudicadas, explicando o ocorrido e
nos comprometendo a tomar providências para que não houvesse reincidência.
Não houve nenhuma reação aparente por parte dos sujeitos da pesquisa,
demonstrando que ainda cultivam a “cultura do silêncio”. Aparentando
indiferença, silêncio que o pesquisador interpretou como ingenuidade: se lhes
foi exposto que assim seria, assim seria e pronto. De que adiantaria
manifestarem-se? Não perceberam que no Grupo a sua palavra fora devolvida,
não perceberam que neste local todas as pessoas têm voz e que essa voz é
ouvida, compartilhada e levada em consideração em igualdade de importância
como de todas as outras pessoas, e que suas palavras podem construir seu
futuro e interferir e modificar o mundo, começando por aquele espaço. Mas
estão, ainda, habituadas ao silêncio e ao desprezo, porque foram coisificadas e
não têm direito a dizer a sua palavra, porque essa lhes fora roubada. Estão
proibidos de dizer a sua palavra. É o equivalente à concepção “bancária” de
Freire (2002, p. 34):
[…] b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados; d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente; […] f) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos os que seguem a prescrição; […]
133
h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele; […] j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos.
Porém, uma outra consideração, é a de que tenham percebido que o seu
direito a voz não tenha sido tão igualitariamente acolhido pelo Grupo como um
todo. Pois nem todos os trabalhadores voluntários assumiam, de fato, uma
posição “libertadora”.
As crianças voltaram muito agitadas, impossibilitando qualquer atividade
pedagógica com elas, notadamente porque dos cinco trabalhadores envolvidos
na atividade, apenas um compareceu. Apenas a informática e a culinária
funcionaram com êxito. Algumas mulheres, que participariam da manicure e
pedicure, tricô e crochê aceitaram participar das atividades na cozinha. Em
decorrência dos contratempos o pesquisador teve a impressão de que as
abordagens freireanas e de autoadvocacia não surtiram efeitos, ao menos
aparentemente. Tudo estava muito desorganizado e as famílias perceberam.
Talvez tenham interpretado como se fosse desdém da parte do Grupo em
relação a elas. Ou seja, a impressão que teve o pesquisador é a de que, para
as famílias, o discurso era bonito e começava a despertar seus interesses, sua
participação, sua palavra, historicamente adormecidos, mas, na prática,
perceberam que nada havia mudado: o Grupo também desejava oprimi-los.
No dia 25 de fevereiro de 2011 ocorreram novos contratempos. O
responsável pelo curso de elétrica faltou novamente, assim como a de tricô e
crochê. Novamente, apenas uma pessoa responsável pelas atividades com as
crianças compareceu, o que gerou muitos problemas porque as crianças
ficaram soltas, agitadas, atrapalhando seus pais de participarem das poucas
atividades em andamento. Ainda assim, a informática, a cozinha e a manicure
continuaram rendendo frutos. As pessoas pareciam felizes, com exceção
daqueles afetados pelas ausências, que ficaram amuados ou perambulando
pela sede, “sem rumo”. Talvez estivessem se sentindo os mais excluídos dos
excluídos, os mais desprezados dos desprezados. É extremamente lamentável
que o Grupo, que se propunha a um trabalho para atingir determinado
resultado, tenha alcançado exatamente o inverso: consolidar a sensação de
abandono e da baixa auto-eficácia nas pessoas oprimidas.
134
Mas algumas mulheres relataram que continuavam a fazer salgados
para vender no próprio bairro e outras começaram a “fazer” as unhas das
vizinhas, ambas obtendo bons resultados e algum retorno financeiro, segundo
comentaram com o pesquisador as trabalhadoras voluntárias da cozinha e da
manicure. O fato de já terem ganhado um “dinheirinho” com habilidades
aprendidas nas atividades no Grupo fortaleceu a união desses grupos e
melhorou muito a auto-estima e ânimo geral, porque houve de fato um
resultado concreto. Entretanto, uma vez mais o pesquisador percebeu que os
trabalhadores voluntários não estavam agindo conforme o “combinado”. Eles
se portavam como instrutores, com das exceção da cozinha, onde trabalham
duas voluntárias muito amorosas e carinhosas e extremamente aderentes com
nossa proposta. De fato, o pesquisador não consegue distinguir se essas
voluntárias agem conforme suas sugestões por terem entendido a proposta e
sua pertinência ou, sem compreendê-la, ou sequer se importarem em entendê-
la, agem de acordo com a fala do pesquisador porque o admiram e nele
confiam, agindo como os próprios oprimidos neste particular.
No dia dez de março de 2012 o responsável pelo curso de elétrica faltou
novamente. Como desta vez o Grupo estava relativamente preparado,
conseguiu suprir a citada ausência com uma atividade extra, preparada por
outro trabalhador voluntário, que é engenheiro. Desta forma, ainda que de certa
forma improvisadas, as atividades para os homens adultos foram realizadas
com êxito. O tricô foi abandonado. As mulheres que participavam deste curso
migraram livremente, depois de convidadas, para a culinária e para a manicure,
atividades essas que seguem muito bem, e apenas uma delas, uma senhora
de aproximadamente sessenta e cinco anos, decidiu-se por não participar de
nenhuma atividade. As sugestões do pesquisador quanto a conversas voltadas
para a autonomia, o desocultamento da ideologia opressora que nos governa e
autoadvocacia voltaram a ser cumpridas e já trazem resultados, ainda que
modestos. Novamente, apenas uma pessoa responsável pelas atividades com
as crianças compareceu. As crianças e jovens que estão frequentando o curso
de informática estão demonstrando bastante interesse.
Já há relatos de mais algumas pessoas que estão aproveitando o
aprendizado nos cursos e outras duas que relataram que estão conseguindo se
135
manter longe de vícios em virtude do que estão aprendendo. Uma delas
recuperou os três filhos que haviam sido levadas pelo Conselho Tutelar e
estavam em um abrigo e deixou seus vícios de bebidas alcoólicas e drogas
ilícitas para cuidar deles e conseguir emprego. O pesquisador observou que
até o último dia de pesquisa realmente esta mãe não apresentou o ar
aparvalhado de outrora, porque não se encontrava mais sob o efeito frequente
de drogas e álcool. Agora esta pessoa entrevia uma nova perspectiva de vida
para ela e para seus filhos. Estava aprendendo que podia interferir hoje em seu
meio para construir um futuro melhor. Tudo isso, acredita-se, foi conquistado
com o auxílio do trabalho desenvolvido pelo Grupo.
Uma das trabalhadoras voluntárias relatou que uma das mulheres
assistidas lhe confidenciou que já foi detida e está longe do vício de drogas
desde que começou a frequentar as atividades do Grupo, e que neste mês já
ganhou R$ 30,00 fazendo unhas e que admirava a dedicação que o Grupo
consagrava a eles. O pesquisador sugeriu que ela aproveitasse esse vínculo
para aprofundar os conceitos freireanos em seus bate papos, já que a mulher
vive em uma realidade muito difícil. Mora em um casebre de madeira sem
estruturas básicas, localizado na periferia miserável de Campinas, o marido foi
assassinado e o pai mora com ela e com seus filhos, mas não colabora com
nada porque não trabalha e “não gosta de trabalhar”. Disse que durante a vida
toda foi assim. Ela tem filhos pequenos e não trabalha porque cuida deles.
Nesta data o pesquisador conseguiu ter uma conversa bastante
produtiva com todos no salão dos fundos da sede do Grupo. O pesquisador
falou sobre Deus e Jesus, seus ensinamentos, e aproveitou o tema evangélico,
que os agrada sobremaneira, para reforçar e aprofundar o assunto de que não
existe destino traçado, que o futuro está aberto e que todos devem tomar
atitudes individuais e coletivas para mudar para melhor a realidade em que
vivem, individual e coletivamente; que somos responsáveis por nossos atos e
que temos direitos como todos os demais, os quais devem ser plenamente
respeitados pelos outros e pelo Estado.
Para que o objetivo das atividades seja alcançado, ao menos
parcialmente, é imprescindível que tanto as famílias assistidas quanto os
trabalhadores voluntários acreditem e compreendam a história como
136
possibilidade e não determinismo, conforme ensina Freire (1997a, p. 47), e
esse é um dos trabalhos mais árduos que o pesquisador tem enfrentado.
Na verdade, toda vez que o futuro seja considerado como um pré-dado, ora porque seja a pura repetição mecânica do presente, só adverbialmente mudado, ora porque seja o que teria de ser, não há lugar para a utopia, portanto para o sonho, para a opção, para a decisão, para a espera na luta, somente como existe esperança. Não há lugar para a educação. Só para o adestramento.
As famílias demonstraram bastante interesse durante os trinta minutos
da palestra. No final, um homem foi ao encontro do pesquisador para
agradecer as palavras de ânimo e um senhor, chorando, disse que vai encarar
“o pouco que lhe resta de vida” de outra forma depois do que ouviu:
Filho, sabe, eu fiz muita besteira na minha vida e hoje todo mundo me abandonou. Eu vivo sozinho em um cômodo que eu aluguei. É pequeno e velho. Ninguém mais quer saber de mim. Eu quero que vocês façam uma visita pra mim pra vocês verem o que eu tô falando, a realidade que eu vivo. Não tô reclamando não. Não tô reclamando. Mas lá é apertado, é pequeno. Depois que eu comecei a frequentar aqui eu mudei. As coisas que vocês falam aqui são muito bonitas e me animou a mudar. Eu preciso me arrepender antes de eu morrer. Eu preciso fazer alguma coisa. Eu preciso de ajuda, pelo amor de Deus.
Entretanto, tendo em vista a grande evasão dos trabalhadores
voluntários do Grupo, sem que retornassem e sem que houvesse reposição,
cujo motivo o pesquisador desconhece, e em decorrência da consequente
perda da qualidade das atividades, o Grupo decidiu reduzir a entrega das
cestas e as atividades a uma vez por mês, ao menos provisoriamente, até que
consiga se estruturar novamente.
No dia 14 de abril de 2012 tudo continuou igual. Até esta data o
pesquisador não conseguiu mobilizar ninguém para que as atividades
retornassem conforme projetadas, e nenhum trabalhador voluntário parecia se
importar com o fato. O pesquisador não teve conhecimento de nenhum
trabalhador voluntário que tenha tomado alguma atitude no sentido de ajudar a
solucionar o problema. Pareciam indiferentes. A impressão que se teve foi a de
137
que os trabalhadores voluntários estavam aliviados com o suposto “fracasso”
das atividades porque assim os encontros com as famílias voltariam a ocorrer
apenas uma vez por mês. As dificuldades continuaram as mesmas:
trabalhadores voluntários em número insuficiente, atividades não sendo
realizadas, pouca colaboração para que este estado de coisas se altere
positivamente…
O dia doze de maio de 2012 foi o pior de todos. O voluntário que se
comprometeu a assumir as atividades com os homens adultos faltou em
decorrência de doença da esposa. O educador da informática também não
compareceu em virtude de compromissos profissionais em São Paulo. Uma
pessoa só para cuidar das crianças: impossível. A educadora da atividade de
manicure e pedicure mais uma vez não compareceu e não avisou que não
viria. O trabalhador encarregado da palestra não pode comparecer porque
precisou levar seu filho ao pronto socorro.
Resultado: o pesquisador aproveitou a oportunidade e realizou uma
pequena palestra de improviso com viés muito forte sobre a autoadvocacia,
conforme descrito abaixo, estimulando a participação de todos. Não atingiu o
êxito esperado, entretanto, porque muitos demonstravam desânimo com o
fracasso das atividades, o que reforçou ainda mais a sensação de pouca valia
que já têm de si mesmos, porque talvez tenham tido a impressão de que, na
realidade, o Grupo também não se importava com eles, percepção essa
decorrente da colisão entre a sua ação e os belos discursos feitos no início do
projeto e que os havia animado. Embora as faces taciturnas e o modo de se
sentarem, “desleixados”, evidenciassem desinteresse, nenhuma palavra foi
pronunciada.
Nessa palestra, como em outras que tratavam do tema da
autoadvocacia, o pesquisador alfabetizou “juridicamente” o público de sujeitos,
de que eles têm direito a asfalto nas ruas do bairro onde residem, moradia
digna, segurança, posto de saúde, escola, entre outras coisa, enfatizando a
necessidade de coletivismo, de que devem se unir porque juntos conseguirão
efetivar seus direitos, com muita luta, além de conquistarem novos direitos. O
pesquisador solicitou que aqueles interessados em saber mais sobre o tema o
procurassem, depois da preleção, para que se unissem e começassem a se
138
informar e organizar para lutar pelos direitos que eles têm. Contudo, ninguém
procurou o pesquisador.
O pesquisador percebe que as famílias não têm perspectivas positivas
em relação ao seu próprio futuro e também ao futuro de seus filhos, ainda que
lamentem tal fato quanto a estes. Não acreditam que pode haver alteração em
suas vidas porque seu futuro já está certo, determinado e é imutável,
independentemente de qualquer esforço intervencionista por parte deles. Todo
e qualquer empenho que empreenderem neste sentido será inútil, porque
presenciaram e aprenderam com seus pais, avós e bisavós que assim sempre
foi e assim será. Por que trabalhar, estudar, lutar, se unir, se não há esperança
em um futuro melhor? Não há perspectiva para os oprimidos alienados, a
exemplo dos sujeitos de nossa pesquisa. É necessário que as famílias
acreditem no futuro como possibilidade e passem a criar expectativas quanto a
um futuro melhor, intervindo em seu ambiente para que transforme
positivamente suas vidas, de seus familiares, se sua comunidade, de sua
cidade e do mundo.
Em suma, há o “motor” para que ela aprenda a auto-determinar-se, parte fundamental do constituir-se autônomo. Quando um indivíduo se auto-determina “age a partir da escolha, antes do que de obrigações ou coerções, e essas escolhas são baseadas na própria consciência de suas necessidades orgânicas e de uma interpretação flexível dos eventos externos” (DECI, RYAN, 1985, p. 38). Escolha que se constitui, não como “opção pessoal” somente, mas como um produto das práticas sociais, que emergem do compartilhamento de significados e expectativas frente ao vivido. A auto-determinação se desenvolve conforme crianças e adolescentes vão se inserindo - e sendo inseridos - na teia de relações sociais, que sustentam o viver humano. Características como idade, oportunidades para regular o próprio comportamento, para governar-se em situações cotidianas, a experiência na resolução de problemas do dia-a-dia, as especificidades físicas e cognitivas, o nível de auto-estima conquistado em consequência das decisões tomadas, a confiança atribuída aos sujeitos...são componentes essenciais nesse desenvolvimento. Que se constitui intrinsecamente no âmago de todo processo educacional: o movimento que marca nossa transformação como seres dependentes de cuidados e da tutela de outros para a auto-governo. (BISSOTO, 2012, p. 7).
139
Pois bem, voltamos às questões: A aplicação da autoadvocacia nos
grupos de famílias assistidas pode contribuir para com o desenvolvimento da
autonomia e, assim, para seu empoderamento e desalienação? E para que
passem a se unir e lutar por seus direitos?
A primeira impressão do pesquisador, pela experiência de muitos anos
trabalhando com pessoas oprimidas, coisificadas e alienadas da periferia pobre
de Campinas e região, era (e, em certa medida, ainda se mantém) a de que se
eles não recebessem benefícios de “mão beijada”, não interessava. É a política
do menor esforço. É costume preferir ganhar a batalhar para terem uma vida
mais digna, com mais conforto… Freire (2002, p. 31) assevera que a “miséria é
uma violência e não a expressão da preguiça popular ou fruto da mestiçagem
ou da vontade punitiva de Deus […]”.
É interessante destacar que assim como há graus de alienação também
há níveis diferentes de “resistência” ao desocultamento e iluminação. Durante o
tempo em que o pesquisador trabalha em atividades voluntárias relacionadas a
entregas de cestas básicas a pessoas economicamente miseráveis, viu muitas
pessoas virem e irem e outras virem e ficarem. As pessoas que pegam cestas
básicas há anos são mais resistentes a mudanças, extremamente passivas,
aparentam ser mais revoltadas com tudo e todos, enquanto que outras
pessoas, cujos comportamentos são, em regra, nitidamente diferentes
especialmente porque se portam com mais calma e civilidade, em que pesem
residirem nos mesmos bairros, pegam as cestas básicas durante um período e
logo que melhoram de vida deixam voluntariamente de retirar suas cestas para
deixar para outras famílias mais necessitadas. Essas pessoas, que têm esse
nível de consciência aparentam, ao menos aos olhos do pesquisador, serem
menos alienadas e, portanto, demonstram ter perspectivas, ainda que
limitadas, e por este motivo buscam ativamente alternativas positivas para sua
situação.
O pesquisador acredita que as pessoas desse segundo grupo estariam
mais preparadas para a autoadvocacia. Entretanto, justamente por retirarem as
cestas básicas por períodos relativamente curtos, o pesquisador deixou de
selecioná-las como sujeitos de sua pesquisa, pelo alto risco de prejudicá-la, em
termos de “flutuação” dos sujeitos. Contudo, há que se ressaltar que duas
140
famílias, lideradas por mulheres, “dinâmicas” em comparação aos demais
assistidos, deixaram de retirar as cestas básicas no início de 2012. Uma
porque havia terminado a reforma em sua casa e agora poderia adquirir
alimentos com seus próprios recursos, já que o casal trabalha, outra porque o
marido havia conseguido emprego. Era digno de admiração o esforço de
empoderamento que esta última mulher realizava em seu marido, que
frequentava o Grupo quase que “arrastado” por sua companheira. O
pesquisador era interpelado por esta com frequência, que lhe dizia, com certo
entusiasmo e “lucidez”, apontando para o marido:
Eu falo pra ele procurar emprego porque ele é inteligente e tem capacidade para arrumar uma coisa boa…só fica arrumando bicos que não prestam. Ele tá indo atrás e se Deus quiser vai arrumar um bom emprego e quando arrumar a gente vai deixar de pegar as cestas para que outras pessoas que precisam mais possam pegar.
E o marido sempre de cabeça inclinada para baixo, quieto, com a filha
pequena no colo, sorria e não dizia uma só palavra.
Também alguns membros dessas duas famílias, especialmente as
mulheres, já citadas, que era “quem as liderava”, tinham postura diferente.
Participavam das atividades, conversavam com desenvoltura, os filhos,
tratados com civilidade e sem violência, demonstravam lucidez, postura ativa e
lidavam com os brinquedos de maneira zelosa, além de depositarem o lixo nos
locais adequados, em que pese residirem nas mesmas regiões insalubres e
renegadas pelo Estado. As crianças eram mais dóceis no trato e menos
agitadas. As mulheres demonstravam preocupação com a educação de seus
filhos e com uma boa colocação profissional para seus companheiros. Estes,
por sua vez, demonstravam passividade e alienação.
Outro fato de destaque é que uma dessas mulheres chamou o
pesquisador “de lado” para contar que sabia de pessoas ali (entre as famílias
assistidas pelo Grupo) que pegavam cestas básicas em outros lugares também
e as vendiam. Estavam indignadas e disseram não achar justo, aparentando,
aos olhos do pesquisador, estarem em um nível de alienação menos severo
que os demais.
141
Destaca-se, por outro lado, uma assistida que contou ao pesquisador
toda animada, no mês de abril, que havia conseguido emprego na área da
limpeza na Unicamp, e que se tudo desse certo e passasse pelo período de
experiência deixaria de pegar as cestas básicas. Estava mais bem arrumada,
mais animada, havia cortado os cabelos. Assim que chegou à sede do Grupo
no mês seguinte para retirar sua cesta, o pesquisador se recordou do fato e foi
perguntar como estava o trabalho, ao que respondeu com a maior naturalidade
que não havia dado certo. Trabalhou apenas 12 dias e não se adaptou.
…ah, tinha uma mulher lá que não gostava de mim e ficava pegando no meu pé pra mim sair mais tarde e perdê o ônibus (fretado). Quando faltava cinco minutos pra mim i embora ela mandava eu limpá o banheiro que eu já tinha limpado.
O pesquisador interessou-se por seu caso, até porque poderia verificar
se poderia ajudá-la a intervir visando tentar reconquistar o emprego, dada a
aparente e suposta injustiça que lhe acometera, mas ao questioná-la para
conhecer um pouco mais sobre as circunstâncias, suas respostas foram
evasivas, revoltadas e sem relação direta com o fato em si. Sequer soube
informar que função a dita “perseguidora” desempenhava na empresa ou se
era realmente sua superiora.
Trata-se de uma das poucas assistidas que se recusou a participar das
atividades. Parece preferir ficar “sem fazer nada”, enquanto espera, a aprender
alguma habilidade nova. Não tem o menor interesse. Vive com o pai, que
nunca trabalhou na vida. Vivem na miséria e na mendicância porque não têm
perspectivas, crêem num futuro determinado e imutável. Esta família pega
cestas básicas há muitos anos.
Semelhante a este caso há vários outros, sendo que os traços em
comum são a dificuldade em se integrar social e profissionalmente, passividade
extrema, revolta, miséria, alcoolismo e aparente indiferença com a própria vida
e com a vida dos outros.
Ressalte-se que o pesquisador limitou os relatos ao período da
pesquisa, em que pese ter presenciado diversos casos no mesmo sentido
referentes a datas anteriores.
142
Depois da palestra, o Grupo serviu os lanches em comemoração ao dia
das mães e distribuiu as cestas para as famílias. Não houve nenhuma
atividade. Infelizmente, a pior parte foi que as pessoas não demonstraram
aborrecimento com a falta das atividades. A sensação é a de que houve perda
do que já havia sido conquistado, porque as famílias passaram a considerar
que era mais fácil ir ao Grupo uma vez ao mês, pegar toda a cesta básica sem
“ter” que participar de atividade nenhuma, como era antes. De fato, esta é a
alternativa mais cômoda tanto para eles quanto para o Grupo, mas é
exatamente o que se deseja mudar! Contudo, a impressão que o pesquisador
teve, uma vez mais, é a de que os trabalhadores voluntários não se importaram
também.
No dia 26 de maio de 2012 o pesquisador e o Manoel foram retirar e
entregar um guarda-roupas muito bom, em perfeito funcionamento, que aquele
havia ganhado de um amigo. Decidiram que ao invés de colocarem-no à venda
no bazar do Grupo, doariam-no a uma das famílias assistidas. Quando o
pesquisador recebeu a doação do móvel comentou com o Manoel que uma das
famílias havia comentado, há alguns dias, que estava precisando de um
guarda-roupas...
Combinamos de retirar o móvel em um sábado pela manhã e já levar à
família indicada. Chegando ao local, periferia pobre de Campinas, o
pesquisador verificou que a família morava em uma casa de alvenaria, popular,
modesta, mas bem acabada por dentro. No quarto maior já havia um guarda-
roupas grande, bonito, envernizado e aparentemente muito bom e conservado.
Questionada sobre a necessidade de um novo guarda-roupas, e a mulher,
dona da casa, afirmou, abrindo as portas do móvel e confirmando a urgência
de outro, em melhores condições:
Esse tá escorado, podre e as gaveta de baixo tão solta. Se abri elas cai.
Sem a intenção de “vigiar” ou “investigar” o assunto, mas verificando que
o guarda-roupas aparentava bom estado geral, inclusive com o funcionamento
de suas portas grandes preservado, tendo em vista que a própria mulher, ao
tentar demonstrar que estava aos “frangalhos”, acabou evidenciando o
143
contrário, o pesquisador questionou-a novamente acerca da necessidade de
um novo guarda-roupas. Ao que ela respondeu com energia, demonstrando
aborrecimento com o questionamento. Pois bem, como o Grupo tem como
regra de conduta partir do pressuposto da boa fé das pessoas, o pesquisador
decidiu não mais questionar e tampouco duvidar da mulher e doar o móvel para
a família, com protestos do Manoel, que desejava levá-lo a outra família, mais
necessitada. Manoel tem um temperamento mais enérgico e a paciência e
tolerância não são seus pontos fortes. O pesquisador ponderou que deveriam
ter visitado a família com antecedência, ao invés de chegar já com o móvel.
O pesquisador interessou-se por esta mulher, ainda que não seja sujeito
direto de sua pesquisa, e, portanto, aproveitou o ensejo para “bater um papo”
com ela. Manoel havia citado que ela havia conseguido um bom emprego
formal recentemente, em uma grande instituição educacional. O pesquisador
indagou-a sobre tal emprego, ao que respondeu que estava aguardando a
perícia do INSS, porque informou estar com dor intensa no ombro e, portanto,
impossibilitada de trabalhar. Trabalhava na limpeza, serviço pesado.
Pois bem, o pesquisador e o Manoel voltaram para a área externa da
casa, em direção do veículo, a fim de descarregar o móvel. Quando
começaram o trabalho, a mulher, que vinha logo atrás, começou a ajudar pelas
peças mais pesadas. Logo que perceberam, o pesquisador e o Manoel pediram
que parasse, tendo em vista que estava lesionada, conforme acabara de
informar, e o esforço poderia agravar-lhe o estado físico. Afirmando “não ter
problema”, a mulher continuou a ajudá-los e assim agiu até o descarregamento
completo. Ajudou a pegar as peças mais pesadas, pesadas até para um
homem adulto, sem demonstrar desconforto. Perguntada sobre a montagem do
móvel, esclareceu que um seu sobrinho faria sem dificuldades.
Uma vez que descarregamos o móvel, o pesquisador “puxou” conversa
sobre o bairro e sua estrutura, ao que a mulher respondeu que era bom e que
dispunha de tudo, mas que o único problema é que a creche atendia apenas
meio período. O pesquisador esclareceu a ela que era direito de todas as mães
que trabalham deixar seus filhos em período integral e perguntou se ela
desejava saber o endereço do Ministério Público, para denunciar a situação e
solicitar providências. A mulher não respondeu e também não fez qualquer
144
gesto de aprovação ou desaprovação. O pesquisador insistiu mais duas vezes,
mas a mulher, demonstrando desinteresse, desconversou.
A mulher começou a dizer que teria que levar a sua mãe, que estava
muito doente, ao hospital, que se localizava bem distante dali.
De fato, quando no interior da residência, o pesquisador avistou, em um
dos quartos, uma senhora deitada na cama, com ar abatido, e uma cadeira de
rodas ao seu lado. Foi quando o pesquisador perguntou sobre a existência de
posto de saúde no bairro, ao que respondeu negativamente, esclarecendo que
o mais próximo dali situava-se no bairro São José. O pesquisador conhece a
região e também a localização do posto de saúde citado, porque já estivera lá
em outra ocasião. Trata-se de um posto de saúde com precárias estruturas,
que atende a um sem número de bairros populosos da periferia do entorno e
dista aproximadamente seis quilômetros da casa da mulher. De sua residência
ao posto de saúde não há acesso “por dentro” dos bairros, havendo a
necessidade de transitar pela rodovia Santos Dumont.
O pesquisador questionou se existia naquele local alguma associação
de bairro ou congênere, ao que respondeu positivamente. Indagou, então, se
ela participava das reuniões e deliberações da associação, ao que respondeu
negativamente, alegando que só tinha “petista vagabundo que não faz nada
pelo bairro” e falou, confusamente, algumas coisas mais sobre política que não
fizeram sentido algum para o pesquisador. Aparentemente, buscava justificar a
sua falta de envolvimento mediante alegações próprias. O pesquisador indagou
a mulher se ela tinha interesse em reunir vizinhos para lutar pela implantação
de um posto de saúde naquele local, informando sobre suas vantagens,
quando ela disse que “parece” que a associação estava atrás disso há tempos,
mas que ainda não havia conseguido nada. O pesquisador alegou que como a
associação era “ineficiente”, poderiam se unir e lutar através de outros meios.
Ela desconversou mais uma vez e afirmou precisar entrar para cuidar da mãe.
Entre o dia doze de maio, que fora o pior dia, conforme relatado, e o dia
nove de junho de 2012, data da entrega das cestas básicas para as famílias no
mês de junho e último dia de pesquisa de campo, o pesquisador convocou
duas reuniões visando resgatar o espírito de educador freireano nos
trabalhadores voluntários. Lembrou-lhes da opressão, domínio, ocultamento da
145
realidade, exploração e sofrimento que as famílias atendidas pelo Grupo
passam. E da “obrigação” do grupo, enquanto cristãos, supostos desalienados
e iluminados, além da necessidade de se reconhecerem, em certa medida,
também como opressores dessas pessoas, de lutar ao lado das famílias,
colaborando ativamente pela sua desalienação, desocultando a realidade a sua
frente, orientando-os quanto aos caminhos que podem seguir para sua
emancipação, caminhando com eles rumo à construção de uma consciência
crítica e responsável, para que alcancem a efetivação de seus direitos,
incentivando-os à formação de coletividades para que suas demandas sejam
fortalecidas etc.
O pesquisador empreendeu um discurso de protesto contra a
passividade, que parecia contagiar a todos, má vontade, desamor e
solidariedade com as famílias e convocou os trabalhadores voluntários ao
despertamento e trabalho duro, demonstrando que estão se comportando,
inclusive o pesquisador, como dominadores e opressores.
Aparentemente, a intervenção junto aos trabalhadores voluntários surtiu
efeito porque no dia nove de junho o clima era outro, estava totalmente
diferente. Todos os trabalhadores estavam demonstrando disposição e
aparente consciência de seu compromisso com as famílias. Neste dia todas as
atividades funcionaram perfeitamente, conforme planejado. As famílias
sentiram a nova disposição e corresponderam: participaram ativamente das
atividades. Ouviram atentamente a fala do pesquisador em sua palestra do dia,
mas ainda sem participar. Pela primeira vez as crianças foram entretidas
construtivamente, se comportaram muito bem e permitiram que seus pais
participassem das atividades na maior parte do tempo. Alguns trabalhadores
que haviam abandonado as atividades, convidados pelo pesquisador, voltaram
e reforçaram o contingente de voluntários neste dia, fato que teve influência
direta no êxito dos trabalhos.
O pesquisador ficou muito feliz e animado com os próximos encontros e
a possibilidade de aprofundamento da intervenção (positiva e necessária) do
Grupo no processo educativo das famílias atendidas. A propósito da
intervenção positiva:
146
Outra palavra incômoda é intervenção. Intervenção é, de algum modo, uma ruptura. Uma intervenção educativa é uma ruptura com um modo de ser da sociedade, mas também pode ser uma ruptura como o modo de educar da sociedade. Em algum sentido, a intervenção é negativa, deve, ao menos, negar o estado das coisas tal como estão. Parece-me que nem toda Educação Sócio-comunitária é um processo que se caracteriza por intervenção, nesse sentido restrito. Porém, em toda proposta educativa há um momento criador, há o momento de se discutir e fazer, ou refazer, a proposta e esse é, ao menos em sentido lato, o momento da intervenção (GOMES, 2009, p. 6).
Aproveitando o dia, que estava bem mais organizado e, por
consequência, tomou o tempo do pesquisador em menor intensidade do que
nos encontros anteriores, este foi conversar com M., uma das “assistidas” e
sujeito da pesquisa, que habita o cubículo de madeira sem divisórias internas e
sem banheiro, anteriormente referido. Há algum tempo o pesquisador desejava
conversar calma e particularmente com ela para tentar despertar algum
interesse em buscar melhorias em sua vida. Questionada, informou que
começou a construir um “puxado” que seria o banheiro de sua casa, mas parou
porque não tem dinheiro 10 . O companheiro vive de trabalhos informais
esporádicos e ela não trabalha. Questionada se não havia algum parente ou
conhecido que poderia ajudar financeiramente, respondeu que sua família “é
de fora”, “tudo pobre igual eu” e que são “tudo da roça”. O pesquisador deu a
ideia de ela escrever uma carta, solicitando os materiais que faltavam para o
Grupo; porque a proposta dos encontros é a de ajudá-los a viver com mais
dignidade e, portanto, era como se fosse uma obrigação moral do Grupo
colaborar de alguma maneira para que conseguisse terminar seu banheiro. M.,
desconfiada, de cabeça baixa, mas não tendo nada a perder, aceitou. Não
demonstrou contentamento porque, acredita o pesquisador, não acreditava na
proposta. Já se habituara a promessas e desprezos dessas.
O pesquisador convidou a M. a dirigir-se em sua companhia para um
ambiente, que não estava sendo ocupado pelas atividades, convidou-a a
sentar-se junto a uma pequena mesa e entregou-lhe papel e caneta para que
pudesse escrever a carta. Foi quando ela pediu ao pesquisador para ditar o
10
Mais tarde o pesquisador verificou que na realidade M. havia conseguido alguns pedaços de madeira e limpado um canto de seu casebre. Havia mais intenção do que “reforma” propriamente dita.
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que deveria escrever, ao que esse redarguiu que escrevesse um pedido de
materiais a sua maneira, porque a forma não importava, relacionando-os
quanto ao gênero, tipo, cor e quantidade. Nada. M. continuava parada, com a
caneta em punho, olhando fixamente para o papel. Pediu para que o
pesquisador escrevesse para ela porque “não sabia escrever direito”.
Depois de mais algumas tentativas frustradas para que M. elaborasse a
carta sem ajuda, o pesquisador se viu obrigado a ditar o início da carta e parou,
disse que seguisse relacionando os materiais, mas M. parou também.
Questionada, respondeu que “eu não sei o que escrever” e “minha letra é feia,
né?”. Sem outra alternativa, o pesquisador tomou uma caneta e um papel,
posicionou-se ao lado de Marisa e pediu para que ela dissesse a ele como faria
o pedido verbalmente, porque então escreveria no papel e ela poderia copiar a
sua própria versão. Nada. Ficou parada, agora olhando para o vazio, sem
ação, mesmo depois de mais algumas tentativas do pesquisador.
Percebendo que não adiantaria insistir, o pesquisador começou a
escrever o pedido de forma bastante simples, estimulando a sua participação.
Demonstrando muita dificuldade, mesmo para copiar, escreveu a carta com o
máximo de participação possível, que se limitou a indicar os materiais de que
precisava, conforme se verifica no Anexo 3. Ao final, o pesquisador infomou-a
de que poderia ajudá-la a solicitar junto à Prefeitura de Campinas assistência
técnica gratuita para o projeto e a construção de seu banheiro e até para
eventuais melhorias em sua casa, conforme garante a Lei Federal n.º 11.888,
de 24 de dezembro de 2008, o que aproximaria sua realidade do Poder Público
ensejando oportunidade de solicitarmos outros tipos de auxílio, ao que recusou
sumariamente.
O pesquisador perguntou à M. se ela desejava que ele a ajudasse a
encaminhar a carta até a Diretoria do Grupo, para deliberação sobre a ajuda
solicitada, ao que aceitou. O pesquisador pediu a sua permissão para divulgar
a carta ao Grupo e em sua pesquisa, já que estava ciente desta porque haviam
conversado sobre o assunto em outra ocasião, ao que aquiesceu e concordou
em preparar a autorização por escrito, o que foi feito com muita dificuldade, o
que pode ser verificado no Anexo 4.
148
O pesquisador conversou com alguns membros do Grupo e encaminhou
a solicitação da M. para a Diretoria. O pesquisador está apressando a
deliberação sobre o assunto, porque para a família da M. há muita urgência em
que seja construído um banheiro em sua casa. Trata-se de uma questão
relacionada à dignidade mínima do ser humano.
Interessante destacar mais um fato que ocorrera com M. neste mesmo
dia e que evidencia a sua dificuldade de “ter voz”. Estava muito frio no dia nove
de junho. Quando M. chegou à sede do Grupo, vestia uma “blusinha” de alça.
O pesquisador, ao recepcioná-la, impressionou-se com as suas vestes e
perguntou se não estava sentindo frio, informando que ele próprio estava
agasalhado e ainda assim sentia-se gelado. Ao que M. respondeu “não”,
sorrindo e balançando a cabeça negativamente. O pesquisador distraiu-se com
outros membros das famílias assistidas e com a organização geral, quando
percebeu que M. estava encolhida em um canto, fora do salão. Braços
cruzados e lábios arroxeados denunciavam, sem qualquer dúvida, que M.
passava muito frio. Aproximou-se e perguntou novamente se estava com frio,
comentando que o sol havia se escondido naquele dia e que a temperatura
havia caído muito de um dia para outro. Novamente a resposta foi negativa,
acompanhada de um sorriso enrijecido e acanhado. O pesquisador insistiu,
respeitosamente. M. negou novamente. O silêncio secular imposto pela
ideologia dominadora ainda se impõe, inclemente.
O pesquisador, compreendendo a dificuldade de se expressar, convidou-
a a acompanhá-lo até o bazar do Grupo, que funciona na garagem da sede,
para que escolhesse um agasalho. M. se negou: “Num precisa não, eu num tô
com frio não.” Sem outra alternativa, o pesquisador desceu até o bazar,
sozinho, escolheu um bom agasalho feminino e entregou à M., que com um
largo sorriso agradeceu, vestindo-o imediatamente. Depois disso M. parecia
mais alegre, confortável e a vontade no ambiente. Ao final das atividades e
com as cestas básicas entregues, era o momento de as famílias voltarem para
suas casas. M., então, procurou o pesquisador para devolver-lhe o agasalho,
agradecendo. Este lhe disse que se tratara de um presente do Grupo e insistiu
para que ela aceitasse. Demonstrando acanhamento, M. aceitou.
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Ao lado, posto à margem, sem direitos cívicos, estava o homem comum, irremediavelmente afastado de qualquer experiência de autogoverno. De dialogação. Constantemente submetido. "Protegido". Capaz, na verdade, de algazarra, que é a "voz" dos que se tornam "mudos" na constituição e crescimento de suas comunidades, quando ensaiam qualquer reação. Nunca, porém, capaz de voz autêntica. De opção. Voz que o povo inexperimentado dela, vai ganhando quando novas condições faseológicas vão surgindo e propiciando a ele os primeiros ensaios de dialogação. (FREIRE, 2011a, p. 48)
150
4. Considerações de um final em andamento…
Ao dialogar para juntos caminharem rumo ao desenvolvimento de
consciência crítica, autonomia e liberdade, o pesquisador descobriu-se
alienado. Sentiu-se como um “deles”. Chegou a pensar que seria lícito a ele,
em tese, assumir uma postura de “liderança” entre os demais porque passou a
reconhecer-se um igual. Mas também reconheceu sua porção opressora e
inconscientemente simpatizante com a ideologia dominante, porque se
enquadra como um sujeito socialmente pouco ativo na luta para a mudança
social, o que significa que a sua postura, próxima à inércia, denuncia uma
aceitação da situação opressora como ela funciona ideologicamente na
atualidade. Tanto porque também alienado e desanimado, acreditava que não
poderia colaborar com a mudança da sociedade para uma sociedade mais
justa e equânime, e também porque, de certa forma (a expressão “de certa
forma” demonstra a dificuldade do pesquisador em se reconhecer como um
opressor), a situação lhe era favorável.
Tornou-se, neste cenário, muito difícil conciliar os papéis de ator e de
pesquisador. O equilíbrio entre a ação e a investigação é muito difícil porque
grande é a atração por aquela em detrimento do rigor que qualquer tipo de
pesquisa séria requer.
Ainda assim, nas pesquisas que o pesquisador fez acreditou que
conseguiu manter importante nível de “suspensão” de pré-julgamentos, de
reflexão e considerando as bases teóricas escolhidas, em todas as fases do
processo de elaboração do presente trabalho. O que não foi alcançado sem
dificuldade, dada a familiaridade do pesquisador com o grupo pesquisado.
Desta forma, o pesquisador lançou mão daquele esforço sistemático de análise
de situações familiares como se fossem estranhas. Acredita que conseguiu
atingir os objetivos porque a pesquisa foi realizada com a observância dos
requisitos científicos norteadores de sua validade e confiabilidade.
Ainda, a teoria freireana é por demais complexa e de difícil aplicação. Se
o raciocínio alcança as idéias de Paulo Freire, a falta do amor “responsável”
que o pesquisador e os demais trabalhadores voluntários do Grupo sentiam
151
pelos excluídos faz com que a aplicação de sua teoria por estes sofresse
prejuízo. O pesquisador reconhece tal fato. Talvez seja a sua porção opressora
e, portanto, impaciente, que esteja à espreita, atenuada pela conscientização
recente da sua real condição e dos mecanismos ideológicos do neoliberalismo.
A conclusão a que o pesquisador chegou é que aprendeu muito mais do
que pode colaborar. Mas foi uma grata surpresa. Neste final, sentiu-se muito
mais preparado para prosseguir com os projetos com as famílias, agora
vislumbrando objetivos mais claros e com preparação mais adequada. Planeja
compartilhar todo o conhecimento adquirido e desenvolvido com aqueles que
ombreiam com ele na coordenação do trabalho social e ampliar o número de
indivíduos atendidos no Grupo. A “preparação” dos trabalhadores voluntários é
uma das maiores preocupações do pesquisador, tendo em vista que este
aprendeu e entendeu que não basta ter boa vontade, é preciso ter consciência
do funcionamento da ideologia dominante, uma boa dose de auto
conhecimento para reconhecer em si mesmo, se for o caso, a sua porção
opressora, para que trabalhe com a finalidade de neutralizá-la tanto quanto
possível. Além do imprescindível conhecimento de um mínimo de teoria
freireana para servir de norte do que e como fazer para ajudar as pessoas
oprimidas.
Por outro lado, o presente trabalho reforçou e aperfeiçoou a visão que o
pesquisador já tinha sobre a função social e educadora do advogado.
Profissionalmente, sente-se mais preparado e com uma visão mais abrangente
e realista dos acontecimentos e das interações com aqueles que buscam, ou
necessitam, do Poder Judiciário para fazer valer seus direitos
constitucionalmente já assegurados. O pesquisador acredita que será mais
uma voz tanto técnica quanto humana, crítica e destemida a ser ouvida por
nossos julgadores.
Quanto a sua atividade docente - já que a maior parte dos alunos da
faculdade onde o pesquisador leciona estão vinculados aos programas de
bolsa de estudo do Governo Federal, formando o melhor público que o
pesquisador desejaria ter, cabe uma reflexão. A sua prática, antes feita de
muito boa vontade e com amor, mas sem a técnica pedagógica
adequadamente desenvolvida, hoje é feita com conhecimentos dos postulados
152
freireanos. E isso está fazendo uma brutal diferença, tanto para o pesquisador
quanto para seus alunos. Juntamente à parte técnica o pesquisador tem
trabalhado com eles também os conceitos de autoadvocacia. E frutos já
surgiram. Talvez se tratem de pessoas com perfil mais adequado (ou
preparado) à prática da autoadvocacia. Já lutaram muito para chegarem onde
estão e muitos residem nos mesmos locais em que as famílias assistidas pelo
Grupo. São mais conscientes e aparentemente a sua alienação é menos
densa. São mais ativos.
Lamentavelmente, até aqui, o pesquisador acredita que a autoadvocacia
não se mostrou muito eficiente para o grupo de famílias pesquisado. O tempo
foi curto, o contato com as pessoas e as atividades não tiveram a frequência
adequada e os educadores (trabalhadores voluntários do Grupo) não estavam
preparados para auxiliá-lo convenientemente. O pesquisador acredita que o
grau de alienação das famílias é severo a ponto de exigir medidas que
antecedam a introdução da autoadvocacia. O pesquisador constatou a falta
quase que absoluta de perspectivas positivas de vida, por parte dos
pesquisados. Os interesses parecem ser limitados ao gozo imediato de
qualquer benefício alcançado sem esforço. Percebe-se, também, um forte
individualismo: “o problema é seu e só seu e eu não tenho nada com isso”.
Outro aspecto que deve ser esclarecido é que por mais que o pesquisador
tentasse não interferir no hábito das pessoas, percebe-se que elas alteram
seus comportamentos quando ele e os demais trabalhadores voluntários estão
próximos ou percebem que estão sendo notadas.
Desta forma, o presente estudo coloca a urgência de se prepararem os
trabalhadores, voluntários ou não, envolvidos em atividades de caráter social
para que não se limitem, consciente ou inconscientemente, ao
assistencialismo, mas tenham como objetivo colaborar com a transformação
dos oprimidos para que se tornem conscientes do mecanismo alienador
empreendido pelo Estado, e estimulem a união dos dominados com a
finalidade de devolver-lhes a palavra para que possam, pessoalmente, lutar
pela efetivação de seus direitos e pela conquista de outros, para que possam,
enfim, transformar a sua realidade de oprimidos por meio do seu
empoderamento e do estímulo ao encabeçamento de lideranças em ações
153
coletivas em sua comunidade e além. Os trabalhadores deverão ter a
consciência de que devem contribuir no desenvolvimento de uma autonomia,
que lhes foi roubada, e a consequente responsabilidade dela decorrente.
Trata-se de um processo de longo–termo, como afirma Bissoto (2012, p.
11) em seu ensaio, no qual, ao substituirmos o termo “sujeitos intelectualmente
deficientes” por oprimidos teremos a justa medida do necessário à sua
transformação:
O desenvolvimento do sujeito intelectualmente deficiente enquanto autônomo é um processo de ensino-aprendizagem de longo-termo, que necessita ser sustentado num esforço real, em especial em seus processos proximais. E que só será efetivo se continuamente “vivido” e alimentado pelo conjunto dos sistemas nos quais o deficiente está inserido. Não se põe somente como tarefa da família ou da escola, mas de toda coletividade. É a partir das interações sociocomunitárias, que emergirão contextos de vida mais ou menos autônomos. E que, recursivamente, nos transformarão, enquanto sociedade.
Construir a autonomia e o exercício da autoadvocacia nas pessoas
oprimidas, enquanto uma possibilidade de ação para a educação
sociocomunitária, é construir novas relações pessoais (e, assim, sociais) e
iluminar e desenvolver a consciência de novos possíveis papéis no mundo e
sobre a realidade na qual estão imersos. Desta forma, é na prática do cotidiano
vivido que essas pessoas vão romper o ciclo histórico de invisibilidade e
opressão e, finalmente, exercerão seus direitos em todas as esferas sociais.
Trata-se de mais um caminho perfeitamente possível, dentre tantos outros a
serem descobertos e explorados, cujo objetivo em comum é tornar o mundo
mais justo, mais igualitário, mais acolhedor e melhor para todos, caminho esse
a ser trilhado com o amor, com a competência e com a paciência histórica de
Freire.
154
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162
ANEXOS
LISTA DE ANEXOS ANEXO 1 – Termo de Esclarecimento e Consentimento Livre ANEXO 2 – Ficha de Inscrição ANEXO 3 – Carta da Marisa ANEXO 4 – Autorização da utilização da carta da Marisa neste trabalho
163
ANEXO 1
TERMO DE ESCLARECIMENTO E CONSENTIMENTO LIVRE
Nome do participante:
A pesquisa intitulada "A Autoadvocacia e a Educação Sociocomunitária" pretende, com
base nos dados obtidos, verificar os resultados da aplicação da autoadvocacia no grupo
de famílias assistidas pelo Grupo Espírita Caminheiros.
Sua participação será voluntária e sua recusa em participar do projeto não acarretará
qualquer consequência futura na relação com o Grupo Espírita Caminheiros.
Seu nome não será divulgado e não terá despesas ou benefícios financeiros por esta
participação e as perguntas e as dúvidas que venha a ter, poderão ser respondidas pelos
responsáveis pela pesquisa.
Para eventuais esclarecimentos, entre em contato com Rogério Pena Masi, fone: 19-
9178-0117 – e-mail: [email protected]; ou com Maria Luísa Bissoto, e-mail:
Eu confirmo que Rogério Pena Masi explicou-me os objetivos desta pesquisa, bem
como a forma de participação. Eu li e compreendi este termo de consentimento,
portanto, eu concordo em dar meu consentimento para participar como voluntário desta
pesquisa.
Local e data:
Assinatura do participante:_________________________________________
164
ANEXO 2
Rua Erasmo Braga, n.º 560 – Campinas – SP.
CNPJ n.º 00.802.327/0001-87
FICHA DE INSCRIÇÃO Projeto Autonomia
Identificação do Aluno:
Nome:...........................................................................................................
Sexo F ( ) M ( )
Curso:...........................................................................................................
Data de nascimento ....../....../...... Número do RG .........................................
Natural de: ....................................................................................................
Endereço:
Rua...............................................................Número..........
Complemento.......................................
Bairro:...............................Cidade:.....................................CEP:......................
Tel. Residencial: ......................... Cel.: ..........................
Recado: ……………………………….. Contato: ............................
E-mail:..............................................................
Data ....../....../......
______________________________________
Assinatura do Aluno
165
ANEXO 3
166
ANEXO 4