rio-turvo

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Antnio Jos BRANQUINHO DA FONSECA nasceu em Mortgua, em Maio de 1905, tendo comeado e m Lisboa a sua vida escolar, que depois continuou em Coimbra, onde se licenciou em Direito. Aqui inicia as suas actividades literrias, fundando e dirigindo vrias revistas, das quais sobressai a famosa Presena. Ainda em Coimbra, publica os prim eiros livros. No breve perodo em que exerceu as funes de conservador do Registo Civ il, no perdeu a oportunidade de observar gentes, costumes e paisagens da nossa pr ovncia, que muito aproveitariam experincia do escritor. Foi, depois, conservador d o Museu-Biblioteca de Cascais, onde iniciou com grande xito o servio de uma biblio teca itinerante, a primeira que existiu em Portugal. Actualmente director do ser vio de bibliotecas da Fundao Gulbenkian. Contista e novelista acima de tudo - Zonas (1931), Caminhos Magnticos (1938), onde desde logo se afirma o seu "poder de sug erir um halo de mistrio, de medo ou pesadelo indefinido, de constante surpresa na perseguio a um impreciso ideal", O Baro (1942), por certo a mais conhecida das sua s obras, Rio Turvo (1945) e Bandeira Preta (1958) -, Branquinho da Fonseca igual mente se distinguiu no romance, com Porta de Minerva (1947), cuja aco se desenrola no meio estudantil de Coimbra, e Mar Santo (1952), que decorre na Nazar. Tendo f eito a sua apario no mundo das letras com um livro de poesia, Poemas (1925), publi ca mais tarde Mar Coalhado (1932). Branquinho da Fonseca afirmou-se tambm no teat ro (Posio de Guerra, 1928, e Teatro-I, 1939). Toda a sua obra de cunho vincadament e psicolgico, nela se fundindo o fantstico e o real, que no deixa nunca de ser abor dado com notvel segurana descritiva. Branquinho da Fonseca e Editorial Verbo Composto e impresso por Gris, Impressores Lisboa BRANQUINHO DA FONSECA RIO TURVO EDITORIAL VERBO A voz vinha de longe. E eu continuava a caminhar por entre as ervas do pntano, ou vindo-a numa meia inconscincia. O cansao e o calor davam-me aquela lassido de msculo s agradvel pelo desprendimento da realidade e pela volpia de deixar a ateno dormente e pegada a pequenas coisas em que noutras ocasies no se repara. Ia caminhando dev agar, com um instintivo cuidado, atravs do areal pantanoso, por entre as ervas al tas e os canios em sebes densas que me obrigavam a dar grandes voltas para seguir na direco que pretendia. Mais tarde lembrei-me de que j tinha ouvido aquela voz pouco depois de saltar do barco, quando, tendo com a vista estudado o terreno, comecei a andar em sentido contrrio ao que o arrais me indicou. Eram pntanos donde saa uma vegetao rasteira, de um verde-escuro, que se ia adensando com tufos de junco, canios finos e altos pen achos brancos que um sopro imperceptvel mexia. Algumas clareiras de areia manchav am aquela paisagem desolada mas, ao primeiro contacto, atraente. No sei porqu. Era uma plancie imensa, com o cu ao fundo. Atrs de mim tinha ficado o rio espraiado nu m esturio sem fim, revolto, turvo e perigoso pelas correntes e baixios traioeiros. E ao longe, para l dessas guas, que pareciam um mar, a cidade esfumava-se na distn cia, aquela cidade donde eu no trazia boas recordaes. Voltei-me e parei um momento a olhar a extenso cinzenta de gua. E reparei que minha volta havia uma grandeza de sconhecida: o rio, a plancie, o cu. S a cidade, ao longe, parecia o que era: qualq uer coisa pequena. Uma r que saltou para a gua desviou-me a ateno. Naquele momento ouvi um barulho desc onhecido que se aproximava. Encostei-me sebe dos canios e fiquei imvel, a esperar sem saber o qu. E de repente passou sobre a minha cabea um bando de patos, que foi poisar a pouca distncia. Ficou outra vez um grande silncio no ar. E s ento reparei que tinha deixado de ouvir a tal voz longnqua. Compreendi nesse momento que era u ma voz a chamar, e que chamava talvez por mim. Ficara-me no subconsciente aquele eco perdido. Mas que queria? E tive um sobressalto, como se acordasse de repent e. Era a pedir socorro? Recomecei a caminhar apressando o passo. Ia agora por ci ma de areia, entre juncos e canios altos que me escondiam e tambm me tapavam a vis ta. As rs saltavam das margens pretas de lodo para a gua, quebrando aqueles espelh

os muito ntidos onde o cu azul se reflectia. No me esquecem as primeiras impresses d a minha chegada ali. E alguns pormenores insignificantes ficaram-me to gravados n a memria que ainda me lembram com uma nitidez inacreditvel. Contudo no tenho boa me mria. Pelo menos para as coisas que na vida prtica me seria til t-la. Mas algumas co isas sem importncia, em que na ocasio mal reparo, essas ficam-me s vezes para toda a vida, ntidas como se fosse agora. O lodo preto onde enterrei os ps, em contraste com as fitas de areia branca, os m acios de juncos, as rs que saltavam para as poas de gua, estou a ver tudo como se es sas coisas ainda estivessem aqui diante de mim. Tudo aquilo era um mundo novo. E as impresses simples e isoladas gravam-se profundamente. Era um mundo novo, onde se podia respirar um pouco de liberdade 10 e tomar um lugar entre as coisas da natureza, reconquistando um pouco da dignida de e conscincia de homem. A cidade artificial. S o Sol e as rvores que nos do a noss a posio entre as coisas do mundo. Mas, seja como for, ou temos uma misso e uma inco nsciente impassibilidade para as contingncias adversas, ou no valemos nada. Ali, a natureza, nos pormenores, era mesquinha e traioeira. Lodo e ervas. Uma pai sagem inquietante para o convvio natural com o homem: macios de juncais, de mil ha stes finas, formando sebes transparentes e delicadas como biombos chineses, mas intransponveis, e canios com suas plumas brancas no ar, sobrevoando o pntano. Apena s ao longe um tufo de rvores na plancie rasa, esta plancie que, vista do rio, vista de fora, parece cinzenta, mas que, quando pomos os ps sobre ela, verde. S uma peq uena barraca se elevava naquele cho estril. (Hesitei agora em chamar--lhe estril, p ois verifiquei mais tarde que havia ali grandes vinhas, batatais, etc. Mas a pri meira impresso que se tem a de um areal estril, impresso que se mantm no nosso esprit o.) Ia a dizer que s um pequeno telhado vermelho brilhava como um farol naquela p lancie. Era o porto de abrigo que eu tentava alcanar. Furando pelo meio dos juncai s, dos canios de longas folhas como fitas cortantes, atolava-me at aos joelhos naq uela vasa preta, bordada de finas ervas verdes. Era um daqueles pntanos que cerca m os castelos misteriosos. S faltava o castelo. Por vezes deixava de ver o telhad o vermelho, mas os juncais baixavam ou eu subia sobre eles e logo via a pequena casa, sempre mesma distncia, como se fosse a fugir diante de mim. Avanava devagar, a procurar caminho, tinha de andar para um lado e para outro, num ziguezaguear fatigante e lento. O sol j ia alto e o suor corria-me em grossas bagas pela testa . O casaco, que tinha despido e levava no brao, era j incmodo como um fardo pesado. Por fim, s olhava para onde punha os ps, procurando os stios onde a areia menos em papada fosse mais firme. J no pensava 11 em seguir na direco da barraca, mas apenas em sair, de qualquer maneira, daquele l abirinto perigoso. No porque me viesse a ideia de que poderia haver areias movedia s, mas porque estava cansado, sem atinar com o caminho, e se comeasse a encher a mar as guas acabariam por me cercar, obrigando-me a passar ali a noite. J tinha rep arado que, de longe em longe, havia uma espcie de esteiros por onde o rio entrava e se espraiava, embora s, talvez, em braos de uma delgada camada de gua. Era um po lvo com braos de lodo. Caminhava a olhar para o cho, quando de repente ergui a cabea e vi um homem parado a poucos passos na minha frente. Estaquei com um calafrio. No sou medroso, porm chocou-me a surpresa naquele local, mais do que a sua atitude de hostilidade sem nenhuma justificao. Tinha a conscincia sossegada. Mas pareceu-m e um doido. Pensei que era um louco que andava por ali a vaguear, e, passado o p rimeiro sobressalto, disse-lhe: "Bom dia." Esboou-se-lhe na face patibular e negr a um vago sorriso mau e, sem responder, fez lentamente com a cabea sinal para que eu o seguisse. Voltando-me as costas comeou a andar, no se importando de verifica r se eu o seguia ou no. Hesitei, mas, quando ele desapareceu entre os juncais, re solvi segui-lo, por me ter convencido de que devia ser um guarda das obras. Pouc o depois avistei-lhe a cabea por cima dos juncos, entre os penachos brancos que t

inham ali um ar irnico e festivo, e fui-lhe seguindo as pegadas. A barraca de tbuas j estava perto. Pareceu-me ouvir o rudo caracterstico do rolar de uma vagoneta sobre os rails. Depois vi que, de facto, era um grupo de homens em mangas de camisa preparando-se para comear o trabalho na terraplenagem. As peque nas vias frreas das vagonetas irradiavam pela plancie, ali j limpa de ervaos e canios . Fui-o seguindo sempre. Estvamos outra vez perto da margem do rio, depois de ter andado dois ou trs quilmetros pelo areal e por entre os juncos do pntano. 12 Aquilo era, portanto, uma ilha ou uma pennsula. Os trabalhadores olharam-me com c uriosidade, excepto um grupo que estava sobre o paredo borda do rio e que no deu p ela minha chegada. O fiscal saiu da porta da barraca e chamou-me pelo nome, o que me deu uma sensao a gradvel de segurana, mas no lhe respondi, porque neste momento os homens que estava m sobre o paredo, pegando um pelas pernas e outro pelos braos de um camarada, bala naram-no duas vezes e atiraram-no ao rio, sem que ele fizesse o menor esforo para se libertar, ou algum dos outros o menor gesto para o defender. Riam-se. E o che fe dos servios, perguntando se eu era surdo, se no tinha ouvido chamar, se vinha p ara me enterrar nas areias movedias ou para trabalhar, falava para mim, que no o o uvia, sem dar a menor importncia quela cena brutal. No me deu qualquer explicao, e eu tambm no lhe perguntei nada. Pelas gargalhadas dos outros vi que era uma brincade ira e fiquei fazendo ideia do gnero de brincadeiras que ali se faziam. Mandou-me dirigir ao engenheiro chefe e apontou na direco de um pequeno bosque de altos euca liptos, ao fim do terrapleno, na margem do rio. Vi alvejar uma casa por entre as rvores. Ali, onde ns estvamos, iam construir o campo de aviao. A parte terraplenada j devia t er mais de um quilmetro de comprimento, por outro de largura. Enquanto ouvia algu mas explicaes do chefe dos trabalhos, ia vendo o homem que tinham atirado ao rio a subir de gatas pelo paredo inclinado, a pingar, com o fato remendado colado ao c orpo. Era um homem calvo, dos seus cinquenta anos. Quando chegou ao cimo, sacudi u-se como um co molhado e pegou numa picareta que ps ao ombro, dirigindo-se para o local do trabalho. No fiz comentrios. J no tenho a mania de endireitar o mundo; s ti ve vergonha, por ser tambm um homem. Mas o chefe dos trabalhos apontava com o ded o e fui. 13 A tal casa entre as rvores era um velho palcio do sculo XVIII, a que chamavam agora simplesmente a "Casa Amarela". Mas ainda tinha pedra de armas sobre o porto. Uma antiga residncia de fidalgos lavradores que o andar dos tempos foi modificando, arruinando, transformando, at lhe forrar as paredes com projectos, plantas, grfico s dos engenheiros, num misto de repartio de estudos e penso barata. Era as duas coi sas. O pessoal superior, residente nas obras, tinha ali as suas instalaes, quartos , restaurante e gabinetes de trabalho. Entrava-se por um grande porto para um ptio que em tempos tinha sido ajardinado. Em volta desse ptio estavam as antigas depe ndncias agrcolas, pequenas casas e alpendres, agora aproveitados para diversas fin alidades: arrecadao de material, de mquinas, e dormitrio do pessoal assalariado. A primeira impresso que me deu foi a de uma casa abandonada. Estavam as portas ab ertas, mas o silncio era completo e no vi ningum. Olhei em volta, esperei, e s desco bri um co deitado sombra, a dormir. Subi uma escada de pedra, e fui dar a um corr edor escuro. De um lado e do outro, portas fechadas. Estava hesitante sem saber para onde me havia de dirigir, quando ouvi um barulho que dir-se-ia serem passos de uma cabra no sobrado. Bati porta donde tinha vindo aquele som e respondeu-me uma voz serena: - Entre. Abri a porta e vi uma mesa grande, coberta de papis, por detrs da qual estava um h omem com culos, curvado, a escrever, e ao lado dele, com o focinho poisado sobre a mesa, um grande bode, de chavelhos retorcidos. Esperei que olhasse. Mas ele co ntinuava a escrever como se no me tivesse ouvido entrar. At que, por fim, ergueu a

cabea lentamente e ficou um momento a fitar-me com um olhar fixo e distante como se estivesse a pensar noutra coisa. Por fim, poisou a caneta e perguntou-me, ai nda um pouco alheio: 14 - Ento?... Porm, reparando em mim, acrescentou noutro tom: - Mas quem o senhor? Acariciava o lombo hirsuto do bode, o qual, abanando a longa pra, mastigava lenta mente um papel que tinha apanhado de cima da mesa. Era o prprio engenheiro chefe. Apresentou-me, antes de mais nada, o bode, que se chamava "Scrates". - J foi So Joo Baptista; agora Scrates. Mas vendo que ele estava a mastigar qualquer coisa, deitou-lhe rapidamente a mo a os queixos. Numa luta breve conseguiu tirar-lhe de entre os dentes um papel masc ado, donde escorria uma baba espumosa. Comeou a tentar desembrulh-lo, mas desfazia -se pegado aos dedos. Por fim conseguiu ler umas letras ou nmeros a um canto e ex clamou para consigo, numa voz surda e cava: - O Depsito!... Um ms de trabalho!... Tinha sido uma cena cmica a que eu consegui assistir impassivelmente. Quando se l evantou e agarrou o bode pelos chavelhos para o expulsar para o corredor, abri a porta e comentei: - No sabia que comiam papel. - Claro que no comem. Respondeu secamente. E concluiu, com desalento, voltando a sentar-se: - Mas este come tudo. Pegou novamente no papel mastigado e depois de o observar atirou-o com um gesto de cansao para o cesto dos papis rasgados. - Um ms de trabalho!... No, no pode ser... Onde trabalhou?... Trouxe-o de frica, criado a bibero... O trabalho aqui duro... H animais a que se toma amizade como s p essoas... Falava do servio e falava do bode ao mesmo tempo. Quando eu ia responder j ele est ava a falar do bode; quando eu julgava que estava a falar do bode j estava a fala r do servio, e voltava 15 sem transio a falar do bode. Por fim mandou-me apresentar ao chefe dos trabalhos t opogrficos, dizendo-me que era uma sala ao fundo do corredor. Com alvio, caminhei para a porta e quando a abri entrou o bode, em passo vagaroso, superior e indife rente, abanando a longa pra pontiaguda. No me enganei no primeiro juzo que fiz a re speito deste engenheiro director: era um tipo estranho, mas inteligente e boa pe ssoa. Foi apresentar-me na sala dos trabalhos topogrficos e de desenho. Lembro-me da pr imeira impresso de sono que aquela sala me deu, com os desenhadores imveis e curva dos, como adormecidos sobre os grandes estiradores cobertos de papel branco. Pel as janelas via-se uma densa floresta de velhas rvores. J no era aquele deserto de a reia por onde eu tinha vindo. Fiquei surpreendido. Olharam-me de lado, num olhar lento, quase sem se mexerem, e continuaram, cada um no seu lugar, a traar, vagar osamente, riscos no papel. Ao p de uma janela, sentado diante de uma mesa, um vel hinho magro, de cabelos brancos, fazia qualquer trabalho com muita ateno. Pressent indo-me, levantou-se e veio, num passo rpido, ao meu encontro. Quando me aproxime i, vi que estava a coleccionar selos. Era o chefe da sala de desenho, major refo rmado, vim depois a sab-lo, com longa e apagada folha de servios nas colnias. Cumpr imentou-me com a mo esquerda e reparei que no tinha o brao direito. Ele, adivinhand o, mais do que notando, a minha supresa, explicou: - Foi em frica. - Ah!... Na guerra... - No, no... - Na caa?... - emendei precipitadamente.

- No, no... Calei-me, sentindo subir o calor cara por t-lo humilhado assim involuntariamente. Os desenhadores levantaram-se de cima dos desenhos e olhavam-nos agora com uma sbita vontade de rir. Mas pareceu-me que ele tinha ficado indiferente aos equvocos , 16

pelo tom e maneira como explicou que tinha sido atropelado por uma bicicleta, ac idente a que no dava, decerto, menos relevo e importncia do que a um ferimento em combate ou a um ataque de um leo. E era afinal uma opinio defensvel, visto que as c onsequncias tinham sido idnticas. Quem pensa que na frica s se perdem braos nas guerr as ou na caa aos lees, que ingnuo. Na verdade, na frica tambm h cidades. (Embora se preciso um certo esforo de imaginao para as conceber ligadas a este nome em que, co mo em nenhum outro, ressoa o mistrio da selva e a aventura: frica!) Tambm l h cidades e bicicletas e infeces. O major contou-me todo o episdio, com uma vaga humilhao a re passar-lhe as palavras, o que me fez remorsos, embora eu tivesse dito aquilo sem nenhuma ironia. Devia ser um equvoco frequente, que o pobre velho muitas vezes t eria j desfeito com o mesmo sorriso triste de resignao. No lhe pedi desculpa para no acentuar mais o ridculo da situao e para fugir depressa quele assunto que lhe era pe noso. Mas talvez ele no tenha compreendido esta subtileza. Foi assim a minha entrada naquela repartio, onde depois havia de trabalhar durante quase dois anos. A adaptao aos ambientes novos por vezes difcil e o conhecimento d os homens lento e cheio de surpresas. Quando j no damos pelos atritos e supomos co nhecer bem as pessoas com quem convivemos, volta de novo a reaco contra o exterior e revela-se um pormenor, passa uma rabanada de vento que faz estremecer a mscara sobre a cara de algum. Mas o poder de aceitao e de adaptao maior do que se julga. Os factos s se compreendem no momento e no meio onde se passam. Filosofias so roupa barata. Vou contar coisas que talvez paream exageradas ou absurdas s pessoas que no tenham andado por estes meios sociais ou que no sejam capazes dos pormenores de imaginao que lhes poderiam dispensar tal experincia. Esses, porm, no se interessam pe lo que escrevo, porque eu tambm no me interesso por eles. So dois 17 mundos que sabem s da existncia exterior um do outro, e no podem conseguir mais. Ma s isto outra histria. O meu trabalho, como natural, limitava-se a um pormenor para o qual no era precis o conhecer o plano geral das obras. Por isso, mostraram-me s os levantamentos top ogrficos j feitos, com indicao a azul dos terrenos que faltava levantar e a marcao a v ermelho de todas as cotas que era preciso verificar e corrigir. Mas eu no sei tra balhar sem saber o que estou a fazer. Fecharmo-nos num pormenor sem fazermos qua lquer ideia do conjunto, um trabalho vexatrio de mquina. Pedi que me mostrassem o plano geral das obras, se no era segredo. No era. O major levou-me a um salo onde e stava a maqueta construda com todos os pormenores: as pistas de cimento entre man chas relvadas, hangares, os edifcios do comando, aquartelamentos, planos inclinad os, etc. Era, na verdade, uma obra grandiosa. O meu trabalho era s de topgrafo, e se depois veio a alargar-se foi por merc de cir cunstncias e acasos imprevistos. Naquele dia, portanto, foram-me entregues as pla ntas que me competia rever ou fazer. Apresentaram-me os camaradas de trabalho e comecei a ter contacto com o assunto. Trabalhvamos numa sala do lado do rio, com grandes janelas por onde se via a extenso da gua cinzenta e l ao longe o risco escu ro da outra margem. Era um quadro triste e inquietante. Por vezes, raramente, pa ssava algum barco vela, devagar, sereno, como se vogasse alheio e distante do mu ndo e dos homens, dando-nos tambm vontade de irmos embora, talvez sem finalidade nem rota marcada. Neste estado de esprito, est o drama do homem moderno, do homem que pelo alargamento da cultura e pelo afinamento do esprito, e pela compreenso do s seus direitos, isto , pela maior e mais complexa fora interior, tem a inquietao do s caminhos a andar, caminhos que so os seus, mas onde lhe ergueram muros. E para quem sabe qual o seu caminho, que lhe serve ir por outro, se

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no esse? Daqui o estagnamento, a falta de interesse, a apatia de tanta gente nova em quem era de esperar entusiasmo e convices invencveis. Ah!, meus amigos, os idea is bastam para viver! (Eu, um materialista histrico, a dizer isto!) Sem ideias qu e no viver. Porque s as distncias fazem os caminhos e a beleza das paisagens. Quem no sabe viver ou morrer por um ideal, no digno de nenhum triunfo. Eu tenho momento s de cansao e quase de desalento, por vezes (um desalento que a mim prprio nego), mas um cansao de pormenores. No horizonte a estrela tem sempre o mesmo brilho e e nvia-me sempre o mesmo apelo. E agora, que vos fiz este discurso intil, continuo. A paisagem da janela era o rio, um rio que parecia um mar, com vinte quilmetros d e largo, a que por vezes no se via a outra margem. E olhando do interior da casa parecia que se estava num navio, pois a parede da frontaria do edifcio poisava so bre as guas. Tinha uma escada de pedra e uma pequena ponte de desembarque construd a em madeira. Na mar baixa ficava em frente da casa uma praia de areia negra da v asa do rio. Bandos de gaivotas brancas ali poisavam e ficavam quietas ao sol, ta rdes inteiras. Os pescadores no costumavam vir para aqueles lados. Em algumas val as do pntano abundavam as enguias. Mas, por causa das areias movedias, era perigos o ir pesc-las. Caa que havia muita para os lados da plancie. E alguns que tinham es pingardas iam, aos domingos, caar. Nem sempre, porque a cidade, que se via a bran quejar ao longe, na outra margem, tentava-os mais. Os espritos pobres nunca se li bertam da iluso e do mito das cidades. Enquanto os outros se enriquecem com a exp erincia que lhes tiram e no se deixam prender, fugindo-lhes sem darem nada, os de menos imaginao abandonam-se e do tudo. Ficam. Conheo muitas pessoas que j no so capaze de sentir a vida de uma rvore, tanto o seu esprito se ressequiu e fechou. Outros, quanto mais a vida os calca e amarfanha, mais se abrem para a Natureza, para as rvores, para os montes e para o cu. Ou para 19 os animais. Havia aqui, entre os trabalhadores, um homem bem curioso como exempl o deste desprezo pelo homem e carinho pelos animais. Era o Chico Melena, clebre j ogador de faca, com muitas prises e dez anos de frica, tocador de guitarra, dono d e um gato a quem tratava com um afecto e meiguice que contrastavam com o seu asp ecto brutal e grosseiro. Foi das figuras que mais me impressionaram entre aquela galeria de duros comparsas de um grande drama. Quando me foram mostrar as camaratas, que eram num barraco de tbuas ao lado do vel ho palcio, ao atravessar o ptio, ouvi uns acordes de guitarra e o meu guia apresso u-se a explicar-me que era o Chico Melena. Dizendo isto, que para mim no signific ava nada, olhou-me de lado, pelo canto do olho, como se aquele nome devesse prov ocar a minha admirao. Na verdade, quando um nome muito clebre para ns, estranhamos que algum que respira o mesmo ar e passa pelas mesmas ruas o ignore completamente. O Chico Melena! Par a toda aquela gente era uma coisa sria, um som que arrefecia a pele. Evitavam at d izer o seu nome. Chamavam-lhe "Ele", como se fosse um deus cuja ira pudesse acor dar s com o pronunciar-lhe o nome. Estava a tocar um fado com emoo. O som da guitar ra vibrava atravs das paredes do barraco de tbua e fez-nos suspender o passo. Parmos a escutar. Na cara do meu guia ia-se abrindo a pouco e pouco uma expresso de goz o e de admirao. De repente a guitarra calou-se e ouviu-se um clamor, uma ovao de viv as e palmas. Ele deu uma corrida para a porta donde vinha aquele estrondo de voz es e entrou. Eu, sem apressar o passo, segui-o. Pela moldura da porta vi um grup o, em volta de um homem de guitarra ao peito, que estava sentado na borda de uma das muitas tarimbas de tbua que enchiam aquele escuro barraco. Por cima da curva branca da guitarra via-se uma cara grande, negra, ossuda, mas quase correcta nas suas linhas duras. Os lbios e os cabelos grossos revelavam o sangue negro desse 20 homem de olhar pesado e lento. Compreendo que alm da admirao fadista existia ali o

medo da fera. A guitarra justificava as expanses, e sentiam-se bem a fazer-lhe roda, como ao p d e um leo enjaulado. Quando passei disse: "Boa tarde." Todos olharam para mim com um vago desdm, mas ningum respondeu. Tinha j passado adiante quando se ouviu uma vo z grossa: "Boa tarde", como uma bofetada no silncio dos outros. Era o Melena. E v ibrou dois bordes a afinar a guitarra. Fui caminhando atrs do meu guia e passava por uma pequena porta que havia ao fund o do barraco, enquanto ele me explicava que era "muito bom sujeito, o Melena. Coi sas da vida. Toda a gente, s vezes ... O senhor bem sabe ...", dizia ele como se conhecesse tambm a minha vida. Na verdade, bastava ver-me ali para j saber alguma coisa. S aqui vinham ter os que j tinham passado por toda a parte, ou - era o mesmo - os que no podiam ir para ou tro stio. Do que havia a certeza era de que os homens que chegavam quele osis na ma rgem esquerda, com o rio a fazer fronteira de um lado e o deserto branco de arei a escaldante a cercar do outro, quem ali ia ter porque j trazia uma peregrinao dolo rosa na alma e os ps em sangue. E eles bem sabiam que isto d compreenso e tolerncia para o que os outros fizeram. "Cada um que sabe. A gente, s vezes... capaz de tud o...", concluiu, como se tomasse uma deciso corajosa, aquele fantochezito amarele nto e raqutico que ia na minha frente. Compreendi que devia ter quaisquer razes prx imas que o oprimiam. Mas no me interessou lev-lo a confidncias. Vim mais tarde a sa ber. Ali havia um calor abafado porque o tecto era mais baixo que na outra parte do b arraco. Um cheiro a suor e roupa suja tornava o ar irrespirvel. Dirigi-me a uma da s janelas e abri-a, mas o meu guia aconselhou-me a fech-la porque ao entardecer o s mosquitos invadiam tudo e no se poderia dormir. Explicou-me 21 que ali ningum abria as janelas, pois de manh saam pressa e como voltavam s ao cair da tarde no as podiam deixar abertas. Vi depois que tinham razo e adaptei-me quelas condies de vida. A minha fora tem sido sempre, na verdade, a adaptao s condies de vida. Insisto em cham ar-lhe vida. Sou um optimista, embora o no parea. E nunca desanimo nem desisto do que tento fazer, embora tambm o no parea. Podia agora explanar teorias e dar consel hos, mas as teorias no seriam novas e conselhos para qu? A cada um, s aproveita a e xperincia dos outros depois da experincia prpria. Nos caminhos feitos o homem est pa rado. Eis outra coisa que tambm no interessa a ningum: um homem parado. O senhor Me lo tambm estava parado agora na minha frente, com a sua face desbotada e mole, o seu olhar branco, a sua boca entreaberta cheia de dentes podres, os seus cabelos amarelos escorridos por detrs das orelhas quase transparentes. Pareceu-me que se tinha metido subitamente pelo cho abaixo, to pequeno e insignificante o vi naquel e momento. E de repente ia deitar-lhe as mos aos ombros para o salvar, para o des enterrar do cho movedio que o chupava. Mas sorri compreendendo que tinha sido uma alucinao e converti a tempo aquele gesto humanitrio por um ser to desprezvel e repele nte como ele era, consegui converter esse gesto belo e trgico numa pancadinha de hipcrita afabilidade naquele ombro mole e derreado, soltando esta exclamao em pronnc ia abrasileirada que no pareceu sair da minha voz: "Seu Melo...!" Nunca mais me e squecerei deste pormenor que me fez corar. Ele teve um sorriso grato e resignado , respondendo-me, numa preveno de amigo: - O senhor vai ver... Samos por outra porta e c fora, ao ar livre, respirando o bafo quente mas puro de um dia de Vero, ele olhou os gigantescos eucaliptos que estavam na nossa frente e , como se eles lhe evocassem outra imagem, disse em voz mais baixa do que era pr eciso: 22 - Eu estive em frica... no interior do Congo... mau: deixa sarro nas veias de um homem... Mas isto aqui... faz-me saudades do Congo... Olhei-o e sorri do exagero. Uma rapariga vestida de branco apareceu a uma porta

do velho palcio, olhou o ptio e atravessou a correr num voo de borboleta. Ele sorr iu com o olhar de repente acendido e deslumbrado. Quando ela desapareceu noutra porta do lado oposto, voltou-se para mim e vi-lhe ainda nos olhos um fulgor que perante a minha indiferena tremeu e se apagou, limitando-se a murmurar timidament e: - to bonita, no acha? Respondi-lhe que no tinha reparado bem, e fomos andando para o porto onde comeava a curta estrada marginal que ia ter s obras. direita, a plancie cinzenta e metlica d o rio, a fita branca da estrada correndo paralela margem; esquerda, a floresta d os eucaliptos como gigantes que ali tivessem vindo beber gua e ficassem encantado s por qualquer feitio. E por trs deles o deserto, areais cobertos de uma vegetao ras teira. Ao longe umas montanhas escuras que estavam ainda mais longe do que parec ia, umas montanhas quase lendrias que em certos dias, sem se ver nvoa que as tapas se, desapareciam misteriosamente. Dos que ali trabalhavam nunca ningum l tinha ido . Agora sei porqu, desde que l fui. A angstia de viver ali, o pesadelo daquela pais agem triste, era estarmos entre duas coisas onde no se podia ir: a cidade, ao lon ge, a flutuar sobre o rio, as montanhas a recuarem como uma miragem diante dos p assos de quem caminhasse para elas. Talvez s a paisagem fosse bastante para justi ficar a nsia que de dia e de noite, todos os dias e todas as noites, pesava sobre ns, sem sabermos porqu, sem sabermos defender-nos. Caa-se por fim numa indiferena p or tudo, num cansao fsico e moral, que quando despertava era perigoso. Mas o clima e o trabalho eram pio bastante para amansar a fera que crescia em cada um de ns. E, superficial ou no, a verdade que o bom humor predominava 23 sempre que estivssemos em grupo, fossem os trabalhadores ou os tcnicos. Por isso o engenheiro director no gostava de ver ningum solitrio e ele prprio tinha o bode par a lhe fazer companhia. Costumava perguntar, se via vir algum sozinho ao longe: "Q uem aquele lobo solitrio?" E aconselhava: "Antes mal acompanhado que sozinho. Boi em manada no marra." Mas lidava com gente difcil. Bem o sabia. Eles tocavam no barraco; cantavam, mas. no dia seguinte aparecia um homem morto num dos caminhos do areal, ou desapareci a algum nas guas negras do rio. Diante de um homem morto todos eram solidrios: era preciso faz-lo desaparecer, salvar o que ficou vivo. E eram coisas de que nunca mais se falava, nem com a mnima aluso, como se um vento de esquecimento tivesse pa ssado pela memria de todos. Se falavam, s diziam, como se tivesse pegado na trouxa s costas e partido: - Foi-se embora. Alguns, por vezes, quando ao sbado recebiam o salrio, faziam, na verdade, assim. E mbrulhavam a roupa, com um gesto diziam adeus aos que estavam mais perto, e meti am por qualquer caminho. Eram os que ainda tinham iluses, essa iluso que preciso t er sempre. As dragas apitavam ao meio-dia. Era no Vero e o sol queimava. O calor fazia ondul aes no ar parado e, dentre as ervas, as cigarras erguiam uma cantilena montona e do rmente. Aquela zoada sem fim ficava-nos nos ouvidos, e para onde quer que fssemos parecia que a levvamos dentro da cabea. As vagonetas do transporte de terras da t erraplenagem deslizavam lentamente, fazendo um rudo surdo e seco. Depois de cheia s em pirmide, pelos trabalhadores que com as ps atiravam a terra pelo ar, num gest o lento, depois de bem carregadas, trs homens punham-nas em movimento, davam-lhes o impulso inicial e largavam, seguindo s um atrs da vagoneta, para lhe manter o a ndamento. Exigia fora. Era o trabalho mais violento. Nem todos serviam para isso. 24 Vamo-los passar ao longe, curvados atrs do carro de ferro, muito maior do que o ho mem que o fazia deslizar, num esforo enorme at atingirem o ponto onde o terreno co meava a descer. O empreiteiro j tinha feito aquele servio com cavalos, mas ficava mais caro, no dav a melhor rendimento de trabalho e no contribua para diminuir o desemprego. Eram ra

zes que se impunham a quem no fosse para ali com ideias sobre o problema social. O uvi dizer isto ao chefe da fiscalizao e fiquei a pensar na facilidade que ele tinh a em expor as suas ideias. Mas, como ia a dizer, as grandes dragas que poisadas no rio atiravam lama por um tubo, a fim de preencher as baixas do terreno onde se fariam as construes de algu ns edifcios, as dragas apitavam exactamente ao meio-dia. Quem tivesse relgio podia acert-lo. Eu no tinha. A sereia das dragas chegava. Era um silvo metlico, irritant e. Os trabalhadores, com o suor em bagas a escorrer pela testa abaixo, deixavam ento cair os braos ao longo do corpo, deixavam cair as ferramentas para o cho e com eavam a caminhar, devagar, com as pernas pesadas, na direco da barraca da fiscalizao, onde tinham deixado a pequena saca com a comida. Outros iam almoar Casa Amarela, a uma espcie de cantina que o director tinha mandado organizar provisoriamente. O provisrio, c do nosso pas, fica em geral definitivo, e por isso aquela cantina fi cou sempre assim provisria, o que desculpava tudo, desde a pouca limpeza m qualida de da comida. Como ns considervamos tambm provisria a nossa situao ali, com facilidade aceitvamos todas aquelas coisas. Porm, isto de provisrio d uma certa irresponsabili dade a tudo quanto fazem uns e outros, o que j mais importante. Os contratos eram semana ou ao ms, sem garantia nenhuma de continuidade at ao fim das obras. Isto t ambm um mau sistema. E afinal a maior parte dos trabalhadores e dos tcnicos estava ali h mais de dois anos a trabalhar e a obra no estaria pronta antes de mais trs o u quatro. 25 Na messe, que era s para o pessoal tcnico, o ambiente era melhor, como natural. Ha via um relativo asseio e uma camaradagem amvel e fcil. Em conjunto tnhamos aquela a legria s de quem trabalha. Mas quando ficvamos sozinhos, ou em conversa de dois, j era diferente. Os assuntos individualizavam-se. Um dos meus companheiros de mesa era o Joo Caracol, tambm topgrafo, rapaz de grandes qualidades. Era dessas pessoas que ou sobem muito ou descem muito. Tudo nele era de uma lgica to rgida que chegav a ao desequilbrio. Por vezes, descalava as botas, enfiava-as num pau s costas e des aparecia pela plancie alm, atravessava os areais para ir no se sabe aonde. Um dia f alou-me da sua necessidade de independncia perante a famlia, e contou-me que tinha passado fome, dias e dias sem comer: "Depois j no se sente a fome, o estmago faz-s e pequeno e quando se volta a comer preciso cuidado, di, tem de se comer pouco." E tinha a mania da aventura. Dantes fazia contrabando, atravessava a fronteira c om os bolsos cheios de qualquer coisa proibida, s pelo prazer do perigo. Outro era o Vels, sempre de botas altas, com a cara de ngulos duros queimada pelos sis de trs continentes, alto, seco, de uma energia serena, que tinha sido tudo e sabia fazer tudo: bailarino na Amrica; soldado na guerra de Espanha, tripulando t anques; fogueiro nos comboios de Angola; fotgrafo de pretos; motorista; topgrafo; domador de cavalos, etc. Durante o almoo e durante o jantar falava-se muito, contavam-se muitas histrias, p orque o servio era feito s por uma criada, que servia as quatro mesas, isto , umas 15 a 20 pessoas, conforme. Os engenheiros nem todos os dias almoavam e nunca jant avam. Vinham ver as obras e regressavam cidade no mesmo gasolina que ficava a es per-los amarrado ponte de tbuas, que era o trao de ligao com o mundo civilizado. S o ngenheiro chefe que vivia ali permanentemente, o que para ns era um pouco misteri oso. Gostava de conviver connosco e todos ns 26 tnhamos verdadeira considerao pelas suas grandes faculdades de trabalho e competncia . Nunca nos disse as suas ideias sociais, mas conhecamo-las sem ele as dizer. No a firmava nada, gostava de conversar connosco, mas quase s nos fazia perguntas. Con tudo, essas interrogaes eram to inteligentes e bem relacionadas que nos obrigavam a pensar e a responder com clareza a certos assuntos que no nosso esprito estavam indefinidos e obscuros. Quando nos obrigava a ver um determinado problema com ni tidez, a esclarecer quaisquer ideias confusas ou erradas, ento deixava de interro gar e afirmava, era isto a nica coisa que afirmava, por estas palavras:

- No, meus amigos, no... Precisam de meditar mais nestes assuntos. E sorria, afastando-se, indo sentar-se a outra mesa qualquer, acamaradando com q uem calhasse. Parecia que perguntava para esclarecer dvidas que tinha. Mas ns ficva mos com as dvidas, dvidas a que ele punha fim, da a uns dias, com nova pergunta. Co ntudo, ningum o podia acusar. A criada (a tal rapariga que eu vi pela primeira ve z no ptio, passar a correr, e que na verdade era bonita, mais do que bonita, de u ma feminilidade perturbante; e este era o seu drama), quando entrava na sala de jantar, procurava-o num relance de olhos e dirigia-se mesa onde ele estivesse, c omo quem pede socorro. Naquele primeiro dia foi mesa onde eu tambm estava. No tinh a sido por acaso. Aproximou-se com uma travessa na mo e disse numa voz natural e doce que me fez olh-la com surpresa: - Bom dia, senhor engenheiro. Ele voltou-se com um sorriso franco: - Ol, flor! Bom dia. E voltando-se para mim acrescentou: - A nossa Leonor, a flor do pntano. O pntano no somos ns, claro, refiro-me ao verdad eiro pntano... que vamos transformar 27 no maior campo de aviao da Europa. Sabia que vai ser maior do que qualquer dos act uais campos existentes na Europa? No sabia. O engenheiro chefe falava devagar, dando s palavras todo o seu peso e va lor. H pessoas que repetem as coisas que dizem, com receio de que as no tenhamos o uvido bem. Outras dizem as coisas s uma vez, com o mnimo de palavras, e chega. A f ora interior de quem as pronuncia enche o vazio do som j sem sentido pelo muito us o, retomando as palavras a antiga virgindade como se fossem ditas pela primeira vez no mundo. O engenheiro chefe era assim, dava prazer ouvi-lo dizer as coisas mais banais: porque no eram nem mais nem menos do que aquilo que ele dizia. Davanos confiana na nossa inteligncia, dando a tudo uma realidade concreta e definida, sem diminuir a existncia dessas coisas sobre as quais, por assim dizer, ns alcanvam os, ento, um domnio sereno. Uma cadeira era s uma cadeira, uma rvore s uma rvore, assi m nitidamente como dois traos num papel branco: uma mulher era s uma mulher. Dava repouso ao esprito. Ou talvez a iluso disso. Era um poeta, mas sentia a necessidad e que h em terem as linhas ntidas do seu mundo aqueles que o no so. Nunca conheci ningum com uma personalidade dupla mais bem dividida e ntida do que ele. A comear pelo nome: Jos Eduardo. O Eduardo era o homem prtico, de nmeros, compa sso, traos a preto no branco: 2 + 2=4, o organizador e chefe que se impunha. O Jo s era o poeta, com o bode a comer-lhe num papel os nmeros de um ms de trabalho, com o cho do quarto tapado com montes de livros de literatura, sociologia, poesia, v ozes das cinco partes do mundo que ali vinham ter, trazidas pelo correio, todos os dias, num fluir lento e constante. Daqui provinha a riqueza subterrnea da sua presena e o valor secreto que ns sentamos nas suas palavras. "Ol, flor!" Foi uma exclamao que nunca mais me esqueceu, que s aquela vez, na minha vida, foi verdadeira. No foi ento 28 que senti ou compreendi isto, foi mais tarde, s alguns meses depois, quando os ac ontecimentos ressuscitaram e trouxeram outra vez minha memria essas palavras esqu ecidas. Nunca mais. "Ol, flor!" Tinha sido um grito de pureza, um grito de naufrgio no meio daquele ma r, diante daquela onda de cio e de animalidade primitiva. Os olhares de desejo c om que todos aqueles homens olhavam para a fresca rapariga, transtornando-lhes a s fisionomias grosseiras e brutais, era o bastante para se compreender a urgncia de ela sair dali. Quando passava, as vozes baixavam de tom ou calavam-se inconsc ientemente. Os seus olhos azuis pareciam deslumbrados ou assustados do mundo. Do s seus olhos que nunca mais pude esquecer-me. No a desejei s como mulher. Como out ro sonho, logo que a vi, afastei-a para um mundo nebuloso to longe de mim que no c onsegui depois aproxim-la outra vez e dar-lhe realidade. Desde o princpio resolvi

afastar-me dela. Tomei por um caminho que ia ao contrrio e no consegui nunca mais voltar os passos para trs. Foi uma renncia mstica que me no fcil explicar agora. noite tocavam harmnio no barraco, e alguns cantavam umas canes lentas e tristes. Dois trabalhadores tinham trazido as mulheres e viviam com elas num casinhoto ao fundo do ptio, mas tiveram de as mandar embora. A Leonor conseguia estar ainda a li porque era sobrinha da velha cozinheira, que a guardava de dia e de noite, co mo um co. A pobre rapariga vivia metida na cozinha, e de noite fechada no quarto, deitada na mesma cama ao lado da velha, que roncava como um boi e no a deixava d ormir. O que no a deixava dormir era tambm o perigo que respirava no ar, a inquietao que lh e vinha das sombras da noite, dos vultos que rondavam l fora debaixo da janela, q ue faziam ranger as tbuas do corredor e vinham experimentar a porta do quarto, er am as vozes que no conhecia e ciciavam pelo buraco 29 da fechadura, gemiam o nome dela, fazendo-lhe calafrios de terror. Muitas vezes no era talvez ningum, era o sangue de todos aqueles homens mortos de cansao, quela h ora estendidos a dormir, mas cujo desejo se levantava e vinha como um fantasma c ham-la com um carinho que eles no sabiam ter, com uma doura to penetrante que a fazi a estremecer num arrepio tambm quase de desejo, a fome dos machos sequiosos que e la sentia pegar-se-lhe carne, e que quanto mais queria sacudir de si mais lhe ia amolecendo a vontade. Muitas vezes no era ningum, pois a velha, algumas noites, e sperava-os por detrs da porta, com uma faca na mo, e quando a voz se ouvia, atirav a-se, mas s encontrava o vazio do escuro. Ficavam ento a olhar uma para a outra co m espanto, porque tinham a certeza de ter ouvido bem. Fosse o que fosse, a velha sabia que com aquela arma cortava o mal, e todos ns sabamos tambm que ela afiava, de vez em quando, com muito cuidado, uma faca de que no se servia na cozinha. Por tudo isto, pelo desassossego que espalhava entre ns, uma presso de nervos que tinha de rebentar, que cada um sentia em si e em todos os outros crescer de dia para dia - aquele cheiro da fmea que neste deserto era to penetrante que nos perse guia atravs das paredes -, por tudo isso, naquele dia em que a vimos embarcar num gasolina com os engenheiros que iam para a cidade, e quando soubemos que ela ia servir para casa de uma famlia amiga do nosso director, todos tivemos, embora o no parecesse, uma sensao de alvio. Uma raiva surda percorreu-nos a carne, deixando-n os ao mesmo tempo uma lassido de repouso. S o Bera teve aquele desabafo em que dis se o que todos ns pensvamos: - Vai-te!... Ainda bem... Qualquer dia nem os ossos te deixvamos... Disse isto como se estivesse a pensar em voz alta, numa voz comovida, parado na margem do rio, a v-la entrar para o barco. Ouvamos o motor do gasolina acelerar, e vimos o barco afastar-se 30 sem podermos tirar os olhos daquela mulher. Mas j nessa noite, quando o harmnio to cou, quando cantaram aquelas canes tristes, j no lhes senti a sensualidade das outra s vezes. Era s a voz triste de quem sonha qualquer coisa impossvel. No era saudade. Nenhum de ns tinha saudades de nada. Da Leonor tambm nunca mais se falou. E o ser vio passou a ser feito por um criado a quem no desculpvamos nada, como se o pobre h omem tivesse culpa de ela se ter ido embora. Numa daquelas noites de Vero, vim sentar-me na margem do rio, porque no quarto on de dormia com mais trs companheiros estava muito calor. Eles ficaram a dormir naq uela atmosfera abafadia que vinha das paredes e do tecto de tbuas, e eu sa sozinho, como j tinha feito por outras vezes. Preferia gozar o fresco da noite at que o ap osento refrescasse um pouco e se pudesse estar l dentro. Costumava passear ao lon go da margem e sentar-me na areia ao p do ltimo eucalipto daquele lado. Conforme o silncio da noite ia crescendo, o coaxar das rs ao longe, nos pntanos, o coro ensur decedor dos ralos, iam subindo, o deslizar do rio, que durante o dia era imperce ptvel, ao cair das primeiras sombras comeava a erguer um leve murmrio e por fim vin ha da sombra imensa daquelas guas escuras um ciciar, um rolar, um engolir imenso

e aterrador. Era uma enorme plancie lquida que ns sabamos ser apenas um rio a correr para o mar. Mas no podamos ficar insensveis quele estranho arfar na sombra, que sub ia como um bafo sobrenatural de monstro prostrado. Por vezes, no silncio da noite , ouvia-se um co a ladrar ao longe, no sei onde, talvez algum co dos guardas da obr a. Como os sons que enchiam a noite eram montonos e iguais, qualquer rudo diverso destacava-se nitidamente. Naquela noite eu estava cansado de ter andado todo o dia debaixo de um sol arden te a tirar cotas de nvel, e ia adormecer encostado ao tronco do eucalipto, quando me pareceu que tinha 31 ouvido qualquer rudo diferente. Abri os olhos e, escutando com ateno, percebi que e ram passos que se aproximavam do lugar onde eu estava. Instintivamente verifique i se tinha a navalha no bolso, enquanto reparava que os passos se aproximavam co m rapidez. Sem me mexer, olhei para o lado de onde vinha o som e vi surgir de en tre as rvores dois homens transportando qualquer coisa grande e pesada. Quando ch egaram beira da muralha, pararam e estiveram algum tempo imveis e calados. Tinham poisado no cho o fardo, que eu no podia distinguir o que era. Supus que fosse qua lquer coisa roubada. O meu receio era que eles me vissem, porque a noite estava clara, destas noites de Vero em que o cu se mantm de um azul luminoso. Salvou-me a sombra que a rama do eucalipto fazia sobre o lugar onde eu estava. A eles via-os bem e conheci quem eram. De repente abaixaram-se, levantaram o fardo do cho e, d ando um balano, atiraram-no ao rio. Ento vi que era o corpo de um homem. Ouviu-se o choque na gua e eles ficaram imveis onde estavam. Ali se conservaram mais uns mo mentos at que comearam a caminhar, lentamente, ao longo da margem. Vi-os afastarem -se e meterem-se pelo atalho que atravessa para as traseiras da casa. Eu continu ei onde estava, deixando-me serenar como se tivesse passado por um grande perigo . Compreendi que no devia sair dali enquanto no se afastassem mais. Pensei que dev ia afastar-me e entrar pelo outro lado da casa, pois eles podiam ter ficado a es preitar se andava por ali algum que os pudesse ter visto. E foi o que me valeu, t er ficado a fazer estes raciocnios, pois, de repente, ouvi um barulho de passos q ue se afastavam, apressados. Levantando-me, caminhei para o lado oposto quele por onde eles tinham ido, dei a volta por fora do pequeno bosque de eucaliptos e entrei o porto, vindo do outro l ado. No degrau do barraco onde dormiam os trabalhadores estavam dois homens senta dos, a fumar. Dei-lhes as boas-noites, a que eles responderam com uma espcie de g runhido e passei sem reparar quem eram. 32 Dentro do barraco tocavam o fado. O Melena. Na Casa Amarela via-se luz numa das j anelas. Era no gabinete do director, por cima da massa negra do velho solar, o cu cheio de estrelas. Comparei a serenidade daquela hora com a ferocidade do que nela se passava. Mas era a mscara da noite. A verdadeira cara era o dia. Que entre a paisagem e o anim al que a habita h uma relao directa, ningum duvida. A porta da minha barraca rangia. Tinha s um pequeno fecho para no bater com o vent o. J me tinham explicado que as fechaduras so uma teoria. E ali era tudo gente prti ca, nada de teorias. Em todo o caso, naquela ocasio, se a porta tivesse fechadura eu t-la-ia fechado. Os hbitos so teimosos. Mas perdem-se. Tirei o casaco e deiteime sobre a cama, uma cama de tbuas soltas, s com uma enxerga de palha por cima. Qu em trabalha no precisa de boa cama. Qualquer lhe serve. Sentia os mosquitos a zum birem-me em volta da cara e ia meditando nas condies de vida daqueles duzentos hom ens que para ali viviam como um rebanho, desenraizados da sua aldeia, dos seus p ontos de referncia e de apoio, que so os amigos e os parentes, tornados unidades s oltas do seu meio, sem sonho nem a iluso de um horizonte que uma melhor compensao m aterial lhes podia dar. Procurava assim aprofundar, tornar ntida e simplificar a explicao daquele desequilbrio e mal-estar que sentia em todos eles, como em mim prpr io. Pensava na evoluo desde a escravatura da antiguidade at hoje, e compreendia que

todas as coisas levam tempo a fazer. Ento recordei-me de certas interrogaes socrtic as que num dos ltimos dias, ao jantar, o director me tinha feito e de outras que fizera a alguns dos meus companheiros de trabalho e compreendi, de repente, aque la pergunta do macaco e do homem, do macaco que no trabalha e do homem que obriga do a trabalhar. Perguntei a mim prprio se era um cnico por me ter desinteressado do que tinha vist o havia momentos, transformando o assassnio de um homem num simples pretexto para umas frias 33

divagaes filosficas. No sou. Consigo s, por vezes, a aparncia de s-lo, o que no basta odia dizer que sou um homem a quem a dura experincia ensinou j a distinguir entre as coisas a que vale a pena erguer o brao, e aquelas que tanto faz que sim ou tan to faz que no. Mas tambm no dizia a verdade. Por coisas que no valem a pena, tenho a rriscado a vida, por outras que deviam impor-me decises hericas, tenho ficado indi ferente. Como no sou cobarde, nem fraco de vontade, no sei explicar isto com a cla reza conveniente. A verdade que naquela noite dormi como costumava dormir e de manh acordei com o s ol a dar-me na cara. J os meus companheiros de quarto estavam a levantar-se. Sent ei-me na cama a fumar, como meu hbito, e falmos dos bombardeamentos de Londres. Os meus camaradas tinham opinies seguras sobre a tcnica dos bombardeamentos e da def esa antiarea, apesar de serem, como eu, apenas topgrafos, com o curso de uma escol a industrial. Mas para ter opinies firmes acerca de qualquer assunto s preciso no s aber nada de coisa nenhuma e ter a facilidade dos superficiais e convictos. verd ade que o meu companheiro de mesa, por alcunha "O sargento Bera", pessoa pondera da e viajada, dizia que "todos os assuntos se relacionam uns com os outros" e "o que interessa a cultura geral". Os meus companheiros falaram da tctica da guerra area com um conhecimento que os s atisfazia e envaidecia, e fizeram previses fundamentadas em razes claras, ficando a considerar-me um pedante por modestamente lhes ter respondido que era um assun to de que sabia pouco, embora me interessasse muito. Viram nestas minhas palavra s uma ironia que os aborreceu e, mudando de assunto, saram para o ptio, de onde vi nha a algazarra dos operrios que esperavam a distribuio do caf da manh. Vesti-me e sa tambm. Parei no degrau da porta e reparei que num grupo prximo se discutia. De sbit o vi o Melena levantar o p e dar uma tal patada no peito de um outro que o meteu pela parede do barraco dentro. Ficou um buraco at ao telhado, da largura de trs tbua s. Ningum teve tempo de o impedir, mas se tivesse no impedia. O Melena era de cont acto perigoso e, alm de tudo, aquelas coisas ali no se impediam. Era contra os bon s princpios. Fez-se um silncio sbito em todo o ptio, porque as tbuas tinham feito um barulho de bomba, e nesse silncio ouviu-se a voz chocantemente calma do Melena pe rguntar: - Ento quando que vem esse caf? Agora j posso beber dois. Alguns homens que se tinham aproximado do buraco para ver o que acontecera ao ou tro, recuaram mais do que tinham avanado e fez-se uma clareira. O homem surgia da fresta escura, parava no rombo que tinha sido aberto medida dos seus ombros e o lhava. Mas tinha uma navalha na mo. Sem reflectir no que ia fazer, recuei para de ntro da porta de onde estava a ver a cena, atravessei o quarto a correr, abri a porta de comunicao e, com cautela, aproximando-me dele, que estava de costas e j ti nha descido para o ptio, agarrei-lhe a mo, torci-lhe o brao e dei um pontap na naval ha quando ela caiu no cho. Mas dentre o burburinho que esta cena provocou, saiu o Melena, que se dirigiu a mim e disse na sua voz fria: - Quem que o chamou? Respondi-lhe no mesmo tom: - No preciso que me chamem. - Ento de que que voc precisa? - Pouca coisa... - Se pouca... Ao baixar-me para que o soco no me acertasse, dei-lhe um "directo" ao estmago, ati rando-lhe quase ao mesmo tempo uma esquerda ao maxilar, que o fez cair. Levantou

-se com um ronco de boi e, correndo para mim, atirou-me um pontap que no me acerto u e o fez cair segunda vez, pois com um pequeno soco desequilibrei-o. Ento tentou agarrar-me, mas no tirou vantagem, 35 porque lhe fiz uma priso do antebrao, de que se queixou. Vi-o parar e olhar-me com espanto. Eu estava sereno e tinha apenas um pouco de sangue a escorrer do canto do beio. Ele sentia-se impotente diante de mim, como se eu dispusesse de um pode r mgico. Devamos ter a mesma altura, mas ele era mais pesado. Parou, olhou-me com espanto, deu dois passos para a frente e, estendendo-me a mo disse num tom de sin ceridade que me impressionou: - Carago!... Como voc que ns precisamos mais. E ficmos amigos desde aquele dia. Era um animal primitivo, com as qualidades dess e primitivismo, inadaptado poca em que vivia, mas da qual, no entanto, adquiria o s defeitos. Podia dizer-se dele que precisava de um dono. O dono fui eu. Um elef ante na selva anda livre, mas, se o trazem para uma terra civilizada, precisa de ter dono. Fomos verdadeiros amigos. Mais tarde, embarcou num navio de carga, pa ra a Amrica. despedida disse-me: - Vou aprender a jogar boxe, como tu. Vais ver o meu retrato no jornal: "Melena campeo do mundo!" Grande Melena!... Naquele dia caste do pedestal! S por culpa tua. Mas no dia segui nte tinham j por ele o mesmo respeito antigo, ainda que eu lanasse uma sombra ness e prestgio. Como eu vivia noutro plano, sem contacto directo com eles, o Melena m anteve naturalmente o primeiro lugar, embora, pelas costas, lhe dessem agora pia das e sorrissem com desdm. Quando a seguir nos dirigimos para as obras, eu, para lhe manter o prestgio, fui explicando aos admiradores que me rodeavam que o Melena tinha mais fora e eu o qu e sabia eram umas habilidades. Eles ouviam-me com surpresa e nos olhos brilhavalhes a ambio de aprenderem depressa estas habilidades milagrosas, para baterem tal vez o Melena, que nunca lhes tinha feito mal, mas para quem estavam j fartos de o lhar com medo. No entanto, ao mesmo tempo, miravam-me de revs, com a desconfiana 36 de quem pensasse "Ests a troar de ns", e reparavam, ainda outra vez, nos meus ombro s, que achavam, na verdade, to largos como os dele, e nas minhas mos, que tambm apa rentavam, de facto, no ser menos fortes. Ao passarmos junto aos eucaliptos na margem do rio, lembrei-me do que ali tinha visto naquela noite. E de novo hesitei na apreciao da minha atitude. Devia esclare cer o caso? Ou esperar? Separei-me deles e dirigi-me para a pirmide geodsica que n a sua brancura de cal alvejava ao longe, na plancie. Eram trs ou quatro quilmetros a caminhar sobre areia e ervas secas. Eles seguiram, em grupo, para a barraca da fiscalizao, onde iam receber a senha de ponto, antes de comearem a trabalhar. J se viam vrios grupos espalhados pelo areal. Os trabalhadores vinham surgindo, um a um, de todos os lados, como se sassem da a reia, vindos, l do fundo da plancie, das suas choupanas e aldeias to humildes que no se viam, confundidas com as ervas secas do cho. Vinham com a enxada s costas e o saco da comida pendente do cabo da ferramenta. S os vamos quando estavam j ao p de ns . Eram pardos, da cor da plancie, magros, tristes e calados. Como todas as manhs, o mesmo grupo que o tinha tomado sua conta balanava sobre a m uralha o tal homem, e, como se fosse um co, atiravam-no ao rio. Este caso foi um dos que me chamaram a ateno desde o primeiro dia, mas distra-me com os meus trabalh os, no tornei a presenciar a cena seno algumas semanas depois, quando fui trabalha r para os campos, e no me lembrei mais de impedir aquela selvajaria. Neste dia, p orm, e agora que eu j conhecia bem o meio onde estava, resolvi procurar, tarde, o director e inform-lo. A vtima era um pobre alcolico que usava, por direito incontes tado e comprovada linhagem, um bom nome fidalgo: D. Nuno Sebastio Pereira de Alma da. De nome era pomposo, mas de presena, tosco e desprezvel. Viera recomendado par a fiscal de alvenarias, mas verificou-se que o

37 Dom no supria o pormenor de ser analfabeto. Nada porm justificava aquela brutalida de de o atirarem todos os dias ao rio, como um co sem raa. O director chamou ao ga binete o chefe da fiscalizao e, na minha presena, fez-lhe a pergunta: - Que se passa com o Nuno Sebastio? - Nada, que eu saiba, senhor director. - Disseram-me que costumam atir-lo ao rio. - Ah! Isso, algumas vezes tem acontecido, sim, senhor director. Mas agora j no. - No o que me consta. Informe-se. E lembro-lhe que seu dever ser a pessoa mais be m informada destas obras. Porque que tratam esse homem assim? - Por brincadeira, senhor director. - S por brincadeira, acho muito. Como que fazem? - Uma vez que eu vi... pegaram-lhe, um pelas pernas e outro pelos braos, cantaram -lhe uns versos e atiraram-no gua. Mas ele no se zangou; at se riu mais do que eles ... - Como eram os versos? - No me lembro, senhor director. - O senhor tem pouca memria... - Eram mais ou menos assim... Balanavam-no para c e para l e diziam: Dom, Dom! Nuno Sebastio Pereira de Almada! O nome bom! Mas tu no prestas para nada! e atiravam-no para o rio... - Avise os que costumam fazer isso de que sero despedidos se repetirem. E o senho r passe a andar mais atento aos seus deveres. 38 O fiscal recuou respeitosamente para a porta e saiu. Ento o director, tirando a mscara severa e afagando o bode, que comia qualquer pap el importante, voltou-se para mim e riu-se: - estpido, mas define uma poca. O senhor j pensou bem: todos os dias pegarem no hom em pelas pernas e pela cabea e porque ele no presta atiram-no fora! Todas as manhs e antes de mais nada, como quem cumpre uma obrigao! Isto espantoso! de uma simplic idade medieval! E com msica e cantiga: Dom, Dom! Nuno Sebastio Pereira de Almada! O nome bom! E riu-se s gargalhadas, repetindo: O nome bom! Mas tu no prestas para nada! Isto genial, meu amigo. Generalize e veja em quantas coisas d certo! J reparou na diferena a que se chegou entre as ideias e as coisas? Hoje os nomes ainda so bons, as coisas que j no prestam. A falsificao de uma poca... A mentira como sistema. As p alavras j no correspondem ao que significam. o Dom Nuno Sebastio Pereira de Almada. Mas de repente atirou-se sobre o bode, que estava a comer o contedo de um grosso dossier. Eu corri pelo outro lado da mesa e segurei tambm o incrvel animal. O dire ctor tirou-lhe da boca uma bola de papis completamente mastigados, ficou aniquila do a olhar para aquela mo-cheia de pasta mole, e por fim exclamou num tom melancli co: - O hangar! ... 39 Atirou aquilo para o cesto dos papis rasgados e foi verificar o que restava do do ssier. Explicou-me ento que era o projecto para um hangar de estrutura de madeira

, o primeiro que se construa em Portugal. E acrescentou, j transportado ao campo d a tcnica, sem mais lamentaes inteis: - Claro que os hangares de madeira tm grandes inconvenientes. Eu no concordo... E o Scrates, como se viu, tambm no... Percebendo que ele, com o livro de mortalhas na mo, procurava o tabaco, ofereci-l he os meus cigarros. Que no; preferia o Francs. Revolveu quantos papis estavam sobr e a mesa, meteu as mos vrias vezes em todos os bolsos do fato, mas de sbito parou, calou-se e ficou a olhar para o bode. O sereno bicho, ao canto da janela, mastig ava filosoficamente a ona de tabaco Francs. Tirou-lha de entre os dentes, porque l he fazia mal, e explicou, comentando com doura: : - Tem as minhas opinies e os meus vcios. O bode, abanando a longa pra, com indiferena, atravessou a sala, espirrou, cheirou um ramo de carvalho que estava sobre um sof, voltou para trs e deitou-se sobre o tapete como se estivesse farto de nos aturar. Ns continumos a falar sobre o andame nto das obras, e o director fez um elogio do ministro, acentuando qualidades que sabia que eu considerava defeitos. Era uma das maneiras que usava para nos dar as suas opinies. Nunca lhe ouvi fazer a menor apreciao desfavorvel a qualquer superi or hierrquico. Mas os elogios, que fazia com uma frieza cientfica, acentuavam, com tal lgica e tal clareza, to exclusivamente, um dos lados do problema que nos obri gava a tentar ver o outro. Com aqueles com quem sabia que podia faz-lo - e tinha uma penetrao psicolgica excepcional - conversava com um -vontade e uma intimidade qu e apagavam o desnvel hierrquico e permitiam que nos revelssemos. Mas para a maior p arte dos subordinados afivelava uma mscara desagradvel e falava num 40 tom que os gelava. Todos sabamos que para ele as coisas mais importantes eram a d isciplina e a honestidade do trabalho. Nisso era de uma severidade brutal, que c hegava a revoltar-nos e a sup-lo uma pessoa vil, pois castigava e despedia por mo tivos que nos parecia no corresponderem severidade do castigo aplicado. Mas no. Ho je posso dizer que era sempre justo. A aparncia enganava-nos. Era preciso ter o p rivilgio de o ver sem a mscara, para podermos compreend-lo. Muitas vezes pensei que no era talvez o sistema em que ele gostaria de trabalhar, se escolhesse livremen te. Dava-me a impresso de que obedecia a uma ordem, a um mtodo de ser chefe: a dis tncia e a ameaa. Julgo, porm, que no precisaria de pr aquela mscara para se impor e se r respeitado por todos. O chefe da fiscalizao, seu delegado junto do pessoal das obras, copiava-lhe o sist ema, ampliando-o, pois nele, sim, era a sua maneira prpria. Um canalha. No sei com o conseguiu viver esses anos no meio de gente como aquela, sem que o fizessem de saparecer no rio, como fizeram a outros. Tinha cautela, no saa noite e de dia no se afastava das obras, onde andava muita gente. Tinha uma corte que o lisonjeava e fazia roda com ele mesma mesa, e foi a eles que ouvi, um dia, hora do almoo, con tar que a Leonor tinha querido embarcar no gasolina, para voltar, e no a tinham d eixado. Entre comentrios obscenos, repetiam as propostas que lhe tinham feito em troca de um lugar no barco. Fiquei impressionado com aquela notcia, que significa va ter a pobre rapariga andado com pouca sorte l por onde tinha estado. Que tives se passado aquele tempo em stio pior do que este, no me parecia natural, visto que tinha sido recomendada a uns parentes do director. Mas alguma razo muito forte a obrigava a querer voltar para ali, onde at no ar se respirava brutalidade e crim e. Porque preferia ela voltar? Foi a pergunta que me obcecou durante todo aquele di a, sem conseguir encontrar-lhe resposta 41 nem libertar-me dessa interrogao cuja insistncia por fim j me surpreendia. Bem prote stava para comigo: "Mas que tenho eu com isso!" A exclamao soava-me falso. Aceitei que fosse apenas aquela solidariedade que ns sentimos pelos que so da nossa mesma qualidade humana. Ou seria s o contraste da flor que desabrocha no pntano. No poss

o chamar-lhe amor. No o era, porque mais tarde tambm o no foi. No estou a justificar -me do que depois aconteceu. Hoje faria a mesma coisa. Julgo que faria a mesma c oisa. (Julgo?) Mas naquele momento afligia-me a sensao de tragdia a desencadear-se, que me vinha daquela linda rapariga. E a angstia da sua situao era mais aflitiva p ela conscincia clara que ela tinha do seu destino de mulher, da certeza de que er a carne para pasto de feras. Fugia, mas fugisse l para onde fugisse via-se sempre no mesmo stio do mesmo mundo. Quando dois dias depois vi ao longe, a subir o rio , o gasolina em que costumavam vir os engenheiros, e adivinhei, mais do que vi, que vinha l uma mulher, tive a certeza de que era ela. O meu companheiro de traba lho fez-me sinal de longe e pondo a mo em porta-voz gritou: - U-ma ... mu-lher!... Fiz-lhe sinal com a mo, que deixasse l isso e desse ateno ao trabalho e curvei-me pa ra o teodolito, como quem se dobrasse sentindo um grande peso sobre os ombros. Q ue alguma coisa podia acontecer, no tinha dvidas. Mas comigo no. Alis, que coisa to b anal! Milhes de casos assim no mundo! Pareceu-me ouvir outra vez a voz do meu companheiro repetir, ao longe, na plancie onde o sol queimava: "U-ma... mu-lher!..." Mas olhei e vi-o a escrever no seu b loco de notas. Quando soou o apito da draga e todo o trabalho parou, ns continumos ainda durante algum tempo, para terminarmos aquela parte do trabalho. No era necessrio, mas, no s ei porqu, preferi demorar-me mais. As tardes eram grandes e ns no tnhamos nada que f azer depois de acabado o trabalho. Conversvamos, 42 alguns jogavam as cartas, outros dormiam, uns desapareciam no se sabia para onde, outros assassinavam, tocavam, cantavam. Quando soava no ptio o sino para o janta r, aquele som era, para alguns, principalmente uma libertao do pesadelo dessas hor as vazias. No refeitrio dos trabalhadores o barulho era ensurdecedor enquanto no comeavam a co mer. Depois, quase de sbito, ficava um silncio em que se ouvia s o som da loia. Esta vam a engolir. Os animais, manjedoira. Como me vexava o primitivismo daquela gen te! Na messe estvamos um pouco acima, mas pouco mais. Em todo o caso, por vezes, j sabamos ver-nos melhor no espelho uns dos outros. Tnhamos a mentalidade confusa e agressiva de homens de uma poca de transio. O esprito desprendeu-se das formas de v ida do passado e no encontrou ainda os novos limites, a nova casa, essa casa que para se fazer preciso sair primeiro da anterior e andar chuva e ao vento enquant o a vamos construindo. Diria o Senhor de La Palice que, na verdade, para se cheg ar preciso percorrer os caminhos... Mas desculpem-me este discurso filosfico. A s olido leva-nos filosofia. Vim passar um ms de licena a esta pequena aldeia e o soss ego dos pinhais e dos montes envolve-me, comunica-se-me, e vou podendo arrumar a s ideias outra vez no seu lugar. Os problemas morais tm para mim uma grande impor tncia. Mas como me oriento por umas linhas simples e ntidas que assentam (ou vm) no princpio do mundo, e de que para o outro lado no vejo o fim, acontece que, por ve zes, os resolvo fora, se no at ao contrrio, das convenes do momento. E isto faz confu so s outras pessoas. Ora, as confuses tambm se comunicam um pouco ou, pelo menos, qu ando so sinceras e grandes, obrigam a rever a firmeza e a nitidez das tais linhas . Ali, no vivamos num ambiente de solidariedade social. Ainda hoje no sei se compre endi as razes disso. A verdade que no fundo de cada um de ns sentamos um inimigo do s outros. Havia uma falta de boa 43 vontade, de compreenso e de tolerncia que no era natural entre pessoas do mesmo nvel e sem ambies que se chocassem. Era a impresso de que vivamos num clima de ar rarefe ito, imprprio vida. Cada um de ns andava dominado, de dia e de noite, a todas as h oras, mesmo quando a fadiga dos nervos nos dava uma lassido de esquecimento, de a dormecimento de que despertvamos depois mais inquietos e violentos, todos ns andvam os dominados por uma obsesso. Cada um pela sua, mas em quase todos era a mesma: a fmea, uma ideia j diluda, indefinida, mas que se concretizava logo que qualquer co

isa a evocava. Por isso a Leonor no podia andar ali no meio daquela gente. Desde que regressara, por motivos que ningum sabia, nunca mais a tnhamos visto. Chegmos a supor que tivesse voltado para a cidade, mas a prova de que ainda estava ali, d e que vivia escondida dentro das negras paredes daquele casaro, era o desassosseg o, o alarme que andava em todos ns. Talvez a escaldasse a mesma febre, a mesma in quietao. Aquelas grossas paredes hmidas, aqueles corredores escuros, no bastavam par a a isolar. A onda do desejo, como uma onda magntica, passava atravs das paredes e vibrava nela, percorria-lhe o corpo, aquela carne branca e pura que nos abrasav a a imaginao. At que um dia notei que ela espreitava por um postigo das caves. (Lem bro-me que foi no dia em que o bode do director, o Scrates, que comia tudo, comeu enxofre e morreu.) Ora as caves deviam ter comunicao com a cozinha mas com certez a tambm com outras dependncias, pensei com uma rapidez de deciso que me surpreendeu , pois este sobressalto me revelou que andava tambm a pensar nela sem o querer co nfessar nem a mim prprio. No denunciei a minha descoberta por qualquer olhar ou at itude que ela percebesse e entrei em casa, dirigindo-me para o meu gabinete de t rabalho. Mas com aquela rapidez de resoluo que tanta vez me tem levado a situaes difc eis, embora seja o que depois tambm me tem tirado delas, em vez de subir a escada continuei at ao fundo do trio, voltei para a esquerda 44 na direco oposta cozinha e descobri que havia outra escada ao fundo desse corredor . Este corredor era uma larga galeria em abbada, de cho de pedra, escuro como um tn el, com cheiro a humidade. A escada descia para a cave. Nunca para ali tinha ido nem sabia onde ia ter. No se via nada. Fui tacteando, descendo os degraus com cu idado. Ao fim de dez ou doze, percebi que havia um patamar e com as mos a apalpar as paredes notei que a escada voltava em sentido contrrio e continuava a descer. Senti debaixo dos ps uma espcie de lama peganhenta e ia a dar mais um passo quand o bati contra uma porta. Procurei o fecho e levantei-o. Estava aberta. Empurreia o bastante para poder passar, e na penumbra de uma luz baa, que entrava por uma fresta da parede, vi uma grande cave vazia, que antigamente devia ter sido adeg a. Verifiquei que no estava l ningum e entrei. Ao fundo havia outra porta. Era por ali a passagem. Mas estava fechada. Tentei abri-la e quando fiz barulho com a al draba ouvi do lado de l um rudo e depois mais nada. Era ela, com certeza. Esperei. Podia no ser. Mas o instinto no se enganava. Ouvi-a aproximar-se e perguntar em v oz baixa e cautelosa atravs da porta: - Quem est a?... - a Leonor? ... - Quem que est a? - insistiu a mesma voz, coada pela grossa porta. Espreitei pelo buraco da fechadura e senti na cara um jacto de vento frio: vi um espao vazio e uma parede; ao fundo, a ombreira de outra porta. - Pode abrir? - Que est a fazer a? - Vim aqui... Veja se a porta se pode abrir por esse lado. - Mas quem o senhor e que que quer? - Nada. Queria s abrir esta porta... No tem medo das aranhas? Eu gosto de explorar os mistrios das casas velhas, dos 45 subterrneos, e por isso que vim aqui... e a encontrei. Encontrei s a sua voz... No sei, na verdade, se a Leonor que est a... se s a voz dela que ficou no subterrneo... - Mas quem o senhor? Eu falava devagar, com pausas, deixando pesar uma inteno no fim de cada frase. - Suponha que no sou eu... que tambm s uma voz que lhe est a falar, uma voz que anda por aqui perdida... Voc teve agora um arrepio de medo... Est a ouvir? Bem sei que no pode ir-se embora enquanto eu aqui estiver, tenho um poder sobrenatural que a prende... mas quis fazer esta pergunta para lhe dar uma iluso de liberdade... De sculpe esta palavra. No a disse para a magoar. Se alguma coisa gostava de fazer, era evitar tudo que a magoasse... No por ser a si: s porque uma rapariga bonita. M

as no julgue que estou apaixonado. Sou como os outros... - Porque que no me quer dizer o seu nome? No tenha medo, que no fao queixa de si. - Bem sei... Mas uma pessoa atrs de uma porta que no se pode abrir uma pessoa sem nome... Vim aqui, afinal, para a salvar. S agora compreendi... - Salvar de qu? - Talvez at de si... - Que homem to misterioso que voc !... Agora que comeo a estar com medo... porque no entendo nada do que tem estado a dizer... - S as coisas que no compreende que lhe fazem medo? - Porque est a falar to baixo? - Oio-me melhor a mim prprio... J experimentou alguma vez, num quarto s escuras, fal ar como se falasse para si, em voz baixa, com verdadeira intimidade e sinceridad e?... S os doidos, pois ... No se v embora, no tenha medo, bem ouvi os seus passos a afastarem-se. Deixe-se estar. Tenho umas coisas para 46 lhe dizer. A porta est bem fechada e eu no sou doido, nem fantasma, nem ao menos u m homem to perigoso como devia ser. A minha mo tambm forte para mim... Tinha agora a impresso de que estava a falar sozinho, para as paredes, e que as r espostas ouvidas tinham sido apenas imaginadas. Mas continuei: - No lhe digo o meu nome porque as palavras dos desconhecidos tm mais valor. No dig o isto por ironia. verdade. No podemos desligar das palavras que ouvimos a uma pe ssoa as limitaes dessa pessoa. No olhamos para as palavras, mas para a pessoa que a s diz. Quando vm de um desconhecido e invisvel, o que melhor, ento s temos as palavr as para olhar e recebemo-las com o mximo valor que somos capazes de lhes dar. - Ah! Que maluco!... Ouvi uma gargalhada e continuei: - Gostei de ouvir essa gargalhada. Estava a esquecer-me de si, apesar deste perf ume que o vento me traz pelo buraco da fechadura. Tem sido assim, desde que h fec haduras... A segurana das fechaduras... Por ironia, o Diabo serve-se sempre deste s buracos para passar... Ou julga que o Diabo no est entre ns ambos a fazer tudo o que pode?... No pode nada? Isso parece-lhe... Agora ele perdeu por causa da porta , e est a espicaar-me por ver que estou arrependido. Mas nunca desiste... - De que que est arrependido? Aquela voz por vezes parecia-me mais distante e mais triste. - Eu disse arrependido?... Enganei-me. No estou. Queria dizer que resolvi outra c oisa... Mas estou a desviar-me do assunto... Desculpe que lhe faa uma pergunta: p orque ps esse perfume? - Foi a minha tia que mo deu. - Isso no razo. Se nunca sai da cozinha e do seu quarto, porque se enfeita com ess as coisas? - Para mim. Gosto... 47 - Faz bem. Era de si que eu lhe queria falar e parece que tenho estado a falar d e outras coisas. Mas parece, s... A maneira mais fcil de ser sincero falar como qu em brinca. Por isso tenho estado a falar assim. Mas desculpe-me... Eu afinal que ria nem sei bem se dar-lhe conselhos a si, se d-los a mim prprio... Nunca pensou e m ir para o Brasil? A voz, do outro lado, exclamou num riso abafado: - Para o Brasil...!? - Todos os portugueses pensam, pelo menos uma vez na vida, em ir para o Brasil. Pois faz mal em no ir... - E voc, porque no vai? - J fui... Mas no me dei com o clima... Quando digo Brasil, para si, quero dizer: grandes horizontes novos, caminhos novos... Pode ser em qualquer parte, menos nu m pntano como este. Deve sair daqui o mais depressa que possa, porque, com certez a, para stio pior no ir. Prometa que se vai outra vez embora e que no volta... Ouve

bem o que eu digo? Mas que isso?... Est a chorar? Leonor!... Passou atravs da porta uma voz diluda: - No... - Leonor!... Entenda o que lhe disse! Aqui no pode estar, bem sabe. No preciso diz er-lho. Porque voltou? No se compreende... Bem sei que no tenho nada com isso... A minha voz, de repente, tomara um tom de ansiedade ridcula. Cortou-me as palavra s o rudo leve de uma porta a fechar-se e percebi que era ela a sair da cave. Tinh a-se afastado sem eu lhe ouvir os passos. Fiquei um momento perplexo, mas recupe rei logo a serenidade e sa dali rapidamente, aborrecido da maneira indecisa e div agatria como tinha conduzido aquele dilogo e principalmente do sentimentalismo em que tinha cado. Revoltava-me contra mim prprio, ao mesmo tempo que com uma certa surpresa me inte rrogava sobre as causas verdadeiras 48 daquela atitude. Porque eu no sou assim. Em geral sei falar com sobriedade e firm eza. Mas, na verdade, ali no o soube. Quando cheguei l fora, ao ar puro, longe daquele ambiente pesado de histria macabr a, tive a impresso de um estado de embriaguez. Como procuro sempre uma explicao par a tudo, embora saiba que muitas coisas no a tm, satisfiz-me com uma ironia fcil: "F oi do ar viciado da cave..." Mas tambm compreendi que o melhor era confessar que aquela rapariga j me no era indiferente. E por isso decidi no tentar mais encontrar -me com ela, nunca mais lhe falar, e procurar esquec-la, enquanto estava a tempo. Foi uma noite inquieta. Aquela voz no me saa dos ouvidos, de uma doura envolvente, que nunca mais posso esquecer. Queria libertar-me dela e no podia. Por fim, j no e ra uma coisa estranha a mim prprio, que eu pudesse afastar ou negar. Era uma fora do mais ntimo do eu, como se fosse a minha prpria razo de existncia, que se me impun ha e me mandava obedecer. Foi uma noite de luta. Toda a noite o coro das rs dos pn tanos, entrando pela janela aberta, me encheu o quarto e me estonteou a cabea, en quanto os mosquitos zumbiam em volta e se me espetavam na pele da cara. A animal idade grosseira dos meus companheiros que ressonavam, nas camas ao lado, era com o chicotadas nos nervos, mas que tinham a virtude de manter-me ligado realidade prxima. O luar entrava pela janela e fazia no cho um quadrado branco, espalhando p elo aposento a sua claridade vaga que me excitava ainda mais a imaginao. Ouvia l fo ra as corujas caa, que poisavam nas rvores e piavam. Era uma vida intensa na sua p lenitude a expandir-se, desde as rs aos ralos, s guas do rio que por vezes me parec ia ouvir tambm, como se a torrente tivesse crescido e inundado as margens, uma vi da latente e realizada em tudo. S eu ali deitado a negar-me o caminho verdadeiro. Nunca fui para limites nem renncias. E o rio turvo crescia, crescia sempre, pass ava sobre o mundo e levava tudo... At que adormeci, de cansado. Era ainda 49 aquela noo de responsabilidade que me tem atado sempre os movimentos, que me tem p uxado para trs, tantas vezes, quando vou lanar-me para a frente, que me tem feito perder e errar tanta coisa na vida. Olhar para todos os lados e pesar e medir, e pensar bem, antes de dar um passo! Que iluso!... Desde aquele dia comecei a fazer uma vida ainda mais isolada. Depois de acabado o servio, dava um passeio pela plancie ou pela margem do rio. Deitava-me no areal quente do sol e por vezes deixava-me adormecer. Voltava de noite. Ao princpio des confiaram dos meus passeios, para os quais no encontravam explicao, e seguiam-me pa ra me espreitar. Depois convenceram-se de que eu era um luntico, e desinteressara m-se desse vagabundear, que foi perdendo o mistrio. Classificaram-me talvez na ca tegoria do Miranda astrlogo, conhecido pela alcunha do "Planeta", por ter aquele ar sonmbulo e apagado, esse triste Miranda, que passava horas sobre a pirmide geods ica, no meio da plancie de areia, a olhar os horizontes distantes, depois descia e, com uma bengalinha fina que trazia sempre na mo, fazia riscos na areia: peixes , desenhos simblicos. No procuro dar aos outros ideias falsas a meu respeito, nem tambm me preocupo a corrigi-las, se no vejo necessidade disso. Algumas ideias fals

as at so cmodas, como esta era. Deixam-se continuar. Uma das poucas boas qualidades que tenho , na verdade, esta indiferena pelo que os outros pensam a meu respeito. No tinha ali amigos, no verdadeiro sentido desta palavra: amigos. So coisa rara e que leva tempo. Nem podia vir a t-los, porque ali at as amizades eram provisrias. P odamos conviver anos, que aquela sensao de transitrio e de instabilidade de tudo e e m tudo seria sempre a mesma. Por isso no tinha confidentes. E isto faz falta. uma vlvula de segurana. Faz bem falar nas coisas que nos preocupam. atirar um pouco d elas para fora de ns, e at, muitas vezes, p-las numa posio nova e v-las por outro lado . Mas ali, entre aqueles companheiros, no era possvel. 50 E assim no me libertava daquela obsesso. Na tarde seguinte, quando passei no ptio, vi que a Leonor estava outra vez escondida por detrs do mesmo postigo da cave. Ol hei disfaradamente sem que ela percebesse. E pensei que se na vspera me tivesse re conhecido pela voz, iria agora esperar-me no mesmo stio onde tnhamos estado a conv ersar. A curiosidade, ou no sei que fora, desviou-me do meu caminho e desci outra vez ao subterrneo. Mas com um grande cuidado, para que ela no ouvisse os meus pass os, pois no queria falar-lhe nem queria que ela percebesse o meu interesse. Sem f azer o menor rudo, muito devagar, aproximei-me da porta, tendo o cuidado de no pas sar por diante do buraco da fechadura. Encostei o ouvido e escutei. No ouvi nada. Mas senti o perfume suave que vinha do outro lado e que denunciava a presena del a, tambm ali encostada mesma porta a que eu estava encostado. Pensei que se aquel as tbuas, naquele momento, desaparecessem, ficaramos na frente um do outro. E pare ceu-me, de repente, que a porta tinha mexido e ia abrir-se e ela ia entrar sorri dente e ingnua. Mas ouvi uns passos leves. Ia-se embora. Num sobressalto espreite i pelo buraco da fechadura e vi-a afastar-se como um vulto irreal naquela luz no cturna que havia na cave. Um tmulo. Bem compreendi que era o momento decisivo da nossa vida, cham-la ou no. E no chamei. No tinha nada para lhe dizer. Nem podia pass ar para o seu mundo de iluses, nem devia traz-la para o meu j sem elas. Afinal, que podia eu oferecer-lhe que valesse a pena traz-la para o meu sombrio caminho? Est a prudncia deu-me a calma de pensar que se eu punha o problema assim com esta ver dade porque no a amava. No sou dado a paixes. Falta-me aquele dom de alucinao ou de p oesia necessrio para essa fora. No sou mstico nem poeta. E sei que, no fundo, as pai xes desses so como as minhas, uma fora da natureza a cumprir-se. Que essa fora, nest e caso, se reduza a um desejo carnal, isso s prova que o homem no precisa de ver m ais longe o seu destino. 51 Os problemas do amor, para mim, no existiam. E s ento compreendi que existem e que nos dominam. No conseguia deixar de pensar nela. A ideia dessa mulher estava em m im como uma atmosfera que envolvesse continuamente todos os meus outros pensamen tos. Os longos passeios que eu dava eram para lhe fugir e, ao mesmo tempo, para andar com ela. E perdia-me por aquela plancie sem fim, subia pela margem do rio, vagueando at ao anoitecer. Ento regressava guiado pelos eucaliptos altos que assin alavam ao longe o lugar da Casa Amarela. E foi numa tarde dessas que vi um vulto escondido atrs de uns arbustos erguer-se e avanar para mim. Parei surpreendido. B astou o sorriso indefinvel que teve - constrangido e arrogante, melanclico, mas ta mbm com um no sei qu de alegre - para eu compreender que ela estava ali minha esper a. Tinha-me espreitado e sabia por onde eu costumava passear. O nosso dilogo comeou mais ou menos assim: - Que anda a fazer por aqui? - Vim passear... - Julguei que no costumava passear... Fitou-me com um olhar subitamente duro e agressivo: - No costumo?... Tenho medo de vocs, talvez, no?... - No quis dizer isso. - O que vocs querem sei eu... - E numa voz mais seca: - E eu tambm sei o que quero ... - Olhou em volta, hesitante, num olhar de fuga, e acrescentou como um desafi

o: - Queria agora ir passear naquele barco, mas voc no sabe remar. - No. Respondi como quem desdenha uma coisa fcil, olhando o pequeno barco que oscilava com a impetuosidade da corrente, amarrado a um salgueiro da margem. E mudei de c onversa. - Julguei que j se tinha ido embora... - E fui. Mas voltei... Mudar, para a mesma coisa? 52 - Igual a isto aqui, no fcil. Voltou porque tem a tentao das borboletas volta da luz ... Convencem-se de que ali tque tm de queimar as asas e queimam... Olhou para mim calada, de lgrimas nos olhos, com a expresso vencida de quem inespe radamente confessou tudo. Sentmo--nos na areia a conversar. No sei o que lhe disse nem que conselhos lhe dei. Lembro-me dum cu vermelho do pr do Sol, das guas negras do rio, do silncio dos campos volta de ns. Julgando que estava diante de uma leviana, fui reconhecendo que havia naquela ra pariga uma firmeza e uma deciso de vontade que eram difceis de desviar. Foi ela quem me beijou primeiro. Mais do que ter sido o primeiro homem para ela, aquele beijo ficou na minha carne e na minha alma como uma marca de fogo que no desaparece. Quando saltou para o barco e me perguntou outra vez se eu sabia rema r, j era para mim outra mulher a quem eu no podia renunciar. No pude segurar a cord a que com o balano se desatou e a rapidez com que a corrente afastou o pequeno ba rco no me deixou fazer nada. Gritei-lhe que se sentasse e com um remo guiasse par a a margem. Mas no barco no estavam remos. E com a fora da corrente era impossvel a lcan-lo a nadar. A correr pela margem, fui-lhe gritando que no tivesse medo e se de ixasse ir, que em frente da cidade, ao p dos navios, chamasse para lhe acudirem. Flutuava como uma folha sobre a corrente. Dali Casa Amarela era muito longe e no pude pedir socorro. J estava a anoitecer. Talvez ao passar em frente da cidade a vissem e a salvassem. Ou talvez no quisess e voltar. Preferiu fugir de mim e ficar na dvida do que vir a sofrer uma desiluso? Queria poder aceitar esta ideia romntica. Mas as mulheres nunca preferem a dvida. 53 JACK Estava um dia quente. O sol alto fazia as sombras pequenas, e do pavimento de pe dras escuras, ligadas pela massa negra do p de carvo, vinha um bafo que cheirava a sujo. No ar adormecido e mole pairava um rumor difuso como se fosse longnquo, em que s era ntido e prximo, sem se saber donde, mas a bater dentro da cabea, um marte lar em chapa de ferro, compassado, lento, vibrante, num duro contraste com o tor por do ambiente. Na estreita faixa de sombra de um armazm, dormiam trs homens estendidos no cho, com o mortos atirados para a valeta. Aqueles barraces escuros escondiam um navio de q ue se via s a grande chamin donde saa um vagaroso penacho de fumo. Num mastro fino e alto, uma bandeira estrangeira. Mais adiante, outros mastros, guindastes com o s braos estendidos, outras chamins, numa fila imvel que se perdia ao longe, por det rs de outros telhados de outros barraces. Eles caminhavam num passo mole, sem destino e calados, como se cada um se tivess e esquecido de que o outro ia ali ao lado. As alparcatas de sola de borracha no f aziam barulho. Eram dois amigos inseparveis. Agora iam sem destino, vagabundeando ao encontro do acaso que lhes atirasse palma da mo umas moedas para tilintarem n o balco do Zebra. Voltavam esquina do barraco, 57 tornando ao lado do rio, quando o Batata poisou, calmo, a mo sobre o ombro do ami go e o travou. Z Fole sentiu a camisa podre ranger no ombro, rasgada debaixo da p resso dos dedos do companheiro, e percebeu que era coisa de importncia. Mas s olhou

em frente, esperando a explicao. Ia gente a passar e apenas ouviu o outro segreda r: "O Jack." Estremeceu e os olhos brilharam-lhe. E de repente descobriu-o ao lo nge, no meio de outra gente, de cachimbo na boca e bon banda. Devagar, sem mais u ma palavra, voltaram ambos para trs, lentos, pelo mesmo caminho, como se no tivess em visto nada que os fizesse recuar. Mas passada a esquina, pararam e olharam um para o outro, num mtuo entendimento. Depois observaram em volta: os que estavam deitados na valeta continuavam a dormir como mortos, mas do lado oposto vinham d ois homens. Espreitaram disfaradamente esquina: l vinha ele, de cachimbo nos dente s e mos nos bolsos. Cambaleava de bbedo. Z Fole fez um gesto de cabea e ambos atrave ssaram a rua e, apressando o passo, desapareceram atrs de uma montanha de caixote s. Adiante pararam, como se tivessem alcanado um stio conveniente. Via-se a rua on de ia passar o Jack. E esperaram. Ele aproximava-se a cantarolar e a mascar o ca chimbo. Ao v-lo cambaleante, o Batata quis rir-se mas saiu falso: "A, mar da barra !..." E o Jack, a procurar equilbrio, descambara de um lado da rua para o outro e ia me ter por uma viela que voltava borda do cais. Z Fole tinha agora na cara uma expre sso dura. Escondido atrs do monte de caixotes, no tirava os olhos do ingls. O Batata , com um sorriso amargo ao canto da boca, olhava ora para o amigo, ora para o bri o, como se hesitasse em qualquer coisa. Tirou do bolso um cigarro que partiu ao meio, estendendo metade ao companheiro. E ficaram ambos com os bocados do cigarr o esquecidos na mo. O Jack, depois de bordejar a rua, sempre metia de esguelha pe la viela. Mas cambaleou, cantou mais alto e rodopiou nos calcanhares, voltando p ara trs, como quem 58 teima contra si prprio. Os dois amigos, com o alvio de quem ganhasse uma cartada d ecisiva, olharam os cigarros que estavam esquecidos na ponta dos dedos e levaram -nos boca. No tinham fsforos. - Vou pedir ao gajo... E foi. Ao v-lo caminhar inesperadamente para o ingls, Z Fole pensou que ele ia avislo. Sentiu um calafrio e, apertando na mo a navalha que, desde que vira o ingls, l he rebolava no bolso, entre os dedos, ficou imvel, com os olhos a penetrar o amig o que parava diante do estrangeiro. Fitava-lhe a boca para ver se conseguia comp reender as palavras que o traidor ia dizer. Mas o Batata tinha o cigarro na boca ; fez uma continncia ao ingls e, sem mais cerimnias, sacando-lhe o cachimbo dentre os dentes, acendeu o cigarro, enquanto o outro mastigava um palavreado confuso e ria, dando-lhe palmadas no ombro. Batata tornou a meter-lhe o cachimbo na boca, como se metesse uma rolha para o calar, e sem ter mexido os lbios, sem ter dito uma palavra, como se tivesse adivinhado o que o amigo estava a pensar, voltou pa ra ao p dele. Ofereceu-lhe lume, mas Z Fole meteu o cigarro no bolso da cala, sem s e explicar. Batata sentiu uma onda de sangue afoguear-lhe a cara e s disse, sem a lterar a voz, apenas com as palavras um pouco mais pesadas: - Este lume meu. - No quero fumar. - Ah!... No te estava daqui a ver bem... Z Fole no respondeu. Sentiu que o amigo ao voltar de ao p do ingls lhe tinha visto a inda nos olhos a desconfiana mal apagada, e deu-lhe razo. Conhecia-o bem para no pr em dvida a sua lealdade, fosse no que fosse. Bem sabia como ele era seu amigo e q ue no concordava com isto de se vingar assim do Jack. De cara a cara, diante de q uem calhasse e em qualquer parte, era outra coisa. Mas o Batata est