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CAMINHOS NA PRODUO DO CONHECIMENTO: CUIDADOS, INCERTEZAS E
CRIAO
Raquel Maria Rigotto
Ana Ecilda Lima Ellery
Os trabalhadores da cincia estamos iniciando, h cerca de quatro dcadas, um processo de
reflexo sobre os (des)caminhos da cincia moderna, sua contribuio na produo da sociedade
capitalista contempornea e suas responsabilidades diante da sociedade de risco que hoje constitui-se
em ameaa vida no Planeta. Urge construir outro paradigma de cincia, como discutimos no captulo
1. Esta conscincia estava muito presente para ns ao iniciar esta pesquisa, e decidimos dialogar com
estes desafios no s na definio de um referencial terico crtico, mas tambm no processo de
construo da metodologia e da dinmica da trajetria emprica, em permanente comunicao com o
territrio em estudo.
Por isso, contamos aqui, de forma organizada, a histria desta pesquisa pelo menos uma boa
parte dela: por que decidimos nos debruar sobre este tema e este territrio, como definimos o objeto
de estudo, como fomos reunindo trabalhadores da cincia com pontos em comum para chegar a
constituir uma comunidade de pesquisa. Descrevemos o desenho metodolgico que, com dificuldade e
vagar, fomos traando para responder s nossas perguntas de investigao. De forma cuidadosa,
narramos os caminhos de nossa trajetria ao longo destes quatro anos de trabalho, no s porque
sabemos que isto fundamental para que os leitores compreendam o contexto de produo e avaliem o
conhecimento produzido, mas tambm porque foi uma experincia to rica para ns, que gostaramos
de compartilh-la. Em formato de boxes, inserimos casos, estrias, acontecimentos que ilustram o
dilogo progressivo com o campo emprico. No ltimo deles, os prprios pesquisadores registramos o
significado desta experincia para cada um de ns.
Intumos que ainda no sistematizamos com a necessria profundidade esta criao coletiva e
por isto conclumos o texto com o breve item Um pouco do muito que aprendemos, mas suspeitamos
que pode ser nela que resida o carter inovador que alguns de nossos interlocutores viram nesta
pesquisa. E vamos ficar muito contentes se pudermos contribuir tambm para a construo de
processos de trabalho em pesquisa que apontem alternativas de como produzir conhecimento de forma
compartilhada com sujeitos de diferentes campos do conhecimento, de diferentes instituies e
formaes, nutrindo o caudal de um paradigma emergente de cincia. Construir, ainda, percursos
metodolgicos onde os sujeitos que vivenciam os fenmenos estudados no sejam meros
informantes, mas tambm membros de uma Comunidade Ampliada de Pesquisa (Dantas, 2009),
no sentido de serem envolvidos nas diversas fases do processo de produo do conhecimento, em
especial, nos momentos reflexivos e analticos, que possuem potencial de transformao do vivido.
Este um desafio e uma esperana.
Assim, o captulo est estruturado da seguinte forma:
1. Como nasce a pesquisa
2. Constituindo a equipe interdisciplinar e suas teias de relaes
3. O desenho da pesquisa
4. De como os caminhos metodolgicos foram se delineando no processo da pesquisa
5. Um pouco do muito que aprendemos
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1. Como nasce a pesquisa
A pesquisa Estudo epidemiolgico da populao da regio do Baixo Jaguaribe exposta
contaminao ambiental em rea de uso de agrotxicos nasceu da inquietao de homens e mulheres
com as conseqncias da matriz tecnolgica que orienta o agronegcio, envolvendo produo em larga
escala, monocultura, incorporao de tecnologias mecanizadas de plantio e irrigao, e,
particularmente, vasta utilizao de agrotxicos.
O episdio gerador deste projeto de pesquisa foi a divulgao de informaes sobre o nmero
de internaes por intoxicao por pesticida no estado do Cear nos anos de 2004/2005. Os dados
divulgados pelo Ncleo de Epidemiologia da Secretaria Estadual de Sade, aps questionamento do
Conselho Gestor do Centro Estadual de Referncia em Sade do Trabalhador do Cear (CEREST)
Manoel Jacar, indicavam que o nmero de internaes quase dobrara, passando de 639 casos em 2004
(8,1/100.000 hab./ano) para 1106 em 2005 (13,7/100.000 hab./ano), configurando-se num quadro
bastante grave e preocupante. Embora este nmero fosse bastante elevado, havia indcios de que eles
estivessem ainda subestimados, considerando que foram tomados apenas os dados relativos ao Sistema
de Informaes Hospitalares, que no registra os casos que no necessitaram de internao para
tratamento, como pode ser o caso de intoxicaes sub-agudas ou crnicas, ou mesmo os casos agudos
leves. A maioria dos casos, tanto em 2004 como em 2005, foi causada por acidentes (96,9% e 98,1%,
respectivamente). Os casos ocorreram predominantemente na regio do Baixo Jaguaribe, na Chapada
do Apodi. Os municpios de Limoeiro do Norte, Tabuleiro do Norte e Jaguaribe apresentaram os
maiores nmeros de casos: respectivamente, 414, 117 e 99. Foi detectado um alto nmero de casos
tambm nos municpios de So Joo do Jaguaribe (70), Alto Santo (69), Quixer (63), Pereiro (45),
Potiretama (37), Jaguaribara (34) e Erer (30). Todos eles esto na rea de implantao de grandes
projetos de agronegcio, envolvendo empresas produtoras de frutas para exportao.
Estes casos causaram preocupao aos movimentos sociais e comunidade cientfica. Uma
manifestao de cerca de 500 mulheres da Via Campesina, objetivando denunciar o uso de
agrotxicos e seus impactos sobre a sade, as guas e a biodiversidade, bloqueou a Estrada do
Agronegcio, em Limoeiro do Norte"1, em maro de 2007.
Os rgos pblicos responsveis, segundo a Lei 7.802/89 sade, ambiente e agricultura, no
esclareceram uma srie de questes fundamentais, como: quais os tipos de agrotxicos usados nestas
regies e que tm causado estas intoxicaes; em que quantidade foram utilizados; em quais cultivos;
se houve receiturio agronmico; quais as condies de transporte e armazenamento; quais as formas
de aplicao; como foram utilizados e qual a destinao dos resduos e embalagens. Tambm no
dispnhamos de informaes oficiais sobre o meio ambiente, no tocante a contaminao do solo, das
guas superficiais e subterrneas, como tambm da contaminao dos alimentos e a extenso da perda
de biodiversidade. Ou seja, evidncias epidemiolgicas da existncia de danos sade e de riscos, ao
lado da ausncia de evidncias de efetivas medidas de monitoramento, controle e preveno.
Numa feliz coincidncia, quando da divulgao dos dados referidos e da discusso dos
mesmos, foi lanado o Edital: MCT-CNPq/MS-SCTIE-DECIT/CT- Sade N 24/2006, com a linha
de apoio para Estudo epidemiolgico em populaes expostas contaminao ambiental em reas de
1 (www.mst.org.br/acesso em 07.mar.2007)
3
uso de agrotxicos na regio nordeste NE. Era o momento oportuno para transformar as
preocupaes e indignao em ao concreta, em pesquisa engajada e comprometida em responder as
questes de sade pblica que se apresentavam.
Uniram-se no desafio da construo do projeto pesquisadores de instituies de ensino:
Universidade Federal do Cear (UFC), Universidade Estadual do Cear (UECE); tcnicos do Instituto
Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA), da Secretaria de Sade do Estado, da Escola de
Sade Pblica, da Secretaria Municipal de Sade de Fortaleza; e integrantes do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), da Comisso Pastoral da Terra e do Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB). Na integrao entre academia, servios de sade e movimentos
sociais, o projeto de pesquisa foi gerado, pactuando compromissos de dilogo e cooperao. Foi
definido o foco no Baixo Jaguaribe, especialmente nos municpios de Limoeiro do Norte, Quixer e
Russas (ver mapas no captulo 3).
2. Constituindo a equipe interdisciplinar e suas teias de relaes
O projeto de pesquisa foi acolhido no Ncleo Tramas Trabalho, Meio Ambiente e Sade,
vinculado ao Departamento de Sade Comunitria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
do Cear. O Ncleo estrutura as aes de pesquisa, ensino e extenso ligadas linha Produo,
Ambiente, Sade e Cultura no Nordeste Brasileiro na Ps-Graduao em Sade Coletiva da UFC.
Gestado por diferentes mos e coraes, o projeto assumiu o objetivo de desenvolver um
estudo epidemiolgico da populao da regio do Baixo Jaguaribe exposta contaminao ambiental
em rea de uso de agrotxicos, compreendendo as diversas dimenses que compem este complexo
objeto de estudo. Tais objetivos exigiram a composio de uma equipe multiprofissional, que
possibilitasse diferentes aportes sobre o problema, trabalhando de forma integrada e cuidando de
anlises que nos aproximassem da compreenso da totalidade.
Trata-se, portanto, de pesquisa interdisciplinar, envolvendo diversos olhares sobre a realidade,
numa perspectiva crtica e transformadora. Neste contexto, uma investigao que deve ser
radicalmente diferenciada daquela preconizada pelo positivismo, que defende o absoluto do fenmeno,
abandonando a considerao das suas causas. Para alm do positivismo, esta pesquisa inseriu-se no
campo do pensamento complexo, buscando as interrelaes entre os diversos fenmenos da realidade,
rompendo com os limites da simplificao e do reducionismo, como apontado no captulo 1.
Na equipe da pesquisa contamos com dezesseis formaes profissionais, cerca de metade
delas extrapolando o que se conceitua comumente rea da sade: agrnomos, gegrafos,
mdicos, enfermeiras, fonoaudiloga, assistente social, psicloga, fisioterapeuta, pedagogo,
bilogo, farmacuticas, gelogo e economista, educador fsico, alm de estudantes de medicina,
enfermagem, direito e cincias ambientais, em iniciao cientfica. Participaram professores da
Universidade Federal do Cear, procedentes dos Departamentos de Geografia e de Sade
Comunitria. Boa parte dos membros da equipe so alunos do Programa de Ps-Graduao em
Sade Coletiva da Universidade Federal do Cear, na linha de pesquisa Produo, Ambiente,
Sade e Cultura no Nordeste Brasileiro, ou ex-alunos dele, seguindo hoje no Ncleo Tramas.
Participaram ainda da pesquisa uma ento doutoranda do Programa de Ps-Graduao em
Sade Pblica USP, inserida na Escola de Sade Pblica do Cear, alm de profissional do INCRA.
De fora do estado, houve uma parceria com o Grupo de Estudos de Sade do Trabalhador Rural/
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GESTRU, da Universidade Federal de Minas Gerais. De Braslia, participaram um pesquisador da
Embrapa e um professor da Universidade de Braslia. E de Pernambuco, pesquisadora da
Fiocruz. De movimentos sociais, tivemos conosco uma representante da Comisso Pastoral da
Terra (CPT) e uma liderana e uma mdica do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST).
Mas qual o cimento que une este grupo? Talvez mais adequado seja falar de uma resina
como as vegetais: ela vai sendo produzida cotidianamente, se modifica e se adqua de forma dinmica.
No princpio, alguns elementos j estavam colocados, como o reconhecimento da necessidade (e o
desejo) de dilogo com outras reas do conhecimento e com outros saberes. Vrios de ns, pela
experincia anterior de pesquisa ou pelo contato com os campos da Sade do Trabalhador e da Sade
Ambiental, j havamos apreendido a relevncia do desafio a contido. E por isso nos identificamos e
nos escolhemos enquanto espao coletivo de produo de conhecimento.
Por outro lado, nos une a cosmoviso da indignao com a injustia, a desigualdade e a
destruio da natureza convico de que este estado do mundo foi produzido historicamente pela
sociedade humana, como resultado de uma correlao de foras que preciso e possvel alterar, em
favor dos mais vulnerveis, do permanente processo de emancipao das pessoas, grupos e classes
sociais, em profunda conscincia da interdependncia entre ns e a natureza. Estes elementos de uma
cosmoviso demandam a construo de uma trajetria coerente no mundo, seja na forma como damos
vida nossa interveno no espao acadmico bem alm do discurso da neutralidade; seja na relao
universidade-movimentos sociais num dilogo que no cabe na noo clssica de extenso; seja
nas escolhas que norteiam nossas vidas de cidados, familiares ou pessoais. Em suma, situando-nos
enquanto um grupo no caudal da contra-hegemonia, tivemos colocado no centro do trabalho de
pesquisa o compromisso de contribuir no processo de emancipao e bem viver destes grupos sociais2.
2 No momento em que escrevia este pargrafo (21.04.2010) recebemos a notcia do assassinato do Jos Maria Filho, liderana da Comunidade do Tom, atuante nas questes da contaminao ambiental por agrotxicos. Documentando a resina que nos une enquanto equipe, um membro do grupo enviou-nos em seguida este poema: Projetos de Pesquisa... Pesquisa para quem? Pesquisa para vida. Pesquisa de quem vem? Pesquisa de quem fica. Que vida gera? Que gera vida? Que morte era? Que morte fica? Mensagem de quem luta... Que a luta a mensagem! Que a dor a passagem. Legado Roubado Assassinado Calado Pesquisado... ... a cova que te cabe nesse latifndio envenenado! ... luta que nos deixa, com seu sangue derramado! o "Deus" desenvolvimento... Universal ?! Inquestionvel ?! Onipresente ?! o Capital Inabalvel Onisciente o Animal Indisfarvel
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Formamos, assim, uma Comunidade de Pesquisa, como docemente nos nomeou o Prof. Alcides
Miranda, aps participar de uma Oficina de Planejamento com o grupo.
Ao longo da pesquisa, fizemos vrios exerccios de compreenso e anlise do objeto de estudo,
em contexto de dilogo inter/transdisciplinar, rumo a uma ecologia de saberes. A necessidade de criar
bases e vnculos para a pesquisa junto aos sujeitos, comunidades e autoridades da regio foi ficando
cada vez mais clara para ns: o problema em estudo vivido por eles; eles detm conhecimentos
especiais e insubstituveis; a eles caber apropriar-se do processo e dos resultados como esperamos
ferramentas de transformao e emancipao. Para tanto, tambm aportaram seu saber e seu
compromisso atores sociais da regio, como professores da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano
Matos FAFIDAM, da Universidade Estadual do Cear UECE, do CENTEC (hoje IFCE), tcnicos
da Diocese e da Critas de Limoeiro do Norte, sindicatos de trabalhadores, ONGs locais como o
Instituto de Educao e Poltica em Defesa da Cidadania/IEPDC, profissionais do SUS, com os quais
realizamos reunies, oficinas, seminrios, consultas, avaliaes.
Tambm estava clara a importncia de aproximao com o poder pblico nos nveis federal,
estadual e local, tendo em vista o papel do Estado na garantia de direitos aos cidados e, ao mesmo
tempo, a distncia a vencer entre as polticas pblicas e as necessidades das populaes. Assim, fomos
ampliando teias de dilogos e apoios com a Promotoria de Meio Ambiente do Ministrio Pblico
Estadual e do Ministrio Pblico do Trabalho no Cear e em Limoeiro do Norte, com as Clulas
Regionais de Sade que abrangiam os trs municpios estudados, e mais seus Secretrios Municipais
de Sade e as Coordenaes da Ateno Bsica e da Vigilncia, com o Centro Estadual de Referncia
em Sade do Trabalhador do Cear CEREST/CE, e com o Departamento de Sade Ambiental e
Sade do Trabalhador DSAST do Ministrio da Sade, alm de tentativas menos exitosas de
envolver a Secretaria Estadual de Sade3.
Esta equipe iniciou a construo de nossa trajetria metodolgica com o estudo bibliogrfico
sobre vrios aspectos do problema em estudo e com a realizao de uma oficina em que pesquisadores
que j haviam realizado estudos na regio, profissionais de sade envolvidos com polticas pblicas e
movimentos sociais do campo trouxeram seus olhares. Em seguida organizamos dois cursos um de
Epidemiologia Ambiental, ministrado pelo Prof. Volney Cmara/UFRJ, e outro sobre o Paradigma da
complexidade e os desafios da metodologia de pesquisa interdisciplinar, conduzido pela Profa. Lia
Giraldo Augusto/Fiocruz-PE; que nos permitiram apropriar e debater conceitos, ao tempo em que
construamos uma linguagem comum entre ns. Sentimo-nos em condio, ento, para realizar a
primeira visita exploratria em campo, e no Box 1 apresentamos fragmentos do dirio de campo sobre
Complacente Projetos tm lado! Pesquisa tem lado! Estou do lado do Severino, Do Z Maria-Severino Do Z-Severino Dos Zs: somos todos Zs!! Presente, Presente, Presente!!! Vicente Almeida (Z)
3 Na trajetria em campo, pelos conflitos envolvidos em abordar questes que tangenciam interesses de grandes grupos econmicos, houve momentos que a segurana da equipe esteve ameaada e agentes da segurana pblica nos foram disponibilizados
para garantir a integridade da equipe.
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ela.
Box 1 Complexidade, Perplexidade e Criatividade
Estvamos perplexos com a complexidade de nosso campo emprico. A primeira visita
exploratria da nossa equipe ao territrio tinha sido riqussima gente de muito diferentes formaes
lanando seus olhares sobre a Chapada, o rio Jaguaribe, o canal do permetro irrigado, a extenso do
bananal, a placa da associao dos ex-irrigantes sem terra (?!), o olhar perdido do mdico do posto
de sade diante de nossas perguntas, o eco dos textos do Idelbrando contando a histria dos pomares,
dos cataventos, da cera da carnaba; o medo dos trabalhadores de falarem sobre o seu trabalho...
No nibus, no retorno da primeira ida a campo, uma verdadeira assemblia inter-trans-
disciplinar, trocando observaes, pontes, textos, referncias, afinando conceitos, tecendo perguntas,
ensaiando hipteses... Cabeas e almas em ebulio, o corpo suado e a bota cor da terra.
Questes afloravam e multiplicavam-se: Como desenhar um estudo epidemiolgico ali?! Como
determinar um n a ser amostrado e investigado? N de que? Tem muita gente exposta a
agrotxicos! Mas, como misturar o trabalhador do agronegcio, que acabou de perder sua terra e se
proletariza em 1300 hectares, com um outro que ainda resiste e tenta produzir em seus 4 hectares? Ou
que, acossado pelas dvidas, faz uma parceria com a grande empresa? E, falando delas, h
diferenas entre as nacionais e as que vm de fora? O pacote tecnolgico do parceiro o mesmo da
grande empresa mas ser que o risco tambm o mesmo? Como se distribuem as toneladas de
agrotxicos que informaram no EIA/RIMA?
As descobertas e o cruzamento de informaes tecem uma rede de relaes que se implicam
mutuamente, revelando a complexidade do real: no assentamento de reforma agrria, comearam
dizendo que no usavam veneno, mas depois foram abrindo o armrio caseiro (onde guardam o
frasco de 1 litro que, com muito custo, juntaram dinheiro para comprar e usar o ano todo); a
embalagem rebolada no mato; o curso de agricultura orgnica que o jovem Reginaldo fez; os dois
casos de malformao congnita existentes na comunidade; o gostoso poder que gozam agora de no
ter que expurgar contra o vento, porque no tem mais patro mandando ganhar tempo... J em Lagoa
dos Cavalos, comunidade agroecolgica, nem pensar em veneno! As abelhas so como filhas,
cuidadas e poupadas. Do seu mel, das cabras, da agrofloresta vivem h anos. A natureza no deixou
de ser sagrada l.
No Tom, as monoculturas (banana, melo, abacaxi) encostando nas cercas dos quintais, as
roupas secando no varal ficam fedendo a veneno quando passa o avio pulverizando: tem que lavar
de novo, me explicou o Z Maria. Mas a gua que vem pelo canal, descoberto, no tem como lavar.
Ser que o veneno cai nela? Ser que d para dosar ou ele degrada rpido, com a luz do sol? De
qualquer forma, com esta gua mesmo que a me vai ter que fazer a mamadeira do nenm. A
promotora quer provas da contaminao para acionar as empresas. S com provas, sempre maiores
do que as que as comunidades conseguem produzir, reclamaram as lideranas.
Um trabalhador que passou 15 anos em So Paulo chegou esperto e disse que a empresa usa
veneno proibido no Brasil. Mas, o patro tem suas artimanhas: coloca tudo num caminho ba
amarelo quando vem a fiscalizao, e esconde no meio do mato. Mas medo mesmo as empresas tm
do Eurepegap o passaporte delas para entrar no mercado europeu com suas frutas. Quando chega
a auditoria deles, haja se virar!
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E prosseguem as falas de cada pesquisador, no retorno da frtil visita exploratria: o SUS
transformou os casos de intoxicao que apareceram no SIH em erros de digitao, mas no assinou;
a responsvel pela vigilncia muito simptica, mas tem sempre muitas tarefas. No sindicato, os
trabalhadores confiam pouco. Na unidade de sade, se o paciente da grande empresa, o mdico no
quer dar atestado.
Foi diante de tudo isto (e muito mais) que a gente comeou a desconfiar que a exposio ao
perigo agrotxico acontece num contexto delineado por n (agora sim!) dimenses, fatores,
aspectos, que precisam ser identificados, compreendidos e articulados adequadamente, para que se
possa estimar o risco, aproximar do real e propor caminhos de sustentabilidade. Foi assim que a
gente comeou a falar em contexto de risco, e ver como equacionar isto do ponto de vista
metodolgico.
3. O desenho da pesquisa
Se o problema das populaes expostas em reas de contaminao ambiental por agrotxicos
objeto de nosso estudo foi situado e compreendido preliminarmente neste contexto de inter-relaes
complexas, tnhamos que construir um desenho do estudo que permitisse abordar estas diferentes
dimenses em suas especificidades e, ao mesmo tempo, empreender o esforo de integr-las no plano
analtico e sinttico. Nos agravos sade, o corpo dos trabalhadores e moradores da regio registra e
expressa de alguma forma o contexto histrico-social de risco em que esto vivendo. Ler e interpretar
estes registros dar incio a um processo de desocultamento das caractersticas do modo de produo e
consumo, evidenciando a desigualdade na distribuio dos benefcios e dos danos do modelo de
desenvolvimento em curso, como nos alerta o conceito de Injustia Ambiental.
Para ser coerente com esta compreenso, ela deveria estar refletida no desenho
metodolgico da pesquisa. Assim, ela foi organizada em quatro estudos, como pode ser visto na
Figura 1: a) Caracterizao do contexto scio-histrico; b) Caracterizao ambiental e avaliao da
contaminao; c) Caracterizao da exposio humana e dos agravos sade relacionveis aos
agrotxicos; d) Resistncia e alternativas ao desenvolvimento, e construo da poltica local de sade
do trabalhador e sade ambiental.
Figura 1 - Viso geral dos estudos que compem a Pesquisa
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Para nos proteger do risco da fragmentao, desde o incio foi assumida a necessidade de
permanente dilogo e alimentao recproca entre os estudos, seja na demanda da produo de
informaes e conhecimentos que cada um fazia ao outro, seja no debate integrador deles no
conjunto do processo de aproximao do territrio.
Aqui se inserem tambm os outros saberes, para alm do cientfico, abrigado nas
comunidades tradicionais, no conhecimento campons, na experincia de militantes sociais e dos
trabalhadores pblicos. Com eles dialogamos permanentemente, atravs de reunies, seminrios,
oficinas, entrevistas, como est detalhado no item 4 deste captulo. Alm de agregar qualidade
produo de conhecimentos, tambm uma forma de cumprir a funo social da pesquisa e alimentar
seu compromisso com a resoluo de problemas que ameaam a vida e a sade, na medida em que se
cuida de comunicar com o territrio local em todo o tempo do trabalho cientfico, e no apenas ao
final, divulgando resultados.
A pesquisa foi aprovada pelo Comit de tica em Pesquisa da Escola de Sade Pblica, atravs
do Protocolo CEP/ESP-CEN 53/200, tendo sido cumpridas todas as exigncias da Resoluo 196/96
do Conselho Nacional de Sade, conforme detalhado na introduo da Parte II.
Apresentamos, a seguir, aspectos gerais da metodologia de cada um destes estudos, que
foram alm da desnecessria polarizao entre o quantitativo e o qualitativo, e envolveram desde as
tcnicas epidemiolgicas at a abordagem etnogrfica, passando pela avaliao da contaminao
ambiental e a pesquisa-ao.
Estudo 1: Caracterizao do contexto da exposio humana aos agrotxicos
Em primeiro lugar, procuramos conhecer os aspectos histricos, econmicos, demogrficos,
poltico-institucionais e scio-ambientais dos territrios onde est acontecendo a exposio humana a
agrotxicos. Isto foi feito por meio de estudo bibliogrfico e contato direto com grupos de
pesquisadores da rea de Geografia, Sociologia, Agronomia e Recursos Hdricos, com estudos j
realizados na regio, nela entendida tambm a poro potiguar da Chapada do Apodi, onde processos
produtivos semelhantes se desenvolviam h mais tempo. Atravs das redes sociais, fomos tambm
identificando o campo social e seus atores instituies de ensino, religiosas, governamentais,
Estudo 1:Caracterizao do contexto sciohistrico da
exposio humana aos agrotxicos
Estudo 2: Caracterizao ambiental e avaliao da
contaminao da rea por agrotxicos
Estudo 3: Caracterizao da exposio humana e dos
agravos sade relacionveis aos
agrotxicos
Estudo 4: Alternativas ao Desenvolvimento; Sade do
Trabalhador e Sade Ambiental no SUS
Comunicao permanente com
os sujeitos do territrio local
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entidades e movimentos sociais, polticos. Foi dada nfase caracterizao dos modelos de produo
agrcola estabelecidos, caracterizados no projeto inicial como agronegcio, agricultura familiar e
assentamentos de reforma agrria, no intuito de elaborar categorias analticas que possibilitassem a
caracterizao dos principais segmentos expostos e seus contextos de risco, com vistas a subsidiar o
desenho do estudo epidemiolgico.
Seguindo nos estudos em campo, nos aproximamos das Comunidades da Chapada do Apodi -
Cabea Preta, Baixa Grande, KM 60, KM 68, Santa Maria, Santa F, Tom em Limoeiro do Norte e
Quixer para, atravs de observao direta, entrevistas semi-estruturadas e registros fotogrficos,
construir o Diagnstico Socioeconmico das Comunidades (Sampaio et al, 2008). Abordamos tambm
a Federao das Associaes de Produtores do Permetro Irrigado Jaguaribe-Apodi FAPIJA,
importante espao e ator nos processos em curso.
Fomos ento verificando que o contexto de exposio aos agrotxicos bastante diferenciado
nos diferentes segmentos sociais, incidindo diversamente no s sobre o processo sade-doena, mas
tambm sobre as estratgias de interveno. Foram assim caracterizados trs segmentos: Empresas de
fruticultura voltadas para a exportao e seu entorno; Pequenos agricultores, voltados para o mercado
nacional/regional; Comunidades produzindo para subsistncia e mercado regional/local (Figura 2).
Figura 2: Principais modelos de produo e segmentos sociais identificados no Baixo Jaguaribe
No primeiro segmento est a fruticultura irrigada para exportao (abacaxi, banana e melo,
principalmente), com modo de gesto integrada s redes mundiais de capital, com uso intensivo de
agrotxico - para o qual dispe de mais recursos financeiros e de informao. Por seu porte e escala,
este segmento cria novas condies territoriais que afetam tambm aos demais segmentos. Tambm
neste segmento esto pequenos e mdios agricultores que se relacionam com o agronegcio atravs de
contratos de integralizao comercial os chamados parceiros, especialmente na produo da
banana, que desenvolvem o mesmo processo tcnico de produo.
Empresas de fruticultura voltadas
para a exportao e seu entorno
Abacaxi
Melo
Banana
Pequenos agricultores voltados para o mercado
nacional/regional
Agricultores no Permetro
irrigado/FAPIJA
Agricultores de sequeiro
Comunidades produzindo para
subsistncia e mercado regional/local
Assentamento de Reforma Agrria
Comunidades tradicionais em
transio agroecolgica
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O segmento dos pequenos agricultores bastante heterogneo, compreendendo aqueles que
tm terras dentro do Permetro Irrigado Jaguaribe-Apodi, sendo assim associados Federao de
Associaes (FAPIJA). Compreende tambm aqueles que tm terras fora deste Permetro,
desenvolvendo agricultura de sequeiro, bem como seus empregados, muitas vezes diaristas. Sua
produo est mais voltada para gros, como milho, feijo e soja. Embora operem em escala territorial
e produtiva menor, e contem com recursos mais limitados para despesas com agroqumicos, a eles
freqentemente atribuda culpa pelos casos de intoxicao e contaminao, desinformao e
resistncia ao uso de Equipamentos de Proteo Individual (EPIs).
O terceiro segmento est focado, principalmente, na produo de subsistncia e se articula com
o mercado local, baseado em tcnicas de manejo que respeitam a biodiversidade e cultura locais. So
camponeses vivendo em minifndios assentamento de reforma agrria e comunidades em transio
agroecolgica, que resistiram aos programas governamentais de modernizao da agricultura
regional. o grupo mais vulnervel aos efeitos da degradao scio-ambiental promovida pela onda
verde irrigada.
Estudo 2: Caracterizao ambiental e avaliao da contaminao da rea por agrotxicos
A proposta metodolgica desenhada inicialmente para a caracterizao e avaliao da
contaminao ambiental da rea por agrotxicos, apoiou-se no Modelo DRASTIC, que permite o
mapeamento e determinao da vulnerabilidade das guas subterrneas, baseado em sete parmetros
(D - profundidade da zona no-saturada; R - recarga do aqfero; A - material do aqfero; S - tipo de
solo; T topografia; I - material da zona no-saturada; C - condutividade hidrulica) (Aller, 1987).
Este mtodo inclui ndices de vulnerabilidade formados por parmetros hidrogeolgicos, morfolgicos
e outras formas de parametrizao das caractersticas dos aqferos de modo bem definido. Para sua
eficaz aplicao deve-se ter como pressupostos que o contaminante introduzido superfcie do
terreno, e no diretamente no aqfero, deslocando-se com a mesma mobilidade da gua,
verticalmente, at alcanar o aqfero, permitindo mapear satisfatoriamente as reas com potencial
susceptibilidade contaminao.
As inseres no campo emprico e as aproximaes com a complexidade do objeto que envolve
a utilizao de agrotxicos apontou importantes limitaes para a aplicao do mtodo DRASTIC, seja
no que diz respeito obteno de dados hidrogeolgicos e morfolgicos em quantidade e qualidade,
seja pelo fato de no possibilitar a obteno de informaes sobre a vulnerabilidade das guas
superficiais, especialmente aquelas do canal de irrigao do permetro irrigado, consideradas de grande
importncia por estarem expostas diretamente pulverizao area, e serem a principal fonte de
abastecimento humano das comunidades na regio do estudo.
Por outro lado, o cenrio do estudo revelava mltiplas dimenses que conformam o contexto de
risco em populaes expostas a agrotxicos, que se articulavam e definiam novas formas,
apresentando-se como se fosse uma mandala. Cada incurso no campo mostrava a necessidade de
uma metodologia que agregasse elementos tcnico-cientficos transformao da realidade dos
agentes sociais envolvidos.
Foi ficando claro que a caracterizao socioambiental da rea do estudo carecia de elementos
essenciais sua determinao, e por seu carter complexo precisava ser tecida junto com os sujeitos,
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nas viagens exploratrias, em entrevistas com os trabalhadores, moradores das comunidades e
lideranas locais, considerando as subjetividades e percepes, impossveis de serem expressas
somente em nmeros, em equaes matemticas. Dessa forma, o estudo se distanciou do mtodo
DRASTIC e incorporou a abordagem ampliada da vulnerabilidade das populaes expostas aos
agrotxicos.
Para montar o mosaico dessa complexa trama de inter-relaes envolvidas na caracterizao do
risco socioambiental, o mtodo foi sendo tecido pela soma de elementos, que so mais detalhadamente
apresentados especialmente no captulo 5:
Caracterizao scio-ambiental da rea e elaborao de mapas;
Evoluo da rea plantada, cultivos e estimativa de uso de agrotxicos;
Identificao do fluxo dos agrotxicos, da aquisio ao descarte, e definio das rotas de
contaminao;
Estudo in loco dos processos de produo e das prticas de gesto em relao aos agrotxicos;
Anlise dos Estudos de Impacto Ambiental das empresas e projetos de irrigao, bem como de
outros dados secundrios disponveis sobre os compartimentos ambientais;
Mapeamento das vulnerabilidades socioambientais junto s comunidades;
Acompanhamento da pulverizao area;
Pesquisa de resduos de agrotxicos em amostras de gua superficiais e subterrneas,
sedimento e solo;
Estudo da percepo de risco de trabalhadores e moradores;
Avaliao dos mecanismos institucionais de monitoramento, controle e preveno.
Cabe ressaltar o estreito e permanente dilogo e articulaes mantidas com o campo emprico,
pesquisadores e movimentos sociais, como forma de correo de rumos, enfrentamento e superao
dos desafios do estudo. Os pesquisadores, aqui, eternos aprendizes, apontam nova maneira de definir o
caminho metodolgico em um campo do conhecimento entranhado de incertezas cientficas, de
desconhecimento das mltiplas formas de interao dos agrotxicos e seus metablitos, da fragilidade
do Estado em vigiar, promover e proteger a sade dos cidados. Aprendemos que o caminho se faz
caminhando (Freire et Horton, 2009).
Estudo 3: Caracterizao da exposio humana e dos agravos sade relacionveis aos
agrotxicos
O estudo epidemiolgico propriamente dito adotou estratgias metodolgicas diversificadas:
entrevista estruturada, exame clnico, anlises laboratoriais - detalhadamente descritas na segunda
parte do captulo 6; grupos focais; estudo do processo de trabalho em cada modelo de produo
estudado, atravs de observao direta e informantes-chave; estudo da incidncia de cncer entre
trabalhadores rurais no Estado do Cear; busca ativa de casos de intoxicao por agrotxicos em
servio de emergncia; investigao de causa de morte de trabalhador do agronegcio.
Foi realizada entrevista estruturada com um total de 545 sujeitos, pertencentes aos diferentes
segmentos constantes da Figura 2. O roteiro de entrevista constou de 87 questes organizadas em nove
blocos temticos, a saber:
Caractersticas socioeconmicas
12
Hbitos de vida
Histria familiar
Caracterizao do trabalho
Caracterizao das relaes de trabalho
Caracterizao da exposio do trabalhador
Orientaes para o trabalhador em rea de uso de agrotxicos e medidas de controle do risco
adotados pela empresa
Caracterizao clinico toxicolgica
Histria clnica e exame fsico do trabalhador
O instrumento bsico foi adaptado s especificidades de cada segmento e grupo estudado,
mantendo sua estrutura geral. A entrevista foi realizada por diferentes profissionais de sade, sendo
que os dois ltimos itens foram conduzidos por mdicos. Foi seguida da coleta de material biolgico
para realizao de anlises laboratoriais, de acordo com o protocolo adotado pelo Centro de Referncia
em Sade do Trabalhador da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG:
Hemograma completo
Glicemia
Colesterol total e fraes
Triglicrides
Protenas: totais, globulinas, albumina
Funo Renal: uria, creatinina
Bilirrubinas
Funo heptica: albumina, fosfatase alcalina, transaminases oxalactica e pirvica, Gama
globulina
Sumrio de Urina
Exame parasitolgico de fezes
Tivemos clara a necessidade de contatar os trabalhadores fora de seu local de trabalho, de
forma que pudessem escolher livremente participar e falar na pesquisa. E de faz-lo de forma a no os
expor a situaes de maior vulnerabilidade, tendo em vista a possibilidade e o medo de perder o
emprego. Este medo, fortemente presente entre os trabalhadores do agronegcio, somou-se a outras
dificuldades, como a falta de cooperao das empresas para nos fornecer uma listagem de seus
empregados, e a alegada inexistncia dela no sindicato de trabalhadores, para nos fazer assumir que
se tratava de uma populao de difcil acesso. Assim como tem acontecido em outros estudos
epidemiolgicos, nos reconhecemos impossibilitados de trabalhar com uma amostragem aleatria.
Partimos ento para a estratgia das redes sociais, acessadas atravs de agentes comunitrias de
sade, de lideranas sindicais e comunitrias e de movimentos sociais. A abordagem dos trabalhadores
acontecia nos finais de semana, em prdios pblicos de seus bairros/comunidades escolas, igrejas,
unidades de sade, a partir da apresentao dos objetivos da pesquisa, da leitura conjunta do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), do esclarecimento das dvidas e da adeso ou no dos
convidados.
Desde o teste do instrumento de entrevista estruturada, ficou clara a vontade dos trabalhadores
de falar mais sobre seu trabalho e foi isto que nos levou a introduzir na metodologia tambm a
13
realizao de grupos focais por segmento de trabalhadores, dos quais participavam entre 8 e 15
pessoas, em sesses orientadas por questes sobre como viam as transformaes em curso no
territrio, especialmente o trabalho, o ambiente e a sade. Aps os mesmos procedimentos ticos
descritos acima, os grupos focais eram gravados para posterior transcrio.
Tambm realizamos o estudo do processo de trabalho nas empresas, unidades de pequenos
produtores, assentamento e comunidade em transio agroecolgica. O estudo foi orientado por roteiro
adaptado a partir do proposto por Rigotto (2004), e tambm contemplava as especificidades de cada
segmento, contendo basicamente os seguintes blocos de informao:
Identificao da empresa/unidade
Aspectos histricos
Processo de produo
Organizao do trabalho
Instalaes da empresa/unidade
Descrio das condies ambientais de trabalho
Agrotxicos e prticas de manejo
Relao com o meio ambiente
Ateno sade
Das quatro grandes empresas includas na amostra, trs responderam afirmativamente
solicitao formal de acesso aos locais de trabalho para coleta de informaes e observao direta,
aps nveis diferenciados de pedidos de esclarecimentos e postergao. Em um dos casos, houve a
intermediao de uma auditora do Ministrio do Trabalho e Emprego. Via de regra, esta atividade
durava entre 4 e 7 horas, e foi autorizado o registro imagtico na maioria das instalaes e operaes.
Em uma das empresas, foram colocados sucessivos obstculos e exigncias, no sendo possvel a
realizao da atividade. Aps a atividade, a equipe elaborava coletivamente o relatrio correspondente,
organizando as informaes e imagens coletadas.
Realizamos ainda estudo com o objetivo de identificar a incidncia de cncer entre
trabalhadores rurais no Estado do Cear, a partir dos registros de internaes hospitalares no Instituto
do Cncer do Cear (ICC) e das Autorizaes de Procedimentos de Alta Complexidade (APAC)
(Ellery et al, 2008).
No intuito de avaliar um possvel subdiagnstico de quadros de intoxicao por agrotxicos,
fizemos tambm busca ativa de casos, acompanhando o atendimento no setor de triagem do Hospital
pblico de Limoeiro do Norte, no ms de julho de 2009, a partir de roteiro especfico.
Ainda no mbito deste estudo, foi investigada a morte de um trabalhador do almoxarifado
qumico da monocultura do abacaxi, cujo bito teve como causa hepatopatia grave de provvel
etiologia induzida por substncias txicas. O laudo foi entregue viva e ao Ministrio Pblico do
Trabalho, sob requisio (Rigotto et al, 2010a).
Os resultados deste estudo esto apresentados nos captulos da Parte II do livro. Ressaltamos
que o banco de dados organizado bastante extenso, e que muitas anlises ainda sero possveis.
14
Estudo 4: Alternativas ao desenvolvimento e construo da poltica local de Sade do
Trabalhador e Sade Ambiental
Construo de alternativas ao desenvolvimento em comunidades em transio agroecolgica:
Compreender como comunidades agrcolas em transio agroecolgica Lagoa dos Cavalos,
Junco, Barbato e Crrego Salgado, municpio de Russas, Cear, tm construdo alternativas ao
desenvolvimento em defesa de seu modo de vida e como estratgia de resistncia expanso do
agronegcio na sub-bacia do Baixo Jaguaribe: este foi o objeto deste estudo (Braga, 2010). O campo
em estudo refere-se a comunidades rurais que tm buscado formas de autogesto por alternativas
agroecolgicas de convivncia com o semirido, situadas no municpio de Russas. Elas agora esto
ameaadas pelo projeto Tabuleiro de Russas, para expanso de permetros irrigados na lgica da
modernizao agrcola conservadora, que integra o Programa de Acelerao do Crescimento (PAC).
Num contexto de desenvolvimentismo, conforma-se o conflito ambiental com disputa em torno de
recursos naturais, prioritariamente gua e terra.
Como caminho para conhecer o modo de vida tradicional e o conflito em curso, utilizamos a
abordagem terico-metodolgica fundamentada em J. Thompson (1995) conhecida por hermenutica
de profundidade (HP). A construo deste referencial terico transita tambm pelos autores
Malinowsky (1978) e Geertz (1989) que aliceraram o processo de pesquisa de campo.
Um conjunto de ferramentas foi utilizado para contemplao dos objetivos deste projeto. O
desenho metodolgico interrelaciona a observao participante como cerne da proposta e todas as
demais tcnicas utilizadas, como: entrevistas individuais, documentao fotogrfica, anlise
documental e oficinas sobre biodiversidade e saber popular, sobre resgate da memria local e de
fotografias e, perspectiva dos jovens para a terra.
Como caracterstico da opo metodolgica, o cronograma de atividades ocorreu em um
perodo de dois meses de trabalho de campo mais intensamente (abril e maio de 2009) quando a
pesquisadora permaneceu vivenciando o cotidiano da comunidade, participando de atividades culturais
e processos de trabalho, reunies, assemblias e audincias. O registro da coleta de informaes foi
mediante o dirio de campo, gravador e fotografia (Minayo, 1993). Estas ferramentas condizem com a
proposta de investigao da observao participante:
[...] como um processo no qual a presena do observador numa situao social mantida para
fins de investigao cientfica. O observador est em relao face a face com os observados, e,
em participando com eles em seu ambiente natural de vida, no seu cenrio cultural, coleta dados.
Logo, o observador parte do contexto sendo observado, no qual ele ao mesmo tempo modifica
e modificado por este contexto. O papel do observador participante pode ser tanto formal como
informal, encoberto ou revelado, o observador pode dispensar muito ou pouco tempo na situao
da pesquisa; o papel do observador participante pode ser uma parte integrante da estrutura social,
ou ser simplesmente perifrica m relao a ela. (Schawartz & Schawartz, 1995, apud Hagette,
2003, p. 71).
Este estudo interrelaciona sade, ambiente e produo a partir de uma investigao emprica e
traz reflexes sobre o potencial endgeno das comunidades para construo e efetivao de polticas
pblicas de desenvolvimento territorial rural e promoo da sade no campo. Como resultados da
descrio do modo de vida agrcola tradicional das comunidades Lagoa dos Cavalos, Junco, Barbato
e Crrego Salgado, desvelamos o processo scio-histrico na construo de alternativas de
15
convivncia com o semirido; caracterizao da agrobiodiversidade e sua interrelao com os
processos de trabalho na agricultura familiar e na apicultura; o potencial da organizao comunitria e
da transio agroecolgica na promoo da sade no campo. Em relao caracterizao do conflito
socioambiental entre comunidades agrcolas e o rgo governamental DNOCS, desvelamos as tramas
do conflito entre o modelo de produo do agronegcio e os modos de vida agrcolas do serto do
Cear; as limitaes dos instrumentos de avaliao de impactos ambientais; o movimento de
resistncia local; construo de alternativas territoriais como contraproposta ao projeto original do
governo federal, como veremos no captulo 15.
Construo da poltica local de Sade do Trabalhador e Sade Ambiental em
Lagoinha/Quixer:
Os desafios observados no trabalho de campo em relao operacionalizao das polticas de
Sade Ambiental e Sade do Trabalhador no SUS contriburam para optarmos pela realizao de
pesquisa-ao. Esse tipo de pesquisa facilita a aproximao dos pesquisadores com os trabalhadores,
profissionais do servio de sade e a comunidade, bem como o dilogo entre a cincia e a vida, pois
pressupe na sua feitura a participao de sujeitos coletivos. Conforme Thiollent:
[...] a pesquisa-ao um tipo de pesquisa social com base emprica que concebida e realizada
em estreita associao com uma ao ou com a resoluo de um problema coletivo e no qual os
pesquisadores e participante representativos da situao ou do problema esto envolvidos de
modo cooperativo e colaborativo. (Thiollent, 2008, p. 16).
Em consonncia com o expresso pelo autor, encontram-se os objetivos almejados por este
estudo no que concerne a subsidiar o SUS, movimentos sociais e trabalhadores para o enfrentamento
dos problemas, evidenciando-se as necessidades de sade com base no territrio em transformao
(Pessoa, 2010).
Para a pesquisa-ao organizamos um grupo de agentes sociais composto de 14 participantes,
com as pessoas da equipe de Sade da Famlia que quiseram participar, sendo contemplados na sua
constituio: mdico, enfermeiro, agente comunitrio de sade, auxiliar de enfermagem e auxiliar de
servios gerais da unidade de sade. As demais pessoas que integraram o grupo foram dois usurios
do SUS, dois representantes dos movimentos sociais, um trabalhador do agronegcio, uma conselheira
municipal de sade, um vereador, o presidente da associao dos trabalhadores rurais, uma professora
da escola local, e ns, os pesquisadores. O grupo reuniu-se em datas definidas com intervalo mdio de
21 dias, sendo que cada encontro do grupo correspondia a oito horas, totalizando uma carga horria de
44 horas, em 5 encontros, que foram denominados oficinas.
As tcnicas utilizadas para coletar material emprico foram o dirio de campo na observao
participante; a realizao de conversas com informantes-chave, usurios, profissionais e gestores, para
obteno de mais informaes sobre a realidade; e realizao das oficinas utilizando perguntas
norteadoras da discusso na pesquisa-ao.
A pesquisa-ao promoveu uma reflexo por meio da sensibilizao e ao conjunta com os
movimentos sociais, profissionais da sade e gesto do SUS local e propiciou a apropriao do
territrio pelos sujeitos envolvidos no estudo, e discutida no captulo 18.
4. De como os caminhos metodolgicos foram se delineando no processo da pesquisa
16
Como vimos, o desenho e a trajetria metodolgica da pesquisa foram sendo construdos de
forma dinmica, apoiada, de um lado, no referencial terico-metodolgico indicado anteriormente e,
de outro, no permanente dilogo com o campo emprico, seus atores, e os desafios e reflexes que nos
impunham. O Quadro 1 apresenta a linha do tempo da pesquisa, indicando os momentos mais
marcantes e as principais atividades desenvolvidas.
Fomos encontrando espaos diversificados para esta construo: seminrios de planejamento,
reunies da equipe, a circulao de informaes e as discusses na lista eletrnica; o compartilhamento
dos dirios de campo para elaborar os relatrios das atividades; o esforo de preparar, em parceria,
trabalhos para apresentar em congressos ou falas em eventos. Um destaque especial deve ser dado s
viagens a campo, como comentamos no Box 2.
Figura 4 Equipe ao trmino do Seminrio de Planejamento da Pesquisa em 2009.
17
Quadro 1 Linha do Tempo das principais atividades da Pesquisa
2007
1. I Oficina da Pesquisa Agrotxicos
2. Primeira Visita Exploratria ao Baixo
Jaguaribe
3. Curso Pesquisa em Sade Ambiental
4. Curso Epidemiologia Ambiental
5. Segunda Visita de Campo a Regio do Vale
do Jaguaribe
6. Visita Exploratria sobre uso de agrotxico
na Chapada do Apodi
7. Reunio da Equipe Pesquisa Agrotxicos,
Discusso da metodologia
8. Reunio com o SUS Federal, Estadual,
Regional e Municpios
2008
9. Acompanhamento de Pulverizao Area na
Chapada do Apodi
10. Seminrio Desenvolvimento e
Conflitos,Scio-ambientais - UFMG
11. Estudo in loco do Processo de Trabalho no
monocultivo do Abacaxi
12. Diagnstico Socioeconmico das
Comunidades no Permetro-Irrigado Jaguaribe-
Apodi
13. Seminrio Agrotxicos no Vale: Novos
Ares e Desafios para uma Atuao Pblica
14. Processo de Definio do Desenho
Metodolgico Geral
15. Seminrio Pesquisas de Interesse da
Vigilncia Ambiental,Braslia
16. Capacitao de 20 Mdicos do MST nos
instrumentos do estudo epidemiolgico
Incio do exame dos trabalhadores
2009
17. Seminrio de Planejamento 2009
18. Acompanhamento da pulverizao area na
Chapada do Apodi
19. Estudo in loco do processo de trabalho no
monocultivo da banana (e empresas, 3
unidades)
20. Participao na Comisso de Vigilncia em
agrotxicos no Ministrio da Sade
21. Seminrio da ANVISA, Braslia
22. Busca ativa de casos de intoxicao aguda
por agrotxicos no Hospital de Limoeiro do
Norte
23. Participao no Frum do Semi-rido,
Limoeiro do Norte
24. Investigao da morte do trabalhador VMS,
do monocultivo do Abacaxi
25. Jornada Mundo Rural, Agrotxicos e Sade
e Oficina de Mapeamento de Vulnerabilidades
Socioambientais
26. Grito dos Excludos na Chapada do Apodi
27. Oficina sobre Vigilncia em Sade e
Agrotxicos
28. Apresentao de trabalhos Iniciao
Cientfica UFC
29. Congresso Brasileiro de Agroecologia
30. Congresso da Abrasco
31. Encontro do FEPMAT
2010
32. Seminrio de Planejamento da pesquisa
33.Seminrio gua, Meio Ambiente e Direitos
Humanos
18
34. Assassinato Jos Maria do Tom 21 de
abril
35. Retorno dos produtos da pesquisa aos
sujeitos locais 1 reunio
36.Seminrio Violao dos direitos
fundamentais frente aos impactos scio-
ambientais do agronegcio na Chapada do
Apodi Fac. Direito/UFC
37. Audincia Pblica da Cmara Municipal de
Vereadores de Limoeiro do Norte sobre
Pulverizao Area
38.Audincia Pblica da Assemblia
Legislativa do Estado do Cear sobre
Agrotxicos
39. Seminrio Conhecimento e Ao:
Resultados da Pesquisa Agrotxicos/UFC
40. 1. e 2. Oficinas de Sistematizao dos
Resultados da Pesquisa com os sujeitos locais
41.Entrega de Dossi da Pesquisa s
autoridades pblicas
42. Retomada do Frum Agrotxicos de
Limoeiro do Norte com presena do
coordenador do Frum Nacional/MPT-PE
43. Seminrio Agrotxicos : Exposio humana
e Promoo da Sade
44. Seminrio Frum Nacional Agrotxicos,
Sade e Meio Ambiente - MT
45. Seminrio Agrotxicos e Sade - Via
Campesina
46. Congresso Latino-americano de Sociologia
Rural - PE
47. Articulao Latinoamericana de
pesquisadores em Agronegcio, Agrotxicos,
Ambiente
19
Box 2 Aprendendo com o campo emprico e tecendo interdisciplinaridade nas assemblias
mveis.
Geralmente saamos cedinho para o vale do Jaguaribe, eram cerca de 200 km que vencamos
em quase trs horas. Algumas vezes fomos em micro-nibus ou veculos maiores, para comportar boa
parte da equipe. Outras vezes, ramos quatro ou cinco. A estrada e seu tempo criavam condies
especiais para a conversa estvamos ali juntos e inteiros, disponveis; no havia pauta, apenas
idias, assuntos, inquietaes, e todas cabiam, sem uma ordenao lgica. Comumente no sentamos
a presso por deliberar ou encaminhar, e quando isto era necessrio, era sem pressa, mais ou menos
como se ouve dizer que fazem os indgenas em suas aldeias. E ento amos compartilhando as
notcias, as novidades, o que estvamos fazendo, o que nos preocupava, e recebendo os aportes dos
outros olhares, digerindo, discutindo. Detalhvamos o que fazer naquele dia, a partir da agenda
previamente preparada, e que s vezes nos dividia em subgrupos, cada um com uma tarefa.
O trabalho em campo dois a trs dias de cada vez - era sempre diversificado: a audincia
com a promotora de meio ambiente, a visita a um pequeno produtor, o encontro com as agentes
comunitrias de sade para combinar a mobilizao dos trabalhadores para o exame, o estudo do
processo de trabalho numa grande empresa, o acompanhamento e registro da pulverizao area, a
coleta de amostras de gua e solo para anlise, a reunio com a Clula Regional de Sade, a
aplicao do questionrio, o exame mdico e a coleta de material para as anlises clnicas e
imunogenticas, a oficina com o grupo da pesquisa-ao ou o grupo focal com os trabalhadores, o
encontro com o diretor do hospital para combinar a busca ativa...
Voltvamos cansados, suados, e enriquecidos de informaes, experincias, questionamentos,
indignao, dvidas, encantamento, surpresa... Era s fechar a porta do carro e se iniciava a partilha,
nas estradas do conhecimento. Experimentvamos fortemente a riqueza da diversidade de olhares,
que chegava a surpreender: como algum pode ver por este lado?! E ali amos trocando conceitos,
referncias bibliogrficas, impresses e avaliaes, incertezas e inseguranas. E assim iam surgindo
propostas de como prosseguir a abordagem, encaminhar o caso ou resolver o problema, e algum
assumia de anotar tudo e dividir as tarefas, inclusive de elaborao do dirio de campo coletivo - este
era um outro instrumento de construo interdisciplinar no grupo: registrar em escrita todo o vivido
no campo, a perspectiva e os aportes de cada um e os prximos passos.
Estas eram as nossas assemblias mveis. Em movimento, na estrada da vida e do
conhecimento. No foram previstas na metodologia, mas foram fundamentais para a construo
interdisciplinar e a integrao entre os diferentes estudos. Por a passava tambm a discusso dos
objetos de estudo dos ps-graduandos que se aproximavam de nossa linha de pesquisa. E foram se
formalizando, chegando a ter relator e encaminhamentos!
Logo fomos compreendendo que, no mundo rural atual, as abordagens dos problemas de sade
ambiental e do trabalhador no podem se reduzir ao tema dos agrotxicos, no s porque h outros
agentes de risco, mas porque h um contexto de risco, produzido no processo de desterritorializao
induzido pela modernizao agrcola o que Marinho (2010) demonstra fartamente em sua tese.
Aprendemos tambm que os atingidos no so apenas os trabalhadores diretamente envolvidos nos
novos processos produtivos, mas tambm suas famlias e as comunidades vizinhas aos
empreendimentos, que tm sua vulnerabilidade ampliada.
20
Diante do desafio que se configurava para acessar e examinar os mais de 500 trabalhadores
previstos em nossa amostra, muitas vezes nos questionamos sobre o sentido prtico de realizar o
estudo epidemiolgico, e entendemos muito bem a afirmao de Porto:
Como desafio para a sade pblica, seria mais importante entender os processos que levam
determinados grupos ou regies a se tornarem mais ou menos vulnerveis ao defrontarem-se
com determinadas situaes de risco, do que se restringir a classificar determinadas doenas e
formas de morrer da populao e seus fatores de risco associados. (Porto, 2002: 133)
No que diz respeito ao que denominamos de etapa transversal da pesquisa, enquanto processo
de dilogo permanente com as instituies pblicas e os movimentos sociais, houve situaes em que
questionamos se deveramos estar disponibilizando, ao momento, as informaes e conhecimentos que
amos reunindo ao longo da pesquisa: ser que a divulgao de dados parciais iria criar resistncias ao
desenvolvimento do projeto, fechar algumas portas? As empresas vo aceitar nosso pedido de visita?
Este era, sem dvida, um cuidado necessrio. Por outro lado, esta deciso no era to simples: como
silenciar diante da morte de trabalhadores expostos aos agrotxicos? Como guardar na gaveta as fotos
de homens, mulheres e crianas manipulando, em precria usina de reciclagem, o material plstico
proveniente dos monocultivos, contaminados com agrotxicos? E os imperativos ticos, como ficam?
Como lidar com os jornalistas que comeam a buscar informao? Colegas j haviam faceado esta
questo...
Aps vrias reflexes do grupo, fomos reconhecendo que a pesquisa j estava tendo influncia
na realidade local nossa simples presena e os contatos que fazamos iam levantando poeiras...
Fomos ento assumindo formalmente a dimenso tambm de interveno no plano local, desde
j juntando investigao e ao. Estvamos nos aproximando da intencionalidade emancipatria,
com o "pensar sempre na prtica", e o conceito de prxis, na esteira do que propem a Escola de
Frankfurt e Paulo Freire. (Costa*, 1991)
Nesta perspectiva, em nossa trajetria metodolgica, vale destacar alguns momentos da relao
com o Sistema nico de Sade SUS e com as entidades e movimentos sociais.
Como j colocado, a idia da pesquisa nasceu no seio do Conselho Gestor do CEREST/CE
uma instncia de controle social do SUS, e nosso propsito foi contar com profissionais da Secretaria
Estadual de Sade na equipe de pesquisadores, de forma a criar um fluxo permanente de comunicao,
integrao e ao. Entretanto, isto no se viabilizou.
Assim, percebendo nas visitas exploratrias a campo a fragilidade do SUS na regio no que diz
respeito ateno integral sade, e especialmente s aes de Sade do Trabalhador e Sade
Ambiental, organizamos um encontro para o qual convidamos estas coordenaes no Ministrio da
Sade, no SUS estadual e os CERESTs estadual e regional; nos municpios, os secretrios de sade e
as coordenaes de Ateno Bsica e de Vigilncia, alm das Clulas Regionais de Sade. Foi um
momento simples, em que apresentamos o projeto de pesquisa e o gestor do Ministrio da Sade
apresentou as atribuies legais dos municpios no que toca a estas aes. Mas ficou claro, no debate,
o grande hiato entre as legislaes e polticas e as prticas institucionais. Ao final do dia, o Secretrio
de um dos municpios reconheceu com simplicidade: eu fui visitar uma empresa dessas, porque me
convidaram, e fiquei foi encantado com aquela modernidade toda! Eu no olhei aquilo com os olhos
do gestor da sade!. Agendamos um novo encontro em um ms, mas ele foi sucessivamente adiado e
postergado pelos gestores.
21
Avolumavam-se os problemas identificados demandando interveno do SUS. Dessa forma,
durante o Seminrio Agrotxicos no Vale: novos ares e desafios para a atuao pblica, realizado
oito meses depois, aproveitamos a presena de autoridades do Ministrio Pblico Estadual e do
Trabalho, bem como de gestores federais do SUS, para voltar a reunir as autoridades sanitrias locais,
explicitar as demandas e buscar contribuir para que o SUS se colocasse em movimento para
equacionar respostas.
Se as respostas foram escassas no mbito municipal e estadual, no plano federal fomos nos
constituindo em grupo de interlocuo no campo dos agrotxicos. Participamos do Seminrio
Agrotxicos e Sade, organizado pela ANVISA/MS, levando conosco quatro lideranas de
movimentos sociais, numa oportunidade de intensa contribuio deles e tambm de aprendizado e
articulao com redes sociais ali presentes. Uma destas lideranas passou a fazer parte da Comisso de
Vigilncia em Agrotxicos no Ministrio da Sade, levando ao Planalto Central a voz dos territrios
cearenses atingidos pela modernizao agrcola. Membros da equipe tambm foram convidados para a
Oficina sobre Vigilncia em Sade e Agrotxicos, realizada em Braslia, em outubro de 2009,
participando da implementao de polticas e aes integradas.
O Frum Estadual de Proteo do Meio Ambiente de Trabalho do Cear, de iniciativa do
Ministrio Pblico do Trabalho, respondendo visibilidade crescente dos problemas relacionados aos
agrotxicos, pautou seu Encontro de 2009 com este tema, favorecendo dilogos interinstitucionais.
Os desafios seguem, e as melhores perspectivas de contribuio com o SUS foram abertas pela
pesquisa-ao realizada no municpio de Quixer, parte do Estudo 4.
No campo das relaes com os movimentos sociais, alguns momentos foram marcantes. Um
deles foi exatamente o Seminrio Agrotxicos no Vale: novos ares e desafios para a atuao pblica,
realizado em agosto de 2008. Ele foi construdo em conjunto com o Ministrio Pblico Estadual, a
Diocese e a Critas de Limoeiro do Norte, a FAFIDAM/UECE, nosso Ncleo Tramas, o Instituto de
Educao e Poltica em Defesa da Cidadania/IEPDC, a 10. CERES, CENTEC, Esplar, Via
Campesina, Articulao do Grito dos Excludos. Pensvamos em ter um pblico de cerca de 60
pessoas, e programamos tambm a Oficina de Educao para a Sade no Campo - Agrotxicos e
Sade: Conhecendo para reduzir os riscos no dia anterior ao incio do Seminrio, para quem quisesse
se aproximar do tema.
Mas o auditrio da FAFIDAM, com 300 lugares, permaneceu lotado nos trs dias. Acontece
que, naquele momento, eclodiu a greve dos trabalhadores da Empresa Del Monte Fresh Produce Brasil
Ltda: 1300 trabalhadores recm-proletarizados cruzaram os braos, denunciaram diversos problemas e
reivindicaram dignidade no novo modo de vida, como veremos no captulo 16. Vrios deles venceram
o medo e soltaram suas vozes, na rdio local e no Seminrio. Em suas falas (veja algumas delas no
Box 3), descortinavam para si e para a cidade como era o trabalho nas empresas do agronegcio,
contrapondo o real vivido ao mito do progresso e do desenvolvimento que gera emprego.
Figuras 5 e 6 - Pessoas presentes ao Seminrio Agrotxicos no Vale: novos ares e desafios para
a atuao pblica, e um trabalhador adoecido que conclua seu depoimento no palco.
22
A Procuradora Regional do Trabalho, que estava chegando cidade para participar de uma
Mesa Redonda no Seminrio, mudou seu destino e foi logo se reunir com os trabalhadores e depois a
empresa, impondo a readmisso de 197 grevistas j demitidos. Este momento de trabalho conjunto
entre as entidades, instituies e movimentos fortaleceu o cho da pesquisa no local, as parcerias.
Como caminho de continuidade e ao, foi proposta a constituio do Frum Agrotxicos, articulando
estes e outros atores, que passaria a conduzir as iniciativas sociais em torno do problema na regio.
Box 3 Trabalhadores descortinando as entranhas do desenvolvimento
Eu trabalho na Delmonte, trabalho com aplicaes de veneno, corro risco de vida todo dia l
dentro, o que ns passamos l dentro chega a humilhao.
Spray-boom a maquina que ela aplica o veneno dentro do abacaxi, a a questo que esses
venenos um produto que ns corremos risco todo santo dia l, aonde tem nosso colega hoje doente
que talvez nem soluo mais pra esse problema no tem... A questo que tem outro colega meu na
cidade alta que ele est contaminado j pelo veneno, tem outro rapaz tambm que ele est encostado
pelo mdico e o mdico falou pra ele que se ele quisesse viver mais ele no poderia voltar pra l.
A questo da alimentao que ns no temos, a questo dos refeitrios que at perto da
mistura [de agrotxicos]. S pra voc ter uma idia, o nosso refeitrio, o refeitrio que ns janta,e a
zona de mistura vizinho... Ns somos obrigados a estar l dentro porque se ns estamos l porque
ns temos preciso de ganhar. Eles pagam pra ns um adicional de insalubridade - s ns que
trabalhamos nas aplicaes - setenta reais, setenta reais s! E quando o tcnico de segurana vai dar
um treinamento a ns l o que que ele bota, o pouco que ele bota naquela insalubridade pra algum
dia que ns adoecer, ns termos com que se curar. A a gente olha pro tcnico de segurana e diz:
meu amigo, como que a gente j no ganha nem um salrio, a vai tirar todos os ms setenta reais
da insalubridade pra depositar numa conta pra quando um dia ns adoecer ns se curar com aquele
dinheiro?! Voc no tem idia nem do que voc est dizendo!
A gente pergunta por que que est botando pessoas pra casa e sem ter explicao nenhuma.
O gerente falou: no, essas pessoas a, elas que falam muito. Mas eu digo: doutor, a gente fala com
educao - mesmo que ele seja mal educado com ns, ns temos obrigao de ser bem educados com
eles, que pra eles entender que ns somos cidado! (aplausos) Que ns trabalhadores estamos l
para produzir pra empresa, mas ns queremos ganhar o nosso tambm, no queremos que s a
empresa enrique s nossas custas! Ns no queremos que s ela enrique s nossas custas e ns
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morrer de se sacrificar l dentro, como hoje tem colega nosso, como teve um agora pouco aqui com a
sua perna amputada, cortada...
Depoimentos de trabalhadores em greve, durante o Seminrio Agrotxicos no Vale: novos
ares e desafios para a atuao pblica. Limoeiro do Norte/CE, agosto de 2008.
A partir de ento, a equipe da pesquisa era convidada para os eventos organizados por estas
entidades e instituies, os quais se constituram em espaos de compartilhar informaes, perscrutar
percepes, afinar a abordagem de questes complexas e aprofundar alianas. Preparar nossas falas
nestes encontros era tambm uma oportunidade de, com data marcada, nos levar a elaborar anlises e
snteses em processo do que vnhamos fazendo. Assim foi, por exemplo, com o VII Encontro
Estadual do Frum em Defesa da Vida no Semi-rido, realizado em Limoeiro do Norte em julho 2009,
ou com a Semana gua, Meio Ambiente e Direitos Humanos, em maro de 2010. Compreendemos
que, alm da questo dos agrotxicos ser bastante sentida e denunciada pelos trabalhadores e
comunidades vizinhas aos grandes empreendimentos o que a pautava neste tipo de evento, o fato da
equipe da pesquisa ter assumido o modelo interpretativo do real aqui descrito, que situa o problema
dos agrotxicos no contexto mais geral da modernizao agrcola, facilitou e promoveu estes dilogos
e articulaes.
Figura 7 Plenria do VII Encontro Estadual do Frum em Defesa da Vida no Semi-rido,
realizado em Limoeiro do Norte em julho 2009, em que a equipe da pesquisa participou.
Em agosto de 2009 tivemos a defesa da primeira dissertao produzida no mbito da pesquisa,
voltada para os trabalhadores da monocultura do abacaxi (Alexandre, 2009). Ela ocorreu pela manh na
UFC, em Fortaleza, e noite foi apresentada na Comunidade onde vive boa parte deles, em Limoeiro
do Norte, com a presena inclusive da banca examinadora. Assim comeou a Jornada Mundo Rural,
Agrotxicos e Sade, que contou tambm com uma Oficina de Mapeamento de Vulnerabilidades
Socioambientais e Contextos de Promoo da Sade, junto s Comunidades da Chapada do Apodi e
do Tabuleiro de Russas (detalhada no captulo 5) e com um evento em Praa Pblica na comunidade
do Tom, onde o Prof. Vanderlei Pignati, da Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT, falou de
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suas pesquisas no mundo rural naquele estado e da pulverizao area, e tambm lideranas
comunitrias se manifestaram, entre elas o Jos Maria Filho, assassinado menos de um ano depois.
Figura 8 - Participantes da Oficina de Mapeamento de Vulnerabilidades Socioambientais e
Contextos de Promoo da Sade, realizada na Comunidade do Tom, em agosto de 2009.
Figura 9 - Prof. Vanderley Pignati, da UFMT, expondo os problemas da pulverizao area em
sua regio no adro da igreja da Comunidade do Tom.
Ainda no campo das relaes da pesquisa com os movimentos sociais, tivemos a oportunidade
de fazer uma parceria com o MST quando mdicos ligados ao movimento, recm-formados em Cuba,
envidavam esforos para validar seu diploma no Brasil. De acordo com anlise realizada pela
Faculdade de Medicina da UFC, uma das disciplinas que necessitavam ser complementadas era Sade,
Trabalho, Ambiente e Cultura, de responsabilidade de nosso setor de estudos junto graduao
mdica. Construmos ento um entendimento de que a disciplina seria oferecida a uma turma de vinte
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destes mdicos, nos finais de semana, pois eles estavam cursando a especializao em Sade da
Famlia no Sistema Municipal de Sade de Fortaleza, e organizada com foco nas questes da sade no
campo, e tendo como territrio de prticas as comunidades e assentamentos na regio do Baixo
Jaguaribe. Assim, pudemos form-los e convid-los a contribuir conosco no enorme trabalho do estudo
epidemiolgico, ajudando-nos a vencer o desafio de ganhar a confiana e examinar mais de 500
trabalhadores da regio, nos finais de semana, em suas comunidades. Que outro perfil de mdico
aceitaria este desafio?
No Seminrio de Planejamento da Pesquisa em 2010, o ltimo ano previsto para seu
desenvolvimento, foram priorizadas, entre outras, as aes de retorno da pesquisa s instituies,
entidades e movimentos sociais com as quais viemos caminhando entre elas este livro, por exemplo.
A reunio com eles foi um momento muito especial em nossa trajetria acadmica pois, aps uma
breve apresentao do conjunto de resultados produzidos ou em fase de sistematizao e anlise, no
mbito dos quatro estudos, recebemos a satisfao dos presentes pelo cuidado com o retorno ao
territrio (diferentemente de suas experincias com outros grupos) e o reconhecimento de que estes
produtos so ferramentas de trabalho importantes para eles, na construo da sustentabilidade scio-
ambiental.
A partir da foi elaborado um processo de sistematizao dos resultados da pesquisa, com base
na metodologia proposta por Oscar Jara Holliday (2006), que a concebe como [...] aquela
interpretao crtica de uma ou vrias experincias que, a partir de seu ordenamento e reconstruo,
descobre ou explica a lgica do processo vivido, os fatores que intervieram no dito processo, como se
relacionaram entre si e por que o fizeram desse modo. O processo foi coordenado por Gigi Castro
artista e educadora popular, e o objetivo foi produzir materiais para comunicar o conhecimento
produzido junto aos sujeitos envolvidos com a problemtica, no s na regio, mas tambm no estado
e no pas, tendo em vista o macrofenmeno da expanso agrcola na modernizao conservadora.
Numa primeira oficina, os diferentes atores locais e a equipe da pesquisa se apropriaram da
metodologia de sistematizao, definiram os pblicos-alvo e construram a linha do tempo do
problema em estudo. Na segunda Oficina, foram apresentados todos os estudos produzidos no mbito
da pesquisa tese, dissertaes, monografias, dossi, etc a partir dos quais o grupo refletiu, discutiu
e selecionou os contedos que deveriam estar contidos nas publicaes4.
Figuras 10 e 11 - Representao dos resultados da pesquisa como ferramentas de luta, elaborada
em mstica preparada pelo MST, e Oficina de Sistematizao, em trabalho coletivo para
reconstruo da linha do tempo no Baixo Jaguaribe.
4 Este processo constituiu-se me parte do objeto de estudo de um dos membros da equipe Marcelo JF Monteiro, devendo consistir em sua dissertao de mestrado.
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J em abril de 2010, o assassinato da liderana comunitria Jos Maria Filho, pequeno
agricultor e ambientalista popular residente na Comunidade do Tom/Limoeiro do Norte, chamou a
ateno da sociedade e da mdia para a violncia no campo, em pleno sculo XXI, e para o problema
dos agrotxicos, tendo em vista as freqentes denncias da contaminao ambiental e sua participao
no movimento pela proibio da pulverizao area de agrotxicos no municpio, que resultou na
aprovao, em 08 de outubro de 2009, da lei n 1478/2009 (Teixeira, 2010).
Entretanto, pressionada por projeto de lei do executivo municipal que inclua a revogao desta
proibio, a mesma Cmara Municipal realiza audincia pblica em 12 de maio de 2010. Dela
participam cerca de 300 pessoas, e a pesquisa convidada a apresentar os dados j produzidos sobre a
contaminao ambiental. A mdia divulga o tema e a Assemblia Legislativa do Cear tambm
convoca audincia pblica sobre o tema, em 20 de maio data em que Cmara de Vereadores de
Limoeiro do Norte se rene e revoga a proibio da pulverizao (veja captulo 17).
Na dialtica dos processos histricos, a morte gera vida: desde ento, a cada dia 21,
Movimentos sociais e entidades como o MST, Critas Diocesana, estudantes, Conlutas, associaes
comunitrias e instituies acadmicas tm feito constantes manifestaes e divulgao de
informaes sobre o problema, junto ao Ministrio Pblico e outras instituies pblicas responsveis
pelas polticas nesta rea. Dentro da dinmica metodolgica que assumimos nesta pesquisa, estas
diferentes formas de violncia e a organizao da resistncia a elas tambm se conforma enquanto
objeto de estudo de um novo projeto de pesquisa, conduzido por professora da Universidade de
Braslia que se soma ao nosso grupo (Hoefel, 2010).
Seguindo a tradio dos Seminrios locais da pesquisa, realizados em agosto de 2008 e
de 2009, realizamos em 2010 o Seminrio Conhecimento e Ao: Resultados da Pesquisa
Agrotxicos/UFC. Para este momento preparamos um dossi contendo os principais problemas
identificados pela pesquisa e que apresentavam relevante impacto sobre a sade pblica, exigindo
portanto aes das autoridades responsveis (Rigotto et al, 2010b). Tomando como base a Resoluo
196/96 do Conselho Nacional de Sade5, o documento apresentado aos presentes e entregue aos
Promotores do Ministrio Pblico (Trabalho, Sade e Meio Ambiente) continha os seguintes itens:
1. Uso e contaminao de guas subterrneas, superficiais e para consumo humano.
2. Pulverizao area de agrotxicos na cultura da banana.
3. bito de trabalhador por hepatopatia txica e os casos de cncer entre agricultores.
4. Agrotxicos e seus resduos.
5. A questo fiscal-tributria e o consumo de agrotxicos.
6. Outros aspectos da Vulnerabilidade populacional e da vulnerabilidade institucional.
No mesmo Seminrio, foram apresentados tambm os trabalhos concludos entre 2009 e 2010,
sobre a comunidade de Lagoa dos Cavalos, o assentamento Bernardo Marin II, a pesquisa-ao em
Lagoinha/Quixer e o Mapeamento de vulnerabilidades scio-ambientais entre as comunidades da
Chapada do Apodi.
5 De acordo com o artigo III.1 - A eticidade da pesquisa implica em: o) comunicar s autoridades sanitrias os resultados da pesquisa sempre que os mesmos puderem contribuir para a melhoria das condies de sade da coletividade p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefcios resultantes do projeto, seja em termos de retorno social, acesso aos procedimentos, produtos ou agentes da pesquisa
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Box 4 - Experimentando a mobilidade e insustentabilidade do agronegcio: as
pragas venceram?
Quando iniciamos as exploraes em campo, uma comunidade j havia nomeado os
agrotxicos como problema, e levado sua voz esfera pblica. O tcnico da Critas, que nos auxiliou
nestas incurses, logo pautou em nossa agenda uma visita a esta comunidade - Baixa Grande, no
municpio de Limoeiro do Norte. Ela estava colada cerca de uma das empresas de agronegcio -
conhecida como a empresa dos gringos, que ali cultivava abacaxi em cerca de 1300 hectares e
Dona Liduna nos contou do cheiro de veneno que havia dentro das casas, nas latas de mantimentos;
do trator que passava pulverizando com os braos abertos e jogava veneno a noite toda no ar e por
cima da cerca; dos problemas de sade que as pessoas sentiam. Havia ainda uma caieira empresa
de beneficiamento de cal, que tambm polua o ar.
Passamos uma tarde em reunio na comunidade, onde residiam 75 famlias com cerca de 295
pessoas, das quais 50 estavam presentes. Ouvimos relatos emocionados, como o da me de uma
criana de 1 ano e 8 meses que desenvolveu uma anemia severa, vinha perdendo peso, e que os
mdicos sugeriam a possibilidade de contaminao por agrotxicos. Todos os presentes se queixavam
de dor de cabea e tonteira. A diretora da escola contou que alguns alunos traziam o cheiro de veneno
nos cabelos, e que produziram o vdeo intitulado Cad a minha casa? Poluio Comeu! retratando
a histria de sua comunidade, conhecida como Km 69. A Agente de Sade local afirmou ter resultados
das anlises das guas que abastecem as famlias comprovando a contaminao por agrotxicos.
Comeamos a avaliar que aquela poderia ser uma primeira unidade territorial de anlise
(UTA), reunindo a rea da empresa de cultivo de abacaxi e a comunidade vizinha. Os dados
aportados sugeriam que ali poderamos desenvolver uma metodologia-piloto para abordar aquela
regio to complexa: estariam presentes uma unidade de produo em grande escala e um local de
moradia de ex-pequenos produtores; poderamos investigar tanto as questes de sade do trabalhador
como de sade ambiental, e depois ampliar para outras unidades de anlise. Chegamos a nos
organizar para elaborar o mapa desta UTA, identificar e caracterizar as comunidades; analisar o
solo, o sedimento e bentons do canal e a gua de consumo humano; estudar a percepo das pessoas
sobre os agrotxicos.
Qual no foi a nossa surpresa ao saber pela Dona Liduna que a empresa (ou a terra?) estava
parando de produzir abacaxi na sua vizinhana: um trabalhador empregado nela que mora na
comunidade recebeu a tarefa de colher seis espcimes para anlise laboratorial e j no conseguiu
encontrar nos contou ela. Na monocultura, a empresa fertilizava o substrato solo com toneladas
de produtos qumicos e enfrentava pragas como a broca-do-fruto, broca-do-colo, podrido-do-topo e
a fusariose com pelo menos 13 tipos de agrotxicos, entre fungicidas, inseticidas, acaricidas e
herbicidas, em aplicaes dirias de elevados volumes. E nem assim conseguia produzir mais! As
pragas venceram?! A empresa iria agora ocupar novas terras com este mesmo cultivo e tecnologia...
Tivemos uma experincia muito concreta da mobilidade do capital e da insustentabilidade
deste modelo de produo, deixando atrs de si as marcas da degradao scio-ambiental e da
desertificao a herana maldita de que nos fala Acselrad, enquanto avana sobre novas terras e
comunidades. Na Oficina com a comunidade, este modelo de relao com o ecossistema foi chamado
de gafanhoto praga devastadora, desde o Egito...
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Tambm como trabalhadores da cincia, tivemos que reorganizar nossos planos de
investigao... As novas dinmicas temporais e espaciais do agronegcio desorganizam no s os
territrios, mas tambm o processo de trabalho na pesquisa: na modernidade lquida, tudo o que
slido desmancha no ar.
Em abril de 2011, o j fortalecido e nomeado Movimento 21, organiza as atividades de
celebrao de um ano do assassinato do Z Maria do Tom, e consegue trazer s ruas os moradores das
comunidades, que comeam a vencer o medo e explicitam num panfleto suas reivindicaes, inclusive
sobre a contaminao por agrotxicos. Em paralelo, a equipe da pesquisa organiza mais uma vez na
Fafidam um Seminrio de apresentao de resultados junto aos diferentes segmentos e atores, e j
convida outros territrios do Cear e do Rio Grande do Norte que tambm enfrentam o problema dos
agrotxicos, para um dilogo de cooperao e articulao.
5. Um pouco do muito que aprendemos
Estes foram quatro anos de um intenso e profundo aprendizado para todos ns da equipe, e em
dimenses que vo desde a cosmoviso, a compreenso da cincia e suas prticas e nosso papel nela,
passando pelas formas como as polticas pblicas alcanam (ou no) os territrios, at as maneiras de
sentir e expressar das comunidades da regio. Alguns membros da equipe registram suas impresses
deste processo no Box 5.
Sistematizar estes aprendizados de natureza epistemio-metodolgica umas das atuais tarefas
da equipe, a partir de um processo crtico-reflexivo em que sero importantes, entre outros, os aportes
tericos, o distanciamento e o dilogo com atores externos equipe, para dar suporte a uma
consistente metanlise, no intuito de garimpar e refinar as possveis contribuies epistemolgicas e
metodolgicas desta trajetria para uma cincia emergente.
Figura 12 Teia de elementos que podem facilitar a prxis na pesquisa
Territrio
PrxisDinmica
metodolgica da pesquisa e as mltiplas
dimenses do real
Os trabalhadores e o processo de trabalho
em pesquisa: disposio para a contra-hegemonia
Cuidados na definio dos
objetos
Teorias crticas:Problematizao
do real
Ecologia de saberes e poderes
Compromisso tico e poltico
com a emancipao e
a transformao social
Sistematizao e comunicao do conhecimento
produzido
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A Figura 12 evidencia alguns elementos que, neste momento, identificamos como facilitadores
em nossa trajetria: o cuidado na definio dos objetos de estudo, priorizando aqueles que contemplam
demandas de produo de conhecimento formuladas por aqueles que tm menos acesso e que
necessitam dele para empoderar-se; o apoio de teorias crticas para a problematizao do real; a
abertura para a construo dinmica e processual da metodologia, em dilogo com o campo emprico e
seus atores; a ateno com os trabalhadores e os processos de trabalho em pesquisa, de forma a criar
condies para a apreenso da complexidade do real, para a anlise interdisciplinar profunda, e para a
produo de snteses que ampliem a compreenso da totalidade; o profundo respeito aos saberes e
poderes tradicionais e populares, e a postura sincera de escuta e dilogo; e o compromisso tico e
poltico com a emancipao e a transformao social, em benefcio dos mais vulnerveis, expresso
tambm no esforo de sistematizar o conhecimento produzido de forma a fomentar sua apropriao
pelos sujeitos envolvidos no problema.
Seguimos no caminho.
Box 5 Com a palavra, os pesquisadores!
Pesquisar para mim, significa descobrir e descobrir-se! Empreender esforos, emoes,
lutas, sonhos, encontrar-se consigo e com o outro na vida to curta que temos. Ento fazer parte do
mundo da vida, recheada de incertezas, apreenses, angstias, dores e tecer um novo jeito de fazer
valer a vida! Ir em busca de um novo tom de luz, que acalente a alma dos sofridos, o corpo dos
docentes, uma perspectiva de fazer cincia que articule e integre os seres e saberes. Ser parte da luta
e da conquista de uma vida digna, justa tica que abrace a diferena, mas que garanta o princpio do
bem viver para todos.
So estas motivaes, como tambm so os desafios e sentimentos que passam pelas minhas
aes de pessoa- pesquisadora da uma nova forma de viver. Uma forma de viver saudvel em paz
consigo, com os outros, com o planeta.
Ser pessoa-pesquisadora de forma prazerosa, de transformar a misria, a pobreza, a injustia,
a desonestidade, a corrupo, a iniqidade em passado, histrico de nossa civilizao; possibilidade
de propor estratgias, mtodos que tragam proposies e realizaes de novos arranjos para os
indivduos, famlias, trabalhadores, pesquisadores- pessoas no mundo.
Ser produtora de uma cincia, a servio da vida, no que esta tem mais sublime, um
conhecimento til e coerente com as necessidades dos seres. Cincia que gera vida e inclui novas
ferramentas para arar o campo sem aniquilar o solo e as pessoas.
Atuar consciente, criticamente, evidenciando os gritos e os silncios no fazer cincia.
(Vanira Matos Pessoa)
"Participar desta pesquisa vem sendo para mim exercitar a arte da descoberta, enveredando
nas trilhas da incerteza, do novo, do desconhecido. Ousar pisar em falso, contaminar-se pela dvida,
deixar-se invadir pela sede do conhecimento.
E para qu? O que nos move, nos impulsiona, na busca incessante da construo e da
descoberta?
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Penso que seja parte da nossa misso como pessoa que nasce para ser grande, para viver sua
essncia. Construir conhecimento com compromisso social.
Mas como isso se d? Dar-se somente no encontro com o outro, com a natureza, com o
infinito...No encontro com o sutil, que eleva o esprito, fortalece o corpo, diminui o peso e nos ajuda
a flutuar.
Esta pesquisa tem sido para mim o lugar do ENCONTRO:
- da academia, com as instituies da prtica e os movimentos sociais;
- do novo, do velho, do perene;
- da dvida, da aproximao e da possibilidade;
- da impermanncia, do slido e da fluidez;
- da teoria, da prtica, da prxis;
- do campo, da cidade, do rural e do urbano.
A pesquisa vem sendo a experincia de ser pesquisador, profissional da prtica, cidad, me,
mulher, companheira.
O que isto significa? Significa a experincia da integrao, da possibilidade da fala dos
medos, das dv