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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
RAFAEL LEAL MATOS
O “RITUAL” NA ANTROPOLOGIA: UM OLHAR A PARTIR DOS TEXTOS
DA DISCIPLINA “TEORIA ANTROPOLÓGICA CLÁSSICA”
Julho de 2014
Natal – RN
Artigo escrito para obtenção da nota final da disciplina Teoria Antropológica Clássica (PPGAS/UFRN), ministrada pela professora Dra. Juliana Melo.
INTRODUÇÃO
O estudo práticas rituais é um tema recorrente na Antropologia. Desde as
primeiras e clássicas investidas da disciplina eventos ritualizados chamam a atenção de
pesquisadores enquanto um tema importante e revelador de aspectos socioculturais de
sociedades distantes (temporal e espacialmente), como é o caso dos clássicos: O Ramo
de Ouro de James Frazer (1982[1915]), As Formas Elementares da Vida Religiosa de
Émile Durkheim (0000[1912]) e o Ensaio sobre a Dádiva de Marcel Mauss
(1975[1923-24]).
Como este assunto foi constituído enquanto tal? Ou melhor, como é que os ritos
foram sendo estabelecidos enquanto uma questão a ser pensada e observada a ponto de
se tornar parte importante da reflexão teórica e prática da Antropologia? Obviamente,
não pretendo com esse texto dar uma resposta a essas questões de maneira definitiva.
Quero apenas, lançando mão de textos da disciplina “Teoria Antropológica Clássica”,
tentar pensar essas questões e elaborar algumas considerações acerca do estudo de
eventos rituais na Antropologia.
Sendo assim, pretendo assinalar algumas continuidades e descontinuidades dessa
temática no trabalho de certos autores clássicos, sinalizando quais as leituras feitas por
eles em relação à temática em questão. Neste caso, além dos textos citados mais acima,
serão discutidos também os seguintes textos ministrados na disciplina: Análise de uma
Situação Social na Zululândia Moderna de Max Gluckman (2010), Liminaridade e
Communitas de Victor Turner (0000) e O Feiticeiro e sua Magia e a Eficácia Simbólica
de Lévi-Strauss (1975). Além desses, outros textos não usados na disciplina serão
utilizados, devido à importância dos mesmos para a temática em questão, são eles: Os
Ritos de Passagem de Van Gennep (1978), Rituais de Rebelião no Sudeste da África de
Max Gluckman (1974), Mukanda: O Rito de Circuncisão e Dramas, Campos e
Metáforas ambos de Victor Turner, e, por fim, O Dito e o Feito de Mariza Peirano
(2002) – este último usado apenas como chave interpretativa em um determinado
momento, por ser uma leitura contemporânea sobre os clássicos.
A DICOTOMIA MITO VERSUS RITO
Ao tentar traçar as continuidades e descontinuidades do ritual na Antropologia,
fica difícil não obedecer uma certa ordem cronológica. Começo falando dos primórdios
da disciplina, com um importante representante da escola evolucionista: James Frazer.
No primeiro capítulo do Ramo de Ouro, intitulado O Rei do Bosque, Frazer (1982)
descreve o mito do Rei-Sacerdote que guarda o Bosque de Nemi, santuário da Deusa
Diana. Para conquistar o sacerdócio o candidato deve comprimir uma sequência ritual
que culmina na morte do seu predecessor (que por sua vez já havia matado o guardião
anterior), mas antes disso o pretenso sacerdote deve arrancar o ramo de ouro da árvore
sagrada do bosque de Nemi.
Havia no bosque sagrado uma certa árvore, em torno da qual, a
qualquer hora do dia e provavelmente até tarde da noite, uma
figura sombria podia ser vista rondando de guarda. Levava na mão
uma espada nua e todo o tempo olhava cautelosamente à volta,
como se esperasse ser atacada a qualquer momento por um
inimigo. Era sacerdote e assassino, e o homem a quem espreitava
iria matá-lo, mais cedo ou mais tarde, para ocupar seu lugar como
sacerdote. Era essa a regra do santuário. O candidato ao ofício
sacerdotal só poderia ascender a ele matando o sacerdote e,
concluído o assassinato, ocupava o posto até chegar a sua vez de
ser morto por alguém mais forte ou mais hábil. É verdade que esse
posto, em que ele se instalava tão precariamente, conferia o título
de rei: mas certamente nenhuma cabeça coroada jamais esteve tão
pouco segura sobre os ombros, ou foi visitada por piores sonhos,
do que a sua. Ano após ano, no verão ou no inverno, com bom ou
mau tempo, o rei do bosque tinha de manter sua solitária vigilância
e, toda vez que se arriscava a um cochilo agitado, fazia-o com
perigo de vida. (FRAZER, 1982, p. 22).
Essa prática ritual do mito em questão é analisada por Frazer (1982) e
comparada com outras práticas e mitos de diferentes lugares e épocas, com o intuito de
compreender o espirito humano através do estudo comparativo de práticas mágico-
religiosas. Apesar de ser um autor datado, no sentido de que se considera hoje o
evolucionismo como uma teoria superada, o autor, preocupado com a unidade do
“espírito humano”, ao analisar os aspectos práticos da magia demonstra a importância
do rito e do mito para a compreensão da realidade. O ritual é tomado por este autor
como uma prática repetitiva e expressiva e como um foco para a compreensão do tão
enfatizado “espírito humano”.
No caso de Durkheim (2003), em As Formas Elementares da Vida Religiosa, os
ritos são abordados de maneira mais aprofundada e detida. Mas apesar de separar
didaticamente as práticas rituais das crenças simbólicas em sua exposição, aquelas são
subordinadas a estas últimas. Ao focar nas práticas rituais de formas religiosas mais
simples, com o argumento de que estas são mais clarividentes por pertencerem e
exprimirem o real e, portanto, serem menos elaboradas do que as crenças ditas
complexas e mais conceituais, o autor classifica os ritos entre “negativos” e “positivos”
na tentativa de dar significado às crenças.
Não tenho a intenção de tentar [...] uma descrição completa do
culto primitivo. Preocupados antes de tudo em atingir o que há de
mais elementar e fundamental na vida religiosa, não buscaremos
reconstruir no detalhe a multiplicidade, não raro confusa, de todos
os gestos rituais. Mas gostaria através da extrema diversidade das
práticas que o primitivo observa na celebração de seu culto, de
classificar as formas mais gerais de seus ritos, de determinar suas
origens e sua significação, a fim de controlar, se possível, precisar
os resultados que nos conduz a análise das crenças (DURKHEIM,
2003, p. 317).
Na citação acima fica clara a intenção classificatória do autor. Além do mais, é
explicito a subordinação do rito aos aspectos simbólicos, às crenças. Assim, tendo como
eixo principal da obra a oposição entre sagrado e profano, Durkheim (2003) enfatiza o
aspecto metodológico dos ritos: eles são vistos como uma forma de acesso às
representações sociais, por serem determinados por estas. Além disso, o aspecto
funcional do rito é constantemente afirmado pelo autor: os ritos são geradores de
coletividade (unidade), os ritos são vistos também como uma ponte que leva ao sagrado,
na medida em que estes separam as coletividades do mundo profano.
Mauss (1974) fala sobre a política de dádivas em várias sociedades (capitalistas
e não capitalistas). Para este autor, os rituais de troca são formas de comunicação e
maneiras de estabelecer alianças entre indivíduos, grupos e sociedades. Ao longo do
texto, Mauss demostra, apoiado em etnografias de outros, como esses rituais estão
impregnados de noções míticas que norteiam as cerimônias de trocas econômicas
em/entre sociedades diversas do globo. Neste sentido, a vida social pode ser entendida
enquanto um constante dar-receber-retribuir, impregnada por representações sociais
míticas, que dão o plano de fundo das ações de troca. Segundo o próprio autor, “as
diversas atividades econômicas são impregnadas de ritos e mitos e guardam um caráter
cerimonial obrigatório” (MAUSS, 1974, p. 171). É interessante salientar que, apesar de
demostrar várias cerimônias rituais de troca, Marcel Mauss procura estabelecer uma
regra geral da política de dádiva, ou seja, ele não foca no ritual para entender este em si
mesmo, mas como uma maneira de acesso a essa regra geral abstrata da dádiva, uma
universalidade nas trocas sociais.
Fica claro que os três autores discutidos até agora (Frazer, Durkheim e Mauss)
colocaram a dicotomia mito versus rito. É com eles, sobretudo com o segundo e o
terceiro, que essa dicotomia se estabelece na disciplina. De acordo com Peirano (2002)
a separação heurística desses dois domínios (mito e rito) deve-se também a apropriação
histórica que foi dada a esses autores por parte de outros autores das ciências sociais,
principalmente por Lévi-Strauss. Neste sentido, mito e rito passaram a marcar “uma
antinomia inerente à condição humana entre duas sujeições inelutáveis: a do viver e a do
pensar [...]. Os mitos ficaram associados às representações e os ritos, às relações sociais
empíricas (como na proposta de Van Gennep)” (PEIRANO, 2002, p. 21).
Neste sentido, Lévi-Strauss, a partir de sua leitura dos clássico, acentuou a
dicotomia rito versus mito, dando prioridade a este último. No texto O Feiticeiro e sua
Magia este autor apresenta a figura do feiticeiro enquanto um personagem socialmente
construído em que sua performance, a crença do doente e a legitimidade social
depositada no feiticeiro dão o plano de fundo aos ritos e práticas de feitiçaria afirmando
ou não a sua legitimidade. Já no texto A Eficácia Simbólica Lévi-Strauss (1975) fala
sobre rituais de cura a eficácia dos mesmos. Nele o autor descreve certos ritos de cura e
a manipulação simbólica feita pelo xamã nesses rituais. Em ambos os textos nota-se a
importância dos rituais seja na feitiçaria, seja nos processos de cura xamanísticos.
Porém, é importante ressaltar que os ritos são colocados pelo autor como uma repetição
reprodutora da coesão do grupo, em ambos os casos. Sendo assim, apesar da prática
ritual ser colocada por Lévi-Strauss, o foco das suas investigações estava na crença, no
símbolo e no mito. A ação, nos seus textos, é colocada apenas como uma maneira de
acessar o universo simbólico, sendo apenas um reflexo deste. Apensar dos grandes
avanços colocados por Lévi-Strauss fica claro em seus textos que não havia para a
criatividade dos indivíduos e para os processos sociais de mudança. Que vão ser
enfatizados por outros autores, como Van Gennep, por exemplo.
VAN GENNEP, MAX GLUCKMAN E VICTOR TURNER: A MUDANÇA, O
PROCESSO E A DIMENSÃO POLÍTICA NO RITUAL
Van Gennep (1978) é um autor de grande importância para o desenvolvimento
dos estudos sobre rituais. Isto porque, foi com este autor que o ritual passou a ser
analisado fora do escopo religioso. Além disso, o indivíduo (que não tinha espaço com
os teóricos citados mais acima) e seu lugar na constituição social passou a ser, mesmo
que de maneira incipiente, problematizado. Outro aspecto importante da obra de Van
Gennep é a dimensão temporal, que passa a ser incorporada na análise dos ritos de
passagem – que são, em suma, marcadores temporais produzidos coletivamente, mas
vividos por indivíduos específicos – e que têm como etapas constitutivas os momentos
de “separação”, “margem” e “agregação”. Estas etapas são momentos ritualizados que,
juntos, promovem mudanças na dinâmica social a partir do momento em que deslocam
indivíduos de um espaço social para aloca-los em outro, mudando o status social destes.
Apesar de todas essas descontinuidades com as teorias anteriores Van Gennep,
assim como Durkheim, considera as práticas rituais como socialmente construídas e fora
do escopo fisiológico individual. Assim, a oposição sociedade versus indivíduo ainda é
cultivada por ele, porém, com menos rigidez: há, de maneira tímida, uma abordagem do
lugar do indivíduo na constituição social, na medida em que o autor fala dos ritos de
passagem como marcações temporais, produzidas coletivamente, nas vidas de
indivíduos específicos. Além dessa diferença sutil, mas substancial, outras
especificidades se sobressaem. A principal é o fato de que este autor aborda a temática
ritual como um fenômeno para além das práticas religiosas.
Para Van Gennep (1978) os ritos de passagem são práticas que marcam
mudanças temporais, transições de um estado social para outro. Os ritos são vistos como
uma sequência cerimonial que transformam, que mudam indivíduos de condição. As
três etapas fundamentais destes ritos são: separação, margem e agregação. Porém,
segundo o autor,
estas três categorias secundárias não são igualmente desenvolvidas
em uma mesma população nem em um mesmo conjunto cerimonial
[...] na prática estamos longe de encontrar a equivalência dos três
grupos, quer no que diz respeito à importância deles que no grau de
elaboração que apresentam. (VAN GENNEP, 1978, p. 31).
Esta citação deixa claro que, apesar da divisão analítica dos ritos de passagem,
estes estão longe de serem universais em seus moldes, pelo contrário, cada qual e um
dado momento ou local possui suas particularidades. O que há de geral é o fato que os
ritos de passagem são maneiras de expressão de diferentes sociedades que marcam
situações especificas ao produzirem momentos de separação, marginalidade e
agregação. O importante aqui é frisar o fato de que estes ritos são vistos de maneira
encadeada (lógica e sequência), dentro de um esquema social maior, que sevem para
marcar tempo e lugar social.
A Dimensão Política no Estudo dos Rituais: Max Gluckman e Victor Turner
Outros autores são de fundamental importância para a temática ritual, como Max
Gluckman e Victor Turnner, dois expoentes de gerações distintas da escola de
Manchester. Com os avanços de Van Gennep (a saber: o ritual estar apenas no âmbito
religioso, a incorporação da ideia de mudança e o lugar do indivíduo nesse processo)
levados a cabo pela escola de Mancherster, pode-se considerar que a principal diferença
(contribuição) entre estes e os autores citados anteriormente é a incorporação da
dimensão política na abordagem de processos rituais, como veremos a seguir.
Em Análise de uma Situação Social na Zululândia Moderna Gluckman (2010)
procurou compreender como se dão as relações sociais entre os europeus colonizadores
e os zulus locais, buscando explicitar os conflitos inerentes a estas relações. É a partir da
compreensão dessa dinâmica o autor caracteriza a organização e a estrutura social da
Zululândia Moderna. Neste sentido, para compreender as relações “zulu-europeias” o
autor se utiliza de uma metodologia até então impar na antropologia: a análise de uma
situação social. Ao invés de tentar compreender a totalidade da cultural nos moldes dos
seus antecessores, Gluckman elege um evento social específico para compreender o
universo em questão e a partir deste falar sobre a economia, o parentesco, a religião a,
política local, etc. O evento escolhido é um ritual de inauguração de uma ponte,
construída e inaugurada a partir da relação de cooperação e conflito entre zulus e
europeus que, segundo o autor, formam uma comunidade única de relações desiguais,
de fusão e divisão. É importante ressaltar que uma situação social envolve uma série de
eventos, segundo o autor, porém o mais emblemático na sua análise é a cerimônia (rito)
de inauguração.
Como veremos na citação abaixo, a inauguração da ponte obedece a certas
regras sociais, com uma organização baseada nas tradições sociais:
O magistrado planejou a cerimônia, teve o poder para organizá-la
dentro dos limites de certas tradições sociais e pôde fazer
inovações de acordo com as condições locais. Mas, obviamente, a
divisão das pessoas em grupos e muitas das ações não foram
planejadas. A configuração subsidiária e não planejada dos eventos
do dia tomou forma em conformidade com a estrutura da sociedade
zululandesa moderna. Muitos dos incidentes que registrei
ocorreram espontaneamente e ao acaso, como, por exemplo, o
veterinário do governo discutindo com o induna, postado em
guarda junto à ponte, sobre banhos parasiticidas dê gado; ou o
missionário organizando o coral dos hinos. Entretanto estes
incidentes se encaixam facilmente num padrão geral, da mesma
maneira em que situações semelhantes envolvendo indivíduos se
amoldam em cerimônias funerárias ou de casamento.
(GLUCKMAN, 2010, p. 241)
Sobre a separação dos grupos é importante ressaltar que isso não quer dizer que
formam comunidades distintas, já que para Gluckman essa separação é aceita e
demostra uma forma de associação entre os zulus e europeus. Neste sentido, o autor
demostra a partir de um ritual de inauguração de uma ponte como se configura a
estrutura local, suas mudanças eventuais e os processos de associações e conflitos
políticos existentes entre brancos e zulus no processo histórico.
Em Rituais de Rebelião no Sudoeste da África Max Gluckman (1974), é notória
a relação entre este e o texto de Frazer citado no início deste artigo, já que ele é fruto de
uma conferência feita em homenagem a este autor. Além dessa obvia relação, o que fica
mais claro não são as semelhanças, entre ambos, mas sim as diferenças marcadas por
Gluckman ao distinguir seu método do método intelectualista de Frazer e seus
discípulos. Ao invés de procurar comparar costumes diversos de sociedades espalhadas
no tempo e no espaço, o autor pretende falar sobre a lógica interna de certas sociedades
do sudoeste da África a partir da análise de cerimonias consideradas por ele como:
rituais de rebelião.
Para este autor os rituais de rebelião são cerimônias onde as tensões sociais são
controladas e a ordem social é invertida e questionada de maneira ritualizada. Assim, os
diferentes ritos descritos pelo autor em seu texto tem em comum o fato de que são uma
forma de “protesto institucionalizado exigido pela tradição sagrada, aparentemente
contra a ordem estabelecida, mas que pretende abençoar tal ordem, com o fito condutor
de conseguir prosperidade” (GLUCKMAN, 1974, p. 6).
Ao considerar estes ritos dessa maneira, o autor coloca a esfera política como
um espaço ritualizado, na medida em que nestes ritos de rebelião há uma encenação de
rompimento com a ordem estabelecida, mas de uma maneira ordenada a reforçar a
ordem cotidiana. Os papeis são reforçados nessas encenações, em que a rebelião faz
parte de uma ordem social maior, marcada por papeis e lugares estabelecidos. Portanto,
os rituais analisados por Gluckman (1974) são vistos como mecanismos de manutenção
do status quo.
Victor Turner, influenciado por Van Gennep e Max Gluckman, consegue
amarrar a análise política com uma visão processual de maneira muito refinada. Turner
traz e desenvolver certos aspectos embrionários da obra de Van Gennep (ideia de
processo temporal, o lugar do indivíduo e as questões de mudança de status) e mesclar
com a abordagem política, típica da escola de Manchester.
Em Liminaridade e Communitas, Turner (0000) parte da ideia de Van Gennep
de que os rituais de passagem apresentam três momentos distintos (separação, margem e
agregação), e foca toda a sua análise no segundo momento, chamado por ele de
liminaridade. Toda a simbologia, o significado e as características desse momento são
marcadas pela ambiguidade, onde predomina uma forma de associação anti-estrutural
denominada de communitas. A communitas se caracteriza como um laço social marcado
pela homogeneidade e pela camaradagem, onde a hierarquia social, que predomina na
estrutura social, é criticada. Neste sentido, nos momentos liminares, onde os laços de
communitas prevalecem, há uma inversão de valores que se confronta com o sistema de
posições sociais, inversão esta manifestada em símbolos rituais. Devido a essa inversão
de valores, há o que Turner chama de “poder ritual dos fracos”. Na liminaridade a
autoridade é questionada e os indivíduos das posições sociais mais baixas são elevados,
nos momentos rituais, a cargos de extrema importância, exercendo um papel moral que
questiona as posições sociais estruturais.
Vejamos um texto deste autor onde ele descreve um rito de circuncisão de uma
determinada sociedade que se caracteriza enquanto um momento liminar. Neste texto,
Turner demostra a relação entre estrutura social e anti-estrutura ao revelar a dinâmica de
disputa pelos principais papeis de tal rito. Em Mukanda: O Rito de Circuncisão, o autor
adentra no universo social dos Ndembu tendo como foco a análise ritual, com ênfase na
dimensão política do rito.
Ao descrever o ritual de circuncisão como estando dentro de uma dinâmica
maior, da estrutura social, mostrando com isso a influência dos autores mais clássicos
colocados no início desse trabalho. Isto porque para Frazer, Mauss e Durkheim as
práticas rituais eram reveladoras de uma dinâmica social maior. Porém, Turner (2005) é
mais profundo nessa sua consideração por analisar os processos rituais em ação,
etnograficamente, levando em conta os processos históricos, as disputas de parentesco e
vizinhança, ou seja, o contexto que serve de plano de fundo ao ritual. Assim, o autor
mostra que os conflitos sociais entre parentes e vizinhos refletem na organização e na
execução ritual. Segundo ele, “os conflitos internos das aldeias faziam com que grupos
e indivíduos dissidentes apoiassem, às vezes aberta, mas em geral clandestinamente, a
facção oposta à de seus líderes” (TURNER, 2005, p. 212).
De acordo com Turner (2005), toda a disputa gira em torno do controle dos
principais papeis do Mukanda, são eles: Circuncidador Sênior, Fundador e Instrutor
Sênior. Isto porque a liderança moral (anti-estrutural) entre os Ndembu está
intimamente associada ao controle desses papeis, que são a expressão máxima do que
Turner chama de “poder ritual dos fracos” no texto anterior. Esta citação sobre
Nyaluhana (um dos personagens principais da trama social) ilustra muito bem isso:
Este Mukanda era uma crise maior em sua longa vida. Se ele
tivesse de aceitar qualquer coisa inferior à liderança deste
Mukanda, ele se transformaria num joão-ninguém, num velho a
caminho da ‘segunda infância e do esquecimento’, como tantos
outros velhos Ndembu que tinham perdido o controle efetivo em
matéria de política e ritual (TURNER, 2005, p. 224).
A oposição a Nyaluhana era o resultado de certas características da
própria vizinhança. Entre elas, notamos as diferenças de tamanho,
origem e interesses, sua segmentação interna, suas interligações
matrimoniais, as distâncias sócioespaciais e outros aspectos de sua
interdependência e mútua dependência (TURNER, 2005, p. 238).
Percebe-se ai a relação intrínseca entre política e ritual nesta sociedade. Um rito
de circuncisão, que à primeira vista é apenas à passagem de um indivíduo para a vida
adulta, apresenta uma forte relação com a vida política loca. Ainda mais, na segunda
citação, fica claro a relação indissociável entre as características da vizinhança e as
atitudes políticas de grupos e indivíduos. Porém, essa influência do contexto social se
contradiz ao campo ritual do Mukanda, que contém de certo modo uma dinâmica
própria.
Segundo Turner (2005)
em termos dinâmicos, o campo do Mukanda que estou discutindo
representa a superposição de dois campos, cada um deles voltado
para um conjunto de objetivos diferentes e mesmo contraditórios.
Digo ‘contraditório’ porque as mesmas pessoas eram motivadas
para lutar simultaneamente pelo bem geral da vizinhança e
competir entre si por bens escassos. Se alguém estivesse na posição
de examinar cada exemplar de comportamento público, durante o
período e no local do Mukanda, essa pessoa, sem dúvida,
descobriria que certos conjuntos de ações era guiado pelos valores
e objetivos do Mukanda, outros pelas lutas pessoais e seccionais, e
outro ainda representava uma série de compromissos entre essas
tendências altruístas e egoístas (TURNER, 2005, p.343).
Dessa maneira, para Turner, não há uma relação mecânica entre o ritual e o
contexto social. Há, sim, uma relação conflituosa e contraditória, como é o caso do
Mukanda. Isso porque, para o autor, o ritual e contexto social são dois campos distintos,
movidos por valores por vezes opostos. Neste caso, pode-se dizer que o ritual tenta
instaurar valores anti-estruturais de communitas e se caracterizar enquanto um
momento liminar. Por esse motivo, há um conflito entre a dinâmica ritual e a dinâmica
do contexto social estrutural, onde a hierarquia é fortemente reforçada.
Para finalizar, é importante ressaltar que está não é a única chave interpretativa
de Victor Turner para os rituais. Em outro momento mais contemporâneo este autor faz
sua análise sobre eventos rituais tomando o “drama” como uma metáfora da vida social,
porém fica claro que não há uma descontinuidade entre essa nova forma interpretativa
com a anterior, há sim uma incorporação de novas dimensões. Nesta visão do “drama
social”, Turner (2008) faz um ligação entre ritual e performance, entre antropologia e
teatro. Nessa chave interpretativa os eventos ritualizados são situações performatizadas
em que a anti-estrutura aparece, ou seja, através da performance a estrutura social e os
padrões estabelecidos são questionados. Para análise de eventos rituais como este em
sociedades “tribais” e/ou “agrárias” este autor continua usando o conceito de
“liminaridade”. Já para falar desses momentos em sociedades complexas ele institui o
conceito de “liminóide”. Para deixar claro, a liminaridade é um evento ritual coletivo
ligado ao processo social total de uma determinada sociedade, neste sentido, ele se
apresenta como uma obrigação para os indivíduos. Já os fenômenos liminóides, embora
tenha um efeito coletivo de massa, é voltado para o lazer individual e vendido para este
como mercadoria, assim, estes momentos rituais se configuram como um momento de
participação opcional voltado para o entretenimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mais do que encarar as diferentes abordagens apresentadas neste artigo como
sendo certas e/ou erradas umas relação às outras, o que vale é pensar nelas como
diferentes contribuições para a reflexão e análise das práticas rituais: como diferentes
olhares que vieram a alargar nossa compreensão dos fenômenos rituais ao incorporar
novas abordagens e variantes ao tema.
Com isso, quero quis demonstrar que o ritual foi abordado e discutido de
diferentes maneiras: como uma prática universal estritamente ligada aos fenômenos
míticos religiosos; como uma repetição produtora da coesão grupal; como uma prática
fora do escopo religioso, dentro da realidade social e política; como uma inversão da
ordem estabelecida e também como tempo reificadora desta; como um lugar de
disputas, inserido em dinâmicas e processos sociais e como práticas performatizadas.
REFERÊNCIAS
FREZER, J. G. O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro. Zahar Editores. 1992 (1915).
DURKHEIM, E. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo. Martins
Fontes, 2003 (1912).
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MAUSS, M. Ensaio sobre a dadiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In:
______. Sociologia e Antropologia. v. II. São Paulo. Edusp. 1974 (1923-24).
PEIRANO, M (Org.). O Dito e o Feito: ensaios de antropologia dos rituais. Rio de
Janeiro: Relume Dumará. Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ, 2002.
VAN GENNEP, A. Os Ritos de Passagem. Petrópolis. Ed. Vozes, 1978.
GLUCKMAN, M. Análise de uma Situação Social na Zululândia Moderna. In:
Feldmann-Bianco (org.). Antropologia das Sociedades Contemporâneas. São Paulo,
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GLUCKMAN, M. Rituais de Rebelião no Sudeste da África. Brasília, Editora
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TURNER, V. Mukanda: o rito de circuncisão. In: Floresta de Símbolos: aspectos do
ritual Ndenbu. Niterói, EdUFF, 2005.
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