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Revista TCE

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Revista TCEMG - outubro / novembro / dezembro 2010.

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FICHA CATALOGRÁFICA

ISSN 0102-1052

Publicação do Tribunal de Contas do Estado de Minas GeraisAv. Raja Gabaglia, 1.315 — LuxemburgoBelo Horizonte — MG — CEP: 30380-435

Revista: Edifício anexo — (0xx31) 3348-2142Endereço eletrônico: <[email protected]>

Site: <www.tce.mg.gov.br>

As matérias assinadas são de inteira responsabilidade de seus autores.

Solicita-se permuta. Exchange is invited. Pidese canje. On demande l’échange. Man bittet um Austausch. Si richiede lo scambio.

Projeto gráfico: Alysson Lisboa Neves — MTB/0177-MG — [email protected]

Capa, contracapa e diagramação:Unika.com Editora

Foto da capa: Acervo Memorial Agripa Vasconcelos — Matozinhos/MG

Texto da primeira folha: Chuva do mar. VASCONCELOS, Agripa.

In: Suor de sangue. Minas Gerais, 1948.

Impressão e acabamento:Rona Editora Gráfica

FICHA CATALOGRÁFICA

Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Ano 1, n. 1 (dez. 1983- ). Belo Horizonte: Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, 1983 -

Periodicidade irregular (1983-87) Publicação interrompida (1988-92) Periodicidade trimestral (1993- )

ISSN 0102-1052

1. Tribunal de Contas — Minas Gerais — Periódicos 2. Minas Gerais — Tribunal de Contas — Periódicos.

CDU 336.126.55(815.1)(05)

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TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS GERAIS

CONSELHEIROSWanderley Geraldo de Ávila

Presidente

Antônio Carlos Doorgal de AndradaVice-Presidente

Adriene Barbosa de Faria AndradeCorregedora

Eduardo Carone CostaConselheiro

Elmo Braz Soares Conselheiro

Sebastião Helvecio Ramos de CastroConselheiro

Gilberto DinizConselheiro em Exercício

AUDITORES

Edson Antônio ArgerGilberto Diniz

Licurgo Joseph Mourão de OliveiraHamilton Antônio Coelho

pROCURADORES DO MINISTéRIO púbLICO DE CONTAS

Glaydson Santo Soprani MassariaProcurador-Geral

Maria Cecília Mendes BorgesProcuradora

Cláudio Couto Terrão Procurador

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COMpOSIÇÃO DO pLENO*

Conselheiro Wanderley Geraldo de Ávila — PresidenteConselheiro Antônio Carlos Doorgal de Andrada — Vice-Presidente

Conselheira Adriene Barbosa de Faria Andrade — CorregedoraConselheiro Eduardo Carone Costa

Conselheiro Elmo Braz SoaresConselheiro Sebastião Helvecio Ramos de Castro

Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz

*As reuniões do Tribunal Pleno ocorrem às quartas-feiras, 14h.

Diretor da Secretaria-Geral: Marconi Augusto Fernandes de Castro BragaFones: (31) 3348-2204 [Diretoria]

(31) 3348-2128 [Apoio]

COMpOSIÇÃO DA pRIMEIRA CÂMARA*

Conselheiro Antônio Carlos Doorgal de Andrada — PresidenteConselheira Adriene Barbosa de Faria Andrade

Conselheiro em Exercício Gilberto DinizAuditor Relator Edson Antônio Arger

Auditor Relator Licurgo Joseph Mourão de Oliveira

*As reuniões da Primeira Câmara ocorrem às terças-feiras, 14h30.

Diretora da Secretaria: Joeny Oliveira Souza FurtadoFones: (31) 3348-2585 [Diretoria]

(31) 3348-2281 [Apoio]

COMpOSIÇÃO DA SEGUNDA CÂMARA*

Conselheiro Eduardo Carone Costa — PresidenteConselheiro Elmo Braz Soares

Conselheiro Sebastião Helvecio Ramos de CastroAuditor Relator Gilberto Diniz

Auditor Relator Hamilton Antônio Coelho

*As reuniões da Segunda Câmara ocorrem às quintas-feiras, 10h.

Diretora da Secretaria: Mônica da Cunha RodriguesFones: (31) 3348-2415 [Diretoria]

(31) 3348-2189 [Apoio]

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TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS GERAIS

CORPO INSTRUTIVODIRETORIA-GERAL DE CONTROLE ExTERNO

Cristina Márcia de Oliveira Mendonça Fone: (31) 3348-2370

DIRETORIA DE CONTROLE ExTERNO DO ESTADOValquíria de Sousa Pinheiro

Fone: (31) 3348-2223

DIRETORIA DE ASSUNTOS ESpECIAIS E DE ENGENHARIA E pERÍCIACristiana de Lemos Souza Prates

Fone: (31) 3348-2516

DIRETORIA DE CONTROLE ExTERNO DOS MUNICÍPIOSConceição Aparecida Ramalho França

Fone: (31) 3348-2255

DIRETORIA-GERAL DE ADMINISTRAÇÃORodrigo Gatti Silva

Fone: (31) 3348-2101

DIRETORIA DE GESTÃO DE pESSOASFlávia Maria Gontijo da Rocha

Fone: (31) 3348-2120

DIRETORIA DE PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E FINANÇASIsabel Rainha Guimarães Junqueira

Fone: (31) 3348-2220

DIRETORIA ADMINISTRATIVA E DE SERVIÇOSLanglebert Alvim da Silva

Fone: (31) 3348-2402

DIRETORIA DA TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃOArmando de Jesus Grandioso

Fone: (31) 3348-2308

DIRETORIA DA SECRETARIA-GERALMarconi Augusto F. Castro Braga

Fone: (31) 3348-2204

DIRETORIA DA ESCOLA DE CONTASRenata Machado da Silveira Van Damme

Fone: (31) 3348-2698

GAbINETE DA pRESIDêNCIAFátima Corrêa de Távora

Chefe de GabineteFone: (31) 3348-2481

Antônio Rodrigues Alves JúniorAssessor

Fone: (31) 3348-2312

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REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS GERAISoutubro | novembro | dezembro 2010 | v. 77 — n. 4 — ano XXVIII

revista do

tribunal de Contas do Estado de Minas Geraistribunal de Contas do

DIRETOR

CONSELHEIRO ANTÔNIO CARLOS DOORGAL DE ANDRADA

VICE-DIRETOR

AUDITOR LICURGO JOSEPH MOURÃO DE OLIVEIRA

SECRETÁRIA

MARIA TEREZA VALADARES COSTA

EQUIpE TéCNICA

ALINE TOLEDO SILVADIEGO FELIPE SILVA ABREU DE MELO

ELIANA SANCHES ENGLERLÍVIA MARIA BARBOSA SALGADOREGINA CÁSSIA NUNES DA SILVA

- REVISÃO -LEONOR DUARTE FADINI

MARIA JOSÉ DE ARAÚJO RIOSMARIA LÚCIA TEIXEIRA DE MELO

- PESQUISA -AMANDA RIBEIRO COSTACHRISTINA VILAÇA BRINAMARIANA SOUSA CANUTO

COLABORAÇÃO DA COMISSÃO DE JURISPRUDÊNCIA E SÚMULA

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taREVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS GERAISoutubro | novembro | dezembro 2010 | v. 77 — n. 4 — ano XXVIII

Agripa Vasconcelos — realidade e fantasia —

A obra de Agripa Vasconcelos se caracteriza pela coesão entre a realidade e

a fantasia.

Homem de vasta cultura e visão humanística da vida, deixou-nos um legado

de pesquisas históricas que enriqueceram, pela literatura, registros em figu-

ras destacadas de nossa terra.

Nascido em Matozinhos, distrito de Santa Luzia, sempre se fez admirar pela

inteligência privilegiada.

Desde sempre voltado para as coisas do espírito e da cultura, terminou seus

estudos formais na Escola de Medicina do Rio de Janeiro, onde foi escolhido

orador da turma.

Ali, fez um notável discurso considerando aquela ciência “um ato de gran-

deza”, uma deusa.

Para ele, a Medicina “é irmã gêmea da filosofia”, pois que ali imperam a ob-

servação e a razão.

Homem voltado para os interesses do ser humano, uniu a ciência à arte —

realidade e fantasia.

Dizia: “só a arte cede passaporte para a imortalidade.”

Agripa Vasconcelos expressou seu amor a Minas em romances que exploram

aspectos diversos da vida mineira, tanto sociológica quanto cultural e

econômica, desde o período colonial.

O conjunto desta obra é composto de sete livros a que deu o nome de Saga

do País das Gerais.

Yeda Prates Bernis

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REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS GERAISoutubro | novembro | dezembro 2010 | v. 77 — n. 4 — ano XXVIII

Fome em Canaan analisa o latifúndio mineiro, Gongo Soco comenta o Ciclo do Ouro, A Vida em Flor de Dona Beja manifesta o povoamento do Estado. Em Sinhá Braba retrata aspectos da agropecuária. Em Chica que Manda está con-figurado o Ciclo do Diamante, enquanto em Chico Rei ele fala da escravidão. Já em Ouro Verde e Gado Negro trata do café e da abolição da escravatura.

Basta este conjunto de obras para consagrá-lo. Chica da Silva e Dona Beja tiveram a divulgação em novelas da televisão, com sucesso extraordinário até em âmbito internacional.

Agripa Vasconcelos conjuga realidade e fantasia, ao resgatar com grande pesquisa e criatividade, figuras que marcaram época em tempos remotos.

Não foi fácil resgatar a história destes personagens, distantes da época em que foram escritos.

Assim, a fantasia dominou os textos, quando não obtivera fatos absoluta-mente fidedignos, para dar ideia de realidade e poesia à sua obra.

A poesia pulsou em sua vida desde sempre.

Com belos poemas, publicou: Laura, Silêncio, Nós e o Caminho do Destino, Suor e Sangue — Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras —, A Morte do Escoteiro Caio, Sementeira nas Pedras e Fome em Canaan além de inúmeros textos publicados.

Recebeu homenagens e láureas inúmeras e foi membro da Academia Mineira de Letras, sucedendo a Alphonsus de Guimaraens.

Teve sua obra analisada com louvor por intelectuais da dimensão de Mário Mendes Campos, Mello Cançado, Oscar Negrão de Lima, Aires da Mata Macha-do Filho e João Etienne Filho.

Com exemplo de rica existência, faleceu em Belo Horizonte, a 20 de janeiro de 1969.

Escreveu um dia: “A glória não se procura. Ela vem buscar os eleitos.”

Ele não a procurou. Ela veio ao seu encontro.

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REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS GERAISoutubro | novembro | dezembro 2010 | v. 77 — n. 4 — ano XXVIII SUMÁRIO

palavra do Presidente 13

Entrevistas

Professor José Joaquim Gomes Canotilho 21Professor José dos Santos Carvalho Filho 29

Notícias

Semana orçamentária: mais uma ação pedagógica do Tribunal 45Contas Governamentais/2010: acompanhamento conjunto e sistematizado 46TCEMG na primeira edição da RTTC 46Tribunais de Contas se comprometem com a preservação do meio ambiente 46Sicop recebe primeira remessa de dados 47A Revista do TCE agradece aos mestres colaboradores 47

Doutrina

O Parecer Prévio como instrumento de transparência, controle social e fortalecimento da cidadaniaAntônio Carlos Doorgal de AndradaLaura Correa de Barros 51Federalismo, municipalismo e direitos humanosDaury Cesar Fabriz 74A desconstrução da técnica da ponderação aplicável aos direitos fundamentais, proposto por Robert Alexy: uma reflexão a partir da filosofia de Jacques DerridaIsabelle de Baptista 94Constituição e Democracia: um exercício de patriotismo constitucionalLuís Henrique Baeta Funghi 111

Direito Comparado

La impugnación de actos administrativos en el procedimiento de selección del contratista en la República ArgentinaSantiago R. Carrillo 125

Pareceres e decisões

Ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo impõe arquivamento dos autosConvênio n. 650.405Relator: Conselheiro Eduardo Carone Costa 149Tribunal mantém decisão pela aplicação de multa a gestores por violação a ditames da Lei de LicitaçõesRecurso Ordinário n. 837.515Relator: Conselheiro Eduardo Carone Costa 154Despesa total com pessoal: inclusão dos gastos com reajuste e revisão geral anual de vencimentos e do valor do Imposto de Renda Retido na FonteConsulta n. 812.412Relator: Conselheiro Eduardo Carone Costa 160

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Tribunal manifesta-se em questões afetas à utilização de receitas de capital para aquisição de novos bens; aumento do subsídio de vereadores; estabelecimento de cota mensal de combustível e conversão de férias-prêmio de servidor municipal em espécieConsulta n. 780.944Relator: Conselheiro Elmo Braz 169Impossibilidade de utilização de recursos públicos para abastecimento de veículos particulares de vereadores e para doação de coroas de floresConsulta n. 812.510Relator: Conselheiro Elmo Braz 173Incompetência do Município para legislar sobre trânsito e transporteProcesso Administrativo n. 712.342Relator: Conselheiro Antônio Carlos Andrada 182Reconhecimento de nulidade absoluta de decisão sustatória de contrato administrativo por falta de citação do particular contratanteRecurso Ordinário n. 796.118Relator: Conselheiro Antônio Carlos Andrada 187Concessão de apoio cultural pelo Poder Público a rádios comunitárias mediante subvenção socialConsulta n. 811.842Relatora: Conselheira Adriene Andrade 193Fixação de índice atinente à revisão geral anual dos subsídios de agentes políticosConsulta n. 811.256Relatora: Conselheira Adriene Andrade 197Doação e cessão de direito real de uso de bens imóveis públicos a pessoas carentesConsulta n. 835.894Relator: Conselheiro Sebastião Helvecio 202Exigência de comprovação de regularidade fiscal de empresas contratadas por dispensa de licitaçãoConsulta n. 836.952Relator: Conselheiro Sebastião Helvecio 208Aposentadoria especial: impossibilidade do cômputo do tempo de licença concedida a professor para exercício de mandato classistaConsulta n. 836.967Relator: Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz 214Adequação do plano de carreira do magistério público municipal ao piso salarial nacional dos profissionais da educação básica Consulta n. 812.465Relator: Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz 218Aplicação do instituto da prescrição em processos sujeitos à jurisdição do Tribunal de ContasConvênio n. 159.896 e outrosRelator: Auditor Licurgo Mourão 224Aplicação do princípio da verdade material possibilita emissão de parecer pela aprovação das contas de MunicípioPrestação de Contas Municipal n. 781.887Relator: Auditor Hamilton Coelho 244Princípio da competitividade e a participação de um só licitante em pregão presencialProcuradora Maria Cecília Mendes Borges 249

Comentando a Jurisprudência

Juliana Mara Marchesani 257

Estudo Técnico 277

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Palavra doPresidente

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PALAVRA DO PRESIDENTE— Conselheiro Wanderley Ávila —

À frente da Presidência do Tribunal de Contas, posso dizer da experiência ímpar

que Deus me permitiu viver e que me suscita um sentimento de inquietude,

que instiga ao enfrentamento de desafios e à abertura de caminhos. Grande

é a vontade de contribuir para que esta Casa siga a sua trajetória rumo à

excelência. Bem sei que esse é o desejo de todos nós.

A sensação é de que o tempo está passando cada vez mais rápido. Isso porque nos

dedicamos a inúmeros projetos que preenchem nossa vida a ponto de não possuirmos

mais pausas e espaços em nossas agendas. Assim, em meio à velocidade do tempo, as

mudanças são inevitáveis; ou as instituições acompanham o seu curso ou correm o risco

de serem desconsideradas pela sociedade.

Temos nos empenhado em acompanhar esse curso. E, nesse ritmo, mais um ano se

passou, repleto de expectativas, mas também de realizações.

Neste momento, permito-me uma reflexão sobre as principais tendências que apontam

para uma mudança de paradigma nas atividades do controle externo.

A visão atual sobre o papel do Estado leva a um novo modelo de gestão. A discussão

em torno desse papel e de seus limites foi a base da chamada Nova Gestão Pública,

empreendida a partir dos movimentos gerencialistas, decididos a superar a burocracia

tradicional.

Ao longo dos últimos anos, a introdução de inovações complexas na Administração

Pública, o fomento ao controle social e a demanda por transparência alteraram a

configuração das ações de controle. A ênfase passou a ser na qualidade da gestão,

condição para a produção efetiva de resultados.

Para isso, as instituições que exercem o controle dos gastos públicos buscaram novas

formas de atuação no ambiente das políticas e dos programas públicos. O resultado

foi a sua organização em redes que se consolidaram como um importante instrumento

no intercâmbio de experiências e de metodologias voltadas para a modernização do

sistema de fiscalização.

ASSCO

M TCEM

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Nesses 75 anos de existência, o Tribunal evoluiu em termos de inovação e conhecimento,

e esse processo evolutivo norteia-se pelas principais tendências do controle, quais sejam:

(1) controle como instrumento garantidor de gestão pública eficiente, eficaz e efetiva

e de garantia dos direitos fundamentais; (2) priorização de instrumentos de controle

preventivo e concomitante da gestão pública; (3) combate à corrupção; (4) fomento à

participação social no controle governamental; (5) multidisciplinaridade do controle e,

por fim, (6) aquela que pode ser considerada a mais abrangente, que é a integração

com órgãos de controle da gestão pública, tanto para atuação conjunta quanto para o

fortalecimento do controle indireto, que implica ações promovidas por outros órgãos,

originadas na atuação do Tribunal de Contas.

Sabe-se, hoje, que o salto inovador só foi possível a partir da tomada de consciência de que

não se exerce o controle sozinho. E foi a constatação da necessidade de se enfrentar um

arrojado processo de mudanças, destinado a atender tanto aos jurisdicionados quanto à

sociedade em geral, que tornou realidade a implantação de uma ampla rede, a exemplo

daquela formada pelos Tribunais de Contas e suas associações, Ministérios do Executivo

Federal e Ministério Público Federal, Advocacia-Geral da União, Controladoria-Geral da

União, Senado Federal, Câmara dos Deputados e Banco Central, entre outros, para a

fiscalização do Projeto Copa do Mundo de 2014.

Sob a perspectiva da transversalidade com as demais instituições, sete convênios

foram assinados, neste ano, com diferentes segmentos da Administração Pública,

visando à cooperação técnico-científica e cultural, com o intercâmbio de informações

e tecnologia na área de fiscalização e controle, além da edição da Resolução n. 05/2010

que dispõe sobre a implementação e regulamentação da Ouvidoria deste Tribunal.

São inúmeras as ações a serem empreendidas por esta Casa. O caminho que percorremos

tem o seu alicerce na capacitação, na intensificação do uso da Tecnologia da Informação

e — o mais importante — nas pessoas.

Somente conseguiremos o resultado que almejamos se a alavanca, a mola mestra do

processo de modernização, estiver centrada nas pessoas, na equipe; são os talentos

somados e multiplicados e não mais distribuídos e divididos, que tornarão qualquer

iniciativa vitoriosa.

Assim, com essa visão, procurei com o auxílio de meus pares, orientando-me pelas

metas definidas no Planejamento Estratégico, realizar ações sustentadas naquele

alicerce.

Realizamos eventos de capacitação voltados para os jurisdicionados, como o “I Encontro

Técnico: o Tribunal de Contas e os Municípios”, em oito regiões do Estado, promovendo

a capacitação de mais de 2 mil servidores públicos municipais, abrangendo 545

municípios, bem como a “Semana Orçamentária”, realizada em parceria com a Escola

de Administração Fazendária (Esaf), que contou com a presença de 1.348 pessoas,

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além do Seminário “Concursos Públicos”, organizado pela Comissão de Jurisprudência

e Súmula, que reuniu 400 pessoas no auditório Vivaldi Moreira.

O ano de 2010 mostrou-se fecundo quanto às ações empreendidas na adequação física e

operacional desta Corte. As instalações do prédio sede e anexo foram reformadas, com

a troca de forro e luminárias, a racionalização de espaço foi aprimorada para receber

o novo layout do desenho organizacional e já está prevista a pintura externa de todo o

prédio do Tribunal.

Novas instalações para a Escola de Contas e Capacitação Prof. Pedro Aleixo, mais

modernas e adequadas ao seu funcionamento, estão sendo construídas em virtude da

intensificação de suas atividades, já no próximo ano.

A infraestrutura de todo o Tribunal está passando por uma modernização, contemplando

a ampliação do espaço físico destinado às diretorias técnicas, à estrutura do Ministério

Público de Contas e às instalações da Auditoria. Estão previstas a aquisição de estações

de trabalho e a melhoria das instalações para adequar cada área a sua real demanda.

Os necessários investimentos na infraestrutura do controle também nos tornarão aptos a

responder tempestivamente aos anseios da sociedade, como, por exemplo, a contratação

de consultoria para desenvolver a matriz de risco, que permitirá a realização de ações

de fiscalização segundo critérios de materialidade, risco e relevância, que nortearão a

elaboração do próximo Plano Anual de Fiscalização.

Mais ainda, merecem destaque a contratação da consultoria e capacitação em análise

econômica de Parcerias Público-Privadas, a consultoria e capacitação em auditoria

operacional na área do saneamento básico, além da consultoria para redesenho e

capacitação nos métodos e técnicas de auditoria.

Na área de pessoal, a Resolução n. 09/2010 instituiu a Política de Gestão de Pessoas do

Tribunal de Contas que tem por objetivo assegurar a disponibilidade das competências,

os saberes e as inovações de que a instituição necessita, pois somente assim poderemos

contar com pessoas qualificadas, motivadas, colaboradoras e seguras na realização de

práticas e procedimentos.

Como se vê, a maioria dos processos de trabalho do Tribunal estão sendo revistos, o que

implica o redesenho de métodos e técnicas e ações de capacitação envolvendo todo o

corpo técnico desta Casa.

Quanto a isso, podemos mencionar o curso de formação de gestores, realizado em

setembro, que promoveu o treinamento de diretores, coordenadores, assessores e

chefes de gabinete, tendo como principais objetivos conscientizar os participantes sobre

a importância do seu papel, sensibilizar a equipe sobre sua postura como “geradores de

soluções” e estimular o processo de autoconhecimento.

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Nas ações de fiscalização realizadas, cabe destacar que já existem, em andamento

no Tribunal, cinco auditorias de obras da Copa, bem como o acompanhamento de

duas concessões; a auditoria do contrato de empréstimo celebrado entre o Banco

Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e o Governo do Estado, que

envolvem recursos da ordem de um bilhão e meio de dólares; auditoria-piloto para

credenciamento do Tribunal como órgão de auditoria do Programa de Gestão Fiscal do

Estado (Profisco/Proforte) da Secretaria de Estado da Fazenda, cujos recursos somam

quarenta e quatro milhões de dólares. Além dessas, há, ainda, previsão para realização

de auditoria dos Programas Proacesso, Promg e Proseg, com recursos do BID, cuja

operação de crédito totaliza cerca de cento e trinta e sete milhões de dólares.

Importante registrar que a fiscalização de obras está sendo realizada a partir do edital de

licitação. Nesse sentido, fiscalizamos 33 contratos do Proacesso, 19 trechos de rodovias,

correspondentes a 463 quilômetros.

Certo é que a forma de controle vem sendo, paulatinamente, adequada às exigências

atuais. As ações que pretendemos realizar, visando ao controle prévio e concomitante,

partem do acompanhamento e monitoramento da gestão pública mediante informações

disponíveis no ambiente virtual, em substituição às fiscalizações tradicionais.

Exemplo disso é o desenvolvimento do Sistema de Controle de Contas Municipais

(Sicom), cuja tecnologia permite a remessa de dados ao Tribunal, a sua disponibilização

ao cidadão, bem como a captura dos dados contidos nos sistemas dos órgãos municipais.

Além disso, o próprio programa permite a emissão de certidões eletrônicas sobre os

limites da Lei de Responsabilidade Fiscal e sobre operações de crédito, o que faz do

Sicom uma ferramenta importante para uma fiscalização virtual segura e inteligente.

Outros sistemas, como o Sistema de Apoio à Fiscalização Estadual (Safe), estão sendo

desenvolvidos e serão implantados em curto espaço de tempo. Entre eles, o sistema

para monitoramento e fiscalização de obras públicas, o sistema de apoio à fiscalização,

o sistema de controle de parcerias público-privadas.

Dessa forma, os investimentos em Tecnologia da Informação possibilitaram a ampliação

do parque computacional do Tribunal, a atualização da rede e a ampliação do banco de

dados, com a mais moderna tecnologia destinada ao desenvolvimento e segurança de

sistemas de grande porte.

Cabe ressaltar a implementação do Diário Oficial de Contas (DOC) que publica os

atos administrativos, processuais e de comunicação em geral, substituindo a versão

impressa. Além da economia resultante para os cofres públicos, o DOC é uma medida de

sustentabilidade ambiental por reduzir o uso de recursos naturais.

No que se refere às ações voltadas para diminuição do passivo processual, quero ressaltar

o projeto empreendido para otimizar a emissão dos pareceres prévios sobre as contas

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dos prefeitos municipais. Conseguimos, num esforço conjunto de toda a Casa, cumprir

a meta de emitir, em 18 meses, 2.707 pareceres prévios. Ou seja, do total de 5.517

processos de prestação de contas de município, restam apenas 20% a serem examinados.

Já com relação aos processos de atos de pessoal, foram deliberados, até a segunda

quinzena de outubro, 56.121 processos, o que representa cerca de 50% do passivo

total. Também analisamos cerca de 70% dos processos relativos a recursos, denúncias e

representações, existentes na Diretoria de Controle Externo de Municípios.

Nada disso seria possível sem o comprometimento dos servidores. As pessoas representam

o nosso capital; é a soma dos talentos e da inteligência de cada um que nos permite

avançar e conduzir esta Casa, com a certeza de cumprirmos o nosso compromisso.

Sob esses aspectos, parece-me razoável afirmar que, diante desses avanços, o Tribunal

consolida o seu papel de órgão de controle em uma sociedade marcada por mudanças.

Grande é a nossa determinação, fôlego e vontade para novas conquistas.

E, por fim, consciente de que esta gestão, autorizada por um colegiado justo e atento

às exigências da sociedade, pôde inovar nas atividades de controle. Acredito que posso

também afirmar, como o apóstolo Paulo: “Combati o bom combate”.

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Apresentação por Rodolfo Viana Pereira1

1 Professor da Faculdade de Direito da UFMG e da Fumec. Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra. Coordenador Acadêmico do Instituto para o Desenvolvimento Democrático (IDDE).

Portugal, apesar da fragilidade territorial, tem vocação para o insondável, o imenso, a grandiloquência. Fundado na sequência da guerra intestina do filho Afonso Henriques contra a mãe D. Teresa de Leão, investe sobre o domínio mouro e institui a longa manus do Estado e da Igreja sobre o extremo oeste europeu. Estimulado por prestígio e riquezas, cruza com Vasco da Gama o temível gargalho para

o comércio com a rota oriental, lançando o feito para a posteridade através das letras abissais de Camões. Conquista o Novo Mundo e a Terra de Santa Cruz pela intervenção de Cabral e funda as bases políticas e geográficas daquele que é o único Estado pós-colonização ibérica que não se esfacelou em republiquetas militarescas ditatoriais.

A proporção dos feitos, apenas a História testemunhará, mas em épocas recentes não é de todo exagerado afirmar que o português Gomes Canotilho continuou a sina. Foi, e ainda é, o referencial teórico de toda a geração de publicistas brasileiros forjados após a Constituição de 1988. A grande aventura do descobrimento neste caso trilhou o caminho invertido, pois fomos nós os responsáveis por buscar em terras lusitanas o esteio intelectual para a afirmação de tantos temas caros e simbólicos à reconstrução democrática da nossa própria pátria: supremacia e dirigismo constitucional, autoaplicabilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais, garantismo e afirmação dos direitos fundamentais, comunidade normativa de princípios, entre muitos outros.

Um dos méritos pode ser associado ao anti-heroísmo desta história, pois o jovem José Joaquim não inaugurou a odisséia atraído pelo prestígio, dinheiro ou status, mas pela inquietude investigativa, pela irritação com as zonas de conforto e pela propensão idealizada da realização da ideologia política como trilha para uma sociedade justa e fraterna.

É bem certo que, passadas as décadas, os frutos do reconhecimento foram colhidos. Para ficarmos em alguns: 1) Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, instituição vetora da tradição de formação jurídica há mais de 700 anos e primordial para a estruturação da intelectualidade brasileira da época colonial até fins do século XIX; 2) Membro do Conselho de Estado, órgão de assessoramento

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EntrEvista Professor José Joaquim Gomes Canotilho

Foto: Paulo Marcio

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da Presidência da República Portuguesa para casos de alta indagação; 3) Vencedor do Prêmio Pessoa 2003, um dos mais importantes prêmios concedidos a portugueses com destacado protagonismo na vida artística, literária ou científica do país (pela primeira vez concedido a personalidade ligada à seara jurídica). 4) Constitucionalista de prestígio internacional, com várias obras de referência; 5) Parecerista e consultor festejado.

Tive o privilégio de conviver com ele na qualidade de orientando de Doutoramento durante os bons anos que passei no exterior e, se for pertinente um olhar pessoal, intriga-me o trabalho incansável, diário, em prol da honestidade acadêmica, do rigor das fontes, da dissecação dos conceitos, da escavação do erudito, imbuído da finalidade prática, do envolvimento político pedagógico, do desejo de transformação do real. A artesania intelectual levada a cabo pelo ritmo incansável do obreiro e pela satisfação pessoal é a única explicação possível para a continuidade da jovialidade do espírito, bem como para afugentar a tentação de amainar e flexibilizar os níveis de exigência profissional.

Presenciaram um relance do que digo aqueles que estiveram presentes à Conferência proferida em sua última visita a Belo Horizonte, época em que concedeu a entrevista à Revista do TCEMG: o raciocínio analítico, a correção metodológica, a extensão da pesquisa e a qualidade das reflexões.

Sejais bem-vindos, lusitanos, especialmente os amantes desta terra brasilis que, ciosa do seu estatuto de independência já secular, reconhece a autoridade de ex-patrícios, não mais pelo dever régio, mas pela admiração concidadã.

REVISTA DO TCE — Diferentemente do modelo adotado em Portugal, no Brasil, as decisões do Tribunal de

Contas não fazem coisa julgada material. Em artigo publicado na Revista do Tribunal de Contas do Estado

de Santa Catarina, V. Sa. destacou a importância deste órgão de controle como instância dinamizadora do

Princípio Republicano. V. Sa. entende que o caráter jurisdicional do Tribunal de Contas de Portugal facilita

a realização desse papel pelas Cortes de Contas? No Brasil, discute-se a possibilidade das Cortes de Contas

realizarem controle difuso de constitucionalidade. Como funciona o controle de constitucionalidade pelo

Tribunal de Contas português?

PROFESSOR J. J. CANOTILHO — Na realidade, na conferência proferida num colóquio dos Tribunais de

Contas da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, afirmei que o Tribunal de Contas — sobretudo

tendo em conta o perfil do Tribunal de Contas português — tinha uma importante função, e essa função era

dinamizadora do princípio republicano. Isso porque na Constituição portuguesa de 1911 havia uma norma

sobre a responsabilidade política associada à gestão dos recursos econômico-financeiros. Era uma norma

proveniente da Constituição brasileira de 1881, inserida na Constituição Republicana portuguesa de 1911,

que mostrava como um dos princípios republicanos básicos o princípio, digamos assim, da virtude. Da

virtude no exercício das funções públicas. E essa virtude era particularmente saliente na gestão econômico-

orçamentária e implicava reflexos na boa gestão, no não descaminho dos dinheiros públicos e no zelo com

que se utilizavam os dinheiros públicos. Isso mostrava uma articulação bastante estreita entre o princípio

republicano e o controle de gestão orçamentária.

Quanto à função jurisdicional e ao controle de constitucionalidade pelos tribunais de contas, curiosamente,

também o Tribunal de Contas em Portugal, não obstante ter funções jurisdicionais — porque há sistemas

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“[...] os poderes públicos não pecam apenas por obras, pecam também por não dizer, não fazer, não aprimorar e, muitas vezes, o estar calado, o ser omisso, acaba por ser mais abusivo aos interesses dos cidadãos do que propriamente um ato.”

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de controle que não são tribunais; há sistemas de controle que são tribunais,

mas não têm funções jurisdicionais; e há sistemas de controle em que o

Tribunal de Contas tem função jurisdicional — com possibilidade de

fiscalização e de controle, em controle difuso, mesmo assim, o tribunal de

contas português embora, muitas vezes, na ratio decidendi, mencione que

é duvidosa a constitucionalidade, não tem extraído grandes conclusões em

sede de fiscalização de constitucionalidade.

REVISTA DO TCE — Tendo em vista o papel desempenhado, hoje, pela

Corte Constitucional brasileira, V. Sa. acredita que tenha havido um

transbordamento de suas funções no que diz respeito à proteção judicial

contra omissões normativas? Como equilibrar a função precípua de

guarda da Constituição com o atendimento das demandas concretas que

a sociedade apresenta ao Supremo Tribunal Federal?

PROFESSOR J. J. CANOTILHO — Eu não queria dizer asneiras porque não

conheço verdadeiramente a jurisprudência da Corte Constitucional brasileira

relativamente às omissões normativas. Creio que essa questão, provavelmente,

tem relação com um problema que eu agitei, desde sempre, portanto desde a

Constituição dirigente, ao tratar das omissões normativas.

Ocorre que, verdadeiramente, os poderes públicos não pecam apenas por

obras, pecam também por não dizer, não fazer, não aprimorar e, muitas

vezes, o estar calado, o ser omisso, acaba por ser mais abusivo aos interesses

dos cidadãos do que propriamente um ato. Porque o ato pode ser anulado,

o ato pode ser revogado, o ato pode ser declarado inconstitucional. As

omissões não se sabe o que significam.

E daí percebi que tínhamos que levar a sério o silêncio dos poderes públicos

quer em nível de produção de leis, de produção de atos normativos ou de

outros atos regulamentares, pois eles podem ser tão ou mais importantes que

as leis para a efetivação dos direitos fundamentais. Nesse sentido, foi instituído

o mandado de injunção com a função de responder à inércia dos poderes

públicos que poderia resultar em lesões para os direitos dos cidadãos.

O conjunto do mandado de injunção e do controle da inconstitucionalidade

por omissão — que também está a aparecer na Constituição brasileira —

aponta para uma grande amplitude de competências da Corte Constitucional.

Mas, de qualquer modo, não tenho conhecimentos para dizer que o Tribunal

Constitucional está a ter um transbordamento dessas funções.

Com relação ao outro problema, de como equilibrar a função precípua de

guarda da Constituição com o atendimento das demandas concretas da

sociedade — talvez eu não seja a pessoa em condições de vos esclarecer

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“A Constituição dirigente passou a ser identificada como uma Constituição programa que impunha um quadro de políticas públicas e um quadro de atuação global ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo.”

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isto — entendo que a resposta a essa questão possa ter ligação com o fato de que o Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil é um dos tribunais com mais poder no mundo. Isso porque o Tribunal Constitucional português e o Tribunal Constitucional alemão são apenas tribunais constitucionais ao passo que o STF é um tribunal de recurso. Ou seja, é o vértice da hierarquia dos tribunais em determinados assuntos.

Ora bem, os tribunais constitucionais são tribunais de última instância em questões de inconstitucionalidade, o que significa que muitas das ampliações das funções e da aparente plenipotência do STF resultam da articulação destas duas funções: Supremo Tribunal por um lado, e Tribunal Constitucional por outro, o que naturalmente acaba por gerar uma certa amplitude de controle, mas isso é resultado, precisamente, do perfil de Tribunal que está desenhado na Constituição brasileira.

REVISTA DO TCE — Após a publicação do artigo “Rever ou romper com a Constituição dirigente? Defesa de um constitucionalismo moralmente reflexivo”, muitos doutrinadores afirmaram que a tese da Constituição dirigente havia morrido. Entretanto, em artigos posteriores, V. Sa. demonstrou que não, mas que a referida tese foi adaptada. Conforme o citado artigo, o constitucionalismo moralmente reflexivo consiste na substituição de um direito autoritariamente dirigente, mas ineficaz, através de outras fórmulas. V. Sa. cita formas de “eficácia reflexiva” ou de “direção indireta”, tais como subsidiariedade, neocorporativismo e delegação. A lei dirigente cederia lugar à transnacionalização e à globalização. Esse avanço na tese da Constituição dirigente se adapta à realidade político-social brasileira, em que os ditames constitucionais ainda não foram alcançados em sua integralidade?

PROFESSOR J. J. CANOTILHO — Essa matéria foi tema de um artigo que publiquei e resultou num colóquio em São Paulo em que eu procurava rever (ou melhor, adaptar) o problema de uma Constituição dirigente que, no meu entender, inicialmente, não era propriamente uma Constituição dirigente nos setores econômico, social e cultural. Era uma Constituição dirigente na medida em que procurava limitar a discricionariedade ou a liberdade de conformação do legislador quanto aos fins.

A Constituição dirigente passou a ser identificada como uma Constituição programa que impunha um quadro de políticas públicas e um quadro de atuação global ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo. Por esse motivo passou a ser identificada, por alguns (que não era a minha opinião), como uma Constituição totalizante, que apontava apenas para um caminho, um caminho estatizante, um caminho estatizante de políticas públicas. No caso do Brasil, muitas vezes, um caminho que se dizia utópico, porquanto fixava juros, porquanto mostrava que a Constituição tinha descido a um nível não adequado de particularização.

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“Por mais bondade material que possua, se não houver forças políticas a dinamizá-la, só, por si, a Constituição não faz transformações, embora contribua para elas.”

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A minha colocação baseou-se fundamentalmente no seguinte: é Constituição só, por si. Por mais bondade material que possua, se não houver forças políticas a dinamizá-la, só, por si, a Constituição não faz transformações, embora contribua para elas. Uma coisa é ter garantido serviço social de saúde, serviço público de ensino, serviço de escola e segurança social como está na Constituição portuguesa. Outra coisa é não ter nada ou então dizer que tudo faz parte do sistema e que pode ser um sistema convencionado, quer no ensino, quer na saúde, quer na segurança social. Nessa medida, o que permanece é a ideia de Constituição dirigente no sentido de uma Constituição programa que aponta algumas metas que devem ser perseguidas pelos poderes públicos. Se submetermos a sufrágio as Constituições, nesse contexto concreto, iremos ver que têm um amplo apoio dos cidadãos. Ou seja, até no contexto de crise, verifica-se que os cidadãos elegem “o ter trabalho”, “o ter emprego”, “o ter saúde”, “o ter segurança social”, “o ter acesso às escolas” como as questões básicas que um Estado deve satisfazer. Assim, entendo seja incontornável a ideia de que: esteja ou não na Constituição, hoje as populações não compreenderão o porquê de um Estado não prosseguir ativamente com as políticas públicas — o que exige políticas financeiras e econômicas bastante sofisticadas.

Com relação ao problema da globalização da sociedade, do neocorporativismo,

temos que perceber que há ansiedade para tentar, em alguma medida,

buscar a eficácia reflexiva, porque uma parte da evolução demonstrou,

como dizia recentemente um ilustre cultor da sociedade de risco, Ulrich

Beck — ao explicar a turbulência mundial, a crise dos Estados Unidos, dos

mercados financeiros, dos mercados imobiliários — que, verdadeiramente,

a explicação para o fenômeno de inquietação é de que havia neoliberalismo

para pobres e socialismo de Estado para ricos. Como veem, tudo isto nos

obriga, também, a procurar este equilíbrio acerca da responsabilidade no

plano interno, a responsabilidade estatal e também a um reequilíbrio no

plano mundial. Um país isolado é um país fraco, é um país desarmado. Mas,

por outro lado, não obstante as globalizações, as regulações, as constituições

civil-espaciais em nível mundial (da Lex mercatoria , da Lex digitalis, da Lex

sportiva, todas, verdadeiramente, regulações hoje globais e que temos que

nos adaptar e verificar como funciona), o que se mostra é que tem que haver

uma articulação entre a capacidade estatal do Estado “sozinho” (como é o

caso do Brasil) ou dentro de um grupo (como no caso de Portugal, membro

da União Europeia), para desenvolver políticas públicas e políticas públicas

progressistas, articulando as dimensões estatais com os pressupostos, hoje,

do direito dos confins que é o direito globalizado. E, nessa medida, há de

novo necessidade de uma ponderação reflexiva.

REVISTA DO TCE — Em seus estudos, V. Sa. tem apontado para a necessidade de um constitucionalismo global, guindado, sobretudo, pela ideia de globalização dos direitos humanos. Nessa esteira, V. Sa. acredita que as

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“[...] se há problemas que tenham de ser resolvidos em nível mundial, um deles é o problema do meio ambiente e, por esse motivo, comecei a tratar dos problemas da poluição, dos problemas ambientais e ecológicos nas relações transfronteiriças.”

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questões ambientais, ou melhor, o direito ambiental atuaria como um catalisador desse processo, na medida em que as nações pouco a pouco se conscientizam de que os efeitos da progressiva degradação ambiental são sentidos para além das fronteiras de seus Estados Nacionais?

PROFESSOR J. J. CANOTILHO — Eu tenho entendido que se há problemas que

tenham de ser resolvidos em nível mundial, um deles é o problema do meio

ambiente e, por esse motivo, comecei a tratar dos problemas da poluição,

dos problemas ambientais e ecológicos nas relações transfronteiriças. Nessas

relações, muitas vezes, os que criam os riscos não são os que sofrem as

consequências (as centrais nucleares demonstraram isso mesmo). Uns criam

o risco e outros podem sofrer. Uns decidem e outros é que sofrem com as

decisões. Um exemplo é a tragédia de Bhopal na Índia. Tratava-se de uma

fábrica que não era de propriedade dos indianos, mas foram os indianos que

sofreram com o acidente causado por ela. Agora, esse problema da plataforma

nos Estados Unidos. Como veem, a plataforma começou por lesar o mar e

as costas americanas, mas os ventos poderiam levar o petróleo para outros

países. Outros países também poderiam sofrer.

São problemas globais: o aquecimento global e as emissões de dióxido

de carbono. No fundo precisamos articular políticas — políticas que não

tenham somente um instrumento as definindo — que não sejam apenas

engendradas mediante tratados internacionais. Tem de haver instrumentos

que proporcionem certa flexibilidade — pois a China, por exemplo, diz que

não cumpre ordens internacionais. Seria preciso, talvez, esquemas jurídicos

atrelados a esquemas econômicos. Esquemas jurídicos com estímulos

financeiros. Por exemplo, fixação de metas para os automóveis, no que se

refere à emissão de dióxido de carbono, que deveriam ser cumpridas até

os anos de 2010, 2020, 2030; mercados do dióxido de carbono dos países

que poluem muito: se poluem muito, têm que pagar e têm que comprar

cotas de carbono. Isso significa que o tema é socialmente complexo e

incontornavelmente global. Desse modo, quanto a essa questão, ou vamos

ter as declarações (como as declarações do Rio) e os tratados em que haja

cumplicidade de todos, ou então o que teremos é uma resposta quase

inútil quanto aos problemas que possuímos no Direito Ambiental. E daí que

partimos do problema do Direito Ambiental, com o princípio da precaução

e outros, para demonstrar que é possível uma nova reflexão sobre os

esquemas jurídicos, os esquemas econômico-financeiros e os esquemas

políticos no âmbito do meio ambiente.

REVISTA DO TCE — Segundo V. Sa., as expressões direitos do homem e direitos fundamentais, embora muitas vezes utilizadas como sinônimas, possuem distinções. Os direitos do homem seriam direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos, partindo-se da dimensão jusnaturalista-universalista. Já os direitos fundamentais seriam direitos do

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“Os tratados internacionais e a legislação internacional, progressivamente, vão tendo uma configuração de Direito Constitucional [...]”

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homem jurídico-institucionalmente garantidos e limitados temporalmente. Partindo desses conceitos, haverá, com o constitucionalismo global, uma ampliação do conceito de direitos fundamentais aproximando-o do conceito de direitos do homem?

PROFESSOR J. J. CANOTILHO — Curiosamente, eu estou a rever esta matéria. O que está aqui é que haveria diferença entre direitos humanos e direitos fundamentais. Os direitos fundamentais seriam os direitos positivamente consagrados numa ordem jurídica constitucional e os direitos humanos seriam aqueles com pretensões universais, ou, pelo menos, universalizáveis e que, foram, sobretudo, consagrados pelos tratados internacionais, tratados multilaterais, convenções de direitos do homem, como, por exemplo, as convenções relativas à tortura, ao tráfico de seres humanos, exemplos estes que demonstram certa aproximação, hoje, entre direitos humanos e direitos fundamentais. Observem que a Convenção Europeia de Direitos do Homem é, atualmente, um tribunal de recursos, para Portugal e na União Europeia, quanto à questão dos direitos fundamentais. Isso significa que, afinal, há uma convenção europeia dos direitos humanos e tais direitos vão ser tratados como direitos fundamentais, reconhecidos pelos Estados. A Corte Interamericana dos Direitos Humanos acaba, também, por funcionar hoje como Tribunal e, portanto, realiza o controle de alguns atos do Estado que violam flagrantemente os Direitos Humanos e que também são Direitos Fundamentais. Isso porque, ao mesmo tempo em que há Direito Constitucional Internacional, ou seja, um direito que está consagrado na Constituição e que diz respeito a relações internacionais — por exemplo, o princípio da autodeterminação, o princípio da salvaguarda dos direitos dos povos, o princípio da salvaguarda dos direitos humanos, isto está consagrado nas Constituições — também, progressivamente, solidifica um Direito Internacional Constitucional. Os tratados internacionais e a legislação internacional, progressivamente, vão tendo uma configuração de Direito Constitucional — Direito Constitucional que é aplicado pelos Tribunais, é aplicado pelos Tribunais Internacionais — e, nesse sentido, adquire contornos semelhantes ao do próprio Direito Constitucional.

Por: Carolina Pagani Passos, Cláudia Costa de Araújo e Christina Vilaça Brina

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EntrEvista Professor José dos Santos Carvalho Filho

Com pendor para o Direito Público, especialmente para o Direito Administrativo, José dos Santos Carvalho Filho, notável Professor, dedicou-se a estudar e ensinar a substância dessa ciência. A profundidade de seus estudos e o conhecimento adquirido tornaram-no referência na doutrina juspublicista. Educador nato, Carvalho Filho faz e fez parte do corpo docente de diversos cursos

de pós-graduação e graduação de importantes universidades brasileiras, entre as quais a Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Veiga de Almeida e Universidade Cândido Mendes (Ucam). Obteve o título de Mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, por sua competência, tornou-se membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Entre as obras publicadas pelo célebre mestre, destacam-se os livros Ação Civil Pública, Processo Administrativo Federal e Manual de Direito Administrativo. Participou de diversas obras coletivas e conta com inúmeros artigos publicados em periódicos e revistas especializadas. Além da carreira acadêmica, o Professor atua como consultor jurídico do Ministério Público do Rio de Janeiro, tendo ingressado no órgão ministerial em 1974. Reverenciado e referenciado fartamente pela jurisprudência pátria, porquanto respeitado doutrinador, Carvalho Filho com generosa simplicidade, própria dos que detêm larga bagagem de conhecimento, ofereceu à Revista do TCE valiosas respostas às polêmicas questões a ele apresentadas. Com explanações claras e lúcidas, o admirável educador brinda a Revista do TCE com suas lições.

Revista do TCEMG

REVISTA DO TCE — A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) é pacífica em afastar a aplicação do Decreto n. 2.745/98, por considerá-lo inconstitucional. Em sentido oposto, o Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de provimento cautelar, vem admitindo a utilização, pela Petrobras, do Regulamento Licitatório Simplificado instituído pelo mencionado decreto, afastando preliminarmente sua inconstitucionalidade (MS 27743 MC/DF, STF: MS 27337/DF e MS 27232/DF). A Corte Suprema argumenta que a exigência do cumprimento, pela Petrobras, das disposições da Lei n. 8.666/93 confronta o princípio da legalidade com o regime de exploração da atividade econômica do petróleo, previsto no art. 177 CRFB/88. Qual é a opinião de V. Sa. sobre esta querela existente entre TCU e STF? E, ainda, qual a posição de V. Sa. no que tange às contratações realizadas pela Petrobras, fundamentadas no Decreto n. 2.745/98?

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PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — Esta questão está muito bem formulada por demonstrar que o nosso legislador tratou, equivocadamente, de pessoas com naturezas diversas dentro do mesmo “pacote normativo”. Isso porque, apesar de o parágrafo único do artigo 1º da Lei n. 8.666/93 dispor que se subordinam ao seu regime as pessoas da administração indireta, na verdade, não podemos entender que esta subordinação se estenda a quem é pessoa de direito privado, sobretudo quando essa pessoa de direito privado tem fins econômicos, como é o caso da Petrobras e do Banco do Brasil. Essas pessoas não podem ser tratadas como se administração direta fossem, uma vez que têm outros fins.

Percebendo essa incompatibilidade, há algum tempo atrás, o Tribunal de Contas da União concluiu que não era possível aplicar a Lei n. 8.666/93, em sua integralidade, a pessoas econômicas da administração, admitindo que, quando se tratasse de atividades meio, a licitação nos moldes da Lei de Licitações seria exigível, mas relativamente às atividades fim, a aplicação da referida Lei seria impossível, porque incompatível com a atividade econômica.

Posteriormente, a Emenda Constitucional n. 19, que alterou a redação do inciso XXVII do art. 22 e do § 1º do art. 173 da Constituição, previu que uma lei especial estabeleceria o estatuto jurídico dessas pessoas econômicas, estatuto este que regularia, entre outros aspectos, a licitação e a contratação de obras e serviços. Esse dispositivo constitucional, assim como muitos outros, até hoje não foi regulamentado, apesar de já estar previsto há 12 anos. Não foi regulamentado, mas deveria ser, porque nós precisamos ter outro “diploma de licitações” exclusivamente para pessoas econômicas. Evidentemente esse diploma teria que ter uma flexibilidade maior.

Não podemos tomar emprestado o modelo utilizado em regime de direito público, portanto amarrado por uma série de normas, e aplicar àquelas instituições que representam uma gestão econômica, empresarial. Então, para concluir, eu gostaria de dizer o seguinte: acredito que não há nenhuma ilegalidade no Decreto n. 2.745/98, inclusive entendo que a Lei n. 8.666/93 admite que haja regulamentações — até porque esse diploma, em suas disposições finais, criou uma delegação, relativamente em branco, para permitir que algumas pessoas com natureza especial tivessem uma flexibilização em relação às regras mais rígidas impostas por ele (por exemplo, com relação aos prazos que na Lei de Licitações são demasiadamente extensos).

Assim, creio que o Decreto, exatamente por permitir que haja uma flexibilização das regras do Estatuto das Licitações e Contratos, seja plenamente compatível com a natureza da Petrobras — tal como ocorreu relativamente aos regulamentos licitatórios dos Serviços Sociais Autônomos (Senai, Sesi, Sesc e Senac) em que o posicionamento do TCU evoluiu da exigência de aplicação da Lei n. 8.666/93 à aceitação de que tais serviços

“[...] apesar de o parágrafo único do artigo 1º da Lei n. 8.666/93 dispor que se subordinam ao seu regime as pessoas da administração indireta, na verdade, não podemos entender que esta subordinação se estenda a quem é pessoa de direito privado, sobretudo quando essa pessoa de direito privado tem fins econômicos [...].”

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sociais autônomos pudessem editar regulamentos próprios compostos por

regras compatíveis com a natureza dos institutos, observados os princípios

gerais do processo licitatório.

REVISTA DO TCE — Em obra intitulada Temas de Direito Constitucional, o professor Luís Roberto Barroso assevera que a doutrina brasileira passou a admitir as delegações legislativas, com a devida reserva, sempre que o legislador oferecesse standards adequados, isto é, quando houvesse linhas segundo as quais a normatização secundária do órgão delegado fosse produzida. Trata-se da denominada “delegação com parâmetros”. Considerando os limites ao poder normativo das agências reguladoras e, ao mesmo tempo, a necessidade de que haja uma gestão eficiente dos interesses e demandas sociais contemporâneas, como V. Sa. avalia a questão da deslegalização no Direito brasileiro, especialmente em relação a essas entidades da Administração Indireta?

PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — A respeito deste tema

tenho uma opinião formada, talvez não seja a melhor, nem a mais adotada,

mas é o meu convencimento por enquanto. Acredito que a delegação com

parâmetros, com standards — que já é adotada em vários países politicamente

avançados, inclusive a França — é compatível com um sistema normativo em que

a Administração tenha grande credibilidade e idoneidade junto ao seio social.

Nesse sentido, vejo a delegação com parâmetros como um avanço no sistema normativo da reserva legal, especialmente porque o Poder Legislativo não acompanha a velocidade das transformações nas relações sociais — o procedimento legislativo é muito mais lento do que se exige na sociedade.

Para solucionar essa questão foi criado um espaço no qual órgãos ou pessoas, de forma mais célere, pudessem atender às demandas da sociedade, pelo menos provisoriamente. Portanto, instrumentos como Decreto-Lei, Medida Provisória, entre outros, representam, na verdade, uma maneira de suprir demandas que se dirigem ao Poder Legislativo, sendo a morosidade desse Poder o ponto fundamental da questão. O segundo ponto é o da especificidade, ou seja, não se pode exigir que os parlamentares sejam especialistas em matérias técnicas, de alta complexidade, como, por exemplo, questões relativas ao petróleo e às telecomunicações. Visando contornar esse impasse, a ideia era de que ao legislador fosse reservada a possibilidade de criar a norma base (os parâmetros) e as agências ficariam encarregadas de implementar as políticas estabelecidas em lei e minudenciar toda a regra básica contida na lei que serviu de parâmetro. Na verdade, a delegação com standards retrata uma flexibilização do princípio da legalidade estrita, representando um avanço no sistema normativo.

Para finalizar, penso que nosso problema chama-se “credibilidade nas

instituições”. Isso eu tenho repetido e ressaltado nas palestras sobre o tema

“[...] delegação com standards retrata uma flexibilização do princípio da legalidade estrita, representando um avanço no sistema normativo.”

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“improbidade”: nós estamos vivendo um momento de baixíssimo padrão

moral, ético, e a sociedade não mais acredita nas instituições, salvo em

pouquíssimas. Isso acontece em virtude de grandes e constantes falhas do

Poder Público. Por isso, a população desconfia das agências reguladoras,

chegando mesmo a acreditar que, a pretexto de serem delegatárias, elas

possam acabar substituindo o legislador. Entretanto, adotando-se o modelo

de delegação com parâmetros, em que o órgão delegatário tem como

base a norma legal, especificando somente as minudências relativas à sua

competência, teremos um ganho enorme.

REVISTA DO TCE — Então V. Sa. não vê incompatibilidade entre a postura normativa atribuível às agências reguladoras e o entendimento da maioria da doutrina sobre a ilegalidade do decreto autônomo, do regulamento autônomo, no Brasil?

PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — Quero aqui tentar

fazer uma distinção: entendo que a delegação com parâmetros não gera

regulamentos autônomos. A única hipótese sobre a qual se poderia dizer

que a Constituição Federal permitiu a regulamentação sem lei é o caso

do artigo 84, inciso VI, da CR/88, em que o constituinte, após a Emenda

Constitucional n. 19, admitiu que o Chefe do Executivo, criasse normas de

organização. Neste caso, em tese, poder-se-ia afirmar que se trata de um

regulamento autônomo — regulamento autônomo porque prescinde de lei.

Entretanto, na delegação com parâmetros isso não ocorre, pois há sempre a

lei posta anteriormente, sendo o regulamento, em minha opinião, sempre um

regulamento de execução. A única diferença é que o órgão executor possuirá

um âmbito de atuação um pouco mais elástico, porque o legislador, como

não detinha conhecimento técnico para descer ao minudenciamento que

era exigido, elaborou a norma básica e deixou que as agências reguladoras

provessem as lacunas por meio dos atos complementares. Enfim, para

sintetizar, eu vejo a questão da delegação com standards não como a de

regulamentos ou decretos autônomos, eu a vejo como ato de execução,

regulamento de execução, porque ele pressupõe a existência de lei.

REVISTA DO TCE — A ilustre Ministra e Professora Cármen Lúcia Antunes Rocha, ao comentar alguns dispositivos da CRFB/88 — tais como: art. 144 (segurança pública), art. 205 (educação), art. 225 (meio ambiente) e art. 227 (prioridade absoluta às crianças e aos adolescentes) — afirma que “todos os direitos sociais revelam-se relacionados com a convivência com os outros numa sociedade. Por isso a própria sociedade, juntamente com o Estado, responde por esses direitos na formulação normativa da Lei Fundamental brasileira em vigor”. Com essa posição, a professora demonstra a importância da participação da sociedade civil organizada na implementação dos direitos sociais. Observa-se que a Constituição Federal

“[...] entendo que a delegação com parâmetros não gera regulamentos autônomos. A única hipótese sobre a qual se poderia dizer que a Constituição Federal permitiu a regulamentação sem lei é o caso do artigo 84, inciso VI, da CR/88 [...].”

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utiliza expressões como participação complementar de instituições privadas e colaboração da sociedade nos serviços públicos sociais, sem que desonere o Estado de seu papel como principal responsável por essa demanda. Não obstante, tem-se percebido um fluxo de recursos públicos cada vez maior para essas entidades do terceiro setor, que em muitos casos, passam a desempenhar in totum a atividade de interesse social. Qual a opinião de V. Sa. sobre este caráter substitutivo, e não mais complementar, do modelo de “publicização” das atividades sociais atribuído ao terceiro setor?

PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — Eu propugno pelo modelo de equilíbrio. Acredito que o Estado não possui condições de realizar todas as suas atividades sozinho e que, portanto, ele precisa estabelecer parcerias, mas me posiciono contra a transferência in totum dos serviços para a entidade parceira. Esse tipo de exagero, infelizmente, é um dos males da nossa administração: é oito ou oitenta. A ideia da parceria e da colaboração como diz a professora, minha amiga Cármen Lúcia, na verdade, se funda no entendimento de que a entidade parceira foi concebida para auxiliar o Estado, para “cooperar com” o Estado.

A transferência dos encargos estatais, em sua totalidade à entidade parceira, causa na sociedade uma certa suspeita de que a coisa está equivocada. Existem mais de 5000 Oscip’s. Facilmente as entidades adquirem o título de Oscip´s ou ONG’s. Tenho uma gravíssima suspeita sobre tantas ONG’s, ressalvadas aquelas sérias, que acabam também sendo objeto de suspeita. Vejo com preocupação o fato de ninguém controlar as Ong’s. Está se estudando uma forma de o Ministério Público fiscalizá-las, mas as ONG’s são pessoas privadas, então não tem sido fácil.

REVISTA DO TCE — A lei que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação Ambiental (Lei n. 9.985/2000) estabelece que as Unidades de Conservação (UC’s) poderão ser geridas por Organizações Sociais de Interesse Público (OSCIP’s) que tenham objetivos compatíveis com os das Unidades de Conservação, mediante termo a ser firmado com órgão responsável por sua gestão. Trata-se da Gestão Compartilhada das Unidades de Conservação. Nessa seara, é discutido se as OSCIP’s, como gestoras destas UC’s, teriam “poder de polícia”. Qual é o posicionamento de V. Sa. sobre o tema?

PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — Eu gostaria de elogiar a Revista do TCE porque todas as indagações versam sobre temas atuais, polêmicos. Coloco-me aqui, conscientemente, como adepto de um regime de minoria. Já deixei registrada minha opinião de que existe muita preocupação com o poder de polícia, com quem exerce o poder de polícia. Fazem-se tantas exigências para que haja poder de polícia, que tenho a impressão de que a ampliação dos poderes fiscalizatórios gera receio.

“Acredito que o Estado não possui condições de realizar todas as suas atividades sozinho e que, portanto, ele precisa estabelecer parcerias, mas me posiciono contra a transferência in totum dos serviços para a entidade parceira.”

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Sustento que existem duas formas de implementar o poder de polícia como

instrumento restritivo e condicionador de direito: criando norma de restrição

e fiscalizando o seu cumprimento. A criação destas normas de restrição deve

ter origem no Estado em virtude do preceito da reserva legal. Entretanto, de

maneira diversa, relativamente à fiscalização do cumprimento das normas

que já estão previstas na lei (e a aplicação de sanção também prescrita

na lei), eu não concordo com aqueles que entendem que esta tarefa está

restrita à competência das pessoas jurídicas de direito público.

REVISTA DO TCE — Relativamente a essa questão do poder de polícia, o STJ já se manifestou no sentido de que a Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte S/A (BHtrans) — que é uma sociedade de economia mista municipal —, em função da sua natureza jurídica de direito privado, não poderia exercer tal poder. Qual a opinião de V. Sa. sobre essa questão?

PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — Conheço essa decisão

sobre a BHtrans, porque essa matéria é muito estudada, muito debatida

exatamente no setor de trânsito. Tivemos um problema semelhante

no Rio de Janeiro com a Guarda Municipal, por ser ela empresa pública,

portanto pessoa jurídica de direito privado. Em virtude disso houve um

questionamento perante o Poder Judiciário e diversas multas, aplicadas

pelos guardas municipais, foram anuladas. Sou absolutamente contrário a

esse excesso. Entendo que a lei é o único instrumento que permite a criação

da norma de restrição e quando a própria lei admite a criação de um órgão

que tenha por função fiscalizar, não vejo porque tal órgão deva ser pessoa

jurídica de direito público. Em relação à BHtrans, acredito que, sendo essa

empresa sociedade de economia mista, criada por lei, se na sua criação

existe uma norma prevendo que caberá a ela executar a fiscalização de

trânsito, por que impedir que exerça o poder de polícia, fiscalizatório, à luz

das normas que o Estado editou? Cito um exemplo no meu livro, um exemplo

antigo, o caso da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) do

Rio de Janeiro: o Tribunal de Justiça entendeu, na época, que a Comlurb,

sociedade de economia mista municipal, poderia multar. Trata-se de um caso

não muito recente — faz uns 15 anos. O nosso Judiciário admitiu, naquela

oportunidade, que uma pessoa jurídica de direito privado pudesse exercer

o poder de polícia fiscalizatório, o poder de polícia de execução e não de

criação, em virtude de haver previsão legal. Logo, com todo respeito aos que

pensam diferente, entendo que se a lei atribuir à Oscip a possibilidade de

executar atividade fiscalizatória, a meu ver isso será plenamente viável.

REVISTA DO TCE — Segundo o entendimento de parte da doutrina, é inaceitável a ideia de que o mérito do ato administrativo seja insindicável, pois que todo ato administrativo é passível de controle. Não haveria

“[...] entendo que se a lei atribuir à Oscip a possibilidade de executar atividade fiscalizatória, a meu ver isso será plenamente viável.”

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ato a priori excluído da apreciação jurisdicional, uma vez que, onde há poder governamental ilimitado, não há Estado de direito. Partindo dessa premissa, quais seriam os limites para a apreciação e revisão, pelo Judiciário, do mérito administrativo?

PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — No meu entender, a premissa de que o mérito administrativo seja insindicável é falsa. Muitos autores afirmam que mérito é um juízo de valoração. Quem quer que decida alguma coisa, quer na vida privada ou como representante do Estado, precisa ter uma margem de liberdade reservada para decidir acerca de sua conduta. No entanto, do fato de haver esse espaço decisório para ponderação, não decorre a consequência de que tal decisão seja inviável de investigação ou insindicável pelo Judiciário. Não é bem isso. Quer dizer, quando essa ponderação é feita de forma correta, não cabe a ninguém rever o ato, pois esse ato foi produzido legitimamente. O que a doutrina sempre realçou foi o seguinte: quando se pratica um ato discricionário ponderando-se e decidindo-se entre várias opções — elegendo aquela que lhe pareceu a mais adequada —, tudo registrado e justificado, nada poderá ser indagado além dos aspectos da legalidade ou da existência de vícios.

A meu ver, a expressão “mérito administrativo” carrega hoje a mesma maldição que as expressões “ato discricionário” e o “interesse público” têm carregado. Parece que as novas gerações simplesmente consideram esses três fatores como símbolo do autoritarismo, do anacronismo do Direito Administrativo, quando não o são. Necessário é realizar a adaptação desses institutos às demandas mais modernas, que são diferentes das demandas do século XIX na França. O pouvoir discrétionnaire francês é diferente do ato discricionário do século XXI.

Desse modo, eu não falaria em “limites para a apreciação e revisão do mérito administrativo”, eu falaria, sim, em “apreciação e revisão dos elementos de validade do ato administrativo”, porque o mérito em si, se for corretamente exercido, naturalmente vai ser definitivo. Sintetizando, os limites, em minha opinião, são os vícios de legalidade. A questão não é avaliar os critérios de conveniência e oportunidade; a questão é definir se os atos discricionários são revestidos ou não de legalidade.

REVISTA DO TCE — Duas ponderações, professor, para clarearmos a questão. Primeiramente, parte da doutrina entende que a escolha feita pelo administrador tem que ser a “escolha ótima”. Desse modo, quando ele está diante de diversas opções, todas elas válidas pelo ordenamento jurídico, teria o dever de optar pela “ótima escolha”, ou a melhor escolha. A outra questão gira em torno dos cânones de razoabilidade e proporcionalidade. Na opinião de V. Sa. esses aspectos poderiam ser adotados como limitadores da “margem de liberdade” conferida ao ato discricionário?

“[...] a expressão ‘mérito administrativo’ carrega hoje a mesma maldição que as expressões ‘ato discricionário’ e o ‘interesse público’ têm carregado. Parece que as novas gerações simplesmente consideram esses três fatores como símbolo do autoritarismo, do anacronismo do Direito Administrativo, quando não o são.”

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“A proporcionalidade e seus elementos constitutivos são parâmetros para limitar aquilo que seria uma escolha indevida do administrador no exercício da discricionariedade.”

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PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — Sem dúvida. A

proporcionalidade e seus elementos constitutivos são parâmetros para limitar

aquilo que seria uma escolha indevida do administrador no exercício da

discricionariedade. Porém, quando a conduta do administrador é discricionária

e viola o princípio da proporcionalidade, isso ocorre porque tal conduta não

serve ao fim a que se destina ou porque as desvantagens são maiores que as

vantagens — situações próprias da proporcionalidade. E quando se percebe,

por exemplo, que a conduta viola a proporcionalidade, por não se destinar ao

fim que deveria, constatamos um vício de objeto no ato, pois o objeto é o alvo

imediato daquela conduta. Quando se ponderam as razões do ato e se conclui

que ele produzirá mais desvantagens que vantagens, fica evidente a existência

de uma incongruência entre o motivo que gerou a conduta e o objeto a que ela

se destina. Se pensarmos bem, em última análise, acabaríamos por concluir

que o administrador cometeu algum vício relacionado aos elementos que

constituem o ato. Nesse caso, o vício que ficaria escamoteado, escondido, é

aflorado pelo princípio da proporcionalidade.

Há algum tempo a discricionariedade significava o império do administrador

que poderia simplesmente realizar ou não determinado ato alegando o

interesse público. Hoje, entretanto, ele deve especificar as razões pelas quais

agiu de tal maneira, demonstrando o porquê de seu ato. E isso, então, dá ao

analista da proporcionalidade elementos para verificar e declarar se existe

ou não compatibilidade entre a causa e o fim. Marcelo Caetano já tratava

dessa questão há trinta anos — quando esteve exilado no Brasil. Era um dos

poucos que falava na “Teoria da Congruência” que se resume na percepção

de que não há vício somente no motivo, tampouco somente no objeto, o

vício existe na compatibilidade entre o motivo e o objeto. Nesse sentido a

proporcionalidade veio para aflorar aquilo que é dissimulado e escondido,

demonstrando, no caso concreto, que a conduta foi indevida.Relativamente

à ideia da “escolha ótima”, penso que ela é um mito. Com todo o respeito,

ela é um mito. A “escolha ótima” vai depender de uma valoração subjetiva.

Acredito ser mais adequada a expressão “conduta devida”. A conduta ou

será devida, ou indevida. Entendo que a expressão “escolha ótima” se

presta a valorar subjetivamente. Por exemplo, qual seria a melhor escolha

em relação aos juros? A do Banco Central ou a dos economistas que acham

que eles devem ser reduzidos? Neste caso, qual seria a “escolha ótima”? A do

governo, que mantém os juros altos para conter a inflação, ou a da corrente

que acha que os juros devem baixar para aumentar o desenvolvimento? A

desenvolvimentista, ou a orçamentarista? A “escolha ótima” pode ter um

cunho meramente opinativo, traduz-se em uma análise muito subjetiva, de

valoração. Não que ela seja incorreta, mas acarreta riscos.

REVISTA DO TCE — Em 2004, a Emenda Constitucional n. 45 criou o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Atualmente, tramita

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“[...] o contributo dos Conselhos Nacionais é o de coibir os abusos. Contudo, deve-se observar sempre, e com o devido cuidado, os limites para o exercício das atividades desenvolvidas por eles.”

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no Congresso Nacional a PEC n. 146/2007 cujo objeto é a criação do Conselho Nacional dos Tribunais de Contas (CNTC). Assim, considerando a sua experiência como ex-Procurador de Justiça e as transformações ocorridas no Ministério Público a partir da criação de seu respectivo Conselho, quais serão, na opinião de V. Sa., os contributos para o controle das contas públicas e boa gestão do erário que advirão da criação do Conselho Nacional das Cortes de Contas?

PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — Estou no momento

escrevendo sobre os dois Conselhos. Na verdade escrevo para suscitar as minhas

dúvidas, pois tenho observado que ninguém sabe ao certo quais são os limites

de atuação dos Conselhos, que são uma novidade constitucional e apresentam-

se como órgãos — “superconselhos” — de controle de algumas instituições

“intocáveis”. Enquanto alguns estudiosos dão a eles uma tendência legislativa

própria, outros lhes atribuem alguns limites. Desse modo, estou fazendo um

estudo para verificar qual foi o propósito da criação dos Conselhos.

Historicamente, o Judiciário e o Ministério Público sempre foram instituições

intocáveis, corporativistas, sendo a criação dos Conselhos uma resposta à

sociedade que identificou muitos abusos nessas instituições. Posso dizer que

o grande contributo de um Conselho, a meu ver, é o de evitar que tais

instituições abusem do seu poder.

Por outro lado, há o risco da extensão do poder desses Conselhos. Nesse sentido,

pergunta-se: seria o Conselho Nacional do Tribunal de Contas o controlador

rotineiro de todos os Tribunais de Contas do país, ou seria um controlador eventual?

O CNMP teria o direito de solicitar todas as contas relatadas mensalmente pelos

membros do Ministério Público, ou ele deveria atuar apenas no momento em

que alguém impugnasse uma atuação específica, eventual e pontual? A resposta

a essas perguntas é importante, pois se o controle for constante, teremos então

quatro controles financeiros: o interno, o da Controladoria, o do Tribunal de

Contas e o do Conselho. E isso poderia acabar gerando excesso de controle, que

resultaria, provavelmente, na ineficácia do controle, pois como dizem: excesso

de controle é igual a nenhum controle.

Para sintetizar, o contributo dos Conselhos Nacionais é o de coibir os abusos.

Contudo, deve-se observar sempre, e com o devido cuidado, os limites para

o exercício das atividades desenvolvidas por eles. Nesse sentido, muito se

questiona acerca da competência do CNJ e do CNMP para editar resoluções.

Por exemplo, os Conselhos teriam competência para editar resolução sobre

a questão do nepotismo, detalhando inclusive quem são os sujeitos dessa

relação? De fato todos nós gostamos dessa resolução — porque na verdade o

nepotismo traz à tona histórias estranhíssimas e que causam repúdio social.

Mas, em relação a essa norma, qual seu nível normativo? Essas obrigações

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“Precisamos demonstrar quais os limites de atuação dos Conselhos, porque eles não se tornaram outro Poder da República.”

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poderiam ser veiculadas por meio de resolução editada por um Conselho, ou deveriam ser estabelecidas em lei?

Para solucionar todas essas e outras dúvidas, estou estudando essa matéria. Precisamos demonstrar quais os limites de atuação dos Conselhos, porque eles não se tornaram outro Poder da República. Estou sustentando que tais limites são competenciais, ou seja, as regras editadas por esses órgãos não são genéricas, normativas como as regras da lei, são regras normativas limitadas, pois devem estar contidas no âmbito da competência constitucional. Mas eu ainda estou refletindo sobre isso.

REVISTA DO TCE — Contemporaneamente, verifica-se a tendência de alguns integrantes da escola fluminense de Direito Constitucional de não mais admitir, acrítica e aprioristicamente, o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, o que vem sendo objeto de inúmeros questionamentos por parte da doutrina tradicionalista do Direito Administrativo. Como V. Sa. avalia esta questão?

PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — Recentemente eu escrevi um artigo, para uma obra coletiva coordenada pela Maria Sylvia Zanella Di Pietro, sobre o interesse público: “Interesse público: verdades e sofismas”. Nesse artigo, procurei fazer uma análise acerca da supremacia do interesse público e o que eu concluí se assemelha bastante ao que antecipei sobre mérito administrativo. Dizer, hoje, que a supremacia do interesse público é uma maldição, um anacronismo, não é a posição mais correta. O que sustento é o seguinte: enquanto houver Estado e sociedade, deverá haver a supremacia do interesse público. Apesar das posições divergentes de alguns estudiosos — como Daniel Sarmento e Alexandre Aragão, da UERJ, Humberto Ávila e Sérgio Guerra — que entendem o princípio da supremacia do interesse público como empecilho para a realização dos direitos fundamentais, individuais e sociais, previstos na Constituição, e que a modernidade no Direito Administrativo passaria pela eliminação e não pela adequação de alguns institutos, acredito que é plenamente possível conciliar o respeito aos direitos fundamentais com a realização do interesse público, pois da premissa sobrevém a conclusão.

Ora, jamais a supremacia do interesse público poderia significar que o Estado tenha que violar direitos fundamentais, não é isso. Existem dois tipos de interesse na sociedade: o interesse público, e o interesse privado. Ou aceitamos a disciplina social e consideramos que o interesse da coletividade deve sobrelevar aos interesses de particulares — o que é uma coisa natural — ou então, criamos um conflito social muito grande, porque a sociedade é feita de gente que tem interesses. Dou como exemplo as reuniões de condomínio. Dificilmente não se tem divergência, conflito de interesses. Imaginem isso em maiores proporções, principalmente se preconizamos a prevalência do

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“[...] se atribuíssemos o prazo prescricional de três anos para as pessoas privadas e continuássemos atribuindo o prazo de cinco anos [...] para as pessoas públicas, simplesmente, estaríamos invertendo toda lógica do sistema.”

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interesse privado, individual, sobre o coletivo. Nesses casos, o conflito seria

interminável. A supremacia consubstancia-se na adequação dos interesses da

coletividade, resguardando os interesses e garantias da Constituição.

REVISTA DO TCE — Embora não tenha feito expressa menção à prescrição das pretensões contra a Fazenda Pública, o Código Civil de 2002 reduziu o prazo prescricional das demandas de reparação de danos para 3 (três) anos, nos termos do seu art. 206, § 3º, inciso V. Todavia, o Decreto n. 20.910/1932 e o Decreto Lei n. 4.597/45 preveem o prazo prescricional de 5 (cinco) anos para as ações de reparação de dano em face da Fazenda Pública. Considerando que estes últimos instrumentos normativos retratam normas especiais e, considerando, ainda, que o prazo do Código Civil, norma de caráter geral, é menor e, portanto, mais favorável à Administração demandada, na opinião de V. Sa., qual prazo prescricional deve ser aplicado às ações civis de reparação de danos propostas em face do Estado?

PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — Sobre este tema já tive

a oportunidade de esposar, em meu livro, minha opinião. Inicialmente recebi

várias críticas porque as pessoas somente apontavam os mesmos argumentos:

“a lei geral não revoga a especial, a especial não revoga a geral”, mas se formos

por esse caminho, de fato, não chegaremos a conclusão nenhuma, e tenho a

opinião de que essa interpretação só pode ser bem vista se for sistemática.

Ao confrontarmos norma com norma não encontraremos a solução. Mas, se

examinarmos a interpretação histórica e sistemática, perceberemos que nosso

sistema normativo sempre privilegiou a Fazenda Pública, concedendo a ela um

prazo menor do que o das demais pessoas, pelo óbvio motivo de ela possuir

mais encargos. Por essa razão a ela foi concedida essa prerrogativa especial. E

isso, desde 1932, com o Decreto 20.910. O novo Código Civil de 2002, vigente,

reduziu para três anos o prazo prescricional relativo à reparação civil. Observei,

então, que se atribuíssemos o prazo prescricional de três anos para as pessoas

privadas e continuássemos atribuindo o prazo de cinco anos — previsto no

Decreto n. 20.910/32 — para as pessoas públicas, simplesmente, estaríamos

invertendo toda lógica do sistema. A meu ver, para mantermos a coerência,

temos que admitir que a Fazenda Pública “foi prejudicada” no sentido de que,

agora, está igualizada aos particulares. No começo, praticamente ninguém

aceitava essa opinião, mas, depois houve vários julgados no Superior Tribunal

de Justiça (STJ) e em outros tribunais, corroborando essa tese que, creio,

acabará prevalecendo. Assim, a interpretação lógica é no sentido de que o

Decreto n. 20.910/32, nessa parte, sofreu a incidência do Código Civil pela

redução do prazo prescricional.

REVISTA DO TCE — Como V. Sa. enxerga o Princípio da Reserva do Possível? Sua aplicação seria fator de limitação à proteção dos direitos fundamentais sociais?

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“[...] sou um crítico ferrenho dessas empresas econômicas paraestatais, pois que são um foco de corrupção e de incompetência, e isso está provado.”

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PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — Não. Eu entendo que não.

Aqui há que se fazer uma compatibilidade. Primeiramente, quem trabalha

com finanças públicas sempre ficará adstrito a uma reserva do possível, a

não ser que os recursos sejam ilimitados, pois nesse caso tudo será possível.

Mas a realidade é que o orçamento público é limitado e deve-se trabalhar

com o possível. A reserva do possível indica que o agente público tem que

atuar tendo em vista as limitações orçamentárias.

Relacionando a questão da reserva do possível à proteção dos direitos

fundamentais sociais, devo dizer que nenhum país do mundo com limitações

orçamentárias e carências financeiras pode realizar todas as políticas sociais

que gostaria de ver implementadas. Bom seria se nós pudéssemos ter o

“princípio do possível sem reserva”. Seria o melhor, porque poderíamos

implementar tudo. Vou exemplificar com questões que costumam acontecer

aqui no Ministério Público. Temos no MP várias promotorias — promotoria do

idoso, da criança e do adolescente, do consumidor, do meio ambiente, da

proteção do patrimônio público — e os colegas que estão em cada uma dessas

promotorias acham que tudo tem que ser possível para eles, até mesmo em

detrimento das outras áreas. Contudo, metaforicamente falando: no uso de

cobertor curto, quando se cobre a cabeça, descobrem-se os pés; quando se

cobrem os pés, descobre-se a cabeça. Por isso eu entendo que a reserva do

possível é a única alternativa para quem tem limites financeiros. Não é falta

de vontade de fazer. É falta mesmo de recursos.

REVISTA DO TCE — A Emenda Constitucional n. 19/98 introduziu reformas na estrutura administrativa do Estado que pretenderam a implementação de uma gestão pública eficiente, pautada na transparência, no planejamento, na austeridade e na economicidade. Na opinião de V. Sa., a reforma administrativa proporcionou avanços no que se refere à consecução da finalidade estatal?

PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — Eu entendo que

proporcionou poucos avanços. A Emenda Constitucional n. 19 acabou de fazer

12 anos, tendo sido uma grande exortação constitucional. Em minha opinião,

a implementação efetiva da reforma do Estado está longe de acontecer.

Sabe por quê? Porque não basta a existência do princípio da eficiência na

Carta Constitucional para que a gestão pública eficiente passe a existir. A

mera menção constitucional não é garantia de implementação da vontade

constitucional. O Estado ainda tem muito que avançar em termos de gestão,

sobretudo na questão relativa aos serviços públicos. Apesar disso, acredito

que a EC n. 19 foi um avanço no que se refere à descentralização dos serviços

públicos, à privatização ou desestatização de alguns serviços econômicos.

A quebra do monopólio do petróleo, a eliminação de empresas econômicas

paraestatais, por exemplo, foram grandes avanços — digo isso porque sou

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“Temos que considerar que nosso sistema tem um grave problema — que é o apadrinhamento político. Muitas dessas empresas eram, na verdade, redutos de apadrinhados. Evidentemente, empresas assim não geram lucros nunca, pois a competência dá lugar ao favorecimento.”

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um crítico ferrenho dessas empresas econômicas paraestatais, pois que são um foco de corrupção e de incompetência, e isso está provado.

REVISTA DO TCE — Mas qual a opinião de V. Sa. a respeito da Petrobras, que não obstante ser Empresa Estatal rende lucros e hoje é uma das maiores empresas do mundo?

PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — A Petrobras é exatamente uma exceção que confirma toda a regra. Existem dezenas de empresas que foram privatizadas e as estatísticas confirmam que antes da desestatização apresentavam prejuízos anuais, e depois dela, lucros. Até mesmo a Vale do Rio Doce avançou com a privatização, pois embora, antes, gerasse lucro, auferiu, após, retornos financeiros muito maiores. Temos que considerar que nosso sistema tem um grave problema — que é o apadrinhamento político. Muitas dessas empresas eram, na verdade, redutos de apadrinhados. Evidentemente, empresas assim não geram lucros nunca, pois a competência dá lugar ao favorecimento.

Gostaria de dar um exemplo, só para encerrar: aqui no Rio de Janeiro, há muitos anos, existia uma sociedade de economia mista que desempenhava uma função econômica — serviço público econômico de transportes urbanos — a Companhia de Transporte Coletivo (CTC). Ela era responsável por três ou quatro linhas de ônibus, como qualquer empresa privada. As empresas privadas que atuavam no Rio tinham como proprietários, em sua maioria, portugueses e espanhóis, e todas elas cresceram, compraram mais ônibus, expandiram suas linhas. A única empresa que quebrou foi a CTC, que era a sociedade de economia mista. É algo muito intrigante uma vez que o mercado era lucrativo para diversos investidores e todos continuavam ganhando dinheiro: somente a empresa gerida pelo Estado quebrou. Procuram-se justificativas, razões aqui e ali para explicar o que aconteceu, mas na verdade foi o seguinte: as empresas privadas tinham uma quantidade de pessoal “x”, a empresa gerida pelo Estado tinha 10 vezes “x”; as empresas privadas tinham 03 motoristas para cada ônibus, divididos em 03 turnos de oito horas, a estatal tinha 18 motoristas. O setor de relatório na CTC tinha mais de 30 pessoas — em uma empresa que faz transporte coletivo. Realmente uma empresa assim não pode dar lucro nunca, vai quebrar, não há quantidade de passageiros que compense tantos gastos. Eu acho que o Estado é muito obtuso com relação a essa questão, porque ele poderia ganhar onde o particular ganha. Mas, como se apresenta como mau gestor, acaba criando um processo de desestatização pela incompetência.

REVISTA DO TCE — V. Sa. mencionou, em artigo publicado, que, a reforma administrativa teria de ser precedida de uma reforma moral dos nossos governantes, dos agentes públicos e da sociedade, pois não adianta reformar se a mentalidade continuar viciada. Gostaríamos que nos explicasse melhor esse seu pensamento.

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PROFESSOR JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO — Nesse artigo concluo que esse é um problema metajurídico, sociológico, e que a sociedade precisa se transformar. Ultimamente tenho feito algumas leituras sobre sociologia, e algo interessante que li e no qual acredito piamente, é o seguinte: quando se pergunta por que a sociedade não reage a tudo que tem visto — como os escândalos e a corrupção —, os sociólogos respondem que há uma razão, qual seja, a sociedade não reage porque tem padrão ético baixíssimo, os indivíduos vivem a expectativa de ascender ao poder e se locupletar como os atuais agentes públicos corruptos, tendo aquela intenção de “se dar bem”. Então só com a transformação social poderemos retomar alguns valores éticos.

Por: Carolina Pagani Passos, Cláudia Costa de Araújo, Leonardo de Araújo Ferraz e Maria Tereza Valadares Costa

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NOTÍCIAS

Semana orçamentáriaMais uma ação pedagógica do Tribunal

A maturidade institucional desta Casa confirmou-se durante a Semana de Administração Orçamentária, Financeira e de Contratações Públicas para os Estados e Municípios, realizada no período de 15 a 17 de setembro de 2010, no Minascentro, onde se reuniram 1.348 participantes, entre eles profissionais ligados à administração, contabilidade e finanças públicas.

Ao longo de seus 75 anos, o Tribunal de Contas evoluiu de mero “guarda- livros” das contas públicas para auditor dos recursos públicos e educador, porquanto fomenta, sistematicamente, a capacitação de servidores e de gestores municipais.

A relevância pedagógica do evento para a atividade de controle externo, responsabilidade fiscal e atos de contratação pública foi enfatizada, na cerimônia de abertura, pelo Conselheiro Presidente Wanderley Ávila e pelo Governador de Minas Gerais Antonio Anastasia.

A programação incluiu 21 oficinas com palestras, debates técnicos e esclarecimento de dúvidas sobre os temas: Plano Plurianual; Lei de Diretrizes Orçamentárias; Lei Orçamentária Anual; Lei de Responsabilidade Fiscal; pregão; convênios e prestação de contas; contabilidade pública; transparência na gestão pública; controle interno; consórcios e plano de contas único.

O evento foi realizado pelo TCEMG, por intermédio da Escola de Contas e Capacitação Prof. Pedro Aleixo, em parceria com a Escola de Administração Fazendária (Esaf), instituição responsável pelo projeto pedagógico, e o Programa de Modernização do Sistema de Controle Externo dos Estados, Distrito Federal e Municípios brasileiros (Promoex).

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TCEMGna primeiraedição da RTTC

A edição inaugural da Revista Técnica

dos Tribunais de Contas do Brasil (RTTC),

lançada pela Associação dos Tribunais

de Contas do Brasil (Atricon), que teve

como tema os 10 anos de vigência da

Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF),

contou com artigo do Auditor Licurgo

Mourão em coautoria com os servidores

Gélzio Viana Filho e Marlon Nonato

Nascimento. O paper do Auditor trata

dos avanços e dos entraves, e outros

aspectos polêmicos envolvendo a LRF

e o cumprimento dos limites de gastos

com pessoal pelos órgãos e Poderes.

Tribunais de Contas se Tribunais de Contas se Tribunais de Contas se Tribunais de Contas se Tribunais de Contas se Tribunais de Contas se comprometem com a comprometem com a comprometem com a comprometem com a comprometem com a comprometem com a preservação do meio preservação do meio preservação do meio preservação do meio preservação do meio preservação do meio

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O Conselheiro Sebastião Helvecio, em reunião técnica inaugural realizada em 11 de março deste ano, defi niu as diretrizes para o acompanhamento das Contas Governamentais relativas ao exercício de 2010, das quais é o relator.

O plano de trabalho consiste em reuniões mensais entre o Conselheiro Relator, sua equipe, composta de membros da Comissão de Apoio ao Relator, e representantes da Câmara de Coordenação Geral, Planejamento, Gestão e Finanças do Estado.

A idéia pioneira partiu da premissa da necessidade do controle concomitante da

Contas Governamentais/2010Acompanhamento conjunto e sistematizado

execução do orçamento, por suas implicações ao longo do exercício, e da verifi cação do cumprimento das recomendações e determinações constantes dos pareceres prévios emitidos pelo Tribunal nos últimos anos.

O novo procedimento visa racionalizar e dar celeridade ao acompanhamento da gestão uma vez que diversos apontamentos são solucionados sem a necessidade de diligências, ofícios e intimações. As reuniões com a presença dos representantes do Governo Estadual têm se revelado extremamente exitosas no desenvolvimento dos trabalhos do controle externo nas contas do governo.

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sA Revista do Tribunal de Contas de Minas Gerais, nas

edições de 2010, prestou homenagem aos escritores

mineiros, elegendo quatro deles como representantes.

As características marcantes desses notáveis foram

reveladas aos leitores pela arte de amigos literatos

que aceitaram pronta e graciosamente apresentá-

los, o que muito engrandeceu a nossa revista. A

estes ilustres convidados: Olavo Romano, Bartolomeu

Campos de Queirós, Luís Giffoni e Yeda Prates Bernis

agradecemos a tão generosa colaboração.

A Revista do TCEagradece aos mestres colaboradores

Sicop recebeprimeira remessa de dados

O Sistema de Controle de Licitações, Contratos,

Convênios, Adiantamentos e Prestações de

Contas (Sicop) é um programa informatizado

para remessa de informações diretamente

ao Tribunal de Contas. Conforme previsto na

Instrução Normativa TC n. 02/2010, estão

sujeitos a prestar informações pelo sistema:

Assembléia Legislativa, Poder Judiciário,

Ministério Público e empresas controladas

direta ou indiretamente pelo Estado. Assim

tais Órgãos e entidades devem submeter ao

TCEMG, por via da internet, dados referentes

a procedimentos licitatórios; contratos,

convênios e instrumentos congêneres;

prestações de contas de convênios,

adiantamentos e viagens; entre outros.

Em outubro, os jurisdicionados enviaram a primeira

remessa de informações relativas ao período de

janeiro a setembro de 2010, o que confi rma ter

sido o sistema implantado com êxito.

Mesmo assim, consoante o Coordenador da

4ª Coordenadoria de Fiscalização Estadual do

TCEMG, Carnot Jacy Roque Júnior, já se cogita

o aperfeiçoamento do Sicop para a melhoria

da efi cácia das ações do controle externo.

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A Revista do Tribunal de Contas de Minas Gerais, nas

edições de 2010, prestou homenagem aos escritores

mineiros, elegendo quatro deles como representantes.

As características marcantes desses notáveis foram

reveladas aos leitores pela arte de amigos literatos

que aceitaram pronta e graciosamente apresentá-

los, o que muito engrandeceu a nossa revista. A

estes ilustres convidados: Olavo Romano, Bartolomeu

Campos de Queirós, Luís Giffoni e Yeda Prates Bernis

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O Parecer Prévio* como instrumento de transparência, controle social e fortalecimento da cidadania

* Parecer Prévio emitido pelos Tribunais de Contas sobre as contas prestadas anualmente pelos chefes dos Poderes Executivos Federal, Estaduais e Municipais.

Antônio Carlos Doorgal de Andrada

Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Bacharel em Direito. Professor universitário. Especialista em Direito Público.

Laura Correa de Barros

Graduada em Administração de Empresas e Ciências Contábeis. Acadêmica de Direito. Mestre em Administração Pública.

Resumo: Este artigo discute a importância do Parecer Prévio sobre as contas do governo. Os Prefeitos, os Governadores e o Presidente do Brasil são responsáveis por suas próprias prestações anuais de contas. O Parecer Prévio sobre cada uma dessas prestações é elaborado, em âmbito local ou federal, pelo respectivo Tribunal de Contas (instituição que auxilia o Poder Legislativo no exercício do controle externo e na responsabilização do Poder Executivo). A publicação do Parecer Prévio é importante para assegurar a transparência das ações governamentais.

Palavras-chave: Parecer Prévio. Tribunal de Contas. Responsabilização. Transparência.

Abstract: This paper discusses the importance of the Preliminary technical report on the annual government general balance sheet. The President, the Governors and the Mayors are responsible for their own annual accounting reports. The preliminary report on those sheets is performed by the local or the federal Court of Auditors (institution that help Parliaments to hold Executive accountable for its actions). The publishing of the preliminary technical report is important to secure transparency of government actions.

Keywords: Preliminary technical report on the annual government general balance sheet. Court of Auditors. Accountability. Transparency.

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1 Introdução

Este artigo tem por finalidade evidenciar a importância do Parecer Prévio emitido pelos Tribunais de Contas sobre as contas anuais prestadas pelos chefes dos Poderes Executivos Federal, Estaduais e Municipais, como valioso instrumento de transparência das gestões públicas, que favorece o controle social das contas públicas e fortalece o exercício da cidadania, no Estado Democrático de Direito.

Visando maior objetividade, o trabalho está organizado em tópicos específicos que reúnem informações relevantes relacionadas ao Parecer Prévio.

2 Competências constitucionais dos Tribunais de Contas

No ordenamento jurídico brasileiro, o órgão competente para emitir o Parecer Prévio acerca das contas prestadas anualmente pelo Poder Executivo é o Tribunal de Contas, acorde com a dicção do art. 71, I, da Lex Mater.

Em seu art. 75, a Carta Magna determina a aplicação das normas sobre a fiscalização contábil, financeira e orçamentária, aí incluída a norma expressa no supracitado art. 71, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios. Nesse sentido, as Constituições Estaduais contêm disposição acerca da obrigatoriedade de Parecer Prévio emitido pelos Tribunais de Contas Estaduais sobre as contas dos Governadores de Estado. A Constituição Estadual Mineira de 1989 dispõe que o controle externo, em âmbito estadual, é exercido pela Assembleia Legislativa, com auxílio do Tribunal de Contas, ao qual compete a emissão de Parecer Prévio sobre as contas do Governador; em âmbito municipal, esse controle é exercido pela Câmara Municipal, que deve julgar as contas do Prefeito mediante Parecer Prévio do Tribunal de Contas.

Especificamente em relação aos prefeitos municipais, em seu art. 31, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê a emissão de Parecer Prévio, pelos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou pelos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, verbis:

Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.

§ 1º O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.

§ 2º O Parecer Prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.

[...]

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Importante salientar, nesse contexto, que essas competências não podem ser mitigadas ou suprimidas pelo legislador infraconstitucional, como aliás já decidiu o Excelso Pretório no julgamento da ADI 849/MT.

As competências do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais relativas ao Parecer Prévio estão dispostas em seu Regimento Interno, em especial, nos arts. 3º, 25, 32 e 228.

3 Marcos conceituais

A precisa conceituação de expressões, como Parecer Prévio e contas do Presidente ou, de forma mais genérica, contas de governo são necessárias para esclarecer o assunto abordado neste artigo.

O termo genérico parecer, conforme a doutrina sobre Direito Administrativo da obra de Celso Antonio Bandeira de Mello (2009, p. 434), significa “manifestação opinativa de um órgão consultivo expendendo sua apreciação técnica sobre o que lhe é submetido”. De forma similar, Hely Lopes Meirelles (2006, p. 176) define pareceres administrativos como “manifestações de órgãos técnicos sobre assuntos submetidos à sua consideração”. Em ambas as definições é possível perceber a enfática presença do caráter técnico que é atribuído ao termo genérico parecer, caráter este também presente no termo específico Parecer Prévio.

Sobre o termo prévio, este traduz a ideia de que o Parecer Prévio é emitido antes do julgamento, pelo Poder Legislativo, das contas prestadas anualmente pelo Poder Executivo (SILVA, 2003).

Antes da apresentação da definição do termo específico Parecer Prévio, vale mencionar que Cleber Demetrio Oliveira da Silva (2003) considera o Parecer Prévio como um “dos mais importantes resultados do processo administrativo desenvolvido pelos órgãos de controle externo.”

No mesmo sentido, conforme informações constantes do sitei do TCU sobre as contas do Presidente da República, relativas ao exercício de 2009:

A emissão do referido Parecer Prévio pelo TCU constitui etapa fundamental no processo de controle externo da gestão pública, pois subsidia o Poder Legislativo com os elementos técnicos de que necessita para emitir o seu julgamento acerca das contas em comento.

Assim, em termos mais particulares, o Parecer Prévio pode ser definido como um documento que contém a análise técnica e, a priori, formal, feita pelo Tribunal de Contas da União, por Tribunal de Contas Estadual ou por Tribunal de Contas dos Municípios sobre determinados aspectos das contas prestadas anualmente pelos chefes dos Poderes Executivos Federal, Estaduais ou Municipais, análise esta que orientará o Poder Legislativo no julgamento dessas contas.

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Especificamente sobre a natureza técnica do Parecer Prévio, José Barros de Santana Júnior (2008, p. 54) assevera que:

Verifica-se a importância do Parecer Prévio como fonte de informação mais independente, elaborada por um órgão técnico e autônomo, que tem como incumbência auxiliar o Poder Legislativo na tarefa de controle externo, visando à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do ente público.

Uma vez mencionado o caráter técnico do Parecer Prévio, resta explicar, brevemente, o caráter, a priori, formal da análise contida nesse parecer.

A formalidade da análise realizada, em sede de Parecer Prévio, pelos Tribunais de Contas, reside no fato de que o objeto principal dessa análise é a maneira como as informações são fornecidas pelos próprios chefes dos Poderes Executivos. O exame formal parte do pressuposto de que os valores das contas informados pelos chefes dos Poderes Executivos estão corretos, ou seja, a princípio, a integridade material dessas informações não passa por questionamentos ou investigações mais profundas.

Isso não significa dizer que o Tribunal de Contas não possa detectar alguma falha na prestação de contas; algumas falhas formais podem, inclusive, motivar investigações substanciais.

Um dos erros mais comuns detectados durante o exame formal das contas é a classificação inadequada de determinadas despesas, causando influências indevidas no cálculo de gastos percentuais mínimos em saúde e educação. Quando detectados, esses erros deverão ser corrigidos e justificados pelo chefe do Poder Executivo; do contrário, o ente fiscalizador poderá rejeitar as contas prestadas.

Assim, a análise feita em sede de Parecer Prévio é, a princípio, superficial, tendo como objetivo principal a emissão de uma deliberação técnica sobre os aspectos atinentes à forma da prestação de contas consolidadas, se estão em harmonia com os requisitos exigidos pelas normas aplicáveis.

A situação ideal deveria presumir um entrelaçamento entre os dados constantes das contas prestadas e as informações obtidas em investigações por meio de auditorias e inspeções in loco. As considerações resultantes do uso desses instrumentos podem desconstituir a integridade presumida de algum valor da prestação de contas e, dessa forma, podem interferir na opinião emitida em sede de Parecer Prévio; caso essa interferência ocorra, a análise feita poderá deixar de ter caráter puramente formal, pois tais considerações ultrapassam o limite da forma, constituindo uma análise substancial sobre um ou mais aspectos da prestação de contas.

Dessa forma, o Parecer Prévio teria otimizada a sua capacidade de funcionar como peça auxiliar no exercício do controle da ação governamental.

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Concluída a breve explicação sobre o aspecto formal da análise em sede de Parecer Prévio, ressalte-se definição de contas do Presidente, de Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 934):

“Contas do Presidente” são, além dos documentos relativos à gestão anual que este é obrigado a exibir (balanços, demonstrativos e anexos previstos no art. 101 da Lei n. 4.320, de 17/03/64) para análise meramente dos aspectos formais, as que concernem aos atos ou indevidas omissões próprios e específicos do Chefe do Poder Executivo, de responsabilidade pessoal dele, vale dizer, que lhe sejam direta e pessoalmente imputáveis e que, estas sim, terão de passar por um crivo substancial. Por isto, é curto o prazo de que dispõe o Tribunal de Contas para apreciá-las.

Jorge José Barros de Santana Júnior (2008, p. 53) utiliza a expressão mais genérica contas de governo:

[...] As contas de governo são aquelas prestadas, anualmente, pelo chefe do Poder Executivo (por exemplo, o governador) e que representam a consolidação das contas de todos os Poderes e Órgãos referenciados a cada exercício financeiro.

Por fim, vale dizer que a emissão do Parecer Prévio ocorre apenas para as contas prestadas pelo chefe do Poder Executivo, conforme informações constantes do siteii do TCU que disponibiliza a apreciação, por meio de relatório e Parecer Prévio, das contas do governo federal relativas ao exercício de 2009:

Registro que o TCU emite Parecer Prévio apenas sobre as contas prestadas pelo Presidente da República, pois as contas atinentes aos Poderes Legislativo, Judiciário e Ministério Público, ao contrário, em vez de serem objeto de pareceres prévios individuais, são efetivamente julgadas por esta Corte de Contas, em consonância com a Decisão do Supremo Tribunal Federal, publicada no Diário da Justiça de 21/08/2007, ao deferir Medida Cautelar no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI n. 2.238-5/DF. O Relatório sobre as Contas do Governo da República contempla, também, informações sobre os demais Poderes e o Ministério Público, compondo assim todo um panorama da Administração Pública Federal (palavras do Ministro-Relator Raimundo Carreiro).

As definições trabalhadas neste tópico são essenciais para se entender a importância do Parecer Prévio emitido sobre as contas prestadas anualmente pelos chefes dos Poderes Executivos Federal, Estaduais e Municipais, sendo constantemente utilizadas nos tópicos posteriores deste artigo.

4 Relevância do Parecer Prévio para o mecanismo de “freios e contrapesos” entre os Poderes e sua relação com a inelegibilidade

Conforme evidenciado pelos dispositivos constitucionais já referenciados, o modelo de fiscalização de governo consagrado pela Constituição da República Federativa de 1988, de adoção obrigatória por todos os entes federativos, é o do controle externo exercido pelo Poder

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Legislativo sobre o Poder Executivo, sendo aquele auxiliado — mas sem que haja submissão — pelo Tribunal de Contas. Nessa perspectiva, o Parecer Prévio, emitido pelos Tribunais de Contas, pode ser percebido como uma importante e imprescindível peça de natureza técnica que orienta o Poder Legislativo no julgamento das contas prestadas anualmente pelo Poder Executivo; esse julgamento, por sua vez, é uma das formas de efetivação do mecanismo de equilíbrio entre esses Poderes e de fiscalização de um Poder sobre o outro, mecanismo chamado de “freios e contrapesos” ou “checks and balances”.iii

Sob esse ponto de vista, o Parecer Prévio permite a harmonização entre duas dimensões desse controle externo: o controle político, efetivado no julgamento realizado pelo Poder Legislativo sobre as contas prestadas pelo Poder Executivo, e o controle técnico, efetivado pela emissão do Parecer Prévio pelo Tribunal de Contas, permitindo que esse julgamento, além de um caráter político, possa ser dotado também de um caráter técnico especializado.

Nessa mesma linha, o Parecer Prévio torna-se importante para impedir que subjetividades de caráter político-partidário predominem na realização desse julgamento, ou seja, o caráter técnico do Parecer Prévio cumpre o papel de conferir maior objetividade e imparcialidade ao julgamento a ser feito pelo Poder Legislativo sobre as contas consolidadas pelo Poder Executivo.

Segundo Conrado Wargas Neto (2006, p. 10), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nos Acórdãos n. 12.602, de 19/09/92 e n. 12.518, de 15/09/92, decidiu que, apesar de sua relevância e natureza técnica, o Parecer Prévio, tomado isoladamente, não possui poderes para causar a inelegibilidade do chefe do Poder Executivo. A inelegibilidade só pode ocorrer após julgamento político feito pelo Poder Legislativo que considere irregulares as contas prestadas.

É importante ressaltar que o entendimento sobre a matéria ainda não está consolidado, pois o STF está reapreciando a questão no Recurso Extraordinário RE 597.362/BA, ainda pendente de decisão, de acordo com o Informativo do Supremo Tribunal Federal n. 588:

O Tribunal iniciou julgamento de recurso extraordinário em que se discute se o Parecer Prévio do Tribunal de Contas Municipal opinando pela rejeição das contas do Prefeito, ante o silêncio da Câmara Municipal, enseja, ou não, a inelegibilidade prevista no art. 1º, I, g, da Lei Complementar n. 64/90. O Min. Eros Grau, relator, negou provimento ao recurso, ao fundamento de que, até a manifestação expressa da Câmara Municipal, o Parecer Prévio do Tribunal de Contas não surtirá nenhum efeito em relação às contas fiscalizadas, haja vista não haver, em face do silêncio daquela, ainda que prolongado, manifestação tácita de vontade em qualquer sentido. Salientou que a Câmara Municipal está vinculada pelo poder-dever de fiscalizar, com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados, as contas do Prefeito e que a Constituição estabelece que o Parecer Prévio do Tribunal de Contas só deixará de prevalecer por decisão de

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dois terços dos membros da Câmara Municipal, não definindo nenhum prazo para que esta se manifeste. Assim, não se poderia extrair da Constituição norma que determinasse à Câmara Municipal que se manifestasse em certo prazo sobre a matéria, em qualquer hipótese. Após, pediu vista dos autos o Min. Dias Toffoli (RE 597.362/BA, rel. Min. Eros Grau, 26/05/2010).

Além do caráter técnico do Parecer Prévio, é indispensável abordar outros dos seus atributos, tais como a suposição de que sua natureza é meramente opinativa, a corrente que lhe imputa viés decisório em sentido amplo e o seu caráter “quase vinculante”, de sorte que se possa traçar os contornos de sua real importância.

5 Natureza opinativa e também decisória ou deliberativa em sentido amplo, e o caráter “quase vinculante” do Parecer Prévio

Conforme já mencionado, o ordenamento jurídico brasileiro conferiu admirável importância ao Parecer Prévio, tendo em vista que o já citado § 2º do art. 31 da Carta Magna determina que o Parecer Prévio sobre as contas anuais de Prefeito Municipal só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal. Registre-se que o quorum de dois terços é superior ao de três quintos exigidos para a aprovação de emendas à Constituição, concedendo a nossa Carta Magna um elevado status constitucional à emissão do Parecer Prévio.

Essa regra constitucional leva a algumas conclusões importantes. A primeira dessas conclusões consiste no fato de que o julgamento, pelo Poder Legislativo, das contas anuais consolidadas pelo Poder Executivo só poderá ocorrer após a emissão do Parecer Prévio. Quer dizer, o parecer é prévio e indispensável ao julgamento: é parte dele. Esse é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, expresso na ementa da ADI n. 261/SC, de relatoria do Min. Gilmar Mendes, julgada em 13/11/2002 e publicada em 28/02/2003:

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Parágrafo 3º do art. 113 da Constituição do Estado de Santa Catarina, que permite que as contas do Município sejam julgadas sem Parecer Prévio do Tribunal de Contas, caso este não emita parecer até o último dia do exercício financeiro. 3. Violação ao art. 31 e seus parágrafos, da Constituição Federal. 4. Inobservância do sistema de controle de contas previsto na Constituição Federal. 5. Procedência da ação.

Esse entendimento está, também, consolidado no âmbito do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, que publicou súmula sobre o assunto:

SÚMULA 31 DO TCEMG (PUBLICADA NO MG DE 10/12/87 — P. 36 — RATIFICADA NO MG DE 20/08/97 — P. 35 – MANTIDA NO MG DE 26/11/08 – P. 72): É ineficaz e de nenhuma validade a Resolução da Câmara Municipal que aprova ou rejeita as contas do Prefeito antes da emissão do Parecer Prévio do Tribunal de Contas.

Outra inferência que decorre da interpretação da regra constitucional expressa no § 2º do art. 31 da Constituição Federal é a de que as deliberações expressas em sede de Parecer Prévio

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não são de observância obrigatória, mas a decisão pela sua não observância exige elevado quorum de votação dentro da Casa Legislativa. Ademais, é necessária uma fundamentação por parte da Câmara Legislativa para desconstituir o Parecer Prévio emitido pelo Tribunal de Contas. Uma simples desconsideração formal pelo Poder Legislativo não afasta a prevalência do Parecer Prévio; a não observância do que dispõe o Parecer Prévio requer motivação expressa dos legisladores-julgadores.

Conforme Dutra de Araújo (1992):

É claro que, se dada questão técnica é controversa, não se há de exigir que o administrador — comumente um leigo no assunto — vá necessariamente ter como, do ato administrativo, explicar como e sob que critérios chegou à conclusão de ser este ou aquele o melhor comportamento. Certamente o fará invocando os subsídios de parecer técnico elaborado por especialistas. Se não provar, pela motivação, que buscou a melhor opção técnica, inválido será o ato (ARAÚJO, 1992, p. 78).

A atual jurisprudência eleitoral aponta para a necessidade de propositura de ação no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e de concessão de liminar para desconstituir o Parecer Prévio emitido pelos Tribunais de Contas; somente dessa forma o candidato que teve suas contas julgadas irregulares pode tornar-se novamente elegível.

Em relação à natureza do Parecer Prévio, conforme visto no tópico em que foram apresentadas definições, tanto Celso Antônio Bandeira de Mello (2009) quanto Hely Lopes Meirelles (2006) reforçam o caráter opinativo do Parecer Prévio, com uma visão mais tradicional acerca desse parecer. Essa natureza opinativa, aliada à norma expressa no já citado § 2º do art. 31 da Carta Magna, leva à conclusão de que o Parecer Prévio não necessita ser obrigatoriamente seguido pelo Poder Legislativo, entretanto sua relevância não pode ser ignorada.

De acordo com Hely Lopes Meirelles (2006, p. 176):

O parecer tem caráter meramente opinativo, não vinculando a Administração ou os particulares à sua motivação ou conclusões, salvo se aprovado por ato subsequente. [...] O parecer, embora contenha um enunciado opinativo, pode ser de existência obrigatória no procedimento administrativo e dar ensejo à nulidade do ato final se não constar do processo respectivo, como ocorre, p. ex., nos casos em que a lei exige a prévia audiência. Nesta hipótese, a presença do parecer é necessária, embora seu conteúdo não seja vinculante para a Administração, salvo se a lei exigir o pronunciamento favorável do órgão consultado, para a legitimidade do ato final, caso em que o parecer se torna impositivo para a Administração.

Os Embargos declaratórios com efeitos infringentes, disponibilizados no site do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará, menciona o caráter não vinculante do Parecer Prévio e faz alusões à sua importância da seguinte forma:

Não obstante o Parecer Prévio não possuir o condão de vincular a decisão a ser proferida no julgamento das contas do Prefeito Municipal no âmbito do

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Poder Legislativo local correspondente, não há como deixar de assentar que as recomendações nele inseridas servem, estreme de dúvidas, de norte para o Poder Legislativo local orientar-se no processo de julgamento das contas do Prefeito.

Tais embargos contêm ainda menção à obra de Rodrigo Valgas dos Santos, Procedimento administrativo nos tribunais de contas e câmaras municipais (2006, p. 98-99). Nessa obra, o autor também ressalta que a importância do Parecer Prévio não é diminuída por esse caráter não vinculante, tendo em vista que esse parecer só pode ser desconstituído por maioria qualificada de dois terços da Câmara Municipal e que a análise técnica feita pelo Tribunal de Contas deve influenciar a decisão tomada pelo parlamento.

Na mesma obra, Rodrigo Valgas dos Santos (2006) referencia ainda o entendimento de Luciano Ferraz (2000, p. 82) sobre o caráter “quase vinculante” do Parecer Prévio emitido por Tribunal de Contas, em face do significativo quorum parlamentar (dois terços) que é exigido para que esse parecer deixe de prevalecer, quando julgadas as contas do Poder Executivo.

Em votoiv proferido pelo Tribunal de Contas do Estado de Roraima, ao manifestar-se sobre as contas prestadas anualmente pelo Governador do Estado, relativas ao exercício financeiro de 2006, foram realizadas algumas considerações referentes ao caráter não vinculante do Parecer Prévio, bem como sobre sua natureza técnica:

Pela sua própria definição etimológica, o Parecer do Tribunal de Contas é emitido antecedentemente, porque dele deve derivar o julgamento final de competência exclusiva do Poder Legislativo, quer dizer, em tal pronunciamento que não é vinculante, mas que, por certo, também não libera automaticamente a responsabilidade da Administração, o Parlamento encontrará auxílio valioso e imprescindível para exercitar o julgamento político-administrativo da execução orçamentária, emanado de suas conotações de natureza técnica.

O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, na apreciação do Recurso de Revisão no Processov n. 652.562, da Prefeitura Municipal de Ibiá, apensado ao Processo de Prestação de Contas Municipal n. 445.882, evidenciou o entendimento de que o Parecer Prévio “representa muito mais que um mero instrumento técnico-opinativo que se presta unicamente a subsidiar o julgamento político por parte do Poder Legislativo [...]”, possuindo “características próprias e singulares [...]”; dessa forma, o Parecer Prévio revela a sua natureza sui generis, que comporta características tanto opinativas quanto decisórias. No mesmo processo, é mencionada a obra Controle da Administração Pública, de Luciano Ferraz (1999), cujo entedimento é:

[...] aos Legislativos, no momento de finalizar o processo de julgamento das contas globais do Executivo, não é dado simplesmente ignorar o Parecer Prévio, omitindo-se de julgá-lo ou desprezar seu conteúdo sem expressar, motivada e tecnicamente, as razões pelas quais o fazem. Em qualquer destas duas hipóteses, a conduta do Parlamento será ilícita.

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Na prática, não se deve olvidar que os Parlamentos são órgãos políticos por excelência, que não raro se apegam às paixões partidárias para apreciar os fatos colocados ao seu crivo. É a partir desta constatação que emerge a importância do Tribunal de Contas ao emitir seu parecer sobre as contas do Chefe do Executivo, objetivando, com a isenção e a imparcialidade típicas destes órgãos colegiados, dar ao indivíduo (prestador) e à sociedade a garantia da escorreita interpretação da Constituição e da Lei. (FERRAZ, Luciano. Controle da Administração Pública: elementos para compreensão dos Tribunais de Contas. Belo Horizonte: Mandamentos, 1999, p. 154).

Ademais, no Processo n. 652.562 (TCEMG), foi consolidado o entendimento de que, caso o Parecer Prévio emitido pelo Tribunal de Contas deixe de prevalecer no julgamento proferido pelo Poder Legislativo, tal fato deve ser motivado, sob pena de nulidade. Nesse sentido, o entendimento consolidado foi o de que o Parecer Prévio ultrapassa seu caráter meramente opinativo para ganhar natureza decisória, considerada em sentido amplo. Portanto, a visão tradicional de que o Parecer Prévio é dotado apenas de um caráter opinativo cede lugar a uma visão inovadora que atribui a esse parecer faculdades também deliberativas.

Assim, para a sua rejeição, além de quorum elevado, o Poder Legislativo deve apresentar justificativas que desconstituam as considerações contidas no Parecer Prévio.

6 Cabimento de recurso contra Parecer Prévio

Conforme discutido no tópico anterior, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais construiu o entendimento de que o Parecer Prévio possui natureza tanto opinativa (visão tradicional) como “decisória” ou “deliberativa” (em sentido amplo). Essa natureza decisória ou deliberativa constitui um dos fundamentos para que seja reconhecida a possibilidade de interposição de recurso contra o Parecer Prévio.

O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais buscou esclarecer a natureza e a admissibilidade de recurso contra o Parecer Prévio na apreciação do Recurso de Revisão no Processo n. 652.562, da Prefeitura Municipal de Ibiá, apensado ao Processo de Prestação de Contas Municipal n. 445.882. O seguinte trecho de obra de autoria de Luciano Ferraz é referenciada no Processo n. 652.562:

[...] não obstante o ato final pertencer à exclusiva competência do Legislativo, o Parecer Prévio do Tribunal de Contas cumpre função preparatória, devendo o processo administrativo de julgamento de contas enquadrado na espécie que o publicista italiano Mário Bracci intitula ‘procedimento expressivo de manifestação complexa’, entendido como tal a ‘[...] sucessão de atos distintos provenientes de órgãos distintos para chegar-se ao ato final [...]’ (FERRAZ, Luciano. Due process of law e Parecer Prévio das Cortes de Contas. Diálogo Jurídico. Salvador. v. I, n. 9, p. 6, dez. 2001).

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O conteúdo da apreciação do Processo n. 652.562 (TCEMG) contém, ainda, as seguintes reflexões:

[...] No caso específico do denominado parecer emitido pelos Tribunais de Contas, verifica-se, em verdade, a existência de um verdadeiro processo cognitivo exauriente, destinado a formar a convicção daqueles que têm o múnus de proferir um provimento ao final deste. Portanto, como já nos ensinava o mestre processualista Elio Fazzalari, o processo é o procedimento desenvolvido em contraditório. Assim, ao permitir que os interessados apresentem suas alegações no curso do iter do julgamento das contas desenvolvido no âmbito desta Corte, configurar-se-ia a presença do processo e consequentemente seus desdobramentos, incluindo a manifestação final, ou melhor dizendo, o decisum e, por conseguinte o direito constitucional de ele recorrer. Isso, aliás, coaduna com sentido do mandamento constitucional que atribui o viés amplo à defesa a ser franqueada aos interessados. Portanto, ampla defesa quer significar que ela poderá e deverá ser desenvolvida com todos os meios possíveis e disponíveis, e indubitavelmente não há como prescindir da via recursal.

Ademais, no Processo n. 652.562 (TCEMG) foi mencionado o seguinte posicionamento do Ministério Público de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, exarado no Parecer n. 0669/2001, Processo n. 4958-02.00/00-3:

Com efeito, se, como reiteradamente se repete neste sodalício, a verdadeira atipicidade do parecer [...] decorre do fato de o mesmo ‘nascer com força de decisão’, [...], reconheça-se no particular, seu alcance decisório para os fins de se sujeitar à apelação (nos exatos termos do art. 157, [...], do diploma regimental).

Como consequência, no Processo n. 652.562, foi reconhecida a possibilidade da interposição de recurso contra a manifestação dos Tribunais de Contas em sede de Parecer Prévio, em conformidade com os princípios constitucionais vigentes, especialmente o contraditório e a ampla defesa, sobretudo pela sua natureza decisória (entendida em sentido amplo).

Essa construção jurisprudencial teve repercussões na esfera legislativa de sorte que a Lei Orgânica e o Regimento Interno do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, recentemente editados, preveem expressamente a possibilidade de interposição de recurso contra o Parecer Prévio.vi

Assim, a interposição de recurso contra o Parecer Prévio é possível e encontra respaldo nos princípios processuais do ordenamento jurídico brasileiro.

7 Distinção entre a emissão do Parecer Prévio pelos Tribunais de Contas, o julgamento das contas anuais pelo Poder Legislativo e o julgamento dos responsáveis por recursos públicos

Um aspecto importante do assunto tratado neste artigo consiste na distinção entre (a) Parecer Prévio sobre as contas prestadas anualmente pelo Prefeito Municipal e (b) julgamento

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das contas dos responsáveis por recursos públicos. Essa distinção leva a outra, também relevante, entre Prefeito (a) visto como figura política, cujas contas são submetidas a Parecer Prévio emitido pelo Tribunal de Contas e (b) ocupando a posição de ordenador de despesas, julgado pelo Tribunal de Contas como responsável por atos específicos na aplicação de recursos públicos.

A primeira distinção — entre a emissão do Parecer Prévio pelos Tribunais de Contas e julgamento dos responsáveis por recursos públicos — foi matéria analisada pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 849 MT, julgada em 11/02/1999 e publicada em 23/04/1999, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence. Conforme ementa dessa ADI:

EMENTA: Tribunal de Contas dos Estados: competência: observância compulsória do modelo federal: inconstitucionalidade de subtração ao Tribunal de Contas da competência do julgamento das contas da Mesa da Assembléia Legislativa — compreendidas na previsão do art. 71, II, da Constituição Federal, para submetê-las ao regime do art. 71, c/c. art. 49, IX, que é exclusivo da prestação de contas do Chefe do Poder Executivo. I. O art. 75, da Constituição Federal, ao incluir as normas federais relativas à “fiscalização” nas que se aplicariam aos Tribunais de Contas dos Estados, entre essas compreendeu as atinentes às competências institucionais do TCU, nas quais é clara a distinção entre a do art. 71, I — de apreciar e emitir Parecer Prévio sobre as contas do Chefe do Poder Executivo, a serem julgadas pelo Legislativo — e a do art. 71, II — de julgar as contas dos demais administradores e responsáveis, entre eles, os dos órgãos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. II. A diversidade entre as duas competências, além de manifesta, é tradicional, sempre restrita a competência do Poder Legislativo para o julgamento das contas gerais da responsabilidade do Chefe do Poder Executivo, precedidas de Parecer Prévio do Tribunal de Contas: cuida-se de sistema especial adstrito às contas do Chefe do Governo, que não as presta unicamente como chefe de um dos Poderes, mas como responsável geral pela execução orçamentária: tanto assim que a aprovação política das contas presidenciais não libera do julgamento de suas contas específicas os responsáveis diretos pela gestão financeira das inúmeras unidades orçamentárias do próprio Poder Executivo, entregue a decisão definitiva ao Tribunal de Contas (grifos nossos).

No já referenciado voto proferido pelo Tribunal de Contas do Estado de Roraima, ao manifestar-se sobre as contas prestadas anualmente pelo Governador do Estado, relativas ao exercício financeiro de 2006, foram realizadas algumas considerações referentes à natureza e à importância do Parecer Prévio e mencionada na mesma ADI n. 849 / MT:

Nessa maneira de raciocinar, o Parecer Prévio que instrui a aprovação política pelo Poder Legislativo, julgador soberano, relaciona-se de perto às contas do Chefe do Poder Executivo dentro de uma abordagem genérica dos resultados que expressam escolhas ou diretrizes políticas, proporcionando a avaliação e o debate sobre o mérito de tais medidas e orientações fundamentais para

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o Estado, sem eximir, contudo, de julgamento de suas contas específicas, os responsáveis pela gestão financeira das diversas unidades orçamentárias, os quais, se ocorrente a hipótese, são entregues à decisão definitiva do Tribunal de Contas, segundo, aliás, sedimentada e propalada exegese do STF no julgamento da ADI n. 849/MT.

Diante do exposto, é possível concluir que a emissão, pelo Tribunal de Contas, de uma opinião pela aprovação, aprovação com ressalvas ou rejeição das contas, contida no Parecer Prévio que orienta o julgamento das contas pelo Poder Legislativo, não se confunde com a competência desses Tribunais para julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por recursos públicos e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário, competência esta expressa no inciso II do art. 71 da Carta Magna.

Sobre a segunda distinção — entre Prefeito visto como figura política, cujas contas são submetidas a Parecer Prévio emitido pelo Tribunal de Contas, e Prefeito como ordenador de despesas, julgado como responsável por recursos públicos pelo Tribunal de Contas — o já mencionado voto proferido pelo Tribunal de Contas do Estado de Roraima, assim dispõe, verbis:

É que na espécie uma dualidade de competências se instala, de acordo com a lúcida doutrina do mestre em Direito Administrativo, Prof. Luciano Ferraz, quando disserta, verbis:

‘A distinção entre contas anuais do Chefe de Executivo, enquanto responsável direto pela execução do orçamento e dos planos de governo, e as contas restritas dos administradores de cada unidade administrativa é necessária e indispensável. [...]

Os Chefes do Executivo quando agem na qualidade de agente político, executor do orçamento, têm prerrogativas especiais e, portanto, submetem-se ao crivo do Legislativo. Se descem do pedestal e praticam meros atos de gestão, igualam-se aos demais administradores de recursos públicos, sendo julgados pelo Tribunal de Contas. O ato final do julgamento, se desfavorável à regularidade das contas, é a constituição do título executivo’ (grifos nossos).

A distinção entre Parecer Prévio e julgamento das contas foi reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme demonstra a ementa do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança RMS 11.060/GO, julgado pela segunda turma em 25/06/2002 e publicado em 16/09/2002, Rel. Min. Laurita Vaz (voto vencido), Rel. do Acórdão Min. Paulo Medina:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CONTROLE EXTERNO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ATOS PRATICADOS POR PREFEITO, NO EXERCÍCIO DE FUNÇÃO ADMINISTRATIVA E GESTORA DE RECURSOS PÚBLICOS. JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DE CONTAS. NÃO SUJEIÇÃO AO DECISUM DA CÂMARA MUNICIPAL. COMPETÊNCIAS DIVERSAS. EXEGESE DOS ARTS. 31 E 71 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Os arts. 70 a 75 da Lex Legum deixam ver que o controle externo – contábil, financeiro, orçamentário, operacional e patrimonial – da Administração

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Pública é tarefa atribuída ao Poder Legislativo e ao Tribunal de Contas. O primeiro, quando atua nesta seara, o faz com o auxílio do segundo que, por sua vez, detém competências que lhe são próprias e exclusivas e que para serem exercitadas independem da interveniência do Legislativo. O conteúdo das contas globais prestadas pelo Chefe do Executivo é diverso do conteúdo das contas dos administradores e gestores de recurso público. As primeiras demonstram o retrato da situação das finanças da unidade federativa (União, Estados, DF e Municípios). Revelam o cumprir do orçamento, dos planos de governo, dos programas governamentais, demonstram os níveis de endividamento, o atender aos limites de gasto mínimo e máximo previstos no ordenamento para saúde, educação, gastos com pessoal. Consubstanciam-se, enfim, nos Balanços Gerais prescritos pela Lei n. 4.320/64. Por isso, é que se submetem ao Parecer Prévio do Tribunal de Contas e ao julgamento pelo Parlamento (art. 71, I c./c. 49, IX da CF/88). As segundas — contas de administradores e gestores públicos — dizem respeito ao dever de prestar (contas) de todos aqueles que lidam com recursos públicos, captam receitas, ordenam despesas (art. 70, parágrafo único da CF/88). Submetem-se a julgamento direto pelos Tribunais de Contas, podendo gerar imputação de débito e multa (art. 71, II e § 3º da CF/88). Destarte, se o Prefeito Municipal assume a dupla função, política e administrativa, respectivamente, a tarefa de executar orçamento e o encargo de captar receitas e ordenar despesas, submete-se a duplo julgamento. Um político, perante o Parlamento, precedido de Parecer Prévio; o outro, técnico, a cargo da Corte de Contas. Inexistente, in casu, prova de que o Prefeito não era o responsável direto pelos atos de administração e gestão de recursos públicos inquinados, deve prevalecer, por força ao art. 19, inc. II, da Constituição, a presunção de veracidade e legitimidade do ato administrativo da Corte de Contas dos Municípios de Goiás. Recurso ordinário desprovido (grifos nossos).

Não obstante esse entendimento, frequentes decisões do TSE e do STF parecem não compreender adequadamente o alcance desta distinção. Um exemplo disso é o julgamento proferido pelo TSE na apreciação do Agravo Regimental no Recurso Ordinário (AGR no RO) n. 639-13.2010.6.27.0000 — acórdão publicado em 29/09/2010. Outro exemplo é a apreciação, ainda em curso, da Reclamação (RCL) n. 10.456, dirigida ao STF, na qual pretende o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais funcionar como amicus curiae para argumentar sobre a dupla função, política e administrativa, do Prefeito Municipal e, consequentemente, o respectivo duplo julgamento ao qual é submetido.

8 Parecer Prévio: necessidade de convergência das normas brasileiras com as normas internacionais de contabilidade pública, e a transparência das contas governamentais

Há algum tempo já vem sendo debatida e também implantada a harmonizaçãovii das normas brasileiras de contabilidade societária, aplicadas ao setor privado, com as normas internacionais.

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Essa mesma tendência de harmonização normativa internacional tem se disseminado sobre o setor público, na medida em que a sociedade mundial reconhece que os governos dos diferentes países têm participação significativa no funcionamento dos mercados e na economia como um todo. Nesse sentido, o cenário atual aponta para a necessidade de harmonizar internacionalmente as normas de contabilidade aplicáveis ao setor público, de forma a permitir uma maior qualidade das informações divulgadas e uma melhor comparabilidade de desempenho entre os países.

Esse foi o principal tema do II Seminário Internacional de Contabilidade Pública, ocorrido entre os dias 20 e 22 de setembro de 2010, na cidade de Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais. O seminário tratou da convergência das normas brasileiras, aplicáveis ao setor público, com as normas internacionais sobre contabilidade pública, valorizando, entre outros aspectos a transparência, a comparabilidade em termos de desempenho, a eficiência e a efetividade. Na ocasião, foi ressaltada a necessidade da adoção do regime de competência tanto para as despesas como para as receitas, a exemplo do que ocorre na contabilidade privada. Ademais, foi considerado necessário dar ênfase, no setor público, a uma contabilidade patrimonial, com menor destaque para a contabilidade financeira e orçamentária, aumentando a qualidade das informações divulgadas no mercado e na sociedade em geral.

De acordo com Fernando Torres, em matériaviii escrita para o Jornal Valor Econômico (01/09/2010), a adoção obrigatória das normas internacionais aplicáveis ao setor público começará em 2012 para a União e Estados e, em 2013, para municípios.

As Normas Internacionais de Contabilidade Aplicadas ao Setor Público, chamadas de IPSASix (sigla em inglês, International Public Sector Accounting Standards), são expedidas pelo Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade para o Setor Público — IPSASBx (sigla em inglês, International Public Sector Accounting Standards Board).

Com a convergência das normas nacionais para as normas internacionais aplicáveis ao setor público, deverá ocorrer maior participação do Conselho Federal de Contabilidade (CFC) na expedição de regras que tratem dos procedimentos a serem adotados pela contabilidade governamental. Atualmente, está em vigência apenas a Norma Brasileira de Contabilidade Técnica (NBCT) n. 16 e a Resolução CFC n. 1.268/2009. Nenhuma dessas normas faz referência ao Parecer Prévio.

A falta de padrões específicos para a emissão do Parecer Prévio pelos diversos Tribunais de Contas dificulta a interpretação adequada e a comparação entre as informações sobre os diferentes entes da federação, em termos de desempenho tanto dos governos quanto dos governantes. Ademais, para que a transparência das ações de governo seja adequada e amplamente alcançada, com a devida cautela para evitar a adoção de modelos muito rígidos e engessados, é necessária a convergência das normas sobre contabilidade pública não apenas nacionalmente, mas também mundialmente.

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Reconhecendo essa situação, para que o Parecer Prévio seja um documento que contenha uma análise consistente e imparcial das contas governamentais, é necessário um alinhamento dos padrões e normas, não somente das contas sobre as quais esse parecer é emitido, mas também sobre a elaboração desse documento. Esse alinhamento só poderá ser obtido quando todos os Tribunais de Contas do Brasil promoverem efetivamente esse processo de convergência normativa.

Ainda que muitas das questões controversas afetas à contabilidade pública sejam colocadas em discussão, em reuniões técnicas, e nos diversos fóruns promovidos por diversas entidades e autoridades nacionais atinentes à matéria, a exemplo das discussões promovidas no âmbito do Programa de Modernização do Sistema de Controle Externo dos Estados, Distrito Federal e Municípios Brasileiros (Promoex), é necessário que a resposta para tais questões seja também buscada mediante estudos sobre as normas internacionais.

Após uma pesquisa superficial nas IPSAS,xi foi verificado que há referências sobre o parecer de auditoria,xii mas não existe referência específica a termo que possa se traduzir em Parecer Prévio, o que leva à conclusão de que este parecer constitui uma figura peculiar e típica do ordenamento jurídico brasileiro ou que o Parecer Prévio ainda não foi disciplinado pelas normas internacionais. Nessa perspectiva, o parecer de auditoria não se confunde com o Parecer Prévio, visto que o primeiro versa sobre aspectos mais substanciais das contas, contrariamente ao segundo, que versa, a priori, apenas sobre aspectos formais, conforme já exposto neste artigo.

Apesar de não ter sido encontrada referência específica ao Parecer Prévio, na IPSAS 14, há o reconhecimento do fato de que, no processo de preparação e autorização da publicação das demonstrações das contas consolidadas, as contas prestadas por uma entidade governamental podem exigir a apreciação de outra entidade, tal como o Parlamento (Poder Legislativo), podendo este, também, possuir poder para requerer mudanças nos demonstrativos.xiii

Já na IPSAS 22 — Disclosure of financial information about the general Government sectorxiv(Divulgação das informações sobre as contas relativas ao setor governamental geral), podem ser encontrados diversos requisitos para a divulgação da prestação de contas. Tais informações podem ser utilizadas como base no estudo da padronização para a emissão do Parecer Prévio.

Diante do exposto, é possível concluir que, somente após o empenho de esforços por parte de todos os Tribunais de Contas e das autoridades responsáveis pela normatização da Contabilidade Pública, como a Secretaria do Tesouro Nacional,xv o Conselho Federal de Contabilidade (CFC) e os Conselhos Regionais (CRCs) para a convergência internacional dessas normas, poderão o Parecer Prévio e todos os demais documentos divulgados pelo Governo cumprir plenamente o papel de garantir a transparência das ações governamentais.

Nesse sentido, pode ser percebida, mais uma vez, a importância do Parecer Prévio, que, segundo Jorge José Barros de Santana Júnior (2008, p. 47), ao referenciar o art. 48 da Lei Complementar

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Federal n. 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), é um dos principais instrumentos de transparência fiscal:

Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo Parecer Prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.

Em prol da transparência, Jorge José Barros de Santana Júnior (2008) defende a publicação do Parecer Prévio e, também, de sua versão simplificada, utilizando uma linguagem leiga mais acessível à população em geral. Dessa forma, o Parecer Prévio se tornaria importante ferramenta de controle social sobre a gestão pública.

Lamentavelmente, o autor constatou, em seu estudo, cujos dados foram coletados até 31/12/2007, que o Parecer Prévio das contas do governo apresentou baixos percentuais de divulgação, por via da internet, pelos Tribunais de Contas, seja em sua versão completa, seja em sua versão simplificada. O TCU está entre os poucos Tribunais de Contas que realizam essa divulgaçãoxvi de forma adequada.

Jorge José Barros de Santana Júnior (2008) classificou o Poder Executivo do Estado de Minas Gerais como o segundo com maior transparência fiscal eletrônica, atrás apenas dos Estados da Bahia e São Paulo, que compartilharam o primeiro lugar.

9 Considerações finais sobre a importância do Parecer Prévio

As informações reunidas neste artigo acerca da emissão do Parecer Prévio levam a várias reflexões sobre a sua importância.

Primeiramente, é necessário perceber que os benefícios trazidos pela emissão do Parecer Prévio ultrapassam o mero cumprimento de uma norma constitucional; muito mais do que isso, o Parecer Prévio é um documento de elevado teor técnico especializado, contendo uma apreciação apolítica das contas consolidadas e prestadas pelo Poder Executivo.

Em segundo lugar, o Parecer Prévio é considerado um dos mais importantes instrumentos de transparência da gestão governamental, assim consagrado no art. 48 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Em terceiro lugar, o Parecer Prévio constitui o elo entre duas relevantes dimensões do controle, e, mais especificamente, do controle externo: a apreciação técnica e o julgamento político das contas de governo, tendo em vista que seu conteúdo busca orientar a decisão do Poder Legislativo no julgamento das contas consolidadas e prestadas pelo Poder Executivo. Por esse motivo, o Parecer Prévio é um importante instrumento para efetivar o mecanismo de “freios e contrapesos” entre os poderes governamentais.

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O Parecer Prévio também ganha visibilidade quando sua emissão versa sobre o último ano de mandato do governante, por duas razões principais: a) esse parecer contribui para que o novo governante obtenha informações sobre a situação na qual se encontram as contas públicas do governo que assumirá, possibilitando um planejamento antecipado de ações corretivas, caso sejam necessárias; e b) esse parecer pode auxiliar o eleitor na realização de uma reflexão sobre o uso do seu poder de voto e sobre a gestão pública conduzida pelo governante eleito.

Outro ponto que merece destaque é a necessidade atual de convergência das normas brasileiras de contabilidade publica com as normas internacionais para que o Parecer Prévio ganhe importância como uma ferramenta adicional para a divulgação de informações sobre o governo. Além disso, a convergência de normas poderia evitar que, pela ausência desses padrões, o Parecer Prévio, peça de caráter técnico, pudesse ser utilizado, de forma distorcida, para fins políticos. Enquanto as formas de análise das contas e a respectiva divulgação, por meio do Parecer Prévio, forem realizadas de forma diferente pelos Tribunais de Contas, apresentando resultados de gestão de forma não comparável, a utilização do Parecer Prévio por eleitores visando selecionar os candidatos que obtiveram aprovação das contas pode levar a resultados não desejados. Portanto, essa ausência de padronização faz com que o Parecer Prévio tenha diminuída a sua natureza técnica-referencial, fazendo com que a sua interpretação, seja pelo Poder Legislativo, seja pela sociedade em geral, fique prejudicada.

Diante disso, para que o Parecer Prévio seja um documento que contenha uma análise consistente, imparcial e comparável sobre as contas e sobre o desempenho governamental, é necessário um alinhamento dos padrões e normas para sua elaboração.

Assim, o Parecer Prévio se difere do julgamento das contas pelo Poder Legislativo porque é concebido para ser uma apreciação técnica e apolítica dessas contas, o que lhe confere caráter imparcial de elevado status constitucional, o que, por si só justifica a exigência de explícita motivação para ser desconsiderado quando do julgamento das contas prestadas pelo Poder Legislativo. E se sua divulgação for feita de forma a atender padrões internacionais e com uma linguagem adequada e de fácil entendimento pela sociedade, o Parecer Prévio tornar-se-á valioso instrumento para o exercício da cidadania e de prerrogativas no Estado Democrático de Direito, contribuindo sobremaneira com a transparência da gestão pública, a sua avaliação pela sociedade e o fortalecimento da participação popular como fator indispensável ao amadurecimento democrático.

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Notas de Fim

i Ver <http://portal2.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/comunidades/contas/contas_

governo/contas_09/ index.htm>, acesso em 19/09/2010.

ii Disponível em: <http://portal2.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/comunidades/

contas/contas_governo/contas_09/ index.htm> Acesso em: 19/09/2010.

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iii Sobre esse assunto, ver artigo de Alessandro Aurélio Caldeira, O julgamento das contas dos poderes da República — o que mudou com a LRF?. Disponível em: <http://portal2.tcu.gov.br/portal/pls/portal/docs/1190999.pdf>. Acesso em: 22/09/2010.

iv Disponível em: <http://www.imprensaoficial.rr.gov.br/diarios/doe-20081215.pdf>. Acesso em: 19/09/2010.

v Ver artigo disponível em: <http://www.antoniocarlosandrada.com.br/files/artigos/ 130420101521395500.pdf>. Originado da apreciação do referenciado processo. Acesso em: 19/09/2010.

vi Arts. 98 e 108 da Lei Orgânica (Lei Complementar Estadual n. 102, de 17/01/2008); arts. 324 e 349 a 353 do Regimento Interno (Resolução n. 12/2008).

vii Para maiores detalhes sobre a harmonização das normas brasileiras sobre contabilidade às normas internacionais, ver o site do Comitê de Pronunciamentos Contábeis. Disponível em: <http://www.cpc.org.br/pronunciamentosIndex.php>. Acesso em: 22/09/2010.

viii Disponível em: <https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2010/9/1/ contabilidade-publica-sera-modificada>. Acesso em: 22/09/2010.

ix Disponível em: <http://www.ipsas.org>. Acesso em: 23/09/2010.

x Disponível em: <http://www.ifac.org/PublicSector/>. Acesso em: 23/09/2010.

xi Disponíveis em: <http://www.ipsas.org/en/ipsas_standards.htm>. Acesso em: 23/09/2010.

xii Foi encontrada referência ao parecer de auditoria (em inglês, audit opinion) na IPSAS 14 — Events after the reporting date (Eventos após a data do envio das informações sobre as contas). Disponível em: <http://www.ipsas.org/en/ipsas_standards.htm>. Acesso em: 23/09/2010.

xiii Fragmento da IPSAS 14: “7. In some cases, as the final step in the authorization process, an entity is required to submit its financial statements to another body (for example, a legislative body such as Parliament or a local council). This body may have the power to require changes to the audited financial statements. In other cases, the submission of statements to the other body may be merely a matter of protocol or process and that other body may not have the power to require changes to the statements. [...] 26. [...] Examples of individuals or bodies that may have the power to amend the financial statements after issuance are Ministers, the government of which the entity forms part, Parliament or an elected body of representatives. If changes are made, the amended financial statements are a new set of financial statements (IPSAS 14 — Events after the reporting date — Eventos após a data do envio das informações sobre as contas).”

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xiv Disponível em: <http://www.ipsas.org/en/ipsas_standards.htm>. Acesso em: 23/09/2010.

xv Disponível em: <http://www.tesouro.fazenda.gov.br/contabilidade_governamental/manual_cont_SetPublico.asp>. Acesso em: 22/09/2010.

xvi Disponível em: <http://portal2.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/comunidades/contas/contas_governo/contas_ 09/index.htm>. Acesso em: 19/09/2010.

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Daury Cesar Fabriz

Mestre e doutor pela Faculdade de Direito/UFMG. Ex-professor do departamento de Direito Público da FD/UFMG. Professor adjunto do Departamento de Direito da Ufes. Coordenador do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito de Vitória-ES. Presidente da Academia Brasileira de Direitos Humanos.

Resumo: O presente artigo realiza estudo sobre a forma federativa de Estado adotada pelo Brasil a partir da Constituição de 1988. O novo pacto federativo estabelecido eleva o Município à condição de entidade federativa dotada de autonomia e competências legislativas próprias. Nesse sentido busca-se compreender esse novo posicionamento do poder local na estrutura federativa e os caminhos que devem ser adotados para que o poder local possa se expressar como instrumento de concretização dos direitos humanos em sua esfera de competências.

Palavras-chave: Federalismo. Poder local. Direitos humanos.

Abstract: This article carries out a study about the federalism form of State adopted by Brazil in the 1988 Constitution. The new federalism pact lifts the Town to the condition of a federalism entity endowed with autonomy and self legislative competences. In this way, we search to understand this new position of the local power in the federalism structure and the means that should be adopted by local power as instrument of human rights in its sphere of competences.

Keywords: Federalism. Local power. Human rights.

1 Introdução

O federalismo, que para alguns autores não é o mesmo que federação,1 representa uma dentre 1 Há na doutrina, ainda que de forma isolada, diferenças entre os conceitos de federalismo e federação: “O termo federalismo, em

uma primeira perspectiva, vincula-se às ideias, valores e concepções do mundo, que exprime filosofia compreensiva da diversidade na unidade. A federação é entendida como forma de aplicação concreta do federalismo, objetivando incorporar as unidades autônomas ao exercício de um governo central, sob bases constitucionais rigorosas. Vincula-se, também, o federalismo ao pluralismo, bem como à ideia de descentração.” Neste trabalho, todavia, os termos federalismo e federação serão tomados como sinônimos, sem que isso desnature a contribuição da observação acima colacionada (BARACHO, José Alfredo de Oliveira. A federação e a revisão constitucional. As novas técnicas dos equilíbrios constitucionais e as relações financeiras. A cláusula federativa e a proteção da forma de Estado na Constituição de 1988. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 331, p. 122, 1995).

Federalismo, municipalismo e direitos humanos

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as várias classificações políticas inseridas no estudo das formas de Estado. O Estado Unitário,2 a Confederação3 e o Estado Regional4 completam o quadro de tipologias hoje disponíveis para subsidiar o constituinte em sua árdua tarefa de estruturar espacialmente o Estado. De todos os modelos apresentados, não há dúvidas que o Estado Federal representa o mais complexo, e exatamente por isso “vários autores incluem os estudos sobre as estruturas federais entre os principais temas do direito público comparado.”5

E existem razões compreensíveis para as tensões do federalismo. A raiz histórica do Estado Federal explica que a origem deste modelo se deu na tentativa de conciliar situações antagônicas. Epistemologicamente, a teoria do federalismo também não fugiu das ambivalências, e talvez a chave das incompletudes que marcam sua aplicação contemporânea esteja exatamente nesta relação de contrários, no conflito interno que, não raro, recalca o legislador constituído e macula os efeitos de sua obra. É necessário compreender os contornos e os limites da teoria federativa para, com segurança, avançar na sua aplicação e surpreender em novas propostas estruturais.

Perdura uma aceitação tranquila entre os estudiosos de que o federalismo nasceu nos Estados Unidos da América, e experimentou na Constituição de 1787 o seu primeiro marco legal. Antes disso, porém, já se iniciava a sua construção. O estágio preliminar do federalismo norte-americano ocorreu após a Declaração de Independência das Treze Colônias perante a Coroa Inglesa, em 1776, num contexto de incertezas e inseguranças acerca dos rumos que seriam assumidos dali em diante. O alto preço despendido pela liberdade fez com que as Colônias buscassem proteger-se contra qualquer manobra da antiga metrópole que lhes subtraísse a tão cara independência e, imbuídos deste sentimento, reuniram-se os Estados agora independentes por meio de um tratado internacional — os Artigos de Confederação, criando uma Confederação de Estados americanos. Em respeito à opção assumida, as unidades mantiveram sua soberania e os resultados desta escolha política não tardaram a enfraquecer o pacto confederativo.

As deliberações votadas no Congresso quase sempre eram desrespeitadas, e se somava à fragilidade do acordo confederativo o fato de haver dificuldades no acerto de verbas para a manutenção de recursos financeiros e humanos de caráter comum. A eficácia meramente recomendatória das deliberações do Congresso, a reduzida competência legislativa — que somente afetava 2 Segundo Uadi Lammêgo Bulos, “o Estado Unitário pode se apresentar de três formas diversas: (i) Estado Unitário puro: o poder

político é fortemente centralizado. Aqui as atribuições político-administrativas do Estado centralizam-se num só centro produtor de decisões, onde as coletividades territoriais menores usufruem de uma autonomia delegada; (ii) Estado Unitário descentralizado administrativamente: o governo nacional transfere encargos e serviços para pessoas descentralizadas; e (iii) Estado Unitário descentralizado administrativa e politicamente: as decisões são tomadas de forma compartilhada entre o governo central, que as concebe, e o povo, que as executa perante o comando central. [...] é a espécie mais comum na atualidade.” (BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 714).

3 Trata-se de uma reunião de Estados soberanos que, orientados por um tratado, seguem diretrizes comuns em algumas áreas, especialmente segurança, defesa externa e relações de trocas comerciais. Atualmente não existe mais nenhum modelo vigente de Confederação e, para muitos autores, esta construção não passa de material para consulta histórica.

4 O Estado Regional representa uma forma de Estado fronteiriça, situada entre o Estado Unitário de índole descentralizada e o Estado Federal. Os exemplos mais citados de adoção desta forma de Estado são a Constituição da República Italiana de 1947, e na Constituição da Espanha Monárquica de 1978. (Cf. SARAIVA, Paulo Lopo. Federalismo regional. São Paulo: Saraiva, 1992).

5 CAVALCANTE, Susy Elizabeth Forte. Federalismo: evolução política e necessidade de reconstrução. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, v. 31, p. 83, 1987-88.

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aos Estados, e estes, quando lhes conviesse, reproduziam as normas entre seus cidadãos, e a inexistência de um Tribunal Supremo pacificador das divergências públicas e unificador da interpretação acerca do direito comum esvaziaram por completo a Confederação.6

Com o claro propósito de afinar os rumos comuns às partes, as Colônias reuniram-se novamente em 1787, na Convenção da Filadélfia, para elaborar uma Constituição que, já no seu preâmbulo, deixava consignada a nova estrutura de Estado adotada: a forma federativa.7 A pretensão de aperfeiçoar a comunhão entre as partes culminou na criação de um órgão central, a União Federal, cuja maior atribuição estava em satisfazer os interesses comuns dos Estados. Neste processo de transferência de atribuições, os Estados cederam parcela de poder — soberania — em prol da União, garantindo a manutenção de suas autonomias públicas.

Nascia para a história constitucional a forma federativa de Estado.8 Entre a centralização de poder nas mãos da Metrópole Inglesa e a dispersão deste mesmo poder entre as Colônias independentes emergia a ambivalência histórica do federalismo.9 Era a tensão entre a unidade (representada pela metrópole) e a pluralidade (representada pelas colônias) que fez emergir a teoria federativa, própria para transitar entre estes extremos, mas sempre refém de um acordo sensível de forças polarizadas.10

Por outro lado, não menos tormentoso foi o processo de edificação interna (construção epistemológica) do federalismo. As exigências sociais que implicaram a criação da União Federal exigiam uma reformulação teórico-normativa, a ponto de Raul Machado Horta afirmar que a organização do Estado Federal consistia numa tarefa de laboriosa engenharia constitucional.11 É que a forma federativa de Estado passaria a manejar dois ordenamentos simultâneos (o ordenamento da União e o ordenamento dos entes federativos) e que, não raro, figuravam

como representantes de interesses colidentes. Tratava-se da histórica e sempre atual discussão

em torno da unidade e da diversidade12 enquanto bandeiras da União e dos Estados-membros,

respectivamente.6 MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva,

2007, p. 753.

7 Dispondo sobre o momento de transição entre a Confederação e a formação da Federação, Pedro Lenza assim pontuou: “A permissão do direito de secessão aumentava o problema das constantes ameaças e a fragilidade perante os iminentes ataques britânicos. Nesse sentido, buscando uma solução para aquela situação em que se encontravam, os Estados Confederados (ainda uma Confederação de Estados soberanos) resolveram reunir-se na cidade da Filadélfia (todos, ausentando-se apenas o Estado de Rhode Island), onde, então, estruturaram as bases para a federação norte-americana.” (LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 11. ed. São Paulo: Método, 2007 p. 273).

8 Há autores que atribuem a Althusius (1562-1638) a primeira teorização do federalismo, que observou o início de sua história moderna ser escrita pela Revolução Americana (Cf. BARACHO, op. cit., p. 121).

9 Desse compromisso antagônico que, para Mathiot (apud CAVALCANTE, op. cit., p. 97) emerge o federalismo americano: “O federalismo americano é, portanto, a solução empírica de um conflito entre dois princípios rivais: o nacionalismo que compele a um governo unitário, e o federalismo que visa a uma simples confederação, protegendo contra um governo demasiadamente forte as soberanias particulares ainda ciosas de sua independência. É uma composição, ao acaso, das divergências.”

10 Cf. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Brasília: Ed. UNB, 1984.

11 HORTA, Raul Machado. Organização constitucional do federalismo. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, ano 33, n. 28-29, p. 10, 1985-86.

12 “O convívio harmonioso entre os ordenamentos estaduais, entre a União e os Estados-membros, perdura ainda como grande desafio à criatividade técnica do constituinte federal [...].” (Cf. HORTA, op. cit., p. 11).

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Foi neste contexto que as técnicas de repartição de competências passaram a representar a essência operacional do sistema federativo, na medida em que, como bem pontuado por Karl Loewenstein,13 poderiam ser encaradas como a chave da estrutura do poder federal. A adesão ao sistema, bem como o grau de fidelidade aos seus pressupostos básicos (a distribuição de competências constitucionais entre a União e os entes federados, garantia de exercício difuso do poder, desenvolvimento local autônomo), poderia ser aferida pela estruturação desta partilha de poderes. É como que se o termômetro do federalismo estivesse na repartição de competências assumida por cada Federação.14

Considerando a ambivalência o traço marcante do sistema federal, Manuel Garcia Pelayo15 ressaltou que, por melhor que seja a técnica de coexistência utilizada pelo constituinte, ainda assim estará presente a “unidade dialética de duas tendências contraditórias: a tendência à unidade e a tendência à diversidade”. Essa contradição busca a harmonização num contexto de tensão (coesão/particularismo), do qual se entrelaçam uma série de fatores constitucionais e extraconstitucionais — naturais, econômicos, sociais. Esta circunstância exige uma atualização constante das estruturas federativas, e antes de estancar a reflexão, faz do tema algo sempre atual, carente de oxigenação, dada a sua simbiose com o caminhar evolutivo da sociedade.

Esse é o jogo de forças no qual se encontra envolto o legislador constituinte. Portanto, é no seio da Constituição Federal, a Lei Fundamental de uma nação, que esta questão ou preferência deverá fazer-se presente. A história do federalismo no direito comparado e, principalmente, a sua trajetória no direito constitucional brasileiro, demonstra evoluções e retrações que, diretamente, remete à questão do centralismo/dualismo federativo. O modelo federativo brasileiro apresentado pela Constituição Federal de 198816 representou um avanço para a sua época, mas atualmente

13 Apud HORTA, op. cit., p. 13.

14 Por certo que a disciplina da repartição constitucional de competências não é o único instrumento operacional da organização constitucional do federalismo, contudo, não restam dúvidas de ser este o seu elemento essencial. Os autores elencam um conjunto de princípios e técnicas marcantes desta forma de Estado, sempre sublinhando a distribuição de competências constitucionais. Alexandre de Moraes apresenta os seguintes princípios regentes da forma federativa de Estado: “os cidadãos dos diversos Estados-membros aderentes à Federação devem possuir a nacionalidade única desta; repartição constitucional de competências entre a União, Estados-membros, Distrito Federal e Município; necessidade de que cada ente federativo possua uma esfera de competência tributária que lhe garanta renda própria; poder de auto-organização dos Estados-membros, Distrito Federal e municípios, atribuindo-lhes autonomia constitucional; possibilidade constitucional excepcional e taxativa de intervenção federal, para a manutenção do equilíbrio federativo; participação dos Estados no Poder Legislativo Federal, de forma a permitir-se a ingerência de sua vontade na formação da legislação federal; possibilidade de criação de novo Estado ou modificação territorial de Estado já existente, dependendo da aquiescência da população do Estado afetado; existência de um órgão de cúpula do Poder Judiciário para interpretação e proteção da Constituição Federal.” (MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 269). Já para Susy Elizabeth Forte Cavalcante: “É impossível ignorar a diversidade de tipos constitucionais e históricos do federalismo. Contudo, deve-se reconhecer a existência de alguns elementos constantes que, em conjunto ou separadamente, contribuem para a configuração do Estado Federal: a) instituição pela Constituição Federal; b) existência de duplo ordenamento; c) a repartição de competências; d) a autonomia constitucional dos Estados-membros; e) a intervenção federal, instrumento utilizado para restabelecer, em determinados casos, o equilíbrio federativo; f) o sistema bicameral; g) repartição tributária; e h) a existência de um Supremo Tribunal para interpretar e proteger a Constituição e dirimir possíveis litígios entre os membros da federação.” (CAVALCANTE, op. cit., p. 87-88). Exatamente na adesão destes elementos, em número maior ou menor, dependendo da formatação de cada sistema federal, que se encontram as razões de origem dos múltiplos modelos de federalismo: norte-americano, alemão, brasileiro, canadense, mexicano, argentino e soviético (Cf. HORTA, op. cit, p. 12).

15 HORTA, op. cit., p. 11.

16 Para um estudo acerca do federalismo na história constitucional brasileira: Cf. SANTIN, Janaína Rigo; FLORES, Deborah Hartmann. A evolução histórica do município no federalismo brasileiro, o poder local e o estatuto da cidade. Revista Justiça e Direito, Passo Fundo, v. 20, n. 1, p. 58-61, 2006. Também Cf. HORTA, op. cit., p. 22-29.

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se encontra em estado de saturação, e necessita de uma mudança substancial em suas bases para não se transformar num Estado Federal carcomido e, junto a isso, obsoletar (ainda mais) a consciência democrática, o sentimento federativo e a eficácia dos direitos humanos.

A Carta de 1988 reconheceu os municípios como entes federados,17 e neste sentido evoluiu na premissa de descentralização do poder tão cara ao ideal federativo e, na essência, o grande mote desta forma de Estado.18 Na origem, ou seja, no modelo norte-americano em que floresceu o federalismo, ocorreu uma clara opção legislativa a favor do [ordenamento] particular frente ao [ordenamento] geral. É dizer: a raiz federativa preferiu as partes (entes federativos) ao todo (Federação). Deste quadro decorre o tão famoso pensamento de Alexis de Tocqueville,19 de que o Governo dos Estados é a regra, e o Governo Federal é a exceção.

Contudo, a prática traiu a Tocqueville, e “a previsão otimista não se concretizou.” A evolução do federalismo acabou trilhando caminhos contrários àqueles preconizados em sua origem.20 Entender os aspectos desse desvirtuamento é indispensável para que, no momento seguinte, possa se ingressar na proposta de um novo federalismo a partir da eleição de um novo protagonista. O federalismo brasileiro clama por novos ares, e tal proposta há de partir da teoria para se espraiar no aprimoramento do sistema federativo e na melhoria da qualidade de vida da população.

2 Re-partição de competências constitucionais: ponderações normativas para uma verdadeira cooperação federativa

A matéria atinente à Teoria do Federalismo irradia efeitos para uma indeterminada gama de relações jurídicas e sociais. Nina Beatriz Stocco Ranieri21 se utilizou das premissas desta teoria para fundamentar um importante parecer no campo do direito educacional, ponderando na ocasião que “o tema das competências no Estado Federal é dos mais importantes, senão fundamental.” No conjunto dos elementos formadores da organização constitucional do Estado 17 Considera-se que o município logrou status de ente federativo, figurando ao lado da União Federal e dos Estados-membros no

pacto. Todavia, não se trata de questão totalmente pacífica, mesmo sendo clara a dicção constitucional nos arts. 1º e 18º. Neste sentido escrevem Mendes, Coelho e Branco mencionando como parâmetro os que se filiam à posição aqui defendida, qual seja, a do município como ente federativo: “Embora seja esta a corrente predominante, há poderosas razões em contrário. Veja-se que é típico do Estado Federal a participação das entidades federadas na formação da vontade federal, do que resulta a criação do Senado Federal, que, entre nós, não tem, na sua composição, representantes de Municípios. Os Municípios tampouco mantêm um Poder Judiciário, como ocorre com o Estado e com a União. Além disso, a intervenção nos municípios situados em Estado-membro está a cargo deste. Afinal, a competência originária do STF para resolver pendências entre entidades componentes da federação não inclui as hipóteses em que o Município compõe um dos polos da lide.” (MENDES, COELHO e BRANCO, op. cit., p. 770).

18 “A Constituição brasileira estabelece um novo modelo de federalismo onde estão incluídos como entes federados além da União e dos Estados-membros, os Municípios e o Distrito Federal. Este dispositivo, por muitos criticado, estabelece uma federação com três círculos de poder federal, sendo que na esfera menor de poder existe uma federação de municípios, que forma a União ao lado dos Estados. Sem dúvida a fórmula constitucional é inovadora, mas em nada se reflete na realidade nacional. Talvez o papel mais importante deste modelo tenha sido o de levar a discussão constitucional até os municípios, que tiveram de elaborar suas Constituições ou, na denominação da Constituição Federal, Leis Orgânicas Municipais.” (MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Um novo município: federação de municípios ou miniaturização dos Estados-membros. Revista da OAB, [S.l], ano XXVI, n. 62, p. 39, 1996).

19 Apud Horta, op. cit., p.16.

20 Idem, ibidem.

21 RANIERI, Nina Beatriz Stocco. Federalismo cooperativo e garantia de padrão de qualidade do ensino: o caso dos estabelecimentos de educação infantil jurisdicionados ao sistema escolar do Estado de São Paulo. Revista da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, v. 98, p. 362, 2003.

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Federal, a reflexão acerca das técnicas de atribuição territorial de poderes é a pedra angular, pois nela se concentra a própria fisionomia do federalismo.22

Surgem assim algumas tipologias do federalismo, todas orbitando na distribuição de competências entre o ente Federal e os entes federados. Fala-se então em federalismo centrífugo, federalismo centrípeto e, mais recentemente, em federalismo de cooperação ou equilíbrio. E a cada uma dessas tipologias é possível situar, historicamente, um projeto constitucional de repartição de competências que as suporta. Nesse sentido, Raul Machado Horta reduz as variações dos modelos constitucionais em relação ao tema a duas classificações: a clássica e a moderna.23

A perspectiva clássica de distribuição de competências teve no federalismo norte-americano sua origem e encontrou na Constituição americana de 1787 seu estaleiro. A característica principal deste modelo é conferir à União Federal poderes enumerados, reservando aos Estados-membros os poderes residuais e não enumerados.24 Junto com a Carta Constitucional americana surgia o federalismo centrífugo, cuja característica principal estava na preservação do poder dos entes federados,25 isto é, na emulsificação das competências constitucionais.

Como adiantado alhures, pretendiam os constitucionalistas americanos fortalecer os Estados, mas acabaram reféns da volúpia da União,26 especialmente quando deixaram a porta aberta para a expansão dos poderes Federais com as denominadas cláusulas de poderes implícitos27 — instrumento que a Suprema Corte utilizou para ampliar os horizontes da competência Federal pela via judicial.28

Com a passagem do Estado liberal do século XIX para o Estado dirigista do século XX, o que se observou foi uma concentração de poder ainda maior na figura da União, motivada por aquilo que Garcia Pelayo denominou de processo de dilatação dos poderes federais.29 Este 22 Cf. HORTA, Raul Machado. Organização constitucional do federalismo. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte,

ano XXXIII, n. 28-29, p. 13, 1985-86.

23 Idem, ibidem. p. 14.

24 Cf. CAVALCANTE, Susy Elizabeth Forte. Federalismo: evolução política e necessidade de reconstrução. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, v. 31, p.95, 1987-88.

25 Idem, ibidem, p. 96.

26 “A evolução do Estado Federal caminhou em direção contrária. A União federal, a Federação ampliou os poderes enumerados e esse processo de dilatação e de concentração dos poderes federais acabou reduzindo cada vez mais a área dos poderes reservados aos Estados. O federalismo norte-americano não escapou a esse perverso processo de dilatação dos poderes federais e correspondente retraimento dos poderes estaduais” (Cf. HORTA, op. cit., p. 16).

27 As cláusulas de poderes implícitos representaram um instrumento idealizado pelo constituinte da Filadélfia que conferia ao Congresso norte-americano a competência “para elaborar todas as leis necessárias e adequadas ao exercício dos poderes especificados e dos demais poderes conferidos por esta Constituição ao Governo dos Estados Unidos ou aos seus departamentos ou funcionários” (Cf. HORTA, op. cit., p. 14).

28 Cf. HORTA, op. cit., p. 14.

29 Garcia Pelayo enumerou as seguintes causas imediatas deste processo: “1. A guerra e as depressões, impondo regulamentação unitária, com sacrifício da autonomia estatal. 2. O intervencionismo estatal, que conduz por sua vez a ampliação dos órgãos e dos serviços governamentais decorrentes da atividade empresarial do Estado. 3. A crescente complexidade da estrutura econômica, tornando de interesse federal- nacional matérias anteriormente de caráter regional ou estadual.” (apud HORTA, op. cit., p. 17). Também sobre o processo de centralização de poder, escreveu Ana Maria Brasileiro: “As necessidades criadas no plano da competição internacional, no plano da segurança nacional, no plano social interno, exigindo unidade e ação governamental e despesas vultosas, alimentaram o processo centrípeto de concentração de poder” (BRASILEIRO, Ana Maria. O federalismo

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amesquinhamento de competência, típico do federalismo centrípeto, acabou por acarretar aquilo que Karl Loewenstein30 denominou de processo de erosão do federalismo norte-americano. Preferia-se o filósofo político alemão ao desnaturamento de todo o arcabouço federalista que, mais tendente ao centralismo, perdia sua natureza singular.

Como se observou, o federalismo norte-americano (modelo para todos os demais) se baseou numa rígida distribuição dualista de poderes e competências, o que forneceu os espaços para a desmedida ampliação da União e desestabilização das forças internas do pacto federativo. Nos tempos atuais, contudo, o que se observa é uma evolução do federalismo em sua perspectiva dualista movida, principalmente, pelos processos de integração na seara política, dando origem a um modelo com traços marcantes de cooperação e intergovernabilidade, na busca da unidade com a diversidade.31 É este o terreno do federalismo de cooperação ou equilíbrio.32

Dois exemplos sempre citados desta tentativa de integração federativa no campo da distribuição de competências são a Constituição da Áustria de 1920 e a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha de 1949.33 A Constituição austríaca tratou de distribuir competências para a Federação e também para os Estados, que além de poderes executivos também recebiam atribuições legislativas. Numa clara opção pela repartição vertical de competência,34 a União cuidava dos princípios gerais que, por sua vez, eram preenchidos pelo Estado. Assim, acabou com a exclusividade da União, estabelecendo um diálogo entre a legislação central e a execução das partes, atingindo um grau ainda mais de vanguarda na previsão da “legislação de princípio da União e na legislação de aplicação e execução dos Estados.”35

No tocante à Lei Fundamental de Bonn de 1949, a grande inovação se deu no campo da legislação concorrente, que passou a exigir um esforço comum dos entes e da própria Federação,

cooperativo. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, 1974, v. 39, p. 86).

30 HORTA, op. cit., p. 17.

31 Cf. BARACHO, op. cit., p. 121.

32 É importante dizer que nem todos os autores classificam os modelos de federalismo centrípeto, centrífugo ou cooperativo partindo do gradiente de competências partilhadas entre o ente Federal e os entes federados. Assim, há quem estabeleça como parâmetro para tais definições o processo histórico de formação do Estado Federal. Neste sentido, e abordando a formação do federalismo norte-americano, José Luiz Quadros de Magalhães e Cinthia Robert asseveram que: “o federalismo clássico constitui-se no modelo norte-americano, formado por duas esferas de poder, a União e os Estados (federalismo de dois níveis), e de progressão histórica centrípeta, o que significa que surgiu historicamente de uma efetiva união de Estados anteriormente soberanos, que abdicaram de sua soberania para formar novas entidades territoriais de direito público [...].” (MAGALHÃES, José Luiz Quadros de; ROBERT, Cinthia. Teoria do estado, democracia e poder local. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 37). Igualmente Sahid Maluf, em respeito ao federalismo brasileiro escreve que “contrariamente ao exemplo norte-americano, o federalismo brasileiro surgiu como resultado fatal de um movimento de dentro para fora e não de fora para dentro; de força centrífuga e não centrípeta” (MALUF, Sahid. Teoria geral do estado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 172).

33 Cf. HORTA, op. cit., p.18.

34 A respeito da repartição vertical de competência, vale transcrever lição de Raul Machado Horta: “A legislação federal é reveladora das linhas essenciais, enquanto a legislação local buscará preencher o claro que lhe ficou, afeiçoando a matéria revelada na legislação de normas gerais às peculiaridades e às exigências estaduais.” (HORTA, Raul Machado. A autonomia do Estado-membro no direito constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Estabelecimentos Gráficos Santa Maria, 1964. p. 53). Já em relação ao processo repartição horizontal de matéria legislativa, apresenta o autor as seguintes hipóteses: (i) apresentação exaustiva de atribuições da União e dos Estados-membros; (ii) enumeração da competência da União e atribuição aos Estados dos poderes reservados e não enumerados; (iii) enumeração da competência dos Estados-membros, de tal sorte que as matérias não relacionadas sejam de competência do poder central.” (Idem, ibidem. p. 50-51).

35 Cf. HORTA, op. cit, p. 18-19.

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apresentando um passo importante para a confirmação do modelo cooperativo nas Constituições

vindouras. Como se nota, o modelo cooperativo não é senão um aperfeiçoamento da Teoria

Federativa, cujo interesse é manter vivo o sistema a partir da integridade ideológica que o

criou, ou seja, imbuído da lógica de descentralização do poder, mas sem se perder nos excessos

de suas formulações originais.

Foi a partir do desenvolvimento das técnicas de competência comum e concorrente36 que a teoria

federalista passou a conceber um modelo de gestão cooperativa e intergovernamental. E, neste

contexto, coube à Constituição Federal a tarefa de estabelecer a distribuição de competências

legislativas a partir do reconhecimento da autonomia constitucional dos entes federativos, pois

como bem observa Gilberto Bercovici,37 “a fonte da cooperação federal é a Constituição.”

A sistemática do interesse comum, por exemplo, fornece uma possibilidade de singularização

das decisões, a partir do momento que conta com a participação de todos os entes federados e,

tecnicamente, dois são os momentos de decisão na cooperação:38 (i) primeiramente, no âmbito

federal, se estabelece o momento das opções a serem adotadas, cuidando de uma escolha

sintonizada com todos os entes competentes para a disciplina em questão; (ii) em momento

posterior ocorre a execução das decisões planejadas, em âmbito estadual ou regional, de acordo

com as necessidades e peculiaridades fáticas.

Nas palavras de Cármen Lúcia Antunes Rocha,39 a competência comum, enquanto marca do

federalismo cooperativo,40 pode ser entendida como “a difusão dos interesses que se encontram

subjacentes e que determinam um condomínio de atuações. Nenhuma das entidades é titular

exclusiva, superior ou desigual das competências. Não se dá a exclusividade da responsabilidade de

uma delas nem (e muito menos) a omissão possível dessa responsabilidade por qualquer delas.”36 Não vamos entrar nos detalhes acerca das técnicas de repartição de competências adotadas pelo constituinte de 1988 que se

coadunam com o federalismo de equilíbrio, pois não é esse o espaço hábil para o estudo de um tema tão importante. Vale apenas registrar, como bem observa Bercovici, que a diferença entre os modelos de competência comum e concorrente não é apenas de taxonomia, mas recai sobre a própria essência dos conceitos. Na cooperação, instrumentalizada pela competência comum, a necessária interdependência dos membros dificulta que um ente se destaque perante os demais, fato que pode ocorrer, diferentemente, nas hipóteses de competência exclusiva ou concorrente. (BERCOVICI, Gilberto. A descentralização de políticas sociais e o federalismo cooperativo brasileiro. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 3, n. 1, p. 16, 2002).

37 BERCOVICI, op. cit., p. 17.

38 Bercovici trata de diferenciar a coordenação da cooperação propriamente dita: “A coordenação é, na realidade, um modo de atribuição e exercício conjunto de competências no qual os vários integrantes da federação possuem certo grau de participação. A vontade das partes é livre e igual, com a manutenção integral de suas competências: os entes federados sempre podem atuar de maneira isolada ou autônoma. A coordenação é um procedimento que busca um resultado comum e do interesse de todos. A decisão comum, tomada em escala federal, é adaptada e executada autonomamente por ente federado, adaptando-a às suas peculiaridades e necessidades. A materialização da cordenação na repartição de poderes são as competências concorrentes. [...] Na cooperação, nem a União nem qualquer ente federado pode atuar isoladamente, mas todos devem exercer sua competência conjuntamente com os demais. Na repartição de competências, a cooperação se revela nas chamadas competências comuns, consagradas no art. 23 da Constituição de 1988.” (BERCOVICI, op. cit., p. 15-16).

39 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. República e federação no Brasil. Traços Constitucionais da Organização Política Brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 253.

40 “Para o federalismo cooperativo a coordenação das ações é tão essencial quanto a uniformização de certos interesses. Assim, toda matéria que extravase o peculiar interesse de uma unidade periférica, porque é comum a todas ou porque se particularizada num âmbito autônomo, engendraria conflitos ou dificuldades no intercâmbio nacional, constitui matéria principiológica” (RANIERI, op. cit., p. 363).

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A ampliação das técnicas de competência comum e concorrente abriram novas fronteiras para

o federalismo contemporâneo, e fizeram-no se adaptar aos novos tempos e às novas demandas

sociais, na medida em que possibilitaram uma maior abertura de diálogo entre a realidade central

(União) e as realidades locais (Estados e Municípios). O federalismo baseado em cooperações

intergovernamentais tem o escopo de atender com maior propriedade as demandas sociais, por

meio da construção de programas e de financiamentos compartilhados. E, para José Alfredo

de Oliveira Baracho,41 foram os costumes e as necessidades que, na ausência de normatização

constitucional, geraram as primeiras experiências de cooperação.

O modelo cooperativo, contudo, ainda carece do necessário reconhecimento constitucional,

seja por interesses de grupos que se beneficiam com o controle dos focos de poder, ou mesmo

pelas conjunturas internacionais que, na história recente, tem favorecido a concentração dos

atos da vida pública na figura da União. A verdade é que o cooperativismo federal ainda depende

de arranjos e acordos políticos,42 situação que pode favorecer amplamente alguns entes e

prejudicar gravemente outros, conforme as semelhanças ou diferenças dos grupos e ideologias

responsáveis pela gestão dos poderes centrais, regionais e municipais.

A Constituição brasileira de 1988 caminhou bem nesse campo,43 tendo até mesmo recepcionado

as melhores técnicas de distribuição de competência então praticadas e demonstrado com

clareza (e não apenas nominalmente) sua opção pela forma federativa de Estado. Vale registrar

que ocorreu uma considerável abertura, mas ainda há um longo caminho a percorrer em busca de

um sistema mais afeito a nossa realidade e consciente de nossa peculiar estruturação cultural,

geográfica e normativa.

Nos tempos atuais, um novo período de saturação do federalismo brasileiro se aproxima, e

requer novas ideias, mudanças que de fato venham a contemplar as singularidades de uma nação

de dimensões continentais e de raízes plurais. Nesse sentido, o texto constitucional demanda

uma reforma já em sua sistemática de distribuição de competências, a fim de sofrer nova

atualização apta a contemplar uma formatação federativa inovadora, mas que, em essência, se

aproxime do espírito que já se fazia presente na constituinte da Filadélfia.

Sobre isso adverte com muita propriedade José Luiz Quadros de Magalhães:44 41 BARACHO, op. cit., p. 124.

42 “Esse federalismo concretiza-se por um conjunto de meios utilizados, em cada uma das modalidades particulares da federação. Essa perspectiva responde às mutações do mundo contemporâneo, sem alterar a repartição constitucional de competências legislativas e às fontes de financiamento. Essas disposições concretizam-se por meio de Acordos, sob as formas mais diversas, entre governantes e os diversos setores da comunidade. No interior dos mecanismos constitucionais aparece a concepção intergovernamental de políticas públicas” (BARACHO, op. cit., p. 124).

43 Sobre a herança constitucional no campo da repartição de competências, e elucidando a verdadeira face nominativa do modelo federativo brasileiro anterior a 1988, escreveu Raul Machado Horta: “Tornou-se generalizada a impressão de que, não obstante as características formais do Estado Federal que a Constituição acolheu, o federalismo brasileiro encontra-se esmagado pela exarcebação centralizadora de poderes e de competência da União, convertendo o federalismo constitucional em federalismo puramente nominal e aparente.” (HORTA, Raul Machado. Reconstrução do federalismo brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, v. 30, p. 38, 1980-1982).

44 Cf. MAGALHÃES, op. cit., p. 37.

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Ao criarmos qualquer teoria sobre o Estado, temos, para não cometer erros do passado, que trabalhar sobre a realidade do país, sob pena de transformar um trabalho como este, que se pretende ousado, em um texto não muito interessante de ficção jurídica. Logo, não queremos comparar o que não pode ser comparado, por diversos motivos: dimensão territorial, história, cultura, tradição, etc.

Não há dúvidas de que o federalismo de cooperação, nos termos em que se encontra concretizado na prática política de alguns países como o Brasil, e na forma como é exposto pelos estudiosos, já representa um claro aprimoramento diante da tendência centralizadora que vem retomando espaços nos tempos mais recentes. A ampliação do diálogo entre os entes federativos e a busca por soluções concatenadas têm fortalecido a ideia de que o desenvolvimento das partes deve representar um esforço coletivo, encabeçado pela União, e cujos atores devem ser os Estados e Municípios.

Todavia, é preciso ir além, ousar e garantir que as ordens locais (Estados-membros) e periféricas (Municípios) tenham maior autonomia política e, especialmente financeira. Nesse novo arranjo, a União terá um papel importante, mas num quadro restrito de propositora de políticas públicas, cuja atuação na seara econômica estará desenhada exclusivamente no campo da gestão macroeconômica. Caberá aos Estados-membros a construção dos projetos de execução que, concretamente, serão implementados pelos Municípios. Esses, sim, passarão a ser os grandes protagonistas deste federalismo de índole municipal, cujas razões e ganhos serão tratados em capítulo próprio.

Antes, porém, é preciso considerar que a cooperação federativa somente terá a força e a independência que dela se espera na medida em que pugnar por um federalismo financeiro. O deslocamento e a atribuição de funções aos entes federativos pela União Federal são passos importantes, na medida em que podem fornecer instrumentos de concretização das singularidades a partir de um escopo geral. Contudo, a simples subvenção de poderes não será exequível diante da escassez de recursos, e tendo em conta que a maior parte da receita pública é auferida e gerenciada pela União. Desta feita, sem a repartição das atribuições financeiras, seja mediante o deslocamento de competências para a cobrança e utilização de receitas originalmente da União, seja por meio da transferência direta de verbas para os entes estaduais e, notadamente, municipais, sem quaisquer cláusulas de condicionalidade na aplicação dos valores, a fim de que o exercício da democracia local seja suficientemente capaz de escolher os rumos do dinheiro público.

3 Federalismo financeiro e equilíbrio federativo econômico

Não é apenas a repartição de competências (administrativas e políticas) o tema a ser examinado pela teoria federativa, apesar de se tratar de assunto central. Questões relacionadas com o sistema partidário e a distribuição de prerrogativas tributárias são igualmente imprescindíveis

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à compreensão das evoluções pretendidas. Ademais, as relações financeiras entre os entes (federalismo financeiro) representam verdadeiras questões prejudiciais, visto que a insuficiente partilha de receitas impossibilita o exercício das demais competências.45

Especialmente em países das dimensões do Brasil e com claras desigualdades regionais, a distribuição dos fundos públicos (incentivos fiscais, empréstimos públicos, receitas tributárias e gastos da União e de suas estatais, por exemplo) ganha destaque na construção federal, pois que o desenvolvimento dos entes depende, e muito, da transferência destes recursos públicos extraídos e concentrados na União.46 Esta é uma realidade que não pode ser negligenciada, e somente haverá um federalismo equilibrado quando igualmente equilibrada estiver a balança de receitas auferidas pelos entes federativos. Não faz sentido se falar em distribuição de competências aos entes de um lado, e manutenção de recolhimento de receitas quase que exclusivamente centradas na União, de outro.47

Todavia, uma distribuição desarrazoada de competências financeiras e tributárias da União aos entes federativos não resolve nem ameniza as disparidades econômicas existentes. As consequências de uma descentralização nestes moldes, apenas aparentemente federativa, mas avessa ao seu conteúdo cooperativo e equilibrado, poderia ampliar as desigualdades regionais e favorecer os setores mais afeitos à economia internacional, o que geraria mais fragmentação e distanciamento regional, dada a imediata aproximação dos entes federados com o cenário externo, sem qualquer representação do interesse nacional, senão que munidos de demandas particulares — o que criaria um verdadeiro mosaico de interesses que em nada auxiliaria a nação em sua tarefa de se fortificar enquanto unidade na esfera internacional.48

Não se propõem neste estudo alterações esquizofrênicas, que seriam apenas necessárias para fortalecer o discurso de centralização dos poderes na figura da União, sob o argumento de que nada de melhor existe. Nenhuma mudança deve ser feita aos sobressaltos, de maneira abrupta e sem critérios, o que não impede que, com as devidas cautelas e reconhecimento da pluralidade, sejam elas assumidas de forma responsável e realista.

A verdade é que a Carta Constitucional de 1988 falhou em dois aspectos: inicialmente, silenciou em relação a qualquer estratégia de atuação financeira49 — e esta circunstância foi utilizada de maneira escusa por alguns governos federais desejosos de concentrar ainda mais as arrecadações na figura da União; e, um segundo erro, foi ter amesquinhado do texto, por timidez ou avareza, um plexo maior de autonomia financeira e tributária que deveria ficar nas mãos dos entes periféricos, mas concentra-se na figura da União Federal.45 Cf. BARACHO, op. cit., p. 123.

46 Cf. BERCOVICI, op. cit., p. 14.

47 “Sem esta autonomia financeira torna-se inviável falar em autonomia política dos entes que integram a federação.” (Cf. BARACHO, op. cit., p. 123).

48 BERCOVICI, op. cit., p. 19.

49 Idem, ibidem, p. 20. No mesmo sentido, mas com uma crítica acentuada, pondera José Luiz Quadros de Magalhães: “Numa federação descaracterizada, onde a centralização tem sido regra, no momento em que a União devia atuar em competência de sua exclusiva responsabilidade como a de estabelecer políticas econômicas e sociais que permitam um desenvolvimento equilibrado de todo o território da Federação, esta é omissa” (MAGALHÃES, op. cit., p. 33).

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Este é o cenário em que emergem as mais virulentas guerras fiscais entre os Estados, cuja repercussão pode ser sentida em todo o cenário nacional e por todos os entes federativos. É o efeito dominó que a desregulamentação (ou timidez) constitucional acarreta,50 o que só faz recrudescer a essência da organização espacial federativa que, cunhada sob a égide da descentralização de poderes e na correlata oferta de condições materiais para o desenvolvimento local, encontra atualmente na figura do Município a mais fiel expressão de sua razão original. Este é o passo seguinte desta investigação: apoiar a municipalização do poder como forma de fortalecer os laços de cidadania e assegurar a eficácia plena dos direitos humanos.

Antes, porém, vale seguirmos a doutrina de Baracho,51 quando o autor afirma a possibilidade de se encontrar uma interessante síntese dos efeitos havidos entre a disparidade financeira e política, e suas consequências para a organização federativa:

A repartição dos recursos financeiros e sua utilização, nos dias de hoje, constitui preliminar para apreciação da autonomia e interdependência política. Os sistemas financeiros orientam a evolução do federalismo cooperativo, da mesma maneira que a integração das finanças públicas leva à estabilidade econômica e ao bem-estar social, através da execução das políticas públicas comuns. O federalismo contemporâneo desenvolve-se através de complexos mecanismos legislativos e regulamentares, sendo que na linguagem dos equilíbrios constitucionais, dentro do sistema federal, é de grande importância o equilíbrio financeiro que leva à adoção das medidas necessárias à sustentação das atividades decorrentes do exercício da atividade de governo. As finanças federais devem permitir que cada nível de governo beneficie-se dos recursos, preservando, entretanto, autonomia financeira como condição necessária ao exercício da autonomia política. O federalismo financeiro deve observar os princípios constitucionais de separação, autonomia e participação.

O comprometimento (político, social e econômico) exigido de cada ente federativo deve ser proporcional ao montante de renda distribuída no cenário plural da federação. Quando esta relação entre comprometimento e distribuição de rendas se distancia, surge uma crise de sobrecarga.52

Assim, as técnicas de equilíbrio constitucional guardam estreito laço com as relações financeiras havidas entre os membros do corpo federativo, pois ausentes as condições financeiras, vazio estará o sentimento federativo, e o modelo não passará de simples forma sem conteúdo.

Parece claro que o problema que assola o federalismo brasileiro está menos numa tendência centrípeta do que na própria estruturação interna de coordenação e distribuição de competências.

50 Stéphane Rials deixou consignada a posição, por nós compartilhada, de que a autonomia normativa dos entes colegiados encontra-se em razão direta com a autonomia financeira que estes mesmos entes ostentam e, neste sentido, as políticas econômicas e financeiras federal e federada passam a se empenhar numa relação integrada. Também no tema da distribuição das receitas, e propondo um novo federalismo denominado de trialista (apud BARACHO, op. cit., p. 126).

51 BARACHO, op. cit., p. 123.

52 RAMOS, Dircêo Torrecilas. Federação: assimetrias e corrupção. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, ano 12, n. 49, p. 21, out./dez. 2004.

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Se a forma de Estado guarda relação umbilical com as novas manifestações da sociedade que ela busca regular, a preocupação maior deve se deter em ampliar, de maneira responsável e gradativa, as técnicas de desconcentração de competências, em especial no campo das finanças públicas e das prestações assistenciais.53

Tal processo deve ocorrer sem maiores sobressaltos ou investidas de inopino, sob pena de ampliar as ranhuras já existentes nas relações entre o órgão federal e os membros federativos. O momento é de planejamento de metas e, principalmente, discussão séria acerca da distribuição de fundos públicos suficientes para robustecer o pacto federativo. A regular descentralização deve, antes de tudo, contar com o compromisso da União que, neste contexto, desempenha papel indispensável neste processo de transição que, ao final, terá no Município o grande protagonista nesta nova fronteira no campo da teoria federalista.

4 Municipalização do poder: do avesso do federalismo para um “federalismo ao avesso”

Até este ponto foram apresentadas ideias de renovação do federalismo, consistentes na busca por reforçar (para uns) ou ressuscitar (para os mais árduos críticos do sistema vigente) o sentimento federativo. Este é o ponto de encontro entre a teoria e a práxis, momento em que as ideias forjam sua concretização. No sentimento encontra-se a face axiológica do federalismo, e este será mais importante e respeitado na medida em que suas premissas forem reconhecidas e aceitas pela comunidade que dele se aproveita. Em outras palavras, a força do modelo federal está em razão de proporção direta com o sentido que a população de uma dada nação lhe atribui. Trata-se de uma relação de dependência, sem a qual o edifício teórico solapa e dá ensejo a outras formas de organização, não raro de caráter centralizador e autoritário.

O ponto de saturação do federalismo brasileiro tem na fragilidade deste sentimento a sua causa imediata, sem com isso desconhecer as demais causas mediatas que foram alinhavadas nos capítulos anteriores (a deficiente distribuição de competências constitucionais e a sofrível repartição de receitas tributárias entre os entes federativos). Pensar em instrumentos para robustecer este sentimento federativo não é senão o mais importante remédio para curar as sangrias existentes no sistema. E nada mais adequado e próprio a este tema do que se falar em municipalização do poder.

Isso porque não há como conceber um verdadeiro federalismo sem que suas premissas estejam reconhecidas pelos cidadãos e, especialmente, sem que estes mesmos cidadãos possam se sentir reconhecidos pelo Estado. Quanto mais distantes as esferas de poder, quanto menor o estímulo à participação nas decisões políticas, quanto mais fragilizado for o exercício democrático, tanto menor será o sentimento federativo e maiores serão as ranhuras do sistema. Carente de reconhecimento social, vazio estará de conteúdo, pois federalismo é sinônimo de dispersão 53 Observa Gilberto Bercovici (op. cit., p. 23) que até hoje a política federal foi marcada pela simples inclusão de dispositivos

constitucionais, obrigando os membros a responder pelas políticas sociais sem a correlata contrapartida de vinculação financeira, como nos casos do ensino fundamental (Emenda Constitucional n. 14) e dos serviços públicos de saúde (Emenda Constitucional n. 29).

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(orquestrada) do poder no exato interesse de fazer com que todos, e cada um, sintam-se, ao mesmo tempo, parte integrante de algo que lhes é comum e particular.

No Brasil, apesar dos avanços que a Constituição de 1988 buscou imprimir ao tema, observa-se com facilidade a exaltação da unidade que, na maioria das vezes, não corresponde ao reforço da pluralidade. Não é de hoje que o poder central busca ser onipresente, expandindo suas forças de influência por todas as esferas de poder, sob o manto de guardião do desenvolvimento nacional. O Governo Federal com sua semissacralidade utiliza os meios de comunicação de massa para fixar uma imagem de proximidade, enquanto, na verdade, está distante quando a carência do povo exige medidas emergenciais.

Um dado pode elucidar ainda mais a questão: o evento democrático de maior relevo no cenário brasileiro não é a eleição dos Governadores de Estado, quiçá, dos Prefeitos Municipais, mas é o pleito para o cargo de Chefe do Executivo Federal aquele que mais holofotes atrai. Passam-se quatro anos discutindo o que está bom e o que pode melhorar no âmbito federal, quem será o próximo presidente ou quem são os possíveis concorrentes ao cargo. Pouco se fala do pleito estadual, e quase nenhum “ibope” possuem as eleições municipais. Deposita-se uma grande dose de energia e expectativa nas instâncias mais distantes da realidade do cidadão, e para quem a diversidade não é senão que a outra face da moeda.

A União Federal não é a figura adequada para atender às particularidades, e nem foi idealizada para isso. Ao planificar expectativas tão plurais, o processo democrático centralizado54 na figura da União acaba por fomentar uma frustração política coletiva que vai se escalonando por todas as demais esferas do poder. Processo semelhante vem ocorrendo no plano estadual, com maior incidência nos Estados-membros cuja complexidade da máquina administrativa muito os aproxima da organização da União Federal.

Com isso se quer afirmar que o problema do alheiamento político da sociedade brasileira está na invisibilidade que a administração central e as administrações locais (estaduais) estão destinando à população. Cidadãos não são projetos políticos e projetos nem sempre são destinados diretamente aos cidadãos. A macroeconomia importa ao cidadão, assim como os vultosos investimentos em aeroportos, estradas, portos e demais obras de infraestrutura, mas nada disso acalenta a fome, aquece do frio, ou fornece os meios de participação mais próxima do poder. A estrutura estatizante impede a construção de indivíduos autônomos, conscientes de si mesmos e também do ambiente plural55 que os circundam, sábios de suas atribuições sociais e imbuídos em bem exercê-las no âmbito político.

54 Buscando um temperamento da crítica, até para não se cair no extremo oposto, que desvirtuaria a essência equilibrada que buscamos sustentar, colacionamos trecho do pensamento de Baracho:“As democracias de poder aberto não podem aceitar o entendimento schmitiano de que os interesses da sociedade colidem ou são incompatíveis com os interesses superiores do Estado. A auto-organização da sociedade não exclui o princípio da unidade política, desde que a unidade que se procura, por meio do consenso, é a que se efetiva na pluralidade.” (BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 200, p. 24, abr./jun. 1995).

55 Para isso, é necessário que estes mesmos indivíduos sintam-se os verdadeiros atores da cena social, artífices da obra coletiva a ser produzida e da qual os frutos serão igualmente por eles colhidos e consumidos. A abstração e o distanciamento das instâncias de poder tendem a tornar os cidadãos alheios aos processos decisórios, pois igualmente alheio encontra-se o Estado quanto às singularidades que lhes é presente. Quando o cidadão se torna invisível para o Estado, a figura do Estado imediatamente vai se esmaecendo do plano da consciência até se eclipsar por completo. Neste estágio, o sentimento de coisa pública já não passa de um termo enciclopédico carente de sentido.

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É no exercício da diversidade que o federalismo pós-moderno, complexo pela estrutura de seus entes, e que se pretende mais eficaz pelas exigências de uma sociedade cada vez mais consciente de seus direitos, encontrará o mote para sua reformulação. E isso depende de ousadia, pois é urgente que se passe do avesso do federalismo, centrado na unidade representada pela União e também pela burocratização excessiva da máquina estadual, para um federalismo ao avesso, cuja maior tarefa estará em contemplar a diversidade, fazer emergir o sentimento federativo e o apreço pela democracia, facilitar a fruição dos direitos humanos e dar vazão às expectativas de uma nação que clama por justiça social. Para isso, o maior protagonista será o Município.56

A verdade é que Estado e sociedade estabeleceram no cenário político atual uma relação de comensalismo em que nem um nem outro coexistem validamente de forma apartada. Isso não invalida a circunstância de que a sociedade moderna não mais tolera uma engenharia administrativa e burocrática carregada, polarizada e desajustada. Nesse sentido, Michael Crozier57 considera que a sociedade nasceu inteligente e evoluída, mas acabou sendo embrutecida pelo Estado. A excessiva burocratização da máquina governamental impede o reconhecimento estatal dos avanços sociais e, na ausência de condições para acompanhar tal processo, o Estado se apresenta de maneira paradoxal,58 pois ao mesmo tempo reconhece que não regula o que deveria e da forma como caberia e, por outro lado, regula o que desconhece ou identifica apenas de maneira parcial, dada a multiplicidade da vida social e a distância dos centros de regulação.

A proximidade das fontes de poder, a menor complexidade da máquina administrativa local, a maior possibilidade de acompanhamento dos processos decisórios (seja pela proximidade física, seja pela relação imediata de interesses) e de participação direta na formação da vontade coletiva, são apenas alguns dos elementos levantados a favor de uma descentralização de competências constitucionais verdadeiras que tenha como principal destinatário o ente municipal.59

No seio da sistemática federativa, o localismo governamental assume destacada projeção, já que os governos periféricos devem se comprometer com a redução das desigualdades sociais e com a promoção de uma melhor qualidade de vida. É a partir dos níveis mais escalonados do modelo federativo que ocorrem o efetivo processo de concretização dos direitos humanos e de

56 Estudando o papel do Município no sistema federativo brasileiro, Michel Saad pesquisou o processo de formação da consciência municipalista, concluindo que ela nasceu de forma natural, pois que favorecida pela formatação administrativa empregada por Portugal no então Brasil Colônia. Neste sentido, a consciência municipalista brasileira foi se desenvolvendo quase que de forma natural, haja vista que num país com as dimensões territoriais do Brasil, a centralização do poder dificultaria o próprio desenvolvimento econômico e social, isso sem falar nos problemas que decorreriam da difusa prestação dos serviços públicos. Isto é, a própria estrutura colonial instalada pela metrópole portuguesa no Brasil, fundada no sistema de capitanias hereditárias, estimulava a descentralização de atribuições, necessárias a ensejar um desenvolvimento irradiado por todo o território, seja pela dimensão continental da colônia, seja pela maior racionalização do modelo exploratório aqui implantado. (SAAD, Michel. O Município na federação brasileira. Revista Doutrinária. Rio de Janeiro, ano IV, n. 4, p. 101, 2001).

57 Apud BARACHO, Princípio da subsidiariedade, p. 23.

58 Considerando os paradoxos que marcam as relações entre os entes e, de igual modo, a necessidade de coexistência harmônica entre eles, Marta Arretche esclarece que o processo de descentralização de políticas sociais marca um destes aparentes paradoxos, uma vez que o sucesso da empreitada depende da agilidade e perspicácia institucional e administrativa do Governo federal, pois dele partirão as diretrizes organizativas para a implementação das políticas descentralizadas nos entes federativos (Apud BERCOVICI, op. cit., p. 23).

59 A busca pela construção de espaços de diálogo para o desenvolvimento do processo democrático só poderá ocorrer em dimensões menores de poder, onde a democracia possa ser exercida de forma direta e participativa (Cf. MAGALHÃES, op. cit., p. 38).

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reconhecimento da pluralidade.60 Um processo de efetiva descentralização, ao mesmo tempo em que atualizará o paradigma federativo brasileiro com as novas exigências de transformação e mutação sociais, dignas de um esforço governamental próximo e atuante, também impulsionará os movimentos de evolução de que as comunidades tanto carecem.61

A defesa do poder municipal longe de representar uma reação à forma federativa de Estado representa, isto sim, um reforço no sentido de contemplar a própria essência do Estado Federal, e mesmo os fundamentos do Estado Democrático encontram-se na dependência da descentralização do poder, conferindo aos municípios mais competência e fazendo com que o cidadão reforce cotidianamente sua posição na sociedade por meio do processo democrático.62

Toda esta inversão de polos do federalismo deve vir acompanhada de um esforço de desprivatização da máquina pública, notadamente na esfera municipal, a partir da efetivação do espaço público e do florescer da consciência pública. E apresentando similar preocupação com a reconstrução do sentimento federativo esvaziado pela centralização do poder, Magalhães63 acentua a chave desta retomada na figura do Município, pois

além de direitos, é necessário o sentimento de se sentir cidadão, ou seja, de se sentir parte de uma comunidade e se interessar pela sua construção e permanente evolução. Este sentimento não se constrói facilmente e o espaço em que ele pode se desenvolver mais facilmente é o Município. O Município é o espaço da cidadania.

É necessário “uma verdadeira revolução nas bases do poder local”,64 pois sem isso não será possível a construção de uma cidadania efetiva, e toda a construção humanística do direito estará fadada ao fracasso. Como observa Magalhães:65 “O modelo constitucional de organização do Estado e da sociedade deve permitir que o processo democrático legitimador das mudanças permanentes, se efetive de forma eficaz [...].”

60 “As mutações estruturais e qualitativas da sociedade contemporânea conduz a questionamentos sobre o conceito de ‘pluralismo’. O pluralismo não é apenas uma maneira nova de afirmar a liberdade de opinião ou de crença. É um sistema que vincula a liberdade na estrutura social, não objetiva desvincular o indivíduo da sociedade. O pluralismo conduz ao reconhecimento da necessidade de um processo de equilíbrio, entre as múltiplas tensões na ordem social. O Estado pode chamar a si a tarefa de promover a decisão, assumindo, inclusive, a legitimidade do conflito. O poder do Estado não deve estar assentado em base unitária e homogênea, mas no equilíbrio plural das forças que compõem a sociedade, muitas vezes, elas próprias rivais e cúmplices.” (BARACHO, op. cit., p. 24).

61 Na lapidar lição de Baracho, “o melhor clima das relações entre cidadãos e autoridades deve iniciar-se nos municípios, tendo em vista o conhecimento recíproco, facilitando o diagnóstico dos problemas sociais e a participação motivada e responsável dos grupos sociais na solução dos problemas, gerando confiança e credibilidade. As políticas públicas, através da estrutura e operações do governo local, tomam nova conscientização, com referências ao conceito político do federalismo.” (BARACHO, op. cit., p. 33-34).

62 Neste sentido são as palavras de José Luiz Quadros de Magalhães: “O modelo de valorização do poder em um espaço territorial menor está vinculado à ideia de espaço econômico, cultural e político que fundamente a unidade municipal, e sua viabilidade econômica deve ser fator primeiro a ser observado na recomposição dos municípios brasileiros, possibilitando a construção de uma nova federação onde os municípios cumpram o papel mais importante de construção de uma democracia, e de uma cidadania plena de sua população.” (MAGALHÃES, op. cit., p. 34).

63 MAGALHÃES, op. cit.,p. 42.

64 MAGALHÃES, op. cit., p. 33.

65 Idem, op. cit., p. 37.

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A efetivação de um projeto sólido e verdadeiro de municipalização do poder passa por uma revisão das matrizes constitucionais, a fim de que se afastem da perspectiva egoística do poder, para se fundar numa cidadania de base territorial, menor na dimensão, mas muito mais extensa e profunda de conteúdo.

É possível vislumbrar três modelos de valorização do Município na federação:66 (i) a previsão de um novo sistema de governo para os municípios; (ii) a federalização dos municípios; e (iii) miniaturização dos Estados-membros.

O novo sistema de governo preconizado para os municípios, proposta que nos parece muito interessante e factível, é denominado de Diretorial. Este sistema de governo já é adotado em instâncias locais por países nórdicos, como ressalta Magalhães. Em linhas gerais, o Diretório Municipal seria formado por um órgão colegiado representante da sociedade local, composto por técnicos e demais membros de reputação considerada pelos cidadãos da circunscrição municipal. Este corpo executivo, superando o paradigma personalista, seria eleito diretamente pelo povo ou indiretamente pelo parlamento.67

Complementando esta proposta, Magalhães sugere a criação do cargo de ombudsman68 (também conhecido como Ouvidor ou Provedor de Justiça) e a ampliação dos mecanismos de referendo e plebiscito, a fim de robustecer o sentimento federativo e democrático, oportunizando que a população opine diretamente acerca das questões de seus interesses e, com isso, possa sentir-se parte integrante e voz ativa das mudanças necessárias e da gestão da máquina pública.

O obstáculo que se coloca na aplicação desta proposta, isto é, do estímulo de que os próprios municípios escolham qual o sistema de governo que melhor atende a suas peculiaridades e interesses, vem do argumento de que tal liberdade poderia impor alterações na forma federativa de Estado e na dinâmica da divisão de Poderes, no caso do Município, entre os Poderes Legislativo e o Executivo.69

Aparentemente, qualquer tentativa de se alterar a forma federativa de Estado encontra, no atual texto constitucional (art. 60, § 4º, I), uma barreira aparentemente intransponível. Contudo, com razão, José Luiz Quadros de Magalhães70 afirma que não há no sistema constitucional pátrio

66 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Um novo Município: federação de municípios ou miniaturização dos Estados-membros. Revista da OAB, [S.l], ano XXVI, n. 62, 1996.

67 Idem, ibidem, p. 41.

68 “O ponto central da ideia do ombudsman é a fiscalização da atividade administrativa, sendo que o que sugerimos quando da sua introdução no Brasil, é que este não se torne apenas mais uma cópia de instituições que foram criadas em outras nações com história e culturas diferentes.” (MAGALHÃES, op. cit., p. 45).

69 O STF, por meio do princípio da simetria, vem buscando homogeneizar os sistemas de governo da União e, no exemplo, dos Estados-membros. Esta situação, por certo, poderá ser encetada para os municípios nos casos de propostas de alteração que visem a flexibilizar, ou mesmo alterar, as características do modelo presidencialista em âmbito local. Neste sentido, MENDES, COELHO e BRANCO: “A adoção de medidas parlamentaristas pelo Estado-membro, quando no âmbito da União se acolhe o presidencialismo, também é imprópria, por ferir o princípio da separação de Poderes, como desenhado pelo constituinte federal. As fórmulas de compromisso entre ambos os regimes somente podem ser estabelecidas na Constituição Federal.” (Curso de direito constitucional, p. 767). Na página seguinte, os autores deixam registrado que o princípio da simetria não possui caráter absoluto. Contudo, fica patente a restrição na capacidade de auto-organização dos entes federativos.

70 MAGALHÃES, op. cit., p. 35.

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vedação de emendas que procurem aperfeiçoar ou aprofundar a forma federativa brasileira, não sendo vedada a supressão do texto constitucional de definições dos sistemas de governo ou mesmo de sua alteração para um sistema, que embora não coincidente com o sistema da União ou mesmo dos Estados [o autor está sugerindo a introdução do sistema Diretorial no âmbito dos municípios], permita o melhor funcionamento da democracia na menor esfera estatal, onde o poder deve ser mais forte e democrático.

Segundo a proposta de federalização de municípios, os Estados-membros deixariam de ser entes federados e se transformariam em regiões administrativas, com atribuições para coordenar políticas de investimentos e gerenciar o desenvolvimento de políticas macroeconômicas e de desenvolvimento regional e metropolitano. Não há dúvidas de que este modelo demanda uma intensa alteração constitucional,71 contudo, tem a vantagem de conferir ao ente municipal todo o valor político que, nos termos aqui expostos, deve fazer jus. Neste contexto, o equilíbrio federativo permaneceria mantido, apenas ocorrendo um novo escalonamento de competências constitucionais.

Assim, a União ficaria com a responsabilidade de organizar as macropolíticas da nação, estabelecendo parâmetros gerais de atuação que, inevitavelmente, deverão ser preenchidos pelos Estados-membros e Municípios. Os Estados-membros seriam os entes competentes para o diagnóstico de singularidades de suas áreas e posterior construção de projetos, cabendo ao Município, a autonomia para bem aplicar os projetos em sua área e, especialmente, competência para gerenciar recursos próprios condizentes com suas atribuições e necessidades.72

No terceiro modelo apresentado, restaria ao Estado-membro concentrar, no plano socioeconômico, todo o poder decisório em seu território. Por seu turno, a miniaturização de Estados-membros não demanda grandes alterações na estruturação dos municípios, mas, por outro lado, exigiria um esforço político de desmembramento dos Estados-membros, para que estes se tornem territorialmente menores. As novas demarcações deveriam considerar as peculiaridades sociais, culturais e econômicas das comunidades interessadas.73

A teoria já vem trabalhando pelas mudanças, e resta que as práticas políticas as recepcionem antes do deterioramento total do federalismo e do sentimento que lhe dá conteúdo. Isso, sem se falar no descrédito político, motivado pela carência democrática, e na ainda insuficiente eficácia dos direitos humanos. É preciso mudar para que o Estado Democrático de Direito brasileiro não passe de mera remição constitucional, sem força viva.

71 MAGALHÃES, op. cit., p. 35. Um problema considerado pelo autor seria a representação do Município na federação, dada a extensão do país e o imenso número de municípios hoje existentes.

72 José Luiz Quadros de Magalhães adverte que a federalização de municípios não é de simples concretização, pois implicaria “na modificação de toda a estrutura municipal existente, o que teoricamente pode aparecer como necessário e urgente, esta ideia pode estar na verdade muito distante da real possibilidade de implementação. O que nos faz retornar à ideia de simples modificação nas competências, conforme estão divididas na Constituição, reforçando muito o poder municipal, e transformando o seu sistema de governo ou talvez simplesmente deixando que o Município mesmo decida em sua Constituição o que melhor se adequa à sua cultura e história” (op. cit., p. 36).

73 Idem, ibidem, p. 36. Sem ignorar o papel da União na condução das políticas macroeconômicas de investimentos públicos e privados, este modelo poderia apaziguar situações conflitantes do presente. Assim, “a instalação de uma fábrica de automóveis em uma região, não será decidida por uma ridícula guerra fiscal de Municípios ou de Estados-membros, mas será fruto de uma política macro de desenvolvimento equilibrado do território nacional” (op. cit., p. 36).

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Bem caminhou Baracho74 ao ponderar que

os princípios fundamentais ou básicos para uma melhor sociedade, na qual todos possam viver, nem sempre realizam, concretamente, um único tipo de sociedade aceitável para todos, desde que será impossível definir, para todas as pessoas, exclusivo modo de vida e de viver. Não se pode esquecer, que as pessoas são complexas, como são as várias formas de relacionamentos entre elas.

É neste sentido que o trabalho pugna pela valorização da diversidade, da pluralidade, sem se descurar das tarefas a que se presta a unidade, pois é partindo do reconhecimento de cada um que será possível sedimentar um verdadeiro sentimento que nos una enquanto nação.

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74 BARACHO, op. cit., p. 22.

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Isabelle de Baptista

Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Graduada em História pela Universidade Federal do Espírito Santo e em Direito pelo Centro Universitário Vila Velha. Docente no Centro Universitário Vila Velha (UVV). Advogada.

Resumo: Este artigo se propõe a analisar a teoria de Robert Alexy, especialmente a técnica da

ponderação aplicável aos direitos fundamentais, a partir da leitura filosófica de Jacques Derrida

que propõe a desconstrução como método de trazer à tona aspectos contraditórios dos textos

carregados de toda a tradição ocidental de pensamento. Também será analisada a utilização

da teoria de Alexy no Brasil, principalmente pelo Supremo Tribunal Federal, a partir de uma

interpretação desconstrutora.

Palavras-chave: Ponderação. Direitos fundamentais. Princípio da proporcionalidade.

Argumentação. Racionalidade. Desconstrução. Logocentrismo.

Abstract: This article aims to analyse Robert Alexy’s theory, specially the balancing technique

applicable to the constitucional rights, from the reading of Jacques Derrida’s philosophy, that

proposes desconstruction as a method of bringing up contradictory aspects of texts loaded with

the whole Western tradition of thought. There will also be analysed the use of Alexy’s theory

in Brazil, principally by the Supreme Federal Court, in the perspective of the desconstructive

interpretation.

Keywords: Balancing. Constitucional rights. Proportionality principle. Reasoning. Rationality.

Desconstruction. Logocentrism.

A desconstrução da técnica da ponderação aplicável aos direitos fundamentais, proposto por Robert Alexy: uma reflexão a partir da filosofia de Jacques Derrida

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1 Introdução

A teoria elaborada por Robert Alexy é, atualmente, considerada uma referência para estudos na área da Filosofia do Direito, da Teoria da Constituição e para a própria aplicação prática do Direito, uma vez que o julgador, por diversas vezes, não consegue decidir com base, unicamente, nas regras postas pelo ordenamento jurídico. Em muitos casos, o julgador, para implementar a melhor decisão, necessita interpretar e ponderar pela aplicação de princípios que, em determinado caso concreto, estão em conflito. Assim, na apreciação de casos difíceis o julgador deve ponderar ante a tensão permanente existente entre interesses constitucionalmente tutelados.

A construção teórica feita pelo filósofo do Direito alemão é considerada como verdadeiro divisor de águas para a moderna Ciência do Direito por permitir levar em consideração aspectos negligenciados e afastados pelo positivismo jurídico e que tanto prejudicou o alcance da finalidade precípua do Direito que é a satisfação da justiça, como o relevante valor dado aos princípios constitucionais.

Segundo Alexy, o julgador deve buscar uma decisão “racional” diante de conflitos entre princípios constitucionais que asseguram direitos e garantias fundamentais, tendo como parâmetro a análise do princípio da proporcionalidade — que se subdivide em adequação, necessidade e proporcional idade em sentido estrito — e fazer a opção pelo princípio que contenha o mandamento que proporcione a satisfação de um dever ideal, já que princípios são comandos de otimização e, como tal, pressupõe que algo seja realizado na maior medida possível.

Nesse caso, para Alexy, estamos diante da “lei da ponderação” que consagra que quanto mais alto for o grau de descumprimento de um princípio, maior deve ser a importância do cumprimento do outro princípio que está em conflito (ou seja, a proporcionalidade em sentido estrito). O detalhe é que para mensurar tal situação é necessária a incidência de uma carga de argumentação.

No Brasil, a teoria de Alexy tem sido muito utilizada como referencial teórico para os muitos casos jurídicos (hard cases) em que o pano de fundo é a discussão e apreciação de causas que envolvam conflitos de princípios.1 Todavia, uma das críticas que será travada neste artigo é demonstrar como teorias construídas sob determinado referencial jurídico, social e histórico é aplicado em outro ordenamento jurídico sem qualquer tipo de contextualização.

Para tanto, a reflexão crítica da teoria de Robert Alexy, principalmente no que tange à técnica da ponderação será feita a partir da leitura da filosofia de Jacques Derrida, essencialmente em relação à metodologia por ele denominada de desconstrução.

1 Cite-se, a título meramente exemplificativo, os seguintes julgados: ADI 2716-6/RO, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 07/03/2008; ADI 3070-1/RN, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 19/12/2007; ADI 3305-1/DF, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 24/11/2006; ADI 3112-1/DF, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, DJ de 26/10/2007; ADI 3689-1/PA, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 29/06/2007; ADI 2240-7/BA, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 03/08/2007; ADI 3489-8/SC, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 03/08/2007; ADI 3316-6/MT, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 29/06/2007; AC0 876-MC-AgR/BA, Relator Ministro Menezes Direito, DJ de 01/08/2008.

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Derrida, ao longo de sua vasta obra, empreende algo aparentemente ambicioso: questionar os elementos tradicionais do pensamento ocidental, numa abordagem que não sugere a remoção ou a extinção dos elementos e paradoxos existentes, mas, tão somente, revelá-los, trazê-los à tona. E é neste sentido que a presente investigação caminhará. Não se trata de condenar à morte a teoria desenvolvida por Alexy, mas de evidenciar os pontos incoerentes e controversos, acima de tudo se observados sob a perspectiva da incidência de uma teoria não ajustada propriamente à realidade brasileira. É preciso enfrentar tal temática, pois em nome da ponderação, do balanceamento, verdadeiros direitos e garantias fundamentais poderão, legitimamente, serem relativizados pelo Poder Judiciário.

Este artigo se propõe a realizar um diálogo entre os contornos teóricos da filosofia de Jacques Derrida — enfocando seus aspectos fundamentais e a discussão desconstrutora que tece principalmente em relação ao direito e à lei, com base na obra Força de lei: fundamento místico da autoridade, juntamente com os pontos essenciais da teoria desenvolvida por Alexy, para, finalmente, realizar a tarefa de desconstruir pontos contraditórios e obscuros da teoria desse grande filósofo do Direito da atualidade. Derrida, ao efetuar a desconstrução da lei e do direito, demonstra que a força para a criação do direito compreende um ato de violência, uma vez que não há comprometimento com o justo, mas reflete um ato de autoridade.

Assim, apresentados os fundamentos teóricos imprescindíveis para a compreensão da discussão central do presente artigo, compete evidenciar, a partir de uma reflexão filosófica derridiana, como a teoria de Robert Alexy possui profundas deficiências, principalmente se analisada e aplicada ao sistema jurídico brasileiro sem qualquer tipo de contextualização.

2 Desconstruir a teoria de Robert Alexy

2.1 Desconstruindo a Teoria da Argumentação Jurídica

Antes de adentrarmos ao tema deste capítulo, mister apresentar, sinteticamente, as bases da filosofia de Jacques Derrida (1930-2004). O filósofo argelino dedicou-se a efetuar severas críticas aos aspectos fundamentais do pensamento ocidental. Sua obra não compreende uma filosofia sistemática, com contornos metodológicos, conceitos e definições bem definidos. Ao contrário, tece sua abordagem filosófica através da identificação de aporias e neologismos próprios. Sua filosofia baseia-se num processo de leitura com outras obras ou de situações em que efetua um diálogo crítico.

O resgate do movimento e da criatividade são as grandes pretensões do filósofo, em contraposição às leis do pensamento ocidental, que são: a simplicidade, pois em tudo existe uma realidade essencial, desprovida de qualquer contradição; homogeneidade, ou melhor, tudo possui uma mesma substância ou ordem; e separada e distinta de qualquer complexidade que envolva a discussão sobre a origem e a consciência de si. Tudo o que está fora dessas “leis”, tende a ser excluído. Dessa forma, exclui-se a complexidade, a mediação e a diferença, passando a serem tratados como “impureza”.

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Outro traço característico do pensamento moderno é a instituição de conceitos sempre voltados para significados apresentados de forma dual: sensível/inteligível, ideal/real, interno/externo, bem/mal, bom/ruim, ficção/verdade, natureza/cultura, fala/escrita, atividade/passividade etc. Para fazer a crítica a esse dualismo tão presente na metafísica ocidental, Derrida propõe a noção de différance, melhor traduzido para o português como diferença, que remete tanto às diferenças semânticas, genéricas, históricas, étnicas, culturais como também à prorrogação do sentido final, da verdade estabelecida, de forma que não há uma verdade e sim sua construção permanente e infinita, diante da impossibilidade de deter a verdade em uma positivação. Há sempre movimento para re-introduzir a negatividade da dúvida, que propositadamente empurra a análise da verdade sempre para frente.

Toda noção de verdade, na concepção nascida do logos, que gera uma “racionalidade” hegemônica, simplista e homogênea que é o alvo da crítica de Derrida e que denominou de logocentrismo.

Derrida também contesta o papel da escritura como ocupante de um papel secundário em relação à fala. Comumente, a fala é associada à razão e à racionalidade (aqui utilizada com a noção grega de logos) e a voz é aceita como a mais próxima da verdade, por refletir a consciência individual. A escritura, por sua vez, é considerada como secundária ou suplemento da voz por se tratar de uma tecnologia criada humanamente.

A importância desse movimento de desconstrução é a ampliação dos quadros de referência que normalmente moldam nossas concepções e são tidas como verdades e acabam por proporcionar uma restrição em nossa compreensão do mundo.

A separação entre o discurso e a escrita é insustentável para Derrida. O que está subjacente a este entendimento é incessante trabalho filosófico de trazer à tona situações que aparentemente são negligenciadas se vistas sob o olhar da simplicidade e da unidade. A escritura, em seu sentido mais estrito, é virtual (como aquilo que não se realizou, mas é possível de se realizar), e não um reflexo secundário e fenomenal. A escritura não apenas reflete o que foi produzido, numa visão simplesmente subsuntiva, mas o que torna a produção possível.

Essas considerações são essenciais para proceder à desconstrução da teoria proposta por Robert Alexy. Inicialmente, cabe contextualizar a produção teórica desse importante jurista da atualidade. Segundo o relato do próprio autor no Prefácio à obra Teoria da Argumentação Jurídica, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha exigiu, mediante a Resolução de 14 de fevereiro de 1973, que as decisões dos seus juízes deveriam basear-se em “argumentações racionais”.

Então, a questão foi saber o que é racional ou se a argumentação jurídica racional é algo que interessa não apenas aos juízes do Tribunal Constitucional Federal alemão e, também, a toda a comunidade jurídica e ao cidadão ativo na seara política. Para Alexy, a possibilidade de uma

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argumentação jurídica racional depende não só para o caráter científico da Ciência do Direito, mas também para a legitimidade, das decisões judiciais. Dessa forma, propõe na sua obra Teoria da Argumentação Jurídica de 1976, como deve ser entendida a argumentação jurídica, como se efetua e com que alcance ela é possível.

Também foi um marco para Alexy a questão do novo caráter assumido pelos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito, em virtude da positivação desses direitos nas constituições modernas, com vigência imediata e, acima de tudo, o amplo controle feito por meio do Tribunal Constitucional Federal alemão.

Dessa forma, Alexy se preocupou em dar a devida interpretação racional a esses direitos e visualizou a necessidade de métodos específicos para interpretação e aplicação dos direitos fundamentais, em razão da grande vagueza das formulações dos catálogos desses direitos. Nesse contexto, publica sua importante obra denominada Teoria dos Direitos Fundamentais em 1985.

Quanto a esse aspecto, estamos diante da situação denominada por Derrida como logocêntrica, ou seja, por mais que haja contribuição para o Direito, a ânsia da fidelidade à racionalidade, importa na produção de uma simplicidade, homogeneidade e esgotamento da real complexidade dos fenômenos jurídicos, extremamente prejudicial, pois se trata, na verdade, de estarmos diante de uma nova roupagem à “camisa de força” conferida pelo positivismo ao Direito de completa vinculação à formalidade, mas, agora, com a utilização de um discurso de satisfação e efetivação da justiça.

É de se questionar até que ponto o juiz ao decidir com base na incidência de argumentos opta pela decisão mais “racional”. Ora, a linguagem, como nos adverte Derrida, é composta de elementos que vão muito além dos aspectos externos que envolvem o significante2 e o significado3 dos signos, mas envolvem aspectos internos que são arquitetadamente ocultados. Dessa forma, é possível que o magistrado leve em consideração elementos internos que importem na opção de um argumento em detrimento do outro, favorecendo a ocultação dos reais elementos que levaram ao seu convencimento.

O argumento envolve um aspecto pouco levado em consideração: a persuasão. Nesse sentido, o nível de questionamento se amplia ainda mais, diante da dúvida de se saber aferir com precisão até que ponto o magistrado não é persuadido por conta de uma carga de valorização de argumentos artificiosos capazes de interagir no processo de formulação da decisão jurídica.

Segundo Alexy, a argumentação jurídica leva em consideração os vetores deontológicos básicos das questões práticas: ordenar, proibir ou permitir, assim, a argumentação jurídica é um caso especial de argumentação prática em geral, mas se torna especial pelo fato de estar situada sob uma série de vínculos institucionais que se pode caracterizar como vinculação à lei, ao precedente e à dogmática, que se configuram como limites ao julgador. 2 A imagem acústica, ou seja, a impressão psíquica do som na reprodução de um signo.

3 O conceito da representação do signo.

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Dessa forma, o magistrado para efetuar a argumentação prática limita-se à lei, ao precedente e à dogmática para alcançar assim a “decisão mais racional”. Mas a pergunta que se coloca: ser racional é ter coerência com a verdade? Derrida, ao criticar o que denominou de logocentrismo, ou seja, o império do logos, demonstra que em nome da razão não há qualquer comprometimento com a verdade. A forma se torna mais relevante que a própria verdade. Nesse sentido, como aferir que o julgador não está diante de uma verdade racionalmente construída? Logo, a dúvida permanece: até que ponto a teoria de Alexy, de fato, é considerada um avanço em relação ao positivismo de Kelsen e Hart.

2.2 Desconstruindo a Teoria dos Princípios e a Técnica da Ponderação

Alexy aperfeiçoa a construção teórica elaborada por Ronald Dworkin, filósofo do Direito de Oxford, que iniciou uma grande discussão jurídica a respeito do seguinte questionamento: para cada caso jurídico, há uma única resposta correta?

A tese de Dworkin contrapõe-se ao sistema de regras positivas de Kelsen e Hart em que o sistema jurídico é composto por regras, regras válidas e/ou eficazes. Se diante da vagueza da linguagem da norma e diante de casos não regulados por leis positivas, neste espaço vazio, não cabe ao juiz agir de forma subjetiva, levando em consideração a utilização de métodos. É preciso buscar no sistema de regras a resposta, utilizando-se de critérios como o hierárquico, lex superior derogat lex inferiorem; o critério da especialidade, lex specialis derogat lex generalis; e o critério cronológico, lex posterior derogat lex priorem.

Dworkin, contrapondo a esse modelo de regras do sistema jurídico, propõe um modelo de princípios. Por este modelo, o sistema jurídico é composto por regras e, também, por princípios jurídicos que devem permitir que o julgador encontre uma única resposta correta nos casos em que somente as regras não determinam a única resposta correta. Esse julgador, “Hércules”, dever ser capaz de decidir com habilidade, sabedoria, paciência e com perspicácia, portanto, apto a encontrar a única resposta correta.

Para Alexy, a teoria de Dworkin estabelece uma grande quantidade de questionamentos e intenta aperfeiçoar tal teoria, propondo a (i) Teoria dos Princípios e a (ii) Teoria da Argumentação Jurídica, que leva em consideração o critério de razão prática.

A teoria dos princípios é um dos principais aspectos da teoria de Robert Alexy. Segundo ela, as normas constitucionais que asseguram os direitos fundamentais são distinguidas entre dois tipos de normas: as regras e os princípios. Tanto as regras como os princípios devem ser compreendidos como normas porque ambos dizem o que deve ser. Isto é, ambos podem ser formulados com a ajuda das expressões deônticas básicas de ordem (mandado), de permissão e de proibição.

Para ele, os princípios poderiam ser caracterizados como mandados ou ordens de otimização (optimierungsgebote). Nas palavras de Alexy, “os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais/táticas

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existentes.”4 Ou seja, os princípios são mandados de otimização que podem ser cumpridos em diferentes graus e na medida devida do seu cumprimento, dependente das possibilidades reais e concretas, como também das possibilidades jurídicas existentes no momento da aplicação efetiva do princípio.

Já em relação às regras, ocorre o contrário. As regras são normas que exigem um cumprimento pleno e que podem ou não ser cumpridas. Caso a regra seja válida, logo é obrigatório fazer exatamente o que ordena, nem mais nem menos, portanto, as regras contêm determinações no campo do fático e juridicamente possível.

Por todo o exposto, conclui-se que, se a norma a ser aplicada exige a maior medida possível de cumprimento em relação às possibilidades jurídicas e fáticas, estamos diante de um princípio. Todavia, se a norma exige somente uma determinada medida de cumprimento, trata-se de uma regra. Sobre essa temática, esclarece Alexy:

A base do argumento de princípio forma a distinção entre regras e princípios. Regras são normas que ordenam, proíbem ou permitem algo definitivamente ou autorizam algo definitivamente. Elas contêm um dever definitivo. Quando os seus pressupostos estão cumpridos, produz-se a consequência jurídica. Se não se quer aceitar esta, deve ou declarar-se a regra como inválida e, com isso, despedi-Ia do ordenamento jurídico, ou, então, inserir-se uma exceção na regra e, nesse sentido, criar uma nova regra. A forma da aplicação da regra é a da subsunção. Princípios contêm, pelo contrário, um dever ideal. Eles são mandamentos a serem otimizados. [...] A forma de aplicação para eles típica é, por isso, a ponderação.5

O critério empregado por Robert Alexy afirma que entre regras e princípios existe não somente uma diferença de grau, quantitativa, mas uma diferença de natureza qualitativa.

Os princípios não possuem um caráter de definitividade e subsunção como as regras, mas ordenam que algo deve ser realizado na maior medida possível, levando em consideração possibilidades jurídicas e fáticas postas no caso concreto. Assim, os princípios não são mandados definitivos, mas apenas um dever prima facie. Os princípios representam razões que podem ser desprezadas ou assimiladas por outras razões opostas, não apresentando, de imediato, uma solução para resolver a problemática existente na relação entre uma razão e sua oposição. Por isso, os princípios carecem de conteúdo de determinação com relação aos princípios contrapostos e às possibilidades do mundo fático.

De forma diversa é o caso das regras. Como exigem que se aja exatamente como o que se ordena, as regras contêm uma determinação no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas. Essa determinação pode fracassar, o que pode conduzir à invalidez da regra; mas se não for o caso, vale definitivamente, cumpre exatamente o seu comando deôntico.

4 ALEXY, Robert. Derecho y razón práctica. México: Biblioteca de Ética, Filosofia del Derecho y Política, 2002. p. 13 (tradução nossa).

5 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. 2. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 37.

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Por isso, em um primeiro momento é possível deduzir que os princípios possuem um caráter prima facie e as regras um caráter definitivo. Todavia, Alexy propõe um modelo diferenciado do defendido por Dworkin, quando diz que as regras, quando válidas, são aplicadas de uma maneira do tudo-ou-nada (all or nothing fashion) e os princípios contêm uma razão que indica uma direção da decisão, de acordo com a dimensão de peso.

Em relação às regras, a necessidade de um modelo diferenciado resulta do fato de que é possível, com motivo da decisão de um caso, introduzir nas regras uma cláusula de exceção, assim, a regra perde seu caráter definitivo para a decisão do caso. E a regra de exceção pode levar a discussão para a base de um princípio.

Ademais, o caráter prima facie dos princípios pode ser reforçado se for introduzida uma carga de argumentação em favor de determinados princípios ou de determinados tipos de princípios, especialmente se tratarem de direitos fundamentais.6

De todo o apresentado, verifica-se que as regras e os princípios são razões de tipos diferentes. Os princípios sempre são razões prima facie; as regras, a menos que tenha uma exceção, são razões definitivas.

Para identificar o ponto forte da teoria dos princípios é preciso fixar a semelhança dos princípios com o “valor”, já que “toda colisão de princípios pode expressar como uma colisão entre valores e vice-versa”7 e que o problema identificado por ocasião da colisão corresponde também a um problema de hierarquia de valores. Para Alexy, é possível uma teoria dos princípios que seja mais que um catálogo e que consista de três elementos:

I. um sistema de condições de prioridade: por ocasião de colisão entre princípios, deve-se resolver mediante a aplicação da ponderação no caso concreto, sendo possível, também, estabelecer relações de prioridade com a decisão de outros casos. As condições de prioridade estabelecidas até o momento num sistema jurídico e as regras que se correspondem proporcionam informação sobre o peso relativo dos princípios. Dessa forma, ao elencar prioridades, permite-se a possibilidade de um procedimento de argumentação jurídica, de forma a eleger o princípio que será aplicado ao caso concreto.

II. um sistema de estruturas de ponderação8: os princípios, enquanto mandados

6 Segundo Alexy, os direitos fundamentais são considerados como o núcleo de todo o constitucionalismo discursivo e propõe que os direitos do homem e os direitos fundamentais possuem uma relação estreita. Os direitos do homem possuem como características os seguintes aspectos: são (i) universais, (ii) fundamentais, (iii) preferenciais, (iv) abstratos e (v) morais. Já os direitos fundamentais, por outro lado, são os direitos que foram acolhidos em uma constituição com o intuito de positivar os direitos do homem. A positivação não anula os direitos do homem, mas confere validade jurídica a eles. (ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no estado constitucional democrático. In: ______. Constitucionalismo discursivo. 2. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 10).

7 ALEXY, op. cit., p. 16 (tradução nossa).

8 Conforme leciona Alexy, “o princípio da proporcionalidade consiste de três princípios: os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Todos os três princípios expressam a ideia de otimização. Os direitos constitucionais enquanto princípios são comandos de otimização. Enquanto comandos de otimização, princípios são normas que requerem que algo seja realizado na maior medida possível, das possibilidades fáticas e jurídicas. Os princípios da adequabilidade e da necessidade dizem respeito ao que é fática ou factualmente possível. O princípio da adequação exclui a adoção de meios que obstruam a realização de pelo menos um princípio sem promover qualquer princípio ou finalidade para a qual eles foram

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de otimização, exigem uma realização a mais completa possível, em relação com as possibilidades jurídicas e fáticas. Quanto às possibilidades fáticas, leva aos conhecidos princípios de adequação e necessidade. Quanto às possibilidades jurídicas, implica numa “lei da ponderação” que pode ser formulada da seguinte forma: quanto mais alto o grau de descumprimento de um princípio, maior deve ser a importância do cumprimento do outro (proporcionalidade em sentido estrito). Isso significa que uma teoria dos princípios conduz a estruturas de argumentação racional, o que não significa a disposição deles num simples catálogo.

III. um sistema de prioridades prima facíe: estabelecem cargas de argumentação e criam certa ordem no campo de princípios. Assim, não contém uma determinação definitiva e sim uma determinação mais forte dos argumentos em favor de uma prioridade de um princípio que julga em sentido contrário. Com isso, a ordem depende de uma argumentação.

Tais considerações são relevantes para a observância mais aprimorada da teoria dos princípios e da técnica da ponderação. Sobre essa análise, serão utilizadas as reflexões tecidas por Jacques Derrida em sua obra Força de Lei: o fundamento místico da autoridade, em que fomenta a tarefa de desconstruir questões como a justiça e o direito.

Derrida deixa às claras que o direito possui, comumente, o que denominou de “enforceability”, melhor traduzido como “aplicabilidade”. Segundo o filósofo argelino, não há direito sem força, o direito se torna justiça na medida em que se transforma em lei para, em seguida, ser aplicado justamente com a utilização da força. Nesse sentido, “[...] o direito é sempre uma força autorizada, uma força que justifica ou tem aplicação justificada, mesmo que essa justificação possa ser julgada, por outro lado, injusta ou injustificável.”9

A força para criar o direito compreende um ato de violência, pois o direito é observado não porque ele é justo, mas sim porque reflete a imposição de uma autoridade. Daí a necessidade de desconstrução. Ao reconhecer o direito como algo criado, e não como um direito natural, é possível a direção do direito para aquilo socialmente reconhecido como justiça. Assim, a força do direito não se dá por um direito natural, mas por sua força simbólica.

Nesse sentido, por mais que a técnica de ponderação proposta por Robert Alexy seja um meio, argumentativamente construído, que forneça caminhos a fim de que o julgador tenha em suas mãos um método para efetivar a escolha do princípio aplicável ao caso concreto, caso estejam em conflito, observa-se que o Direito é implementado e imposto pelo magistrado não como um fato natural, mas artificialmente construído para que, no caso sob análise, a melhor opção seja a escolhida e o melhor princípio cumpra, de fato, seu mandado de otimização. Dessa forma, em razão do cumprimento de um método, estamos diante de um Direito que se impõe de forma

adotados. [...] O balanceamento sujeita-se a um terceiro sub-princípio da proporcionalidade, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito. Esse princípio expressa o que significa a otimização relativa às possibilidades jurídicas (legal). ALEXY, Robert. Direitos fundamentais, balanceamento e racionalidade. [Tradução de Menelick de Carvalho Netto]. Ratio Juris. v. 16. n. 2, p. 135-136, jun. 2003.

9 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. p. 7-8.

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legítima, por refletir, necessariamente, a imposição de uma autoridade e, consequentemente, revestindo-se de violência.

Diante de conflitos entre princípios constitucionais, que traduzem direitos e garantias fundamentais, a aplicabilidade de um deles em detrimento de um outro, baseado em Derrida, sempre será um ato de força, de incidência necessária da violência da autoridade envolvida neste caso. Dessa forma, muito se distancia da tão proclamada e almejada justiça.

Ao efetuar a desconstrução da lei e do Direito, Derrida identifica três aporias em relação à justiça e ao direito, consideradas como verdadeiros axiomas pela sociedade ocidental.

A primeira refere-se a “epokhé da regra”. É comum acreditarmos na liberdade, de tal modo que, para ser justo ou até mesmo injusto, cada indivíduo deve ser responsável por sua decisão, sendo que nessa esfera de liberdade ou escolha da decisão do justo deve haver simetria com uma lei, uma prescrição ou uma regra. Se houver margem para a realização de decisões, esta deverá ser conforme o direito e, consequentemente, justa. Nesse caso, por exemplo, o juiz quando decide não deve apenas seguir uma lei geral, mas aprová-Ia, esclarecer seu valor, interpretá-Ia em cada novo caso, pois o sentido do texto da lei está sempre aberto, à espera de nova interpretação.

Acredita-se que para cada caso deverá existir uma decisão justa, diferente e interpretada de forma única. Nesse sentido, Derrida chega a identificar a tarefa do julgador como uma verdadeira “máquina de calcular”. Assim, a justiça enquanto aporia, compreende a imposição de um sistema, tido como justo, como algo que nunca é aqui e agora, no presente, mas que continua sendo válido, pois traz em si a possibilidade de ser aquilo a que se predispõe, mas em outro caso, ou seja, no futuro. Dessa forma, além de “justo”, para Derrida o melhor seria dizer legal ou legítimo, em conformidade com um direito, regras ou convenções que “autorizam o cálculo”. Pelo exposto, verifica-se que, no direito, a questão da justiça é, estrategicamente, enterrada e dissimulada.

Nesse caso, o julgador, ao implementar a técnica da ponderação, nada mais está do que reproduzindo a “máquina de calcular”, como nos adverte Derrida. O alcance do justo está muito distante dessa tarefa, quiçá mecânica, de cálculo, já que a ponderação será efetivada por meio da utilização do princípio da proporcionalidade que importa na observância de três subprincípios: primeiro, a análise da adequação; segundo, a necessidade; e terceiro, a proporcionalidade em sentido estrito. É a verificação, matematizada, desses três critérios que importará na aplicação racional da técnica da ponderação.

Pela adequação, o julgador deve apreciar para que a restrição de um princípio seja idônea o suficiente para garantir a sobrevivência do outro, apesar de afastado; pela necessidade, o julgador irá cuidar para que a restrição de um princípio deva ser a menor possível para a proteção do interesse contrário. Já a proporcionalidade em seu sentido estrito impõe a

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observância de que a restrição a um interesse deva compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico.

Como bem se observa dessa fórmula “perfeitamente” matemática, o sacrifício, o ato de violência, a imposição do entendimento de uma autoridade é o cerne de um discurso argumentativamente construído para a efetivação de uma dissimulada justiça que terá que conviver com essas contradições.

A ponderação leva a uma visão simplista dos conflitos envolvidos, a partir do momento em que o sacrifício de relevar um princípio constitucionalmente tutelado sempre será um ato de violência da autoridade. Ademais, os limites para o uso da argumentação são, segundo Alexy, a lei, a dogmática e os precedentes. Dessa forma, um entendimento alcançado por meio da ponderação e aplicado a um caso concreto, servirá de limite para demais casos concretos, e o questionamento que se coloca é até que ponto um caso difícil é igual a outro que permita a aplicação, quase subsuntiva, de um entendimento “ponderado” anteriormente. Será que os princípios que se determinam a ser um mandado de otimização não serão paulatinamente colocados no patamar de regras que se predispõe a serem aplicadas de forma subsuntiva?

Dessas reflexões, passemos à análise da segunda aporia identificada por Derrida que denominou de “assombração do indecidível”. Esta aporia, na verdade, trata-se de uma variante da primeira, pois o filósofo apresenta o entendimento comum de que só há o consenso de aplicação da justiça se houver uma decisão indecidível, ou seja, se houver dúvida na escolha entre as várias interpretações possíveis. Se não houver essa dúvida, trata-se de aplicação programável e calculada da lei — “Ela seria, talvez, legal, mas não seria justa.”10

Derrida, ao revelar esta aporia, nos alerta da tendência de identificar o alcance da justiça se o julgador teve que fazer opções e teve, em suas mãos, um caso concreto aparentemente indecidível. É a força de sua autoridade que impõe a justiça.

Mais uma vez não há como fazer uma conexão com a técnica da ponderação. Nossa tradição de matematizar os conflitos, leva-nos a uma concordância, quase mitológica, pelas decisões que foram arduamente sopesadas e balanceadas pela autoridade. Derrida nos leva a compreender que a concepção de justiça está diretamente ligada à noção de ética para com o outro, todavia, a decisão escolhida jamais consegue atender inteiramente a singularidade do outro. Jamais um ato de violência pelo uso “racional” da força conseguirá de fato promover a justiça. Eis o simulacro, eis a dependência imposta à sociedade de que a substituição estatal na resolução dos conflitos, sob o argumento da jurisdição única, é a forma de se garantir o legítimo alcance da justiça.

O julgador, segundo Alexy, ao ponderar, deve levar em consideração os resultados concretos que surtirão da decisão, já que para a solução dos casos difíceis importará em certa discricionariedade para o julgador que poderá levar em consideração possíveis resultados concretos. Ou seja, quanto maior o grau de abordagem da subjetividade envolvida na análise feita pelo julgador, melhor a motivação pela escolha de um princípio em detrimento do outro. 10 DERRIDA, op. cit., p. 47.

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Segundo Derrida, eis um grande “fundamento místico da autoridade”, pois jamais o julgador conseguirá inteiramente compreender a singularidade do outro e, dessa forma, a justiça que acredita implementar trata-se, tão somente, da imposição de sua força. A justiça, nesse caso, configura como um espectro que sempre fica alojado, independente da opção feita, já que

[...] se há desconstrução de toda presunção à certeza determinante de uma justiça presente, ela mesma opera a partir de uma “ideia de justiça” infinita, infinita porque é irredutível, irredutíveI porque devida ao outro, devida ao outro, antes de qualquer contrato, porque ela é vinda, a vinda do outro como singularidade sempre outra.11

Finalmente, a terceira aporia identificada por Derrida leva em consideração que a justiça se relaciona com a “urgência que barra o horizonte do saber”, ou seja, diante do entendimento reiterado de que a justiça é algo que tem de estar no presente, dar conta de problemas atuais, pois “[...] a justiça, por mais inapresentável que permaneça, não espera. [...] Uma decisão justa é sempre requerida imediatamente, de pronto, o mais rápido possível.”12 Por ser dessa forma, a justiça não poder ser tratada como um ideal que pode ser alcançado, deve ser aprofundada a sua análise e reflexão.

Todavia, a justiça se apresenta como aporia para Derrida, não se realiza no presente, tampouco é refletida para se realizar no futuro. Na verdade ela nunca se efetiva, pois considerando que a justiça reflete a responsabilidade com o outro, essa postura de alteridade é inalcançável.

Comumente somos convencidos do discurso de que quanto mais célere for a satisfação dos conflitos, mais se alcança a justiça. O problema que se coloca é que quanto mais célere, mais o julgador terá que se pautar na observância dos precedentes, da dogmática, da legislação posta — e como visto é imposta pelo uso da coerção — fazendo de cada caso concreto mais um diante de tantos, banalizando a complexidade dos conflitos humanos envolvidos em cada caso, simplificando o que é, por sua natureza, complexo.

A técnica da ponderação pode muito contribuir para a “urgência que barra o horizonte do saber”, como identificou Derrida, pois a partir do momento que em nome de uma celeridade, capaz de proporcionar a satisfação da justiça, entendimentos anteriores são praticamente subsumidos a novos casos difíceis, tornando o Direito cada vez mais imparcial, injusto e fruto do exercício da violência pela autoridade.

Segundo o filósofo, a justiça não se refere somente a um conceito jurídico ou político, diante da possibilidade de se abrir à transformação, à refundição ou refundação do próprio direito e da política e, a cada avanço, é preciso, novamente, reconsiderar e reinventar os próprios fundamentos do direito.

[...] ‘Talvez’, é preciso sempre dizer talvez quanto à justiça. Há um porvir para a justiça, e só há justiça na medida em que seja possível o acontecimento que, como acontecimento, excede ao cálculo, às regras, aos programas, às antecipações

11 DERRIDA, op. cit., p. 49 (grifo do autor).

12 DERRIDA, op. cit., p. 51 (grifo do autor).

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etc. A justiça, como experiência da alteridade absoluta, é inapresentável, mas é a chance do acontecimento e a condição da história. [...] Esse excesso da justiça sobre o direito e sobre o cálculo, esse transbordamento do inapresentável sobre o determinável, não pode e não deve servir de álibi para ausentar-se das lutas jurídico-políticas, no interior de uma instituição ou de um Estado, entre instituições e entre Estados. Abandonada a si mesma, a ideia incalculável e doadora da justiça está mais perto do mal, ou do pior, pois ela pode sempre ser reapropriada pelo mais perverso dos cálculos. [...] Uma garantia absoluta contra esse risco só pode saturar ou suturar a abertura do apelo à justiça.13

Essas três contradições existentes e aceitas axiomaticamente são reveladas por Derrida e demonstram a sua ânsia pela justiça, capaz de desconstruí-Ia e almejar a construção de um direito para além dos limites por ele mesmo definidos. É preciso ter comprometimento e consciência do que está por vir, do que está para acontecer, a fim de ser possível a reflexão, o repensar, o reanalisar das construções previamente estabelecidas e fomentar o movimento, o diálogo, a mudança e, porque não, a justiça.

A intenção deste trabalho não é condenar a teoria de Alexy à sua própria sorte. Ao contrário, é trazer à luz incoerências que, se não forem observadas pela autoridade, importará muito mais no implemento da violência do que propriamente no alcance da justiça.

Nesse sentido é que nos adverte Derrida, a autoridade deve estar comprometida não apenas com a formalidade, com as normas que refletem a imposição de atos de violência, com a matematização da busca de soluções para os casos concretos, mas deve ter um total apego com o outro, com os interesses realmente relevantes para sujeitos envolvidos no conflito, ao revés, em nome da celeridade, da formalidade e da pretensa racionalidade, o julgador pode fazer a opção pela violência que se coloca, nesse caso, implícita ao seu dever profissional.

2.3 Desconstruindo a tradução

Na obra Torres de BabeI, Derrida enfrenta aquilo que é a sua pedra de toque: o processo de tradução, já que, num primeiro olhar, promove a abertura e o reconhecimento de outras línguas, culturas, contextos e sujeitos.

Assim, a tradução destina-se a cumprir a sua vocação de confluir todas as línguas, diante do reconhecimento do seu passado supra-histórico, babélico,14 reconciliando o que fora dispersado. Derrida intervém nesta obra, dialogando com Walter Benjamin, e nos alerta que, em razão das diferenças existentes, qualquer tentativa de plenitude e centralização se torna inviável. Diante do reconhecimento desse fato, eis que se torna imprescindível a tarefa do tradutor.

13 DERRIDA, op. cit., p. 51 (grifo do autor).

14 Trata-se de uma referência que Derrida utiliza a respeito da passagem bíblica, constante no livro de Gênesis que relata a revolta organizada pelo líder tirano, cujo intento era construir a Torre de Babel para unir a terra ao céu, a fim de centralizar o poder e os povos até então reunidos. Em sua ira, Deus dispersa os povos, dando-lhes línguas diferentes, frustrando, dessa forma, o intento centralizador do tirano.

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A tradução coloca-se como forma suplementar de promover a aproximação entre as línguas, contudo, essa intenção de aproximação por si só não é capaz de apagar as diferenças existentes. Além disso, é mister valorar o endividamento da tradução em relação ao original, as repercussões da obra traduzida e sua inserção em contextos que, por sua natureza e gênese, são essencialmente diferentes. O problema que se coloca é que como obras traduzidas são assimiladas, não no sentido e contexto no qual foram escritos, mas segundo as necessidades de quem as interpreta, capazes de promover verdadeiras adaptações convenientes.

Esse raciocínio é fundamental para as conclusões que se almeja alcançar ao final deste artigo. Pretende-se demonstrar que a tarefa de traduzir não é imparcial, não consegue trazer consigo toda a complexidade de uma realidade para a qual uma teoria foi elaborada. Simultaneamente, o original torna-se tributário do seu tradutor que impregna, naturalmente, suas próprias marcas no texto traduzido.

Conforme entrevista concedida ao jornal Valor Econômico de 09/06/2008, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, manifestou-se no sentido de que o Tribunal é competente para suprir as deficiências do Poder Legislativo, em razão de que os Poderes do Estado devem ser harmônicos entre si, devendo, portanto, trabalhar de maneira ativa para a melhor elaboração das leis na sociedade.

Para o Ministro, os parlamentares representam a população pelo voto que recebem e o Supremo Tribunal Federal faz a “representação argumentativa” da sociedade. A base teórica que fundamenta tal pensamento é a tese do filósofo alemão Robert Alexy para quem os tribunais corrigem distorções do Legislativo.

Para tanto, o STF vem fomentando um ambiente mais democrático com a participação como, por exemplo, de amicus curie, fazendo do Tribunal um espaço para a argumentação jurídica e moral, com ampla repercussão na coletividade e nas instituições públicas, conferindo, dessa forma, mais legitimidade às suas decisões.

Ora, a tese acima descrita foi pensada e formulada para um contexto jurídico, para um modelo de organização social, bem diversa da realidade brasileira. Robert Alexy desenvolveu essa teoria diante do agigantamento que os direitos e garantias fundamentais passaram a ter nas Constituições modernas. No hemisfério Sul, estamos, ainda, formando nossa tradição política, fortemente influenciada pela colonização, em nosso caso, a portuguesa. Estamos praticamente num processo de existencialismo constitucional, reconhecendo que somos tutelados por uma ordem constitucional, repleta de garantias, e, aos poucos, vamos nos reconhecendo como integrantes do processo político, legitimadores da vigente Carta Constitucional e destinatários de diversos direitos e garantias.

Atualmente, os Poderes do Estado passam por uma crise de identidade justamente porque se encontram num processo de autoconhecimento. E, nesse processo, a influência da sociedade é primordial.

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Quanto à manifestação do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, anteriormente reproduzida, é preciso, nesse caso, efetivar o maior legado de Derrida. É preciso realizar a tarefa de desconstrução.

Observa-se que se trata de um ato de imposição de um entendimento construído argumentativamente e que pode muito pouco refletir os reais interesses da sociedade como legitimadora das decisões estatais. Trata-se, portanto, de um espectro do Poder Moderador de outrora, pois a solução das deficiências do Legislativo brasileiro não se resolve pela efetiva participação do Poder Judiciário, mas com o fomento das práticas realmente democráticas e no desenvolvimento de uma cultura política, que a esmagadora maioria da população brasileira jamais possuiu.

Não se está diante da nobre tarefa de reunir o que babelicamente foi separado, ou seja, a tradução aqui não se refere à simples inserção de uma teoria em um ordenamento jurídico diverso para o qual foi, inicialmente, formulada.

Com a utilização descontextualizada dessa teoria, corremos o risco de observar a mitigação e a relativização de direitos e princípios constitucionais, em nome de uma pretensa racionalidade, alcançada por meio da argumentação. Eis o grande legado da filosofia de Derrida: através da desconstrução trazer à luz as próprias contradições do objeto analisado.

O caso notório citado pela imprensa nacional traduz, em sua essência, a redução da função do Legislativo no Brasil, ampliando sobremaneira o papel do Judiciário, tudo isso através da utilização de discursos carregados de fortes valores argumentativos.15 Por argumentos, persuade-se, convence-se da necessidade de determinada decisão em detrimento de outra. Dessa forma, não há propriamente o fomento das instituições democráticas, pois se existe o Judiciário com poder para atuar como órgão responsável por suprir todas as lacunas legislativas16, não há que

15 Ingeborg Maus, em excelente artigo intitulado Judiciário como superego da sociedade, a partir da experiência do Tribunal Constitucional alemão e utilizando elementos da psicanálise, apresenta uma relevante crítica à atividade de controle normativo judicial que acaba por contribuir para a perda da racionalidade jurídica ou mesmo para racionalizações autoritárias, quando assim se manifesta ‘legibus solutus’: assim como o monarca absoluto de outrora, o tribunal que disponha de tal entendimento do conceito de Constituição encontra-se livre para tratar de litígios sociais como objetos cujo conteúdo já está previamente decidido na Constituição “corretamente interpretada”, podendo assim disfarçar o seu próprio decisionismo sob o manto de uma “ordem de valores” submetida à Constituição. [...] A prática judiciária quase religiosa corresponde uma veneração popular da Justiça, como superego constitucional assume traços imperceptíveis, coincidindo com formações “naturais” da consciência e tornando-se portador da tradição no sentido atribuído por Freud (MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade. Novos Rumos. São Paulo: Centro Brasileiro de Análises e Planejamento (Cebrap), n. 58, p. 184-202, 2000, p. 192).

16 Atualmente, a grande crítica tecida em relação à posição tomada pelo STF é em relação à Súmula Vinculante n. 13 que trata da vedação ao nepotismo em todos os Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Ora, o fundamento da Súmula deve-se eminentemente pela omissão legislativa a respeito do tema. Nesse caso, trata-se de total interferência nas decisões administrativas pelo Poder Judiciário como meio de impor o respeito e a observância ao princípio da moralidade contido no caput do art. 37 da Constituição Federal. Além de configurada intervenção de um Poder sobre o outro, o art. 103-A da Constituição Federal exige que para a edição de súmulas vinculantes baseiem-se em reiteradas decisões. Apesar de a Constituição não fixar o número preciso de decisões que sirvam como parâmetro preciso, ocorre que o STF editou a referida Súmula Vinculante após apenas dois pronunciamentos sobre o tema e levando em consideração alguns poucos precedentes. Verifica-se que tal decisão fundamentou-se muito mais na observação da reiterada tradição de nepotismo em todos os Poderes constituídos no Brasil, do que propriamente em uma análise aprofundada, fortemente discutida, de precedentes judiciais que, por força do art. 103-A da CF/88, permitem a edição de súmulas vinculantes. Ademais, fazendo, nesta ocasião, uma leitura desconstrutora, fomentar a simplicidade, o esgotamento da complexidade é uma situação que se torna mais “adequada” às autoridades comprometidas em se utilizar do Direito para impor a violência, uma vez que impor uma decisão dessa natureza é muito mais simples, do que enfrentar e fomentar o profundo diálogo social, capaz de trazer à tona a tradição patrimonialista e clientelista tão presente na

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se falar no fomento de uma cultura política na população brasileira que capacite, a longo prazo, a conscientização e a melhoria da atuação do Legislativo no Brasil.

Derrida nos adverte que o tradutor implementa sua marca na tradução e, portanto, não há que se falar em uma tradução totalmente descompromissada com o original. As línguas foram divinamente separadas e, agora, não há como obter o perdão de Deus pela pretensão humana de construir a Torre de BabeI. Assim, o original torna-se tributário da tradução. Eis um grande risco. No caso do Supremo Tribunal Federal, um grande risco à própria democracia.

3 Considerações finais

A construção teórica de Robert Alexy possui grande relevância para a afirmação e consolidação de uma cultura jurídica pautada na valoração de elementos negligenciados pelo positivismo jurídico como a moral, os valores e os princípios constitucionais.

Todavia, o julgador ao implementar a tarefa da ponderação entre princípios constitucionais conflitantes pode estar exercendo um legítimo ato de violência se sua atuação se pautar, apenas, num cálculo matemático. É preciso muito mais que isso. Derrida nos adverte que o compromisso deve ser, de fato, com o justo, com os interesses das partes envolvidas e que buscam no Direito a melhor solução para seus conflitos.

É preciso avançar em relação ao dogma da racionalidade, pois decisões formuladas com base em argumentações podem ocultar os reais interesses que, de fato, influenciaram na tomada da decisão. O apego à racionalidade pode importar na aplicação legítima de uma violência por parte da autoridade. Convencer-se de que uma argumentação tida como racional fornece a base para que o julgador faça a decisão mais justa, trata-se de verdadeiro simulacro e aporia. Eis, portanto, a importância do diálogo com a filosofia. E mais, com a filosofia de um dos pensadores mais criticados da chamada pós-modernidade.

Derrida nos aguça o prazer de penetrar no texto. Fazer o texto falar por si. Instigar até que seus espectros se revelem. Para os grandes linguistas, que aqui cito o seu maior representante, Ferdinand de Saussure, a língua falada é a que mais se aproxima da verdade. Eis uma grande ilusão da modernidade, já que a língua escrita traz em si muito mais do que está propriamente escrito. Derrida nos adverte disso e daí a necessidade desse tipo de leitura para o Direito. É preciso trazer à luz o que, de fato, está dissimulado nas decisões judiciais, é preciso que julgadores tenham compromissos com as pessoas envolvidas no caso. É para elas que o Judiciário existe e não para outros interesses que, discursivamente e argumentativamente (ou melhor, “racionalmente”), convencem e persuadem o julgador.

formação política brasileira e, dessa forma, culturalmente promover uma mudança de entendimento em relação à coisa pública. Sobre a tradição política brasileira, “[...] poder definir o coronelismo como umas instituições imaginárias centrais da sociedade brasileira. Foi a instituição imaginária que permitiu durante longo tempo a existência histórica dos mais diversos personagens políticos, dotando-os de significação. A sobrevivência do coronelismo até hoje é devida à profunda impregnação das práticas sociopolíticas brasileiras pelo imaginário do coronel. [...] Os coronéis são, de fato, criadores de códigos de comportamento social bem brasileiros, numa sociedade fechada à cidadania e centrada nas grandes famílias oligárquicas.” (GUALBERTO, João. A invenção do coronel: ensaio sobre as raízes do imaginário político brasileiro. Vitória: SPDC/UFES, 1995, p. 15).

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Os fenômenos jurídicos são, por natureza, complexos, todavia a modernidade imprimiu a árdua tarefa de torná-Ios simples, homogêneos e desprovidos de toda a inerente complexidade. Mister resgatar e reconhecê-Ios como tal. É preciso avançar em relação à mera “máquina de calcular” como nos advertiu Derrida.

A técnica da ponderação reflete, incontestavelmente, uma nova fase do Direito. Contudo, direitos fundamentais não podem ser relativizados em nome da racionalidade e do cálculo promovido na apreciação de seus elementos como a necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.

Referências

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DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Mirian Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

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Luís Henrique Baeta Funghi

Bacharel em Direito pela UFMG. Mestrando em Direito pela Unb. Advogado.

Resumo: O presente estudo tem como objetivo discutir as atuais objeções levantadas contra o constitucionalismo, que defendem uma flexibilização constitucional fundada em uma pretensa necessidade de modernização da Constituição brasileira. Partindo de tais questionamentos, será analisada a relação entre democracia e constitucionalismo no sentido de se enfrentar a questão acerca da definição e aplicação dos direitos fundamentais e do processo dinâmico da Constituição em sociedades complexas e plurais, explicitando-se o projeto constituinte do Estado Democrático de Direito, sob o enfoque da teoria de Jürgen Habermas.

Palavras-chave: Constituição. Democracia. Patriotismo constitucional.

Abstract: The present study aims to discuss the current objections raised against Constitutionalism, which advocate the flexibility of the Constitution based on an alleged need to modernize the Brazilian Constitution. From these questions, it will be analyzed the relation between democracy and Constitutionalism as an effort to deal with the definition and application of basic rights and of the Constitution and with the dynamics in plural and complex societies, in order to highlight the comprising project of the democratic rule of law, according to Jürgen Habermas’ theory.

Keywords: Constitution. Democracy. Constitutional patriotism.

1 A (des)estabilidade constitucional brasileira

No panorama constitucional brasileiro, especialmente em decorrência dos usuais escândalos denunciados e noticiados pela mídia, instaurou-se um cenário de crise de credibilidade nas instituições políticas e jurídicas, de modo que se incute no imaginário nacional a ideia da necessidade de uma intensa reforma constitucional com o objetivo de se aperfeiçoar o texto constitucional brasileiro, com o escopo de se atender aos anseios da sociedade por intermédio da modernização da estrutura político, econômico e financeira brasileira.

Constituição e Democracia: um exercício de patriotismo constitucional

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Nesse contexto, constata-se o crescimento de defensores da necessidade de uma ampla revisão constitucional no sentido de se adequar as práticas e matérias constitucionais a uma realidade globalizada e extremamente mutável, sujeita às mais diversas contingências. A mutabilidade do mundo globalizado imporia a necessidade de adequação da rígida Constituição brasileira à realidade nacional e, inclusive, às novas tendências do direito público moderno, impondo-se, por conseguinte, a flexibilização de seu caráter formal, especialmente quanto aos seus instrumentos de reforma.1

Com o objetivo de se “modernizar” a Constituição, permitindo, periodicamente, sua atualização, são cada vez mais intensos os discursos favoráveis ao processo de revisão constitucional, mediante, inclusive, a instauração de mecanismos de flexibilização do processo de reforma da Constituição, previsto em seu art. 60. Refletindo tal posicionamento, deve-se destacar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 157/2003, que visa, especialmente, à redução do quorum de três quintos para maioria absoluta, à diminuição dos turnos de votação, bem como à reunião unicameral das Casas Legislativas, representando, enfim, uma simplificação do processo legislativo de reforma.

O projeto de revisão constitucional proposto pela PEC n. 157/2003 possuiria uma suposta justificativa democrática, já que a promulgação do texto revisado estaria condicionada à sua aprovação popular mediante referendo. Ou seja, as formalidades inerentes ao devido processo constitucional reformador poderiam ser flexibilizadas com a aquiescência da maioria da sociedade, por mero exercício do sufrágio. Analisando as justificativas da PEC n. 157/2003, esclarece Cristiano Paixão que o processo de revisão constitucional pretende ser legítimo ao ser exercido pelo poder do povo, em consonância com as disposições do art. 1º da Constituição, equilibrando, assim, a democracia representativa (tradicional) e a direta.2

Outro exemplo recente dessa tendência de “lipoaspiração constitucional”, na expressão cunhada pelo Ministro Nelson Jobim, é a PEC n. 341/2009, de autoria do Deputado Federal Regis de Oliveira. Tal proposta visa reduzir ao máximo o texto constitucional, suprimindo toda matéria considerada como não constitucional, de modo que a Constituição se restrinja a garantir um núcleo mínimo de direitos e de estabelecer o equilíbrio entre os poderes estatais. Sustenta o ilustre deputado que a sociedade brasileira encontra-se enfraquecida em decorrência de ter todas as suas relações incorporadas a um texto de difícil alteração. Nesse sentido, conforme expressamente disposto na justificativa da proposta em referência, com tal revisão visa-se

1 “É natural, aliás, que ocorram aperfeiçoamentos no texto constitucional brasileiro, tendo em vista que a Constituição de 1988 trouxe inúmeras alterações para o regime político e administrativo brasileiros. Mais do que isso, em virtude da nossa Carta dispor sobre muitas matérias (é a constituição mais extensa do mundo), e diante da incrível velocidade das mudanças no mundo globalizado, faz-se necessária uma adequação da rígida Constituição brasileira às novas tendências do direito público moderno, a começar por uma redução do seu conteúdo. Em contrapartida, vê-se que a situação política brasileira vive hoje um impasse, diante da dificuldade em implementar as aclamadas reformas constitucionais. Esse impasse causa graves prejuízos à população e ao Estado, que estão visivelmente em crise, diante das distorções causadas pelos privilégios e contradições que a Constituição estabeleceu e engessou no ordenamento jurídico pátrio” (BASTOS, Celso Ribeiro. A reforma da Constituição: em defesa da revisão constitucional. Disponível em: <www.jus2.uol.com.br/doutrina>. Acesso em: 16 set. 2007).

2 PINTO, Cristiano Paixão Araújo. A Constituição subtraída. Disponível em: <http://www.fd.unb.br/index.php?option=com_content&view=article&id=522&Itemid=85>. Acesso em: 16 set. 2010.

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retornar à “pureza” do conteúdo constitucional, evitando-se a existência de uma constituição formal, na qual é inserida toda e qualquer matéria, por mais irrelevante que seja, de modo que a Constituição contenha tão somente a estrutura política do poder, as formas de seu exercício, o controle e os direitos e garantias constitucionais, nada mais. Ou seja, a interação Estado-indivíduo deve ser atraída para o âmbito da Constituição e por esta disciplinada, sendo que as demais relações não podem ser inseridas no corpo da Constituição.

Tal discurso, ao defender a ideia de flexibilização constitucional contínua e sem medidas, acaba, inevitavelmente, além de se voltar contra a própria Constituição e sua normatividade, por estabelecer como contrapostos as ideias de constitucionalismo e democracia.

Nesse sentido, o constitucionalismo subverteria/comprometeria a democracia, considerando que a Constituição, supostamente, ao representar um excessivo conjunto de normas, barraria toda a atividade legislativa necessária para se fazer frente às constantes contingências impostas e ao atendimento dos anseios de toda a sociedade, limitando, por conseguinte, o direito democrático de a maioria possuir a lei que bem entender.

Contudo, apesar da forte objeção levantada contra o constitucionalismo, especialmente quanto ao seu caráter formal, é necessário se debruçar sobre a imposição de uma flexibilização constitucional, no sentido de se delimitar a relação, bem como o arranjo apropriado, entre democracia e constitucionalismo, principalmente para se enfrentar a questão acerca da aplicação dos direitos fundamentais em sociedades complexas, plurais e multiculturais, tema este que representa, em certa monta, um dos maiores desafios constitucionais da modernidade.

2 Firmando a relação entre democracia e constitucionalismo

É frequente se abordar o direito e a democracia como objetos distintos e pertencentes a disciplinas diversas. Tal constatação decorre do fato de que, conforme indica Habermas, há ordens jurídicas estatais sem instituições próprias a um Estado de Direito, bem como há Estados de Direito sem constituições democráticas.3 Contudo, tais distinções não podem significar que haja, do ponto de vista normativo, um Estado de Direito (constitucionalismo), sem democracia, não podendo direito e democracia serem tratados de forma distinta e conflitiva.

O direito moderno é marcado pela facticidade da imposição coercitiva de suas leis e pela validade inerente à pretensão de legitimidade delas, de modo que o direito, ao passo que exige obediência (lei de coerção), igualmente deve deixar espaço para que o cidadão a ele obedeça, por respeito (lei de liberdade). Conforme destacado por Habermas:

Se as normas sustentadas por meio de ameaças de sanções estatais remontam a decisões modificáveis de um legislador político, essa circunstância enreda-se à exigência de legitimação de que esse tipo de direito escrito seja capaz de assegurar

3 HABERMAS, Jürgen. Sobre a coesão interna entre Estado de direito e democracia. In: ______ A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002, p. 285.

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equitativamente a autonomia de todas as pessoas do direito; e para que se atenda essa exigência, o procedimento democrático legislativo deve ser suficiente.4

Logo, a facticidade da imposição do direito por via estatal enlaça-se com a força legitimadora de um procedimento instituidor desse mesmo direito, de modo que a validade de uma norma jurídica justifica o fato de o Estado garantir ao mesmo tempo a efetiva imposição jurídica, inclusive mediante sanções, e a instituição legítima do direito, a qual possibilita o seu cumprimento por respeito à lei.

Partindo de tais premissas, depara-se com a questão relativa à necessidade de legitimação do direito, especialmente quando consideradas as atuais sociedades complexas e pluralistas, nas quais se verifica a impossibilidade da imposição de comportamentos éticos coletivamente vinculantes, bem como quando considerado o caráter formal do direito moderno, o qual independe de qualquer ingerência que possa advir de uma consciência moral.5

Analisando o pluralismo das sociedades modernas, Habermas6 destaca que quanto mais se verifica o aumento da complexidade das sociedades e mais se amplia sua perspectiva, originariamente restringida a termos étnicos, religiosos ou de tradição, com maior força se produz a pluralização de formas de vida. A evolução da sociedade fez com que as zonas de convergência sobre as questões de fundo, em torno das quais se encontrava um consenso tácito, fossem reduzidas, desprendendo-se de fundamentações metafísicas, sendo, por conseguinte, passíveis de tematização por vontades em constante comunicação e circulação. Dessa forma, as atuais sociedades plurais são movidas por distintos interesses e necessidades, sendo integradas por diferentes valores, visões de mundo e projetos de vida.

Tal complexidade atinge, inevitavelmente, os fundamentos do Estado Democrático de Direito, o qual deve se legitimar perante toda a sociedade, estabelecendo padrões de conduta neutros e imparciais, estruturando-se de modo a possibilitar que as diversas vozes assumam uma roupagem político-jurídica, permitindo que todos os cidadãos tenham efetivo acesso aos canais de produção normativa, de forma que se sintam, concomitantemente, autores e destinatários de tais normas.7

Assim, o direito não pode se legitimar com amparo em uma específica forma de vida, costume, tradição ou valor, devendo, necessariamente, considerar os legítimos interesses e pretensões de

4 ______ . ______ . ______ . p. 286.

5 Para uma análise do conceito de direito no marco das tradições do pensamento político moderno ver: HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. In: ______ A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002, p. 269-284.

6 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Sobre el derecho y el estado democrático derecho em términos de teoría del discurso. 3. ed. Tradução de Manuel Jimenez Redondo. Madrid: Trotta, 2001, p. 87 et seq.

7 Importante esclarecer que uma perspectiva pluralista requer que o Estado preserve e promova as diversas manifestações culturais nacionais, sem fixar qualquer uma determinada manifestação como parâmetro a ser imposto a todos os demais. Como explica Menelick de Carvalho Netto, nas sociedades complexas exige-se a afirmação, a um só tempo, paradoxal e estruturalmente móvel, do reconhecimento recíproco da igualdade e da liberdade de todos os seus membros, de modo a se tornar plausível a ideia de que somos uma sociedade na qual nos reconhecemos como pessoas iguais, porque ao mesmo tempo livres. Livres para sermos diferentes e exercermos nossas diferenças, ou seja, de sermos livres e de exercermos nossas liberdades e nos respeitarmos como iguais — igualdade na diferença (A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org.). Jurisdição constitucional e os direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 143).

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cada cidadão. Nesse sentido, com a transição das sociedades tradicionais às sociedades modernas, mediante um processo de racionalização social e cultural, com a inevitável diferenciação entre direito e moral,8 o direito somente pode cumprir sua função de estabilizar expectativas de comportamento se preservar uma conexão interna com a garantia de um processo democrático, por meio do qual os cidadãos alcancem um mútuo entendimento acerca das normas de seu viver em conjunto.9 O direito, justificado democraticamente, por conseguinte, passa a exercer o papel outrora desempenhado pela religião, costumes e convenções éticas, correspondendo às exigências de uma sociedade complexa, bem como satisfazendo as condições de uma integração social que se desenvolve mediante aquisições de entendimento mútuo entre sujeitos comunicativamente atuantes.

Dessa forma, a Constituição, considerando todo o contexto de pluralismo e multiculturalidade inerente às sociedades modernas, deve ser concebida como o resultado de um consenso formal, pois todas as relações dela derivadas regulam-se por princípios que asseguram o reconhecimento recíproco e o assentimento fundado por todos, igualmente; cada pessoa deve ser respeitada por todos como livre e igual.10

Sob as condições do pluralismo social, esclarece Habermas que é o processo democrático, por conseguinte, que confere força legitimadora ao processo de criação do direito,11 sendo que o direito deve englobar os princípios aos quais os indivíduos devem estar submetidos quando pretendem orientar a vida social por intermédio do direito. Ou seja, o direito deverá englobar os princípios que tornem possível o seu processo de legitimação. Tais princípios consistem nos direitos fundamentais, os quais exprimem as condições de possibilidade de um consenso racional acerca da institucionalização das normas do agir. Logo, regulamentações normativas somente serão legítimas caso possam contar com a concordância de todos os possíveis envolvidos enquanto participantes em discursos racionais.

Analisando a proposta de legitimação do direito de Habermas, verifica-se uma relação não de oposição e antítese, mas sim de complementaridade (coesão interna), entre direitos fundamentais (constitucionalismo) e soberania popular (democracia), consistente na exigência de institucionalização jurídica de uma prática civil do uso público das liberdades comunicativas por intermédio dos direitos fundamentais, de forma que estes possibilitam o exercício da soberania popular, ou seja, proporcionam a práxis de autodeterminação dos cidadãos.

Conforme esclarece Marcelo Cattoni, a perspectiva desenvolvida pela Teoria Discursiva da Democracia é fundamental para a reconstrução de uma visão não conflitiva entre constitucionalismo e democracia, de modo que o êxito da política deliberativa depende da institucionalização 8 Para uma análise da distinção e complementaridade entre direito e moral ver: HABERMAS, Jürgen. Sobre a coesão interna entre

Estado de direito e democracia. In: ______ A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002, p. 288-290.

9 OLIVEIRA, Marcelo Cattoni de. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 66.

10 CONTINENTINO, Marcelo Casseb. Revisitando os fundamentos do controle de constitucionalidade: uma crítica democratizante à prática judicial brasileira. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constituição) — Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília: 2006, p. 24.

11 HABERMAS, Jürgen. Sobre a coesão interna entre Estado de direito e democracia. In: ______ A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002, p. 292.

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jurídico-constitucional dos procedimentos e das condições de comunicação correspondentes,12 sendo os princípios do Estado Constitucional, bem como os direitos fundamentais, a resposta consistente à questão de como podem ser institucionalizadas as exigentes formas comunicativas de uma formação democrática da vontade e da opinião políticas.13

A teoria discursiva habermasiana, dessa forma, concebe os direitos fundamentais e os princípios constitucionais como uma resposta à pergunta de como institucionalizar as exigentes condições de comunicação do procedimento democrático,14 explicitando a necessária relação de complementaridade entre constitucionalismo e democracia. Nesse ponto, importante esclarecer que, diversamente das inadequadas críticas desferidas à teoria do discurso, esta não faz com que a efetivação de uma política deliberativa dependa de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir, mas sim da institucionalização dos procedimentos que lhe digam respeito. Analisando a questão, Gisele Cittadino, valendo-se das lições de Marta R. Fouz, esclarece que as estruturas do poder são as que precisam evoluir para uma solidariedade institucional e formalizada que os sujeitos podem menosprezar sem que tal menoscabo repercuta na racionalidade do sistema que obteve tal maturidade.15

Desta maneira, considerando o paradigma do Estado Democrático de Direito, em uma perspectiva procedimentalista do direito e da política deliberativa, constitucionalismo e democracia não se opõem, muito pelo contrário, são complementares. A Constituição, articulada à perspectiva procedimentalista da política deliberativa democrática, deve ser compreendida como a interpretação e configuração de um sistema de direitos fundamentais que definem as condições procedimentais de institucionalização jurídica das formas de comunicação necessárias que garantem, em termos constitucionais, um processo legislativo democrático. Por conseguinte, a Constituição não limita a democracia, sendo que esta pressupõe aquela, já que é por intermédio da mediação jurídica entre canais institucionais e não institucionais que a soberania popular se manifesta enquanto poder comunicativo.16 Nesse sentido, sustenta Habermas que:

[...] sem os direitos fundamentais que asseguram a autonomia privada dos cidadãos, não haveria tampouco um médium para a institucionalização jurídica das condições sob as quais eles mesmos podem fazer uso da autonomia

12 Segundo Habermas, “sólo uma democracia entendida em términos de teoría de la comunicación esta también posible bajo las condiciones de las sociedades complejas. [...] en mi modelo son las formas de comunicación de uma sociedad civil, que surge de esferas de la vida privada que se mantienen intactas, es decir, son los flujos de comunicación de um espacio público activo que se halle inserto em uma cultura política liberal los que soportan la carga de la expectativa normativa (HABERMAS, Jürgen. Más allá del Estado nacional. Tradução de Manuel Jiménez Redondo. México: Fondo de Cultura Económica, 1999, p. 151). Acrescenta ainda Habermas que os procedimentos e os pressupostos comunicativos da formação de vontade e de opinião democráticas funcionam como os canais mais importantes para a racionalização discursiva das decisões de um governo e de uma administração limitados pelo Direito e pela lei (HABERMAS, Jürgen. Faticidade e validade: uma introdução à teoria discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito. Tradução Menelick de Carvalho Netto. [s/d]).

13 OLIVEIRA, Marcelo Cattoni de. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006, p.110-111.

14 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. In: ______ A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002, p. 280.

15 CITTADINO, Gisele. Patriotismo constitucional, cultura e história. Revista Direito, Estado e Sociedade. Rio de Janeiro, n. 31, jul./dez. 2007, p. 64.

16 OLIVEIRA, Marcelo Cattoni de. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006, p. 116.

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pública ao desempenharem seu papel de cidadãos do Estado. Dessa maneira, a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente, sem que os direitos humanos possam reivindicar um primado sobre a soberania popular, nem essa sobre aquele.17

Os direitos fundamentais,18 assim como os diversos princípios constitucionais, não podem ser considerados como uma restrição externamente imposta ao exercício da soberania popular,19 vez que são justamente os direitos fundamentais que possibilitam a institucionalização jurídica do exercício das liberdades políticas dos cidadãos em sua prática de autodeterminação.

3 O projeto constitucional no Estado Democrático de Direito

Conforme exposto, diversamente da proposta dos defensores de uma permanente revisão e/ou flexibilização da Constituição, como forma de modernização da prática constitucional brasileira e de atendimento aos anseios da sociedade, inexiste contraposição entre Constituição (constitucionalismo) e democracia (soberania popular), de forma que a proposta constitucionalista não mais pode sequer ser pensada fora do contexto democrático, muito menos a democracia pode ser concebida senão dentro dos limites constitucionais.

Diferentemente do posicionamento dos defensores de uma ampla e irrestrita revisão e flexibilização constitucional, não só a Constituição, mas o direito deve ser compreendido como algo aberto para o futuro, que se constrói na vida cotidiana de homens livres e iguais, dotados de autonomia pública e privada, que legislam eles próprios enquanto uma comunidade de princípios.

Inadequado se adotar o posicionamento de que toda a crise institucional derive da literalidade do texto constitucional, como se este fosse o responsável pelo descumprimento das normas e princípios constitucionais. Não se pode mais crer que a literalidade do texto constitucional possa solucionar todos os problemas constatados, sendo capaz, por si só, de transformar a realidade. Nesse sentido, esclarece Michel Rosenfeld que o texto constitucional escrito é inexoravelmente incompleto, não somente porque não recobre todas as matérias que deveria idealmente contemplar, mas igualmente porque o texto constitucional não é capaz de abordar exaustivamente todas as questões concebíveis que podem ser levantadas a partir das matérias que ele acolhe.20 O texto constitucional é sujeito a múltiplas interpretações plausíveis, de modo

17 HABERMAS, Jürgen. Sobre a coesão interna entre Estado de direito e democracia. In: ______ A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002, p. 293.

18 Os direitos fundamentais, nas lições de Menelick de Carvalho Netto, fornecem os insumos básicos de legitmidade, de credibilidade institucional, indispensáveis ao bom funcionamento do Direito e da política da complexa sociedade moderna (A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org.). Jurisdição constitucional e os direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 146-147).

19 Deve-se esclarecer que a soberania popular, interpretada de maneira intersubjetivista, somente se abriga no processo democrático e na implementação jurídica de seus pressupostos comunicacionais caso vise conferir validação a si mesma enquanto poder gerado por via comunicativa, sendo que tal poder deriva das interações entre a formação da vontade institucionalizada juridicamente e as opiniões públicas culturalmente mobilizadas (HABERMAS, Jurguen. Três modelos normativos de democracia. In: ______ A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002, p. 283).

20 ROSENFELD, Michael. A identidade do sujeito constitucional. Tradução de Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte:

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que, precisamente em razão de sua incompletude, a Constituição deve permanecer aberta a essas múltiplas interpretações, por mais conflitantes e igualmente defensáveis que possam parecer na maioria das vezes.

Conforme já exposto, a Constituição, com seus direitos fundamentais e princípios, possibilita a formação de uma comunidade na qual as pessoas se reconheçam como iguais em suas diferenças e livres no respeito que devotam a si próprias como titulares dessas diferenças, de modo a tornar possível a igualdade na diversidade dos membros de tal comunidade. Justamente nesse ponto, como sustenta Menelick de Carvalho Netto, é que reside a grande e complicada questão de como lidar com a aplicação dessas garantias,21 especialmente em um contexto plural e multicultural.22

Analisando as possibilidades e desafios quanto à construção de uma cultura ético-política pluralista, Habermas irá resgatar o conceito de patriotismo constitucional, cunhado originalmente por Dolf Sternberger, para possibilitar a existência de uma cultura política pluralista fundada no marco constitucional de uma cidadania ativa, a qual transcende uma determinada tradição cultural particular23 e refere-se à titularidade de direitos fundamentais de participação política, jurídico-constitucionalmente delineados, garantidores de uma autonomia jurídica pública.24 Em um contexto de pluralismo e multiculturalismo, como destaca Gisele Cittadino, o consenso entre os particulares não mais pode ser concebido como uma rede de solidariedade que se sustenta em algum tipo de vinculação ética, baseado em valores compartilhados, sendo necessário se recorrer ao exercício radicalmente democrático da cidadania que tem a Constituição como sua única base.25

Habermas, em sua proposta de patriotismo constitucional,26 concebe a cultura política pluralista como algo decorrente de um permanente processo de aprendizado social, sujeito a acertos e erros, sendo, contudo, capaz de corrigir a si mesmo ao passo que se assume o projeto constitucional-democrático moderno como algo aberto e inclusivo. Conforme destaca Menelick de Carvalho Netto, a Constituição e os direitos fundamentais devem ser tidos como um processo permanente e, portanto, mutável, de afirmação da cidadania, no qual se verifica uma tensão extremamente rica e complexa entre a inclusão e exclusão operada pela definição dos direitos

Mandamentos, 2003, p. 18.

21 A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org.). Jurisdição constitucional e os direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 160.

22 Para uma análise dos conflitos entre direitos fundamentais e multiculturalidade, ver: DENNINGER, Erhard. Derecho y procedimiento jurídico como engranaje em uma sociedad multicultural. In: DENNINGER, Erhard; GRIMM, Dieter. Derecho constitucional para la sociedad multicultural. Tradução de Ignacio Gutiérrez. Madrid: Trotta, 2007, p. 27-50; GRIMM, Dieter. Multicultulidad y derechos fundamentales. In: DENNINGER, Erhard; GRIMM, Dieter. Derecho constitucional para la sociedad multicultural. Tradução de Ignacio Gutiérrez. Madrid: Trotta, 2007, p. 51-69.

23 Para uma análise da evolução do conceito de patriotismo, bem como para a discussão do universalismo dos direitos fundamentais, conferir: KOSELLECK, Reinhart. Patriottismo. In: ________. Il vocabolario della modernittà. Tradução de Carlo Sandrelli. Bologna: Il Mulino, 2009, p. 111-132.

24 OLIVEIRA, Marcelo Cattoni de. Poder constituinte e patriotismo constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006, p. 67-68.

25 CITTADINO, Gisele. Patriotismo constitucional, cultura e história. Revista Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, n. 31. jul./dez. 2007, p. 60.

26 Ciudadanía e identidad nacional. In: HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Sobre el derecho y el estado democrático derecho em términos de teoría del discurso. 3. ed. Tradução de Manuel Jimenez Redondo. Madrid: Trotta, 2001, p. 619-643.

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fundamentais,27 no sentido de que, ao se dar visibilidade à exclusão, permite-se a organização e a luta pela conquista de concepções cada vez mais complexas e articuladas de afirmação constitucional da igualdade e da liberdade de todos.28

Valendo-se das explanações feitas por Cristiano Paixão e Leonardo Barbosa,29 a partir das lições de Reinahrt Koeselleck, a perspectiva apresentada pelo patriotismo constitucional é proporcionada no momento em que se assume a história não como uma descrição dos fatos ocorridos no passado (Historie), mas como uma construção, que ocorre no presente, com uma relação de tensão com o passado, que permite rupturas, transformações, superações e mesmo a negação do passado (Geschichte), ou seja, a relação com a tradição é repensada e não simplesmente descrita objetivamente (crônica).

As desmedidas propostas de revisão e flexibilização da Constituição acabam por inviabilizar a possibilidade de a identidade constitucional ser reinterpretada e reconstruída constantemente,30 uma vez que, sob os postulados de uma “democracia possível”, com a mitigação da Constituição, destacando-se, inclusive, a flexibilização das garantias constitucionais, o governo acaba por ser exercido por uma minoria, ou seja, por uma elite governante, formada conforme os resultados do sufrágio e voltada para a consecução de um interesse público (bem comum)31 definido por uma determinada administração.

Analisando o discurso inerente a tais propostas de flexibilização da Constituição, especialmente quanto ao seu caráter formal, verifica-se a existência de um discurso autoritário, carente de qualquer justificativa democrática, que, aliás, subverte a própria ideia de democracia, acabando por afirmar, por vias transversas, que só um governo autoritário e forte poderia solucionar os problemas institucionais verificados,32 sendo que a Constituição passa a ser tida como um obstáculo que deve ser removido para se proporcionar um nível de governabilidade33 associado a

27 Os direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que promovem a inclusão social, igualmente produzem determinadas exclusões, uma vez que toda afirmação de certo direito fundamental corresponde ao fechamento do círculo daqueles titulados a esse direito.

28 NETTO, Menelick de Carvalho. A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org.). Jurisdição constitucional e os direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 145.

29 PAIXÃO, Cristiano; BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. Cidadania, democracia e constituição: o processo de convocação da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. In: PEREIRA, Flávio Henrique Unes; DIAS, Maria Tereza Fonseca (Org.). Cidadania e inclusão social: estudos em homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 128.

30 Michel Rosenfeld esclarece que a identidade constitucional surge como algo complexo, fragmentado e incompleto, de modo que, em um contexto de uma living constitution, a identidade constitucional deve ser tida como um processo dinâmico sempre aberto à elaboração e revisão. A matéria constitucional permanecerá incompleta e sempre suscetível de maior definição e precisão (A identidade do sujeito constitucional. Tradução de Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 23).

31 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia possível. In: ______. A democracia possível. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 29.

32 NETTO, Menelick de Carvalho. A urgente revisão da teoria do poder constituinte: da impossibilidade da democracia do possível. In: OLIVEIRA, Marcelo Cattoni de. Poder constituinte e patriotismo constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006, p. 22.

33 Constata-se que os defensores de tal posicionamento acabam por confundir, inevitavelmente, os conceitos de capacidade governativa e governabilidade democrática. Como esclarecido por Marcus Faro de Castro, a capacidade governativa designa a eficiência técnica das ações do Estado, eficiência esta que se refere sempre a relações particulares entre meios e fins, apreciadas à luz de critérios de utilidade econômica ou de conveniência administrativa. Por sua vez, governabilidade democrática descreve a ação estatal a que se agregam, além das expectativas dos agentes econômicos maximizadores de utilidade, as condições de formação e preservação autônomas de valores sociais não econômicos (Governabilidade democrática, sociedade e política econômica. In: TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; CASTRO, Marcus Faro de; VIOLA, Eduardo (Orgs.). A sociedade democrática

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uma democracia atrelada às contingências constatadas na realidade, ou seja, uma “democracia possível”, vez que a participação no processo político somente deveria ser deferida àqueles que, por seu amadurecimento psíquico e por seu desenvolvimento cultural, possam ter consciência da responsabilidade de seus atos políticos, sendo desarrazoado deferir a participação política a grupos cujo nível de civilização não lhes permita ter a referida consciência e participação.34

Tais práticas autoritárias acabam por bloquear o desenvolvimento das possibilidades de ação democrática franqueadas pela Constituição,35 mascarando, em verdade, os problemas detectados no seio da sociedade, impedindo a discussão pública das questões vertentes, inviabilizando, ademais, o objetivo que fundamentaria sua imposição, qual seja, o aprimoramento das instituições e de seus arranjos vigentes.

Nesse sentido, a Constituição Democrática deve ser defendida como centro de mobilização e de integração política de uma sociedade democrática, no sentido do desenvolvimento de um patriotismo constitucional.36 O patriotismo constitucional, dessa forma, ao ser compreendido como um processo aberto e contínuo, representa uma solução diversa às imprudentes medidas de revisão e flexibilização constitucional, porque possibilita a construção de uma identidade constitucional, destaque-se, aberta, inclusiva e pluralista, mediante um processo devidamente democrático construído por formas de vidas e identidades ético-culturais diversas e divergentes que convivem entre si, desde que, conforme destacado por Marcelo Cattoni, assumam uma postura não fundamentalista de respeito recíproco, umas com as outras.37

Como bem destacado por Habermas, a Constituição no Estado Democrático de Direito tem uma abertura para o futuro, de modo que, uma Constituição Democrática, não só quanto ao seu conteúdo, mas igualmente de acordo com suas fontes de legitimação, é um projeto no qual todas as gerações posteriores possuem a tarefa de atualizar a infindável substância normativa do sistema de direitos estatuído pela carta constitucional.38 É necessário que se compreenda esse processo dinâmico e performativo da Constituição, no qual a legislação vigente realiza e efetiva o sistema de direitos, interpretando-os e adaptando-os às circunstâncias atuais, processo

no final do século. Brasília: Paralelo, 1997, p. 56).

34 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Democracia e direitos do homem. Arquivos do Ministério da Justiça. Rio de Janeiro, v. 28, n. 113, p. 57-58, mar. 1970.

35 Conforme Menelick de Carvalho Netto, a “democracia possível’, postulada por uma elite burocrática-dirigente, a qual, na busca de condições materiais para o exercício da liberdade e da igualdade de todos, não é nem democrática, muito menos constitucional. Não é democrática, pois, sob o argumento da governabilidade, promove a eliminação de seus opositores, mediante a privatização do espaço público deliberativo, vez que o povo, por não possuir um nível adequado de instrução para participação dos processos políticos, seria tutelado e protegido por essa elite. Igualmente, não seria constitucional, porquanto, sob o argumento de que o exercício consciente da cidadania requereria a consecução de uma igualdade material mínima para todos por meio da prestação de serviços estatais céleres e eficientes, seriam sacrificadas as conquistas formais centrais do constitucionalismo (A urgente revisão da teoria do poder constituinte: da impossibilidade da democracia do possível. In: OLIVEIRA, Marcelo Cattoni de. Poder constituinte e patriotismo constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006, p. 20).

36 NETTO, Menelick de Carvalho; OLIVEIRA, Marcelo Cattoni de; LIMA, Martonio Barreto; STRECK, Lenio Luiz. Revisão é golpe! Por que ser contra a revisão constitucional. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8093>. Acesso em: 18 set. 2010.

37 OLIVEIRA, Marcelo Cattoni de. Poder constituinte e patriotismo constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006, p. 69.

38 HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito: uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? In: ______. A era das transições. Tradução de Flávio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 165.

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este não imune às inevitáveis contingências e retrocessos, porém que se caracteriza como uma aprendizagem que corrige a si mesmo.

Referências

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Santiago R. Carrillo

Advogado. Professor de Direito Administrativo em Buenos Aires e

Secretário do Juízo Nacional de Primeira Instância no Contencioso

Administrativo Federal da Argentina.

Resumo: El decreto 1.023/01 es un reglamento dictado por el Poder Ejecutivo Nacional en ejercicio de competencias legislativas delegadas por el Congreso de la Nación, en los términos del procedimiento previsto por el art. 76 de la Constitución Nacional. Estatuye el Régimen de Contrataciones de la Administración Pública Nacional. El art. 30 desse decreto delegado es una norma abierta, de reenvío. Habrá que recurrir a las disposiciones del decreto reglamentario 436/00 y a los pliegos que rijan cada procedimiento de selección para conocer el régimen de impugnación de los actos administrativos dictados durante su sustanciación. En efecto, la norma delega en la reglamentación la determinación de tres puntos de importancia: a) Cuáles actuaciones son susceptibles de ser observadas o impugnadas por los oferentes; b) cuáles son los requisitos de procedencia formal y qué trámite se les conferirá a tales planteos; y c) qué efectos tendrá su interposición con relación a la continuidad del procedimiento. Sin perjuicio de ello, cabe adelantar que el decreto 1.023/01 avanza un paso y establece una sanción para aquellos casos en que el oferente no cumpla con las disposiciones reglamentarias en materia de impugnaciones: su efecto no suspensivo. De esta disposición, a contrario sensu, podría extraerse la consagración del efecto suspensivo de las impugnaciones deducidas regularmente. Más allá de la casuística que plantea esta delegación, creo que podemos trazar algunas líneas rectoras que servirán como guía interpretativa al momento de la aplicación del régimen de impugnación previsto para el procedimiento de selección; aunque dada la inseguridad jurídica que reina en esta materia –que no parece ser casual – cada punto del análisis plantea más dudas que certezas.

Palabras-llave: Actos administrativos. Contratista. Contrato administrativo. Impugnación judicial. Actividad administrativa.

Resumo: O decreto 1.023/01 é um regulamento editado pelo Poder Executivo Nacional em exercício de competências legislativas delegadas pelo Congresso da Nação, nos termos do procedimento previsto pelo art. 76 da Constituição Nacional. Estatui o regime de contratações da Administração Pública nacional. O art. 30 desse decreto delegado é uma norma aberta de encaminhamento. Haverá que recorrer às disposições do decreto regulamentar 436/00 e às especificações que rejam cada procedimento de seleção para conhecer o regime de impugnação dos atos administrativos editados durante sua vigência. De fato, a norma delega na regulamentação a determinação de três pontos relevantes: a) quais atuações são suscetíveis de ser observadas ou impugnadas pelos licitantes; b) quais são os requisitos procedimentais formais e que tramitação será dada a tais fatos; e c) que efeitos terão sua interposição com relação à

La impugnación de actos administrativos en el procedimiento de selección del contratista en la República Argentina

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continuidade do procedimento. Sem prejuízo disso, cabe adiantar que o decreto 1.023/01 avança um passo e estabelece uma sanção para aqueles casos em que o ofertante não cumpra com as disposições regulamentares em matéria de impugnações: seu efeito não suspensivo. Desta disposição, a contrario sensu, poderia extrair-se a consagração do efeito suspensivo das impugnações deduzidas regularmente. Mas além da casuística que norteia esta delegação, pode-se traçar algumas linhas reitoras que servirão como guia interpretativa no momento da aplicação do regime de impugnação previsto para o procedimento de seleção; embora em razão da insegurança jurídica que reina nesta matéria – que não parecer ser casual – cada ponto de análise levanta mais dúvidas que certezas.

Palavras-chave: Atos administrativos. Contratante. Contrato administrativo. Impugnação judicial. Atividade administrativa.

1 Delimitación del escenario

El art. 30 del decreto delegado 1023/011 es una norma abierta, de reenvío. Habrá que recurrir a las disposiciones del decreto reglamentario 436/00 y a los pliegos que rijan cada procedimiento de selección2 para conocer el régimen de impugnación de los actos administrativos dictados durante su sustanciación.3 En efecto, la norma delega en la reglamentación la determinación de tres puntos de importancia: a) Cuáles actuaciones son susceptibles de ser observadas o impugnadas por los oferentes; b) cuáles son los requisitos de procedencia formal y qué trámite se les conferirá a tales planteos y c) qué efectos tendrá su interposición con relación a la continuidad del procedimiento. Sin perjuicio de ello, cabe adelantar que el decreto 1023/01 avanza un paso y establece una sanción para aquellos casos en que el oferente no cumpla con las disposiciones reglamentarias en materia de impugnaciones: Su efecto no suspensivo. De esta disposición, a contrario sensu, podría extraerse la consagración del efecto suspensivo de las impugnaciones deducidas regularmente.4

Más allá de la casuística que plantea esta delegación, creo que podemos trazar algunas líneas rectoras que servirán como guía interpretativa al momento de la aplicación del régimen de impugnación previsto para el procedimiento de selección; aunque dada la inseguridad jurídica que reina en esta materia — que no parece ser casual —5 cada punto del análisis plantea más dudas que certezas.

Además, y más allá de las pretensiones normativas que rodean la selección de los contratistas del Estado, lo cierto es que los números de la propia Oficina Nacional de Contrataciones dan por tierra con el principio general consagrado en el art. 24 del decreto 1023/01 y demuestran, con crudeza incontestable, que la licitación pública

1 En decreto 1023/01 es un reglamento dictado por el Poder Ejecutivo Nacional en ejercicio de competencias legislativas delegadas por el Congreso de la Nación, en los términos del procedimiento previsto por el art. 76 de la Constitución Nacional. Estatuye el Régimen de Contrataciones de la Administración Pública Nacional. Su art. 30 dispone: “Observaciones e Impugnaciones. La reglamentación deberá prever cuáles actuaciones podrán ser susceptibles de observaciones o impugnaciones, el trámite que se dará a ellas y los requisitos para su procedencia formal. Toda observación, impugnación, reclamo o presentación similar que se efectúe fuera de lo previsto en la reglamentación no tendrá efectos suspensivos y se tramitará de acuerdo a lo que determine dicha reglamentación”.

Todas las normas citadas en el presente trabajo pueden encontrarse a texto completo en www.infoleg.gov.ar web oficial del Ministerio de Economía y Finanzas Públicas de la Nación.

2 Por ejemplo, la Resolución 834/00 del Ministerio de Economía que aprueba el Pliego Único de Bases y Condiciones Generales para la contratación de bienes y servicios del Estado nacional.

3 Empero, el hecho de que los actos administrativos dictados durante el procedimiento de selección tengan un régimen impugnatorio particular, que justifica su tratamiento autónomo, no enerva que se les aplique el mismo régimen de fondo –en lo que se refiere a sus nulidades– que los demás actos administrativos; en igual sentido, REJTMAN FARAH, Mario, Impugnación judicial de la actividad administrativa, Buenos Aires, La Ley, 2000, p. 131.

4 Ampliar infra, punto VI.

5 En realidad, como lo señala MAIRAL, cuando el mismo autor del derecho y garante de su aplicación lo ignora, el problema supera la mera inseguridad jurídica para desembocar en la ausencia de derecho. Si el Estado no reconoce el freno del derecho, el mensaje a la población es claro y dramático: Los remedios jurídicos no sirven, utilice otros. De esos otros, el principal es la corrupción, MAIRAL, Hector A., Las raíces legales de la corrupción, Cuadernos ResPublica Argentina, Buenos Aires, Ediciones Rap, 2006, punto 2.6.

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no es — si es que alguna vez lo fue — la regla general en el sistema de contrataciones del Estado argentino.6

No obstante ello y con la esperanza de brindar elementos que contribuyan a revertir estas disvaliosas situaciones de hecho, continuamos nuestra afanosa labor.

2 Posición jurídica del oferente

El oferente tiene derecho a impugnar todo acto, o conducta de la administración, susceptible de condicionar la adjudicación. Es decir, es impugnable toda actuación que sea susceptible de afectar su situación jurídica en el procedimiento de selección.7

Partimos de la base de concebir a la selección del contratista como un procedimiento reglado que se compone de un complejo de actuaciones heterogéneas, funcionalmente vinculadas entre sí,8 y que tiende — en un marco de igualdad y concurrencia — a lograr la emisión de un juicio de conocimiento, en tanto se trata de una declaración de conveniencia.9 Ello ocurre aún en aquellos casos en que la concurrencia se encuentra limitada, como sucede en las licitaciones privadas y en las contrataciones directas.10 En este procedimiento –voluntario, por cierto– entran en juego intereses públicos y privados que, aunque no presenten un conflicto actual, durante su desarrollo pueden adoptar posicionamientos antagónicos. Estos conflictos serán resueltos por la administración, en ejercicio de sus potestades como poder administrador,11 en el marco de una actividad que no escapa a los principios constitucionales del debido proceso adjetivo, el control judicial suficiente y la tutela judicial efectiva, que incluye el acceso a la justicia.

Se puede afirmar, entonces, que las relaciones entre la administración y los participantes y de éstos entre sí, son de índole procesal, siendo los oferentes titulares de derechos subjetivos procesales, a través de cuyo ejercicio pueden exigir a la administración el cumplimiento de sus deberes, se trate de actos o de abstenciones.12 Estos deberes impuestos normativamente a la administración tienden, principalmente, a asegurar la concurrencia y la igualdad de trato.13 En este contexto, el oferente tiene derecho a impugnar todas las actuaciones susceptibles de afectar los derechos procesales que adquiere como participante en la licitación,14 que tienen como sujeto pasivo a la administración y, por objeto, el correcto desenvolvimiento 6 Conforme surge del profundo estudio realizado Agustín García Sanz, las contrataciones directas representan el 71,5% del total de los procedimientos

de contrataciones registrados por la ONC. Si a ello sumamos la licitación privada (17,89%) y el concurso privado (0,16%), vemos que el 89,55% del total de los procedimientos de selección del contratista transitan por vías directas o privadas. Pasando en limpio: Sólo el 10,4% de los procedimientos que dan vida al sistema de compras y contrataciones del Estado se concretan a través de una licitación pública. Ahora bien, si la cuestión se aprecia en términos económicos, la solución no varía sustancialmente dado que un 47,58% de los pesos gastados se canalizan por procedimientos distintos de la licitación pública y el concurso público. Los conductos para desatender la regla prevista en el art. 24 del decreto 1023/01 son variados y giran principalmente en torno a: El desdoblamiento de las licitaciones para que el compromiso preventivo de presupuesto esté por debajo del tope; el ajuste de precios por debajo de la realidad de mercado parar lograr encajar la compra en la modalidad de contratación directa; o bien, la aplicación, más allá de lo debido, de las excepciones que permiten realizar contrataciones directas propiamente dichas y, de entre ellas, la más usada, es la contratación directa por razones de urgencia. Ampliar en GARCÍA SANZ, Agustín A. M., “Licitación pública v. contratación directa: ¿La batalla perdida?,” ResPublica Argentina, Ediciones Rap, nro. 2006-3, pp. 83-4 y 90. También puede ser consultado en www.respublicaargentina.com/serie_estudios.htm.

7 FIORINI, Bartolomé A. / MATA, Ismael, Licitación pública. Selección del contratista estatal, Buenos Aires, Abeledo – Perrot, 1972, p. 176.

8 SORIA, Daniel Fernando, “Los actos administrativos de trámite equiparables a definitivos y su impugnabilidad judicial,” LL, 1990-C, 945, especialmente, punto III.

9 MATA, Ismael, “La selección del contratista estatal. Reflexiones luego de las reformas del régimen general,” en AA.VV., Derecho Procesal Administrativo. Homenaje a Jesús González Pérez, t. 2, Buenos Aires, Hammurabi, 2004, 1236.

10 Aún antes de la vigencia del actual Régimen de contrataciones, la PTN había dictaminado que “Los principios que informan el procedimiento licitatorio no le son exclusivos sino que, por extensión interpretativa o analógica se aplican también a los demás sistemas de selección,” Dictámenes, 199-119. Estas características también se presentan en aquellos contratos cuyo objeto se encuentre regido por el derecho privado, LUQUI, Roberto E., Revisión judicial de la actividad administrativa, t. 2, Buenos Aires, 2005, Astrea, p. 43.

11 MATA, “La selección del contratista estatal...,” op. cit., p. 1238.

12 MATA, “La selección del contratista estatal...,” op. cit., p. 1238.

13 Conforme ha dictaminado reiteradamente la PTN, el procedimiento de la licitación pública está imbuido de los caracteres de publicidad, competencia e igualdad, Dictamenes, 163-477; 167-346; 222-71, entre otros.

14 Luqui afirma que se pueden impugnar judicialmente los actos administrativos dictados durante el procedimiento previo a la celebración del contrato, pues existe un derecho subjetivo al procedimiento, a la legalidad objetiva, puesto que no tendría sentido que la ley fijara los requisitos de validez de los actos administrativos, o los recaudos que se deben cumplir en el procedimiento de selección del contratista, si a la hora de

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de la selección.15 La administración, en su carácter de directora del procedimiento, debe garantizar la observancia de estos derechos.16

El administrado que concurre a la selección adquiere una situación jurídica compuesta de la posición de concursante y también de potencial adjudicatario, por lo que tiene derecho a participar en todo el procedimiento licitatorio para evitar errores y desviaciones.17 Es sabido que no tiene derecho a ser adjudicatario, pero sí a que la administración adjudique respetando el pliego y las normas que rigen el procedimiento de selección.18 Ello es así no sólo en interés de los oferentes, que convocados por la administración a la puja de precios realizan estudios y gastos para la confección de sus ofertas, sino también en interés de la propia administración, por lo que el cumplimiento del procedimiento reglado es obligatorio para todos, oferentes y administración.19

Desde esta perspectiva, no parece que esta cuestión se encuentre muy alejada de los principios generales que rigen en materia de procedimiento administrativo, debiéndose destacar, además, como ya lo hizo Mairal hace más de treinta años, que según surge de la exposición de motivos del dec.-ley 19.549 de Procedimientos Administrativos, en él se han detallado “los principios básicos a que deberán ajustarse los procedimientos administrativos en cuanto tiendan a asegurar a los interesados las garantías constitucionales del debido proceso.”20 En este contexto, a nuestro criterio y más allá de lo regulado en cada caso en particular por los reglamentos o los pliegos de la licitación, en este tipo especial de procedimiento rigen las reglas generales en materia de impugnación de la actividad administrativa,21 con lo cual, toda declaración administrativa que produzca efectos jurídicos inmediatos es impugnable.

Esta concepción supera la anacrónica clasificación que nuestra doctrina aceptó sin cortapisas, tendiente a diferenciar las situaciones jurídicas, según diversos criterios, en derecho subjetivo, interés legítimo e interés simple. Esta clasificación, propia de sistemas jurídicos con bases constitucionales diferentes a las nuestras, ha tenido como principal efecto excluir la posibilidad de obtener tutela judicial,22 reduciendo al oferente afectado al uso de los recursos administrativos. Con ello se ha ganado el derecho, exclusivo y excluyente, de ingresar en el arcón de los recuerdos.

Sobre el punto, MAIRAL se ha encargado de demostrar, sobradamente, que el aferramiento de nuestra doctrina administrativista a las categorías de derecho subjetivo e interés legítimo, tal como son interpretadas en sistemas constitucionales disímiles del nuestro, carece de justificación. En este sentido, destaca que nada impide a nuestros tribunales ampliar el concepto de “derecho subjetivo” a

aplicarlos no se respetasen esas normas y los agraviados carecen de acción para atacar ante la justicia los actos irregulares, luqui, Revisión judicial..., t. 2, op. cit., p. 47-8.

15 MATA, “La selección del contratista estatal...,” op. cit., p. 1238.

16 En este sentido, la PTN ha dictaminado que “La diferencia de tratamiento brindado a las tres ofertas consideradas, al permitir que sólo uno de los proponentes pudiera sanearla, compromete el procedimiento y obliga, atendiendo a la mejor diligencia y economía en el ejercicio de la actividad administradora, a encarar un proceso de regularización del trámite licitatorio para evitar cuestionamientos ulteriores sobre la base de una eventual violación del principio de igualdad particularmente por impedir una acabada valoración para la determinación de la oferta más conveniente,” Dictámenes, 198-140.

17 FIORINI / MATA, Licitación pública, op. cit., p. 175.

18 “Todo aquel que participa en una licitación adquiere el derecho, no a la adjudicación pero sí a que ésta se realice de conformidad con la ley,” PTN, Dictámenes, 160-457.

19 SAYAGUÉS LASO, Enrique, La licitación pública, Buenos Aires y Montevideo, B de f y Euros, 2005, p. 103 y nota 4. Por su parte, la PTN reiteradamente ha dictaminado que las cláusulas del pliego de condiciones constituyen normas de interés general y por lo tanto son obligatorias para todos, incluso para la propia administración, Dictámenes, 87-180; 96-180; 217-115; 230-67; 235-326, entre muchos otros.

20 MAIRAL, Héctor, Licitación Pública. Protección jurídica de los oferentes, Buenos Aires, Depalma, 1975, p. 81.

21 La idea expuesta en el texto en modo alguno obsta la necesidad de sustituir dicha norma por una ley de procedimientos que recepciones las tendencias actuales en materia de protección de los derechos de los administrados. Aunque en realidad, lamentablemente, nuestro legislador parece estar orientado en sentido contrario, así lo demuestra la modificación introducida a los arts. 30, 31 y 32 del dec.-ley 19.549 por la ley 25.344.

22 DIEZ, Manuel María, Manual de derecho administrativo, t. 1, actualizado con la colaboración de HUTCHINSON, Tomás, Buenos Aires, Plus Ultra, 1997, pp. 307-8.

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los efectos de la legitimación, para abarcar aquellos casos en que la conducta administrativa ilegítima agravia intereses privados dignos de protección en un Estado de derecho.23 24

En conclusión, el oferente es titular de derechos subjetivos de carácter procesal que lo habilitan para solicitar la tutela administrativa o judicial ante su vulneración por la administración, ya sea por aplicación de los procedimientos especiales, en aquellos casos en que están previstos en el Régimen de contrataciones, o bien por la aplicación del sistema general del dec.-ley 19.549 y su reglamento.

3 Estructura del procedimiento de selección y ligación de los actos

Tratándose de un procedimiento, caracterizado por presentar un complejo de actos interrelacionados, no se requiere un gran esfuerzo argumental para concluir que sus actos se encuentran vinculados unos con otros, a modo de antecedentes y consecuentes. Es decir, todos los actos dictados durante el procedimiento de selección confluyen en la adjudicación o en el acto que perfecciona el contrato.25 Algunos tendrán una mayor incidencia que otros pero, en definitiva, todo el procedimiento se haya encausado en esa dirección. Lo trascendente, a los efectos de evaluar la validez del procedimiento y de sus actos, es la entidad del eventual vicio que puede arrastrarse y la forma en que repercute en el acto de adjudicación o de perfeccionamiento. En este sentido, puede haber nulidades relativas que podrán ser saneadas, o cuyo impacto no afecte la adjudicación, y habrá otras que resulten absolutas y por tanto generan la invalidez del acto de adjudicación, o de todo el procedimiento.26 Ello dependerá, según los casos, de su entidad y trascendencia con relación al procedimiento.27

Hasta aquí no parece haber mayores inconvenientes, pero luego de que el contrato se encuentre perfeccionado, la cuestión se complica. En efecto, pasado ese punto, corresponde dilucidar cuál es la relación que une al contrato con los actos administrativos dictados durante la selección, su ejecución o resolución. Se ha postulado que se incorporan al contrato, o que son separables y autónomos de éste, o bien, que presentan una relación de coligación. Esta cuestión tuvo una gran repercusión en nuestro derecho, generada, principalmente, por ciertos vaivenes jurisprudenciales.

Las primeras posiciones, erigidas sobre sendas teorías francesas, eran las siguientes: En un extremo, la teoría del acto separable para la cual si cada acto dictado durante el procedimiento de selección no es impugnado en forma autónoma al momento de su dictado, se pierde el derecho de hacerlo en el 23 MAIRAL, Héctor, Control judicial de la administración pública, vol. I, Buenos Aires, Depalma, 1984, pp. 194-5.

24 Además, debe tenerse en cuenta que, en realidad, dicha discusión nunca debió plantearse entre nosotros puesto que la ley 27, reglamentaria del art. 116 de la CN, establece expresamente en su art. 1º que: “La Justicia Nacional procederá siempre aplicando la Constitución y las leyes Nacionales, a la decisión de las causas en que se versen intereses, actos o derechos de Ministros o agentes públicos, de simples individuos, de Provincia o de la Nación” (el destacado es agregado), con lo cual, al menos desde 1862, la diferenciación entre “derecho” e “interés” en nuestro sistema jurídico procesal carece por completo de relevancia. La explicación de cómo llegamos a la situación actual se puede encontrar en LINARES, Juan Francisco, “Lo contencioso administrativo en la justicia nacional federal,” LL, 94: 919 y una forma de salir de ella en JEANNERET DE PÉREZ CORTÉS, María, “La legitimación del afectado, del Defensor del Pueblo y de las asociaciones. La reforma constitucional de 1994 y la jurisprudencia,” LL, 2003-B, 1333.

25 REJTMAN FARAH, Impugnación judicial..., op. cit., p. 135.

26 Como expusimos al principio, en todo lo relativo al régimen de fondo de estos actos administrativos, se aplica el dec.-ley 19.549; en cuanto a las nulidades, arts. 14 y 15. La PTN ha dictaminado que “La adjudicación que no respeta estrictamente lo establecido en las cláusulas contractuales está viciada de ilegitimidad (conf. Dict. 217-115). Los vicios manifiestos que no requieren de una investigación de hecho para detectarlos provocan una nulidad igualmente manifiesta, categoría ésta que cumple una función esencial para el mantenimiento del principio de legalidad y comporta una eficaz protección contra la ejecución de aquellos actos administrativos que portan vicios notorios, los que carecen de presunción de legitimidad,” Dictámenes, 235-326.

27 La doctrina sobre el punto es abundante, pero sólo a título de ejemplo referiré que Mó expone que el incumplimiento de los requisitos exigidos para el acto licitatorio constituye causa de nulidad de la licitación, es decir que ella carecerá de toda eficacia jurídica, no pudiendo convalidarse; la invalidez se produce ex tunc, es decir, desde el origen, como si nada hubiera existido. En cambio, la licitación será sólo anulable en el caso en que el vicio pueda purgarse, como sería la no inscripción, oportuna, del oferente en el registro correspondiente. En cuanto a los supuestos de nulidades absolutas enuncia: Violaciones a la publicidad exigida, falta de igualdad en el tratamiento de los concurrentes, alteración de los precios y, en general, la inobservancia de cualquier otro requisito esencial del acto licitatorio, MÓ, Fernando F., Régimen legal de las obras públicas, Buenos Aires, 1977, Desalma, 2ª ed., p. 163.

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futuro.28 En una posición diametralmente opuesta, la doctrina de la incorporación, según la cual, no tratándose los actos dictados durante el procedimiento de selección de actos definitivos que causen estado o que se asemejen a éstos, sólo podrán ser impugnados al momento del acto final de adjudicación o de perfeccionamiento del contrato.29

Como lógica reacción a estas posiciones restrictivas de la posibilidad de impugnación,30 se elaboró una tercera posición más amplia, aunque también sobre la base de una concepción foránea, en este caso proveniente de la doctrina italiana. En efecto, se sostuvo que existen dos opciones para el administrado: Impugnar cada acto individualmente y por separado si se cumple con las condiciones de admisibilidad para ello, o bien, recurrir el acto definitivo al que se incorporan los vicios de los actos antecedentes, sin que ello implique consentir las anteriores manifestaciones de voluntad. Esta parece ser la principal virtud de la teoría de la coligación, que se asienta sobre la idea de la unidad estructural del proceso contractual que se compone de dos fases, una de selección y otra de ejecución.31

En efecto, el corolario más empleado de la teoría de los actos coligados se ha vinculado entre nosotros a la doble impugnabilidad de los actos encuadrados en dicho régimen. Es decir, la posibilidad de impugnar tanto al acto antecedente como al acto consecuente con lo cual, desde el punto de vista práctico se opera un beneficioso alongamiento del plazo de impugnación bajo circunstancias determinadas.32

Ahora bien, en lo personal creo que existen ciertas inconsistencias en la interpretación que ha efectuado nuestra doctrina y jurisprudencia de la teoría francesa de la separabilidad y ello ocurrió a un precio altísimo, en tanto su aplicación ha tenido como principal efecto restringir el control judicial de la actividad administrativa. Es, creo, un ejemplo más del grave perjuicio que puede causar la importación una regla extranjera, sin previamente analizar su compatibilidad con el sistema jurídico al cual se la traslada.33

28 MUñOZ, Guillermo A., “Impugnación judicial de los contratos administrativos” en MUñOZ, GUILLERMO A. / GRECCO, Carlos M., Fragmentos y testimonios del derecho administrativo, Buenos Aires, Ad Hoc, 1999, p 348. Este autor afirma que desde el dictado del dec.-ley 19.549 se impone la aplicación de las reglas propias del “contencioso administrativo” a los contratos, destacando que ello ya estaba reconocido en el Código de Varela para la provincia de Buenos Aires, en el art. 3º. Adelanto que en lo personal, dado el reconocido origen foráneo de las fuentes en las que abrevó dicho ordenamiento, me inclino por compartir las ideas expuestas por Bosch en el sentido que la “buena vía” en esta materia debe tener como punto de partida la Constitución nacional –más que las construcciones propias de otros sistemas jurídicos– y de allí deben arrancar todos los estudios sobre el tema del control judicial de la actividad administrativa que se realicen en la Argentina, BOSCH, Jorge Tristán, “Lo contenciosoadministrativo y la Constitución Nacional,” LL, 81-842.

29 BIANCHI, Alberto B., “¿Es aplicable la doctrina del caso ‘Petracca’ a los procedimientos licitatorios?” en AA.VV., Proceso administrativo y constitucional, Buenos Aires, 1995, Ciencias de la Administración, p. 153 y ss. Afirma que entre la licitación pública y el proceso jurisdiccional existe un paralelo notable desde que se trata de un camino procesal compuesto de una serie de actos, algunos administrativos y otros no, enderezados todos ellos a la producción de una decisión final: La adjudicación (sentencia). En este contexto, agrega que la única expresión de voluntad estatal definitiva es la adjudicación. Por ende, si bien todos los actos administrativos dictados durante la selección son impugnables por medio de los recursos administrativos, su revisión judicial sólo es procedente cuando se trata de la adjudicación o de un acto que excluye al participante del procedimiento, puesto que lo contrario implicaría una intromisión del Poder Judicial en los asuntos administrativos violatoria de la división de poderes.

30 REJTMAN FARAH, Impugnación judicial, op cit., p. 133.

31 BARRA, Rodolfo C., Los actos administrativos contractuales. Teoría del acto coligado, Buenos Aires, Ábaco, 1989, p. 149-150. El autor expone: “Considerando la relación contractual como estructurada sobre una cadena de actos antecedentes y consecuentes coligados, y de acuerdo con lo explicado anteriormente, debe recordarse que cada uno de los actos antecedentes pueden producir, en sí mismos, agravios al contratista, por lo que nada impide que este los impugne inmediatamente después de ser notificado de ellos, incluso llegando a la impugnación judicial. Es la voluntad del administrado, en definitiva, provocada por una actuación de la Administración que aquel considera lesiva de su derecho [...] Pero también, como el agravio que genera el acto antecedente puede ser la causa del agravio que generará el acto consecuente, nada impide que el administrado aguarde hasta ese momento (el de la emisión del acto consecuente) para iniciar el procedimiento de impugnación, en especial, teniendo en cuenta que quizás, por diversas razones, en el acto consecuente final, o en los actos anteriores, tal agravio pudo ser solucionado, o también pudo el administrado, a través de la sucesión de actos, haber verificado la corrección de la decisión administrativa, o viceversa. Por supuesto que la posibilidad de impugnar aquel agravio lo es sólo en la medida en que el acto consecuente se encuentre perjudicado por el vicio que afectó al antecedente. No se podría impugnar, con ocasión del acto consecuente, al antecedente (por más razones que tenga el administrado) si el consecuente no guarda ninguna relación con aquel vicio, o bien dicho vicio no es determinante.”

32 ROSSI, Alejandro, “Extensión del alcance de la doctrina de los actos coligados en el ámbito del procedimiento contractual administrativo,” LL, 1996-C, 6. El autor agrega que se trata de un dispositivo limitador de la cosa juzgada administrativa en el contexto de un procedimiento contractual que se encuentra sujeto a la verificación de, al menos, dos condiciones: a) que se trate de actos administrativos, b) que el acto antecedente tenga al menos “vocación” de causar efectos jurídicos en el acto consecuente.

33 MAIRAL, Héctor A., “Algunas reflexiones sobre la utilización del derecho extranjero en el derecho público argentino” en AA.VV., Estudios de Derecho Administrativo II, Buenos Aires, Ciencias de la Administración, 1992, cuya lectura resulta imprescindible para comprender la realidad de nuestro

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En efecto, en Francia, el surgimiento de la teoría de los actos separables en la jurisprudencia del Consejo de Estado tuvo por finalidad otorgar una vía de impugnación a los participantes en el procedimiento de selección, a través del recurso por exceso de poder, que permitiera invocar la afectación un mero interés –quedando el derecho sujetivo reservado para el contratista– y asimismo anular el acto viciado sin que con él caiga el contrato.34 Es decir, su principal efecto fue ampliar la legitimación procesal para permitir la impugnación de los actos precontractuales y a la vez privilegiar la eficacia sobre la legalidad, en tanto el contrato continuaba siendo valido, independientemente de la nulidad de los actos que le servían de base o soporte, que pasaban a ser separables, dejándose de lado la idea del todo indivisible.35 36

Empero, en lo que al punto interesa, la Corte Suprema argentina sostiene — en posición que aquí no se discute — que los contratos administrativos son nulos cuando existen vicios graves en el procedimiento de selección (concepción propia del todo indivisible o aún de la coligación),37 pero por otro lado afirma que todos los actos administrativos, ya sean dictados durante la celebración o ejecución del contrato, deben impugnarse en forma autónoma (posición sólo compatible con la teoría de los actos separables) y con sujeción a los plazos de caducidad previstos en el art. 25 del dec.-ley 19.549.38

De esta forma, en primer término, se arriba al resultado de aplicar la teoría de la separabilidad al propio contratista y no ya al simple oferente — solución que es por demás dudosa en el propio país de origen de la teoría — 39 generando los riesgos que ella misma vaticinó en Mevopal.40 Pero además, y por efecto

derecho administrativo.

34 Hasta principios del siglo XX rigió en la jurisprudencia del Consejo de Estado francés la teoría de la incorporación, conforme la cual el contrato administrativo formaba con los actos que le servían de base o soporte un ‘todo indivisible.’ En este contexto y dado que los actos anteriores se incorporaban al contrato, una vez que se anulaba alguno de ellos el contrato debía caer. En un primer momento esta doctrina fue acompañada de una legitimación amplia permitiéndose utilizar en esta materia el recurso por exceso de poder a todo interesado, sujeto o no al vínculo contractual. Pero luego, una modificación de la jurisprudencia, decidió reservar la condición de legitimados procesales a las partes del contrato quienes difícilmente pedirían su nulidad por vicios ocurridos durante la celebración. El resultado de este cambio fue la desaparición de toda posibilidad de impugnar el contrato, o indirectamente sus actos soportes, mediante el recurso por exceso de poder, quedándose sin vía de acción jurisdiccional los interesados ajenos al vínculo contractual. Esta disvaliosa situación empujó el Consejo de Estado al abandono de la teoría del todo indivisible y trajo como consecuencia la disociación del contrato ya perfeccionado de sus actos soportes de naturaleza unilateral, MACERA, Bernard-Frank, “Pasado, presente y futuro de la teoría de los ‘actos separables’ en el derecho francés de la contratación pública,” R.D.A., nro. 32, Buenos Aires, Depalma, 1999, 276-280 y BOQUERA OLIVER, José M., La selección de contratistas, Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1963, p. 182-6.

35 Los primeros elementos de esta construcción jurisprudencial del Consejo de Estado francés aparecen, a comienzos del siglo XX, con motivo de las conclusiones contenidas en los arrêts Commune de Gorre del 11 de diciembre de 1903 y Martín del 4 de agosto de 1905, DE LAUBADèRE, Andre / VENEZIA, Jean-Claude / Gaudemet, Yves, Traité de Droit Administratif, Tome 1, 15° édition, LGDJ, París, 1999, p. 546. Sobre el último precedente LONG, WEIL y BRAIBANT comentan: El señor Martín, consejero general del departamento de Loire et Cher, ejerció un recurso contra varios actos adoptados por el consejo general de ese departamento sobre la concesión de tranvías. El prefecto del departamento consideró que la vía y el juez competentes eran los del contrato. El Consejo de Estado al admitir el recurso se pronunció implícitamente sobre un recurso contra un acto separable del contrato, LONG, Marceau / WEIL, Prosper / BRAIBANT, Guy, Les grands arrêts de la jurisprudence administrative, Paris, Sirey, 1956 p. 53.

36 Por otro lado, es menester señalar que en el derecho español, al cual también somos adeptos, la teoría de los actos separables tuvo por finalidad permitir la impugnación de los actos dictados durante el procedimiento licitatorio en los contratos privados de la administración ante el juez con competencia en lo contencioso administrativo. Sobre este sistema, GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo / FERNÁNDEZ, Tomás Ramón, Curso de derecho administrativo, t. I, Madrid, Civitas, 2000, 10ª ed., p. 692-3 y GARRIDO FALLA, Fernando, Tratado de derecho administrativo, t. II, Madrid, Tecnos, 1989, 9ª ed., p. 73-5. Esta concepción encuentra su consagración positiva en el art. 9 inc. 3º de la ley 13/1995 de Contratos de las administraciones públicas, conforme el texto refundido por el real decreto legislativo 2/00, que establéese: “El orden jurisdiccional civil será el competente para resolver las controversias que surjan entre las partes en los contratos privados. No obstante, se considerarán actos jurídicos separables los que se dicten en relación con la preparación y adjudicación del contrato y, en consecuencia, podrán ser impugnados ante el orden jurisdiccional contencioso-administrativo de acuerdo con la normativa reguladora de dicha jurisdicción.”

37 CSJN, Stamei S.R.L. c. Universidad Nacional de Buenos Aires, 1987, Fallos, 310:2278; Mas Consultores Empresas Sociedad Anónima c. Provincia de Santiago del Estero (Ministerio de Economía), 2000, Fallos, 323:1515; El Rincón de los Artistas S.R.L. c. Hospital Nacional Profesor A. Posadas y otro, 2003, Fallos, 326:3700; Ingeniería Omega Sociedad Anónima c. Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 2000, Fallos, 323:3924; entre muchos otros.

38 CSJN, Gypobras S.A. c. Estado Nacional (Ministerio de Educación y Justicia), 1995, Fallos 318: 441; Alcántara Díaz Colodrero, Pedro c. Banco de la Nación Argentina, 1996, Fallos, 319:1476; Nava, Alberto Emilio c. Estado Nacional (Secretaría de Inteligencia del Estado — SIDE), 1996, Fallos, 319:1532.

39 BOQUERA OLIVER, La selección de contratistas, op. cit., p. 186. Téngase en cuenta, además, que en el derecho francés esta diferencia de trato encuentra su fundamento en que las partes del contrato disponen de un cauce propio para impugnar todas las cuestiones vinculadas con dicha relación, el recurso de plena jurisdicción ante el juez del contrato.

40 CSJN, Mevopal SA, 1985, Fallos, 307:2216. Allí sostuvo que los actos administrativos, aun unilaterales, referentes a la celebración, ejecución o modificación de un contrato administrativo, en principio, no pueden considerarse en forma aislada, con abstracción del contrato al cual acceden en cuanto determinan los derechos u obligaciones emergentes de aquél, por lo que se rigen por idénticas pautas a las del contrato, ajenas, por ende, al marco contemplado en los artículos 23 y 24 de la ley 19.549 y al sistema de impugnación de su artículo 25. Pero lo que aquí realmente interesa es que a renglón seguido afirmó que “una interpretación contraria llevaría a que durante la relación contractual y frente a la emisión por la Administración de

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del legado contenido en el segundo punto resuelto en Petracca,41 el transcurso del referido plazo de caducidad excluye la posibilidad de exigir la reparación de daños y perjuicios.

Desde esta perspectiva, parece que la aplicación de la teoría de la separabilidad encuentra en nuestro medio, como único fundamento, posibilitar la aplicación de los plazos de caducidad establecidos en el referido art. 25, para lograr los efectos indicados. Más allá de las críticas que pueda recibir esta posición, lo cierto es que la jurisprudencia de la Corte Suprema y de la Cámara Contencioso Administrativa Federal exige la impugnación de los actos administrativos en forma autónoma y dentro de los perentorios plazos de caducidad, requisito que deberá cumplir tanto el oferente como el contratista si no desea ver frustrados sus derechos en el marco de las relaciones con la administración.42

4 Articulación del sistema de impugnación en el Régimen de contrataciones

4.1 Supuestos de impugnación

Del art. 48 del decreto 436/00 surge la posibilidad de impugnar cualquier acto dictado por la administración durante el procedimiento de selección, más allá de los supuestos expresamente previstos en su normativa o en los pliegos.43 A tales fines, allí se prevé la aplicación supletoria de las disposiciones del dec.-ley 19.549 y su decreto reglamentario. El tenor de la norma confirma la posición expuesta en los puntos anteriores en el sentido que todo acto que tenga efectos jurídicos directos y que en algún modo pueda condicionar la adjudicación es impugnable, ya sea por los procedimientos especiales previstos en el Régimen de contrataciones, en aquellos supuestos expresamente regulados, o bien por medio de la normativa general que establece el procedimiento administrativo impugnatorio.

Entre los supuestos que tienen expresa regulación en el régimen del decreto 436/00 se destaca la impugnabilidad del dictamen emitido por la Comisión de Evaluación (art. 80) en tanto constituye una

cualquier acto unilateral, el administrado tuviera que iniciar, en cada caso, un juicio contra su contraparte. Ello significaría un dispendio jurisdiccional inusitado y provocaría un resentimiento en el espíritu de colaboración que debe existir entre la Administración y quien ejecuta el contrato.”

41 CFed. CA, en pleno, Petracca e Hijos SA, 1986, LL, 1986-D, 10. El segundo punto decide, en doctrina obligatoria para los jueces del fuero, que: “No es admisible la acción de cobro de pesos o indemnización de daños sin impugnar, dentro del plazo del art. 25 de la ley 19.549, la legitimidad del acto administrativo que ha desestimado la misma pretensión o cuyo contenido excluye el pago de lo reclamado.” Esta solución fue criticada por JEANNERET DE PÉREZ CORTÉS, María, “Reflexiones sobre la admisibilidad de la acción por cobro de pesos o indemnización de daños sin impugnar, dentro del plazo del art. 25 de la ley 19.549, la legitimidad del acto administrativo que ha desestimado la misma pretensión o cuyo contenido excluye el pago de lo reclamado,” R.D.A., nro. 3, Buenos Aires, Depalma, 1990, 114-7. Sobre la relación entre Mevopal, Petracca y Gypobras, con distintas posiciones, ver TAWIL, Guido S., Administración y Justicia, t. II, Buenos Aires, 1993, Depalma, p. 193-5 y MONTI, Laura M. “La aplicación de la ley de procedimientos administrativos 19.549 en el ámbito de los contratos administrativos,” JA, 1996-IV, 801.

42 Ampliar infra, punto VII.

Sin embargo, cabe recordar que MAIRAL advierte reiteradamente acerca del error de importar reglas extranjeras sin compatibilizarlas previamente con nuestro sistema constitucional. Desde esta perspectiva, no puede dejar observarse que un autor de la talla de RIVERO reconoce que la doctrina francesa se vio obligada a adoptar el método de establecer principios generales en el derecho administrativo — más aún, el intento de estructurar toda esta rama del derecho, otorgándole carácter autónomo, sobre una sola idea basal, v. gr. la noción de servicio público o el concepto de acto administrativo — debido a “un problema práctico: delimitar las competencias administrativas y judiciales. Para guiar al litigante (y al juez mismo) en la opción que le imponía la coexistencia de los dos órdenes de jurisdicción, no bastaba multiplicar las soluciones de cada caso: era necesaria, evidentemente, una regla simple.” Era necesario, continúa, fijar “un criterio, un signo infalible que permitiera a cada quien reconocer la situación regida por reglas ‘derogatorias del derecho común’, y por lo mismo en caso de discusión contenciosa elegir el juez.” Además, este destacado jurista agrega que ello sucedió en cierto modo para justificar la continuidad de la doble jurisdicción aún cuando su razón política origina había perdido actualidad, RIVERO, Jean, “¿Existe un criterio de derecho administrativo?,” traducción de Herán Guillermo Aldana Duque, en Páginas de derecho administrativo, Bogotá, Temis y Universidad del Rosario, 2002, p. 28.

Reconociendo que dichos problemas no tienen cabida en el marco institucional que impone la Constitución argentina en los arts. 109 y 116, no queda más que otorgarle la razón a BOSCH en cuanto proponía, haciendo suyas palabras de CORTÉS, que “no despreciemos las enseñanzas de la escuela francesa, a cuya influencia tanto debe el progreso de nuestra ciencia del derecho administrativo; pero cuidémonos de ‘la manía de aplicar las instituciones francesas, como leyes reglamentarias de una Constitución formada a imitación de la de Estados Unidos, cuyos principios fundamentales son enteramente diversos y frecuentemente opuestos’ [...] No perdamos nunca de vista la Constitución nacional, fuente primera y fundamental, única sobre la cual nos está permitido elevar la fábrica del derecho administrativo argentino,” BOSCH, “Lo contenciosoadministrativo…,” LL, 81: 842.

43 La PTN ha dictaminado que “existiendo en el Pliego de Bases y Condiciones Generales normas específicas para la presentación de impugnaciones durante el trámite del procedimiento de selección, la aplicación supletoria del citado artículo 48 sólo podría estar destinada a viabilizar planteos o reclamos distintos a los que tienen mecanismos específicos previstos en el Pliego referido. En otros términos: la vía que prevé el mencionado artículo 48 no puede ser utilizada como medio para atacar actos emitidos durante el Concurso que cuentan con carriles de impugnación expresamente establecidos a ese efecto. Lo contrario implicaría vulnerar gravemente el principio de igualdad que debe regir en los concursos y una violación de las previsiones del Pliego de Bases y Condiciones Generales,” Dictámenes, 248-354.

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excepción a la norma contenida en el art. 80 del decreto reglamentario 1759/72 que veda la posibilidad de deducir recursos contra los dictámenes, en tanto trasuntan una actividad interna de la administración que no tienen efectos jurídicos frente al administrado.44 45 El sistema se complementa con lo dispuesto en el art. 82 en cuanto a que las impugnaciones contra el dictamen de evaluación de las ofertas serán resueltas en el mismo acto que disponga la adjudicación. La norma adopta una solución acertada que tiende a privilegiar la economía, sencillez y eficacia que debe gobernar el procedimiento de selección en tanto concentra adecuadamente sus actos procesales.46

Por su parte, el art. 83 que remite a las disposiciones del régimen general contenido en el dec.-ley 19.549 y su decreto reglamentario 1759/72, especialmente el Título VIII, en lo que se refiere a la impugnación del acto de adjudicación. Sobre el punto se ha destacado que la falta de reclamación contra la adjudicación provisional (dictamen de la Comisión de Evaluación) no puede tener la consecuencia de hacer perder la posibilidad de impugnar la adjudicación definitiva. La pasividad de los interesados no tiene por qué significar el consentimiento de un acto que todavía no existe, ni tampoco ser una prueba de su legalidad.47 No obstante, se debe ser cauteloso, puesto que la PTN no siempre ha aceptado este criterio amplio.48

Para el supuesto del procedimiento de selección por etapa múltiple,49 el art. 108 del decreto 436/00 establece que los oferentes podrán impugnar la precalificación y que las impugnaciones planteadas serán resueltas por la autoridad competente para aprobar la contratación, dentro del plazo que determine el pliego, el que se computará desde el vencimiento del término para impugnar el acta de precalificación.

Para asegurar el derecho a impugnar los actos dictados durante el procedimiento de selección, el art. 19 del dec. 1023/01 establece la posibilidad de tomar vista de las actuaciones en cualquier momento, aunque con ciertas limitaciones.50 No obstante ello, en este punto se debe tener presente que la norma dispone que la vista del expediente no interrumpirá los plazos, apartándose de lo establecido en la materia por el art. 76 del dec. 1759/72.

44 Ampliar infra, punto V.

45 La PTN ha dictaminado que “Las Comisiones de Preadjudicaciones constituyen un servicio administrativo técnico de asesoramiento (permanente o ad-hoc), cuya competencia técnica consultiva se traduce en la preadjudicación, que es una propuesta o asesoramiento al órgano administrativo que debe adjudicar; y que, aún cuando sea un dictamen u opinión, está sometido a requisitos de publicidad siendo susceptible de impugnación (conf. Dict. 206-364). El asesoramiento de la Comisión de Preadjudicación debe contener: a) el detalle de todos los elementos y recaudos de cada uno de los posibles candidatos a la adjudicación; b) el de las ofertas admisibles y las inadmisibles; c) la indicación de los motivos fundados que las hacen desestimables, así como cuáles son las que responden a las especificaciones del llamado, destacando en cada una, las eventuales ventajas de lo ofrecido con fijación del orden de mérito que corresponda según la evaluación realizada. La circunstancia de que la Comisión de Preadjudicaciones no haya evaluado todas las solicitudes presentadas permite concluir que la Administración actuó en forma arbitraria, en violación de los principios de igualdad, de equidad y de transparencia que deben regir en todo procedimiento de selección del co-contratante estatal; en consecuencia el acto administrativo no configura el resultado de un proceso lógico ajustado al procedimiento pertinente,” Dictámenes, 234-472.

46 En contra, FARRANDO, Ismael, “El efecto suspensivo de las impugnaciones en el Régimen de Contrataciones,” en AA.VV., Cuestiones de procedimiento administrativo, Buenos Aires, Rap, 2006, p. 177.

47 GORDILLO, Agustín, Tratado de derecho administrativo, t. 2, La defensa del usurario y del administrado, Buenos Aires, FDA, 2006, 8ª ed., pp. XII-21, donde sigue lo expuesto por BOQUERA OLIVER, La selección de contratistas, op. cit., p. 148.

48 “Todas las presentaciones destinadas a cuestionar tanto las ofertas de otras participantes como las calificaciones y análisis efectuados por los cuerpos técnicos competentes del organismo licitante formuladas con posterioridad a la preadjudicación, resultan inadmisibles en el marco del proceso concursal, por lo que no corresponde acceder a su tratamiento,” PTN, Dictámenes, 242-571.

49 He analizado este tipo especial de licitación, junto con VOCOS CONESA, JUAN MARTÍN y CORDEIRO MARIANO L., en “Licitación pública por etapa múltiple y el rumbo del sistema de concesión vial,” EDA, 2004-635. Se trata de aquellas licitaciones en las que, por el alto grado de complejidad de su objeto, se realiza en dos o más fases la evaluación y comparación de las calidades de los oferentes, los antecedentes empresariales y técnicos, la capacidad económico-financiera, las garantías, las características de la prestación y el análisis de los componentes económicos de las ofertas, mediante preselecciones sucesivas. Se encuentra establecida en el art. 26, inc. a) ap. 2º del decreto 1023/01.

50 Art. 19: “Toda persona que acredite fehacientemente algún interés, podrá en cualquier momento tomar vista de las actuaciones referidas a la contratación, con excepción de la información que se encuentre amparada bajo normas de confidencialidad, desde la iniciación de las actuaciones hasta la extinción del contrato, exceptuando la etapa de evaluación de las ofertas. La negativa infundada a dar vista de las actuaciones se considerará falta grave por parte del funcionario o agente al que corresponda otorgarla. La vista del expediente no interrumpirá los plazos.” Esta cuestión, aunque con anterioridad a la vigencia del decreto 1023/01, ha sido analizada en profundidad en CFed. CA, Sala I, Finmeccanica Spa Aerea Alenia Difesa c. Ministerio de Defensa, LL, 1999-B, 517.

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4.2 Requisitos de admisibilidad y trámite. Garantías de impugnación

Desde el punto de vista procesal –dado que se trata de un procedimiento que nace signado por la necesidad de cumplir su finalidad en un tiempo razonable — es lógico que existan plazos para impugnar, que por lo general, en el dec. 436/00, son de cinco días. Pero la concepción al respecto debe ser la inversa de la que se plasma en las normas: Amplios plazos para que el administrado impugne y breves plazos para que la administración resuelva. De esta forma se evitan demoras que sólo sirven para realizar actos de lobbing que desnaturalizan el sentido de la licitación pública.51 Lo mismo ocurre con las formalidades para la presentación de las impugnaciones, deben ser mínimas y subsanables.52 Además, en el procedimiento licitatorio no sólo tiene plena vigencia el principio del informalismo a favor del administrado, sino que tiene la concreta finalidad de apuntar uno de sus pilares fundamentales: La necesidad de preservar la concurrencia.53

En este punto adquiere importancia la concepción del procedimiento como garantizador no sólo del debido proceso adjetivo reconocido a los oferentes, sino también de la legalidad y eficacia del accionar administrativo.54 En el caso particular que aquí analizamos, se debe destacar que todo procedimiento recursivo es un medio idóneo para hacer efectivo el control o fiscalización en la administración pública,55 por este motivo, la posibilidad de instrumentación de estos procedimientos por parte de los interesados debe ser interpretada en forma amplia a fin de coadyuvar a la obtención de la solución que mejor se compadezca con los intereses en juego.56

Empero, se debe tener presente que el decreto 1105/89, reglamentario de la ley 23.696 de reforma del Estado, generalizó la práctica de exigir en los pliegos la presentación de garantías, normalmente fijadas en un porcentual del monto de la oferta, como condición para deducir impugnaciones.57 58 Se ha criticado esta exigencia sobre la base de que atenta contra el derecho de defensa, el

51 MAIRAL, Hector A., Las raíces legales de la corrupción, Cuadernos ResPublica Argentina, Buenos Aires, Ediciones Rap, 2006, punto 4.2.1., en prensa.

52 MAIRAL afirma que, en realidad, la superabundancia de recaudos formales tiende a demostrar, ante personas poco familiarizadas con los trámites licitatorios, el celo de los funcionarios intervinientes, permitiendo así diluir decisiones cuestionables en un fárrago de documentación frecuentemente innecesaria y demorando durante semanas decisiones que, de ser imparciales podrían tomarse rápidamente, pero que, al no serlas, llevan a que la demora sea utilizada con propósitos de posicionamiento político de algunos oferentes, MAIRAL, Las raíces legales de la corrupción, op. cit.

53 GORDILLO, Agustín, Tratado de derecho administrativo, t. 2, La defensa del usurario y del administrado, Buenos Aires, FDA, 2006, 8ª ed., pp. XII- 16 y ss. Allí destaca que “Hace décadas que vienen levantándose voces contrarias al excesivo formalismo en la licitación, p. ej. en cuanto hace a defectos de la oferta, respecto a los cuales es pacífico que su saneamiento no altera el principio de igualdad, del mismo modo que se admite la presentación de piezas complementarias con ulterioridad a la oferta y en general el saneamiento de vicios de forma.”

54 COMADIRA, Julio Rodolfo, Procedimientos Administrativos. Ley Nacional de Procedimientos Administrativos, Anotada y Comentada, con la colaboración de MONTI, Laura M., tomo I, Buenos Aires, La Ley, 2002, p. 63.

55 HUTCHINSON, Tomás, Ley nacional de procedimientos administrativos. Reglamento de la ley 19.549, tomo 2, Buenos Aires, Astrea, 1988, p. 258.

56 Aunque en reiteradas oportunidades la PTN ha sostenido doctrinas que implican una perjudicial concepción antagónica de los principios de concurrencia e igualdad, también ha dictaminado que “Es indispensable destacar la importancia que reviste el principio de concurrencia en el proceso licitatorio, en tanto permite a la Administración un mayor cotejo de las condiciones ofertadas. Ello así, para la interpretación de los pliegos no debe perderse de vista el criterio rector de que los procedimientos de selección del contratista del Estado han sido establecidos básicamente en beneficio del Estado mismo, en resguardo de sus conveniencias económicas, financieras y técnicas, por lo cual todo aquello que tienda a una fundada competencia entre los oferentes y a una mayor concurrencia de propuestas no debe ser desalentado por ritualismos formales e interpretaciones limitativas,” Dictámenes, 213-147.

57 Así lo recuerda COMADIRA, Julio R., La licitación pública, Buenos Aires, Depalma, 2000, p. 34. En efecto, el art. 18 establecía: “f) Existirá una garantía de impugnación, que deberá constituir quien formule impugnaciones, que le será devuelta en caso de ser acogida favorablemente su pretensión, o que perderá en la misma medida en que tal pretensión sea rechazada [...] j) Las impugnaciones a la adjudicación, que deberán ser también garantizadas en la forma prevista en este reglamento, tramitarán por expediente separado formado por las copias pertinentes, sin interrumpir la ulterior tramitación del expediente principal, excepto que se configuren las situaciones previstas por el último párrafo del artículo 12 de la Ley Nacional de Procedimientos Administrativos 19.549.”

58 Este tipo de norma suele estar redactado, por ejemplo para obras públicas, en los siguientes términos: “En todos los casos junto con el escrito que plantea la impugnación y como requisito para su consideración, deberá acompañarse una garantía, que no excederá el 1% del Presupuesto Oficial, constituida mediante certificado de depósito de dinero en efectivo, en el Banco de la Nación Argentina a favor del licitante. En los casos de etapa múltiple, deberá constituirse esta garantía en todos los supuestos de impugnación. La garantía será por tiempo indeterminado, irrevocable y se perderá de pleno derecho y sin necesidad de trámite alguno en caso que la presentación sea rechazada. En caso de que se haga lugar a la impugnación, se dispondrá la inmediata devolución de la garantía al Proponente.”

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principio de gratuidad del procedimiento administrativo59 y contradice la idea de considerar al oferente como un colaborador de la administración.60 La justificación que se otorga a este tipo de cláusulas — que resguardan la seriedad de las impugnaciones — aparece insuficiente a la luz de los principios y derechos en juego.61

Además, tal como lo señala Monti,62 existe la posibilidad de afectar el interés público, ya que la exigencia de constitución de una garantía desalienta las impugnaciones que podrían conducir a una rectificación oportuna por parte de la autoridad administrativa cuando se ha incurrido en algún error o defecto en el procedimiento de selección.

Afortunadamente, la PTN ha modificado su criterio sobre el punto63 y se ha manifestado en contra de la inclusión de este tipo de exigencia en los pliegos de la licitación.64

4.3 Supuestos de observaciones al proyecto de pliego65

El Régimen de contrataciones reserva el término “observaciones” para los supuestos de cuestionamiento

de los proyectos de pliego. Esta posibilidad implica un gran avance en lo que se refiere a la participación

pública en la etapa diseño de los pliegos a efectos de lograr una adecuada configuración de la demanda

por parte de la administración.66

En efecto, la preparación unilateral y reservada de los pliegos por la administración, sin previa publicidad

ni posibilidad de conocimiento e intervención igualitaria de los futuros posibles oferentes para acercar al

debate, en la etapa preparatoria, su mejor conocimiento de la realidad del mercado lleva a frecuentes

desconocimientos del medio hacia el cual planea lanzar su pedido de ofertas y ello, por diversos motivos,

no hace sino encarecer las ofertas.67

En este sentido, el art. 8 del decreto 1023/01 dispone que cuando la complejidad o el monto de la

contratación lo justifique, a juicio de la autoridad competente, el llamado deberá prever un plazo previo

a la publicación de la convocatoria, para que los interesados formulen observaciones al proyecto de

pliego de bases y condiciones particulares, conforme lo determine la reglamentación. Sin perjuicio del

alto grado de discrecionalidad que se advierte en su redacción, es evidente que la norma busca lograr una

59 HUTCHINSON, Tomás, “¿Las costas en el procedimiento administrativo son a cargo del Estado?”, LL, 1996-B, 467. Allí agrega, en la nota 9, que: “Con este régimen se ha abolido el principio de gratuidad del procedimiento administrativo, se vulnera la defensa en juicio y se evitan impugnaciones a las adjudicaciones –no siempre transparentes–. Por ello no es de extrañar los resultados de ciertas privatizaciones.”

60 COMADIRA, La licitación pública, op. cit., p. 35.

61 Ampliar en ALONSO REGUEIRA, Enrique M. / CARDACI MÉNDEZ, Ariel, “El fin de las garantías de impugnación”, LL, Sup. Adm. 2006 (diciembre), p. 54.

62 MONTI, Laura M., “Las categorías jurídicas de la preadjudicación y la precalificación en el ámbito de la licitación pública,” LL, 2000-C, 112.

63 Había sostenido, sistemáticamente, que “La inclusión de la garantía de impugnación en el Pliego de Bases y Condiciones permite a los oferentes efectuar las necesarias previsiones, debiéndose entender que al no haber formulado la oferente oportunamente, ni observaciones, ni impugnaciones a la referida norma, que conocía en todos sus términos, la aceptó y consintió, excluyendo en consecuencia la posibilidad de impugnación posterior […] La aplicación de lo preceptuado en el Pliego de Bases y Condiciones, en relación a la garantía de impugnación, constituye una necesaria consecuencia del principio de igualdad de los oferentes en el procedimiento de la licitación, derivado del principio constitucional de igualdad ante la ley (conf. Dict. 202-151). La restitución de la garantía de impugnación sólo procede cuando la impugnación se resuelva favorablemente respecto de todos los planteos, en cuyo caso, se efectiviza dentro de los tres días de dictada la resolución que haga lugar a la impugnación,” Dictámenes, 234-69.

64 PTN, Dictámenes, 257-151. Un profundo análisis de esta cuestión puede encontrarse en ALONSO REGUEIRA, Enrique M. / CARDACI MÉNDEZ, Ariel, “El fin de las garantías…”, op. cit.

65 Ampliar en esta obra, comentario al art. 8 del decreto 1023/01.

66 MATA, “La selección del contratista estatal...,” op. cit., p. 1235.

67 GORDILLO, Tratado de derecho administrativo, t. 2, op. cit., p. XII-22.

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amplia participación en la etapa inicial de diseño,68 por lo que toda persona puede ser un “interesado”

solución que satisface con mayor vigor los principios de participación, publicidad y eficacia.69

4.4 Impugnación de cláusulas de los pliegos

Con relación a los pliegos de la licitación la cuestión es un poco más compleja. No es este el lugar indicado para analizar en profundidad su naturaleza jurídica, ya sea que se trate de los pliegos generales o los particulares. Aquí alcanza con referir que la doctrina los consideran, según los casos, normas en sentido estricto, actos de alcance general pero sin contenido normativo o actos administrativos individuales.70 Más allá de ello, creemos que asiste razón a REJTMAN FARAH cuando sostiene que estos instrumentos — pliegos generales y especiales — tienen una naturaleza jurídica compleja: En algunos supuestos con características de acto normativo, de regulación del procedimiento para la selección del contratista otros, de estipulación precontractual o contractual según el caso. Por ello, en cada oportunidad habrá que analizar las previsiones de distinto tipo de los pliegos para determinar el régimen jurídico aplicable.71 En este sentido, cabe señalar que, por lo general, las “bases” son las reglas de juego de la selección y el término “condiciones” se refiere al contenido del futuro contrato y la forma de su cumplimiento.

Lo que sí es un hecho a tener en cuenta es que, sí en tantas décadas de desarrollo doctrinario sobre esta materia no se obtuvo consenso sobre el punto, difícilmente dicha concordancia se logrará al momento de plantearse el conflicto concreto, es decir, la impugnación de una cláusula de alguno de los pliegos que rigen la licitación. Ello es así puesto que la impugnación de los pliegos tiene una estrecha vinculación con la naturaleza jurídica que se otorgue a los mismos. En este contexto, sería adecuado que tanto funcionarios como oferentes sean cautelosos al momento de analizar la oportunidad y pertinencia de la impugnación de las cláusulas de los pliegos y que los primeros, tengan en siempre en vista, al resolver esta clase de planteo, los principio generales de legalidad y transparencia, y los especiales de igualdad y concurrencia.

En concreto, las situaciones conflictivas que se pueden plantear son las siguientes: a) Que exista una cláusula que establezca que la presentación de la oferta significará de parte del oferente el pleno conocimiento y aceptación de todas las disposiciones de los pliegos; b) que no se establezca dicha cláusula y c) que el impugnante aún no haya presentado la oferta o no haya comprado el pliego. Veamos.

4.4.1 Existencia de cláusula que impone la aceptación

Este supuesto es el que con más frecuencia se plantea puesto que el Régimen de contrataciones prevé, expresamente, que la presentación de la oferta implica el consentimiento de las cláusulas de los pliegos.72 68 A tales efectos, el art. 11 del decreto 436/00 establece que el proyecto de pliego de bases y condiciones particulares quedará a disposición del público

durante todo el lapso previsto para la formulación de observaciones, que establezca la autoridad competente para autorizar la contratación, según la complejidad de la misma, el cual no será inferior a cinco días. Además se prevé que el organismo contratante pueda convocar a reuniones para recibir observaciones al proyecto de pliego o promover el debate entre los interesados acerca del contenido del mismo. De los temas tratados en esas reuniones y de las propuestas recibidas se labrará acta que firmarán los asistentes que quisieren hacerlo. Las observaciones al proyecto de pliego que formularen por escrito los interesados, así como también las actas mencionadas, se agregarán al expediente. Con una lógica que tiende a la transparencia, la norma dispone que no se realizará ninguna gestión, debate o negociación ni intercambio de opiniones entre funcionarios del organismo contratante e interesados en participar en la contratación, fuera de los mecanismos expresamente previstos, a los que tendrán igual acceso todos los interesados.

69 MATA, “La selección del contratista estatal...,” op. cit., p.1233.

70 Para una descripción de cada una de las posiciones indicadas y de los autores que las sostienen, ver CASSAGNE, Juan Carlos, El contrato administrativo, Buenos Aires, 2005, LexisNexis, 2ª ed., p. 95-6 y GÓMEZ SANCHIS, Daniel, “Pliego de Condiciones,” en AA.VV., Contratos administrativos, Buenos Aires, 2002, LexisNexis, p. 212 y ss.

71 REJTMAN FARAH, Impugnación judicial..., op. cit., p. 138.

72 El art. 67 del dec. 436/00 establece: “Efectos de la Presentación. La presentación de la oferta significará de parte del oferente el pleno conocimiento y aceptación de las cláusulas que rigen el llamado a contratación, por lo que no será necesaria la presentación de los pliegos con la oferta”. Por su parte, el art. 9 de la Resolución 834/00 del Ministerio de Economía avanza un paso más disponiendo que “La presentación de la oferta, importa de parte del oferente el pleno conocimiento de toda la normativa que rige el llamado a contratación, la evaluación de todas las circunstancias, la previsión de sus consecuencias y la aceptación en su totalidad de las bases y condiciones estipuladas, sin que pueda alegar en adelante el oferente su desconocimiento, por lo que no será necesario la presentación de los pliegos con la oferta.” El destacado no está en el original.

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Se debe tener en cuenta, especialmente, que sobre el punto la PTN sostiene que la circunstancia de que se presente la oferta sin que se hayan efectuado reparos a las cláusulas del pliego excluye la admisibilidad de las impugnaciones posteriores por su extemporaneidad.73 Pero, más aún, es criterio inveterado de la Corte Suprema que el voluntario sometimiento al régimen jurídico del pliego de condiciones comporta un inequívoco acatamiento de sus reglas.74

Ello quiere decir que el oferente debe deducir las impugnaciones contra los pliegos — sean generales o particulares — cuando adquiere la condición de tal, es decir, al momento de presentar la oferta, con lo cual dicha instancia se transforma en preclusiva sobre el punto. Pero como el supuesto de oferta e impugnación simultánea implica, normalmente, el incumplimiento actual o futuro del pliego en sus aspectos impugnados, la alternativa considerada implica el riesgo de que, cuando la autoridad competente para admitir o calificar la oferta no sea autora del pliego cuestionado, rechace aquélla por inadmisible, lo cual, de suceder, obliga al oferente a sumar a su impugnación inicial una nueva contra el acto de rechazo.75 Es evidente que todo ello genera un círculo vicioso, de dudosa legitimidad, que redunda en un claro exceso ritual.76

Sin dejar de reiterar que sobre el punto se debe ser prudente y evaluar cuáles son las posibilidades de éxito al momento de plantear estas impugnaciones y sopesarlas con el peligro de la inadmisibilidad de la oferta —aunque por supuesto ambas presentaciones deben efectuarse por separado — se debe tener en cuenta que la pretensión de aceptación de las cláusulas del pliego sólo podría tener valor cuando se trata de pliegos totalmente claros e inequívocos pero, por supuesto, estas virtudes recién pueden comprobarse una vez concluido el contrato sin tropiezos. Además, el oferente no tiene por función controlar la legitimidad de los actos de la administración.77 Lo que sí puede hacer — y así creemos que debería estructurase el sistema — es impugnarlo cuando la administración pretende aplicar la cláusula inválida.

En conclusión, es claro que teorías que suenen bien en el plano de las ideas, al momento de su aplicación sólo contribuyen a generar situaciones de injusticia e iniquidad, que son el caldo de cultivo para la corrupción administrativa. Téngase en cuenta que, en definitiva, se pueden estar legitimando cláusulas leoninas que no son beneficiosas para el interés público, ni aún cuando se las establece y mantiene con el fin honesto de proteger los intereses de la administración — que como lo destacó GORDILLO, no siempre coincide con el interés público — porque si los oferentes saben que se aplicarán las cláusulas abusivas seriamente, elevan considerablemente los precios de la contratación. Lo que a primera vista parece favorecer los intereses públicos, en realidad termina dañándolos.78 79

4.4.2 Inexistencia de cláusula que impone la aceptación

En estos casos, siempre que se interprete que los pliegos constituyen normas generales, por aplicación de la idea de amplitud impugnatoria que rige en materia de reglamentos, el oferente puede impugnar

73 PTN, Dictámenes, 115-410, 119-184, 150-52, 233-94.

74 CSJN, Fallos 305:826, 307:358 y 432.

75 COMADIRA, La licitación pública, op. cit., p. 123-4.

76 MATA, “La selección del contratista estatal...,” op. cit., p. 1250.

77 FIORINI / MATA, Licitación pública..., op. cit., p. 81.

78 MAIRAL, Las raíces legales de la corrupción, op. cit.

79 Por ejemplo, la Corte Suprema decidió que la cláusula de un pliego que obligaba a los oferentes a acompañar en su presentación un escrito dirigido al organismo en el que se desistía, de manera total e incondicional, de todos los recursos administrativos y judiciales que se hubieren interpuesto contra sus actos, es inconstitucional por violar el art. 18 de la CN y el derecho a la tutela judicial efectiva reconocido por los tratados internacionales, pero que además, atenta contra los principios básicos de los procedimientos públicos de selección como la licitación y el concurso, en especial, los de libre concurrencia e igualdad, que no sólo tienden a resguardar el derecho de los oferentes o participantes en procedimientos de ese tipo, sino también el interés público comprometido en la debida elección de quienes resultarán adjudicatarios, CSJN, Astorga Bracht, Sergio y otro c. COMFER – Decreto N. 310/98, del 14 de octubre de 2004.

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el pliego, directa o indirectamente — es decir, ante el acto de aplicación —, incluso después de la presentación de la oferta.80 Aunque, lamentablemente, esta interpretación tampoco es pacífica.81

En tanto se conciba a los pliegos como actos particulares, la cuestión vuelve a complicarse, puesto que se sostiene que deben ser impugnados en forma directa al momento de presentar la oferta.82 O, pero aún, se afirma que sus cláusulas deben ser impugnadas dentro los plazos previstos para recurrir los actos administrativos, a contar desde el momento en que se adquirió el pliego, acto que tendría las cualidades de la notificación personal en estos supuestos.83

4.4.3 Legitimación para la impugnación

La legitimación para impugnar los pliegos es amplia. Es decir, la posibilidad impugnatoria corresponde no sólo a los oferentes, sino también, a quien aún sin haber formulado oferta y habiendo o no comprado el pliego, puede demostrar su derecho a participar en el procedimiento de selección convocado por la administración, sobre la base de una argumentación que, teniendo en cuenta sus antecedentes, permita vislumbrar que se encuentran en condiciones objetivas de presentar una oferta en la convocatoria en cuestión.84

También se encuentran legitimados para impugnar los pliegos, de igual forma, los usuarios que se vean afectados por su aplicación ulterior85 y las asociaciones que tutelan derechos de incidencia colectiva. Ambos, conforme lo dispuesto por el art. 42 de la CN. En todos los casos, en tanto se den los supuestos exigidos por el art. 43 de la CN, procederá la acción de amparo.

5 Aplicación del dec.-ley 19.549

Hemos visto que aquellos supuestos de impugnación que no están expresamente regulados por el Régimen de contrataciones demandan la aplicación supletoria del régimen general de procedimientos administrativos. También se ha destacado que el régimen especial prevé la posibilidad de impugnar el dictamen evaluación. Ahora bien, este es un supuesto de excepción en lo que se refiere a la posibilidad de cuestionamiento de los actos preparatorios de la voluntad administrativa. En efecto el art. 80 del dec. reglamentario 1759/72 establece que las medidas preparatorias de decisiones administrativas, inclusive informes y dictámenes, aunque sean de requerimiento obligatorio y efecto vinculante para la administración, no son recurribles. Ello es así puesto que dichas actuaciones, en sí mismas consideradas, no otorgan ni niegan derecho alguno al administrado.

Los actos preparatorios están exentos de eficacia jurídica directa o inmediata, y tienen un régimen jurídico propio. En efecto, no rige el principio de estabilidad, son insusceptibles de impugnación y no requieren

80 COMADIRA, La licitación pública, op. cit., p. 124.

81 La PTN sostuvo que “El mero hecho de presentarse a una licitación engendra un vínculo entre el oferente y la Administración y lo supedita a la eventualidad de la adjudicación lo que presupone una diligencia del postulante que excede la común y su silencio hace presumir lisa y llanamente la aceptación de los términos fijados por la Administración (conf. Dict. 167-447; 211-370). El voluntario sometimiento a un régimen jurídico sin reservas expresas, comporta un inequívoco acatamiento que determina la improcedencia de su ulterior impugnación con base constitucional (conf. Dict. 202-151). Si la recurrente durante todo el transcurso del proceso licitatorio ajustó su comportamiento al Pliego, estuvo sometida a sus disposiciones y, por ende, al plazo de impugnación impuesto en él, su cuestionamiento posterior es manifiestamente improcedente y supone una conducta encontrada con su accionar anterior,” Dictámenes, 224-119.

82 COMADIRA, La licitación pública, op. cit., p. 124.

83 PICCOLI, Pablo, “Algunas reflexiones acerca de la impugnación de cláusulas de pliegos licitatorios,” R.D.A., nro. 11, Buenos Aires, Depalma, 1992, 608 y ss.

84 COMADIRA, La licitación pública, op cit., p. 125-6.

85 Por ejemplo, la CFed. CA, Sala II, en los autos Torello, Susana T. c. Instituto Nac. de Servicios Sociales para Jubilados y Pensionados, LL, 2000-B, 275, con nota de Beltrán Gambier, “Civismo y amparo,” tratándose de una acción de amparo iniciada por una afiliada, decidió que era nula la cláusula de un pliego de bases y condiciones para la selección de las empresas gerenciadoras del régimen de cobertura médico asistencial del PAMI, que establecía una indemnización exorbitante para el supuesto de rescisión anticipada del contrato, pues ello forzaría al mantenimiento del mismo ya que de lo contrario se pondría en riesgo su patrimonio y funcionamiento, con los consiguientes perjuicios para los afiliados en cuanto a los eventuales riesgos que tal situación podría provocarles en su salud.

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notificación en sí mismos, más allá de la publicidad propia de las piezas expediente administrativo y el derecho al libre acceso a éste por las partes. Ello es así puesto que la función ejercida por los órganos consultivos es una actividad preparatoria de las decisiones de los órganos activos de la administración.86

Ahora bien, aún antes de la sanción del Régimen de contrataciones, ya se sostenía — en posición que comparto — que en los casos en que las preadjudicaciones se sujetan a la condición de que el oferente cumpla determinados requisitos esenciales o no, se trata de verdaderos actos administrativos, con todas las consecuencias que de ello se derivan, en especial en el plano de los medios impugnatorios. En efecto, del cumplimiento o no de los condicionamientos impuestos en la preadjudicación se derivan efectos jurídicos directos para los destinatarios, los que pueden variar desde el desplazamiento del procedimiento hasta la obtención misma de la adjudicación. De esta forma, el acto consultivo deja de ser tal si, per se, genera derecho u obligaciones para los administrados.87 La PTN ha aceptado esta posición.88

Superada esta cuestión, cabe advertir que la exigencia de que el acto productor de efectos jurídicos sea “definitivo” ha traído algunas complicaciones en la práctica. Ello se debe a que la ambigüedad del término puede producir confusión al momento de ser utilizado por los operadores jurídicos. No es correcto, en la inteligencia de nuestro derecho positivo, asimilar “acto administrativo definitivo” con “acto administrativo impugnable.” Los actos definitivos son aquellos que resuelven sobre el fondo del problema planteado, que en forma definitiva definen el negocio ante la administración,89 independientemente que sean o no la expresión de voluntad de la máxima autoridad competente.90

En efecto, el decreto 1759/72 excluye del ámbito de los recursos las medidas preparatorias, pero no exige que deba haber un acto definitivo; al contrario, admite expresamente la procedencia de recursos contra los actos que denomina “interlocutorios o de mero trámite.” En consecuencia, sólo quedan excluidos del concepto de acto administrativo (y del recurso administrativo) aquellos actos que no producen un efecto jurídico directo: informes, dictámenes, etc., que serán los únicos actos calificables como preparatorios. Los actos que producen efectos directos e inmediatos son siempre actos administrativos y por lo tanto recurribles.91

Si bien es cierto que el decreto 1759/72 establece que el recurso jerárquico — que es el que agota la vía administrativa — es procedente únicamente contra actos definitivos o asimilables92 y la PTN ha sido particularmente estricta en cuanto a la aplicación de este precepto,93 también lo es que la jurisprudencia

86 GORDILLO afirma que para que la noción de acto administrativo sea útil debe estar referida en particular a los problemas de validez y contralor de la actividad administrativa. En este contexto, destaca que los problemas de validez e impugnación de la actividad administrativa giran en torno a un principio: Que puede atacarse mediante un recurso administrativo o acción judicial aquel acto de la administración que produzca efectos jurídicos inmediatos respecto del impugnante; todo acto de la administración que de suyo no produzca efectos jurídicos, no es todavía directamente impugnable en cuanto a su validez. La noción de acto administrativo debe entonces restringirse a aquellos actos que producen efectos jurídicos directos, en forma inmediata. Agrega que si se dijese simplemente que es una declaración que produce efectos jurídicos, estaríamos abarcando los casos en que el efecto jurídico surge indirectamente del acto. El dictamen vinculante que la administración esté obligada a seguir es un acto productor de efectos jurídicos, en cuanto el orden jurídico establece un nexo entre su emisión y determinados efectos jurídicos. Pero no es un acto administrativo en el sentido propio del término, porque los efectos jurídicos no surgen directamente del acto, sino indirectamente. Es, pues, un acto de la administración o preparatorio, no un acto administrativo, a pesar de ser un dictamen vinculante. Es esencial, pues, al concepto de acto administrativo, que los efectos jurídicos sean inmediatos, es decir, que surjan del acto mismo, GORDILLO, Agustín, Tratado de derecho administrativo, t. 3, El acto administrativo, Buenos Aires, FDA, 2003, 6ª ed., pp. II-2/3.

87 COMADIRA, Julio Rodolfo, Procedimientos Administrativos. Ley Nacional de Procedimientos Administrativos, Anotada y Comentada, con la colaboración de MONTI, Laura M., tomo I, Buenos Aires, La Ley, 2002, p. 189.

88 Entre otros, Dictámenes, 202-151.

89 GORDILLO, Agustín, Tratado de derecho administrativo, t. 3, op. cit., p. II-9.

90 MAIRAL, Control judicial..., op. cit., p. 238.

91 GORDILLO, Tratado de derecho administrativo, t. 3, op. cit., p. II-12.

92 Por tales, entiéndase aquellos que, a pesar de no expedirse sobre el fondo de la cuestión planteada a la administración, impiden totalmente la continuidad del procedimiento administrativo.

93 Ha sostenido, en Dictámenes, 224-119, que “La Resolución por la cual se denegara — en el marco de un procedimiento licitatorio — el pedido de prórroga del plazo para impugnar el informe de precalificación de la Comisión Técnica de Evaluación, la ampliación del término de vista de las actuaciones, y la suspensión del procedimiento durante el lapso de ampliación de vista solicitado, debe ser recurrida por la vía del recurso de reconsideración (art. 84 de la Reglamentación de la Ley de Procedimientos Administrativos), pero no por la del jerárquico. El recurso de

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ha permitido la impugnación judicial de actos que, a pesar de no ser definitivos, de algún modo pueden tener entidad suficiente como para condicionar la adjudicación.94 Asimismo, se ha admitido la intervención judicial en el caso de conductas que impliquen irregularidades en el procedimiento que, en definitiva, pueden tener el mismo efecto.95

Por último, cabe destacar que la aplicación supletoria del dec.-ley 19.549 parece dejar abierta la puerta para que, en el supuesto de que se hayan vencido los plazos para impugnar establecidos en el Régimen de contrataciones o en los pliegos, se interponga una denuncia de ilegitimidad; aunque cabe advertir que la PTN se ha pronunciado en contra de esta posibilidad.96 Además, se debe tener en cuenta que la jurisprudencia de la Corte Suprema y del fuero Contenciosos Administrativo resultan particularmente restrictivas en lo que se refiere a la posibilidad de reabrir la discusión en sede judicial a través de una denuncia de ilegitimidad.97 Por último, conforme lo establece el art. 48 del dec. 436/00, la denuncia debería ser tramitada fuera del expediente de la contratación, lo que limita considerablemente las posibilidades de éxito.98

6 Efectos de las impugnaciones y medidas cautelares

6.1 Efecto suspensivo de las impugnaciones previstas en el Régimen

La cuestión relativa a los efectos que se otorgue a las impugnaciones en el procedimiento de selección tiene una importancia práctica relevante puesto que evidencia la tensión que existe entre la necesidad de

reconsideración aludido debe ser resuelto por el Ministro del Interior, contra cuya decisión, de ser adversa al recurrente, no será procedente ningún otro recurso. El acto que deniega el pedido de prórroga del plazo para impugnar, la ampliación de la vista y la suspensión del procedimiento, no puede ser considerado como definitivo, porque no resuelve una cuestión de fondo, sino una cuestión procedimental. Tampoco puede ser considerado un acto equiparable a definitivo, porque la denegatoria que se recurre no impide ‘totalmente la tramitación del reclamo o pretensión del administrado’. El acto administrativo definitivo es aquel que resuelve directa o indirectamente la cuestión de fondo planteada, importando una decisión que cierra el procedimiento (conf. Dict. 192-24; 114-376; 125-205; 210-205). Los actos administrativos equiparables a definitivos son aquellos que sin resolver expresamente el fondo de la cuestión debatida, directa o indirectamente impiden totalmente la tramitación del reclamo o pretensión del administrado (conf. Dict. 192-24). Los actos interlocutorios o de mero trámite son los que producen efectos jurídicos directos, pero sobre el trámite, y no sobre el fondo del asunto; se refieren solamente a cuestiones de procedimiento, y, en tanto no sean equiparables a definitivos que impidan totalmente la pretensión o reclamo del interesado, no son impugnables por la vía del recurso jerárquico (conf. Dict. 192-24).”

94 Sobre el punto CASSAGNE expone que si bien los actos antecedentes del procedimiento no pueden calificarse como actos definitivos es posible admitir su impugnación separada tanto en sede administrativa como en la judicial. Estos actos no necesariamente son siempre actos interlocutorios ni de mero trámite, hay actos previos, que preceden al acto definitivo, que, ya sea por su incidencia directa y sustancial en el fondo del asunto o por ocasionar la ineficacia o imposibilidad de proseguir el procedimiento, o bien por la conculcación grave del derecho de defensa, deben considerarse asimilables a los actos definitivos, CASSAGNE, Juan Carlos, “El amparo en las provincias: su procedencia respecto de actos dictados durante el procedimiento licitatorio,” nota a CS Tucumán, Diavil SRL, 1987, ED, 126-133.

95 En el marco de una licitación internacional, mientras se estaban evaluando las ofertas y frente a la publicación de una nota periodística que manifestaba que cierta documentación del procedimiento licitatorio podría favorecer a una de las empresas intervinientes, uno de los oferentes efectúo una presentación tendiente obtener copias certificadas de las actuaciones administrativas elaboradas por la Comisión de evaluación. Por medio de una nota del presidente de la Comisión se accedió sólo parcialmente a lo solicitado, denegándoseles las restantes con fundamento en la opinión expuesta en el dictamen jurídico. Dicha nota ordenó, asimismo, la reserva de las actuaciones. Ante esta situación, el oferente solicitó judicialmente el dictado una medida cautelar autónoma dirigida a ordenar al órgano licitante que se abstenga de dictar cualquier acto que importe la exclusión arbitraria de la empresa en la licitación. Peticionó, además, una medida conservativa con la finalidad de requerir la exhibición y entrega inmediata de copias autenticadas de todos los informes, dictámenes, papeles de trabajo o actuaciones que se hayan elaborado con motivo de la evaluación de las ofertas presentadas. El juez de grado hizo lugar sólo a la medida conservativa. La mayoría de la Sala interviniente, sostuvo que la reserva dispuesta por la Comisión y el servicio jurídico no era legítima puesto que no había mediado acto administrativo emanado de las autoridades previstas en el art. 38 del decreto 1779/72, por lo que la negativa a conceder la vista era irrazonable. Asimismo, afirmó que no puede aceptarse que el conocimiento al que acceden las partes durante el trámite licitatorio, pueda afectar el resultado final de la adjudicación e indicó que los perjuicios que puede acarrear a la administración otorgar la vista son generalmente mucho menores que los alegados por los funcionarios a cargo del trámite. Aclaró que en el caso no se había declarado la confidencialidad de las actuaciones, toda vez que la nota referida no podía considerarse como un acto administrativo fundado que dispusiese el carácter reservado o secreto de todo o parte del expediente de la licitación, ya que dicha nota carecía de carácter decisorio, puesto que ella sólo podía tener relevancia en tanto su contenido se incorporase al acto administrativo respectivo, situación no concurría en el caso, CFed. CA, Sala I, Finmeccanica Spa Aerea Alenia Difesa c. Ministerio de Defensa, 1998, LL, 1999-B, 517.

96 “Corresponde desestimar la denuncia de ilegitimidad articulada pues el oferente al promover su denuncia lo hace inadecuadamente en los términos de la Ley de Procedimientos, cuando debió ajustarse al procedimiento establecido en el Pliego de Bases y Condiciones Generales,” Dictámenes, 234-452.

97 Han sostenido que la decisión administrativa que desestima en cuanto al fondo un recurso extemporáneo, tramitado en el caso como denuncia de ilegitimidad, no es susceptible de ser impugnada en sede judicial porque, al haber dejado vencer el interesado el término para deducir los recursos administrativos, ha quedado clausurada la vía administrativa, requisito insoslayable para la habilitación de la instancia judicial, CSJN, Gorordo, 1999, Fallos, 322:73 y CFed. CA, en pleno, Romero, 1999, LL, 1999-C-192.

98 La PTN ha sostenido que “Si bien resulta evidente el derecho de todo administrado de formular denuncias simples, su tratamiento no debiera tener como consecuencia la suspensión del trámite licitatorio, salvo que tal medida fuera decidida por la propia administración por existir vicios determinantes de la nulidad absoluta del acto,” Dictámenes, 202-151.

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contratar en tiempo oportuno y la rigidez del principio de legalidad, en lo que se refiere a la observancia de la regularidad del procedimiento. El art. 30 del decreto 1023/01 parece haber optado por el efecto suspensivo para aquellas impugnaciones específicamente reguladas por el decreto 436/00 o los pliegos.99 Cualquier otra impugnación u observación distinta a las allí previstas, se regirá por las disposiciones del dec.-ley 19.549 y su reglamento y en consecuencia no tendrá per se efectos suspensivos.

Desde esta perspectiva el panorama sería el siguiente: a) Las impugnaciones al dictamen de evaluación, deberán ser resueltas en el mismo acto que disponga la adjudicación.100 Por ende, en realidad, no tendrían de hecho efecto suspensivo, ya que no se resuelven antes de la adjudicación, sino con ella misma, en un solo acto;101 b) los recursos contra el acto de adjudicación presentan cierta dificultad puesto que más allá de estar expresamente previstos en la reglamentación, se establece para su trámite al aplicación del régimen general de procedimientos administrativos, que en su art. 12 prevé sólo el efecto no suspensivo de los recursos.102 Se ha interpretado que se debe reconocer el efecto suspensivo por aplicación directa y específica del referido art. 30 que prevalece sobre la norma general y abstracta del art. 12 del dec.-ley 19.549,103 aunque esta posición no es pacífica; c) en la impugnación a la precalificación, en el sistema de doble sobre, se prevé que las impugnaciones planteadas sean resueltas por la autoridad competente para aprobar la contratación dentro del plazo que determine el pliego.104

6.2 Efecto no suspensivo y las medidas cautelares

En el resto de los supuestos no previstos expresamente, el Régimen nos pone necesariamente frente al

art. 12 del dec.-ley 19.549 que faculta a la administración a ejecutar sus actos por sus propios medios,105

e impide que los recursos que interpongan los administrados suspendan su ejecución y efectos, salvo que

una norma expresa establezca lo contrario.106

Hemos tenido la oportunidad de criticar la solución adoptada por la norma107 en tanto presupone que si la

impugnación de los actos administrativos suspendiera sus efectos y ejecutoriedad, se paralizaría la acción

de la administración; ello porque los administrados, ante cada negación de una petición, presentarían

99 FARRANDO, “El efecto suspensivo de las impugnaciones...,” op. cit., p. 177.

100 Arts. 80 y 82 del dec. 436/00. En igual sentido, art. 20 de la Resolución 834/00 del Ministerio de Economía.

101 FARRANDO afirma que este sistema contradice el art. 30 del dec. 1023/01 del cual se deduce que las impugnaciones previstas en la reglamentación tienen efecto suspensivo, por lo que no debería tenerse por vigente la parte del art. 82 del dec. 436/00 correspondiente al párrafo indicado y, por ende, habría que resolver antes de la adjudicación las impugnaciones al dictamen de evaluación, FARRANDO, “El efecto suspensivo de las impugnaciones…,” op. y loc. cit.

102 Art. 83 del dec. 436/00 y 20 de la Resol. 834/00 del Ministerio de Economía.

103 FARRANDO, “El efecto suspensivo de las impugnaciones…,” op. y loc. cit.

104 Art. 108 del dec. 436/00.

105 A menos que una ley o la naturaleza del acto exigieren la intervención judicial, aclara la norma.

106 Antes de que esta norma fuera sancionada en el año 1972 existía en nuestra doctrina nacional un fuerte enfrentamiento con relación a los efectos que correspondía otorgar a los recursos administrativos en aquellos casos en los que la ley no establecía un régimen especial. Principalmente por la influencia que tuvo SAYAGUES LASO en nuestro derecho administrativo, quien siguiendo a los autores italianos sostenía que en caso de silencio el recurso carecía de efecto suspensivo. Pero, por otro lado, reconocía que la ejecución muchas veces puede crear situaciones irreparables, “lo que lleva a atemperar el principio del cumplimiento inmediato.” Y termina concluyendo que “No pueden darse reglas absolutas a ese respecto siendo recomendable que la administración obre con prudencia y sentido de justicia,” SAYAGUES LASO, Enrique, Tratado de derecho administrativo, t. I, Montevideo, 1974, 4ª ed., actualizada por MARTINS, Daniel H., p. 476-7. En la posición diametralmente opuesta, LINARES, Juan Francisco, “Efectos suspensivos de los recursos ante la administración,” LL, 85:906 y GORDILLO, Agustín, Procedimiento y recursos administrativos, Buenos Aires, Ed. Jorge Alvarez, 1964, pp. 104 y ss.

107 CARRILLO, Santiago R., “Las medidas cautelares contra el Estado en la República Argentina,” ResPublica Argentina, Ediciones Rap, nro. 2006-2, p. 37 y ss., reproducido en LÓPEZ OLVERA, Miguel Alejandro / VILLASANA RANGEL, Patricia (coords.), Las medidas cautelares en el procedimiento administrativo en Iberoamérica, México, 2006, en prensa. Allí efectuamos un desarrollo de los motivos por los cuales consideramos que el art. 12 del dec.-ley 19.549 debe ser modificado estableciéndose como principio el efecto suspensivo de los recursos o bien otorgando efecto positivo al silencio de la administración ante el pedido de suspensión, sin perjuicio de las regulaciones especiales en las que se establezcan excepciones cuando la materia, por su desarrollo u operatoria, requiera la ejecución inmediata de los actos administrativos.

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un recurso. Creemos que no necesariamente ello es así, con lo cual, en realidad parecería que se busca

proteger al Estado de sus ciudadanos108 y ello ya no es posible en un Estado democrático de derecho.109

Es cierto que la última parte del art. 12 establece que la administración podrá suspender la ejecución

del acto ante determinados supuestos,110 pero dicha facultad ha sido interpretada mayoritariamente

como meramente discrecional,111 por lo cual, en los hechos, ha sido prácticamente neutralizada, ya

que la administración sistemáticamente evita resolver los pedidos de suspensión de la ejecución de sus

actos112 o, en algunas oportunidades, el planteo es desestimado al rechazar el recurso que, en el caso,

es lo mismo que no resolver.

En las licitaciones públicas es necesario que el recurso deducido contra el acto de adjudicación y la eventual

demanda judicial de impugnación, tengan efecto suspensivo. Tal como lo propone BOQUERA OLIVER la

forma más efectiva de evitar las complicaciones que se plantean en esta materia113 es que, antes de que

se perfecciones el contrato, la justicia conozca y resuelva todas las impugnaciones presentadas contra

los actos del procedimiento de selección que se estimen viciados.114 Claro que se dirá que ello atenta

contra el “interés público” que se encuentra comprometido en la celebración del contrato respectivo,

pero si se previese un proceso ágil y expedito — o si se habilitase la vía del amparo sin las cortapisas del

dec-ley 16.986 —,115 el lapso que demanda la intervención judicial podría, razonablemente, ser previsto

108 “Antes que nada debe recordarse que la justicia administrativa se hizo para proteger al individuo contra el Estado y no al Estado contra el individuo,” LINARES, “Efectos suspensivos…,” LL, 85: 906.

109 De más esta decir que está es una decisión política y no jurídica, es decir, no hay una supuesta “naturaleza” que mande dichas condiciones en un acto administrativo, es una característica contingente. En este sentido, es de lamentar que los autores de la ley no hayan fundado expresamente la decisión que adoptaron sobre este punto en particular, ya que se limitaron a sostener en la exposición de motivos que “En el Título III adoptamos, en lo esencial, las opiniones expuestas por el doctor Miguel S. Marienhoff, en el Tomo II de su Tratado de Derecho administrativo en materia de acto administrativo,” en CANOSA, Armando N., Ley Nacional de Procedimientos Administrativos. Comentada y actualizada – 2005, Bs. As., Ediciones Rap SA, 2005, p. 28. Muy bien, pero los autores se olvidaron de poner en la ley, o aclarar en la exposición de motivos, que MARIENHOFF –quien efectivamente creía que los recursos y acciones carecen, por sí mismo, de efecto suspensivo, lo cual ya es un dato meramente anecdótico– también sostenía que: i) para que un acto administrativo goce del privilegio de la ejecutoriedad, debe ser perfecto, de lo contrario no es ejecutorio, porque es “inaplicable.” La autotutela, que constituye un verdadero privilegio para la administración, requiere indispensablemente esa perfección y ii) “La suspensión del acto por ilegitimidad manifiesta no tiene límite alguno, es absoluta. Demostrada la ilegitimidad, procede la suspensión. En un Estado de Derecho es inconcebible que la Administración Pública actúe al margen de la legalidad,” MARIENHOFF, Miguel S., Tratado de derecho administrativo, t. II, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1988, reimpresión de la 3ª ed. actualizada, pp. 377 y 381, y Tratado de derecho administrativo, t. I, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1990, 4ª ed. actualizada, p. 663.

110 A pedido de parte interesada o de oficio y por razones de interés público o para evitar perjuicios graves al interesado o cuando se alegare fundadamente una nulidad absoluta. Para hacer justicia con ESCOLA — uno de los autores de la ley — cabe apuntar que, más allá de las críticas a LINARES y GORDILLO, que en modo alguno comparto, en tanto sostenían que los recursos debían tener efectos suspensivos, parece haber estado convencido de que el sistema de suspensión por la administración funcionaría correctamente en la práctica, a punto tal que esboza un procedimiento –que califica de sencillo y rápido–, que culminaría con una decisión fundada, con la sana intención de reglar la cuestión: Nada más alejado de la realidad, ver ESCOLA, Héctor J., Tratado general de procedimiento administrativo, Buenos Aires, Depalma, 1973, p. 288, las críticas aludidas están en las pp. 289-294.

111 La posición de la PTN al respecto es clara: “Resultan inadmisibles aquellas presentaciones orientadas a obtener la suspensión de los trámites concursales con sustento en la iniciación de acciones judiciales y en la supuesta comisión de irregularidades, por cuanto la mera interposición de una acción judicial no tiene entidad suficiente para interrumpir el cronograma de la licitación. La denegatoria de un pedido de suspensión del procedimiento en el marco de una licitación pública constituye un ejercicio adecuado de la potestad de la Administración de conducir el proceso licitatorio con arreglo a lo establecido en el Pliego (conf. Dict. 224-119). Por tal motivo, la inexistencia de una orden judicial dictada en tal sentido, habilita al órgano licitante a continuar con el procedimiento licitatorio que se tramita a menos que, por razones de oportunidad, mérito y conveniencia, su titular disponga lo contrario, ponderación que se halla reservada a su exclusiva incumbencia,” PTN, Dictámenes, 242-571, entre otros.

112 La Sala V de la Cámara de Apelaciones en lo Contencioso Administrativo Federal, con una franqueza sorprendente, aseguró que “Desafortunadamente, la experiencia indica que cuando ese pedido de suspensión de los efectos del acto es planteado en el procedimiento administrativo, la Administración guarda, sencillamente silencio. Ello obliga al administrado a recurrir ante la justicia para que sea ésta quien suspenda los efectos del acto recurrido en aquel procedimiento,” CFed. CA, Sala V, 7/XI/01, Gas Nea S.A. c. Enargas.

113 La cuestión más grave es encontrarse ante la nulidad absoluta del acto de adjudicación luego de que el contrato se encuentra en marcha, o bien ya ha sido ejecutado. Además, de esta forma, se evitaría regularmente — y sin tener que recurrir a normas de dudosa constitucionalidad — que el Estado quede ante la eventualidad de tener que pagar daños y perjuicios por irregularidades cometidas durante el procedimiento licitatorio.

114 BOQUERA OLIVER, La selección de contratistas, op. cit., p. 224-6.

115 Con claridad meridiana se ha resuelto: “El objeto del presente pleito está constituido por la petición de declaración de nulidad de todo el procedimiento licitatorio para la provisión de un sistema de cobro de peaje. De tramitare el juicio en el marco de un proceso ordinario, bajo el resguardo de una medida cautelar, como se sugiere curiosamente a fs. 670 vta. (el propio Estado Nacional), se paralizaría la obra hasta la conclusión de dicho proceso — normalmente extenso, por más que no requiera prueba — lo que en sí mismo es un disvalor notable, sea cual fuera el

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junto con los tiempos de la licitación. Téngase en cuenta que en los casos de acreditada urgencia se

prescinde del procedimiento de selección –contratándose en forma directa– por lo que el problema que

tratamos de resolver ni siquiera se plantea.116

Es evidente que con este sistema se lograría la tan ansiada seguridad jurídica dado que la ejecución del

contrato recién comenzaría cuando existe plena certeza de la validez del procedimiento licitatorio. Y en

caso de que la urgencia se presente durante la sustanciación de la selección, el régimen podría prever

que por medio de una decisión fundada se otorgue efecto no suspensivo a las impugnaciones.

Pero como nada de ello sucede, la medida cautelar pidiendo la suspensión de los efectos del acto

de adjudicación aparece como la única salida viable en este universo, ya que tiene la virtualidad de

suspender la marcha del procedimiento, preservando el derecho sustantivo. Las medidas cautelares

están reguladas con detalle en el Código procesal civil y comercial de la Nación y la jurisprudencia de

los tribunales federales117 ha aceptado pacíficamente su aplicación,118 permitiendo la suspensión de los

efectos de los actos administrativos antes o después de iniciado el proceso.119

Este tipo de pretensión cautelar puede ser tanto una prohibición de innovar como una medida innovativa, según el punto de vista desde el cual se la analice. En efecto, el acto administrativo tiene efectos jurídicos inmediatos desde que es notificado o publicado — según sea de alcance individual o general — por lo que, desde el punto de vista jurídico, la suspensión de sus efectos siempre implicará una modificación en la esfera jurídica del administrado y, en este contexto, se la puede considerar innovativa. Pero por otro lado, en cuanto a los hechos, ello dependerá de cual sea el objeto del acto que se suspende y si este ya fue cumplido o no. Por ejemplo: Si se suspende el acto de adjudicación, impidiendo el cumplimiento de los actos sucesivos de perfeccionamiento del contrato, la medida será de no innovar en tanto se mantiene el statu quo. Ahora bien, si se ordena cautelarmente la suspensión del acto que denegó la vista del expediente durante una licitación, y se ordena que ésta sea conferida en forma inmediata, se trata de una medida innovativa.

En cuanto a la oportunidad para solicitarlas, el art. 195 del Código procesal establece que podrán ser solicitadas antes o después de deducida la demanda, lo que ha permitido la creación pretoriana de las medidas cautelares autónomas.120 Consiste, básicamente, en solicitarle al juez que ordene la suspensión

resultado del pleito. Esto quiere decir que la vía debe ser aceptada predominantemente por el interés público. La cuestión tiene su trascendencia, porque al no ser la vía excepcional del amparo una prerrogativa procesal exclusiva del actor en virtud de la inminencia del agravio de éste, se neutralizan requisitos que le son exigidos para, justamente, poder defender su derecho de modo sumarísimo. Así, el comportamiento estatal ya no debe ser manifiestamente arbitrario o ilegal para acoger la demanda, porque si éste es el único proceso apto, rechazarlo porque el agravio no es manifiestamente ilegal, importa reconocer que puede ser ilegal de modo simple. Y ello sería absurdo, porque ya hemos dicho que en estos casos, el juicio ordinario es profundamente disvalioso en sí mismo, por su natural prolongación temporal, de modo que no serviría para corregir aquella arbitrariedad o ilegalidad no manifiestas, en tanto tal corrección recién se produciría una vez afectado el interés público de modo irreparable,” JNFed. CA, nro. 4, Servotron SA c. Consorcio Autopista del Oeste y otros, 1996, LL 1997-F, 297.

116 BOQUERA OLIVER, José M., La selección de contratistas, op. cit., 225.

117 Sólo a modo de ejemplo, CSJN, Iribarren, 1992, LL, 1993-B, 264.

118 En lo que aquí interesa, el art. 230 del Código procesal regula la prohibición de innovar y el art. 232 establece las medidas cautelares genéricas, norma que se adoptó como fuente para el dictado de las medidas cautelares positivas. El art. 199 establece la necesidad de presentar una adecuada contracautela. En ambos casos, se exige que: a) El derecho fuere verosímil; b) existiere el peligro de que si se mantuviera o alterara, en su caso, la situación de hecho o de derecho, la modificación pudiera influir en la sentencia o convirtiera su ejecución en ineficaz o imposible; c) la cautela no pudiere obtenerse por medio de otra medida precautoria y d) presentación de una adecuada contracautela, que atendiendo a las circunstancias del caso, podrá ser juratoria o real. Cabe aclarar que en el caso del art. 232 la norma dispone que debe concurrir el peligro de sufrir un “perjuicio inminente o irreparable” y, por otro lado, conforme pacífica jurisprudencia, es requisito para el despacho favorable de una medida cautelar contra el Estado que no se afecte el interés público.

119 Parte de la doctrina ha entendido que, en estos supuestos, las medidas cautelares deben evaluarse conforme los requisitos establecidos en el art. 12, in fine, del dec.-ley 19.549; hemos analizado esta cuestión en CARRILLO, Santiago R., “Las medidas cautelares contra el Estado en la República Argentina,” ResPublica Argentina, Ediciones Rap, nro. 2006-2, p. 22 y ss.

120 Ampliar en GALLEGOS FEDRIANI, Pablo O., Las medidas cautelares contra la Administración Pública, Buenos Aires, Ábaco, 2002, p. 143 y ss. y en CASSAGNE, Juan Carlos, “La tutela cautelar otorgada en forma anticipada o autónoma,” LL, 2000-F, 837.

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de los efectos del acto administrativo recurrido hasta que la administración resuelva el recurso que agota dicha vía.121 Mientras tanto, el administrado obtiene tutela aparentemente sin forzar el sistema de agotamiento de la vía administrativa previa y sin un perjuicio mayor para la administración quien, con su propia diligencia, determina la duración de la medida cautelar dictada en su contra resolviendo el recurso.122

Una cuestión interesante relativa a los requisitos de admisibilidad es que la Cámara Contencioso

Administrativa Federal viene afirmando — como jurisprudencia ya consolidada — que a mayor verosimilitud

del derecho menor será la exigencia en la gravedad e inminencia del daño y viceversa, cuando existe la

evidencia de un daño grave e inminente, el rigor acerca del fumus bonis iuris se debe atenuar;123 aunque

esta interpretación no autoriza a prescindir de ninguno de los requisitos legales, sino sólo a atemperar el

rigor de uno cuando el otro se presenta en forma acentuada.

Por último, si bien en el ámbito del derecho procesal civil rige con plenitud el principio establecido en el

art. 198 del Código procesal, relativo a que las medidas precautorias se decretan y cumplen sin audiencia

de la otra parte, en el procedimiento administrativo esta regla debe ser matizada. En efecto, en algunos

supuestos es imposible conocer las consecuencias que en definitiva puede tener la concesión de la medida

cautelar sin contar con un informe previo del organismo o, al menos, con el expediente administrativo en

el que se dictó el acto impugnado.124 Por supuesto, todo ello dependerá de las posibilidades que otorgue

el peligro en la demora.

7 Habilitación de la instancia: el plazo de caducidad125

En este punto se plantea otra cuestión crucial con relación a la tutela judicial efectiva, que requeriría

un profundo análisis que excede las posibilidades de este comentario. No obstante expondremos algunas

cuestiones básicas sobre el tema.126

Es cierto que, culminado el procedimiento licitatorio, se impone tener certeza sobre la validez

del acto de adjudicación a efectos de que el contrato pueda ser ejecutado sin contratiempos

generados por impugnaciones tardías. Desde esta perspectiva, resulta razonable — en esta materia

121 GORDILLO, quien ha elogiado la creación de este tipo de medida cautelar, afirma que “es un indudable progreso en materia jurídica, aunque tal vez ahora falte el paso inmediato siguiente, en que se acepte la suspensión de pleno derecho del acto administrativo que causa gravamen, por la mera interposición del recurso administrativo — como parte de la doctrina propugna —, y sin necesidad de acudir a la vía judicial en una cautelar autónoma. Con la cautelar autónoma se resuelve algo del problema; con reconocer el efecto suspensivo del recurso administrativo contra el acto que causa gravamen se resolvería todo el problema,” GORDILLO, Agustín, “Cautelar autónoma,” LL, 1996-D. 127, del mismo autor y con igual título, LL, 1999-A, 142.

122 ZAMBRANO, Pedro, “Medidas cautelares ‘autónomas’ y la garantía de defensa en juicio: ¿Por el artículo 230 del Código Procesal o por el artículo 12 de la ley 19.549?,” LL, 1998-C, 344.

123 La jurisprudencia en este sentido es abundante: A título de ejemplo, algunas de las pioneras, Cam. Nac. Federal, Banco Popular de La Plata, LL, 120: 763 y Gobierno Nacional c. NN, LL, 125: 633, 1966; y más actuales CFed. CA, Sala II, 4/IV/92, Continental Illinois National Bank And Trust Company of Chicago c. Banco Central y Sala IV, 31/III/92, O.S.P.E.G.Y.P.E. c. Ministerio de Salud y Acción Social. Ver también GALLEGOS FEDRIANI, Pablo,”Las medidas cautelares contra la administración nacional (Principios jurisprudenciales),” LL, 1996-B, 1052.

124 GUGLIELMINO expone que, en su experiencia como magistrado, en determinadas ocasiones, un traslado previo ha beneficiado a los peticionantes de las medidas cautelares que han visto así robustecida su posición, que pasa a adquirir un estatus superior al de la apariencia, GUGLIELMINO, Osvaldo C., su exposición en Los grandes temas del Contencioso Administrativo. Jornadas sobre Derecho Procesal Administrativo, Rap, 270: 14.

125 Esta cuestión puede ser ampliada en DIANA, Nicolás, “¿Otra vez el enigma de la habilitación de instancia? (Sobre las cenizas de Cohen),” LL, 2006-A, 60; REJTMAN FARAH, Mario, “La consagración legal de la habilitación de instancia de oficio: su inconstitucionalidad,” AA.VV., Derecho Procesal Administrativo. Homenaje a Jesús González Pérez, t. 1, Buenos Aires, Hammurabi, 2004, p. 917 y ss., TAWIL, Administración y Justicia, op. cit., p. 193 y ss. y JEANNERET DE PÉREZ CORTÉS, “Reflexiones sobre la admisibilidad…,” op. cit., pp. 114-7.

126 En realidad, tal como afirma LUQUI, en las licitaciones públicas son pocos los planteos judiciales, por lo general, las quejas terminan en sede administrativa. Tal vez ello sea así por el costo de la tasa de justicia, o para evitar el riesgo de tener que pagar elevados honorarios, o por el temor a enemistarse con el “poder” de turno perdiendo contrataciones futuras. No obstante, la progresiva ampliación de la procedencia de la acción de amparo, ha disminuido los costos judiciales y los riesgos que siempre genera la incertidumbre sobre el resultado del pleito, LUQUI, Revisión judicial…, op. cit., p. 49.

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— que exista un plazo de caducidad a fin de que en un tiempo previsible para la administración

esta pueda tener certeza sobre la validez del procedimiento de selección.127

En esta delicada materia — que conlleva el terrible efecto de limitar el acceso a la justicia de los administrados

— las disposiciones legales debe fundarse en verdaderas razones de interés público, el que debe ser evaluado

caso por caso, y no como una noción abstracta sin contenido específico.128 Pero en su defensa de lo que él

entiende es el interés público, el Estado argentino sacrifica una y otra vez el Estado de derecho.129

Ello, sumado al respecto que debe existir en el Estado democrático de derecho a la tutela judicial

efectiva, impone que se revise legislativamente esta materia y se establezcan plazos de caducidad sólo

en aquellos casos en que realmente existan razones de seguridad jurídica que justifiquen limitar los

derechos de los administrados130 131

En este contexto, y de acuerdo al estado actual de la legislación, el oferente debe cumplir estrictamente

con la presentación de la demanda judicial dentro del plazo de caducidad de 90 hábiles judiciales, tal

como lo exige el art. 25 del dec.-ley 19.549132 puesto que, conforme lo dispone el art. 31, el juez debe

127 Si bien ello es así, lo que no es razonable es que existan plazos generales de caducidad, puesto que ello no tiende a proteger ningún interés público, sino que tiene la finalidad de que el Estado no sea demandado, BIANCHI, Alberto B., “Entre el agotamiento de la instancia y el plazo de caducidad (¿A quién protege el procedimiento administrativo?),” AA.VV., Cuestiones de Procedimiento Administrativo, Buenos Aires, Ediciones Rap, 2006, p. 869. El sistema requiere ser urgentemente depurado en este punto, creo que la magnitud de los derechos en juego justifica este sacrificio del legislador. Tal como lo afirma MAIRAL, hay supuestos en los que es posible instrumentar este instituto — v. gr. procedimientos sancionatorios, en los que el administrado cuenta con un amplio marco de defensa y posibilidad de asistencia letrada — pero ello no autoriza su instauración generalizada, ampliar en MAIRAL, Héctor A., “Los plazos de caducidad en el derecho administrativo argentino,” AA.VV., Derecho Procesal Administrativo. Homenaje a Jesús González Pérez, t. 1, Buenos Aires, Hammurabi, 2004, p. 882 y ss.

No obstante, la Corte Suprema ha aceptado que la existencia de términos para demandar a la administración se justifica por la necesidad de dar seguridad jurídica y estabilidad a los actos administrativos, a fin de evitar una incertidumbre continua en el desenvolvimiento de la actividad de la administración, pues de lo contrario se afectaría el principio constitucional de la seguridad jurídica, que constituye una de las bases principales de sustentación de nuestro ordenamiento, cuya tutela innegable compete a los jueces, CSJN, Gypobras SA, 1995, Fallos, 318:441. La Corte agrega que los plazos de caducidad constituyen una prerrogativa procesal propia de la administración pública, consecuencia del denominado “régimen exorbitante del derecho privado” que impera en la relación ius administrativa, CSJN, Serra, Fernando Horacio y otro c. MCBA, 1993, Fallos, 316:2454. En contra, sosteniendo que el sistema no viene impuesto por el principio de división de poderes, sino más bien, todo lo contrario, BIANCHI, Alberto B., “¿Tiene fundamentos constitucionales el agotamiento de la instancia administrativa?,” LL, 1995-A, 397. Además, si no hay plazo para demandar la inconstitucionalidad de una ley y ello no produce per se inseguridad jurídica, no se alcanza a comprender por qué deben los actos del Poder Ejecutivo gozar de un estatus preferencial frente a la ley, MAIRAL, Control judicial..., op. cit., p. 384.

128 GORDILLO ha señalado el error de concebir al interés público como un ente abstracto, como una estela de bienestar que se esparce insensiblemente entre el pueblo; como una noción mágica que implica todo lo bueno y mejor y a la cual deben doblegarse las pretensiones jurídicas de los particulares. Además, demostró que el interés público no es el interés de la administración. Concluye, en posición que compartimos, que sólo hay interés público cuando de entre una mayoría de individuos, cada uno puede escindir del mismo su interés individual: El “interés público” en que cada individuo no pueda encontrar e identificar su porción concreta de interés individual es una simple falacia, GORDILLO, Agustín, “Reestructuración del concepto y régimen jurídico de los servicios públicos,” LL, 106-1187, año 1962, reproducido en LL, Páginas de Ayer, 2004-10, 29. No obstante, la doctrina de la PTN sobre el punto conlleva serios riesgos: “No se debe justificar la lesión de los derechos de los particulares con la sola invocación de los intereses de la comunidad; pero tampoco se pueden perturbar los objetivos del Estado, que deben ser los del conjunto de la sociedad, por un excesivo rigorismo interpretativo en el alcance de las garantías individuales (conf. Dict. 164-82; 202-48),” Dictámenes, 217-115, el destacado no está en el original. Por nuestra parte, hemos analizado la cuestión de la determinación del interés público en “Jueces, interés público y Cuota Hilton,” La Ley Actualidad, del 21-26/X/2004, pp. 1 y 3, también publicado en El Dial (elDial.com), news letter nro. 1834 y en “El interés (del) público en el Régimen Federal de pesca,” ResPublica Argentina (Ediciones Rap), nro. 2006-1, p. 77 y ss.

129 MAIRAL, Hector A., Las raíces legales de la corrupción, Cuadernos ResPublica Argentina, Buenos Aires, Ediciones Rap, 2006, punto 2.6., en prensa.

130 Además, las razones de seguridad jurídica que se invocan para defender el sistema general de caducidad pueden ser valederas en Francia, donde los efectos de la sentencia anulatoria se extienden erga omnes, ya que sería injusto que los beneficiarios del acto impugnado por ilegítimo continuaran durante años en la incertidumbre acerca de la validez y estabilidad de tales beneficios, pero no tienen igual peso en el régimen argentino en el que rige el efecto relativo de la cosa juzgada, MAIRAL, Control judicial…, op. cit., p. 383 y del mismo autor, “Los plazos de caducidad…,” op. cit., p. 882 y ss.

131 BIANCHI ha efectuado una importantísima observación sobre esta cuestión: Afirma que el examen del derecho comparado revela que el legislador argentino optó, entre las varias soluciones allí disponibles, por la más restrictiva para el acceso a la jurisdicción, esto es, la que exige primero agotar la vía administrativa para someter luego la demanda a un plazo de caducidad, todo con carácter general, BIANCHI, “Entre el agotamiento de la instancia…,” op. cit., p. 868.

132 Nunca debe olvidarse que el art. 76 del decreto 1759/72 (t.o. 1991) establece que: “Si a los efectos de articular un recurso administrativo, la parte interesada necesitare tomar vista de las actuaciones, quedará suspendido el plazo para recurrir durante el tiempo que se le conceda al efecto, en base a lo dispuesto por el artículo 1º, inc. e), apartados 4º y 5º, de la Ley de Procedimientos Administrativos. La mera presentación de un pedido de vista, suspende el curso de los plazos, sin perjuicio de la suspensión que cause el otorgamiento de la vista. En igual forma a lo estipulado en el párrafo anterior suspenderán los plazos previstos en el artículo 25 de la Ley de Procedimientos Administrativos.”

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evaluar de oficio in limine litis la concurrencia de los requisitos de habilitación de la instancia y en caso

de no encontrarse cumplidos, se ve impedido de darle curso a la demanda.133

A modo de epílogo, quiero recordar, una vez más, las sabias palabras de BosCh, quien afirmaba que la “buena vía” en esta materia debe tener como punto de partida la Constitución nacional — más que las construcciones propias de otros sistemas jurídicos — y de allí deben arrancar todos los estudios sobre el tema del control judicial de la actividad administrativa que se realicen en la Argentina.134 Ojalá el eco de sus palabras sea escuchado por el legislador.135

Referências

Mairal, Héctor A. Algunas reflexiones sobre la utilización del derecho extranjero en el derecho público argentino. In: AA.VV. Estudios de Derecho Administrativo II. Buenos Aires: Ciencias de la Administración, 1992.

Gordillo, Agustín. La defensa del usurario y del administrado. In: _______Tratado de derecho administrativo. 8. ed. Buenos Aires: FDA, 2006. t. 2.

Gordillo, Agustín. El acto administrativo. In:_______Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Buenos Aires: FDA, 2003. t. 3.

133 La irrazonabilidad de este sistema legal, que impone al juez sustituir la voluntad de una de las partes del proceso, surge palmaria de la lectura de los argumentos expuestos en precedentes de la propia Corte Suprema, donde se destacó que la evaluación de oficio de los requisitos de admisibilidad viola el derecho de defensa, la igualdad de las partes en el proceso y el principio procesal de congruencia, ver CSJN, Cohen, Rafael c. Instituto Nacional de Cinematografía, 1990, Fallos, 313:228 y Construcciones Taddía SA. C. Estado Nacional (Ministerio de Educación y Justicia), 1992, Fallos, 315:2217. No obstante, en los autos Resch, Héctor Juan c. Ministerio del Interior — Policía Federal Argentina, 2004, Fallos, 327, a través de un obiter dictum, la Corte ha sentado las bases para volver a la doctrina acuñada por dicho tribunal en Cohen, al respecto ampliar en Diana, “¿Otra vez el enigma…,” LL, 2006-A, 60.

134 BOSCH, Jorge Tristán, “Lo contenciosoadministrativo y la Constitución Nacional,” LL, 81: 842.

135 A quien cada uno de nosotros, desde su lugar, debe ayudar a actuar con mesura, ver BIANCHI, Alberto B., “La Cámara de Diputados no es un club privado,” LL, del 5/6/2006, p. 1.

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EMENTA: Convênio — Secretaria de Estado — Fiscalização pelo TCEMG — Ajuste firmado há mais de 10 anos — Preliminar de ocorrência do instituto da prescrição intercorrente suscitada pelo Ministério Público de Contas — Ausência de regra específica atinente ao prazo prescricional aplicável à função de controle externo — Impossibilidade de aplicação da prescrição aos processos em curso nos Tribunais de Contas*1— Inexistência de documentação necessária ao exame eficaz da aplicação dos recursos repassados — Ausência dos pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo — Inviabilidade de instauração de Tomada de Contas Especial para encaminhamento de documentação — Inefetividade de análise meramente formal — Observância do princípio constitucional da razoável duração do processo — Extinção do processo sem resolução de mérito — Arquivamento do feito.

* Entendimento não pacífico no Tribunal de Contas. Nesse sentido, ver decisão a fls. 224.

CONVÊNIO N. 650.405

[...] decorridos mais de 10 anos do término do prazo de vigência do instrumento objeto de apreciação por parte deste Tribunal de Contas, a instauração de Tomada de Contas Especial para encaminhamento da documentação pertinente tornou-se inviável, impossibilitando a análise material das despesas realizadas em decorrência da execução do convênio. O exame meramente formal de tais atos não se justifica, uma vez que não mais surtirá efeitos já que não será possível a correção de possíveis irregularidades.

RELATOR: CONSELHEIRO EDUARDO CARONE COSTA

Ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo impõe arquivamento dos autos

RELATÓRIO

Cuidam os autos de Convênio n. 62.1.3.0173/98 celebrado em 25/02/98 entre o Estado de Minas Gerais, por meio da Secretaria de Estado da Educação (SEE), e o Município de Central de Minas, visando à manutenção e desenvolvimento de ensino, submetido à fiscalização

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desta egrégia Corte de Contas em atendimento ao disposto no art. 76, XI, da Constituição

do Estado de Minas Gerais, o que atribui ao Tribunal competência para fiscalizar a aplicação

de quaisquer recursos repassados ou recebidos pelo Estado, por força de convênio, acordo,

ajuste ou instrumento congênere.

Visando dar cumprimento à determinação constitucional, esta Corte publicou a Instrução

Normativa n. 03/1994, pela qual foi disciplinado o encaminhamento dos documentos

pertinentes aos contratos, convênios, acordos, ajustes e seus termos aditivos, firmados pela

Administração direta e indireta estadual, para exame da legalidade e acompanhamento da

execução da despesa deles decorrentes, nos casos ali estipulados.

A vigência do citado texto normativo perdurou até o advento da Instrução Normativa n. 01/1996,

que passou a determinar que documentos relativos à realização de receitas e execução

de despesas, bem como os documentos referentes a atos de gestão dos administradores

públicos, quando seu encaminhamento não for exigido pelo Tribunal, deveriam permanecer

no órgão ou entidade, devidamente organizados, para exame in loco.

Compulsando os autos submetidos à deliberação deste egrégio colegiado, verifica-se que, após a

instauração e a juntada dos documentos que os instruem, o processo foi submetido ao exame do

órgão técnico, que, a fls. 94-95, manifestou pela não comprovação da aplicação dos recursos.

A Auditoria emitiu parecer em 19/08/2005 no sentido de que fosse oficiada a Secretaria

de Estado da Educação para que promovesse a instauração de Tomada de Contas Especial,

conforme se verifica a fls. 99-100.

Contudo, cabe esclarecer que, consultando a tramitação dos autos, averiguou-se que, até a

presente data, a Secretaria de Estado da Educação não foi oficiada, portanto, já decorreram

mais de 10 anos da assinatura do convênio, sem que tivesse havido a sua análise por esta

Corte de Contas.

O Ministério Público de Contas, a fls. 103-104, emitiu parecer opinando pela extinção do

processo com resolução de mérito.

Cumpre registrar que o fundamento apresentado pelo douto órgão ministerial para subsidiar

a decisão de extinção dos processos com resolução de mérito se apoia no instituto da

prescrição intercorrente.

É o relatório.

pRELIMINAR

Como preliminar de mérito, imperioso enfrentar a questão da prescrição, suscitada pelo

digno Representante do Ministério Público de Contas, conforme manifestação constante a

fls. 103-104.

A meu sentir, não assiste razão ao digníssimo Procurador, uma vez que entendo não se aplicar

ao caso em tela o instituto da prescrição.

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No ordenamento jurídico pátrio, relativamente à função de controle externo exercido pelos

Tribunais de Contas, não há regra específica quanto ao prazo prescricional.

A Constituição Federal em seu art. 71 estabelece a competência do Tribunal de Contas, entre

elas, está prevista a competência para aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de

despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, inclusive multa proporcional

ao dano causado ao erário. A competência constitucional aplica-se, em razão do princípio

federativo e por força do art. 75, aos demais entes federados.

Portanto, o Tribunal de Contas é órgão com função jurisdicional própria, exceção ao sistema

de jurisdição única, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal.

Segundo o Professor Frederico Pardini, o Tribunal de Contas tem as seguintes funções:

1) função opinativa, consultiva e informativa, pela qual o Tribunal aprecia sem julgar contas e atos, emite pareceres, responde a consultas e fornece dados e estudos realizados; 2) função fiscalizadora, pela qual é exercida fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, verificando a legalidade, legitimidade e economicidade dos atos e contratos; 3) função corretiva, visando corrigir ilegalidades e irregularidades mediante aplicação de penalidades, impugnação e sustação da execução de atos e contratos; d) função jurisdicional, quando o Tribunal, com exclusividade, julga e liquida definitivamente as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, e as contas daqueles que deram causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo financeiro, econômico ou material ao erário e ao patrimônio da União. (PARDINI, Frederico apud COSTA JÚNIOR, Eduardo Carone. As funções jurisdicional e opinativa do Tribunal de Contas. Revista do TCE/MG. Belo Horizonte: TCEMG, v. 39, n. 2, p. 61, abr./jun. 2001).

Nesse contexto, verifica-se que não é cabível a aplicação dos institutos da decadência ou da

prescrição aos processos em curso nos Tribunais de Contas, no exercício do seu poder-dever

de controle da administração constitucionalmente estabelecido.

No Incidente de Uniformização de Jurisprudência n. 724.637, que tratou da aplicabilidade

da prescrição e/ou da decadência aos processos de aposentadoria, reforma e pensão

sujeitos a registro por este egrégio Tribunal, e do qual fui o relator, manifestei meu

entendimento no sentido de que tais institutos não se aplicam aos processos de controle

em curso nas Cortes.

Cabe lembrar, por oportuno, o entendimento do ilustre Auditor Hamilton Coelho, na qualidade

de Conselheiro Substituto, que enfrentou a questão nos autos do Processo Administrativo n.

675.166 da Prefeitura Municipal de Miradouro, emitindo seu voto, farto de fundamentação

doutrinária e jurisprudencial, em sessão da 2ª Câmara do dia 27/05/2010, no sentido de que a

controversa prescrição intercorrente, quando cabível, só se aplica aos processos de execução

ou após a sentença condenatória, apenas tendo sua aplicabilidade efetivamente consolidada

no processo de execução fiscal.

Nesse contexto, comungo da conclusão do digníssimo Auditor “pela inviabilidade

da aplicação da prescrição intercorrente no âmbito dos Tribunais de Contas, firme no

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entendimento de que o instituto é incompatível com o processo cognitivo de contas”,

mantendo-me convicto de que, no exame dos casos concretos sob análise, não cabe a

aplicação da prescrição sem prejuízo da defesa do interesse público, uma vez que se

trata de processos administrativos instaurados no exercício da competência constitucional

desta Corte de Contas.

Finalmente, importante mencionar a manifestação do Conselheiro Sebastião Helvecio,

levada em sessão no dia 20/06/2010, nos autos n. 644.620 e outros, entendendo que o

“Tribunal de Contas está imune à prescrição e decadência no que se refere ao seu mister

constitucional.”

Sendo assim, reitero meu entendimento no sentido da inaplicabilidade dos institutos da

prescrição e da decadência nos processos sujeitos ao exame das Cortes de Contas em

decorrência do exercício das atribuições que constitucionalmente são atribuídas como

próprias.

A preliminar suscitada pelo Relator foi acolhida por unanimidade.

Por seu turno, a Emenda Constitucional n. 45, ao acrescentar o inciso LXXVIII ao art. 5º

da Carta da República, garantiu a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável

duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Sendo assim, essa Corte de Contas, como órgão de controle externo, deve buscar exercer a

fiscalização dos órgãos e entidades jurisdicionados, com eficiência e eficácia, no intuito de

efetivamente exercer a fiscalização contemporânea ou em prazo razoável de atos e ações

que resultem em última análise no pagamento de despesas com recursos públicos.

Nesse sentido, foi o entendimento do ilustre Auditor Hamilton Coelho, na qualidade de

Conselheiro Substituto nos autos do Processo n. 153.959, in verbis:

Com efeito, pode-se inferir que o decurso de tamanho prazo entre a celebração dos referidos instrumentos e um possível julgamento por esta Corte de Contas, além de não se conformar com a mencionada garantia constitucional, representa medida inóxia, comprometendo os resultados que se busca alcançar no controle externo da gestão pública, pois, como repisado, não vislumbro razoabilidade na citação das partes interessadas, nem na realização de diligência para a juntada de documentos e ou justificativas, visando ao exame técnico apenas formal.

O processo, objeto de análise, não foi instruído com toda a documentação necessária

que permitisse um exame eficaz da aplicação dos recursos repassados, quando do seu

encaminhamento a esta Corte, sendo patente a ausência dos pressupostos de constituição e

de desenvolvimento válido e regular.

Além disso, decorridos mais de 10 anos do término do prazo de vigência do instrumento objeto

de apreciação por parte deste Tribunal de Contas, a instauração de Tomada de Contas Especial

para encaminhamento da documentação pertinente tornou-se inviável, impossibilitando a

análise material das despesas realizadas em decorrência da execução do convênio.

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O exame meramente formal de tais atos não se justifica, uma vez que não mais surtirá efeitos já que não será possível a correção de possíveis irregularidades.

Não se pretende, todavia, que a morosidade verificada na fiscalização exercida por esta Corte de Contas neste processo se torne uma rotina, para ensejar o arquivamento de processos, pois o seu dever jurídico de fiscalizar tem morada na Constituição.

Portanto, diante da ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular dos processos em epígrafe, relativo ao Convênio n. 62.1.3.0173/98, se impõe o arquivamento dos autos.

Ressalta-se que, conforme entendimento firmado no Incidente de Uniformização de Jurisprudência n. 796.548, é irrelevante a suscitada divergência entre as Câmaras deste Tribunal, no tocante aos fundamentos jurídicos das propostas de arquivamento (com ou sem apreciação do mérito, conforme se reconheça a prescrição, no primeiro caso, ou a hipótese do art. 176, III, do RITCMG, no segundo), pois, ao final, conforme já asseverado pelo ilustre Auditor Hamilton Coelho, existe consenso em relação à parte dispositiva das decisões, que resultarão no arquivamento dos autos.

Diante de todo o exposto, e estribado no art. 176, III, do Regimento Interno, proponho a extinção do processo, sem resolução de mérito, com o consequente arquivamento do feito, convicto de que decorridos mais de 10 anos do término da vigência do instrumento encaminhado, uma análise meramente formal dos presentes autos não importaria num controle externo efetivo por parte desta Corte de Contas.

O Convênio em epígrafe foi apreciado pela Segunda Câmara na sessão do dia 21/10/10, presidida pelo Conselheiro Eduardo Carone Costa; presentes o Conselheiro Elmo Braz e Conselheiro Sebastião Helvécio, que aprovaram, por unanimidade, o voto exarado pelo relator, Conselheiro Eduardo Carone Costa.

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RECURSO ORDINÁRIO N. 837.515

Como é cediço, a realização de contratação por dispensa de licitação, com fundamento no art. 24, V, da Lei n. 8.666/93, depende da realização de licitação anterior, que não tenha resultado na contratação, em razão da ausência de interessados. Nas palavras de Marçal Justen Filho “pressupõe a validade e regularidade da licitação anterior.”

RELATOR: CONSELHEIRO EDUARDO CARONE COSTA

Tribunal mantém decisão pela aplicação de multa a gestores por violação a ditames da Lei de Licitações

EMENTA: Recurso ordinário — Processo administrativo — Prefeitura Municipal — Aplicação de multa por irregularidades constatadas em procedimentos de dispensa e inexigibilidade de licitação — I. Contratação de empresa de engenharia para reforma de escola por dispensa de licitação, fundada no art. 24, V, da Lei n. 8.666/93. Ausência de comprovação de deserção da licitação anterior. Falta do nome e registro do responsável técnico pelos serviços. Permanência das irregularidades. II. Contratação de serviços de publicidade e divulgação por inexigibilidade de licitação. Vedação expressa no art. 25, II, da Lei n. 8.666/93. Inexistência de justificativa do preço, de comprovação da regularidade fiscal da empresa contratada e de publicação do contrato e termos aditivos. Mantidas as irregularidades. III. Contratação de serviços para fiscalização e acompanhamento de processos junto ao INSS por inexigibilidade de licitação. Não demonstração da singularidade do serviço. Ausência de comprovação da regularidade fiscal da empresa contratada, de recursos para acorrer às despesas e de publicação do contrato — Ausência de fato ou documento novo capaz de ensejar reforma da decisão recorrida — Negado provimento ao recurso.

RELATÓRIO

Trata-se de Petição de Recurso Ordinário subscrita pelos procuradores dos Srs. José Anchieta de Mattos Pereira Poggiali, Alair Lopes de Freitas e Ricardo Rodrigues dos Santos,

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respectivamente, ex-Prefeito Municipal de Timóteo, ex-Secretário Municipal de Administração e ex-Assessor de Comunicação, em face da decisão proferida pela egrégia Primeira Câmara deste Tribunal, em sessão realizada no dia 02/03/2010, nos autos de n. 630.420 — Processo Administrativo, decorrente de Inspeção Ordinária realizada no Município de Timóteo. O Acórdão foi publicado no Minas Gerais de 27/03/2010.

No referido processo, os Exmos. Srs. Conselheiros da 1ª Câmara deste Tribunal julgaram irregulares os procedimentos de dispensa e inexigibilidades, realizados no período de 1º/10/97 a 31/10/99, e aplicaram aos recorrentes multas que perfazem um total de R$6.000,00, bem como determinaram o encaminhamento dos autos ao Ministério Público para a adoção das medidas cabíveis.

De acordo com a decisão proferida no processo principal, foram constatadas as seguintes irregularidades:

a) na Dispensa de Licitação n. 003/98, visando à contratação de empresa de engenharia para a reforma de Escola Municipal, a 1ª Câmara desta Corte de Contas considerou irregular a realização do procedimento com fulcro no art. 24, V, da Lei n. 8.666/93, uma vez que não restou comprovada a deserção do certame anterior, bem como a ausência do nome e do registro do responsável técnico pela obra;

b) o Município realizou a contratação de serviços de publicidade e divulgação, mediante Inexigibilidade n. 001/98, contrariando o disposto no art. 25, II, da Lei n. 8.666/93, bem como não constou do processo a justificativa do preço, a prova de regularidade da contratada junto ao FGTS e os comprovantes de publicação do contrato e termo aditivo;

c) quando da contratação de empresa especializada para fiscalizar e acompanhar administrativamente e judicialmente processos junto ao INSS, foi realizada a Inexigibilidade n. 002/98, na qual não ficou comprovada a singularidade do serviço, a existência de recursos para acorrer à despesa, a regularidade da contratada junto ao FGTS e a publicação do contrato.

Ao interpor o presente recurso, os interessados requereram seu provimento para que os atos administrativos fossem considerados regulares e as multas impostas, canceladas.

Em face da certidão passada pela Secretaria-Geral (fls. 08), recebi a Petição de Recurso Ordinário e determinei o envio dos autos ao Ministério Público de Contas para emissão de parecer, manifestado a fls. 12-14.

A digníssima representante do Ministério Público opinou pelo não provimento do recurso e pela manutenção da decisão recorrida, na íntegra.

É o relatório.

pRELIMINAR

Inicialmente, cumpre registrar que o Recurso Ordinário aviado atende aos requisitos previstos nos arts. 102 e 103 da Lei Complementar n. 102, de 17 de janeiro de 2008, por ser próprio, tempestivo e pela legitimidade dos recorrentes.

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MéRITO

No mérito, em que pesem as alegações apresentadas pelos recorrentes, entendo que,

conforme apurado nos autos do Processo Administrativo de n. 630.420, que originou o

presente Recurso Ordinário, os procedimentos de dispensa e inexigibilidades analisados

apresentam irregularidades insanáveis.

O Tribunal de Contas, ao aplicar a multa aos recorrentes, o fez amparado no art. 85, II, da

Lei Complementar n. 102/2008, pelas irregularidades apuradas na Dispensa n. 003/98 e nas

Inexigibilidades n. 001/98 e 002/98.

Com efeito, o que se apurou nos referidos procedimentos foi a violação de diversos artigos

da Lei n. 8.666/93, ficando comprovada a inobservância dos procedimentos previstos na Lei

de Licitações por parte dos recorrentes.

Ademais, nos termos do parágrafo único do art. 4º da Lei n. 8.666/93, o procedimento licitatório

se caracteriza por uma série de atos administrativos formais, seja ele praticado em qualquer

esfera da Administração Pública, devendo o administrador se submeter aos preceitos legais que

regem sua atuação, alicerçado no princípio da legalidade.

Nas razões recursais, os recorrentes se limitaram apenas a dizer que não houve infração

grave à norma legal, não houve má-fé, dolo ou dano ao erário, que as irregularidades são

de natureza formal e não seriam de responsabilidade dos recorrentes. Ademais, salientaram

que as multas foram constituídas irregularmente, uma vez que os atos não seriam ilegais,

ilegítimos ou antieconômicos, não tendo trazido qualquer documento ou fundamento

específico quanto aos procedimentos que ensejaram a aplicação das multas.

No presente caso, as irregularidades ocorridas, no período de 1º/10/97 a 31/10/99, foram

detectadas por inspeção in loco realizada em novembro de 1999.

Além disso, o Relatório de Inspeção foi convertido no Processo Administrativo n. 630.420,

em 08/09/2000, e ainda no mês de novembro de 1999 os recorrentes foram citados para

apresentar suas justificativas.

No que se refere à Dispensa de Licitação n. 003/98, visando à contratação de empresa de

engenharia para a reforma de Escola Municipal, e realizada com fulcro no art. 24, V, da Lei

n. 8.666/93, os recorrentes não comprovaram a deserção do certame anterior, bem como

não juntaram qualquer documento em que constassem o nome e o registro do responsável

técnico pela obra.

Como é cediço, a realização de contratação por dispensa de licitação, com fundamento no art.

24, V, da Lei n. 8.666/93, depende da realização de licitação anterior, que não tenha resultado

na contratação, em razão da ausência de interessados. Nas palavras de Marçal Justen Filho

“pressupõe a validade e regularidade da licitação anterior.”

Nesse sentido, esta Corte de Contas já se manifestou, conforme se verifica do voto do

Conselheiro Relator Murta Lages no Processo Administrativo n. 496.582, in verbis:

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Processo Administrativo. Contratação direta em caso de licitação deserta deve respeitar condições do edital. Oportuno lembrar o magistério do Prof. Hely Lopes Meirelles, concernente à ausência total de interessados frente à licitação: ‘Se a ausência é total, a Administração fica liberada para contratar com quem não compareceu à licitação, mas foi posteriormente procurado para realizar seu objeto, nas condições estabelecidas no edital ou no convite. Havendo recusa do escolhido para contratar nas condições anteriores, só resta à Administração modificar tais condições e abrir nova licitação. O que não poderá é contratar diretamente com quem não apresente os requisitos exigidos para a habilitação, ou em condições mais favoráveis ao contratado, ou menos vantagens para o serviço público do que as estabelecidas no instrumento convocatório inicial’ (Licitação e contrato administrativo. 11. ed. 1997, p. 92). Como é sabido, a Lei n. 8.666/93, no art. 24, inciso V, estabelece que quando não acudirem interessados à licitação anterior e esta, justificadamente, não puder ser repetida sem prejuízo à Administração, é dispensável a licitação, desde que sejam mantidas todas as condições preestabelecidas.

Destaca-se, ainda, que para a realização de obras e serviços de engenharia, necessário se faz a indicação de responsável técnico devidamente inscrito no órgão competente, o que não foi comprovado pelos recorrentes.

No que tange à contratação de serviços de publicidade e divulgação, mediante Inexigibilidade n. 001/98, verifica-se que houve a violação do art. 25, II, da Lei n. 8.666/93, pois o referido dispositivo veda expressamente a utilização da inexigibilidade de licitação para a contratação de serviços dessa natureza.

Aliás, este egrégio Tribunal de Contas já orientou nesse sentido, conforme se verifica da Consulta n. 440.529, aprovada na sessão do dia 16/04/1997:

Consulta. Impossibilidade de contratação direta de emissora de rádio para anúncios de caráter informativo. [...] o procedimento licitatório é regra geral [...]. Assim, mesmo existindo uma única empresa no Município que preste os serviços de emissão de radiodifusão, há que se fazer a licitação, possibilitando-se que outras rádios de localidades próximas e frequência na região participem do certame, garantindo-se o princípio constitucional da isonomia e proporcionando-se iguais oportunidades aos interessados, tudo isso mediante procedimento administrativo formal que demonstre a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração. [...] a respeito do art. 25, II, da Lei n. 8.666/93, Maria Sylvia Zanella Di Pietro preleciona: ‘Note-se que o legislador quis tornar expresso que não ocorre inexigibilidade para os serviços de publicidade e divulgação; isto pode causar estranheza, porque tais serviços já não são incluídos entre os serviços técnicos especializados do art. 13, o que, por si, exclui a inexigibilidade; ocorre que o legislador quis pôr fim à interpretação adotada por algumas autoridades [...]’ (Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 6. ed., São Paulo: Atlas, 1996, p. 273). Outrossim, é importante registrar o magistério de Hely Lopes Meirelles, acerca do tema: ‘Serviços de publicidade: pondo fim a dúvidas suscitadas anteriormente, a Lei n. 8.666/93 vedou expressamente a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação (art. 25, II, in fine). Dizia-se que os serviços de publicidade implicavam uma grande dose de criatividade, justificando-se a inexigibilidade de licitação pelo seu caráter singular. Dado os abusos cometidos de forma geral pela Administração, que contratava sem licitação empresas de publicidade, sem as características de notória especialização, ou mesmo para o simples repasse de divulgação de notícias oficiais, a nova lei proibiu essa prática. E a sua preocupação foi de tal ordem que, logo no art. 12, ao determinar

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a incidência da lei na contratação de serviços, fez constar expressamente inclusive os de publicidade’ (Meirelles, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 259) (Consulta n. 440.529. Rel. Conselheiro Fued Dib. Sessão do dia 16/04/1997).

Além disso, não constaram no processo a justificativa do preço, a prova de regularidade da contratada junto ao FGTS, tratando-se de irregularidades insanáveis.

Relativamente à Inexigibilidade n. 002/98, realizada com vistas à contratação de empresa especializada para fiscalizar e acompanhar administrativamente e judicialmente processos junto ao INSS, verifica-se que não ficou comprovada a singularidade dos serviços prestados, e que a contratação foi perpetrada sem a previsão de recursos suficientes para acorrer às despesas, permanecendo a irregularidade.

A comprovação da natureza singular dos serviços é requisito indispensável para a realização de inexigibilidade, com fulcro no art. 25, II, da Lei n. 8.666/93, não significando ausência da pluralidade de prestadores, como equivocadamente entendeu o Procurador Municipal, a fls. 199-200, do Processo n. 630.420, pois com tal fundamento legal seria o art. 25, I, da Lei n. 8.666/93.

A contratação realizada por Inexigibilidade n. 002/98 se deu sem a existência de recursos suficientes para o pagamento do valor contratado, o que configura a violação ao disposto no inciso III, § 2º, do art. 7º, da Lei n. 8.666/93.

Nos processos de Dispensa e de Inexigibilidade, a regularidade fiscal da contratada deve ser verificada pela Administração para possibilitar uma contratação regular. A ausência de comprovação, pela contratada, de sua regularidade junto ao FGTS configura irregularidade insanável, uma vez que, a teor do disposto no art. 2º da Lei Federal n. 9.012/95, as pessoas jurídicas em débito com o FGTS não poderão celebrar contratos de prestação de serviços com órgão da Administração.

Nesse sentido, é o entendimento já firmado por esta Corte de Contas, in verbis:

Processo Administrativo. Regularidade fiscal. [...] entendo ser uma obrigação da Administração Pública promover não só a verificação prévia da regularidade fiscal do contratado, mas também, no curso da execução de qualquer contrato, como contribuição efetiva do administrador municipal ao controle do cumprimento de disposições essenciais. Além disso, a regularidade junto ao INSS é exigência que ultrapassa a Lei de Licitações, encontrando previsão constitucional no art. 195, § 3º, da CR/88 [...]. Não bastasse, ainda, nesse caso, o ferimento de norma constitucional, a falta da cobrança da regularidade, perante o INSS, contraria, também, o art. 47 da Lei n. 8.212/91, com redação dada pela Lei n. 9.032/95. Com relação à ausência da comprovação de se estar em dia com o FGTS, esta viola o disposto no art. 2º da Lei Federal n. 9.012/95 (Processo Administrativo n. 715.979. Rel. Conselheira Adriene Andrade. Sessão do dia 30/10/2007).

No que tange à ausência de publicação de contratos e termos aditivos, detectados na Dispensa n. 003/98 e nas Inexigibilidades n. 001/98 e 002/98, configura infração ao disposto no art. 61 da Lei n. 8.666/93, que não foi suprida pelos recorrentes porque não apresentaram os respectivos comprovantes de publicação, tratando-se, portanto, de irregularidade insanável.

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Diante de todo o exposto, e não tendo os recorrentes apresentado nenhum fato ou documento que pudesse ensejar a mudança no entendimento desta egrégia Corte de Contas acerca dos fatos apurados, nego provimento ao recurso interposto, mantendo a decisão ora recorrida.

É o meu entendimento.

O Recurso Ordinário em epígrafe foi apreciado pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 08/09/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Elmo Braz, Conselheiro Substituto Licurgo Mourão, Conselheira Adriene Andrade, Conselheiro Sebastião Helvecio e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz, que aprovaram o voto exarado pelo relator, Conselheiro Eduardo Carone Costa. Vencido o Conselheiro Substituto Licurgo Mourão.

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CONSULTA N. 812.412

Despesa total com pessoal: inclusão dos gastos com reajuste e revisão geral anual de vencimentos e do valor do Imposto de Renda Retido na Fonte

[...] é cediço que o princípio do orçamento bruto está consagrado no art. 6º da Lei Federal n. 4.320/64 e traduz a ideia de que todas as receitas e despesas devem constar no orçamento em seus valores brutos, vedadas quaisquer deduções. Portanto, esse princípio obriga o registro — de natureza escritural — do IRRF como despesa de pessoal, já que esse imposto integra o salário bruto pago pela Administração Pública.

RELATOR: CONSELHEIRO EDUARDO CARONE COSTA

RELATÓRIO

Tratam os autos da Consulta n. 812.412, subscrita pelo Prefeito Municipal de Carmo

do Paranaíba, Helder Costa Boaventura, por meio da qual apresenta os seguintes

questionamentos:

1 — Os gastos com reajuste e com a revisão geral anual de vencimentos, prevista no inciso X do art. 37 da Constituição, devem ser considerados na despesa total com pessoal, para efeitos do cálculo do comprometimento da Receita Corrente Líquida?

2 — É possível a exclusão dos valores referentes ao Imposto de Renda Retido na Fonte do somatório dos gastos com pessoal, constante no art. 18 da LRF?

Do exame dos pressupostos de conhecimento da presente consulta, ressai que a autoridade

consulente tem legitimidade para apresentá-la, consoante as disposições do art. 210, inciso

I, do Regimento Interno deste Tribunal, aprovado por meio da Resolução TC n. 12/2008.

Cumpre observar que a matéria consubstanciada nas questões, acima enumeradas, guarda

adequação com o disposto no art. 76, inciso IX, da Constituição do Estado de Minas Gerais,

EMENTA: Consulta — Prefeitura Municipal — Despesa total com pessoal (art. 18 da LRF) — I. Gastos com reajuste e revisão geral anual de vencimentos. Inclusão. Despesa típica de pessoal. Art. 37, xV, da CR/88. II. Imposto de Renda Retido na Fonte. Inclusão. Observância do princípio do orçamento bruto. Art. 6º da Lei Federal n. 4.320/64.

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segundo o qual compete à Corte de Contas emitir parecer em consulta sobre matéria que tenha repercussão financeira, contábil, orçamentária, operacional e patrimonial.

Demais disso, entendo que, em tese, é de todo pertinente que esta egrégia Corte esclareça as dúvidas suscitadas pelos jurisdicionados e estabeleça as diretrizes que poderão auxiliá-los na condução das medidas e ações oriundas da gestão administrativa, viabilizando o cumprimento da missão pedagógica afeta aos Tribunais de Contas.

Desse modo, presentes os requisitos de admissibilidade estatuídos nas disposições regimentais em vigor, recebo a presente consulta e o faço estribado na dicção do art. 211 do Regimento Interno.

Em 9 de fevereiro de 2010, recebi a referida consulta e encaminhei os autos à douta Auditoria, que emitiu o parecer a fls. 07-20.

É o relatório.

MéRITO

No mérito, respondo, em tese, à primeira indagação apresentada, nos termos do parecer do ilustre Auditor Hamilton Coelho, que assim expressou:

O primeiro questionamento refere-se à inclusão dos ‘gastos com reajuste e com a revisão geral anual de vencimentos, prevista no inciso X do art. 37 da Constituição’ no somatório da despesa com pessoal descrito no art. 18 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Recordo que a aludida revisão anual tem por fim preservar o poder de compra da remuneração do servidor. Assim leciona a célebre administrativista Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

‘A revisão anual, presume-se que tenha por objetivo atualizar as remunerações de modo a acompanhar a evolução do poder aquisitivo da moeda (destaquei); se assim não fosse, não haveria razão para tornar obrigatória a sua revisão anual, no mesmo índice e na mesma data para todos. Essa revisão anual constitui direito dos servidores, o que não impede revisões outras, feitas com o objetivo de reestruturar ou conceder melhorias a carreiras determinadas, por outras razões que não a de atualização do poder aquisitivo dos vencimentos e subsídios’ (Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 500).

Os acréscimos decorrentes da revisão obrigatória ou de reajuste estatuído em lei serão incorporados aos vencimentos do servidor de maneira definitiva, por força do estabelecido no inciso XV do já citado art. 37 da Constituição da República:

‘Art. 37 [...]

[...]

XV — o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I’ (destaquei).

Incorporados aos subsídios e vencimentos dos servidores, tais valores não poderiam ser contabilizados separadamente. Configurarão, necessariamente, despesa típica de pessoal, conforme descrição do art. 18 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que indica ‘quaisquer espécies remuneratórias, tais como vencimentos e vantagens, fixas

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e variáveis, subsídios [...] inclusive adicionais, gratificações, horas extras e vantagens pessoais’. Por conclusão, o crescimento da despesa necessariamente será considerado na apuração do limite global de despesas com pessoal do ente, fixado no art. 19 da LRF.

A Lei de Responsabilidade Fiscal traz ainda disposições específicas quanto à revisão anual obrigatória, consignadas no art. 22, parágrafo único, I, e no art. 71 da própria Lei de Responsabilidade Fiscal. O primeiro dispositivo excepciona a revisão, de fundo constitucional, do “congelamento” de despesas a que se sujeita o órgão quando atinge 95% do limite de gastos com pessoal. Já o segundo tinha por fim limitar a elevação de gastos nos exercícios subsequentes à entrada em vigor da LRF.

Nenhum dos dispositivos, contudo, que busca preservar o poder de compra dos vencimentos do servidor a despeito de qualquer contingência, prevê hipótese de subtração das despesas decorrentes da revisão geral anual da remuneração do somatório de gastos com pessoal.

Acerca da segunda indagação, que versa sobre a possibilidade de “exclusão dos valores referentes ao Imposto de Renda Retido na Fonte do somatório dos gastos com pessoal, constante no art. 18 da LRF”, já me posicionei sobre o tema em outra assentada.

Com efeito, o Processo n. 658.165, que trata da Prestação de Contas da Câmara Municipal de Esmeraldas do exercício de 2001, foi por mim relatado nas sessões da Primeira Câmara datadas de 16/12/2003 e 27/04/2004, quando me manifestei sobre a matéria nos seguintes termos:

Segundo a leitura que faço das disposições contidas no § 1º do art. 29-A da Carta Magna, dispositivo acrescido ao texto constitucional pela Emenda n. 25/2000, o legislador instituiu o referido limite para controlar o montante de recursos financeiros que, efetivamente, é desembolsado pelas Câmaras Municipais com a respectiva folha de pagamento, incluídos os subsídios dos vereadores.

Por sua vez, também é sabido que o produto da arrecadação do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a qualquer título, pelos entes municipais, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem pertence aos respectivos municípios, nos termos do inciso I do art. 158 da Carta Política da República de 1988.

Dessa forma, e considerando que, a meu juízo, o enfoque do legislador é eminentemente financeiro, razão pela qual o intérprete não deve se ater apenas ao aspecto contábil; e, ainda, que o referido tributo constitui receita municipal, para aferição do limite ora sob exame deve ser deduzido o montante correspondente ao Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) do total bruto da folha de pagamento da Câmara Municipal.

Vale dizer, e apenas para efeito de cálculo do limite em questão, embora a despesa com a folha de pagamento, incluído o subsídio dos vereadores, seja contabilizada pelo valor bruto, como salientou o órgão técnico, o que é, realmente, despendido pelo erário — sob o enfoque financeiro — constitui o valor bruto da folha menos o IRRF.

E por que nessa análise, como se poderá cogitar, não são consideradas outras consignações descontadas na folha de pagamento dos agentes públicos, como, por exemplo, contribuição previdenciária, mas apenas o Imposto de Renda Retido na Fonte?

A razão é singela, porque o Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF), nesse caso específico, e como já salientado, constitui receita municipal, por força de mandamento constitucional.

Ou seja, a Câmara Municipal, como unidade do orçamento municipal, e por não ser órgão arrecadador de receitas, faz a retenção devida do IRRF, observada a legislação

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pertinente, e repassa os valores retidos de seus agentes públicos ao Executivo, para atendimento do princípio da unidade da tesouraria.

Nesse caso, e isso é de clareza solar, o valor efetivamente despendido pelo erário, ou o valor da despesa real da edilidade, em termos financeiros, é o valor bruto da folha de pagamento deduzido o montante do Imposto de Renda Retido na Fonte dos agentes públicos que compõem a respectiva folha, pois o valor desse tributo que é retido retorna aos cofres municipais como receita pública.

[...]

Por tudo isso, não acolho a metodologia utilizada pelo órgão técnico para aferição do limite previsto no § 1º do art. 29-A da Constituição Federal, porquanto, repita-se, o fim colimado pelo legislador é eminentemente financeiro e, não, escritural.

Por essa razão, e para efeito de cálculo desse limite, não posso deixar de deduzir do valor bruto da folha de pagamento, pelo menos a minha consciência não permite, o montante retido a título de IRRF, haja vista que o valor do vencimento ou do subsídio desembolsado pelos cofres públicos é subtraído desse imposto, que constitui receita pública.

Frise-se que, como bem salientou o douto Auditor, “A questão levantada é polêmica, tem sido

objeto de controvérsia entre estudiosos e provocado decisões divergentes entre as cortes

de contas do país.” Entretanto, diversamente do entendimento esposado pela Auditoria,

mantenho minha convicção de que é possível a dedução dos valores referentes ao Imposto

de Renda Retido na Fonte do somatório dos gastos com pessoal previsto no art. 18 da LRF.

Nestes termos, acolho o parecer do ilustre Auditor apenas na parte relativa à primeira

indagação e respondo afirmativamente quanto ao segundo ponto, entendendo como

esclarecidas as dúvidas aventadas na inicial.

Em sendo aprovado, este pronunciamento deverá ter cópia encaminhada à Biblioteca desta

Corte, responsável pelo gerenciamento do banco de dados que disponibiliza a pesquisa das

consultas para as providências cabíveis.

Na sessão do dia 23/06/10 pediu vista dos autos o Conselheiro Antônio Carlos Andrada.

Retorno de VistaCONSELHEIRO ANTÔNIO CARLOS ANDRADA

RELATÓRIO

Versam os autos sobre consulta formulada pelo Sr. Helder Costa Boaventura, Prefeito

Municipal de Carmo do Paranaíba, à época, nos seguintes termos, em síntese:

1 — Os gastos com reajuste e com a revisão geral anual de vencimentos, prevista no inciso

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X do art. 37 da Constituição, devem ser considerados na despesa total com pessoal, para efeitos do cálculo do comprometimento da Receita Corrente Líquida?

2 — É possível a exclusão dos valores referentes ao Imposto de Renda Retido na Fonte do somatório dos gastos com pessoal, constante no art. 18 da LRF?

O relator, Conselheiro Eduardo Carone Costa, enviou a consulta à Auditoria para que se pronunciasse sobre o assunto.

Sobre a revisão geral anual, o ilustre Auditor Hamilton Coelho citou o inciso XV do art. 37 da Constituição da República, que garante o direito de revisão geral anual para os servidores públicos. O ilustre Auditor opinou, ainda, no sentido de que os valores correspondentes a essa revisão integram a despesa total de pessoal para fins de verificação dos limites impostos pela LRF. No entanto, ressalvou que tais valores não estão sujeitos a contingenciamento, caso o percentual de alerta de 95% do limite tenha sido atingido ou ultrapassado o percentual máximo de aumento da despesa total com pessoal, conforme dispõem o art. 22, parágrafo único, inciso I, e o art. 71 da LRF.

No que diz respeito ao Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF), o ilustre Auditor ressaltou que a questão sobre a exclusão do IRRF da despesa total com pessoal é controversa, tendo sido alvo de debates no IV Fórum IRB/PROMOEX (2007). Por fim, o Auditor concluiu que o IRRF não pode ser excluído da despesa total com pessoal, dado que tal exclusão não está contemplada pelo rol taxativo que consta no inciso VI, do § 1º, do art. 19 da LRF.

O Conselheiro Relator, Eduardo Carone Costa, expressou seu entendimento, em relação ao primeiro questionamento, no mesmo sentido do Auditor Hamilton Coelho.

Em relação ao segundo questionamento, o Conselheiro Eduardo Carone Costa se posicionou de forma contrária ao parecer da douta Auditoria, de forma a considerar possível a exclusão do IRRF da despesa total com pessoal.

Após a apresentação do voto do Conselheiro Relator, diante das minhas dúvidas a respeito do assunto, pedi vista dos autos, para tomar maior conhecimento do tema e, dessa forma, poder emitir meu juízo.

É o relatório, em síntese.

MéRITO

Em relação ao primeiro questionamento, o parecer da douta Auditoria esclareceu que os valores correspondentes à revisão geral anual são considerados no cálculo da despesa total com pessoal, mas não estão sujeitos a contingenciamento, caso a despesa total com pessoal ultrapasse o percentual de alerta de 95% do limite imposto pela LRF. O Conselheiro Relator Eduardo Carone Costa corroborou com esse entendimento.

Na mesma linha, afino-me com o parecer da Auditoria e com o Conselheiro Relator Eduardo Carone Costa. No entanto, entendo ser importante a realização de uma diferenciação entre

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o reajuste e a revisão geral anual.1 De fato, ambos integram a Despesa Total com Pessoal porque não estão expressamente previstos como exclusões da despesa total com pessoal, conforme o inciso VI,2 do § 1º, do art. 19 da LRF. No entanto, ao contrário do reajuste, a revisão geral anual3 pode ser realizada mesmo quando ultrapassado o limite prudencial4 de 95% do limite da despesa total com pessoal, conforme o inciso I do art. 22 da LRF e a 3ª edição do Manual de Demonstrativos Fiscais5 da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), volume III, válido para o exercício de 2011, aplicado à União, Estados e Municípios, mais uma vez na linha do nobre relator.

Em relação ao IRRF, cumpre assinalar que, na sessão do Tribunal Pleno de 18/08/2010, ficou consignada uma mudança de entendimento desta Corte acerca da contabilização de valores relativos ao desconto do IRRF, de sorte que, segundo o decisum, tais retenções devem, para todos os efeitos, integrar tanto a base de receita do ente como também compor os gastos totais com pessoal.

Em face do deliberado naquela assentada, gostaria apenas de reforçar os argumentos que justificam a inclusão do Imposto de Renda das despesas totais com pessoal do ente federativo.

Nessa linha de raciocínio, vale o registro do Auditor Hamilton Coelho que, em seu parecer, se posicionou de forma contrária à exclusão desse imposto da despesa total com pessoal, citando os estudos e debates desenvolvidos no âmbito do IV Fórum do Instituto Ruy Barbosa (IRB) — Programa de Modernização do Sistema de Controle Externo dos Estados, Distrito Federal e Municípios Brasileiros (PROMOEX).6 Naquele encontro, o representante do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul (TCE/RS), citando o Parecer n. 69/2000 e o Parecer Coletivo n. 02/2002, defendeu que o registro do Imposto de Renda é meramente escritural, não havendo ingresso financeiro efetivo de receita.

A representante da Secretaria do Tesouro Nacional rebateu o argumento usado pelo TCE-RS, dizendo que a LRF não trata de matérias exclusivamente sob a ótica financeira, mas também orçamentária. Nesse sentido, a representante da STN afirmou, ainda, que o registro de

1 No que diz respeito ao conceito de revisão geral anual e à definição de reajuste, a Consulta n. 786.092, de minha relatoria, sessão do dia 16/09/2009, contém maiores esclarecimentos.

2 Art. 19. [...] § 1° Na verificação do atendimento dos limites definidos neste artigo, não serão computadas as despesas: I — de indenização por demissão de servidores ou empregados; II — relativas a incentivos à demissão voluntária; III — derivadas da aplicação do disposto no inciso II do § 6º do art. 57 da Constituição; IV — decorrentes de decisão judicial e da competência de período anterior ao da apuração a que se refere o § 2° do art. 18; V — com pessoal, do Distrito Federal e dos Estados do Amapá e Roraima, custeadas com recursos transferidos pela União na forma dos incisos XIII e XIV do art. 21 da Constituição e do art. 31 da Emenda Constitucional n. 19; VI — com inativos, ainda que por intermédio de fundo específico, custeadas por recursos provenientes: a) da arrecadação de contribuições dos segurados; b) da compensação financeira de que trata o § 9º do art. 201 da Constituição; c) das demais receitas diretamente arrecadadas por fundo vinculado a tal finalidade, inclusive o produto da alienação de bens, direitos e ativos, bem como seu superávit financeiro.

3 A revisão geral anual é referenciada no inciso X do art. 37 da Carta Magna.

4 Apesar disso, de acordo com a Lei Federal n. 10.331, de 18 de dezembro de 2001, a revisão geral anual está condicionada ao atendimento dos limites da despesa total com pessoal, no que diz respeito aos servidores públicos federais.

5 Ver p. 30. Disponível em: <http://www.tesouro.fazenda.gov.br/legislacao/download/contabilidade/port_249/MDF_Volume_ III_3edicao. pdf>.

6 O relato minucioso desse encontro, no que diz respeito ao IRRF, consta em um estudo em desenvolvimento na Assessoria Técnica de Estudos e Normatização desta Corte de Contas.

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valores líquidos, ou seja, excluídos do IRRF, fere o princípio do orçamento bruto, e que o art. 19 da LRF não prevê o IRRF como item a ser excluído da despesa total com pessoal. O mesmo posicionamento foi assumido pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pelo Ministério Público da União (MPU).

Nesses termos, é cediço que o princípio do orçamento bruto7 está consagrado no art. 6º da Lei Federal n. 4.320/64 e traduz a ideia de que todas as receitas e despesas devem constar no orçamento em seus valores brutos, vedadas quaisquer deduções. Portanto, esse princípio obriga o registro — de natureza escritural — do IRRF como despesa de pessoal, já que esse imposto integra o salário bruto pago pela Administração Pública.

Nesse particular, é necessário que se faça uma distinção. De fato, o real contribuinte do Imposto de Renda é o servidor ou o empregado. Dessa forma, quando as empresas privadas realizam a retenção e o recolhimento do IRRF aos cofres públicos, há o efetivo ingresso financeiro de receita na esfera governamental, mas, no caso em tela, quando o ente governamental ocupa, também, a figura de empregador, não ocorre a movimentação financeira, em sentido estrito do termo, porque é o próprio poder público o devedor e o destinatário da receita proveniente desse imposto.

Assim, para efeito de escrituração, ao mesmo tempo em que o IRRF é despesa ao compor o salário bruto do servidor ou empregado, é também registrado como receita do mesmo ente.

Tendo em vista que a Lei de Responsabilidade Fiscal não revogou dispositivos da Lei Federal n. 4.320/64, as disposições de ambas as leis devem ser harmonizadas. Dessa forma, ao interpretar a Lei de Responsabilidade Fiscal, em especial os limites por ela descritos, o princípio do orçamento bruto não pode ser desconsiderado. Isso implica considerar o IRRF no cálculo da despesa de pessoal.

Está aí o cerne da questão. Nestes termos, peço vênia ao relator para discordar de seu posicionamento no sentido de adotar apenas o enfoque financeiro ao considerar o IRRF somente como receita do ente público.

Vale ainda mencionar que, no retorno de vista da Consulta n. 676.672, esclareci que a retenção do IRRF pela Administração Pública não significa que não houve o correspondente gasto. Na oportunidade, posicionei-me no seguinte sentido:

[...] Tenho que a obrigação dos entes públicos, ante o princípio do equilíbrio fiscal e o princípio constitucional da eficiência, é computar como despesa com pessoal todos os gastos [e consequentemente o IRRF] empreendidos em razão da existência dos servidores e empregados públicos. Isso porque os limites quanto às despesas com pessoal foram criados buscando impedir que a arrecadação estatal seja completamente absorvida pelo mero funcionamento da “máquina” da Administração.

[...]

Ademais, trazemos hoje ao Plenário documento elaborado pela Diretoria de Finanças desta Corte, que atesta que nos relatórios de gestão fiscal elaborados pelo próprio TCE/MG os valores referentes ao Imposto de Renda Retido na Fonte (folha de pagamento dos servidores) são computados no montante da despesa bruta com pessoal do Tribunal.

7 Vander Gontijo, COFF/CD, Brasília, 2004. Disponível em: <http://www.profpito.com/princorc.html>.

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Nesse sentido, a exclusão do IRRF da despesa total com pessoal poderia distorcer a finalidade da LRF de limitar o comprometimento dos recursos públicos com despesas de natureza remuneratória, dado que o IRRF integra o salário bruto do servidor ou empregado.

Acrescento, ainda, conforme disposição expressa da 3ª edição do Manual8 de Demonstrativos Fiscais da Secretaria do Tesouro Nacional, volume III, que o IRRF não pode ser deduzido do cálculo da despesa total com pessoal. Esse manual esclareceu quais despesas não poderiam ser deduzidas para fins de verificação dos limites da LRF: a) despesas com inativos e pensionistas custeadas com recursos não vinculados; b) valores transferidos em decorrência da compensação financeira entre diversos regimes de previdência; c) o Imposto de Renda Retido na Fonte, que constitui, em realidade, receita tributária do ente empregador.

Não se pode olvidar que a STN é competente para estabelecer os parâmetros e referenciais contábeis não só para a União, mas também para os Estados e Municípios brasileiros. Isso é importante, inclusive, para evitar um tratamento desigual aos jurisdicionados, na medida em que uma orientação desta Corte de Contas poderia estar em flagrante oposição com uma orientação da STN, dificultando a obtenção de recursos federais por um determinado município, situação esta que já foi verificada na prática.

Na mesma linha, no site9 do Tribunal de Contas de São Paulo é possível encontrar a Nota n. 1097/2007/CCONT-STN,10 da Secretaria do Tesouro Nacional, que esclarece vários aspectos sobre o cálculo da Despesa Total com Pessoal para fins de verificação dos limites impostos pela LRF. Sobre o IRRF, essa nota esclarece que:

[...] 47. Tem se tornado frequente a prática de excluir o Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) dos servidores, tanto da receita como da despesa, como forma de flexibilizar os limites aplicáveis à DTP [Despesa Total com Pessoal]. O argumento para tal exclusão é que, por ser tributo de competência da União, não deve nem compor a receita corrente de estado ou município. Esse argumento não encontra abrigo à luz do que determina a Constituição, nos arts. 157 e 158.

48. Não há dúvidas, portanto, quanto à inclusão do IRRF na RCL [Receita Corrente Líquida], cabendo apenas discutir se o registro deve dar-se como transferência da União ou como receita tributária dos demais entes (Portaria STN n. 212/2001), já que o recurso não passa pelo orçamento da União e é diretamente retido pelos Estados e Municípios. De outro, o IRRF não faz parte do conceito de DTP [Despesa Total com Pessoal], razão que já seria bastante para atestar o absurdo da exclusão. Não bastasse isso, o IRRF também não está mencionado nas exclusões listadas exaustivamente. O mesmo entendimento parece ser compartilhado pelo Procurador-Geral da República que impetrou a ADI n. 3.484 contra o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte- TCE/RN por excluir o IRRF dos servidores públicos do cômputo da DTP [Despesa Total com Pessoal]. Após a arguição de inconstitucionalidade, o TCE/RN revogou o dispositivo impugnado fazendo com que ficasse a ADI prejudicada por perda superveniente de objeto. Caminhos idênticos foram percorridos por ADI impetradas contra os Tribunais de Contas de Rondônia e Roraima. Ressalte-se que, em todos os casos, o STF não se recusou a julgar a ação; apenas não pode fazê-lo devido à revogação citada. A prática, que parece afrontar a capacidade de defesa

8 Ver p. 14.

9 Disponível em: <www.tcm.sp.gov.br/promex_sc/documentos/NotaSeleneComPessoal5.doc>.

10 Coordenação Geral de Contabilidade da Secretaria do Tesouro Nacional.

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da lei pelo Judiciário brasileiro, cedo ou tarde terá fim. O Grupo entendeu que não há sustentação legal para a exclusão do IRRF e que, eventualmente, o mesmo recurso a ADI poderia ser trilhado com relação a outras burlas na aplicação da LRF.

Apenas para fins de informação adicional, os últimos relatórios11,12 de gestão fiscal (referentes ao 1º quadrimestre de 2010) desta Corte de Contas e dos Poderes do Estado de Minas Gerais não apresentaram menção sobre a exclusão do IRRF do cálculo da despesa total com pessoal ou da receita corrente líquida.

Assim, estes são os esclarecimentos que presto ao consulente e aos meus pares.

Conclusão: diante do exposto, concluo que tanto o reajuste como a revisão geral anual integram a Despesa Total com Pessoal porque não estão expressamente previstos como exclusões da despesa total com pessoal, conforme o inciso VI, do § 1º, do art. 19 da LRF. Sobre o Imposto de Renda Retido na Fonte, reitero o meu posicionamento já explicitado na Consulta n. 676.672 sobre a impossibilidade de excluir esse imposto do cálculo da despesa total com pessoal.

É o parecer que submeto à consideração de meus pares.

11 Disponível em: <http://www.tce.mg.gov.br/IMG/PrestaContas/RGF/2010/RGF%20-%201%C2%BA%20quadrim%20 2010.pdf>.

12 Disponível em : <http://www.fazenda.mg.gov.br/governo/contadoria_geral/gestaofiscal/ano2010/1quadrimestre2010.pdf>.

A Consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 1º/09/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Elmo Braz, Conselheiro Antônio Carlos Andrada, Conselheira Adriene Andrade e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz que: quanto ao item 1, aprovaram por unanimidade o parecer exarado pelo relator, Conselheiro Eduardo Carone Costa; e, quanto ao item 2, aprovaram o voto vista proferido pelo Conselheiro Antônio Carlos Andrada, vencido o Conselheiro Relator. Impedido o Conselheiro Substituto Hamilton Coelho.

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Tribunal manifesta-se em questões afetas à utilização de receitas de capital para aquisição de novos bens; aumento do subsídio de vereadores; estabelecimento de cota mensal de combustível e conversão de férias-prêmio de servidor municipal em espécie

CONSULTA N. 780.944

EMENTA: Consulta — Câmara Municipal — I. Utilização de valores oriundos de leilões de bens móveis para aquisição de veículos. Possibilidade. Classificação como receita de capital. Aplicação das receitas auferidas na aquisição de novos bens ou realização de investimentos. II. Subsídio de vereadores. a) Aumento. Competência privativa da Câmara Municipal. Observância do disposto no art. 29, VI, da CR/88. Obediência ao princípio da anterioridade. b) Recomposição para preservação do poder aquisitivo. Possibilidade de correção no curso da legislatura. Utilização de índice oficial de aferição da inflação no período. Impossibilidade de superação do índice apurado para a inflação anual. Observância aos dispositivos constitucionais e legais e aos limites de despesas totais e de pessoal. III. Estabelecimento de cota mensal para fornecimento de combustível para vereadores. Impossibilidade. Configuração de aumento inconstitucional de subsídio. Natureza remuneratória do benefício. IV. Servidor municipal. Conversão de férias-prêmio vencidas em espécie. Possibilidade. Assunto de interesse local. Necessidade de previsão em lei municipal.

[...] Nessa ordem de ideias, insta esclarecer que, uma vez que a possibilidade de conversão em pecúnia das férias-prêmio do servidor público pode ser classificada como assunto de interesse estritamente local, nos termos do que versam a Constituição Federal e a doutrina colacionada, não há subordinação dos municípios ao definido no âmbito estadual, tendo cada esfera da federação autonomia para legislar sobre o tema no que tange aos seus próprios servidores.

RELATOR: CONSELHEIRO ELMO BRAZ

ASS

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MG

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RELATÓRIO

Tratam os autos de consulta formulada por Irone Bento Dias Oliveira, Presidente da Câmara

Municipal de Mata Verde, solicitando orientações para as seguintes questões:

1 — A Câmara Municipal pode usar os valores oriundos do leilão para aquisição de novo

veículo?

2 — A Câmara pode aumentar os valores correspondentes à remuneração dos

vereadores?

3 — A Câmara Municipal pode estabelecer uma cota mensal para fornecimento de

combustível para os vereadores?

4 — Há possibilidade de conversão em espécie de férias-prêmio vencidas, de

funcionários?

A Auditoria manifestou-se a fls. 6-13, preliminarmente, pelo conhecimento da consulta e, no

mérito, respondeu as dúvidas suscitadas, reportando-se a consultas anteriores, respondidas

por esta Casa.

É o relatório.

pRELIMINAR

A parte é legítima, nos termos do art. 210, XI, da Resolução n. 12/2008 e as dúvidas levantadas

são de repercussão orçamentária, financeira, contábil, patrimonial e operacional, sendo,

portanto, afeta à competência deste Tribunal.

Assim, conheço, em preliminar, da presente consulta para, no mérito, examinar as dúvidas

suscitadas em tese.

MéRITO

As questões apresentadas nesta consulta já foram objeto de exame por este Tribunal, em

diversas oportunidades e, assim, passo a respondê-las exclusivamente baseando-me nas

respostas dadas por esta Corte de Contas.

1 — A Câmara Municipal pode usar os valores oriundos do leilão para aquisição de novo veículo?

A Consulta n. 720.900, de relatoria do Conselheiro Antônio Carlos Andrada, apreciada na

sessão de 27/05/09, em síntese foi respondida no sentido de que é possível empregar a

receita auferida com a alienação, via leilão, de bens móveis, classificada como Receita de

Capital, na aquisição de novos veículos.

Cumpre registrar que, naquela oportunidade, destacou-se que a receita auferida de alienação

de bens móveis via leilão será classificada como Receita de Capital para aquisição de novos

veículos.

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Tal operação está em consonância com o que dispõe o art. 44 da Lei Complementar n.

101/2000, que veda “a aplicação da receita de capital derivada de alienação de bens e

direitos que integram o patrimônio público para o financiamento de despesas correntes, salvo

se destinados por lei ao regime de previdência social, geral e próprio dos servidores.”

Conclui-se, portanto, que sendo receitas de capital o produto de alienação de bens, tais

receitas devem ser utilizadas na aquisição de outros bens, ou na realização de investimentos,

buscando, dessa forma, impedir a dilapidação do patrimônio público.

2 — A Câmara pode aumentar os valores correspondentes à remuneração dos vereadores?

É entendimento deste Tribunal, que compete à Câmara Municipal, privativamente, fixar os

subsídios de seus membros, mediante Resolução, numa legislatura para valer na seguinte,

nos termos do inciso VI do art. 29 da Constituição da República de 1988.

Assim, o reajuste dos subsídios dos vereadores só produzirá efeito na legislatura seguinte.

Quanto à lei que promover o aumento de tais subsídios, esta não pode ser editada depois

do pleito eleitoral municipal. Caso a legislação municipal não tenha fixado outro prazo,

deverá a lei que alterou tais subsídios ser editada até 30 de setembro do último ano da

legislatura.

Já para a revisão dos subsídios, este Tribunal tem entendimento diferente, já que o reajuste

tem por objetivo preservar o poder aquisitivo da moeda em face da inflação anual, com base

em índice oficial de aferição de perda do valor aquisitivo da moeda.

Por esse motivo, tal revisão dos valores dos subsídios dos agentes políticos pode ser feita

anualmente, mediante previsão no ato normativo que fixou a remuneração e com base em

índice oficial de perda do valor aquisitivo da moeda, desde que observados os dispositivos

constitucionais e legais que impõem limites ao valor do subsídio dos edis, bem como às

despesas totais e de pessoal da Câmara de Vereadores.

Esse entendimento está consolidado nas Consultas n. 704.423 e 645.196, de relatoria do

Conselheiro Moura e Castro, e n. 657.620 e 734.297, de relatoria do Conselheiro Eduardo

Carone, respondidas, respectivamente, nas sessões de 16/08/06, 28/11/01, 11/09/02 e

18/07/07 e aprovadas à unanimidade.

Além disso, esta matéria encontra-se sumulada conforme se vê no Enunciado n. 73, in

verbis:

No curso da legislatura, não está vedada a recomposição dos ganhos, em espécie, devida aos agentes políticos, tendo em vista a perda do valor aquisitivo da moeda, devendo ser observados na fixação do subsídio, a incidência de índice oficial de recomposição do valor da moeda, o período mínimo de um ano para revisão e os critérios e limites impostos na Constituição Federal e legislação infraconstitucional.

Em conclusão, no curso da legislatura é possível, apenas, a correção anual do subsídio dos

vereadores, mediante Resolução, a fim de preservar o poder aquisitivo da moeda, com base em

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índice oficial de aferição da inflação no período, não podendo superar ao apurado para a inflação anual, observadas as prescrições do inciso X do art. 37 da vigente Constituição e legislação infraconstitucional relativas ao subsídio dos edis e às despesas da Câmara Municipal.

3 — A Câmara Municipal pode estabelecer uma cota mensal para fornecimento de combustível para os vereadores?

Também quanto a esta questão, o Tribunal já se pronunciou algumas vezes, como nas Consultas n. 682.162 e 677.255, respondidas, respectivamente, nas sessões de 15/06/04 e 14/05/03, aprovadas à unanimidade no sentido de ser vedado à Câmara Municipal estabelecer quota mensal de combustível a favor dos vereadores por caracterizar aumento inconstitucional ao subsídio mensal, já que tal valor, se pago mensalmente, não teria caráter indenizatório e sim remuneratório.

4 — Há possibilidade de conversão em espécie de férias-prêmio vencidas, de funcionários?

Matéria idêntica foi abordada entre outras, na Consulta n. 656.568, respondida na sessão de 25/09/02, que esgota o assunto:

Entretanto, para a exata compreensão das atribuições impostas no texto constitucional, transcrevo trecho da doutrina do Professor José Nilo de Castro que assim versa: ‘Indiscutivelmente, insere-se no âmbito de assuntos de interesse local a criação de vantagens pecuniárias e gratificações de diferentes espécies a servidores municipais.’

Nessa ordem de ideias, insta esclarecer que, uma vez que a possibilidade de conversão em pecúnia das férias-prêmio do servidor público pode ser classificada como assunto de interesse estritamente local, nos termos do que versam a Constituição Federal e a doutrina colacionada, não há subordinação dos municípios ao definido no âmbito estadual, tendo cada esfera da federação autonomia para legislar sobre o tema no que tange aos seus próprios servidores.

Assim, com base em respostas já dadas por esta Casa, notadamente na consulta mencionada é permitida a conversão de férias-prêmio de servidores municipais, em espécie, desde que haja previsão na legislação do Município.

Cópias das consultas mencionadas em meu voto deverão ser enviadas ao consulente.

É assim que voto, Sr. Presidente.

A consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 18/08/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheira Adriene Andrade, Conselheiro Sebastião Helvecio e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz, que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pelo relator, Conselheiro Elmo Braz.

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RELATÓRIO

Tratam os autos de consulta subscrita pela Presidente da Câmara Municipal de Campo do Meio, Sra. Mariana Cabral Rocha, na qual indaga sobre a legalidade e possibilidade de vereadores abastecerem veículos particulares, na falta de veículo oficial da Câmara, e de fazerem doação, pela Câmara Municipal, de coroas de flores ocorrendo a morte de amigos e familiares dos edis.

A Auditoria, por meio do Dr. Hamilton Coelho, manifestou-se a fls. 06-09, concluindo pela ilegalidade daquelas despesas.

É o relatório.

Impossibilidade de utilização de recursos públicos para abastecimento de veículos particulares de vereadores e para doação de coroas de flores

CONSULTA N. 812.510

[...] a situação descrita pelo consulente configura verdadeiro contrato de locação de fato, porque, ainda que o veículo não seja permanentemente posto à disposição do órgão, a sua eventual utilização em serviço de interesse da Administração, mediante contraprestação (abastecimento), constituirá contrato de locação próprio da Câmara. Ademais, o uso intercalado do veículo — ora em caráter particular, ora a serviço — tornaria bastante difícil a mensuração do quantum a ser indenizado, o que redundaria em confusão patrimonial envolvendo o agente público e o órgão contratante.

RELATOR: CONSELHEIRO ELMO BRAZ

EMENTA: Consulta — Câmara Municipal — Utilização de recursos públicos — I. Abastecimento de veículos particulares de vereadores. Ilegalidade, mesmo se a serviço da Administração na falta de veículo oficial. Configuração de contrato de locação. Confusão patrimonial. Difícil mensuração do quantum indenizatório. II. Doação de coroa de flores por ocasião da morte de amigos e familiares dos edis. Ilicitude. Afronta aos princípios da moralidade e da impessoalidade. Ausência de interesse público.

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pRELIMINAR

Por ser a parte legítima e a matéria de competência desta Corte, nos termos do art. 212 do Regimento Interno (Resolução n. 12/2008), tomo conhecimento da presente consulta.

MéRITO

No mérito, respondo a presente consulta nos termos do bem lançado parecer do douto Auditor Hamilton Coelho, nos seguintes termos:

Constato que a possibilidade de abastecer veículos particulares de vereadores à custa da Câmara, ainda que para uso no interesse do órgão, foi declarada ilegal por este Tribunal em diversas oportunidades. Recentemente, em parecer emitido no Processo de Consulta n. 810.007, a prática foi mais uma vez afastada:

‘Como bem salientou a douta Auditoria em seu pronunciamento a fls. 10, a situação descrita pelo consulente configura verdadeiro contrato de locação de fato, porque, ainda que o veículo não seja permanentemente posto à disposição do órgão, a sua eventual utilização em serviço de interesse da Administração, mediante contraprestação (abastecimento), constituirá contrato de locação próprio da Câmara. Ademais, o uso intercalado do veículo — ora em caráter particular, ora a serviço — tornaria bastante difícil a mensuração do quantum a ser indenizado, o que redundaria em confusão patrimonial envolvendo o agente público e o órgão contratante.

Já a alternativa de pagamento de quota mensal, desvinculada da efetiva utilização, conferiria caráter remuneratório ao valor pago, hipótese que deve ser de plano rechaçada por contrariar o disposto no art. 37, inciso XI, da CR/88. Saliente-se, por oportuno, que o presente questionamento já foi enfrentado, em diversas oportunidades, por esta Corte de Contas, consoante se depreende das Consultas n. 676.645; 677.255; 694.113 e 702.848’. (Rel. Cons. Eduardo Carone Costa, sessão de 03/02/10).

Já a inusitada hipótese de aquisição de coroas de flores, com recursos do erário, por ocasião da morte ‘de amigos e familiares dos edis’, é insustentável em face dos princípios que regem a Administração Pública.

Observo, de início, que limitação dos benefícios ‘a amigos e familiares’ dos vereadores constituiria patente violação aos princípios da impessoalidade e da moralidade, consignados no art. 37 da Constituição da República e no art. 13 da Constituição Estadual.

Nunca será redundante reiterar que a manutenção de estrutura burocrática e a concessão de benefícios ou prerrogativas especiais têm caráter de honraria ou prêmio reservado, prática abolida com a chegada da República, que fulminou todo e qualquer privilégio. Assim, só subsistem e se justificam na medida em que atendem ao interesse social, nunca o particular ou de classe.

Nas palavras do administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello,

‘A Administração Pública está, por lei, adstrita ao cumprimento de certas finalidades, sendo-lhe obrigatório objetivá-las para colimar interesse de outrem: o da coletividade. É em nome do interesse público — o do corpo social — que tem de agir, fazendo-o na conformidade da intentio legis. Portanto, exerce ‘função’, instituto — como visto — que se traduz na idéia de indeclinável atrelamento a um fim preestabelecido e que deve ser atendido para o benefício de um terceiro. É situação oposta à da autonomia da vontade, típica do Direito Privado. De regra, neste último alguém busca, em proveito próprio, os

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interesses que lhe apetecem, fazendo-o, pois, com plena liberdade, contanto que não viole alguma lei.’ (BANDEIRA DE MELLO, C. A. Curso de direito administrativo. 26. ed. Malheiros: São Paulo, 2008, p.98)

Fácil concluir, portanto, que recursos de natureza pública, auferidos do trabalho dos cidadãos em geral, não poderão ser despendidos em homenagens a ‘amigos e familiares’ de ocupantes de cargos políticos.

Ademais, a doação de arranjos, ainda que estendida a qualquer cidadão interessado e devidamente cadastrado, não contemplaria o interesse público porque, longe de configurar benefício social universalmente almejado, será questionável a depender de convicções de caráter religioso, estético, cultural ou íntimo.

Assim, conclui o douto Auditor, pela “ilegalidade da aquisição de combustível para veículos

de propriedade de vereadores, mesmo se utilizados no serviço público, e pela ilicitude da

aquisição de coroas de flores por ocasião da morte de amigos e familiares dos edis”.

É o meu voto.

Na sessão do dia 07/07/10 pediu vista dos autos o Conselheiro Sebastião Helvecio.

Retorno de VistaCONSELHEIRO SEBASTIÃO HELVECIO

RELATÓRIO

Trata-se de consulta formulada pela Presidente da Câmara Municipal de Campo do Meio,

acerca da legalidade e possibilidade de vereadores abastecerem veículos particulares, na

falta de veículo oficial da Câmara, bem como de fazerem doação de coroas de flores, à custa

do Poder Legislativo local, quando da morte de amigos e familiares dos edis.

A consulta foi relatada pelo eminente Conselheiro Elmo Braz, na Sessão Plenária do dia de

07/07/2010, que, adotando entendimento esposado no parecer do douto Auditor Hamilton

Coelho, assim concluiu:

[...] pela ilegalidade da aquisição de combustível para veículos de propriedade de vereadores, mesmo se utilizados no serviço público, e pela ilicitude da aquisição de coroas de flores por ocasião da morte de amigos e familiares dos edis.

Na ocasião, pedi vista da matéria logo após suas conclusões. Submeto, neste momento, meu

voto para deliberação deste Colegiado.

MéRITO

À guisa da primeira matéria aqui suscitada, peço vênia ao eminente Conselheiro Relator para

dissentir.

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Em que pese o entendimento assente desta Corte nas Consultas n. 676.645, 677.255, 694.113,

702.848 e 810.007, de relatoria do Conselheiro Eduardo Carone, sessão de 03/02/10, entendo

ser possível a utilização de veículos particulares de vereadores e o respectivo ressarcimento

das despesas com combustível, desde que estipulada uma quota mensal por vereador para

o uso dessa verba, que deverá ser normatizada pela Câmara Municipal, mediante resolução

aprovada pelo Plenário daquela Casa, indicando os casos, as condições de aplicação, bem

como os procedimentos e prazos para as devidas prestações de contas, lembrando que, para

a realização de tal despesa, deve haver dotação orçamentária.

Como V. Exas. bem sabem, o exercício parlamentar é tarefa árdua que demanda entrega e

dedicação ao munus público conferido. Esse munus, antes gratuito, com o tempo passou a

ser recompensado pecuniariamente. Hoje, com caráter retributivo e alimentar, reveste-se

de natureza remuneratória (lato sensu), pago “[...] exclusivamente por subsídio fixado em

parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação [...]”, nos termos do disposto

no § 4º do art. 39 da Constituição Cidadã.

No entanto, o próprio texto constitucional, em seu art. 37, § 11, abre a possibilidade aos

agentes políticos de terem direito a “parcelas indenizatórias”, desde que previstas em lei,

mas não computadas para efeito do teto de remuneração estabelecido para tais agentes.

De caráter meramente ressarcitório, a parcela indenizatória visa a compensação por uma

redução do patrimônio jurídico do agente, sofrida em razão do exercício de funções próprias

da posição pública ocupada. Resgata, portanto, os gastos realizados pelo agente político no

exercício de suas atribuições e em detrimento de seu patrimônio jurídico. O poder público

deve, então, arcar com tais gastos e ressarcir o parlamentar.

Todavia, a realização de despesas por este agente deve estar diretamente relacionada ao

exercício da função e, consequentemente, vinculada ao atendimento do interesse público

municipal.

Com efeito, em face de sua autonomia administrativa, financeira, política e legislativa, pode a Câmara Municipal instituir parcela indenizatória, desde que demonstre a necessidade da utilização de tais recursos pelos vereadores no efetivo exercício da atividade parlamentar e respeitados os preceitos constitucionais e infraconstitucionais pertinentes.

Cumpre à Câmara observar, todavia, que a instituição de tal parcela destinada ao

ressarcimento de gastos feitos pelos parlamentares municipais, assim como a criação

de qualquer tipo de despesa pública, deve ser pautada nos princípios da moralidade

administrativa, da impessoalidade, da razoabilidade, da economicidade no trato da coisa

pública e, fundamentalmente, no princípio da supremacia do interesse público sobre o

particular.

Assim, mais do que a identificação exaustiva de um a um dos gastos ocorridos, próprios

de ressarcimento, cabe à Câmara a observância da finalidade pública destes, de modo a

relacionar a possibilidade de indenização com a realização das despesas no efetivo exercício

da atividade parlamentar.

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Em pesquisas feitas relacionadas ao tema, deparei-me com a Deliberação n. 2.446, de 15 de junho de 2009 (atualizada até 17 de maio de 2010),1 expedida pela Mesa da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, que regulamentou a aplicação da verba indenizatória em razão de atividade inerente ao exercício do mandato parlamentar de seus deputados.

O caput do art. 2º da referida norma dispõe que os deputados estaduais fazem jus a uma verba indenizatória por despesas realizadas até o limite mensal de R$20 mil.

No que se refere, especificamente, às despesas com combustível e aluguel de veículos, o art. 3º, da supracitada deliberação, estabelece que cada um desses gastos são indenizáveis até o limite inacumulável de 25% da verba indenizatória mensal, ou seja, até o limite de R$5.000,00. Vejamos o que diz a redação do citado dispositivo, in verbis:

Art. 3º São indenizáveis, em razão de atividade inerente ao exercício do mandato parlamentar, os seguintes grupos de despesas:

[...]

II — combustível e lubrificante até o limite inacumulável de 25% (vinte e cinco por cento) da verba indenizatória mensal;

III — manutenção e despesas gerais com veículos;

IV — locação e fretamento de veículos até o limite inacumulável de 25% (vinte e cinco por cento) da verba indenizatória mensal;

No que é pertinente ao uso de veículo particular, de propriedade do deputado, a ser empregado no exercício da atividade parlamentar, bem como à respectiva indenização das despesas decorrentes de sua utilização, vale aqui transcrever o que rezam os §§ 2º, 3º, 5º e 6º do indicado art. 3º, in litteris:

§ 2º Para fins do disposto no inciso II do caput deste artigo, o Deputado poderá empregar veículo de sua propriedade ou utilizado em razão do exercício da atividade parlamentar.

§ 3º Para a indenização das despesas a que se referem os incisos III e IV do caput deste artigo, deverá constar o número da placa do automóvel no documento de pagamento.

[...]

§ 5º O valor que exceder o limite mensal estabelecido nos incisos II, IV e V do caput deste artigo não será considerado para fins de indenização de despesas.

§ 6º Na aplicação do disposto no § 5º deste artigo, será considerado o mês de competência indicado no documento fiscal ou, na ausência dessa indicação, a data de emissão do documento (grifos nossos).

Quanto às despesas com peças, manutenção mecânica e elétrica, lanternagem, pintura, reforma, impostos, taxas e seguro de veículo, o inciso V do art. 4º da deliberação em epígrafe, determina que só serão ressarcíveis aquelas que forem de propriedade do Deputado.

Espelhando-se nas casas legislativas federais e estaduais, inúmeras Câmaras Municipais têm editado normas locais instituidoras de verbas indenizatórias sob as mais diversas nomenclaturas.

1 Disponível em <http://hera.almg.gov.br/cgi-bin/nph-brs?d=NJMG&f=G&l=20&n=&p=1&r=1&u= http://www.almg.gov.br/njmg/chama_pesquisa.asp&SECT1=IMAGE&SECT2=THESOFF&SECT3=PLUROFF&SECT6=HITIMG&SECT7=LINKON&SECT8=DIRINJMG&SECT9=TODODOC&co1=E&co2=E&co3=E&s1=&s2=2446&s3=&s4=>. Acesso em: 04/ago./2010.

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A criação de tipos de parcela indenizatória, seja sob o nome de verba de gabinete, verba de pronto atendimento, ou verba indenizatória do exercício parlamentar, por si só não representa ofensa à norma constitucional ou infraconstitucional. Respeitadas as nuances existentes entre elas, de fato, todas decorrem de um propósito comum que é dotar os parlamentares de certa autonomia em seus gabinetes para a realização de gastos compreendidos como de natureza própria da função parlamentar. Nas palavras de Hely Lopes Meirelles: “A administração financeira, a contabilidade e a elaboração e execução do orçamento da Câmara, que irá integrar o do Município, são de responsabilidade do presidente.” 2

Nesse contexto, merece transcrição o prejulgado n. 11 do Tribunal de Contas do Estado de Roraima:

CÂMARA MUNICIPAL E VERBA DE GABINETE PARA OS VEREADORES.

Respeitando a autonomia dos Poderes Municipais, deve o Tribunal de Contas do Estado de Roraima incentivar a obediência aos princípios e limites que circunscrevem a remuneração dos vereadores de forma a manter o equilíbrio da execução orçamentária mediante a compatibilização da despesa com a arrecadação efetivamente verificada, evitando-se a promoção de dispêndios estranhos às finalidades da função constitucional de legislar, causadores do desperdício do dinheiro público.

É incabível a fixação de verba de gabinete para a Câmara Municipal, em face do regramento constitucional advindo da Emenda Constitucional n. 019/98.

É sugerido ao Presidente do Legislativo Municipal que insira na proposta orçamentária a que tem direito a previsão dos recursos necessários ao pleno funcionamento dos gabinetes dos vereadores, cuja execução compete extensivamente ao órgão legislativo.3

Baseando-me em outros precedentes, como o da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul4 e da Prefeitura Municipal de Valinhos — SP,5 que, de forma percuciente, regulamentaram o uso de veículos particulares próprios dos seus agentes públicos e o respectivo reembolso das despesas dele decorrentes, certifiquei-me de que a criação de parcelas indenizatórias para o ressarcimento de gastos realizados pela edilidade, comprovadamente no exercício da atividade parlamentar, é factível.

Coadunando-me aos precedentes citados — que ora faço juntar a este voto, a título de exemplo e parâmetro —, entendo que as despesas com combustível, locação e manutenção de veículos, são despesas de natureza corrente, destinadas ao custeio geral da atividade pública e, como tal, devem ser programadas dentro do plano orçamentário da Câmara como um todo.

Nesse contexto, urge destacar que, ainda que surja a necessidade eventual e extraordinária de aquisição de algum bem ou serviço que fuja ao planejamento efetuado, existem, para isso, instrumentos próprios na legislação vigente que permitem a realização excepcional de

2 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 641.

3 TCE/RR. Decisão n. 023/00, Processo n. 0238/99 — Consulta, Sessão Ordinária de 21 de junho de 2000. Fundamentação Legal: Emendas Constitucionais n. 019/98 e 025/00; art. 1º, inciso XI, e art. 252, IV, do RITCE/RR.

4 Resolução de Mesa n. 784/2007, atualizada até a Resolução de Mesa n. 966, de 23 de março de 2010. Disponível em <http://www.al.rs.gov.br/legiscomp/arquivo.asp?Rotulo=Resolução de Mesa n. 784&idNorma=768&tipo=pdf>. Acesso em: 04/08/2010.

5 Decreto n. 6.374, de 25 de julho de 2005. Disponível em: <http://www.valinhos.sp.gov.br/arquivos/leis/dec6374%20-%20regulamenta%20lei%203886.pdf>. Acesso em: 04/08/2010.

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despesas sem a regular realização do procedimento licitatório (arts. 24 e 25, Lei n. 8.666/93

— dispensa e inexigibilidade) ou que não possam se sujeitar ao processo normal de aplicação

(art. 68, Lei n. 4.320/64 — regime de adiantamento/suprimento de fundos).

O que não se pode consentir é a transformação da excepcionalidade em regra. A partir do

momento em que uma despesa torna-se habitual e regular, passa a ser também previsível.

Para tanto, deve ser incluída no planejamento orçamentário, evitando-se a excepcionalidade

de procedimento que, não raramente, se mostra antieconômica ao erário e violadora do

princípio da eficiência administrativa.

Como dito, insisto na criação de parcelas indenizatórias para o ressarcimento de gastos

oriundos da utilização direta e efetiva de veículos particulares próprios dos vereadores,

realizados na prestação de serviços à municipalidade. O que reprovo, todavia, é que a

instituição de tais parcelas malsine o papel do vereador no exercício do seu munus, bem como

represente ofensa aos princípios básicos da administração pública e às regras pertinentes à

responsabilidade da gestão fiscal do orçamento.

Frise-se que a geração de despesa obrigatória de caráter continuado há de vir acompanhada

de estimativa trienal do impacto orçamentário-financeiro do novo gasto; demonstração da

origem dos recursos para o seu custeio; comprovação da não afetação das metas fiscais e

apresentação de medidas de compensação financeira (aumento da arrecadação ou corte

de despesas) para os períodos seguintes. Ademais, devem-se observar os ditames previstos

tanto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC n. 101/2000) quanto na Lei Geral do Direito

Financeiro (Lei n. 4.320/64).

Ignorados esses preceitos quando da geração de despesa, além de inquiná-la de vício de

origem, sendo considerada não autorizada, irregular e lesiva ao patrimônio, tipifica a

conduta do agente público ordenador como crime contra as finanças públicas (art. 359-D,

CP), podendo ainda caracterizar ato de improbidade administrativa, cujas cominações,

constitucionalmente previstas, são a suspensão dos direitos políticos, a perda da função

pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, sem prejuízo da ação

penal cabível (art. 37, § 4º, CR/88).

Assim, cabe ao agente público ordenador de despesas ater-se à responsabilidade por

ele assumida, agindo com cautela na criação de novos gastos e pautando sempre a sua

atuação nos princípios basilares da administração pública, como a legalidade, moralidade,

impessoalidade, razoabilidade, economicidade e supremacia do interesse público.

As verbas de natureza indenizatória se instituídas, seja sob que nomenclatura for, devem

estabelecer um limite mensal máximo e não cumulativo para a realização de tais despesas

por cada parlamentar.

A estipulação de uma quota mensal por vereador não significa a vinculação do quantum

a ele, a propriedade sobre o valor reservado. O dinheiro é público. A res é pública. Daí,

reside a impossibilidade da sua cumulatividade em uma espécie de conta corrente própria

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do edil. A parcela é indenizatória e não remuneratória.

O que pode existir de fato é uma previsão de um limite orçamentário máximo para gastos mensais daquela natureza que, caso não utilizados pelo vereador, permanecem na conta única do orçamento, e não vinculados a uma conta específica do edil.

Entre os fundamentos básicos que caracterizam a natureza indenizatória de tais verbas está

exatamente a sua eventualidade. A transmutação da vantagem de eventual para habitual

caracterizaria uma forma irregular de remuneração indireta, o que é, manifestamente,

vedado pela norma constitucional.

Por isso, não deve haver entrega regular e mensal dos valores ao vereador. A movimentação

financeira de tais recursos, quando efetivamente necessários ao exercício parlamentar,

deve obedecer às normas pertinentes à gestão orçamentária e financeira da administração,

observando os estágios normais da despesa pública, precedida de procedimento licitatório

quando o volume dos gastos assim exigir.

Os valores continuam geridos pelo agente ordenador — e não pelo vereador —, competindo

a ele a responsabilidade pelo controle e a fiscalização das despesas efetuadas, verificando

e comprovando a real necessidade pública da realização dos gastos, tudo em observância às

regras de responsabilidade fiscal e orçamentária.

Quanto ao segundo quesito, acompanho o voto proferido pelo eminente Relator, nos termos

do bem lançado parecer da Auditoria, a fls. 16-17.

Conclusão: diante do exposto, concluo, em tese, pela possibilidade do uso de veículos

particulares de vereadores e a respectiva indenização pelas despesas dele decorrentes,

desde que comprovadamente utilizados no exercício da atividade parlamentar.

É o voto de vista.

Na oportunidade, manifestaram-se os Conselheiros Eduardo Carone Costa e Antônio Carlos Andrada:

CONSELHEIRO EDUARDO CARONE COSTA:

Bem mencionado no parecer do Auditor Hamilton Coelho, quero destacar a seguinte

passagem, que consta do voto do Relator, por isso que eu tenho em mãos isso aqui.

Constato que a possibilidade de abastecer veículos particulares de vereadores à custa da Câmara, ainda que para uso no interesse do órgão, foi declarada ilegal por este Tribunal em diversas oportunidades. Recentemente, em parecer emitido no Processo de Consulta n. 810.007, a prática foi mais uma vez afastada:

Como bem salientou a douta Auditoria em seu pronunciamento a fls. 10, a situação descrita pelo consulente configura verdadeiro contrato de locação de fato, eis que, ainda que o veículo não seja permanentemente posto à disposição do órgão, a sua eventual utilização em serviço de interesse da Administração, mediante contraprestação (abastecimento), constituirá contrato de locação próprio da Câmara. Ademais, o uso intercalado do veículo — ora em caráter particular, ora a serviço — tornaria bastante difícil a mensuração do quantum a ser indenizado, o que redundaria em confusão

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patrimonial envolvendo o agente público e o órgão contratante.

Já a alternativa de pagamento de quota mensal, desvinculada da efetiva utilização, conferiria caráter remuneratório ao valor pago, hipótese que deve ser de plano rechaçada por contrariar o disposto no art. 37, inciso XI, da CR/88. Saliente-se, por oportuno, que o presente questionamento já foi enfrentado, em diversas oportunidades, por esta Corte de Contas, consoante se depreende das consultas n. 676.645; 677.255; 694.113 e 702.848. (Rel. Cons. Eduardo Carone Costa, sessão de 03/02/10).

Com isso quero dizer que, nos termos em que foi formulada, estou respondendo à consulta. Ela foi formulada restritivamente nos seguintes termos: indaga sobre a legalidade e possibilidade de vereadores abastecerem veículos particulares na falta de veículo oficial da Câmara. É isso que o consulente indaga. Portanto, nesses termos, acompanho o Conselheiro Relator porque assim tenho votado.

CONSELHEIRO PRESIDENTE, EM EXERCÍCIO, ANTÔNIO CARLOS ANDRADA:

Eu também acompanho o relator, peço vênia ao Conselheiro Sebastião Helvecio. Entendo que a natureza do mandato do parlamentar estadual é um pouco diferente da do vereador, uma vez que aquele, obrigatoriamente, tem que se deslocar para a capital onde vai exercer o mandato — mantendo o vínculo com diversos municípios, sendo o trânsito e a necessidade de viajar próprios da função — diferentemente do vereador. Entendo que essa prerrogativa dada ao parlamentar estadual não é cabível ao exercício da vereança. Por isso, acompanho também o Conselheiro Elmo Braz.

A consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 25/08/10 presidida pelo Conselheiro Antônio Carlos Andrada; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheira Adriene Andrade e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz, que aprovaram o parecer exarado pelo relator, Conselheiro Elmo Braz. Vencido, em parte, o Conselheiro Sebastião Helvecio.

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RELATÓRIO

Tratam os presentes autos de processo administrativo decorrente de denúncia formulada pelo Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros Metropolitano (Sintram) em face do Procedimento Licitatório n. 002/2006, promovido pelo Município de Caeté com o objetivo de selecionar permissionários para a exploração dos serviços de transporte individual de passageiros em veículo automotor, tipo motocicletas (moto-táxi), na respectiva municipalidade.

Em síntese, o denunciante alega a incompetência do Município para legislar sobre trânsito e transporte, uma vez que a matéria inclui-se na competência legislativa privativa da União, requerendo, assim, a imediata sustação da licitação e o seu posterior cancelamento.

Em 29/05/2006, o Conselheiro relator, a fls. 64-65, decidiu que a Concorrência Pública n. 002/2006 não se encontrava em condições de prosseguimento, razão pela qual acolheu

PROCESSO ADMINISTRATIVO N. 712.342

RELATOR: CONSELHEIRO ANTÔNIO CARLOS ANDRADA

EMENTA: Processo administrativo — Prefeitura Municipal — Licitação — Seleção de permissionários para exploração de serviços de moto-táxi com alicerce em lei municipal — Impossibilidade — Incompetência do Município para legislar sobre trânsito e transporte — Competência privativa da União — Inconstitucionalidade declarada pelo TJMG — Determinação de anulação da concorrência pública e de realização de novo procedimento licitatório.

Incompetência do Município para legislar sobre trânsito e transporte

ASS

COM

TCE

MG

[...] não há como dar prosseguimento ao Procedimento Licitatório n. 002/2006, tendo em vista a ausência de fundamento constitucional para suportar a validade da Lei Municipal n. 2.287/02, com as alterações da Lei Municipal n. 2.420/05, que ensejou a abertura de licitação com o objetivo de selecionar permissionários para a exploração dos serviços de transporte individual de passageiros em veículo automotor tipo motocicleta (moto-táxi), no Município de Caeté.

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a denúncia e determinou, liminarmente, a sua suspensão até que o Tribunal de Contas

se manifestasse definitivamente sobre a matéria, ad referendum do Colegiado da Segunda

Câmara.

Na mesma decisão, determinou-se a notificação ao Prefeito Municipal e ao Presidente

da Comissão de Licitação, para que se abstivessem de proclamar o resultado da

referida licitação, previsto para o dia 29/05/2006, sob pena de multa.

A decisão monocrática do Conselheiro relator foi aprovada pela Segunda Câmara deste

Tribunal na sessão de 30/05/2006, conforme notas taquigráficas a fls. 75-77.

Foi determinada a conversão dos autos em processo administrativo, bem como a concessão

de vista aos responsáveis, Sr. Ademir da Costa Carvalho, Prefeito Municipal de Caeté à

época, e Sra. Diocleciana Lima Caldeira, então Presidente da Comissão de Licitação,

para que se manifestassem no prazo regimental acerca dos fatos apontados.

Devidamente citados, os responsáveis apresentaram defesa conjunta a fls. 88-90.

O órgão técnico analisou a defesa apresentada, relatório a fls. 93-100, entendendo que

“em face da competência do Município para organizar e prestar os serviços públicos de

natureza local, notadamente o transporte coletivo (art. 30, V, CR/88), bem como de

autorizar, permitir ou conceder a exploração da atividade de transporte de passageiros (art.

107 da Lei Federal n. 9.503/97 — Código Nacional de Trânsito), cabe ao poder municipal

regulamentar a situação do transporte local, via moto-táxi, conforme prevê a Lei Estadual

n. 12.618, de 24 de setembro de 1997, em função da demanda local instituída, evitando-se a

clandestinidade”, concluindo pela competência do Município para legislar sobre a matéria.

Foram os autos remetidos ao Ministério Público de Contas para parecer conclusivo, a fls.

105-108, que opinou pela ilegalidade da Concorrência Pública n. 002/2006, tendo em vista a

ausência de fundamento constitucional para validar as leis municipais que deram ensejo ao

procedimento licitatório deflagrado pelo Município de Caeté.

Tendo em vista que a questão envolve a apreciação da constitucionalidade de lei municipal,

submeti à apreciação dos meus pares a anuência para encaminhar os presentes autos ao

Tribunal Pleno desta Corte, nos termos do inciso V do art. 26 da Resolução n. 12/2008 —

RITCEMG.

Foi aprovado, à unanimidade, o voto deste relator, conforme se depreende da certidão a

fls. 117.

Ato contínuo, foram os autos remetidos à Secretaria do Pleno a fim de que fosse o Prefeito

Municipal de Caeté intimado a cumprir a determinação contida na diligência a fls.

119.

A fls. 123-139, foram prestadas as devidas informações pelos responsáveis.

É o relatório.

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FUNDAMENTAÇÃO

O denunciante insurgiu-se contra a Concorrência Pública n. 002/2006, nos seguintes termos,

a fls. 02-09:

Em cumprimento ao disposto na legislação municipal, o Município de Caeté publicou o Edital de Licitação/Concorrência n. 002/2006 [...].

Ocorre que ao Município de Caeté falta competência para conceder este tipo de serviço público [...].

A denúncia menciona orientação do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Justiça de Minas

Gerais acerca da competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte.

Em sede de defesa, os denunciados alegaram que a Câmara Municipal aprovou a Lei n.

2.287/02, que dispõe sobre os serviços de moto-táxi e moto-entrega no Município de Caeté,

sustentando que o diploma legal deveria ser observado até eventual revogação ou declaração

de inconstitucionalidade.

Como não se verificou nenhuma dessas medidas, os denunciados afirmaram que restou a

cargo do Poder Executivo o fiel cumprimento da referida lei, o que implicou a abertura

de procedimento licitatório para a exploração dos serviços de transporte individual de

passageiros em veículo automotor, tipo motocicletas (moto-táxi), no Município de Caeté.

Os denunciados informaram, além disso, que o serviço de moto-táxi é prestado na

municipalidade, ainda que de forma irregular, contando com enorme aceitação da população,

que, segundo a defesa, tem pressionado o Executivo para a regulamentação da atividade.

Após devida intimação, a fls. 120, datada em 08/07/2010, na qual foram solicitadas aos

denunciados informações sobre o estado em que se encontra a Concorrência n. 002/2006,

bem como de que forma vem sendo prestado o serviço de moto-táxi no Município de Caeté,

alegaram os responsáveis que a referida Concorrência encontra-se suspensa, desde o

recebimento da determinação deste Tribunal de Contas. Alegam, ainda, que o serviço de

moto-táxi apresenta-se devidamente regulamentado naquele Município, por meio das Leis

n. 2.180 de 28 de junho de 2002, n. 2.287 de 10 de junho de 2002, bem como pela Lei n.

2.420 de 05 de outubro de 2005.

Primeiramente, deve-se observar que o inciso XI do art. 22 da Constituição da República é

claro ao dispor que compete privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte.

Insta salientar que a competência privativa é plena, direta e reservada a um determinado

ente federativo.

Verifica-se, no caso, que o Município de Caeté, à época, usurpou a esfera de competência

privativa da União ao regulamentar uma nova modalidade de serviço de transporte de

passageiros (moto-táxi).

Nota-se que o serviço de transporte individual de passageiros em veículo automotor, tipo

motocicletas (moto-táxi), não pode ser classificado como assunto de competência municipal

nos termos dos preceitos insculpidos na Constituição da República.

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O Supremo Tribunal Federal, órgão guardião da Constituição, já se pronunciou conclusivamente

nesse sentido ao julgar a ADI n. 2.606/SC, de relatoria do Ministro Maurício Corrêa, ementada

nos seguintes termos:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO ESTADO DE SANTA CATARINA. LICENCIAMENTO DE MOTOCICLETAS DESTINADAS AO TRANSPORTE REMUNERADO DE PASSAGEIROS. COMPETÊNCIA DA UNIÃO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. 1. É da competência exclusiva da União legislar sobre trânsito e transporte, sendo necessária expressa autorização em lei complementar para que a unidade federada possa exercer tal atribuição (CF, art. 22, XI, e parágrafo único). 2. Inconstitucional a norma ordinária estadual que autoriza a exploração de serviços de transporte remunerado de passageiros realizado por motocicletas, espécie de veículo de aluguel que não se acha contemplado no Código Nacional de Trânsito. 3. Matéria originária e de interesse nacional que deve ser regulada pela União após estudos relacionados com os requisitos de segurança, higiene, conforto e preservação da saúde pública. Ação direta de inconstitucionalidade procedente (grifo nosso).

Ademais, como mencionado pelos denunciados a fls. 123-124, registra-se a recente

promulgação da Lei Federal n. 12.009 de 29 de julho de 2009, que regulamenta o exercício

das atividades dos profissionais em transporte de passageiros, em entrega de mercadorias e

em serviço comunitário de rua (moto-taxista e motoboy) com o uso de motocicleta.

Portanto, o Município deverá pautar-se nas disposições da Lei Federal que regulamenta o

assunto, disciplinando a prestação do serviço na circunscrição da municipalidade, respeitados

os limites de sua competência legislativa (art. 30 da CR/88).

Diante do exposto, verifico que não há como dar prosseguimento ao Procedimento Licitatório

n. 002/2006, tendo em vista a ausência de fundamento constitucional para suportar a validade

da Lei Municipal n. 2.287/02, com as alterações da Lei Municipal n. 2.420/05, que ensejou

a abertura de licitação com o objetivo de selecionar permissionários para a exploração dos

serviços de transporte individual de passageiros em veículo automotor tipo motocicleta (moto-

táxi), no Município de Caeté.

Não obstante, conforme informações a fls. 123-124, o serviço continua a ser prestado no

Município sem a devida regulamentação por parte do Poder Público, ou seja, em tese, permanece

na clandestinidade, a desafiar, portanto, a imediata adoção de medidas para instaurar o

procedimento licitatório com intuito de disciplinar a questão no Município em epígrafe.

VOTO

Pelo exposto, considero que a Concorrência Pública n. 002/2006 não pode prosseguir,

tendo em vista que a Lei Municipal n. 2.287/02, que ensejou a abertura de licitação para a

exploração dos serviços de moto-táxi, teve sua inconstitucionalidade declarada pelo Tribunal

de Justiça de Minas Gerais na ADIN n. 1.0000.07.449278-6/000.

Nesse sentido, determino ao atual gestor que promova a anulação da Concorrência Pública

n. 002/2006, comunicando a referida anulação a esta Corte, no prazo de 48 horas, sob pena de

aplicação de multa diária no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais).

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Determino, ainda, que o município deflagre novo procedimento licitatório no prazo máximo de 60 (sessenta) dias contados da ciência desta decisão, devendo encaminhar cópia do edital no prazo de 48 horas após sua publicação, sob pena de multa diária de R$ 500,00, sem prejuízo de realização de inspeção extraordinária no referido Município e encaminhamento dos autos ao Ministério Público de Contas para apuração de eventual responsabilização.

Findos os referidos prazos determinados, retornem os autos a esta relatoria.

É como voto.

O Processo Administrativo em epígrafe foi apreciado pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 18/08/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Elmo Braz, Conselheira Adriene Andrade e Conselheiro Sebastião Helvecio, que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pelo relator, Conselheiro Antônio Carlos Andrada. Declarou-se suspeito o Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz.

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RELATÓRIO

Cuidam os autos de recurso ordinário interposto pela Empresa Ônix Construções S/A, por intermédio de seu procurador, em face da decisão prolatada pela Segunda Câmara deste Tribunal, datada de 19/02/2009, consolidada no Acórdão a fls. 1.477-1.478 dos autos da Denúncia n. 748.729, por meio da qual foram julgados procedentes os fatos suscitados na referida denúncia e considerados irregulares os procedimentos licitatórios relativos à Concorrência Pública n. 001/2008, promovida pela Prefeitura Municipal de Pouso Alegre (objeto da denúncia em tela), com a consequente irregularidade do contrato dela decorrente, e a determinação, ainda, de remessa de cópia dos autos à Câmara Municipal de Pouso Alegre para que promovesse a sustação do contrato assinado.

RECURSO ORDINÁRIO N. 796.118

[...] não foi oportunizado o exercício das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa à recorrente, previamente à decisão, garantias essas que deveriam ter sido efetivadas, já que a decisão da denúncia em tela, concernente à irregularidade do contrato e do procedimento licitatório — Concorrência Pública n. 001/2008 — interfere, indubitavelmente, de modo direto, na esfera jurídica e econômica da recorrente.

RELATOR: CONSELHEIRO ANTÔNIO CARLOS ANDRADA

EMENTA: Recurso Ordinário — Terceiro interessado — Particular contratante com Município — Insurgência contra decisão sustatória de contrato administrativo celebrado com Município, proferida em sede de denúncia — Alegação de inexistência de comunicação dos atos processuais — Preliminar de violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa — Acolhimento — Constatação de legitimidade da parte para figurar no feito da denúncia — Súmula Vinculante n. 3 — Reconhecimento da nulidade do acórdão recorrido — Extinção de todos os atos processuais praticados.

Reconhecimento de nulidade absoluta de decisão sustatória de contrato administrativo por falta de citação do particular contratante

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Alega a recorrente, em sede de preliminar, que o processamento da denúncia não observou

os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, haja vista não ter sido

citada do oferecimento dessa denúncia, ou intimada dos pareceres, despachos e decisões

neste processo, o que ensejaria a nulidade da relação processual até a decisão, posto que

seu teor acarretou prejuízos diretos à recorrente. Com vistas a reforçar a necessidade de

atendimento dessas garantias constitucionais, a recorrente trouxe à colação os dispositivos

constitucionais e legais, bem como normas específicas deste Tribunal, além de entendimentos

doutrinários e jurisprudenciais afetos à questão.

Meritoriamente, salienta não ser cabível o controle jurisdicional ou externo do Tribunal

de Contas sobre atos discricionários (tais como a determinação do local e do prazo

necessários à realização de obras, extensão das intervenções na comunidade, definição dos

serviços necessários ao atendimento das demandas locais, entre outros), praticados na fase

de elaboração do edital e previamente à sua publicação pela Administração Pública local,

e que as supostas irregularidades apontadas em relação ao edital Concorrência Pública n.

001/2008 estão relacionadas aos atos praticados nessa fase, inexistindo, destarte, qualquer

vício de antijuridicidade ou ilegalidade que macule o edital ou o contrato administrativo.

Alude serem inconsistentes as impugnações ao edital em apreço, pelas seguintes razões: a

decisão de índole discricionária de não parcelamento do objeto licitado acarretou ganhos

de escala e de eficiência, inclusive na execução das obras, e em nada afrontou o art. 23, §

1º, da Lei de Licitações; não houve restrição de competitividade no certame pela vedação

à participação de consórcios pela aferição da capacidade técnica mediante um só contrato

por item, o que não violou qualquer princípio ou regra reguladora das licitações; o preço

do edital no importe de R$ 1.800,00 não se afigurou proibitivo ou inacessível já que 11

empresas que o adquiriram teriam impugnado seu valor caso fosse exorbitante; os índices

contábeis que demonstram a capacidade financeira do licitante encontram-se justificados

(termo este, segundo a recorrente, referindo-se a conceito jurídico indeterminado e que

demanda discricionariedade administrativa) por serem compatíveis com os índices contábeis

exigidos no mercado da construção civil.

O órgão técnico desta Corte de Contas procedeu ao exame das razões recursais a fls. 123-

139.

O Ministério Público de Contas manifestou-se a fls. 141-143.

É o relatório, no essencial.

pRELIMINARES

1 Admissibilidade recursal

Preliminarmente, ratifico a decisão a fls. 100-101 destes autos no sentido de conhecer do presente recurso interposto pela recorrente, por serem preenchidos os pressupostos

de sua admissibilidade.

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Ressalte-se que o recurso em tela foi aviado conjuntamente pela ora recorrente e pelo Município de Pouso Alegre. Todavia, consoante consta da referida decisão, o recurso em exame só foi conhecido em relação à recorrente, sob o fundamento de que o Município em comento praticou ato incompatível com a vontade de recorrer, além da renúncia expressa ao direito de interpor recurso. Esta decisão foi atacada pelo Agravo de n. 804.605 e mantida integralmente, conforme se depreende da decisão prolatada na sessão do dia 21/10/2009.

Outra questão a merecer relevo refere-se à legitimidade ativa da empresa recorrente para interposição do presente recurso. A respeito da questão, o Ministério Público de Contas considerou que a empresa ora recorrente não dispõe de legitimidade e interesse recursal para interpor o recurso em epígrafe, sob o argumento de que é pessoa jurídica de direito privado que não se submete às atividades de controle dos Tribunais de Contas, por não se enquadrar no rol do parágrafo único do art. 70 da Constituição da República de 1988.

Entretanto, no que tange a este ponto, perfilho o entendimento já assentado pelo egrégio Supremo Tribunal Federal, no seguinte sentido, verbis:

EMENTA:

[...]

II. Tribunal de Contas: processo de representação fundado em invalidade de contrato administrativo: incidência das garantias do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa, que impõem assegurar aos interessados, a começar do particular contratante, a ciência de sua instauração e as intervenções cabíveis. Decisão pelo TCU de um processo de representação, do que resultou injunção à autarquia para anular licitação e o contrato já celebrado e em começo de execução com a licitante vencedora, sem que a essa sequer se desse ciência de sua instauração: nulidade. Os mais elementares corolários da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa são a ciência dada ao interessado da instauração do processo e a oportunidade de se manifestar e produzir ou requerer a produção de provas; de outro lado, se se impõe a garantia do devido processo legal aos procedimentos administrativos comuns, a fortiori, é irrecusável que a ela há de submeter-se o desempenho de todas as funções de controle do Tribunal de Contas, de colorido quase jurisdicional. A incidência imediata das garantias constitucionais referidas dispensariam previsão legal expressa de audiência dos interessados; de qualquer modo, nada exclui os procedimentos do Tribunal de Contas da aplicação subsidiária da lei geral de processo administrativo federal (Lei n. 9.784/99), que assegura aos administrados, entre outros, o direito a ‘ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos (art. 3º, II), formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente’. A oportunidade de defesa assegurada ao interessado há de ser prévia à decisão, não lhe suprindo a falta a admissibilidade de recurso, [...] (STF — Mandado de Segurança n. 23550, Relator: Min. Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão: Min. Sepúlveda Pertence; julgado em: 04.04.2001) (grifo nosso).

Como se depreende do julgado supracitado, assiste à ora recorrente legitimidade (por se tratar de terceira interessada, na medida em que celebrou contrato, considerado irregular por este Tribunal, com o Município de Pouso Alegre) e interesse recursal (em razão de poder defender a regularidade do contrato decorrente do procedimento licitatório Concorrência Pública n. 001/2008 em que é parte).

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Dessarte, conheço do recurso em relação à empresa Ônix Construções S/A, uma vez que preenchidos todos os pressupostos de sua admissibilidade.

2 Arguição da recorrente de possível violação das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa

Conforme dito alhures, a recorrente suscita, preliminarmente, o reconhecimento de nulidade do Acórdão recorrido, em virtude de não lhe terem sido asseguradas as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, com a consequente extinção de todos os atos processuais praticados na denúncia em epígrafe.

Inicialmente, convém salientar que a recorrente é considerada parte legítima para figurar, no feito da Denúncia n. 748.729, como interessada, nos termos do art. 163, § 1º, do RITCMG (Resolução n. 12/2008), em razão de ter sido a empresa contratada pelo Município de Pouso Alegre para consecução do objeto do procedimento licitatório, como sobredito.

Aliás, nesse particular, o relator da referida denúncia reconheceu o interesse da recorrente em intervir no processo por ser uma das partes celebrantes do contrato, considerado irregular, com a consequente remessa de cópia dos autos à Câmara Municipal para que promovesse a sustação do contrato assinado. Porém, insta deixar registrado que o reconhecimento de interesse da recorrente, de vista dos autos da Denúncia n. 748.729, por parte do relator daqueles autos, ocorreu prospectivamente à decisão (conforme resta consignado a fls. 1.504-1.512 dos autos da denúncia em comento).

Portanto, é certo que dos autos de origem (Denúncia n. 748.729) pode ser inferido que não foi oportunizado o exercício das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa à recorrente, previamente à decisão, garantias essas que deveriam ter sido efetivadas, já que a decisão da denúncia em tela, concernente à irregularidade do contrato e do procedimento licitatório — Concorrência Pública n. 001/2008 — interfere, indubitavelmente, de modo direto, na esfera jurídica e econômica da recorrente.

Sobre a necessidade de ciência prévia a possíveis interessados das decisões emanadas pelos Tribunais de Contas, o doutrinador Jorge Ulisses Jacoby Fernandes assevera:

De lege ferenda, parece admissível que os Tribunais de Contas notifiquem os possíveis terceiros interessados para acompanhar o processo em que, por via indireta, possam ser atingidos pela decisão da Corte (FERNANDES, 2008, p. 599).1

Por oportuno, vale transcrever, novamente, parte da decisão do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Mandado de Segurança n. 23550, que alicerça este posicionamento de vista prévia dos autos e manifestação pelos interessados, verbis:

A oportunidade de defesa assegurada ao interessado há de ser prévia à decisão, não lhe suprindo a falta a admissibilidade de recurso, [...] (grifo nosso).

Nesse mesmo diapasão, impende trazer à colação os termos da Súmula Vinculante n. 3 editada pelo Supremo Tribunal Federal, afeta à questão dos autos, verbis:

1 FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Tribunais de Contas do Brasil: jurisdição e competência. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2005.

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SÚMULA VINCULANTE N. 3

Nos processos perante o tribunal de contas da união asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.

Dessarte, como se depreende do posicionamento assentado pelo Supremo Tribunal Federal, há uma preocupação constante do excelso Pretório em garantir, efetivamente, o exercício do contraditório e da ampla defesa nos processos perante o Tribunal de Contas da União, extensivo a todos os demais tribunais de contas brasileiros pelo princípio da simetria, quando sua decisão importe em efeitos jurídicos a terceiros interessados, como deveria ter ocorrido no caso destes autos.

Ademais, essas garantias de índole constitucional (art. 5º, inciso LV, da CR/88) asseguram a efetividade da garantia maior do devido processo legal, a qual deve orientar todo e qualquer processo administrativo ou judicial em um Estado Democrático de Direito, por ser um instrumento jurídico protetor das liberdades públicas. Ademais, releva salientar que a cláusula do devido processo legal já se encontrava prevista desde a Magna Carta de 1215, cujo teor à época consistia em uma defesa contra o arbítrio real e na consagração de um direito a julgamento, efetuado pelos próprios pares, na conformidade do direito costumeiro.

Acerca da garantia do devido processo legal, o Professor Leonardo de Araújo Ferraz aduz que:

Essa garantia, que foi inicialmente concebida como pressuposto de validade e regularidade da processualística penal, como, por exemplo, o direito a um julgamento rápido e público, por um juiz imparcial e competente territorialmente e do direito à ampla defesa e ao contraditório, mais tarde incorporou-se a outras relações processuais, envolvendo distintos ramos do Direito, a jurisdição civil e, mais recentemente, a seara do Direito Administrativo, em que assumiu importante papel na área do Poder de Polícia e impôs ao Administrador a estrita observância dos princípios, dentre outros, da legalidade, impessoalidade e moralidade (FERRAZ, 2009, p. 131).2

Afigura-se, dessarte, imprescindível a oportunidade do pleno exercício das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, e, em última análise, do próprio devido processo legal para todo aquele interessado nas decisões desta Corte de Contas, pois estas afetarão diretamente sua esfera jurídica e, mais especificamente, patrimonial.

Comentando a imprescindibilidade de atendimento do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal pela Administração Pública, previamente às decisões por ela adotadas e que afetem a esfera patrimonial de quem quer que seja, o doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello alude que:

Estão aí consagrados, pois, a exigência de um processo formal e regular para que sejam atingidas a liberdade e a propriedade de quem quer que seja e a necessidade de que a Administração Pública, antes de tomar decisões gravosas a um dado sujeito, ofereça-lhe oportunidade de contraditório e de defesa ampla [...]. Ou seja: a Administração Pública não poderá proceder contra alguém passando diretamente à decisão que repute cabível, pois terá, desde logo, o dever jurídico de atender ao contido nos mencionados versículos constitucionais (BANDEIRA DE MELLO, 2008, p. 115) (grifo nosso).3

2 FERRAZ, Leonardo de Araújo. Da teoria à crítica — Princípio da Proporcionalidade — uma visão com base nas doutrinas de Robert Alexy e Jürgem Habermas. Belo Horizonte: Dictum, 2009.

3 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 25. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional 56, de

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Acrescente-se que o próprio Regimento Interno deste Tribunal considera como nulidade de caráter absoluto e, portanto, passível de supressão, todos os atos praticados com ausência de citação para o exercício do contraditório e ampla defesa, conforme se extrai da dicção do art. 172, § 1º, do RITCMG — Resolução n. 12/2008, in verbis:

Art. 172. [...]

§ 1º São absolutas, dentre outras hipóteses, as nulidades correspondentes à ausência de citação para o exercício do contraditório e ampla defesa [...].

Dessa forma, como se depreende das considerações expendidas alhures, os fundamentos basilares desta preliminar são veementes para acolhê-la.

À vista do exposto, impõe-se o reconhecimento da nulidade do Acórdão recorrido, com a consequente extinção de todos os atos processuais praticados na Denúncia n. 748.729, por ausência de contraditório e ampla defesa em relação à interessada e ora recorrente, afrontando, assim, corolários de grande importância em um Estado de Direito, com previsão expressa na Constituição da República de 1988 em seu art. 5º, inciso LV.

Intime-se a recorrente desta decisão.

Intime-se, também, a Municipalidade na pessoa de seu Prefeito para que adote as medidas necessárias para cumprimento desta decisão, no acatamento dessa segunda preliminar.

10/12/2007. São Paulo: Malheiros, 2008.

O Recurso Ordinário em epígrafe foi apreciado pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 23/06/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Elmo Braz, Conselheira Adriene Andrade, Conselheiro Sebastião Helvecio e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz que aprovaram, por unanimidade, as preliminares suscitadas pelo relator, Conselheiro Antônio Carlos Andrada.

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RELATÓRIO

Trata-se de consulta formulada pelo Sr. Willian Furtado Valadares, Presidente da Câmara Municipal de Arinos, na qual indaga:

Pode a Administração Pública Municipal destinar recursos públicos, a título de apoio

cultural, em favor de associação de direito privado mantenedora de rádio comunitária?

Em caso positivo, é necessário lei autorizativa para concessão do apoio cultural ou é

suficiente a consignação de recursos, a esse título, na lei orçamentária anual e previsão

na lei de diretrizes orçamentárias?

CONSULTA N. 811.842

Não ocorre violação aos princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade a concessão de apoio pelo Poder Público a uma entidade cultural. Dentro do juízo de conveniência e oportunidade da Administração, pode o gestor conceder auxílio a uma comunidade que necessite do serviço da rádio, contribuindo para uma melhor qualidade de vida daqueles cidadãos. Além de prestar um serviço de utilidade pública, a rádio comunitária desempenhará importante papel social, na medida em que funcionará como veículo informador a uma população que, na maioria dos casos, é carente de recursos.

RELATORA: CONSELHEIRA ADRIENE ANDRADE

Concessão de apoio cultural pelo Poder Público a rádios comunitárias mediante subvenção social

EMENTA: Consulta — Câmara Municipal — Concessão de apoio cultural pelo Poder Público a associação de direito privado, sem fins lucrativos, mantenedora de rádio comunitária — Possibilidade — Interesse público — Estímulo a iniciativas privadas no campo social, educacional e cultural — Subvenção social — Autorização em lei específica — Previsão na lei de diretrizes orçamentárias e na lei orçamentária anual — Declaração de utilidade ou de interesse público da entidade beneficiada.

ASS

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A consulta foi distribuída à minha relatoria, conforme despacho a fls. 02, tendo o ilustre Auditor Hamilton Coelho, a fls. 06-10, emitido parecer, no qual manifesta o entendimento de que é vedado à Administração Municipal destinar recursos públicos para rádios comunitárias.

É o relatório, em síntese.

pRELIMINAR

Preliminarmente, tomo conhecimento da consulta, por ser formulada por autoridade competente e por ser a matéria afeta à competência desta Corte, nos termos do inciso XI do art. 3º e do art. 210 do Regimento Interno do Tribunal de Contas de Minas Gerais (RITCMG), passando a respondê-la em tese.

MéRITO

Acolhida a preliminar, passo ao exame dos quesitos formulados.

A concessão de apoio cultural às rádios comunitárias perpassa pela análise da Lei n. 9.612/98, estabelecedora das diretrizes para o Serviço de Radiodifusão Comunitária.

Esse diploma legal, em seu art. 1º e parágrafos, define a rádio comunitária como um serviço de radiodifusão sonora, em frequência modulada, de baixa potência e cobertura restrita a um raio de um quilômetro a partir da antena transmissora, que só pode ser explorado por fundações e associações comunitárias sem fins lucrativos e localizadas na sede onde será realizada a transmissão do sinal. Observe-se o dispositivo em comento:

Art. 1º Denomina-se Serviço de Radiodifusão Comunitária a radiodifusão sonora, em frequência modulada, operada em baixa potência e cobertura restrita, outorgada a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação do serviço.

§ 1º Entende-se por baixa potência o serviço de radiodifusão prestado a comunidade, com potência limitada a um máximo de 25 watts ERP e altura do sistema irradiante não superior a trinta metros.

§ 2º Entende-se por cobertura restrita aquela destinada ao atendimento de determinada comunidade de um bairro e/ou vila.

Constata-se, pois, que os serviços de radiodifusão comunitária só poderão ser operados por associações ou fundações desprovidas de finalidades lucrativas, com o objetivo de propiciar às comunidades beneficiadas a divulgação de ideias e de manifestações culturais, tradicionais e sociais que lhe são próprias. A rádio também possibilita a integração da comunidade e a prestação de serviços de utilidade pública, além de levar à população do bairro atendido por seu sinal maiores informações acerca dos problemas e das necessidades locais.

Ressalte-se que somente as associações e fundações que tenham registrado em seus estatutos sociais o objetivo de prestação de serviço radiofônico comunitário e sem finalidade de lucro poderão obter a outorga de operação para a execução do serviço.

Criadas segundo os ditames legais, as rádios comunitárias, embora fiquem adstritas à comunidade ou bairro onde se situa a antena transmissora do sinal, podem receber auxílio

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do Poder Público para sua manutenção, consoante determinado pelos arts. 12 e 16 da Lei n.

4.320/94 e 26 da Lei Complementar n. 101/00.

Esse auxílio dar-se-á sob a forma de subvenção social, conforme disposto no art. 12, § 3º, I, da

Lei n. 4.320/64, in verbis:

Art. 12. A despesa será classificada nas seguintes categorias econômicas:

[...]

§ 3º Consideram-se subvenções, para os efeitos desta lei, as transferências destinadas a cobrir despesas de custeio das entidades beneficiadas, distinguindo-se como:

I — subvenções sociais, as que se destinem a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa.

A concessão desse apoio configura uma suplementação de recursos públicos para o estímulo

de iniciativas privadas no campo social e educacional/cultural, de acordo com o disposto

no art. 16 da Lei n. 4.320/64 e no item 43, código 3.3.30.43.00, do Manual de Despesa

Nacional, emitido pela Portaria Conjunta n. 03/2008 da Secretaria do Tesouro Nacional e da

Secretaria do Orçamento Federal.

E a rádio comunitária enquadra-se no conceito de serviço social e educacional, por consistir

em uma entidade civil de caráter cultural e social, gerida e composta pela união dos

moradores e dos representantes da comunidade. A própria Lei n. 9.612/98, instituidora do

Serviço de Radiodifusão Comunitária, em seu art. 3º, inciso III, atribuiu a essa espécie de

rádio a finalidade de prestar serviços de utilidade pública, “integrando-se aos serviços de

defesa civil, sempre que necessário.”

Não se pode considerar que o apoio dado à rádio comunitária pelo Poder Público viole o

princípio constitucional da impessoalidade, isto é, que tal apoio signifique preferência da

Administração a uma comunidade em detrimento das demais.

Não ocorre violação aos princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade a

concessão de apoio pelo Poder Público a uma entidade cultural. Dentro do juízo de

conveniência e oportunidade da Administração, pode o gestor conceder auxílio a uma

comunidade que necessite do serviço da rádio, contribuindo para uma melhor qualidade

de vida daqueles cidadãos. Além de prestar um serviço de utilidade pública, a rádio

comunitária desempenhará importante papel social, na medida em que funcionará como

veículo informador a uma população que, na maioria dos casos, é carente de recursos.

Também não se pode esquecer do clássico conceito de igualdade, que é “tratar os desiguais na

medida de suas desigualdades.” Assim, se a concessão de apoio cultural à rádio comunitária

consistir em instrumento de política pública para garantir a divulgação de noções de saúde,

educação, cultura e, especialmente, cidadania às pessoas de uma comunidade, não há que

se falar em violação aos princípios constitucionais.

Ademais, estarão aptas a receber subvenções sociais do Poder Público, conforme

determinado pelo art. 17 da Lei n. 4.320/64 apenas as rádios comunitárias cujas condições

de funcionamento forem julgadas satisfatórias pelos órgãos oficiais de fiscalização.

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De acordo com o enunciado de Súmula n. 43 desta Casa, é válida a concessão de subvenção social pelo Poder Público a entidades privadas sem fins lucrativos, desde que suas atividades estejam relacionadas à assistência social, à cultura e à educação. Para tanto, é preciso que tal despesa se enquadre nos requisitos determinados no art. 26 da Lei de Responsabilidade Fiscal, ou seja: ter sido autorizada por lei específica, atendidas as condições estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias e prevista no orçamento, com dotação na lei orçamentária anual ou em seus créditos adicionais.

Ressalte-se que esse apoio cultural à rádio comunitária, realizado mediante concessão de subvenção social, deverá ser formalizado por convênio, acordo, ajuste ou instrumento congênere, devendo a entidade recebedora prestar contas ao órgão concedente dos recursos recebidos. E o Município deverá manter essa prestação de contas arquivada e disponível para eventual análise pelo Tribunal de Contas, de acordo com o disposto no art. 76, XI, c/c o art. 180, § 4º, da Constituição do Estado de Minas Gerais.

Importante, também, observar que, mesmo concedendo apoio cultural à rádio comunitária, caso o órgão público deseje divulgar informações oficiais e institucionais, deverá realizar procedimento licitatório, permitindo a ampla concorrência e a possibilidade de o sinal radiofônico atingir toda a extensão do Município. Corroborando tal entendimento, trago o prejulgado do Tribunal de Contas de Santa Catarina de n. 1.778/2006, da relatoria do Conselheiro Salomão Ribas Júnior:

Para a divulgação de atos administrativos, avisos e outros procedimentos que venham ao encontro do interesse da coletividade por meio de transmissão radiofônica, os Poderes Executivo e Legislativo da municipalidade, além da contratação por meio de licitação, podem realizar sistema de credenciamento de todas as emissoras interessadas, mesmo no caso de rádio comunitária, quando não for a única a ser captada pela população do município.

Conclusão: à Administração é facultada a concessão de apoio cultural a associação de direito privado, sem fins lucrativos, mantenedora de rádio comunitária, haja vista que esta é uma forma de incentivo e valorização da cidadania. Para tanto, é necessária a previsão desse apoio na lei de diretrizes orçamentárias e na lei orçamentária anual do órgão concedente, além de sua determinação por lei específica, devendo a entidade beneficiada possuir declaração de utilidade ou interesse público.

É o parecer que submeto à consideração de V. Exas.

A Consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 10/03/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Elmo Braz, Conselheiro Antônio Carlos Andrada, Conselheiro Sebastião Helvecio e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pela relatora, Conselheira Adriene Andrade.

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RELATÓRIO

Trata-se de consulta formulada pelos vereadores do Município de Varginha, na qual expõem e questionam o seguinte:

Considerando que o inciso X do art. 37 da Constituição Federal preconiza que a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices;

Considerando que Leis Municipais específicas promoveram a Revisão Geral Anual dos servidores públicos do Município, à exceção dos agentes políticos.

Indaga-se:

Estes índices, obtidos por meio das revisões gerais anuais, obrigatoriamente, devem incidir sobre os subsídios dos agentes políticos?

Existe possibilidade do recebimento retroativo destas revisões gerais anuais, caso os agentes políticos não tenham sido contemplados, quando das edições das leis? Quais as providências a serem adotadas, caso afirmativa a resposta?

CONSULTA N. 811.256

Entendo pela obrigatoriedade da revisão geral anual para a recomposição dos valores dos subsídios percebidos pelos agentes políticos; entretanto, os índices a serem aplicados devem ser fixados por meio de lei específica, observada a iniciativa privativa estabelecida pela CR/88, não sendo obrigatória a utilização do mesmo índice aplicado na revisão geral anual dos servidores públicos do Município.

RELATORA: CONSELHEIRA ADRIENE ANDRADE

Fixação de índice atinente à revisão geral anual dos subsídios de agentes políticos

EMENTA: Consulta — Câmara Municipal — Agentes políticos — Subsídios — Rev isão geral anual — Obrigatoriedade — Fixação do índice mediante lei específica (ou por lei/resolução tratando-se do subsídio de vereadores) — Observância da iniciativa privativa estabelecida pela CR/88 — Desnecessidade de utilização do mesmo índice aplicado à revisão geral anual dos servidores públicos do Executivo municipal aos servidores e agentes políticos do Legislativo municipal.

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Em atendimento ao meu despacho a fls. 05, foram os autos encaminhados à douta Auditoria

que, em parecer de lavra do Auditor Hamilton Coelho, a fls. 7-10, opinou pelo afastamento

do caráter automático e obrigatório de extensão da revisão geral anual da remuneração dos

servidores públicos aos subsídios dos agentes políticos.

É o relatório, em síntese.

pRELIMINAR

As autoridades consulentes possuem legitimidade para formular consulta a este Tribunal,

nos termos do art. 210, inciso VII, do Regimento Interno da Casa.

Quanto às questões suscitadas pelos consulentes, com exceção da primeira pergunta, cujo objeto

insere-se na competência desta Corte, verifica-se tratarem-se de matéria típica de assessoria

jurídica, haja vista não possuir o Tribunal atribuição para aconselhar qual procedimento os

edis devem adotar para serem ressarcidos por eventuais valores que deixaram de perceber em

razão de ausência de previsão legal acerca da revisão dos valores de seus subsídios. A consulta

deve se referir a matéria com repercussão financeira, contábil, orçamentária, patrimonial

e operacional e versar sobre objeto em tese e, dos termos empregados na formulação das

demais questões, constata-se tratarem de caso concreto.

Diante do exposto, em preliminar, conheço da consulta apenas para examinar o mérito da

primeira questão suscitada pelos consulentes.

MéRITO

A revisão geral anual encontra-se prevista no art. 37, inciso X, da CR/88, que assim

dispõe:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

[...]

X — a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada a revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices (grifos acrescidos).

De acordo com esse dispostivo constitucional, constata-se que a revisão geral anual é

obrigatória e se constitui em direito subjetivo dos servidores públicos e dos agentes

políticos, sendo um instrumento que visa, unicamente, rever o valor aquisitivo, ou seja, o

valor nominal da remuneração ou subsídio em face da desvalorização da moeda, ocasionada

pela inflação.

Este Tribunal já se posicionou pela obrigatoriedade da concessão da revisão geral anual aos

ocupantes de cargos políticos, conforme exposto na Consulta n. 734.297/07, julgada na

Sessão Plenária do dia 18/07/2007, da relatoria do Conselheiro Eduardo Carone:

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A regra constitucional do art. 37, X, da CR/88, estabeleceu a obrigatoriedade de o chefe do Executivo enviar um projeto de lei anual que garanta a recomposição do valor da remuneração dos servidores e dos subsídios dos agentes políticos. A anualidade da revisão prevista no texto constitucional referido traduz, portanto, a possibilidade de recomposição do poder de compra da remuneração dos servidores e do subsídio dos agentes políticos em razão da inflação apurada no período mínimo de um ano.

Este Tribunal já firmou o entendimento de que a recomposição do valor dos subsídios dos agentes políticos, conforme as Consultas n. 704.423, 657.620 e 645.198, relatadas, respectivamente, nas Sessões Plenárias de 16/08/06, 11/09/02 e 28/11/01, pode ser feita anualmente, mediante prévia definição no ato normativo fixador da remuneração e com base em índice oficial de aferição de perda de valor aquisitivo da moeda, observando-se, ainda, os dispositivos constitucionais e legais que impõem limites ao valor do subsídio dos edis, bem como às despesas totais e de pessoal da Câmara de Vereadores (grifos acrescidos).

Ocorre que, assim como para a fixação dos valores da remuneração e dos subsídios, a revisão

geral anual deve respeitar a iniciativa privativa de legislar, para cada caso.

Em observância ao princípio da harmonia e independência entre os Poderes da República e

à autonomia dos entes federados, é necessário garantir e respeitar a diferenciação quanto à

estrutura funcional de cada um dos entes e órgãos componentes da Federação.

Nesse sentido, estabeleceu a CR/88 regras próprias para a regulamentação dos sistemas de

remuneração dos agentes públicos, outorgando a autoridades distintas a competência para,

sobre eles, disporem.

No art. 29, inciso V, da CR/88, atribuiu-se à Câmara Municipal a iniciativa de lei para fixar

os subsídios do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Secretários Municipais. De igual forma, no

art. 29, inciso VI, do diploma constitucional, outorgou-se à Câmara a competência para

fixar o subsídio dos vereadores que, consoante determinado por este Tribunal na Consulta

de n. 752.708/09, de minha relatoria, pode ser realizada mediante resolução ou lei de

iniciativa da Câmara.

Já no que se refere aos servidores públicos, cada órgão possui autonomia para dispor sobre a

criação de cargos, organização em carreira e estabelecimento de remuneração, sempre

realizados mediante lei específica de iniciativa privativa do chefe do respectivo poder. Assim,

para a regulamentação do sistema remuneratório dos servidores do Poder Legislativo, no âmbito

municipal, compete ao Presidente da Câmara a iniciativa de projeto de lei que vise qualquer

forma de acréscimo em sua remuneração; para os servidores do Poder Executivo, de igual forma,

a competência da iniciativa de lei pertence ao chefe do Executivo local, haja vista a aplicação do

princípio da simetria constitucional e a previsão contida nos arts. 51, inciso IV, e 61, § 1º, inciso II,

a, da CR/88.

Dessa forma, não se configura possível que uma lei municipal, de iniciativa do chefe do

Executivo local, tendente a readequar o valor nominal da remuneração dos servidores do

Poder Executivo, seja utilizada para revisar o subsídio dos agentes políticos, haja vista que

a iniciativa para a propositura desse diploma é diversa.

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Quanto ao sentido da expressão contida no inciso X do art. 37 da CR/88 “sempre na mesma data e sem distinção de índices”, esclareça-se que essa homogeneidade de tratamento refere-se ao âmbito de cada Poder, pois a cada um deles foi atribuída competência privativa para regulamentar sobre seus próprios agentes públicos. Descaberia, por exemplo, fixar-se um determinado percentual de revisão para os subsídios dos vereadores e outro diferente para a remuneração dos servidores do Legislativo local, haja vista serem ambos agentes públicos pertencentes ao mesmo órgão.

Para revisão do valor do subsídio percebido pelos vereadores, cabe a propositura de lei de iniciativa da Câmara ou de resolução visando a tal fim, da mesma forma que compete aos edis a propositura de uma lei visando readequar o valor nominal dos subsídios percebidos pelo Prefeito, Vice-Prefeito e Secretários Municipais.

Permitir que uma lei que disponha sobre a revisão geral anual dos servidores públicos do Poder Executivo municipal englobe os valores percebidos pelos agentes políticos e, também, pelos servidores públicos ocupantes de cargos do Legislativo, exorbita a competência que foi outorgada pelo texto constitucional a cada um dos Poderes, fato que infringe regras e princípios constitucionais, além de configurar vício de inconstitucionalidade formal. Nesse sentido, pronunciou-se o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

AÇÃO POPULAR — AUMENTO DE SUBSÍDIOS DE PREFEITO, VICE-PREFEITO E SECRETÁRIOS MUNICIPAIS — INOBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS — ILEGALIDADE. O dever do ente federativo em promover a revisão anual dos vencimentos não é automático, sendo imprescindível a edição de lei específica, em razão do princípio da reserva legal absoluta (Apelação Cível n. 1.0540.04.000238-3/001, 7ª Câmara, Relator Desembargador Wander Marotta, DJ 08/11/2006).

Também esta Corte de Contas, na resposta à Consulta n. 712.718/06, da relatoria do Conselheiro Moura e Castro, assim deliberou:

A Constituição da República, inciso X do art. 37, determina aos Chefes do Legislativo, Executivo e Judiciário da União, Estado, Distrito Federal e Municípios, bem assim do Ministério Público e Tribunal de Contas, a obrigatoriedade de promoverem, mediante lei, a revisão geral anual da remuneração e subsídio dos servidores e agentes políticos, a saber:

‘Art. 37 [...]

X — a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices.’

Em razão desse comando constitucional, cujo escopo é o de repor o poder aquisitivo dos agentes públicos, estou convicto de que, respeitada a iniciativa legislativa de cada dirigente de órgãos ou poderes estatais, a revisão geral anual da remuneração dos servidores é de obrigação inafastável, calculando-se a defasagem, com base em índices oficiais, desde a última revisão.

Como se vê, da simples leitura da Carta Política de 05 de outubro de 1988, extrai-se a obrigação de a autoridade administrativa revisar, de modo geral e anual, a remuneração dos servidores e agentes políticos, sob pena de mora, passível de indenização, a ser imputada ao descumpridor da Norma Magna.

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[...] Aliás, o direito dos servidores à atualização monetária à sua remuneração, expresso na Constituição da República, não é de materialização automática, mas condicionado à autorização legislativa, como se infere da seguinte decisão: ‘mesmo que admitida a mora em razão do que dispõe o art. 37, X, da Constituição Federal, o direito à revisão geral dos vencimentos dos servidores públicos depende da edição de norma infraconstitucional, e a via para sua obtenção não é o mandado de segurança, mas o de injunção. Por outro lado, a Constituição, ao prever a revisão geral anual, na mesma data e sem distinção de índices, não assegura aos servidores públicos direito líquido e certo a um determinado índice’ (Pleno do STF. Agravo Regimental no Mandado de Segurança 24.765-7 /DF, Min. Relatora Ellen Gracie, de 03/05/06) (grifos acrescidos).

Conclusão: Entendo pela obrigatoriedade da revisão geral anual para a recomposição dos valores dos subsídios percebidos pelos agentes políticos; entretanto, os índices a serem aplicados devem ser fixados por meio de lei específica, observada a iniciativa privativa estabelecida pela CR/88, não sendo obrigatória a utilização do mesmo índice aplicado na revisão geral anual dos servidores públicos do Município.

É o parecer que submeto à consideração dos Senhores Conselheiros.

A Consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 10/03/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Elmo Braz, Conselheiro Antônio Carlos Andrada, Conselheiro Sebastião Helvecio e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pela relatora, Conselheira Adriene Andrade.

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RELATÓRIO

Trata-se de consulta, protocolada neste Tribunal de Contas sob o n. 02332482/2010 em 29/04/2010, formulada pelo Presidente da Câmara Municipal de Divinolândia de Minas, Vereador Agnaldo Figueiredo dos Reis, na qual indaga, conforme fls. 01:

[...] sobre a legalidade e constitucionalidade da doação de imóveis públicos municipais para pessoas carentes, e se também é legal e constitucional a cessão de direito real de uso para a mesma finalidade acima especificada.

Afirma o consulente que o questionamento se dá em face da apresentação pelo Poder Executivo do Projeto de Lei n. 025/2009, que “autoriza a doação de lotes de propriedade do

CONSULTA N. 835.894

EMENTA: Consulta — Câmara Municipal — Doação de bens imóveis públicos a pessoas comprovadamente carentes — Possibilidade — Autorização legislativa — Avaliação prévia — Irrefutável demonstração de interesse social — Licitação dispensada na hipótese do art. 17, I, f, da Lei n. 8.666/93 — Caráter excepcional — Preferência pela adoção dos institutos da concessão de direito real de uso e da concessão especial para fins de moradia — Vinculação a políticas públicas consistentes, de interesse social — Observância aos princípios administrativos, notadamente os da impessoalidade e da moralidade.

ASSCOM TCEMG

Doação e cessão de direito real de uso de bens imóveis públicos a pessoas carentes

Essa simples disposição do patrimônio público pelos critérios genéricos de carência econômica e de tempo de ocupação, mesmo que autorizada por lei local, sem mais requisitos, e dissociada de uma política pública consistente, que esteja vinculada às atribuições constitucionais do Município, a toda evidência, viola o dever de conservação do patrimônio público, art. 23, I, da Constituição, além dos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, além do da moralidade, merecendo ser reputada inconstitucional.

RELATOR: CONSELHEIRO SEBASTIÃO HELVECIO

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Município de Divinolândia de Minas às famílias que nele residem e dá outras providências”, anexando à consulta o referido projeto.

Em atendimento ao art. 214 do Regimento Interno, anoto que este Tribunal já se pronunciou sobre doação de imóveis, pelo poder público, a particulares, na Consulta n. 700.280, relatada pelo eminente Conselheiro Moura e Castro, sessão de 26/10/2005, e na Consulta n. 498.790, relatada pelo saudoso Conselheiro Simão Pedro, sessão de 24/02/1999.

pRELIMINAR

O consulente, Presidente da Câmara Municipal de Divinolândia de Minas, é legitimado à formulação de consulta a este Tribunal, nos termos do inciso I do art. 210 do Regimento Interno. Seus questionamentos, embora versem sobre hipótese prevista em projeto de lei local, anexado à consulta, merecem consideração, dada a sua relevância financeira, patrimonial e operacional, admitindo, ainda, resposta em tese, pelo que desconsidero a proposição legislativa anexada e não aplico o óbice no inciso II do art. 212 desse normativo.

Diante do exposto, conheço da consulta.

MéRITO

Como relatado, o consulente apresenta dúvida calcada na constitucionalidade da doação de lotes, localizados em área de propriedade do Município, para pessoas carentes que nela já residam e, ainda, indaga, alternativamente, acerca da aplicabilidade do instituto da cessão real de uso à hipótese.

Partindo da autonomia organizatória, administrativa, política e financeira dos Municípios, nos termos dos art. 1º, 18 e 30, I, da Constituição Cidadã, o entendimento desse egrégio Plenário, como se depreende do que foi decidido no julgamento da Consulta n. 700.280, relatada pelo eminente Conselheiro Moura e Castro, é no sentido de que

[...] os bens públicos, quaisquer que sejam, podem ser alienados, por meio de doação a particulares, desde que satisfeitas determinadas condições, tais como desafetação, se for o caso, autorização legislativa e, sobretudo, o reconhecimento de interesse público, pois, na Administração, não se faz o que se quer, mas apenas o autorizado em lei.

De fato, a autonomia constitucional dos Municípios, mais a dicção dos arts. 99, 100 e 101 do Código Civil de 2002 são o fundamento deste entendimento, sendo certo que a regra de inalienabilidade de bens públicos imóveis por doação a particulares, constante do art. 17, I, b, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, mostra-se inconstitucional com relação aos Estados e aos Municípios, inclusive com medida cautelar nesse sentido já proferida pelo excelso Supremo Tribunal Federal, ADI n. 927, sendo aplicável, assim, somente à União.

Mais especificamente, na Consulta n. 498.790, relatada pelo saudoso Conselheiro Simão Pedro, esse Plenário afirmou que

[...] os requisitos a serem observados pelo Poder Executivo Municipal, visando à efetivação de doação de bem imóvel, são os seguintes:

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1— existência de interesse público justificado (art. 17, caput, do aludido diploma legal);

2— autorização legislativa; e

3— avaliação prévia (art. 17, inciso I).

Constata-se, em princípio, que, preenchidos os requisitos acima, não haveria óbice à doação de imóvel por Município, no exercício de sua autonomia e para a efetiva implementação de políticas públicas de interesse local.

Entretanto, José dos Santos Carvalho Filho,1 lembrando o magistério de Hely Lopes Meirelles, anota que:

A Administração pode fazer doação de bens públicos, mas tal possibilidade deve ser tida como excepcional e atender a interesse público cumpridamente demonstrado. Qualquer violação a tais pressupostos espelha conduta ilegal e dilapidatória do patrimônio público. Embora não haja proibição constitucional para a doação de bens públicos, a Administração deve substituí-la pela concessão de direito real de uso, instituto pelo qual não há perda patrimonial no domínio estatal. Pode ocorrer que a legislação de determinada pessoa de direito público proíba a doação de bens públicos em qualquer hipótese. Se tal ocorrer, deve o administrador observar a vedação instituída para os bens daquela pessoa específica.

Como se vê, embora não haja expressa vedação para a doação de imóveis a particulares por entes públicos municipais, mediante os requisitos já reconhecidos por este Tribunal, essa espécie de alienação patrimonial não se revela a mais consentânea com o interesse público, devendo ser usada, excepcionalmente, quando inviáveis outras modalidades de alienação de direito real que melhor preservam o patrimônio público e a finalidade social da própria utilização do imóvel.

Entretanto, a hipótese questionada nesta consulta, na forma como foi apresentada, parece não se amoldar a essa questão. A mera doação de imóvel municipal ocupado por particulares, mesmo que carentes, há vários anos, no meu entendimento, não possui carga de interesse público suficiente a se configurar justificativa para atos de alienação gratuita de domínio imobiliário.

Essa simples disposição do patrimônio público pelos critérios genéricos de carência econômica e de tempo de ocupação, mesmo que autorizada por lei local, sem mais requisitos, e dissociada de uma política pública consistente, que esteja vinculada às atribuições constitucionais do Município, a toda evidência, viola o dever de conservação do patrimônio público, art. 23, I, da Constituição, além dos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, além do da moralidade, merecendo ser reputada inconstitucional.

Deve-se ter em mente, ainda, no trato da matéria, promover cuidado com a boa gestão do patrimônio público imobiliário, coibir a má-fé na invasão de terrenos públicos por quem nem sempre detém boa-fé e nem baixa condição socioeconômica e, por fim, inviabilizar a proliferação do fisiologismo e do clientelismo.

Não obstante, tendo-se em vista que há situações nas quais a retomada da posse, pelo poder público, de seus imóveis ocupados pode ser mais cara, tanto sob o aspecto econômico quanto sob o aspecto social, e, ainda, que a regularização jurídica dessa posse pode se inserir em relevantes e consistentes políticas sociais de urbanização e de habitação, configurando-se

1 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 21. ed. rev. amp. atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 1.129.

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atendimento à dignidade humana, pode o Município lançar mão de institutos específicos previstos na legislação, sem, contudo, simplesmente, se desfazer de seu patrimônio, sem garantia de continuidade das políticas públicas.

Nesses casos, a manutenção da posse nas mãos dos particulares, conferindo-lhes direito real, pode se mostrar a medida mais adequada e consentânea ao interesse público, passível de conformação jurídica por meio I — da concessão de direito real de uso (art. 7º do Decreto-Lei n. 271/67, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 11.481/2007) e II — da concessão de uso especial para moradia (art. 4º, V, h, do Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257/2001).

Esses institutos, segundo adverte Marçal Justen Filho,2

[...] envolvem, normalmente, a regularização da situação fundiária e a solução para acesso dos carentes ao uso e fruição de bens imóveis. Deixa-se de praticar a alienação em virtude da constatação de que, em situação de carência, o beneficiário promoveria a alienação do bem a terceiros e daria início a outra situação conflitiva. A solução encontrada reside, então, em produzir uma espécie de direito real limitado em prol de sujeitos carentes.

Esse direito real até poderá ser transferido a terceiros, mas sempre mediante o controle estatal.

Quanto ao primeiro instituto, o da concessão de direito real de uso, José dos Santos Carvalho Filho3 acrescenta que

[...] salvaguarda o patrimônio da Administração e evita a alienação de bens públicos, autorizada às vezes sem qualquer vantagem para ela. Além do mais, o concessionário não fica livre para dar ao uso a destinação que lhe convier, mas, ao contrário, será obrigado a destiná-lo ao fim estabelecido em lei, o que mantém resguardado o interesse público que originou a concessão real de uso.

Isso porque, em breve síntese, nos termos do citado Decreto-Lei, essa espécie de concessão transfere direitos reais sobre imóveis públicos aos particulares, que, por sua vez, são transferíveis por eles, sob vigilância do poder público, para a manutenção do atendimento às finalidades sociais que geraram a transferência, sendo resolúveis, entretanto, quando essas finalidades não são mais existentes.

Por sua vez, o segundo instituto — o da concessão de uso especial para fins de moradia, mais restrito, previsto no art. 4º, inciso V, alínea h, do Estatuto da Cidade, que tem por objetivo regulamentar o art. 183 da Constituição, conformando as situações reconhecidamente cabíveis nos parâmetros por ela definidos — normatiza a aquisição de direitos reais por possuidores de terrenos públicos ou privados com menos de 250 metros, nos termos e sob as condições constitucionalmente previstos.

Essa concessão, segundo José dos Santos Carvalho Filho,4 tem natureza de “ato administrativo” vinculado, donde se extrai que, preenchidos seus pressupostos, deve ser necessariamente concedida pela Administração Pública.

2 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 942.

3 Op. cit., p. 1.113.

4 Op. cit., p. 1.116.

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Entendo, assim, ser possível, em tese, a doação de imóveis pelo Poder Público a pessoas comprovadamente carentes, desde que por meio de programas consistentes de urbanização e de habitação, entretanto, em caráter excepcional, sendo preferível, conforme o caso, a adoção dos institutos da concessão real de uso e a concessão especial para fins de moradia, como acima descritos, que tendem a melhor viabilizar a preservação da finalidade social pela qual é transferido o direito real sobre o patrimônio público, o que não se traduz em sua mera disposição, absolutamente vedada pelo Direito.

Deve-se anotar, entretanto, que, como se tratam essas duas últimas figuras de alienação de direitos reais públicos, sua adoção também deve seguir os requisitos do art. 17, caput, e inciso I, da Lei de Licitações, quais sejam: autorização legislativa, avaliação prévia, irrefutável demonstração de interesse social e licitação, que fica dispensada nos casos de atendimento a programas habitacionais ou de regularização fundiária.

Conclusão: diante do exposto, concluo pela possibilidade, em tese, de o Município efetuar doação de imóveis a pessoas comprovadamente carentes, sob autorização legislativa, avaliação prévia, irrefutável demonstração de interesse social e licitação (dispensada nos casos do art. 17, I, f, da Lei n. 8.666/93), devendo essa modalidade ser utilizada excepcionalmente, sendo, pois, preferível a adoção, para os mesmos fins de interesse social, dos institutos da concessão de direito real de uso e da concessão especial para fins de moradia, que admitem maior controle quanto à preservação da finalidade social do uso pelo particular e não se traduzem em mera disponibilidade do patrimônio público.

Em qualquer dos casos, deve restar devidamente demonstrado pelo gestor público, nos atos dessa operacionalização, que os atos da disposição do patrimônio público estão vinculados a políticas públicas consistentes, de interesse social, e ainda que estão sendo respeitados todos os princípios administrativos, notadamente os da impessoalidade e da moralidade.

Proponho, assim, observando o art. 216 do Regimento Interno, a revisão e a ampliação dos entendimentos apresentados por esse egrégio Plenário na Consulta n. 700.280, relatada pelo eminente Conselheiro Moura e Castro, sessão de 26/10/2005, e na Consulta n. 498.790, relatada pelo saudoso Conselheiro Simão Pedro, sessão de 24/02/1999, adequando-os aos comandos normativos recentes que alteraram o regime de transferência de direitos reais do Poder Público aos particulares, no atendimento a programas sociais de urbanização e de habitação.

É a resposta à consulta, Sr. Presidente.

Na oportunidade, manifestou-se o Conselheiro Antônio Carlos Andrada:

Sr. Presidente, vou acompanhar o entendimento do relator, mas queria fazer uma observação, não sei se acrescentando ou talvez esclarecendo um ponto colocado pelo relator que, com muita propriedade, afirmou que na área pública, no setor público, não se faz o que quer, mas o que está autorizado por lei. Obviamente que a autonomia Municipal está expressa na lei. Ela é exercida conforme a lei.

Para coibir a má-fé e o clientelismo, que também foram abordados pelo relator, acho que seria interessante deixar mais claro que um dos critérios, uma das condições para que se

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proceda à doação ou mesmo à concessão do direito real de uso é de que haja necessariamente um programa que defina, de forma objetiva, quem serão os beneficiados e quais serão os critérios adotados: quem é o carente? Esse carente reunirá quais condições para fazer jus ao pleito de ter um lote doado? Então tem que haver, junto à lei que vai autorizar as doações, também essa definição que vai ser exercida dentro da autonomia, dentro da realidade local.

A Consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 07/07/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Elmo Braz, Conselheiro Antônio Carlos Andrada e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pelo relator, Conselheiro Sebastião Helvecio.

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RELATÓRIO

Trata-se de consulta protocolada neste Tribunal sob o número 0033642/04, em 18/05/2010, formulada pelo Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, à época, Sérgio Antônio de Resende, na qual se apresenta questão relacionada à eventual desnecessidade de exigir-se comprovante de regularidade fiscal na oportunidade de aquisição direta de bens e serviços com fundamento no art. 24, I e II, da Lei de Licitações e Contratos.

Apresenta o consulente indagação baseada no confronto entre o Acórdão 2.616/2008 do Tribunal de Contas da União e o que foi decidido na Consulta n. 786.537 desta Casa. Assim foi redigida, in verbis:

Considerando o prescrito na consulta n. 786.537 dessa Corte de Contas, solicito a V. Exª. informar a este Tribunal qual seria o procedimento correto a ser adotado com relação à exigência de prova de regularidade fiscal para com a Seguridade Social, FGTS e Fazenda Federal para as contratações inseridas no art. 24, incisos I e II da Lei federal n. 8.666/93,

Exigência de comprovação de regularidade fiscal de empresas contratadas por dispensa de licitação

CONSULTA N. 836.952

Parte-se do suposto de que a supressão da fase de conferência de regularidade fiscal de empresas contratadas confira mais celeridade a esses procedimentos, gerando benefícios ao Poder Público. Entretanto, diante dos modernos avanços revolucionários em tecnologia da informação, notadamente a facilidade de obtenção de certidões negativas de débitos fiscais pela internet, não vislumbro tantos ganhos de tempo ou de recursos públicos na adoção dessa perspectiva, capazes de superar as necessidades de garantia de isonomia e moralidade aos procedimentos de licitação.

RELATOR: CONSELHEIRO SEBASTIÃO HELVECIO

EMENTA: Consulta — Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais — Dispensa de licitação fundada nos incisos I e II do art. 24 da Lei n. 8.666/93 — Comprovação da regularidade fiscal dos fornecedores — Obrigatoriedade — Garantia de isonomia e moralidade aos procedimentos licitatórios — Observância ao princípio da legalidade.

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haja vista a seguinte decisão do Eg. Tribunal de Contas da União:

Acórdão 2.616/2008 — Plenário.

Pedido de reexame interposto contra determinação do item 9.3.1 do Acórdão n. 725/2007 — Plenário. Exigência de regularidade fiscal nas contratações por dispensa de licitação fundamentada no art. 24, incisos I e II, da Lei n. 8.666/93.

Não é exigida a comprovação de regularidade fiscal nas contratações por meio de dispensa de licitação fundamentada nos incisos I e II do art. 24 da Lei n. 8.666/93.

Em atendimento ao art. 214 do Regimento Interno, anoto que foi localizada, nos arquivos deste

Tribunal, a Consulta n. 786.537, Relator eminente Conselheiro Substituto Licurgo Mourão,

Sessão de 08/07/2009, mais a Consulta n. 391.114, Relator Conselheiro Murta Lages, Sessão

de 06/11/1996, que abordam, com maior ou menor profundidade, a matéria: exigência de regularidade fiscal nas hipóteses de dispensa ou inexigibilidade de licitação.

É o relatório.

pRELIMINAR

O consulente, Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais,

é legitimado à formulação de consulta a este Tribunal, nos termos do inciso I do art. 210 do

Regimento Interno, e seus questionamentos preenchem, ainda, os requisitos de admissibilidade

do art. 212 do mesmo instrumento, não abordam caso concreto e encerram relevante repercussão

jurídica, estando a resposta, assim, inserida no âmbito de competência desta Corte de Contas.

Presentes os pressupostos, voto pela admissão da consulta.

MéRITO

Questiona-se, em suma, acerca da obrigatoriedade, nos casos de dispensa de licitação

fundada nos incisos I e II do art. 24 da Lei n. 8.666/93, de se exigir a apresentação, por

parte dos fornecedores de bens e serviços para a Administração Pública, de comprovantes

de sua regularidade fiscal.

Argumenta a consulta que o Tribunal de Contas da União, recentemente, por meio do Acórdão

n. 2.616/2008 — Plenário, reconheceu a desnecessidade de se exigirem esses comprovantes,

o que mereceria comparação com o que foi decidido por este Tribunal na Consulta n. 786.537,

relator eminente Conselheiro Substituto Licurgo Mourão, sessão de 08/07/2009, mediante a

seguinte conclusão:

É obrigatória a comprovação da regularidade do contratado para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal, nos casos de dispensa e inexigibilidade de processo licitatório, em respeito aos princípios da igualdade e da legalidade, insertos no art. 5º, caput, e art. 37, caput, da Constituição da República, e ao disposto no art. 26, parágrafo único, da Lei n. 8.666/93.

Como essa decisão plenária não ressalvou as hipóteses de dispensa de licitação por pequenos

valores, conforme art. 24, I e II, da Lei n. 8.666/93, têm-se aqui duas teses, em princípio, opostas,

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cujos fundamentos merecem, de fato, serem confrontados, na busca de um entendimento deste Tribunal de Contas sobre o tema, de modo a propiciar ao consulente e aos demais jurisdicionados uma revisão do entendimento, à luz dos novos argumentos reconhecidos como válidos pelo Tribunal de Contas da União, para que se considerasse dispensável a comprovação de regularidade fiscal nessa espécie de procedimento de aquisição de bens e serviços pela Administração Pública.

O entendimento recente desta Casa sobre a matéria, à primeira vista contrário ao também recentemente firmado pelo TCU, está fundamentado nos princípios da igualdade e da legalidade, além do art. 26, parágrafo único, da Lei n. 8.666/93.

Já o novo entendimento do TCU, por outro lado, tem como fundamentos os princípios da eficiência, da proporcionalidade, da razoabilidade, da economicidade e da racionalidade administrativa.

É de se anotar, entretanto, para enriquecimento do debate, que, da leitura do voto condutor do acórdão respectivo, vê-se que a Diretoria Técnica do Tribunal de Contas da União, fundando-se nos princípios da legalidade, da igualdade, da isonomia, da impessoalidade e da moralidade, trouxe entendimento inverso ao que prevaleceu, defendendo que “a simplicidade e a rapidez dos procedimentos não podem justificar a transgressão à lei, a sonegação ou outras irregularidades.1”

Vale dizer, inicialmente, que a questão da regularidade com a Fazenda na licitação é “um dos temas mais complexos e problemáticos da Lei de Licitações”, como reconhece Marçal Justen Filho2, e, ainda, que o próprio TCU, na decisão a que se refere a consulta, reconhece que não se esgotou o tema e que as discussões sobre ele ensejariam novas reflexões.

Não obstante, como se vê, essa discussão se baseia, essencialmente, em uma espécie de comparação ou de confronto entre princípios de assento constitucional. De um lado, em defesa da comprovação da regularidade fiscal, os princípios da legalidade, da isonomia e da moralidade, e, de outro lado, pela dispensa desta comprovação, os princípios da eficiência, da economicidade e da razoabilidade.

A propósito, é cediço que, modernamente, os princípios de direito adquiriram status constitucional, sendo inegável, hoje, o seu caráter normativo e vinculativo bem como a sua aplicabilidade direta à conduta de todas as pessoas. Como carregam grande densidade de valores e não tendem a descrever ou prever condutas, a observação e a aplicação dos princípios jurídicos a casos específicos tendem a gerar, comumente, situações de conflito normativo, ou seja, de antinomia aparente ou efetiva.

De forma distinta do sistema aplicado nos conflitos entre as regras positivadas, desenvolveu-se para solução de conflitos entre princípios outro sistema no qual se levam em consideração as especificidades do caso concreto, para que se afastem, somente neste caso, os princípios que carregarem menos densidade normativa em favor dos que carregarem mais.

1 Íntegra do voto disponível em: <http://contas.tcu.gov.br/portaltextual/PesquisaFormulario>. Acesso em: 1º/07/2010.

2 FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14 ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 417.

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Não há, assim, um princípio que prepondere sobre outro de forma absoluta, sob e em qualquer circunstância, sendo essa relação de precedência decorrente eminentemente da apreciação direta de um caso concreto.

Feitas essas considerações introdutórias e passando-se, especificamente, à resposta ao consulente, filio-me à corrente que exige a comprovação de regularidade fiscal nos casos de dispensa ou de inexigibilidade de licitação, como já decidido por este Plenário no precedente citado pelo consulente.

Além disso, a construção doutrinária e jurisprudencial acerca da aplicabilidade das regras de habilitação aos procedimentos administrativos de dispensa e inexigibilidade de licitação é, inegavelmente, consistente, e não vejo, com a devida vênia, nos entendimentos contrários, fundamentos suficientes para se retirarem desse arcabouço as previsões do art. 24, I e II, da Lei n. 8.666/93.

Entendo que o argumento da eficiência — forçoso que se diga —, de amplo trato demagógico, deve ser utilizado com parcimônia e devidamente dimensionado na análise desta questão. Parte-se do suposto de que a supressão da fase de conferência de regularidade fiscal de empresas contratadas confira mais celeridade a esses procedimentos, gerando benefícios ao Poder Público. Entretanto, diante dos modernos avanços revolucionários em tecnologia da informação, notadamente a facilidade de obtenção de certidões negativas de débitos fiscais pela internet, não vislumbro tantos ganhos de tempo ou de recursos públicos na adoção dessa perspectiva, capazes de superar as necessidades de garantia de isonomia e moralidade aos procedimentos de licitação.

Por outro lado, em um contexto nacional de heterogeneidade regional, de elevado peso tributário, com graves deficiências do Estado no fornecimento de serviços e de infraestrutura, além de altos índices de sonegação fiscal e de evaporação de empresas, não me parece adequado prescindir de uma regra tendente a promover maior igualdade competitiva no mercado e mais justiça fiscal e social.

Dora Maria Oliveira Ramos3 afirma que

[...] A eficiência norteia-se por parâmetros objetivos, calcados em outros princípios condutores da Administração Pública, como os princípios da legalidade, moralidade, economicidade e impessoalidade. De outra forma, estar-se-ia atribuindo ao princípio da eficiência força de atuação que se sobreporia aos demais princípios — o que, levado ao extremo, configuraria risco ao Estado de Direito.

Alertam os juristas que o princípio da eficiência deve ser considerado com as cautelas próprias da atuação do Poder Público, não podendo justificar a inobservância do princípio da legalidade.

O afastamento da exigência de comprovação de regularidade fiscal nos casos de dispensa de licitação por valores considerados baixos pela lei, em termos pragmáticos, significa a admissão para que o Poder Público contrate com devedores da Fazenda Pública, o que encontra vedação expressa no Código Tributário Nacional (CTN), art. 193, na própria

3 RAMOS, Dora Maria de Oliveira. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Org.). Temas polêmicos sobre licitações e contratos. 5. ed. rev. ampl. São Paulo: Malheiros. 2001, p. 47.

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Constituição Cidadã, art. 195, § 3º, e, por fim, no art. 29, III e IV, da Lei n. 8.666/93, dentre outros dispositivos, ou seja, maculado estaria o princípio da legalidade.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro4 realça

[...] que o princípio da razoabilidade não pode servir de instrumento para descumprimento da lei, ainda que sob o pretexto de que ela é irrazoável; por outras palavras, esse princípio não pode substituir o princípio da legalidade; não pode a Administração, sob pretexto de irrazoabilidade da lei, deixar de aplicá-la; a irrazoabilidade da lei está intimamente ligada ao princípio da isonomia e, uma vez constatada, deve ser objeto de impugnação pelas vias cabíveis.

O Superior Tribunal de Justiça,5 recentemente, apresentando entendimento sobre a exigência de regularidade fiscal nas licitações, afirmou que

Não há violação ao princípio federativo e à repartição de competências tributárias, mas simplesmente uma defesa do Estado-membro para evitar responder a dívidas futuras combinada com o repúdio a empresas que não realizam o pagamento oportuno de quantias de manifesta importância para seus empregados e para a sociedade em geral, tudo com respaldo na Lei n. 8.666/93 e na própria Carta Magna.

Não se pode olvidar da discussão que se encontra na literatura6 acerca da inconstitucionalidade da exigência de regularidade fiscal para participação em licitações, por ser forma indireta de cobranças de tributos, mas, como se vê desse entendimento do STJ, há outros fundamentos de ordem jurídica, social e econômica que conferem consistência às regras que tratam do tema, as quais, em meu entendimento, não podem ser, simplesmente, afastadas de maneira irrestrita.

Ao contrário, segundo o art. 27, IV, e a redação dada ao § 1º do art. 32, ambos da Lei n. 8.666/93, aplicáveis aos casos de dispensa e de inexigibilidade de licitação, a regra é a da exigência de comprovação de idoneidade dos contratados pela Administração Pública (arts. 28 a 31, da Lei n. 8.666/93), que poderá ser dispensada, no todo ou em parte, em certos e determinados casos, nos quais seja considerada inútil para se configurar a garantia do cumprimento das obrigações contratuais.

É de se consignar, além do mais, que, nos casos de habilitação de concorrentes devedores do Fisco, eles têm a evidente possibilidade de apresentar menores preços diante de cotações públicas, por prescindirem esses preços do componente tributário. Entendo, assim, que maculado estaria, também, o princípio da isonomia, se se dispensasse, em qualquer hipótese de dispensa de licitação por valores baixos, a exigência da regularidade fiscal da contratada.

Diante dessas considerações, entendo como inviável o simples e irrestrito afastamento da exigência de regularidade fiscal, em todas as hipóteses de dispensa de licitação, em razão do valor, levando-se em conta os princípios da igualdade, da legalidade, da isonomia, e da

4 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Org.). Temas polêmicos sobre licitações e contratos. 5. ed. rev. ampl. São Paulo: Malheiros. 2001, p. 32.

5 RMS 30320/SE, Rel. Ministro Castro Meira, 2ª Turma, julgado em 04/05/2010, DJe 21/05/2010.

6 Por exemplo: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Regularidade fiscal nas licitações. Jurídica Administração Municipal, n. 10, p. 23-29, out. 99. (pela inconstitucionalidade); e JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14 ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 415 (pela constitucionalidade).

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moralidade e, também, os comandos do art. 37, XXI, e do art. 195, § 3º, da Constituição Cidadã, mais, ainda, o disposto nos arts. 27, IV, 28, III e IV e 32, § 1º, Lei de Licitações; bem como no art. 193 do Código Tributário Nacional e, ainda, no art. 1º, II, da Lei n. 7.711/88, no art. 27, a, da Lei n. 8.036/90, no art. 2º da Lei n. 9.012/95, no art. 47 da Lei n. 8.212/91, dentre outras normas.

Conclusão: diante do exposto, concluo que, nos casos de dispensa de licitação baseados nos incisos I e II do art. 24 da Lei n. 8.666/93, deve ser exigida a comprovação de regularidade fiscal das empresas contratadas.

A Consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 06/10/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Elmo Braz, Conselheiro Antônio Carlos Andrada, Conselheiro Substituto Hamilton Coelho e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pelo relator, Conselheiro Sebastião Helvecio.

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RELATÓRIO

Trata-se de consulta formulada pelo Sr. Ailton Rocha de Sillos, Presidente da Câmara Municipal de São Sebastião do Paraíso, que solicita desta Corte parecer sobre a seguinte indagação:

Diante dos arts. 8º, 37, VI e 40, § 5º, da Constituição Federal, lei municipal pode prever que professor, servidor do Município, ao licenciar-se para exercer mandato classista, para o qual foi eleito, será considerado como se no efetivo exercício do magistério estivesse, fazendo, portanto, jus a aposentadoria especial?

Tendo sido autuada e distribuída à minha relatoria, submeti a consulta à manifestação técnica da Assessoria de Estudos e Normatização, que se pronunciou a fls. 10-12, concluindo

CONSULTA N. 836.967

ASS

COM

TCE

MG

Aposentadoria especial: impossibilidade do cômputo do tempo de licença concedida a professor para exercício de mandato classista

EMENTA: Consulta — Câmara Municipal — Servidor público do magistério — Cômputo do tempo de licença para exercício de mandato classista para fins de aposentadoria especial — Impossibilidade — Interpretação do conceito de funções de magistério conforme § 2º do art. 67 da Lei n. 9.394/96 — Impossibilidade de edição de lei municipal prevendo a ampliação do conceito.

RELATOR: CONSELHEIRO EM ExERCÍCIO GILBERTO DINIZ

[...] entendo não ser possível à legislação municipal, sob pena de inconstitucionalidade, ampliar o conceito de efetivo exercício do magistério, para a aposentadoria especial prevista no § 5º do art. 40 da Carta Republicana de 1988, de modo a abranger a licença concedida ao professor para o exercício de mandato eletivo de representação classista.

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não ser possível a pretensão legislativa apresentada pelo consulente, sob risco de violação

frontal ao ordenamento jurídico vigente, seguindo-se, no mesmo sentido, a manifestação da

Diretora Geral de Controle Externo a fls. 13-16, vindo a mim os autos conclusos.

É o relatório no essencial.

pRELIMINAR

Preliminarmente, verifico estarem presentes os requisitos de admissibilidade previstos

nos incisos I a IV do art. 212 do Regimento Interno, tendo sido a consulta formulada por

autoridade legitimada, tratar de matéria de competência desta Corte, conter indicação

precisa da dúvida e não se referir a caso concreto.

Nessas condições, conheço da consulta para respondê-la em tese.

MéRITO

A indagação formulada pelo consulente cinge-se ao alcance da norma contida no § 5º

do art. 40 da Carta Republicana de 1988, que estabelece a aposentadoria especial para

professores nos seguintes termos:

Art. 40.

[...]

§ 5º Os requisitos de idade e de tempo de contribuição serão reduzidos em 5 (cinco) anos, em relação ao disposto no § 1º, III, a, para o professor que comprove exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio.

De plano, verifica-se que a questão da competência legislativa, pela qual a Assessoria

de Estudos e Normatização iniciou o exame da matéria, já foi enfrentada na Consulta

n. 724.021, relatada pela Conselheira Adriene Andrade na sessão do Tribunal Pleno de

25/11/09, por meio da qual esta Corte de Contas firmou o entendimento de que, litteris:

O art. 40, § 5º, da Constituição Federal é uma norma constitucional de eficácia limitada que foi regulamentado pela Lei n. 11.301/06, cujos efeitos possuem aplicabilidade obrigatória e imediata a partir da sua entrada em vigor, não necessitando de qualquer regulamentação pelos Municípios.

Contudo, a Lei n. 11.301/06 deve ser aplicada nos termos da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI n. 3.772, que considerou como exercício do magistério as atividades exercidas pelos professores ocupantes do cargo efetivo de docência no ensino fundamental e médio e as funções de direção, coordenação e assessoramento pedagógico que integram essa carreira, ou seja, aquelas correspondentes a uma promoção interna, decorrentes das atividades desse cargo.

A unidade técnica, tomando como exemplo o disposto na alínea c do inciso VIII do art. 102 da

Lei n. 8.112, de 11/12/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis

federais, observa que a leitura de norma que, como essa, considera como efetivo exercício

o afastamento do servidor em virtude de licença para o desempenho de mandato classista,

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leva à falsa impressão de que tal tempo poderia ser computado para a aposentadoria especial

prevista no § 5° do art. 40 da Constituição de 1988. Mas conclui que essa interpretação é

incompatível com as limitações previstas no § 2º do art. 67 da Lei n. 9.394, de 20/12/96, que

assim estatui, in verbis:

Art. 67

[...]

§ 2º Para os efeitos do disposto no § 5º do art. 40 e no § 8º do art. 201 da Constituição Federal, são consideradas funções de magistério as exercidas por professores e especialistas em educação no desempenho de atividades educativas, quando exercidas em estabelecimento de educação básica em seus diversos níveis e modalidades, incluídas, além do exercício da docência, as de direção de unidade escolar e as de coordenação e assessoramento pedagógico.

A possibilidade de interpretar a norma constitucional, dando-lhe alcance mais extenso, é

matéria que esteve no cerne das ADIs n. 856-1 e 3.772, citadas no estudo complementar

da Diretoria Geral de Controle Externo. Especialmente no da ADI n. 856-1, da relatoria do

Ministro Celso de Mello, cujo objeto é, precisamente, a arguição da inconstitucionalidade

de dispositivo da Lei n. 9.841/93, do Rio Grande do Sul, que também considerava, como de

efetivo exercício nas funções de magistério, o período no qual o servidor estivesse ocupando

cargo de representação associativa ou sindical. Nessa ação direta de inconstitucionalidade,

o Pretório excelso assim decidiu, verbis:

A aposentadoria especial dispensada, excepcionalmente, a professores limita-se àqueles que se acham em efetivo exercício de funções de magistério, não se estendendo, em consequência, sob pena de inconstitucionalidade material, a quem, ainda que integrante do Quadro do Magistério Público, não desempenha atividade de caráter docente.

O efetivo exercício da função de magistério, a que se refere a Constituição da República, para efeito de aposentadoria especial, compreende, desse modo, o desempenho de atividade exclusivamente docente ‘em sala de aula’. Consequente impossibilidade jurídica de o Estado-membro ampliar o conceito de ‘efetivo exercício em funções de magistério’, para os fins indicados no texto constitucional (Acórdão unânime, publicado no DJ de 19/12/06).

Essa interpretação restrita do alcance do exercício do magistério foi, posteriormente, ampliada

pela Corte Suprema, no julgamento da ADI n. 3.772, cujo objeto era exatamente a arguição

da inconstitucionalidade do § 2º do art. 67 da Lei n. 9.394/96, com a redação dada pela Lei n.

11.301, de 10/05/06, acórdão no qual se baseou a resposta dada, por esta Corte, à Consulta

n. 724.021, mencionada no início.

Curiosamente nesse caso, a inconstitucionalidade, arguida com fundamento no mesmo

entendimento firmado pela jurisprudência até então dominante do Supremo Tribunal Federal,

foi superada pelo voto da maioria dos Ministros da Corte Suprema brasileira, que acabou

ampliando o conceito de exercício do magistério, nestes termos:

I — A função de magistério não se circunscreve apenas ao trabalho em sala de aula, abrangendo também a preparação de aulas, a correção de provas, o atendimento aos pais e alunos, a coordenação e o assessoramento pedagógico e, ainda, a direção de unidade escolar.

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II — As funções de direção, coordenação e assessoramento pedagógico integram a carreira do magistério, desde que exercidos, em estabelecimentos de ensino básico, por professores de carreira, excluídos os especialistas em educação, fazendo jus, aqueles que as desempenham, ao regime especial de aposentadoria estabelecido nos arts. 40, § 5º, e 201, § 8º, da Constituição Federal.

Não obstante esse novo entendimento assumido pela maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento da ADI n. 3.772, cujo acórdão foi publicado em 29/10/09, continua restrito o conceito de magistério, conforme interpretação autêntica contida na Lei n. 11.301/06, não abarcando a situação suscitada pelo consulente.

Conclusão: diante do exposto, tendo em vista o precedente deste Tribunal e a jurisprudência do Pretório excelso, entendo não ser possível à legislação municipal, sob pena de inconstitucionalidade, ampliar o conceito de efetivo exercício do magistério, para a aposentadoria especial prevista no § 5º do art. 40 da Carta Republicana de 1988, de modo a abranger a licença concedida ao professor para o exercício de mandato eletivo de representação classista.

Tenho, assim, por respondida a consulta.

A Consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 21/07/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Elmo Braz, Conselheira Adriene Andrade, Conselheiro Sebastião Helvecio e Conselheiro Substituto Hamilton Coelho que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pelo relator, Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz.

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RELATÓRIO

Trata-se de consulta subscrita pelo Sr. José Renato de Sousa, Prefeito do Município de Conceição das Alagoas, que formula a esta Corte de Contas o seguinte questionamento, in verbis:

É legítima a adequação no plano de carreira do magistério público municipal, principalmente quanto ao aumento do piso salarial da categoria, em face do excedente no limite de gastos com pessoal, estabelecido na Lei Complementar n. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal)?

O consulente apresenta tal indagação, tendo em vista o disposto no parágrafo único do

art. 206 da Carta Republicana, introduzido pela Emenda Constitucional n. 53./06, o qual

prevê que a lei disporá sobre as categorias de trabalhadores considerados profissionais da

[...] respondo ao consulente que, não obstante o excedente no limite de gastos com pessoal, é legítima a adequação do plano de carreira do magistério público municipal da educação básica, porque a instituição e a atualização do respectivo piso salarial constitui obrigação advinda da Lei Federal n. 11.738/08, e porque tal adequação encontra amparo jurídico no inciso I do parágrafo único do art. 22 da Lei Complementar Federal n. 101/00. Impõe-se ao Poder Público, entretanto, o dever de adotar, de plano, as medidas prescritas no art. 23 da própria LRF, que remete a conduta da Administração às providências definidas nos §§ 3º e 4º do art. 169 da Carta Política e no próprio art. 22 da LRF, consoante já demonstrado, tudo devidamente comprovado.

CONSULTA N. 812.465

RELATOR: CONSELHEIRO EM ExERCÍCIO GILBERTO DINIZ

Adequação do plano de carreira do magistério público municipal ao piso salarial nacional dos profissionais da educação básica

EMENTA: Consulta — Prefeitura Municipal — Plano de carreira do magistério público municipal — Adequação ao piso salarial nacional dos profissionais da educação básica — Necessidade, mesmo excedido o limite de gastos com pessoal — Amparo jurídico no inciso I do parágrafo único do art. 22 da LRF — Obrigação advinda da Lei Federal n. 11.738/08 — Adoção de medidas compensatórias para saneamento do desequilíbrio nos gastos com pessoal — Observância das providências prescritas nos arts. 22 e 23 da LRF e no art. 169, §§ 3º e 4º, da CR/88.

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educação básica e sobre a fixação de prazo para a elaboração ou adequação de seus planos

de carreira, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

A indagação também se justifica em face da Lei Federal n. 11.738/08, que regulamenta a

alínea e do inciso III do caput do art. 60 do ADCT da Constituição Federal para instituir o

piso salarial nacional dos profissionais do magistério público da educação básica, impondo

aos entes federados a obrigação de adequar os planos de carreira e remuneração daqueles

servidores até 31/12/09, e considerando, ainda, as disposições da alínea b do inciso III do

art. 20 e do parágrafo único do art. 22, ambos da Lei Complementar Federal n. 101/00, que

tratam dos limites de gastos com pessoal sobre a receita corrente líquida.

Em razão da relevância da matéria e da repercussão para os jurisdicionados, consoante faculta

o inciso I do art. 213 do Regimento Interno, encaminhei o processo à unidade técnica, que se

pronunciou a fls. 05-07, manifestando o entendimento de que o plano de carreira do magistério

público municipal deve se adequar aos ditames constitucionais e infraconstitucionais, adotando

a aplicação conjunta das normas, ou seja, para majorar os vencimentos dos servidores da

educação devem ser observados os seguintes comandos legais:

— inciso VIII do art. 73 da Lei Eleitoral n. 9.504/97, que proíbe fazer, na circunscrição do

pleito, ao longo do ano da eleição, revisão geral da remuneração dos servidores públicos que

exceda a recomposição da perda de seu poder aquisitivo;

— art. 21 da Lei Complementar n. 101/00, que considera nulo de pleno direito o ato de

que resulte aumento da despesa com pessoal expedido nos 180 dias anteriores ao final do

mandato do titular de Poder;

— art. 22, também da Lei Complementar n. 101/00, que contempla vedações ao Poder ou

órgão que tenha incorrido no excesso de 95% do limite de despesa com pessoal ao final de

cada quadrimestre.

Em sua manifestação, concluiu a unidade técnica que, visando sanear a extrapolação dos

limites de despesa com pessoal de modo a possibilitar a adequação do piso salarial do

magistério público municipal,

o titular de Poder ou órgão deve adotar, entre outras medidas, as impostas no art. 23

da Lei Complementar n. 101/2000, destacando-se aqui as providências previstas nos

§§ 3º e 4º do art. 169 da CR/88, ou seja, redução em pelo menos vinte por cento das

despesas com cargos em comissão e funções de confiança e exoneração dos servidores

não estáveis.

É o relatório, no necessário.

pRELIMINAR

Preenchidas as condições de admissibilidade fixadas expressamente nos incisos I a IV do art. 212

do Regimento Interno, considerando que a matéria é de competência do Tribunal, não versa

sobre caso concreto, contém indicação precisa da dúvida e foi subscrita por autoridade legítima,

voto, preliminarmente, pelo conhecimento da consulta.

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MéRITO

Antes de adentrar no mérito da indagação propriamente dita, convém ressaltar que, a despeito de a unidade técnica ter mencionado que o questionamento sob exame fora tratado de maneira correlata na Consulta n. 751.530, o tema ora enfrentado possui contornos próprios, porquanto cuida especificamente da adequação do plano de carreira do magistério público municipal ao piso salarial dos profissionais da educação básica, haja vista os ditames da Lei Federal n. 11.738/08 e as restrições impostas pela Lei Complementar Federal n. 101/00, Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

A consulta invocada pelo órgão técnico versa sobre a possibilidade de majoração da remuneração dos professores do ensino fundamental de forma a aplicar 60% do Fundeb dentro dos 180 dias que antecedem as eleições e, caso negativo, se poderia a Administração conferir abono ou gratificação para esses profissionais com os recursos daquele fundo.

Vê-se, pois, que as indagações formuladas possuem temáticas específicas, pelo que entendo não incidir o disposto no art. 214 do Regimento Interno, que determina ao relator dar ciência acerca de qualquer deliberação já tomada pelo Tribunal sobre a matéria em exame, após o relatório e antes de proferir seu voto.

Isso não significa dizer, todavia, que o parágrafo único do art. 21 da Lei Complementar Federal n. 101/00 e o inciso VIII do art. 73 da Lei Federal n. 9.504/97 — Lei Eleitoral, colacionados pela unidade técnica, os quais, respectivamente, considera nulo de pleno direito o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal expedido nos 180 dias anteriores ao final do mandato do titular do Poder ou órgão referido no art. 20, e proíbe, na circunscrição do pleito, ao longo do ano da eleição, a revisão geral da remuneração dos servidores públicos que exceda a recomposição da perda do seu poder aquisitivo, não devam ser observados pela Administração, mas que o cerne da indagação trazida pelo consulente no presente feito é distinto.

No mérito, para o deslinde da dúvida apresentada pelo Prefeito de Conceição das Alagoas é preciso evidenciar que, nos termos do § 1º do art. 2º da Lei Federal n. 11.738/08, piso salarial é o valor mínimo que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão observar ao fixar o vencimento inicial das carreiras do magistério público da educação básica, com formação em nível médio, na modalidade normal, exercendo carga horária de, no máximo, 40 horas semanais.

O objetivo do citado diploma legal foi assegurar remuneração condigna a esses profissionais, fixada, de início, em R$950,00, tendo sido previsto, conforme o art. 5º da lei, que, a partir do exercício de 2009, o piso deveria ser atualizado, anualmente, sempre no mês de janeiro. Na atualidade, esse valor corresponde a R$1.024,00, aproximadamente.

Ocorre que os arts. 19 e 20 da LRF impõem limites aos entes federados para as despesas com pessoal, e a majoração da remuneração para fins de adequação ao piso salarial em comento, por força da Lei Federal n. 11.738/08, pode ocasionar desequilíbrio nas finanças públicas, provocado pelo aumento dos sobreditos gastos, o que é vedado pela Constituição da República, notadamente no art. 169, e pela própria Lei Complementar Federal n. 101/00.

A propósito, o parágrafo único do art. 22 da LRF estabelece uma série de vedações ao Poder ou órgão, referidos no art. 20, se a despesa total com pessoal exceder a 95% do limite, das quais destaco a do inciso I, por se referir especificamente à questão posta

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em debate, que é proibir a concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de determinação legal ou contratual, ressalvada a revisão prevista no inciso X do art. 37 da Carta Magna.

Verifica-se, assim, que, de acordo com a lei, basta ser atingido o percentual de 95% do limite dos gastos com pessoal para que seja defeso à Administração conferir aos servidores públicos os aludidos acréscimos remuneratórios.

A própria norma contida no inciso I do parágrafo único do art. 22 da LRF possibilita, todavia, a adequação da remuneração dos profissionais do magistério público da educação básica ao piso salarial a que se refere a Lei Federal n. 11.738/08, que é a hipótese versada na presente consulta, porquanto, excepciona da vedação adequar a remuneração em virtude de ordem legal.

Esse permissivo jurídico não dispensa o Poder Público, por óbvio, de observar as demais proibições insertas no mencionado parágrafo único, as quais podem ser traduzidas como obrigações de não fazer, com destaque para:

Art. 22 [...]

Parágrafo único [...]

I — [...]

II — criação de cargo, emprego ou função;

III — alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa;

IV — provimento de cargo público, admissão ou contratação de pessoal a qualquer título, ressalvada a reposição decorrente de aposentadoria ou falecimento de servidores das áreas de educação, saúde e segurança;

V — contratação de hora-extra, salvo no caso do disposto no inciso II do § 6º do art. 57 da Constituição e as situações previstas na Lei de Diretrizes Orçamentárias.

Além de cumprir os sobreditos preceitos, a Administração Pública deverá adotar, por assim dizer, medidas compensatórias a fim de impedir ou sanear o desequilíbrio porventura gerado nos gastos com pessoal, pois, configurada a hipótese prevista no art. 23 da LRF, isto é, caso sejam ultrapassados os limites definidos no art. 20, o titular do Poder ou órgão, sem prejuízo das medidas previstas no art. 22, aqui excepcionada a adequação remuneratória de que tratam os autos, oriunda, como visto, de imposição legal, que é permitida no inciso I, deverá eliminar o percentual excedente nos dois quadrimestres seguintes, sendo pelo menos um terço no primeiro, adotando, entre outras, as providências previstas nos §§ 3º e 4º do art. 169 da Constituição.

Os dispositivos constitucionais acima indicados estabelecem verdadeiras obrigações de fazer, nos seguintes termos:

Art. 169. [...]

[...]

§ 3º Para o cumprimento dos limites estabelecidos com base neste artigo, durante o prazo fixado na lei complementar referida no caput, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios adotarão as seguintes providências:

I — redução em pelo menos vinte por cento das despesas com cargos em comissão e funções de confiança;

II — exoneração dos servidores não estáveis.

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§ 4º Se as medidas adotadas com base no parágrafo anterior não forem suficientes para assegurar o cumprimento da determinação da lei complementar referida neste artigo, o servidor estável poderá perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal.

Assim, a teor dos argumentos ora consignados, respondo ao consulente que, não obstante o excedente no limite de gastos com pessoal, é legítima a adequação do plano de carreira do magistério público municipal da educação básica, porque a instituição e a atualização do respectivo piso salarial constitui obrigação advinda da Lei Federal n. 11.738/08, e porque tal adequação encontra amparo jurídico no inciso I do parágrafo único do art. 22 da Lei Complementar Federal n. 101/00. Impõe-se ao Poder Público, entretanto, o dever de adotar, de plano, as medidas prescritas no art. 23 da própria LRF, que remete a conduta da Administração às providências definidas nos §§ 3º e 4º do art. 169 da Carta Política e no próprio art. 22 da LRF, consoante já demonstrado, tudo devidamente comprovado.

A título de informação e para fortalecer o entendimento ora esposado, devo registrar que a Corte de Contas do Estado do Mato Grosso, em 08/06/10, teve oportunidade de se manifestar acerca da matéria sob apreciação, também em sede de consulta, Processo n. 7.654-6/2009, cujo parecer se encontra assentado nos seguintes termos:

Resolução de Consulta n. ______. Despesa. Limite. Despesa com pessoal. Adequação ao limite. Previsão legal de piso salarial. Obrigatoriedade na concessão.

O reajuste salarial para os professores da educação básica deverá ser realizado nos moldes da Lei n. 11.738/2008, ainda que a despesa com pessoal exceda os 95% do limite previsto pela LRF. Concomitantemente a esse aumento, deverá o gestor adotar as providências previstas nos arts. 22 e 23 da LRF e no art. 169, §§ 3º e 4º, da Constituição Federal, para readequar o gasto com pessoal ao limite estipulado pela LRF. Ademais, outras medidas poderão ser adotadas visando o cumprimento das determinações da Lei n. 11.738/2008.

Para que seja efetivado o piso salarial tratado nestes autos, pela relevância para os entes da federação, merece ser salientada a norma fixada no art. 4º da Lei Federal n. 11.738/08, que determina, à União, complementar, na forma e no limite do disposto no inciso VI do caput do art. 60 do ADCT da Constituição da República e em regulamento, a integralização do valor do piso nos casos em que o ente federativo, a partir da consideração dos recursos constitucionalmente vinculados à educação, não tenha disponibilidade orçamentária para cumprir o valor estabelecido.

O citado art. 60 preceitua, mediante o inciso VI, que até 10% da complementação do Fundeb, pela União, prevista no inciso V, poderá ser distribuída para os fundos por meio de programas direcionados para a melhoria da qualidade da educação, na forma da lei a que se refere o inciso III do mesmo artigo.

A Resolução n. 2, de 23/01/09, da Comissão Intergovernamental de Financiamento para a Educação Básica de Qualidade, aprovada pela Portaria n. 484, de 28/05/09, do Ministro de Estado da Educação, estabelece, no caput do art. 2º, que os pedidos de complementação da União para o cumprimento do valor do piso deverão ser endereçados ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), e, por via dos incisos do art. 3º, arrola os requisitos para a concessão do complemento, a saber:

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Art. 3º Poderão apresentar pedidos os entes federados beneficiados pela complementação da União ao Fundeb, na forma do art. 4º da Lei n. 11.494, de 2007, que atendam, cumulativamente, aos seguintes requisitos:

I — apliquem pelo menos 30% (trinta por cento) da receita resultante de impostos, compreendidas as transferências constitucionais, na manutenção e no desenvolvimento do ensino, de acordo com os dados apurados pelo Siope;

II — preencham completamente as informações requeridas pelo Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Educação (Siope);

III — cumpram o regime de gestão plena dos recursos vinculados à manutenção e ao desenvolvimento do ensino, na forma do § 5º do art. 69 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996;

IV — apresentem planilha de custos detalhada, demonstrando a necessidade e a incapacidade para o cumprimento do valor do piso;

V — apresentem majoritariamente matrículas na zona rural, conforme apurado no censo anual da educação básica.

No tocante à elaboração ou adequação dos planos de carreira e remuneração dos profissionais do magistério da educação básica pública, convém alertar ao consulente que deverão ser observadas as normas estabelecidas na Resolução n. 2 de 28/05/09, do Conselho Nacional de Educação — Câmara de Educação Básica, que fixa as diretrizes nacionais para os sobreditos planos, em conformidade com o art. 6º da Lei n. 11.738, de 16/07/08, e com base nos arts. 206 e 211 da Constituição Federal, nos arts. 8º, § 1º, e 67 da Lei n. 9.394, de 20/12/96, e no art. 40 da Lei n. 11.494, de 20/06/07.

Por derradeiro, cumpre informar que a constitucionalidade da Lei Federal n. 11.738/08 foi arguída por meio da ADI n. 4.167-3, e o Supremo Tribunal Federal deferiu parcialmente a cautelar para fixar interpretação conforme o art. 2º da citada lei,

no sentido de que, até o julgamento final da ação, a referência do piso salarial é a

remuneração; deferiu a cautelar em relação ao § 4º do artigo 2º; e deu interpretação

conforme ao artigo 3º para estabelecer que o cálculo das obrigações relativas ao piso

salarial se dará a partir de 01 de janeiro de 2009.

Como se percebe, o deferimento parcial da cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade não inibe ou compromete a manifestação deste Tribunal de Contas, uma vez que tanto o escopo da Ação como a decisão da Suprema Corte de Justiça, até então prolatada, não alcançam o objeto desta consulta.

Conclusão: diante do exposto, Senhor Presidente, tenho por respondida a questão formulada pelo chefe do Poder Executivo de Conceição das Alagoas, Sr. José Renato de Sousa.

A Consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 25/08/10 presidida pelo Conselheiro Antônio Carlos Andrada; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Elmo Braz, Conselheira Adriene Andrade e Conselheiro Sebastião Helvecio, que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pelo relator, Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz.

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Aplicação do instituto da prescrição em processos sujeitos à jurisdição do Tribunal de Contas*1

* Entendimento não pacífico no Tribunal de Contas. Nesse sentido, ver decisão a fls. 149.

EMENTA: Convênios e termos aditivos — Exames de legalidade — Processos autuados no TCEMG há cerca de 10 anos — Inexistência de citação válida ou prática de qualquer outro ato interruptivo da prescrição — Observância dos princípios da ampla defesa, da segurança jurídica, da razoável duração do processo, da eficiência e da economicidade — Prevalência do princípio da segurança jurídica sobre o da legalidade estrita — Atendimento aos fins de justiça, paz social e bem comum — Vedação à eternização do direito de punir — Prescritibilidade das pretensões punitivas e corretivas do Tribunal — Extinção dos processos com resolução de mérito.

RELATÓRIO

Versam os presentes autos sobre convênios, contratos, termos aditivos e instrumentos congêneres autuados neste Tribunal há cerca de 10 anos, cujos exames de legalidade são objeto da análise desta Corte.

Não obstante o lapso temporal transcorrido, ao compulsar os autos não se verifica a existência de citação válida dos interessados.

CONVÊNIO N. 159.896 e outros

[...] não restam dúvidas de que a inviabilidade de se efetuar agora procedimentos de auditoria, em razão do protrair dos anos, não quer indicar o mero e simples arquivamento dos fatos constantes dos autos, a torná-lo insindicável, uma vez que a prescrição alcança tão somente as pretensões punitiva e corretiva, não havendo razão portanto para confundir a impossibilidade de expedir determinações (pretensão corretiva) ou de aplicar sanções (pretensão punitiva) com ressarcimento ao erário (pretensão reparatória).

RELATOR: AUDITOR LICURGO MOURÃO

ASSCOM TCEMG

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O Ministério Público de Contas procedeu à elaboração de pareceres circunstanciados,

constantes dos autos.

Os autos em epígrafe tiveram sua tramitação sobrestada em 17/07/09, em razão do Incidente

de Uniformização de Jurisprudência n. 796.548, suscitado por este relator na sessão da Primeira

Câmara do dia 11/12/08, tendo sido apreciada a matéria em 10/03/10.

É o relatório, em síntese, ressaltando-se que a proposta de voto original consta nos autos do

primeiro processo relacionado.

FUNDAMENTAÇÃO

O universo jurídico deve refletir as influências do decurso do tempo e não somente o

cotidiano da sociedade. Nesse viés, o Direito, enquanto ciência social aplicada, não pode

ser diferente, haja vista que se a sociedade se transforma, por consequência, a ciência deve

trilhar a mudança, sob pena de tornar-se estática, obsoleta, arcaica e, assim, o Direito não

poderá alcançar o seu propósito de atender o interesse público que visa à estabilidade e

confiança no ordenamento jurídico.

Ressalte-se que, no Estado de Direito, o ordenamento jurídico-positivo arrima-se em dois

axiomas principais: a justiça e a segurança. É nesse contexto que impende breve digressão

acerca do princípio da segurança jurídica e do instituto da prescrição — fenômeno que se verifica

pelo transcurso temporal, caracterizado pelos fatores operantes da inércia e do tempo —, visto

que os Tribunais de Contas necessitam harmonizar a segurança jurídica ao interesse público, no

exercício de seu mister constitucional.

1 Da segurança jurídica

É cediço que um dos princípios norteadores da Administração Pública é o princípio da

segurança jurídica, resguardado em nossa Constituição Federal de 1988 e textualmente

enumerado no caput do art. 2º da Lei Federal n. 9.784/99. Sua aplicação à função de controle

exercida pelo Poder Legislativo, com o auxílio das Cortes de Contas, dar-se-á quando restar

inoportuna a atuação do controle, tendente a desconstituir atos que se consolidaram com o

protrair dos anos.

Não se pode olvidar que a preservação do interesse público poderá implicar o reconhecimento

de que os atos administrativos tenham seus efeitos jurídicos preservados, quando a atuação

dos órgãos de controle não se der de modo tempestivo, situação na qual colidem os princípios da legalidade — a autorizar o exercício do controle a qualquer tempo — e o da segurança jurídica, a reclamar a estabilização das relações constituídas. Nesse sentido, é

o magistério do jurisconsulto Juarez Freitas,1 in verbis:

No atinente ao princípio da segurança jurídica, dimanante da ideia de Estado Democrático, significa que a Administração Pública deve zelar pela estabilidade e pela ordem nas relações jurídicas como condição para que se cumpram as finalidades do ordenamento. A estabilidade fará, por exemplo, que, em certos e excepcionais

1 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 62-75.

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casos, a Administração tenha dever de convalidar atos irregulares na origem. é que sem estabilidade não há justiça, nem paz, tampouco respeito às decisões administrativas.

[...] Como se vê, o princípio da confiança do administrado na Administração Pública e vice-versa deve ocupar, sob vários matizes, lugar de destaque em qualquer classificação dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito brasileiro, precisando operar como um dos norteadores supremos do controle das relações de administração, inclusive e especialmente para bem solver o problema da imprescritibilidade e da eventualíssima não decretação de nulidade dos atos administrativos, assim como, numa evidente correlação temática, para fixar limites à cogência anulatória de atos maculados por vícios originários (grifos nossos).

É consabido que, num sistema de normas constituído por regras e princípios constitucionais em

constante e necessária transformação que refletem uma sociedade dinâmica e heterogênea,

inevitáveis são os conflitos entre as espécies normativas, o que reclama a adoção de critérios

capazes de resolvê-los e salvaguardar a unidade e a coerência do ordenamento jurídico. A

propósito do tema, é do escólio de Paulo Bonavides2 a seguinte lição, com base nos estudos do

constitucionalista alemão Robert Alexy:

A distinção entre regras e princípios desponta com mais nitidez, no dizer de Alexy, é ao redor da colisão de princípios e do conflito de regras. Comum a colisões e conflitos é que duas normas, cada qual aplicada de per si, conduzem a resultados entre si incompatíveis, a saber, a dois juízos concretos e contraditórios de dever-ser jurídico. Distinguem-se, por conseguinte, no modo de solução do conflito. Afirma Alexy: ‘Um conflito entre regras somente pode ser resolvido se uma cláusula de exceção, que remova o conflito, for introduzida numa regra ou pelo menos se uma das regras for declarada nula (ungültig)’. Juridicamente, segundo ele, uma norma vale ou não vale, e quando vale, e é aplicável a um caso, isto significa que suas consequências jurídicas também valem.

Com a colisão de princípios, tudo se passa de modo inteiramente distinto, conforme adverte Alexy. A colisão ocorre, por exemplo, se algo é vedado por um princípio, mas permitido por outro, hipótese em que um dos princípios deve recuar. Isso, porém, não significa que o princípio do qual se abdica seja declarado nulo, nem que uma cláusula de exceção nele se introduza.

Antes, quer dizer — elucida Alexy — que, em determinadas circunstâncias, um princípio cede ao outro ou que, em situações distintas, a questão de prevalência se pode resolver de forma contrária. Com isso — afirma Alexy, cujos conceitos estamos literalmente reproduzindo — se quer dizer que os princípios têm um peso diferente nos casos concretos, e que o princípio de maior peso é o que prepondera (grifos nossos).

No mesmo diapasão, Emerson Garcia,3 estudioso do tema, assim pondera sobre a teoria do

constitucionalista norte-americano Ronald Dworkin:

Os princípios possuem uma dimensão de peso (dimension of weight), referencial de análise que contribuirá para a solução de colisões, permitindo a identificação daquele que irá preponderar. Assim, verificando-se que vários princípios incidem sobre determinada situação concreta, deverá o responsável pela solução do conflito valorar o peso relativo de cada um deles, identificando os princípios cuja utilização, total ou parcial, será

2 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 279-280.

3 GARCIA, Emerson. Conflito entre normas constitucionais: esboço de uma teoria geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 183.

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admitida ou afastada: os princípios se assemelham a ‘vetores’, expressando ‘forças’ que exigem seja calculada uma ‘resultante’. O princípio preterido preserva a sua força normativa, mas deixa de incidir na situação concreta, o que permite afirmar que a solução da colisão atua como incidente da aplicação da norma (grifos nossos).

E prossegue o Mestre Emerson Garcia,4 agora pautado na lição de Robert Alexy:

[...] Acresce o jurista alemão que os princípios coexistem e convivem harmonicamente, permitindo que, em caso de colisão, um deles seja preponderantemente aplicado ao caso concreto, a partir da identificação do seu peso e da ponderação com outros princípios, conforme as circunstâncias em que esteja envolto.

[...] Nas palavras de Alexy, ‘princípios e ponderações são dois lados do mesmo objeto. Um é do tipo teórico-normativo, o outro, metodológico. Quem efetua ponderações no direito pressupõe que as normas, entre as quais é ponderado, têm a estrutura de princípios e quem classifica normas como princípios deve chegar a ponderações. A discussão sobre a teoria dos princípios é, com isso, essencialmente, uma discussão sobre ponderação.’ (ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no Estado de Direito Democrático. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 217, p. 75, jul./set. 1999) (grifos nossos).

A respeito da colisão de princípios, assim assentou o egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em voto lapidar da Desembargadora Relatora Maria Elza, no Processo n. 1.0024.06.073260-9, do qual se extraem os seguintes excertos, verbis:

Certo é que vivemos em uma fase histórica do Direito em que resta patente a ascensão dos princípios, estando eles dotados de alta carga axiológica e dimensão ética, aos quais os intérpretes têm atribuído ampla eficácia jurídica e aplicabilidade direta e imediata. E ao contrário das regras, que normalmente expressam relatos objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações, os princípios expressam valores a serem preservados ou fins públicos a serem realizados, sem especificar, portanto, a conduta a ser seguida.

É o que leciona o eminente constitucionalista Luís Roberto Barroso ao analisar o papel do intérprete do direito diante de tal quadro em que vige o alto grau de aplicabilidade dos princípios, no qual se mostra inaplicável o método tradicional de aplicação do Direito pelo qual se realiza uma subsunção do fato à norma e pronuncia-se a conclusão. [...] em uma ordem democrática, princípios frequentemente entram em tensão dialética, apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá se dar mediante ponderação: o intérprete irá aferir o peso de cada um, à vista das circunstâncias, fazendo concessões recíprocas. Sua aplicação, portanto, não será no esquema tudo ou nada, mas graduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou por situações de fato’ (Temas de direito constitucional. Tomo III. São Paulo: Renovar, 2005, p. 81-83).

[...] Em razão do princípio da unidade da Constituição, inexistindo hierarquia entre os diversos princípios constitucionais, o intérprete, ao se deparar em um caso concreto com a existência de dois ou mais direitos fundamentais que, se aplicados de maneira ampla e integral, mostram-se contrários à solução da demanda, deve lançar mão do método da ponderação de interesses, de modo a aplicar aquele princípio preservando o máximo de cada um dos valores em conflito, realizando um juízo apto a tornar prevalente aquele que importe a menor lesão ao outro, sem, contudo,

4 GARCIA, op. cit., p. 187.

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extirpá-lo ou esvaziá-lo em seu sentido (grifos nossos).

Assim, tem-se que na resolução da colisão entre princípios constitucionais devem ser consideradas as circunstâncias que cercam o caso concreto para que, pesados os aspectos específicos da situação, prepondere o preceito mais adequado. A tensão se resolve mediante uma ponderação de interesses opostos, determinando qual destes interesses, abstratamente, possui maior peso no caso concreto.

Modernamente, não há que se entender que a atividade de controle possa exceder a limites protetivos do cidadão, entre eles o da segurança jurídica. Nesse sentido é a lição de Júlio César Costa Silveira,5 membro do Ministério Público do Rio Grande do Sul, em sua tese de doutorado, verbis:

Caracterizado, fundamentalmente, por um dogmatismo associado de forma irrestrita ao princípio da legalidade estrita, o princípio da segurança jurídica, embora sempre tenha sido vocacionado à proteção dos interesses que estejam em total adequação aos textos legais, acabou por retratar uma certa distonia entre a sua essência protetiva e a regra jurídica formalmente produzida pelo Estado. Circunstâncias oriundas de comportamentos reconhecidos como lastreados, principalmente, pela boa-fé dos administrados, aos quais, por decorrência de tal constatação, passaram a exigir uma proteção mínima à da confiança decorrente de tal postura subjetivamente alicerçada, acabaram por forçar e exigir a garantia de uma maior estabilidade para as situações jurídicas, mesmo aquelas que na sua origem pudesse apresentar algum vício por decorrência de ilegalidade. Em razão dessa nova visão, a própria idéia de Estado de Direito passou por mutações marcadas por uma maior flexibilização de suas estruturas normativas, diminuindo, sob certa ótica, a força, até então irresistível, atribuída ao princípio da legalidade estrita. Nesse passo, portanto, assumiram, ambos os princípios, a condição de subprincípios, de molde a, por força dessa nova concepção, passarem a integrar o conceito de Estado, não mais limitado pela submissão inafastável ao direito positivo, mas com a maleabilidade assegurada por um novo modelo de ordenação político-social, qual seja a do Estado Democrático de Direito (grifos nossos).

Discorrendo acerca do tema, cita o representante do Parquet gaúcho que a quebra do paradigma interpretativo então vigente mereceu a atenção de juristas de escol, entre eles Almiro do Couto e Silva.6 Para Júlio César Costa Silveira,7 citando Mauro Roberto Gomes de Mattos, verbis:

O acolhimento do princípio da segurança jurídica, nos termos dessa nova visão, possibilitou, mormente pela força integradora da democracia como fator de busca permanente da equalização e uniformização das diferenças, que se utilizasse tal princípio como forma de instrumento de obstaculização da atividade da Administração Pública, em específico nas circunstâncias em que a sua inação a caracterizava por um período dilargado de tempo, desde que inocorrendo qualquer conduta informada por má-fé dos administrados interessados, ou eventualmente beneficiados por tal inação administrativa. Transpondo tais princípios para a esfera das relações disciplinadas pelo: [...] direito público, a prescrição funciona também como fator de estabilidade na relação dos administrados

5 SILVEIRA, Júlio César Costa. Da prescrição administrativa e o princípio da segurança jurídica: significado e sentido. 2005. 412 f. Tese (Doutorado em Direito) — Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005. f. 134-135.

6 COUTO E SILVA, Almiro do. Prescrição quinquenária da pretensão anulatória da administração pública com relação a seus atos administrativos. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 204, p. 24, abr./jun. 1996.

7 MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Da prescrição intercorrente no processo administrativo disciplinar. Seleções Jurídicas, São Paulo: COAD, p. 58, mar. 2002 apud SILVEIRA, op. cit., p. 135-136.

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com a Administração Pública e vice-versa (grifos nossos).

2 Da prescrição incidente no âmbito do Tribunal de ContasNa busca pelo estabelecimento do prazo de prescrição aplicável aos processos sujeitos às Cortes de Contas, visando à harmonização da segurança jurídica com o interesse público, faz-se necessário anotar as principais características do instituto da prescrição. Esse surgiu no ordenamento a fim de trazer segurança às relações jurídicas que poderiam ser atingidas, em razão da indeterminação de prazo para a propositura das respectivas ações assecuratórias de direitos. Na vetusta lição do jurista alagoano Pontes de Miranda:8

Os prazos prescricionais servem à paz social e à segurança jurídica. Não destroem o direito, que é; não cancelam, não apagam as pretensões; apenas, encobrindo a eficácia da pretensão, atendem à conveniência de que não perdure por demasiado tempo a exigibilidade ou a acionabilidade.

A prescrição é, em síntese, a extinção da pretensão, em razão da inércia do seu titular, pelo decurso de determinado lapso temporal. O que se extingue é a ação e não propriamente o direito, ficando este incólume. Sobre o tema, cumpre colacionar a lição de San Tiago Dantas, citado por Marques:9

Esta influência do tempo, consumido o direito pela inércia do titular, serve a uma das finalidades supremas da ordem jurídica, que é estabelecer a segurança das relações sociais. Como passou muito tempo sem modificar-se o atual estado das coisas, não é justo que se continue a expor as pessoas à insegurança que o direito de reclamar mantém sobre todos, como uma espada de Dâmocles. A prescrição assegura que, daqui em diante, o inseguro é seguro; quem podia reclamar não mais pode. De modo que o instituto da prescrição tem suas raízes numa das razões de ser da ordem jurídica: estabelecer a segurança nas relações sociais — fazer que o homem possa saber com que conta e com o que não conta (grifos nossos).

Ao tratar do assunto, assevera o jurista pernambucano Aníbal Bruno:10

O tempo que passa, contínuo, vai alterando os fatos e com estes, as relações jurídicas que neles se apóiam. E o direito, com o seu senso realista, não pode deixar de atender a essa natural transmutação de coisas [...]. Além disso, o fato cometido foi-se perdendo no passado, apagando-se os seus sinais físicos e as suas circunstâncias na memória dos homens; escasseiam-se e tomam-se incertas as provas materiais e os testemunhos e assim crescem os riscos de que o juízo que se venha a emitir sobre ele se extravie, com grave perigo para a segurança do direito. Umas e outras razões fazem da prescrição um fato de reconhecimento jurídico legítimo e necessário. Em todo caso, um fato que um motivo de interesse público justifica (grifos nossos).

Aliás, nunca é por demais salientar, que a prescrição alcança até mesmo as ações penais nos crimes dolosos contra a vida. Nesse sentido, os comentários do eminente Juiz Federal Daniel Machado da Rocha,11 verbis:

8 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral. Tomo VI. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, p. 101.

9 DANTAS, San Tiago apud MARQUES, Raphael Peixoto de Paula. O instituto da prescrição no Direito administrativo. Revista do Tribunal de Contas da União, p. 54-55, jan./mar. 2003.

10 BRUNO, Aníbal apud CORDEIRO, Renato Sobrosa. Prescrição administrativa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 207, p. 105-120, jan./mar. 1997.

11 ROCHA, Daniel Machado da. O princípio da segurança jurídica e a decadência do direito de revisão do ato de concessão de benefício previdenciário. Revista da AJUFERGS, Rio Grande do Sul, v. 03, p. 160, 2006. Disponível em: <http://www.ajufergs.org.br/revistas/rev03/06_daniel_machado_da_rocha.pdf>. Acesso em: 28 nov. 2008.

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Se até no Direito Penal, que tutela os bens jurídicos mais caros ao corpo social, os efeitos do tempo também fulminam a pretensão estatal de punir os delitos mais graves, qual a justificativa para perpetuar o direito de a administração pública desconstituir os seus atos? De fato, quando a ordem jurídica pretende não prescrever algum direito, o diz de maneira expressa (CF, arts. 5º, XLII; 182, § 3º e 191, parágrafo único). Quer dizer, a prescritibilidade é a regra, e a imprescritibilidade, a exceção (grifos nossos).

No mesmo diapasão estão os comentários de Rita Tourinho,12 Promotora de Justiça do Estado

da Bahia, verbis:

Como vimos, os prazos prescricionais estão a serviço da paz social e da segurança jurídica, valores primordiais à coletividade, que não podem ser suplantados por interesses de cunho patrimonial, mesmo que este pertença ao Estado. Observe-se que a preocupação com tais valores é tamanha em nosso ordenamento jurídico que até o crime de homicídio, que atenta contra a vida — bem maior, passível de proteção — prescreve em 20 anos (grifos nossos).

Infere-se desse modo que no Direito Administrativo não é diferente, pois a prescrição se inscreve como princípio informador de todo o ordenamento jurídico, não se admitindo incertezas nas relações reguladas pelo direito. Na lição de Renato Sobrosa Cordeiro: “É regra geral de ordem pública, que se inscreve nos estatutos civis, comerciais e penais, submetendo-se as relações jurídico-administrativas a tal postulado.”13

Nesse sentido, a prescrição servirá como convalidadora de atos administrativos, entre eles os bilaterais, tais como, os contratos, convênios e seus congêneres. Veja-se a lição de Júlio César Costa Silveira,14 verbis:

As peculiariedades que tornam o Direito Administrativo um território marcado por contornos extremamente específicos, exige que a atividade de convalidação reste balizada por critérios de natureza pública. Entretanto, no que se refere ao fenômeno prescricional, não há obstáculo algum que se lhe reconheça, na hipótese de que o ato administrativo não reste convalidado, resulte sanado por força do evento prescricional. Isto porque a estabilidade e a ordem das relações jurídicas caracterizam-se como um objetivo fundamental a ser observado pela Administração Pública. Neste escopo a prescrição administrativa virá a estatuir a indispensável segurança jurídica. [...] Desse modo, conforme o até aqui realçado, no caso dos atos nulos, a prescrição administrativa assume, além da condição de fenômeno extintivo do poder de autotutela peculiar à Administração Pública, a feição de força sanatória dos eventuais vícios portados pelo ato administrativo. Neste sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto15 explicita que: ‘A prescrição produz, assim, uma sorte de sanatória indireta ou ‘não voluntária’, como preferimos classificá-la [...], considerando ‘interna’, aquela que se dá no âmbito da Administração, impedindo-a de rever seus próprios atos, seja ex-officio seja sob provocação, e, ‘externa’, aquela que impede o Judiciário de operar a correção da violação de direitos subjetivos acaso ocorrida. Como se vê, em ambos os casos produzem-se ‘efeitos sanatórios’, ainda que os atos inquinados como tal permaneçam.’

Desse modo, resta inexorável reconhecer-se que a prescrição administrativa exerce, 12 TOURINHO, Rita. A prescrição e a lei de improbidade administrativa. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, n. 12,

out./dez. 2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 28 nov. 2008.

13 CORDEIRO, op. cit., p. 105-120.

14 SILVEIRA, op. cit., p. 252-254.

15 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 156 apud SILVEIRA, op. cit., p. 252-254.

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entre outros de seus efeitos, a força de evento convalidador dos vícios eventualmente portados pelos atos administrativos, ante a imobilidade da Administração Pública no exercício de seu poder de autotutela. Dá-se tal circunstância em razão de diversas diretrizes que, hodiernamente, o Direito Administrativo vê-se submetido, conforme acima explicitado. O primeiro de tais paradigmas é a relativização do princípio da legalidade. O segundo diz respeito ao acatamento do princípio da boa-fé dos administrados e dos servidores, os quais acreditam na legitimidade e na legalidade dos atos administrativos, além da presunção que lhes é inerente e integrante. Por fim, o terceiro referencial está diretamente associado ao princípio da segurança social, no fito de que a ordem, a estabilidade e a certeza das relações jurídicas nas quais intervém a Administração Pública, não restem marcadas pela desconfiança e pela insegurança, gerando-se, de tal circunstância, forte instabilidade social, o que se mostra totalmente inadequado ao Estado Democrático de Direito (grifos nossos).

Na espécie, conforme dito, deveria esta Corte — em observância ao princípio da legalidade

estrita que impõe ao Tribunal de Contas o exercício de seu mister fiscalizatório — determinar

as medidas corretivas e/ou punitivas, embora extemporâneas e pouco efetivas em razão do

protrair dos anos. Entretanto, a nosso ver, impõe-se a incidência do princípio da segurança

jurídica, consubstanciado na utilização do instituto da prescrição, aplicável analogicamente

aos processos sujeitos à jurisdição das Cortes de Contas, de acordo com o permissivo inserto na

Constituição Mineira, § 7º do art. 76, mediante a Emenda à Constituição n. 78, de 05/10/2007,

reproduzido no art. 118 da Lei Complementar Estadual n. 102, de 17/01/2008.

A utilização de um instituto de Direito Civil em processos de controle, regidos por normas de

Direito Administrativo, evidencia a necessidade de integração do direito, uma vez que, na lição

de Limonge França,16 citando Francesco Ferrara, analogia é, verbis:

[...] raciocínio que, partindo da solução prevista em lei para certo objeto, conclui pela validade da mesma solução para outro objeto semelhante não previsto. O mesmo processo, diga-se de passagem, pode ser adotado com relação ao costume, à jurisprudência etc. [...] Noutras palavras, diz Ferrara que ela é a aplicação de um princípio jurídico que a lei estabelece, para um certo fato, a um outro fato não regulado, mas juridicamente semelhante ao primeiro (grifos nossos).

Nos casos em apreço, há que se admitir a prescritibilidade das pretensões punitiva e corretiva

desta Corte, pois além de se tratar de processos despidos de qualquer elemento probatório,

mesmo após o transcurso de cerca de 10 anos de suas autuações, estar-se-ia admitindo a

eternização do direito de punir, o que é vedado pelo disposto no art. 5°, XLVII, alínea b, da

Constituição da República.

Veja-se que o mister de fiscalizar — verdadeiro poder-dever — é um direito exercido pelos

Tribunais de Contas em defesa do erário e da própria sociedade. Desse direito emanam,

várias pretensões, quais sejam: a de agir, expedindo determinações positivas e negativas

(pretensão corretiva); a de punir ilícitos no âmbito de sua competência (pretensão

punitiva); e a de apurar danos ao erário (pretensão reparatória).

Sobreleva notar que atualmente até mesmo a sólida construção da imprescritibilidade das 16 FERRARA, Francesco. Trattato di diritto civile italiano. Roma, 1921, v. I, p. 227, apud FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica

jurídica. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 41-43.

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ações reparatórias de dano ao erário vem sendo discutida no meio acadêmico, embora

entendamos não se confundir a reparação do dano com a aplicação de pena pecuniária.

A propósito, a lição do Procurador do Estado de Minas Gerais e Professor da Faculdade de

Direito da UFMG, Érico Andrade,17 verbis:

O art. 37, § 5°, da Constituição Federal parece, de forma indireta, declarar que a ação

de ressarcimento de danos ao erário seria imprescritível. Todavia, esse entendimento

mostra-se insustentável perante o próprio ordenamento jurídico vigente, pois a

Constituição Federal estabelece, como direito e garantia fundamental, a vedação de

penas perpétuas — art. 5°, XLVII, b. Ora, no caso, a se entender imprescritível o ressarcimento, estar-se-ia criando a possibilidade, eterna, de se demandar, v.g., um tataraneto de um administrador ímprobo [...] Criada estaria, assim, em antinomia com a própria Constituição, uma pena perpétua. [...] Tanto é certa a prevalência do direito fundamental de vedação de penas perpétuas sobre a norma do art. 37, § 5°, CF, que o art. 23, I, da Lei n. 8.429/92, prevê a prescrição quinquenal para a aplicação de suas sanções — entre as quais se situa, obviamente, o perdimento de bens ou imposição de indenizar o erário (grifos nossos).

Aliás, não se pode olvidar que a imprescritibilidade das pretensões em defesa dos direitos

por parte do Estado é, há muito, alvo de críticas dos mais autorizados juristas brasileiros,

entre eles as do incomparável Mestre cearense Clóvis Beviláqua,18 em seus comentários ao

Código Civil então vigente, verbis:

Manteve o Código Civil o privilégio da União, quanto à prescrição quinquenária de suas dívidas passivas, e concedeu-a, também aos Estados e Municípios, que não gozavam desse benefício. A razão não justifica semelhante privilégio e, muito menos, a imprescritibilidade das dívidas ativas, que vemos resultar dos termos do art. 66, III, combinados com o art. 67 (grifos nossos).

Feita tal digressão e retornando ao ponto nodal, in casu, impõe-se a prevalência do princípio da segurança jurídica sobre o da legalidade estrita, com a aplicação de um de seus institutos assecuratórios que é a prescrição, notadamente depois de considerável

lapso temporal. Nesse sentido, mais uma vez, é a lição de Júlio César Costa Silveira,19 ao

citar Almiro do Couto e Silva:

A recepção de princípios, a título de diretrizes, com força de orientação ao agir do administrador público, permitiu que se visualizassem tais circunstâncias sob o prisma da passagem do tempo. Tanto é assim que, na visão de Almiro Couto e Silva: ‘[...] os atos inválidos praticados pela Administração Pública, quando permanecem por largo tempo, com a tolerância do Poder Público, dando causa a situações perfeitamente consolidadas, beneficiando particulares que estão de boa-fé, convalidam, convalescem ou sanam. [...] É importante que se deixe bem claro, entretanto, que o dever (e não o poder) de anular os atos administrativos inválidos só existe, quando no confronto entre o princípio da legalidade e o da segurança jurídica o interesse público recomende que aquele seja aplicado e este não. Todavia, se a hipótese inversa verificar-se, isto é, se o interesse público maior for de que o princípio aplicável é o da segurança jurídica

17 ANDRADE, Érico. O controle judicial da responsabilidade fiscal: ação civil pública de improbidade. Revista Jurisprudência Mineira, Belo Horizonte: Ejef/TJMG, v. 165, p. 49, jul./set. 2003.

18 BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1956, p. 379.

19 COUTO E SILVA apud SILVEIRA, op. cit., p. 248-250.

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e não o da legalidade da Administração Pública, então a autoridade competente terá o dever (e não o poder) de não anular, porque se deu a sanatória do inválido, pela conjunção da boa-fé dos interessados com a tolerância da Administração e com razoável lapso de tempo transcorrido.’

Ora, a partir de tal compreensão, em aceitando-a, o que nos parece, no mínimo, razoável, nada obstaria que se possa admitir que, muito mais do que a mera convalidação do ato administrativo viciado por força do decurso do tempo, o acatamento da possibilidade do reconhecimento da prescrição administrativa exsurge como fator com consequência fática idêntica, no sentido de impedir que tais atos possam vir a ser revogados ou anulados por parte da Administração Pública.

Importa destacar que o que aqui se busca evidenciar diz respeito à prescrição administrativa, ou seja, fator impeditivo do exercício do poder-dever de anular o ato nulo a ser reconhecido pela própria Administração Pública.

Tal compreensão, aliás, não se mostraria esdrúxula e totalmente dissonante no espaço da regulação jurídica, na medida em que tal reconhecimento é fator indiscutível na esfera regulada pelo direito privado, não se criando, ante tal compreensão, nenhuma circunstância que possa ser tida como absurda, face aos parâmetros do ordenamento jurídico pátrio.

Ora, reconhecida a possibilidade de convalidação, enquanto ato jurídico de maior abrangência, em caso de inexistência de um tempo legalmente determinado para tal atuação, possibilitado também estará o reconhecimento da prescrição administrativa, na medida em que tal efeito extintivo também pode restar compreendido como evento que, em razão de seus particulares efeitos, acabaria por produzir efeito de natureza sanatória (grifos nossos).

Conforme dito alhures, verificando-se tratar-se de assuntos sujeitos ao controle externo

autuados há muitos anos, sendo certo ainda que não foi realizada a citação válida dos

responsáveis ou interessados, bem como não foi praticado qualquer outro ato com vistas à

instrução processual, impõe-se a aplicação do instituto da prescrição às pretensões punitiva

e corretiva das Cortes de Contas, apurando-se responsabilidades de quem lhe deu causa.

Ainda, considerando todo o exposto, ao cumprir o seu mister, não seria razoável que o

Tribunal de Contas, a fim de alcançar a efetividade no controle externo da gestão pública,

promovesse a citação das partes interessadas ou a realização de diligência para a juntada

de documentos, objetivando o saneamento destes autos, haja vista a ineficácia, por

extemporânea, a nosso ver, dessas medidas.

Há de se registrar, por fim, que após o transcurso de vários anos, além da ineficácia de uma

análise puramente formal, torna-se difícil e onerosa, senão impossível, a apresentação de

defesa ou documentos que em tese formariam o arcabouço de provas, não só por parte do

jurisdicionado, mas também para a formação do convencimento de eventuais falhas pelo

próprio Tribunal de Contas.

2.1 Do prazo prescricional

A Constituição da República de 1988 adotou a prescritibilidade como regra e a fez no capítulo

denominado “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, explicitando as exceções, quais

sejam: os crimes consistentes na prática do racismo e na ação de grupos armados contra a ordem

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constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, incisos XLII e XLIV) e as ações de ressarcimento por

prejuízos causados ao erário, em seu art. 37, § 5º.

Destarte, se somente tais crimes e tais ações são imprescritíveis, há que se admitir a prescrição das pretensões punitiva e corretiva — exercidas pelo Estado contra o responsável

pela prática dos demais ilícitos — observada a legislação de regência.

Entretanto, a fixação de um prazo prescricional ante o silêncio legislativo, notadamente no

que toca ao exercício da função de controle, é ponto de intenso debate doutrinário. Nesse

sentido, adverte-nos Júlio César Costa Silveira,20 verbis:

Questão controvertida, entre tantas outras que gravitam em torno do instituto da prescrição administrativa, diz respeito ao silêncio do legislador em relação ao prazo prescricional. [...] A postura de buscar apoio no sistema legislado, a partir de um caso de regulação particular, para o efeito de situar um prazo que possa ser generalizado, de modo que, nos casos de omissão de manifestação legislativa, tenha-se um parâmetro a ser universalizado, esbarra na circunstância de que, além do fato de que muitas leis, na esfera de regulação administrativa, estatuem lapsos temporais diversos, a escolha de um só critério mostra-se extremamente problemático, ante a razão de que, de imediato, o primeiro gesto a ser praticado diz respeito à necessária demonstração da legitimidade da escolha procedida.

Tanto é assim que a própria escolha, tradicionalmente procedida, qual seja em relação aos prazos estatuídos pelo Direito Civil, padece da mesma ilegitimidade, dado que a escolha de tal critério não espelha ou indica a sua origem a partir de critério que possa ser havido, no âmbito do direito público, como um critério inquestionavelmente adequado.

[...] Ante tais perspectivas, não resulta inviável, portanto, deixar-se de envidar um esforço preliminar para a identificação de um prazo a ser universalizado. Poderíamos, por exemplo, partir de um critério inicial apoiado em diplomas legais, no âmbito da regulação administrativa, nos quais tal lapso resta fixado entre dois e cinco anos. Para tanto se usaria, como referência, as Leis: n. 8.429, de 02 de junho de 1992; n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990; e n. 4.717, de 29 de junho de 1965, as quais, devem, por óbvio, serem compreendidas a partir do estabelecido pelo art. 37, § 5º, da Constituição Federal. Como consequência deste primeiro movimento de intelecção, de imediato exsurgem duas variáveis de identificação de tal concepção, quais sejam: a de que inexiste prescrição na esfera administrativa, salvo com expressa previsão legal; e que tais prazos serviriam como uma forma de identificação daquilo que se convencionou designar como sendo o espírito do legislador.

Percebe-se desde logo que a simples utilização de um ou mais diplomas legais para o efeito de assumirem, a título de referência, a função de identificação de um prazo a ser universalizado, caracteriza tarefa que já se depara com embaraço intransponível, na medida em que a própria lei abstém-se de firmar, de modo claro, incontroverso e pontual, um prazo fixo para as hipóteses que ultrapassam o seu conteúdo normativo. Ou seja, tais estatutos legais, de início, manifestam, de forma incontroversa, os limites e a temática que visam obedecer e regular, respectivamente, não dando, contudo, um passo além de si próprios.

Ante tal perspectiva, construiu-se uma nova tentativa de solução. Qual seja: ante a ausência de previsão legal expressa a respeito do prazo para correção dos atos administrativos ilegais, por parte da própria Administração Pública, deslocaram-se os intentos para a

20 SILVEIRA, op. cit., p. 315-318.

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construção de um critério a partir dos paradigmas estatuídos pelo estudo das nulidades e anulabilidades, no âmbito do Direito Administrativo, cuja característica maior é a de ter-se sedimentado sob a influência do Direito Civil (grifos nossos).

Embora não havendo ainda consenso acerca da matéria, o Tribunal de Contas da União — com amparo no voto do Ministro Guilherme Palmeira, no Acórdão n. 1.263/2006 da 1ª Câmara — utilizou os seguintes critérios para análise dos prazos prescricionais, em analogia com as normas de Direito Privado, estatuídas no Código Civil Brasileiro, in verbis:

Com a entrada no universo jurídico do novo Código Civil, a regra geral dos prazos prescricionais, disciplinada pelo art. 205, passou a ser de 10 anos, prazo que vem sendo observado pelo TCU em suas deliberações. Neste sentido, vem a propósito reproduzir parte do Acórdão n. 1.727/2003 — 1ª Câmara da relatoria do nobre Ministro Augusto Sherman Cavalcanti:

[...]

8. Entretanto, com a edição do novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002) e o início de sua vigência em 01/01/2003, os prazos prescricionais sofreram sensível alteração. A regra geral passou a ser o prazo de 10 (dez) anos, conforme dispõe seu art. 205: ‘Art. 205. A prescrição ocorre em 10 (dez) anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor’.

9. Registre-se que o novo Código não trouxe previsão de prazo prescricional específico para a cobrança de dívidas ativas da União, dos Estados ou dos Municípios, o que, ante a ausência de outra legislação pertinente, nos leva à aplicação da regra geral para as dívidas ativas decorrentes de atos praticados após 01/01/2003.

10. Com referência aos prazos já em andamento quando da entrada em vigor do novo Código Civil, este estabeleceu em seu art. 2.028: ‘Art. 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada’.

11. Desta feita, entendo, salvo melhor juízo, que quando ocorrerem, simultaneamente, as duas condições estabelecidas no artigo retromencionado — quais sejam, redução do prazo prescricional pelo novo Código Civil e transcurso, em 01/01/2003, de mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada — continuarão correndo os prazos na forma da legislação pretérita.

12. Deve-se enfrentar, ainda, nos casos em que os fatos ocorreram na vigência do Código Civil de 1916, o tema atinente ao termo inicial para contagem do prazo prescricional previsto na nova legislação. Duas teses se apresentam. A primeira, de que a contagem do prazo inicia-se na data em que o direito foi violado (art. 189 do Código Civil de 2002). A segunda, de que o prazo inicia-se em 01/01/2003, data em que o novo Código Civil entrou em vigor.

13. Entendo que a segunda tese é a que melhor se harmoniza com o ordenamento jurídico. Julgo que a regra de transição estabelecida no art. 2.028 do novo Código Civil veio para evitar ou atenuar efeitos drásticos nos prazos prescricionais em curso. A aplicação da primeira tese, de forma contrária, promoveria grandes impactos nas relações jurídicas já constituídas. Em diversos casos, resultaria na perda imediata do direito de ação quando, pela legislação anterior, ainda restaria mais da metade do prazo prescricional.

[...]

15. No âmbito deste Tribunal, em síntese, entendo deva-se aplicar o prazo prescricional de 10 (dez) anos, previsto no art. 205 do novo Código Civil, quando não houver, em 01/01/2003, o transcurso de mais da metade do prazo de 20 (vinte) anos estabelecido na lei revogada.

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Sendo caso de aplicação do prazo previsto no novo Código Civil, sua contagem dar-se-á por inteiro, a partir de 01/01/2003, data em que a referida norma entrou em vigor. Ao contrário, quando, em 01/01/2003, houver transcorrido mais da metade do prazo de 20 anos, a prescrição continua a correr nos moldes do Código Civil anterior (grifos nossos).

Lado outro, insta salientar a advertência de Celso Antônio Bandeira de Mello21 de que a analogia com o Direito Civil, ante a omissão legislativa na fixação de prazo prescricional em matéria de Direito Administrativo, não se revela a mais correta, in verbis:

Não há regra alguma fixando genericamente um prazo prescricional para as ações judiciais do Poder Público em face do administrado. Em matéria de créditos tributários o prazo é de cinco anos, a teor do art. 174 do Código Tributário Nacional, o qual também fixa, no art. 173, igual prazo para a decadência do direito de constituir o crédito tributário. No passado (até a 11ª edição deste curso) sustentávamos que, não havendo especificação legal dos prazos de prescrição para as situações tais ou quais, deveriam ser decididos por analogia aos estabelecidos na lei civil, na conformidade do princípio geral que dela decorre: prazos longos para atos nulos e mais curtos para os anuláveis. Reconsideramos tal posição. Remeditando sobre a matéria, parece-nos que o correto não é a analogia com o Direito Civil, posto que, sendo as razões de Direito Público, nem mesmo em tema de prescrição caberia buscar inspiração em tal fonte. Antes dever-se-á, pois, indagar do tratamento atribuído ao tema prescricional ou decadencial em regras genéricas de Direito Público.

[...] Vê-se, pois, que este prazo de cinco anos é uma constante nas disposições gerais estatuídas em regras de Direito Público, quer quando reportadas ao prazo para o administrado agir, quer quando reportadas ao prazo para a Administração fulminar seus próprios atos. Ademais, salvo disposição legal expressa, não haveria razão prestante para distinguir entre Administração e administrado no que concerne ao prazo ao cabo do qual faleceria o direito de reciprocamente se proporem ações. Isto posto, estamos em que, faltando regra específica que disponha de modo diverso, ressalvada a hipótese de comprovada má-fé em uma, outra ou em ambas as partes da relação jurídica que envolva atos ampliativos de direito dos administrados, o prazo para a Administração proceder judicialmente contra eles é, como regra, de cinco anos, quer se trate de atos nulos, que se trate de atos anuláveis (grifos nossos).

Tão controverso é o estabelecimento dos marcos para a aplicação do instituto da prescrição no âmbito dos Tribunais de Contas que tal questão está sendo discutida, na profundidade que o caso requer, no Processo junto ao Tribunal de Contas da União n. TC 005.378/2000-2, ainda pendente de julgamento até a presente data, haja vista o incidente de uniformização de jurisprudência suscitado quando de sua discussão em plenário.

Sem embargo da polêmica acerca do prazo prescricional ser decenal (em analogia com as normas de Direito Privado) ou quinquenal (em analogia com as demais normas de Direito Público), temos que o entendimento adotado pelo Tribunal de Contas da União, sufragado no acórdão colacionado, aponta-nos um novo paradigma, qual seja, o de assegurar, nos processos de controle exercido pelo Tribunal de Contas, a aplicação dos princípios da segurança jurídica, da economicidade — consubstanciado na equação custo-benefício —, da eficiência e da razoabilidade e, notadamente, o da celeridade, estampado no art. 5º, inciso

21 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 930.

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LXXVIII, da Constituição da República de 1988, acrescentado pela EC n. 45, que dispõe: “a todos no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

ADMINISTRATIVO. TOMADA DE CONTAS ESPECIAL. DANO AO ERÁRIO. RESSARCIMENTO. IMPRESCRITIBILIDADE. MULTA. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. ART. 1º DA LEI N. 9.873/1999. INAPLICABILIDADE.

1. A pretensão de ressarcimento por prejuízo causado ao erário é imprescritível. Por decorrência lógica, tampouco prescreve a Tomada de Contas Especial no que tange à identificação dos responsáveis por danos causados ao erário e à determinação do ressarcimento do prejuízo apurado. Precedente do STF.

2. Diferente solução se aplica ao prazo prescricional para a instauração da Tomada de Contas no que diz respeito à aplicação da multa prevista nos arts. 57 e 58 da Lei n. 8.443/1992. Em relação à imposição da penalidade, incide, em regra, o prazo quinquenal.

3. Inaplicável à hipótese dos autos o disposto no art. 1º da Lei n. 9.873/1999, que estabelece que, nos casos em que o fato objeto da ação punitiva da Administração também constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal. Isso porque a instância de origem apenas consignou que as condutas imputadas ao gestor público não caracterizavam crime, sendo impossível depreender do acórdão recorrido a causa da aplicação da multa. Dessa forma, é inviável, em Recurso Especial, analisar as provas dos autos para verificar se a causa da imputação da multa também constitui crime (Súmula n. 7/STJ).

4. Recursos Especiais parcialmente providos para afastar a prescrição relativamente ao ressarcimento por danos causados ao erário.

Nos casos sub examinem, verifica-se que em todos os processos sob análise operou-se a prescrição suscitada, seja tomando por parâmetro o critério quinquenal publicista, seja utilizando-se o prazo decenal do Código Civil.

2.2 Da interrupção da prescrição

Assinalado o entendimento erigido, faz-se necessário registrar que, em razão da ausência em nosso ordenamento jurídico de norma administrativa que trate das causas interruptivas da prescrição, justifica-se a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, o que aliás já se encontra previsto em diversas leis orgânicas de Tribunais de Contas e sumulado pelo TCU, a teor de sua Súmula n. 103.

Com efeito, esse é o entendimento do Tribunal de Contas da União, conforme excerto do Acórdão n. 758/2005, Segunda Câmara, Processo n. 011.990/1999-6, relator Ministro Ubiratan Aguiar, o qual transcrevemos ipsis litteris:

A nova redação do artigo que trata dos prazos prescricionais unificou as prescrições pessoais e reais em 10 (dez) anos. Assim, valendo-me dos jurídicos fundamentos de eminente Ministro Adhemar Ghisi, acima transcritos, entendo que devam as dívidas ativas da União reger-se pela prescrição decenária, observando-se a interrupção do prazo prescricional com o aperfeiçoamento da relação processual no âmbito deste Tribunal, ou seja, com a citação válida do responsável, conforme preceitua o art. 219 do Código de Processo Civil, aplicado subsidiariamente aos processos desta Corte de Contas (grifos nossos).

Entretanto, verifica-se que em nenhum dos processos ora relacionados operou-se a interrupção da prescrição suscitada, uma vez que não houve citação válida dos interessados.

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3 Da resolução de mérito

De acordo com o art. 269, inciso IV, do Código de Processo Civil, quando for pronunciada a

prescrição haverá resolução de mérito, a qual poderá ser interrompida com a citação válida

(art. 219 do respectivo diploma legal), conforme dito alhures.

Insta enfatizar novamente que a prescrição inviabiliza a eficácia de determinada pretensão,

em razão do seu não exercício em determinado lapso temporal, conforme dispõe o art. 189

do Código Civil de 2002. Ainda, nos termos insertos no art. 193 do novel Código, pode ser

reconhecida a qualquer tempo e grau de jurisdição, devendo ser pronunciada de ofício,

conforme o comando disposto no art. 219, § 4º, do CPC.

Portanto, a decisão que acolhe a prescrição é decisão de mérito que diz respeito à impossibilidade

de obtenção da eficácia jurídica pretendida. Assim, entendemos que com o decurso do tempo escoa-se a prerrogativa do Tribunal de Contas de exercer as suas pretensões punitiva e corretiva, decorrentes de sua atividade fiscalizatória — verdadeiro poder-dever — dirigidas

aos agentes públicos envolvidos. É então decisão de mérito análoga àquela que rejeita o

pedido do demandante, porquanto reconhece a impossibilidade de concedê-lo, em razão de

um fato que inviabiliza a eficácia da pretensão (art. 269, inciso IV, do CPC).

4 Da imprescritibilidade da pretensão reparatória

Embora nos pareça claro que o julgador — ao conceber ser possível a incidência de prazo

prescricional nos processos afeitos ao Tribunal de Contas — há que observar, inexoravelmente,

o disposto no art. 269, inciso IV, do CPC: “Extingue-se o processo com julgamento de mérito:

[...] IV — quando o juiz pronunciar a decadência ou a prescrição;”, não restam dúvidas de que a inviabilidade de se efetuar agora procedimentos de auditoria, em razão do protrair dos anos, não quer indicar o mero e simples arquivamento dos fatos constantes dos autos, a torná-lo insindicável, uma vez que a prescrição alcança tão somente as pretensões punitiva e corretiva, não havendo razão portanto para confundir a impossibilidade de

expedir determinações (pretensão corretiva) ou de aplicar sanções (pretensão punitiva) com

ressarcimento ao erário (pretensão reparatória).

Isso porque, dentro do prazo cominado legalmente, poderá ser retomada a atuação do Tribunal de Contas na apuração dos fatos, com fulcro em Pedido de Rescisão, baseado no permissivo legal

presente no inciso III do art. 109 da Lei Complementar Estadual 102/2008 e no art. 354 da Resolução

n. 12/2008, análogo ao que prevê o Código de Processo Civil (ação rescisória, art. 485).

E mais, na existência posterior de fatos e indícios apurados sponte propria ou por provocação

de terceiros interessados, inclusive o Ministério Público de Contas, poderá o Tribunal de Contas — sobrevindo provas de dano ao erário — reabrir as apurações a qualquer tempo, visando dar efetividade ao que dispõe o § 5º do art. 37 da Constituição da República: “A

lei estabelecerá os prazos de prescrição para os ilícitos praticados por qualquer agente,

servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento” (grifos nossos).

Ou seja, o que aqui se reafirma é tão somente a prescritibilidade das pretensões punitiva

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e corretiva das Cortes de Contas, assim entendida como a prerrogativa das mesmas de aplicar multas e sanções e determinar correções, jamais alcançando seu mister constitucional de apurar danos e de tomar as medidas subsequentes visando à reparação do dano ao erário na esfera cível (pretensão reparatória). Nesse sentido, corroborando o que se afirma, é a lição de Cretella Júnior,22 verbis:

[...] prescrição é a extinção da iniciativa de punir, resultado da inércia, durante certo lapso de tempo, do poder público, na perseguição da infração ou na execução da sanção. [...] Sob o aspecto do direito de punir, a relação jurídica entre o titular da ação punitiva, o Estado, e o paciente, a pessoa física afetada pelo decurso do tempo, extingue-se em determinado momento. Nem teria sentido que a sanção pairasse, indefinidamente, como a espada de Dâmocles, sobre o infrator da norma, para ser aplicada muito mais tarde, quando os fatos, as circunstâncias de local e de tempo, os documentos, as testemunhas e as provas tivessem de vir à tona para extemporânea valoração pelo aplicador da pena, dentro de quadro bem diverso daquele que cercava o fato e o autor, na época da consumação do fato (grifos nossos).

Esse também é o entendimento do excelso Pretório, no Mandado de Segurança n. 26.210-9/DF,23 da relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 04/09/2008 e publicado em 10/10/2008, de cujo voto condutor se extraem excertos que trazem a exegese segundo a qual a Tomada de Contas Especial é instrumento legítimo para a apuração e quantificação de dano ao erário, não estando, portanto, sujeita a prazo prescricional tal persecução sob a responsabilidade do Tribunal de Contas, verbis:

No que tange à alegada ocorrência de prescrição, incide, na espécie, o disposto no art. 37, § 5º, da Constituição de 1988, segundo o qual: ‘§ 5º — A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento (grifos nossos)’.

Considerando-se ser a Tomada de Contas Especial um processo administrativo que visa a identificar responsáveis por danos causados ao erário, e determinar o ressarcimento do prejuízo apurado, entendo aplicável ao caso sob exame a parte final do referido dispositivo constitucional.

Nesse sentido é a lição do Professor José Afonso da Silva: ‘A prescritibilidade, como forma de perda da exigibilidade de direito, pela inércia de seu titular, é um princípio geral de direito. Não será, pois, de estranhar que ocorram prescrições administrativas sob vários aspectos, quer quanto às pretensões de interessados em face da Administração, quer quanto às desta em face de administrados. Assim é especialmente em relação aos ilícitos administrativos. Se a Administração não toma providência à sua apuração e à responsabilização do agente, a sua inércia gera a perda do seu ius persequendi. É o princípio que consta do art. 37, § 5º [...]. Vê-se, porém, que há uma ressalva ao princípio. Nem tudo prescreverá. Apenas a apuração e punição do ilícito, não, porém, o direito da Administração ao ressarcimento, à indenização, do prejuízo causado ao erário. É uma ressalva constitucional e, pois, inafastável, mas, por certo, destoante dos princípios jurídicos, que não socorrem quem fica inerte (dormientibus non sucurrit ius)’24 (grifos nossos).

22 CRETELLA JÚNIOR, José. Prescrição da falta administrativa. Revista Forense, São Paulo, n. 275, p. 61-72, jul./ago. 1981.

23 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 26.210-9/DF. Impetrante: Tânia Costa Tribe. Impetrado: Tribunal de Contas da União. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Brasília, 04 de setembro de 2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.gov.br. >. Acesso em: 28 nov. 2008.

24 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 673 apud BRASIL. Supremo Tribunal

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A essa conclusão chega também Diogo Ribeiro Ferreira,25 resumindo, com lapidar acuidade, as linhas de pensamento que ora se confrontam, verbis:

Portanto, em relação ao prazo prescricional, ressalvado o ressarcimento ao erário [...] há basicamente três correntes, conforme se segue. Inicialmente, mencionando respectivamente a teoria da imprescritibilidade das nulidades e da imprescritibilidade fundamental das nulidades, temos Régis Fernandes de Oliveira e, em obra coletiva, Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Odete Medauar.

Já outros autores fazem um delineamento diverso. Dentre eles há os que, pertencentes a uma segunda corrente, transplantam (em maior ou menor grau), a teoria do Direito Privado (como Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Carlos Pinto Coelho Motta). Destaca-se, aliás, que em obra de autoria individual (a mencionada acima fora em conjunto com Odete Medauar), Diogo de Figueiredo Moreira Neto parece filiar-se, individualmente, à presente corrente: ‘há que se distinguir as ações do Estado contra terceiros, cuja prescrição é regida, em regra, pelo Direito Privado, daquelas dos administrados contra o Estado.’

[...] Finalmente, há uma terceira corrente que é conhecida por adotar um prazo quinquenal (desta teoria são adeptos Celso Antônio Bandeira de Mello, que reformulou sua teoria, Maria Sylvia Zanella Di Pietro [e Hely Lopes Meirelles], Almiro Couto e Silva e Weida Zancaner). Também adere a esta corrente José dos Santos Carvalho Filho [...].

Assim sendo, em relação às diferentes linhas de pensamento quanto ao prazo prescricional para ilícitos praticados (ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento — pois, conforme exposto, são imprescritíveis), formaram-se três distintas teses: a da imprescritibilidade, a do prazo adaptado do Direito Privado e a do prazo quinquenal. No que concerne às conclusões desta pesquisa, afigurou-se majoritária a corrente que opta pelo prazo quinquenal, conforme acima evidenciado.

Portanto, conclui-se que, ex vi da ressalva expressa no art. 37, § 5º, da Constituição da República, são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário. Como corolário de tal imprescritibilidade, são também imprescritíveis as análises de contas [tais análises constituem mero instrumento para viabilizar a imprescritibilidade do ressarcimento]. Já em relação às sanções a serem impostas, embora haja divergências quanto ao prazo, justifica-se a posição dos que se filiam à corrente quinquenal, cujo enfoque, ademais, garante um prazo mínimo que, nada obstante, em virtude de interrupção ou suspensão, pode ser aquilatado. É de se ressaltar, ainda, a sintonia existente entre esta opção (doutrinária) e a opção legislativa configurada através dos dispositivos a seguir citados, como exemplo: arts. 1º até 3º da Lei Federal n. 9.873/99; art. 21 da Lei Federal n. 4.717/65 (Lei de Ação Popular); art. 23 da Lei Federal n. 8.429/92 (Lei de Improbidade); art. 54 da Lei Federal n. 9.784/99 (Lei de Processo Administrativo). Ainda merece registro o conteúdo do art. 142 da Lei n. 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União), e do art. 174 do CTN (Código Tributário Nacional, Lei n. 5.172/66) (grifos nossos).

Corroborando o entendimento acerca da imprescritibilidade do dano ao erário, encontra-se, no Tribunal de Contas da União, o entendimento do douto Ministro Substituto mineiro Marcos Bemquerer, nos autos do Processo n. TC 650.250/1998-2, relator do Acórdão n. 510/2005-Plenário, o qual assevera:

5.18 Observe-se que a atuação do Tribunal no exercício do controle externo não se

Federal. Mandado de Segurança n. 26.210-9/DF. Impetrante: Tânia Costa Tribe. Impetrado: Tribunal de Contas da União. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Brasília, 04 de setembro de 2008. Disponível em:<http://www.stf.jus.gov.br.>. Acesso em: 28 nov. 2008.

25 FERREIRA, Diogo Ribeiro. Regime jurídico da prescrição sob o enfoque do controle de contas públicas. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 68, n. 3, p. 35-46, jul./set. 2008.

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enquadra na classificação de ações trazida em linhas anteriores, o que afasta uma pretensa analogia com o Código Civil, sem prejuízo do exame da matéria pelo juiz competente na fase de execução judicial dos julgados desta Corte, por força do art. 19 do referido diploma legal: ‘Quando julgar as contas irregulares, havendo débito, o Tribunal condenará o responsável ao pagamento da dívida atualizada monetariamente, acrescida de juros de mora devidos, podendo, ainda, aplicar-lhe multa prevista no art. 57 desta lei, sendo o instrumento da decisão considerado título executivo para fundamentar a respectiva execução.’

5.19 Destarte, não dispondo a Lei n. 8.443/1992 a respeito da prescrição, como ocorre nos diversos diplomas legais apresentados na instrução precedente, não há que se falar também em aplicação ou não do instituto no âmbito da atividade fiscalizatória do TCU, com espeque nos normativos de Direito Público.

5.20 De sorte que não se pode simplesmente interpretar a Constituição conforme as diversas leis, sejam elas de direito público ou privado, e assim subverter a hierarquia das normas. Defende-se, então, serem as ações de ressarcimento imprescritíveis, por força do § 5º do art. 37 da Constituição Federal, independentemente da classificação que lhes queiram atribuir (grifos nossos).

A classificação a que se refere o ilustre Auditor e Ministro Substituto é aquela baseada na doutrina do jurista paraibano Agnelo Amorim Filho,26 da Universidade Federal da Paraíba, que em artigo jurídico histórico estabeleceu, em suas palavras, um “critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis.” Segundo a lição do mestre, verbis:

A concepção dos direitos potestativos induziu a substituição da tradicional classificação das ações, oriunda do Direito Romano, e que levava em conta a natureza do direito cuja defesa se pretendia com o exercício da ação (ações reais, pessoais, mistas e prejudiciais), por uma outra classificação que tivesse em vista a natureza do pronunciamento judicial pleiteado. ‘Classificação segundo a carga de eficácia’, conforme a conceituou Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado, 5/483).

Por fim, as posições ora expostas que preservam a atuação do Tribunal de Contas, a qualquer tempo, no sentido da apuração do dano passível de ressarcimento ao erário, encontram eco, entre outras, na doutrina abalizada de Celso Antônio Bandeira de Mello,27 verbis:

[...] por força do art. 37, § 5º, da Constituição Federal, são imprescritíveis as ações de ressarcimento por ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízo ao erário.

No mesmo sentido, é a lição de Uadi Lamêgo Bulos,28 verbis:

Esse dispositivo prevê duas situações distintas: uma relativa à sanção pelo ato ilícito, outra relacionada à reparação do prejuízo. No primeiro aspecto, fica a lei ordinária encarregada de fixar os prazos prescricionais; no segundo, garantiu-se a imprescritibilidade das ações — medida considerada imprópria, mas que veio consagrada na Constituição de 1988 (grifos nossos).

Como se viu, no Direito brasileiro a prescrição tem como fundamento lógico o princípio geral

26 FILHO, Agnelo Amorim. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista de Direito Processual Civil, São Paulo, v. 3, jan./jun. 1961.

27 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 124.

28 BULOS, Uadi Lamêgo. Costituição federal anotada, 4. ed.. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 615.

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da segurança das relações jurídicas, a mitigar as pretensões punitiva e corretiva das Cortes de Contas, e, como tal, é a regra, sendo a imprescritibilidade situação excepcional.

Frise-se que em não existindo dispositivo legal prevendo prazo prescricional para atuação das Cortes de Contas nos processos de controle externo, torna-se cabível aplicar a analogia para se determinar o rito a ser observado na processualística deste Tribunal.

Por fim, não se olvide que, por efeito da Emenda Constitucional n. 45/04, a Constituição Federal passou a albergar, explicitamente, o direito à razoável duração do processo, inclusive os de natureza administrativa, conforme dicção do art. 5°, LXXVIII, da CF/88.

PROPOSTA DE VOTO

Considerando que a aplicação do instituto da prescrição é instrumento assecuratório da segurança jurídica e a imprescritibilidade é excepcional, nos termos do disposto no art. 37, § 5º e art. 5º, incisos XLII e XLIV, da Constituição da República de 1988;

Considerando o posicionamento sedimentado do Tribunal de Contas da União que, nos termos do Acórdão n. 1.727/2003, se apóia na regra geral dos prazos prescricionais disciplinados em norma de direito privado presente no art. 205 do novo Código Civil, embora, saliente-se, seja plenamente plausível adotar entendimento diverso para se fazer a analogia com prazos prescricionais de cinco anos estabelecidos em diversas normas públicas;

Considerando que os presentes autos datam de cerca de 10 anos de sua autuação e que não foi realizada a citação válida dos interessados ou a prática de qualquer outro ato interruptivo da prescrição;

Considerando o parecer do Ministério Público de Contas e o amparo nos princípios da eficiência (art. 37, caput), da ampla defesa efetiva (art. 5º, LV), da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI) e da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII), todos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e no princípio da economicidade, que encontra reconhecimento constitucional nos arts. 74, § 1º, I, e 76, XV, da Constituição do Estado de Minas Gerais de 1989;

Considerando que, no caso em concreto, colidem os princípios da estrita legalidade — em razão da tese segundo a qual o exercício do controle externo há de ser feito a qualquer tempo —, e o princípio da segurança jurídica — a exigir a atuação tempestiva das Cortes de Contas para a estabilização das relações sociais afetadas por sua atuação —, motivo pelo qual deve ser ponderado o peso de cada princípio, devendo prevalecer o princípio que melhor atende os fins da justiça, paz social e bem comum;

Considerando que, o princípio da segurança jurídica, consubstanciado na aplicação aos autos do instituto da prescrição, é o mais adequado à solução da questão discutida nos presentes autos, a fulminar tão somente as pretensões punitivas e corretivas;

Considerando os precedentes pela atuação tempestiva desta Corte, plasmados nos julgamentos, à unanimidade, entre diversos outros, dos Processos n. 402.360, 402.348 e

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402.367 — de relatoria do Conselheiro Antônio Carlos Andrada —, dos processos n. 100.535, 413.820 e 390.208 – de relatoria da Conselheira Adriene Andrade — e dos Processos n. 362.444, 110.773 e 499.890 — de relatoria do Auditor Hamilton Coelho —, esses últimos em votações unânimes das quais participaram o douto Conselheiro Eduardo Carone Costa e o Auditor Gilberto Diniz.

Diante dessas considerações, adoto o entendimento pela extinção dos processos, com resolução de mérito, em razão de aplicação do instituto da prescrição, nos termos expostos na fundamentação da presente proposta e conforme dispõe o art. 269, inciso IV, do Código de Processo Civil.

Entendo, outrossim, que devam os referidos autos ser remetidos ao Parquet de Contas para que proceda a apurações supervenientes e a eventuais responsabilidades, se for o caso, no âmbito de sua competência, considerando o disposto no art. 37, § 5º, da Carta Magna. Em seguida, arquivem-se os autos.

O Convênio em epígrafe foi apreciado pela Primeira Câmara na sessão do dia 05/10/10 presidida

pelo Conselheiro Antônio Carlos Andrada; presentes a Conselheira Adriene Andrade e o Conselheiro

em Exercício Gilberto Diniz que aprovaram a proposta de voto do relator, Auditor Licurgo Mourão.

Vencido, em parte, o Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz.

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RELATÓRIO

Tratam os autos da prestação de contas de responsabilidade do Sr. Sebastião Navarro Vieira

Filho, Prefeito do Município de Poços de Caldas, exercício de 2008.

A análise técnica, a fls. 08-31, revelou impropriedades, motivando a citação do gestor a fls.

35-36, que apresentou a documentação a fls. 42-51, 58-60, 73-80, 83-84 e 90-91.

O órgão de reexame elaborou o relatório a fls. 62-67.

Aplicação do princípio da verdade material possibilita emissão de parecer pela aprovação das contas de Município

PRESTAÇÃO DE CONTAS MUNICIPAL N. 781.887

EMENTA: Prestação de Contas Municipal — Prefeitura Municipal — Verificação de impropriedades passíveis de emissão de parecer prévio pela rejeição das contas — Apresentação extemporânea de documentos — Alegação de erro material e solicitação de correção de dados — Preclusão consumativa afastada pelo princípio da verdade material — Possibilidade de saneamento dos vícios apontados em qualquer fase processual — Acolhimento da defesa — Regularização das falhas descritas no exame inicial — Emissão de parecer prévio pela aprovação das contas.

ASS

COM

TCE

MG

RELATOR: AUDITOR HAMILTON COELHO

[...] a apreciação das contas anuais oferecidas compreende a gestão como um todo, e não o exame individual de cada ato praticado pelo administrador no período. Dessa forma, a emissão de parecer prévio nestes autos não impede que se proceda a novo exame, em razão de falhas verificadas em inspeção ou denunciadas, tendo em vista os princípios da verdade material e da prevalência e indisponibilidade do interesse público, e diante da indeclinável competência desta Corte de Contas na busca da máxima efetividade no controle do cumprimento das normas constitucionais aplicáveis à espécie.

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O Ministério Público de Contas pronunciou-se pela rejeição das contas a fls. 95.

Na sessão de 25/02/10, da Segunda Câmara, propus a rejeição das contas ofertadas. No

entanto, antes que se iniciasse a votação do parecer, o Conselheiro Sebastião Helvecio pediu

vista dos autos a fls. 104.

Em 09/03/10, o processo retornou a este relator, tendo em vista que o responsável juntou

nova petição e documentos a fls. 109-118, alegando erro material na apuração do índice de

aplicação no ensino.

Embora atento à caracterização, in casu, da preclusão consumativa, submeti proposta à

Segunda Câmara (sessão de 11/03/10), acolhida por unanimidade, no sentido de encaminhar

a nova manifestação do gestor à análise técnica, em homenagem ao princípio da verdade

material, e ante o fato de que o alegado vício na apreciação das contas, se existente, seria

sanável em qualquer fase do processo, a fls. 121-122.

O órgão técnico, contudo, manteve seu posicionamento, negando a ocorrência de qualquer

erro material na apuração do índice de investimentos na manutenção e desenvolvimento

do ensino a fls. 124-137.

Analisando novamente os autos, o órgão ministerial opinou pela aprovação das contas a fls.

139-142.

Em 29/07/10, deferi pedido do gestor responsável, objetivando corrigir os dados

transmitidos via Siace/PCA/2008, conforme mídia eletrônica e documentos apresentados a

fls. 153-159.

Ato contínuo, os autos foram encaminhados à diretoria técnica, que, em novo exame da

prestação de contas, já com as atualizações solicitadas, concluiu pelo cumprimento do

disposto no art. 212 da Constituição da República a fls. 161-165.

É o relatório.

FUNDAMENTAÇÃO

O presente exame foi realizado à luz da Resolução n. 04/09, deste Tribunal, e com base nas

informações oferecidas pela Administração Municipal.

As impropriedades inicialmente apontadas referem-se a:

1 Repasse à Câmara Municipal — a fls. 63

De acordo com a análise técnica, do total dos repasses recebidos pela Câmara, foi excluído

o valor da devolução efetuada ao Poder Executivo. Diante da ausência de preenchimento

dos Anexos XX e XXI, não ficou esclarecido o saldo devedor na conta “Repasse Câmara

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Municipal”, na Demonstração da Dívida Flutuante. O defendente acostou aos autos

documentação esclarecedora, razão pela qual ficou regularizado o apontamento.

2 Aplicação de recursos na manutenção e desenvolvimento do ensino — a fls. 64 e 161-165Inicialmente, apontou-se a não inclusão de receita (rubrica 1721.09.01 reclassificada para 1721.36.00), na importância de R$435.453,85, na base de cálculo do ensino, e procedeu-se à exclusão das subfunções 361.1202, de R$1.655.771,90 e 365.1205, de R$882.932,48, relativas a auxílio-alimentação, por se tratar de despesas não pertinentes ao cômputo dos gastos com educação. Também foi limitada a subfunção 361.1202, apresentada nos Anexos II e III, no total consignado no Comparativo da Despesa. A equipe técnica, analisando as razões de defesa, considerou sanada a falha atinente à classificação contábil. Quanto à limitação da rubrica no montante registrado no comparativo e ao expurgo das despesas com auxílio-alimentação, as alegações foram consideradas improcedentes, visto que o inciso I do art. 70 da Lei n. 9.394/96, reproduzido no art. 5º da IN/TC n. 13/08, aponta, como despesas do ensino, as que se referem à remuneração e ao aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais da educação, não se enquadrando aí o auxílio-alimentação, à semelhança dos programas de assistência médico-odontológica, farmacêutica e psicológica e outras formas de assistência social, consoante art. 71 da Lei de Diretrizes e Bases. Ao final, ratificou a apuração do índice de 22,99% na educação, inferior, portanto, ao mínimo previsto pelo art. 212 da Constituição da República. Após a alteração dos dados do Siace/PCA/2008, o órgão técnico verificou que o Município aumentou os gastos com o ensino em R$612.423,58, passando o total aplicado na Função 12, de R$67.331.217,29 para R$67.943.640,87, resultado do remanejamento de gastos relativos à educação infantil/creche, classificado anteriormente em Assistência Social. A Administração Municipal também alterou o Anexo III — Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), de R$26.791.559,37 para R$23.682.948,70, por se referir às despesas realizadas com recursos próprios, classificadas como gastos com recursos do Fundeb. Foi excluída das subfunções 361.1202 e 365.1205 a quantia total de R$1.480.967,91, referente ao auxílio-alimentação. Mas, mesmo com a impugnação destas despesas, o índice de aplicação no ensino atingiu 26,28%, restando cumprida a exigência constitucional.

3 Receita base de cálculo aplicada nas ações e serviços públicos de saúde — a fls. 66

Apontou-se a não inclusão de receita (rubrica 1721.09.01 reclassificada para 1721.36.00), no

valor de R$435.453,85, na base de cálculo da saúde, alterando o índice de 24,01% para 23,94%.

No entanto, foi cumprido o limite percentual constitucionalmente exigido. No novo estudo

realizado, após correção do Siace/PCA, não houve alteração relacionada a este item.

Como visto, após a alteração dos dados do Siace, efetuada a pedido do responsável, a

unidade técnica constatou a aplicação de 26,28% da receita base de cálculo na manutenção

e desenvolvimento do ensino, mesmo com a glosa das despesas com auxílio-alimentação

para professores, no montante de R$1.480.967,91.

Todavia, diferentemente da equipe técnica, o Ministério Público de Contas, em sua

manifestação a fls. 139-142, entendeu que tais dispêndios poderiam ser computados nos

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gastos com educação, como parcela da remuneração dos professores, haja vista o Município de Poços de Caldas ter optado pelo regime celetista, na contratação de seus profissionais do magistério.

Razão assiste ao Parquet especializado.

É cediço que, para os servidores sujeitos ao regime estatutário, o auxílio-alimentação representa parcela indenizatória, como já tive a oportunidade de ressaltar na proposta de voto anterior a fls. 101-104, citando a orientação deste Tribunal na resposta à Consulta n. 687.023.

Por outro lado, em se tratando de vínculo celetista, as verbas percebidas in natura integram a remuneração dos empregados públicos, considerando-se o que estabelece o art. 458 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT):

Art. 458. Além do pagamento em dinheiro, compreende-se no salário, para todos os efeitos legais, a alimentação, habitação, vestuário ou outras prestações in natura que a empresa, por força do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao empregado [...] (destaquei).

Sendo assim, a importância de R$1.480.967,91, destinada ao pagamento de auxílio-alimentação para os professores da rede pública municipal, contratados pelo regime da CLT, deve ser computada nos gastos com a manutenção e desenvolvimento do ensino, forte nas disposições do art. 70, I, da Lei n. 9.394/96, o que eleva o respectivo índice de 26,28% (R$43.420.925,02) para 27,18% (R$44.901.892,93).

A título de esclarecimento, cabe ressaltar que esse entendimento não encontra obstáculo no art. 71, IV, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, visto que os “programas suplementares de alimentação”, ali referidos, se dirigem ao educando, e não aos agentes públicos da educação, como bem asseverado pela ilustre Procuradora do Ministério Público, a fls. 141.

Quanto aos demais índices constitucionais, constatei o cumprimento daqueles relativos aos serviços públicos de saúde (23,94%), aos limites das despesas com pessoal (30,18%), bem como ao previsto no art. 29-A da Carta da República, referente ao repasse ao Poder Legislativo (3,41%).

Em relação à aplicação dos recursos recebidos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundef), constatou-se o índice de 85,14% com a remuneração dos profissionais do magistério, em efetivo exercício de suas atividades na rede pública. Entretanto, essa matéria deverá ser analisada em processo próprio, consoante os termos do art. 1º da Ordem de Serviço n. 07/10.

Em pesquisa no Sistema de Gestão e Administração de Processos (SGAP), verifiquei que, no exercício de 2008, não houve inspeção no Município, o que impediu o confronto dos índices aferidos, mediante análise da prestação de contas, com os que, porventura, poderiam ter sido apurados in loco.

Finalmente, registra-se que a apreciação das contas anuais oferecidas compreende a gestão como um todo, e não o exame individual de cada ato praticado pelo administrador no período. Dessa forma, a emissão de parecer prévio nestes autos não impede que

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se proceda a novo exame, em razão de falhas verificadas em inspeção ou denunciadas, tendo em vista os princípios da verdade material e da prevalência e indisponibilidade do interesse público, e diante da indeclinável competência desta Corte de Contas na busca da máxima efetividade no controle do cumprimento das normas constitucionais aplicáveis à espécie.

PROPOSTA DE VOTO

Diante do exposto, acorde com o Órgão Ministerial de Contas e fundamentado no inciso I, art. 240, do Regimento Interno deste Tribunal, proponho a emissão de parecer prévio pela aprovação das contas de responsabilidade do Sr. Sebastião Navarro Vieira Filho, Prefeito do Município de Poços de Caldas, exercício de 2008.

No mais, caberá à autoridade administrativa municipal, que se encontrar à frente do Executivo, manter organizada, nos termos dos normativos baixados por este Tribunal, a documentação pertinente para fins de exercício do controle externo, em inspeção e/ou auditoria, incumbindo ao chefe do controle interno comunicar, sob pena de responsabilidade solidária, toda e qualquer falha do seu conhecimento, detectada na gestão pública ora examinada.

A Prestação de Contas Municipal em epígrafe foi apreciada pela Segunda Câmara na sessão do dia 05/08/10 presidida pelo Conselheiro Eduardo Carone Costa; presentes o Conselheiro Elmo Braz e Conselheiro Sebastião Helvecio que acolheram, por unanimidade, a proposta de voto exarada pelo relator, Auditor Hamilton Coelho.

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Excelentíssimo Senhor Relator,

1 Relatório

Tratam os autos de denúncia oferecida pela empresa Intermotos Comércio de Motocicletas Ltda., em face do procedimento licitatório Pregão Presencial n. 022/2009 — Processo Licitatório n. 056/2009, que tinha por objeto a aquisição de três motocicletas e três capacetes pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto do Município de Cambuí (Saae).

A denunciante alegou, a fls. 01-08, que o referido processo licitatório, ao apresentar as especificações mínimas para as motocicletas a serem adquiridas, objetivou favorecer uma única marca. Informou que “as especificações técnicas do produto são exclusivas da fabricante Honda, ou seja, do produto Honda CG Titan, deixando de fora outros fornecedores/fabricantes por melhores

condições de preço” (fls. 04).

Ademais, acrescentou que o sistema de injeção eletrônica e o motor com volume mínimo de 140 cm³ são características só encontradas em motocicletas da marca Honda, mas dispensáveis, pois uma motocicleta 125 cc, sem injeção eletrônica, cumpriria normalmente a função a ser desempenhada no âmbito do Saae.

Pelo exposto, a denunciante concluiu que, nos moldes em que foi proposto, o Pregão Presencial n. 022/2009 fere sensivelmente o princípio da competição e o da igualdade entre os licitantes, razão pela qual requereu a suspensão e anulação do certame.

Além da peça inaugural, a denunciante juntou aos autos a documentação a fls. 09-36.

pROCURADORA MARIA CECÍLIA MENDES

bORGES

ASS

COM

TCE

MG

Princípio da competitividade e a participação de um só licitante em pregão presencial*

* Parecer emitido pelo Ministério Público de Contas na Denúncia n. 802.384 de relatoria do Conselheiro Sebastião Hevecio.

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Após recebimento, a documentação foi protocolizada e autuada como denúncia, em 06 de agosto

de 2009, nos termos do despacho a fls. 37. Posteriormente, foi remetida pelo Conselheiro relator

à Coordenadoria de Área de Exame de Instrumento Convocatório de Licitação (Caic/DAC).

Após constatar que as especificações do objeto se assemelhavam muito à descrição

da motocicleta Honda CG Titan, a unidade técnica sugeriu, no relatório a fls. 42-46, a

intimação do Diretor do Saae, para apresentar os documentos relativos à fase do certame

que contivesse o estudo ou o parecer técnico que subsidiou a escolha de uma motocicleta

com as características descritas no edital, especialmente quanto à cilindrada exigida e o

sistema de injeção eletrônica.

Após determinação do Conselheiro Relator para que a diligência sugerida pela unidade técnica

fosse cumprida, o Diretor do Saae encaminhou todo o procedimento licitatório (fls. 55-181) e

informou não ter havido qualquer direcionamento do certame, que contou com a participação

de diferentes concessionárias da marca Honda.

O Diretor do Saae justificou a exigência de uma motocicleta de 150cc por se fazer

necessário

adquirir uma moto que tenha um pouco mais de força, pois ela é equipada com bagageiro que leva peso e é utilizada por duas pessoas ao mesmo tempo (motorista e carona), que cuidam de ligar, religar e cortar o fornecimento da água em todo o Município (fls. 53).

Ademais, o Município possuiria relevo acentuado, com muitos morros não pavimentados.

Quanto ao sistema de injeção eletrônica, o Diretor do Saae informou que sua escolha teve

por fundamento a economia de combustível e a cooperação com a preservação ambiental.

Diante dessas informações, a Caic/DAC apresentou novo relatório técnico, a fls. 190-192, no qual

acolheu as justificativas apresentadas e propôs o julgamento pela improcedência da denúncia.

Em seguida, vieram os autos ao Ministério Público, para o indispensável parecer.

É o relatório, no essencial. Passa-se à manifestação.

2 Fundamentação

2.1 Das exigências relativas ao sistema de injeção eletrônica e do volume mínimo para o motor

Dentre as especificações apresentadas no edital, a denunciante questionou a exigência de

que as motocicletas dispusessem de sistema de injeção eletrônica e de motor com capacidade

volumétrica mínima de 140 cm³.

O sistema de injeção eletrônica, conforme documentação juntada aos autos pelo Diretor do

Saae a fls. 96-107, possibilita economia de combustível e menor emissão de poluentes.

Consulta realizada no site oficial da empresa Bosch do Brasil (<http://www. bosch.com.br/

br/autopecas/produtos/injecao/default.asp>) permite confirmar essas informações:

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Melhor rendimento com mais economia

Com a rápida evolução dos motores dos automóveis, o velho carburador começou a não conseguir suprir as necessidades dos novos veículos, no que se refere à emissão de gases, economia de combustível, potência, respostas rápidas nas acelerações, etc.

Partindo dessa constatação, a Bosch desenvolveu os sistemas de injeção eletrônica de combustível, que têm por objetivo proporcionar ao motor um melhor rendimento com mais economia, em todos os regimes de funcionamento.

Para que o motor tenha um funcionamento suave, econômico e não contamine o meio ambiente, ele necessita receber uma mistura ar/combustível perfeita, em todas as faixas de rotação.

Um carburador, por melhor que seja e por melhor que esteja sua regulagem, não consegue alimentar o motor na proporção ideal de mistura.

Os sistemas de injeção eletrônica têm essa característica, ou seja, permitem que o motor receba somente o volume de combustível de que ele necessita.

Os sistemas de injeção eletrônica possibilitam:

• menor emissão de poluentes;

• maior economia;

• melhor rendimento do motor;

• partidas mais rápidas;

• dispensa utilização do afogador;

• melhor aproveitamento do combustível.

Com base nisso, entende-se razoável a exigência de que as motocicletas disponham de sistema de injeção eletrônica. Ela é condizente com os princípios da economicidade, por reduzir o consumo de combustível, e com a garantia constitucionalmente assegurada (art. 225) ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, já que reduz a emissão de poluentes.

A exigência de que o motor possua volume mínimo de 140 cm³ está diretamente relacionada às cilindradas da motocicleta. A cilindrada “é o volume admitido por todos os cilindros do motor para realização do ciclo, isto é, o volume admitido pelo motor equivalente a duas voltas na árvore de manivelas.”1

A exigência exclui, portanto, a possibilidade de aquisição de motocicletas de 125cc, que possuem volume inferior ao mínimo estabelecido.

A unidade técnica entendeu pertinente a exclusão das motocicletas de 125cc em razão da topografia do Município. De fato, considerando que o Município apresenta relevo montanhoso e que as motocicletas devem conter bagageiro e transportar dois funcionários da Saae simultaneamente, é legítima a exigência de motocicletas com cilindrada superior.

Ante o exposto, o Parquet não considera que os questionamentos apresentados pela denunciante têm o condão de comprovar o desrespeito ao princípio da competição. Este Tribunal de Contas já se posicionou, inclusive, no sentido de considerar lícitas cláusulas restritivas quando destinadas a selecionar a proposta mais vantajosa:

Denúncia. Licitude de cláusulas restritivas. [...] inciso I, do § 1º, do art. 3º da Lei n. 8.666/93 [...] [é] analisado por Marçal Justen Filho, como a seguir: ‘O disposto não significa, porém, vedação a cláusulas restritivas da participação. Não impede a previsão

1 VARELLA, Carlos Alberto Alves. Características dimensionais dos motores de combustão interna. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, IT — Departamento de Engenharia. Acesso: em 08/04/2010, no endereço eletrônico: <http://www.ufrrj.br/institutos/it/deng/varella/Downloads/IT154_motores_e_tratores/motores/Aulas/caracteristicas_dimensionais.pdf>.

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de exigências rigorosas nem impossibilita exigências que apenas possam ser cumpridas por específicas pessoas. Vedam-se cláusulas desnecessárias ou inadequadas, cuja previsão seja orientada não para selecionar a proposta mais vantajosa, mas a beneficiar alguns particulares. Se a restrição for necessária para tender ao interesse coletivo, nenhuma irregularidade existirá em sua previsão. Terão de ser analisados conjuntamente a cláusula restritiva e o objeto da licitação. A vedação não reside na restrição em si mesma, mas na incompatibilidade dessa restrição com o objeto da licitação. Aliás, essa interpretação é ratificada pelo previsto no art. 37, inciso XXI, da CF. A incompatibilidade poderá derivar de a restrição ser excessiva ou desproporcional às necessidades da Administração. O ato convocatório tem de estabelecer as regras necessárias para seleção da proposta vantajosa. Se essas exigências serão ou não rigorosas, isso dependerá do tipo de prestação que o particular deverá assumir. Respeitadas as exigências necessárias para assegurar a seleção da proposta mais vantajosa, serão inválidas todas as cláusulas que, ainda que indiretamente, prejudiquem o caráter competitivo da licitação.’ (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários a Lei de Licitações e contratos administrativos, 11. ed. Dialética, p. 61 e 62) (destacou-se). (Denúncia n. 747.505. Relatora Conselheira Adriene Andrade. Sessão do dia 05/08/2008).

Considerando que as exigências são legítimas para a obtenção de motocicleta que atenda às

necessidades do Saae, o fato de apenas a fabricante Honda dispor de equipamento que atenda

aos requisitos do edital não pode ser considerado como entrave ao exercício da competição.

2.2 Da participação de apenas um licitante no pregão

A ata do Pregão n. 022/2009, juntada a fls. 148-149, indica o comparecimento de uma única

empresa à sessão pública de julgamento das propostas. Apenas a empresa vencedora do

certame — Brag-Moto Comércio de Veículos e Máquinas Ltda. — apresentou proposta.

O Tribunal de Contas da União já se posicionou no sentido de que não há impedimento à participação

de um único licitante em licitações realizadas sob a modalidade Pregão Presencial:

Quanto ao comparecimento de somente uma empresa ao pregão em tela, alinho-me à unidade técnica no sentido de que não há impedimento na legislação à conclusão da licitação, a menos que o edital contenha exigências restritivas ao caráter competitivo do certame, o que se verificou no caso (TCU: Acórdão 408/2008 — Plenário, DOU de 14/03/2008).

Considerando-se que a apresentação de somente um licitante configura indício, mas não evidência, de que a competitividade da licitação teria restado em alguma proporção prejudicada, realizou-se a ora combatida determinação. Note-se que o Tribunal não entendeu serem tais irregularidades bastantes para a anulação do contrato, nem que o comparecimento de apenas um licitante constitui qualquer tipo de óbice à contratação (TCU: Acórdão 1316/2010 — Primeira Câmara, DOU de 19/03/2010).

No caso em tela, como as exigências foram consideradas legítimas, o comparecimento de

apenas um licitante não constitui por si só impedimento para a contratação.

Está comprovada nos autos, a fls. 92, a publicação do Aviso de Licitação pela Imprensa

Oficial do Estado de Minas Gerais, em conformidade com o disposto no inciso I do art. 4º da

Lei n. 10.520/2002:

Art. 4º A fase externa do pregão será iniciada com a convocação dos interessados e observará as seguintes regras:

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I — a convocação dos interessados será efetuada por meio de publicação de aviso em diário oficial do respectivo ente federado ou, não existindo, em jornal de circulação local, e facultativamente, por meios eletrônicos e conforme o vulto da licitação, em jornal de grande circulação, nos termos do regulamento de que trata o art. 2º;

Ademais, o preço obtido é condizente com a pesquisa de mercado realizada pelo Saae antes da publicação do edital. A pesquisa de mercado realizada em três empresas permitiu estabelecer como parâmetro o valor de R$26.220,00, conforme documento a fls. 60. A contratação ocorreu no valor de R$25.770,00, conforme ato de homologação do edital de a fls. 156.

Diante disso, não se vislumbra irregularidade na participação de um único licitante no Pregão Presencial n. 022/2009.

Conclusão: por todos os motivos expostos, opina o Ministério Público de Contas pela improcedência da denúncia.

É o parecer.

Belo Horizonte, 05 de maio de 2010.

Maria Cecília BorgesProcuradora do Ministério Público de Contas

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Comentando a Jurisprudência

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Juliana Mara Marchesani

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos. Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Técnica de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais.

Resumo: A probidade na administração de bens e valores públicos é dever de todo gestor, razão pela qual o Tribunal de Contas, na sua missão de controle, responsabiliza aqueles que agirem em desconformidade com os princípios da legalidade, da indisponibilidade do interesse público e da eficiência, entre outros. Caracterizada irregularidade ou ilegalidade, o gestor público é submetido à imposição de sanção e, por vezes, à determinação de ressarcimento por dano ao erário. Neste trabalho serão analisadas as implicações do falecimento deste gestor, no curso dos processos de competência da Corte de Contas, no que tange a sua responsabilização, tendo como referencial a jurisprudência do Tribunal de Contas mineiro.

Palavras-chave: Gestor público. Falecimento. Responsabilização. Multa. Ressarcimento.

Abstract: Integrity in managing government resources is every public official’s responsibility. In order to accomplish their mission of auditing public finances, Audit Courts hold accountable those who disrespect the constitutional principles such as legality (rule of law), unavailability of the public interest and efficiency. The death of a public official in the course of an audit suit has outcomes on his penalties and on refunding the exchequer. Such effects are subject to the theoretical analysis performed, based on decisions taken by the Audit Court of Minas Gerais.

Keywords: Public manager. Death. Accountable. Penalty. Compensate damages.

1 Introdução

O exercício do controle externo pelo Tribunal de Contas de Minas Gerais (TCEMG) é legitimado por disposição constitucional, que assegura a este órgão competência, inclusive, para aplicar

O falecimento do gestor público e a sua repercussão nos processos do Tribunal de Contas mineiro

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sanções aos responsáveis, nos casos de ilegalidade ou irregularidade de atos correlatos à matéria

afeta a sua jurisdição.

O gestor que não cumprir com a sua obrigação de gerir adequadamente os bens e valores públicos

responde perante a Corte de Contas, podendo-lhe serem imputadas as sanções de multa, de

inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança e a declaração de

inidoneidade para licitar e contratar com o Poder Público. E, ainda, se constatado dano ao

erário, o responsável é condenado a ressarcir o prejuízo aos cofres públicos.

Assim, não há como refletir sobre a questão do gestor falecido, sem antes entender

as três dimensões do processo de contas idealizadas por Augusto Sherman Cavalcanti

(1999). Na primeira dimensão — o julgamento da gestão do administrador — pretende-se

dar uma resposta a toda a coletividade a respeito do bom ou mau emprego dos recursos

públicos. A segunda dimensão — a punibilidade do gestor faltoso — deve ser analisada

em consonância com o princípio da intransmissibilidade da pena. A terceira dimensão

— a reparação do prejuízo — justifica-se apenas nas situações em que se reconhece a

ocorrência de dano ao erário.

A respeito da multa imposta pelo TCEMG, por se tratar de uma das sanções mais aplicadas nos

processos em que se verificam irregularidades nos atos de gestão, faz-se necessário entender a

sua natureza jurídica, bem como identificar o seu destinatário.

À luz do princípio da intransmissibilidade da pena, passou-se à análise da repercussão do

falecimento do gestor nos casos submetidos à apreciação do Tribunal de Contas, sobretudo, em

relação à possibilidade de concretização da dimensão sancionatória do processo.

No que tange à apuração de dano ao erário pelo TCEMG, o impacto causado pela morte do

gestor evidencia a terceira dimensão do processo, a de natureza indenizatória, pois vincula o

ressarcimento do prejuízo sofrido ao patrimônio deixado pelo de cujus aos seus sucessores.

Entender as implicações do falecimento do gestor público nos processos do Tribunal de Contas

mineiro somente foi possível mediante a análise de casos concretos. Nas devidas proporções,

as especificidades de cada situação sub examine contribuíram para a compreensão da medida

processual mais acertada em relação a um dado momento em que a morte do gestor faltoso

“pareceu” tumultuar o desenvolvimento válido e regular dos processos em análise no TCEMG.

2 As dimensões do processo nos Tribunais de Contas

Na concepção de Augusto Sherman Cavalcanti, o processo de contas contempla três dimen-

sões relevantes, necessárias ao cumprimento de seus fins: o julgamento da gestão do admin-

istrador responsável, a punibilidade do gestor faltoso e a reparação do dano eventualmente

causado ao erário.

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Em que pese esse autor ter idealizado mencionadas dimensões com foco nos processos de contas, o enfoque pretendido neste artigo permite a extensão desta dinâmica a todos os tipos de processo do Tribunal de Contas mineiro.

No paradigmático trabalho de Cavalcanti, intitulado “O processo de contas no TCU: o caso do gestor falecido”, considera-se que o julgamento da gestão, primeira dimensão do processo de contas, possui natureza política, pois previne a adoção de atos arbitrários pela Administração na gestão de bens e valores públicos. Para o autor,

parece-nos a mais importante entre as três, tendo em vista que realiza o princípio republicano de informar o povo — elemento pessoal do Estado — de como estão sendo utilizados — se bem ou mal — os recursos financeiros [...] (CAVALCANTI, 1999, p. 17).

Em relação à segunda dimensão do processo, de cunho sancionatório, concernente à punibilidade do gestor faltoso, Cavalcanti entende que

na hipótese de má gestão, o processo subsiste à morte do administrador, e as suas contas podem vir a ser julgadas, mas não poderá aplicar sanção ao falecido ou, se tiver sido aplicada e ainda não cumprida, será ela extinta (CAVALCANTI, 1999, p. 19).

A terceira dimensão do processo, de natureza indenizatória, advém do reconhecimento, no julgamento das contas, da ocorrência de dano ao erário e do nexo de causalidade entre o dano e os atos praticados pelo gestor. Apenas sob esse aspecto o processo alcança os sucessores do administrador falecido. Segundo os ensinamentos de Cavalcanti:

Os sucessores não sofrem consequências jurídicas decorrentes da concretização das duas primeiras dimensões do processo de contas. Não respondem diretamente pela má gestão dos valores públicos, não podem, como veremos, titularizar as contas, não se tornam inelegíveis por contas julgadas irregulares nem podem ser constrangidos a cumprir as sanções eventualmente aplicadas ao gestor em vida. A eles se estende, única e exclusivamente, a responsabilidade pela reparação do dano (CAVALCANTI, 1999, p. 19).

A respeito destas dimensões dos processos nas Cortes de Contas, é necessário colacionar excertos do irrepreensível parecer do Procurador-Geral Lucas Rocha Furtado, no Recurso de Reconsideração, interposto pelos herdeiros de gestor falecido, perante o Tribunal de Contas da União, em face de acórdão que considerou irregulares as contas e em débito o responsável, in verbis:

Cremos que esse processo administrativo contempla três dimensões jurídicas, três vertentes, necessárias ao cumprimento integral de seus objetivos.

A primeira dimensão diz respeito ao julgamento da gestão do administrador. [...] o principal destinatário do processo de contas, nessa dimensão, é antes a coletividade do que o gestor.

Consequência direta disso é que a morte do gestor não é, por si só, obstáculo ao julgamento das contas nem a causa de extinção do processo. É mister que,

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mesmo após o falecimento do titular, sejam as contas julgadas para que se dê satisfação à coletividade de como foram aplicados os recursos, que em última instância, lhe pertencem.

[...]

A segunda dimensão do processo de contas, segundo pensamos, é desdobramento da primeira e concerne à punibilidade do gestor faltoso.

[...]

Em suma, para que a segunda dimensão do processo de contas se concretize, além dos aspectos atinentes à validade do próprio processo, faz-se necessário que seja reconhecida, pelo Tribunal, na apreciação das contas — primeira dimensão — a prática de atos irregulares pelo gestor. A aplicação da pena não ultrapassa a pessoa do condenado, é o que dispõe o texto constitucional.

Nessa dimensão, diferentemente da primeira, o processo dirige-se diretamente ao administrador. Somente ele deve sofrer as consequências punitivas, em face da má gestão.

Por conseguinte, a morte dele, embora não seja óbice à continuidade do processo e ao julgamento das contas em face da necessária concretização da primeira dimensão de que falamos, é causa de extinção da pretensão punitiva, aproximando-se, nesse aspecto, ao processo penal. Em outras palavras, na hipótese de má gestão do de cujus, o processo deve continuar, as contas devem ser julgadas, mas não se poderá aplicar pena ao falecido.

A terceira dimensão diz respeito à reparação do prejuízo causado pelo gestor. Tem natureza indenizatória, é também dependente e determinada pela apreciação da gestão, exsurgindo do reconhecimento no julgamento das contas da ocorrência de dano ao erário.

Nessa vertente, e só nessa, o processo neste Tribunal pode alcançar o espólio ou os sucessores do administrador falecido. É que a estes, segundo o Texto Constitucional, estende-se a responsabilidade pela reparação do prejuízo causado, na medida do patrimônio transferido na sucessão.

Os herdeiros não sofrem consequências jurídicas decorrentes da realização das duas primeiras dimensões do processo de contas. Não respondem diretamente pela má gestão dos valores públicos, não podem titularizar as contas nem podem ser constrangidos a cumprir as sanções eventualmente aplicadas ao gestor em vida. A eles se estende, única e exclusivamente, a responsabilidade pela reparação de dano, como já se disse (TC-279.083/90-4. Recurso de Reconsideração em face do Acórdão n. 504/94 — 1a Câmara. Ministro Relator Guilherme Palmeira. Ata 03 de 08/02/2000. Secretaria-Geral das sessões da Primeira Câmara do Tribunal de Contas da União. Aprovada em 15/02/00. Publicada em 16/02/00).

Portanto, mesmo após a morte do gestor responsável, há razões suficientes para que o processo de competência do Tribunal de Contas siga seu curso, uma vez que, subsistindo a responsabilidade patrimonial de reparar prejuízos causados ao erário, referido ônus é transferido do gestor faltoso aos seus sucessores, na medida do patrimônio recebido. Ademais, é imprescindível dar ciência à sociedade de como foram aplicados os recursos públicos.

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3 Responsabilização do gestor público perante o Tribunal de Contas de Minas Gerais

A gestão dos bens e valores públicos em desconformidade com os preceitos legais e principiológicos que regem as matérias de competência dos Tribunais de Contas acarreta a responsabilização do administrador público em duas frentes propriamente ditas. Desta forma, constatadas irregularidades e/ou ilegalidades em processos da Corte de Contas, incide a sanção, sendo a multa a de aplicação mais comum, nos termos do art. 315 do Regimento Interno do Tribunal de Contas de Minas Gerais (RITCEMG) e, ainda o ressarcimento ao erário, quando verificados eventuais danos aos cofres públicos.

Impende registrar que a referência genérica que se faz ao termo administrador público deve-se ao fato de que a jurisdição do Tribunal de Contas mineiro é exercida tanto em relação aos gestores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, quanto àqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário. Referidos sujeitos submetem-se à jurisdição da Corte de Contas basicamente em razão de previsão constitucional, nos termos do art. 76 da Constituição do Estado de Minas Gerais de 1989.

Há três espécies de sanção: as multas pecuniárias, a decretação de inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança e a declaração de inidoneidade para licitar e contratar com o Poder Público, conforme o art. 315 do Regimento Interno deste Tribunal e o art. 83 de sua Lei Orgânica.1

1 Art. 315 [do RITCEMG]. O Tribunal, ao constatar irregularidade ou descumprimento de obrigação por ele determinada em processo de sua competência, poderá, observado o devido processo legal, aplicar, isolada ou cumulativamente, as seguintes sanções:

I — multa;

II — inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança;

III — declaração de inidoneidade para licitar e contratar com o poder público.

§ 1º A declaração de inidoneidade prevista no III deste artigo será imposta quando verificada a ocorrência de fraude comprovada na licitação, ficando o licitante fraudador impedido de licitar e contratar com o poder público estadual e municipal, por até 5 (cinco) anos.

§ 2º Será comunicada ao órgão competente a decisão que declarar a inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança e a proibição de licitar e contratar com o poder público estadual e municipal, para conhecimento e efetivação das medidas administrativas necessárias.

§ 3º A autoridade competente que deixar de efetivar as medidas administrativas a que se refere o parágrafo anterior será responsabilizada, sem prejuízo da aplicação da multa prevista no inciso III do art. 318 deste Regimento e comunicação ao Ministério Público junto ao Tribunal, para adoção das providências cabíveis.

§ 4º O cumprimento das decisões de que trata o § 2º será objeto de monitoramento nos termos do inciso II do art. 291 deste Regimento.

Art. 83 [da Lei Orgânica]. O Tribunal, ao constatar irregularidade ou descumprimento de obrigação por ele determinada em processo de sua competência, poderá, observado o devido processo legal, aplicar, isolada ou cumulativamente, as seguintes sanções:

I — multa;

II — inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança;

III — declaração de inidoneidade para licitar e contratar com o poder público.

Parágrafo único. Será comunicada ao órgão competente a decisão que declarar a inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança e a proibição de licitar e contratar com o poder público estadual e municipal, para conhecimento e efetivação das medidas administrativas necessárias.

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A multa é medida que atinge o gestor pessoalmente e não tem a pretensão de repercutir na esfera de seu patrimônio, pois, como preceitua Alexandre Cardoso Veloso, “não possui caráter ressarcitório. Sua finalidade é eminentemente repressora e preventiva.” (VELOSO, 2007, p. 23). Por tais razões, estabelece o art. 317 do Regimento Interno e o art. 84 da Lei Orgânica do TCEMG, respectivamente:

Art. 317. A multa será aplicada de forma individual, a cada agente que tiver concorrido para o fato, sendo o seu pagamento de responsabilidade pessoal dos infratores.

Parágrafo único. A decisão que determinar a aplicação de multa definirá as responsabilidades individuais.

Art. 84. A multa será aplicada, de forma individual, a cada agente que tiver concorrido para o fato, sendo o pagamento da multa de responsabilidade pessoal dos infratores.

Parágrafo único. A decisão que determinar a aplicação de multa definirá as responsabilidades individuais.

Na mesma linha de raciocínio são as conclusões de Cavalcanti, segundo o qual “na dimensão sancionatória, diferentemente da política, o processo dirige-se direta e imediatamente ao gestor” (CAVALCANTI, 1999, p. 18).

Assim, dirigida exclusivamente ao administrador infrator, a multa possui finalidade repressora, ou seja, consubstancia-se em medida desabonadora, por má gestão da coisa pública ou por descumprimento de decisão ou determinação deste Tribunal e, ainda, finalidade preventiva, na medida em que busca assegurar ao corpo social que a impunidade não se perpetuará na Administração Pública.

Pontuais são as considerações de Veloso ao analisar, em seu trabalho, a finalidade da multa aplicada pelo TCU, cujos reflexos podem ser percebidos também no Tribunal de Contas mineiro:

No âmbito do TCU, identifica-se na multa o elemento objetivo voltado à produção do efeito aflitivo, pois esta almeja punir de maneira pessoal o responsável quando este pratica condutas legalmente vedadas e dissuadi-lo de repetir no futuro a mesma ação reprovada. O seu desiderato é o de, por meio de uma medida de restrição pecuniária, ocasionar uma aflição no agente punido, um desconforto, uma repreensão (VELOSO, 2007, p. 23).

No que tange ao ressarcimento de dano ao erário, estabelecem igualmente o Regimento Interno e a Lei Orgânica do TCEMG, verbis:

Art. 316 [do Regimento Interno do TCEMG]. Além das sanções previstas neste Regimento, verificada a existência de dano ao erário, o Tribunal determinará o seu ressarcimento aos cofres públicos pelo responsável ou sucessor, observado o disposto no inciso VIII do art. 2º deste Regimento.

Parágrafo único. O não cumprimento das decisões do Tribunal referentes ao ressarcimento de valores, no prazo e na forma fixados, resultará no impedimento

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de obtenção de certidão liberatória para fins de recebimento de transferências voluntárias.

Art. 94 da Lei Orgânica do TCEMG: Além das sanções previstas nesta Lei Complementar, verificada a existência de dano ao erário, o Tribunal determinará o ressarcimento do valor do dano aos cofres públicos pelo responsável.

Parágrafo único. O não cumprimento das decisões do Tribunal referentes ao ressarcimento de valores, no prazo e na forma fixados, resultará no impedimento de obtenção de certidão liberatória para fins de recebimento de transferências voluntárias.

A Constituição do Estado de Minas Gerais de 19892 confere competência ao Tribunal de Contas do Estado para aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade e/ou irregularidade de atos e/ou despesas, as sanções previstas em lei.

Logo, o poder sancionador do Tribunal de Contas mineiro advém de disposição constitucional, prerrogativa esta concedida pelo legislador constituinte para viabilizar a atividade de controle externo exercida por esta Casa. Entretanto, coube ao Regimento Interno desta Corte e, de maneira bastante semelhante, à Lei Orgânica, a regulamentação da matéria.

Diante dessas considerações, é necessário proceder à análise do princípio da intransmissibilidade da pena à luz do caráter sancionatório das medidas adotadas pelo Tribunal de Contas.

3.1 Princípio da intransmissibilidade da pena

É incontestável que a imputação de sanção na esfera de competência do Tribunal de Contas mineiro é pessoal, uma vez que direcionada a sua aplicação unicamente ao gestor que praticou ilegalidades e/ou irregularidades em sua gestão.

Desse modo, constatando-se o falecimento do gestor faltoso, deixam de existir as condições para a concretização da dimensão sancionatória do processo, devendo-se decretar extinta a punibilidade do administrador, já que, segundo o princípio da intransmissibilidade da pena, a multa aplicada pessoalmente não pode ser executada contra herdeiros. Em amparo a esta assertiva, transcrevo o inciso XLV do art. 5º da Constituição da República de 1988:

XLV — nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidos aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;

Portanto, não se admite que seja repassada aos herdeiros a responsabilidade não patrimonial do gestor pelo descumprimento do dever de bem gerir a coisa pública.

2 Art. 76, [da CE de 1989] — O controle externo, a cargo da Assembleia Legislativa, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas, ao qual compete:

[...]

XIII — aplicar ao responsável, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, a sanção prevista em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;

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Assim, a aplicação do disposto no art. 5º, inc. XLV, da CR/88, relativamente às multas previamente estabelecidas no Regimento Interno e também na Lei Orgânica do TCEMG, que traz ínsita a vedação de que a pena não pode ultrapassar a pessoa do condenado, é considerada apropriada e oportuna no âmbito da Corte de Contas mineira.

Apesar dos contornos nitidamente penais do princípio da intransmissibilidade da pena, justifica-se a sua aplicabilidade ainda pelo fato de que tais aspectos não impedem que sobressaia o caráter eminentemente administrativo das multas aplicadas por este Tribunal.

Não se olvida que a multa aplicada pelo Tribunal de Contas de Minas Gerais tem a natureza jurídica de sanção administrativa, conforme se depreende inclusive do próprio regramento legal da matéria.

A natureza administrativa das multas aplicadas pelo Tribunal de Contas mineiro pode ser abstraída da doutrina de Fábio Medina, citada por Alexandre Cardoso Veloso, a qual transcrevo:

Consiste a sanção administrativa, portanto, em um mal ou castigo, com alcance geral e potencialmente pró-futuro, imposto pelo administração pública, materialmente considerada, pelo Poder Judiciário ou por corporações de direito público, a um administrado, agente público, indivíduo ou pessoa jurídica, sujeitos ou não a especiais relações de sujeição com o Estado, como consequência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade repressora ou disciplinar, no âmbito de aplicação formal e material do Direito Administrativo (Direito administrativo sancionador. OSÓRIO, Fábio Medina. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 80) (VELOSO, 2007, p. 20).

Concluiu ainda Veloso que o princípio constitucional da intransmissibilidade da pena, como um desdobramento do princípio da culpabilidade, estende-se ao Direito Administrativo Sancionatório:

A pena criminal somente pode atingir o sentenciado (art.5º, XLV, CF), exigência que me parece incidente no campo do Direito Administrativo Sancionador. A pena administrativa somente pode atingir a pessoa sancionada, o agente efetivamente punido, não podendo passar de sua pessoa (VELOSO, 2007, p. 25).

3.2 Ocorrência de dano ao erário

Nos casos em que o gestor causou dano na sua administração, caberá ressarcimento ao erário, porque a ninguém é permitido furtar-se de obrigação de cunho indenizatório. Assim, no caso de falecimento do gestor e eventual sucessão, por conseguinte, a medida não estará ultrapassando a pessoa do sucessor e recaindo sobre os herdeiros, mas impactando a herança, limitada a sua exigibilidade às forças do patrimônio transferido.

Segundo a jurisprudência atual no Tribunal de Contas mineiro, o falecimento do gestor responsável por bens e valores públicos inviabiliza a aplicação de penalidades, como a multa, por essa Corte. Contudo, não afasta o dever de indenizar eventual dano causado ao erário, por constituir providência ressarcitória que incide na esfera patrimonial do de cujus.

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Não há óbice para que o processo siga seu curso para a aferição do prejuízo causado, pois necessariamente o patrimônio deixado pelo de cujus irá fazer frente a este débito.

Cavalcanti menciona interessante especificidade em relação à ausência de patrimônio do gestor falecido, cito:

A inexistência de patrimônio do de cujus, cumpre assinalar, não extingue o débito e, por conseguinte, não extingue o dever de reparação ao erário, apenas impede a extensão desse dever aos sucessores. Assim, se as contas vierem a ser apreciadas, entendemos que se deva julgar em débito o gestor falecido, não lhe sendo devida a quitação, uma vez que não se extinguiu o débito nem o dever de reparar o dano. Permanecendo tal dever, não há que se declarar o seu adimplemento, não há que se falar em quitação (CAVALCANTI, 1999, p. 26).

O referido autor trata ainda de hipótese em que é eliminada a responsabilidade incidente sobre o patrimônio transferido pela herança:

É de salientar que quando os sucessores, por meio de defesa, descaracterizam o dano, afastam, ipso facto, a responsabilidade que lhes é imputada. Além de ilidir a responsabilidade, a descaracterização do dano implica a exclusão deles do processo, vez que, sem a existência de débito, a dimensão indenizatória do processo de contas, a terceira já mencionada, não se realiza, tornando-se dispensável a existência dos sujeitos que a suportem (CAVALCANTI, 1999, p. 27).

3.3 Particularidades na execução da multa e/ou do débito decorrente de ressarcimento ao erário

Na dimensão indenizatória do processo de contas, o escopo é a reparação do prejuízo material causado ao erário, que decorre da responsabilidade civil do administrador público. Nesta seara, o Tribunal de Contas imputa um débito ao responsável, cuja natureza é de título executivo extrajudicial, nos termos do § 3º do art. 76 da CE de 1989.3

Também amparada por disposição constitucional, a multa advinda da dimensão sancionatória do processo de contas tem eficácia de título executivo extrajudicial.

Ressalta-se, por oportuno, que o Tribunal possui um processo de execução próprio,4 de natureza 3 Art. 76, § 3º, da CE de 1989 — A decisão do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terá eficácia de título

executivo.

4 Art. 363 [do RITCEMG]. A decisão do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terá eficácia de título executivo.

Art. 364. O responsável será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, contados da ciência da decisão, na forma prevista no art. 168 deste Regimento, efetuar e comprovar o recolhimento do valor devido.

Parágrafo único. Transcorrido o prazo a que se refere o caput deste artigo sem o cumprimento da determinação, o Tribunal passará certidão de débito contendo a individualização dos responsáveis e o valor do débito e/ou multa imputados, devidamente atualizados, e a remeterá ao Ministério Público junto ao Tribunal, para as providências necessárias à execução da decisão.

Art. 365. Na hipótese de não provimento ou provimento parcial de recurso porventura interposto, o responsável será intimado para efetuar e comprovar o recolhimento do valor devido, no prazo de 30 (trinta) dias, contados da ciência da decisão, na forma prevista no art. 168 deste Regimento.

[...]

Art. 368. Os responsáveis que não comprovarem o recolhimento da multa no prazo determinado no caput do art. 364 e no art. 366, caput e § 3º, ambos deste Regimento, serão inscritos imediatamente no cadastro de inadimplentes do Tribunal, sem prejuízo

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administrativa, por isso é necessário tecer algumas considerações acerca da constituição do

mencionado título executivo.

Assim, o acórdão proferido com a imputação de débito ou multa ao responsável é remetido

ao órgão competente desta Casa para realizar a cobrança da dívida. O responsável é intimado

para adimplir a obrigação de efetuar o pagamento da multa ou, conforme o caso, efetuar o

ressarcimento. Se, no entanto, discordar da cobrança, poderá interpor Recurso Ordinário no

âmbito do TCEMG. Ultrapassado o prazo regimental de 30 dias sem que tenha sido interposto

referido recurso, e não efetuado o pagamento do débito, configura-se o trânsito em julgado da

decisão e, a partir deste momento, é gerado o título executivo extrajudicial.

A dúvida que ainda subsiste é saber se, falecido o gestor após a constituição deste título

extrajudicial, a dívida decorrente da multa aplicada pelo Tribunal de Contas recairá sobre os

sucessores do responsável.

A respeito do ressarcimento por danos causados ao erário não há maiores questionamentos,

uma vez que é inconteste a obrigação dos sucessores de reparar o prejuízo, devendo-lhes ser

estendida a cobrança do título extrajudicial emitido pelo Tribunal de Contas até o limite do

valor do patrimônio transferido na sucessão. Percebe-se que os herdeiros são alcançados apenas

pela responsabilidade patrimonial, não devendo ser a eles transferido qualquer dever de gestão

ou mesmo de prestação de contas.

Em relação à constatação do falecimento do gestor após a expedição do título executivo

extrajudicial que legitima a cobrança da dívida decorrente da multa, ao que parece, o alcance

das providências não deve diferir das medidas processuais até então adotadas nos julgados desta

Corte de Contas pois, do caráter pessoal das sanções administrativas, ressai que a punibilidade

do administrador extingue-se com a sua morte.

Dessa forma, apenas a dimensão indenizatória do processo de contas poderá produzir efeitos

no caso de falecimento do gestor, por se tratar de exceção constitucional ao princípio da

intransmissibilidade da pena insculpido no inciso XLV do art. 5º da CR/88.

Portanto, diante do falecimento do responsável, deve preponderar a máxima de que o

desenvolvimento válido e regular do processo no âmbito do Tribunal de Contas somente se justifica

na medida em que seja possível recuperar o patrimônio público lesado, restando prejudicada a

imposição de sanção, ainda quando tenha sido expedido título executivo extrajudicial por esta

Corte que resulta do próprio julgamento da gestão do administrador.

das demais sanções legais cabíveis.

Parágrafo único. O cadastro de inadimplentes será regulamentado em ato normativo próprio.

Art. 369. Comprovado o recolhimento integral, o Tribunal dará quitação ao responsável.

Parágrafo único. Na hipótese de recolhimento não integral do valor devido, o responsável ficará inscrito no cadastro de inadimplentes até o cumprimento total da obrigação.

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4 As implicações do falecimento do gestor público nos processos do Tribunal de Contas mineiro

Nos processos submetidos aos Tribunais de Contas, o foco de análise é a conduta dos gestores relativamente aos bens e valores públicos, já que o fim último de qualquer ação desses administradores deve ser o interesse público que permeia as relações instituídas na Administração Pública. Assim, o falecimento do administrador não é fator impeditivo da análise dos atos de gestão praticados, resguardando-se uma resposta a toda a sociedade no que tange à escorreita aplicação dos recursos públicos.

Assim, posicionou-se essa Corte de Contas no sentido de assegurar que o Poder Legislativo possa julgar as contas do chefe do Poder Executivo, ainda que comprovado o falecimento do responsável no curso do processo de prestação de contas, como se segue:

Consulta n. 490.442

Trago a Plenário consulta formulada pelo Presidente da Câmara Municipal de Monte Sião, solicitando um parecer deste Tribunal acerca da necessidade ou não de dar continuidade ao julgamento das contas do Prefeito Municipal referentes ao exercício de 1994, tendo em vista o falecimento do mesmo.

É importante salientar que esta Corte de Contas já enviou à Câmara o parecer prévio relativo às contas do exercício mencionado.

Preliminarmente, em que pese o fato de a presente consulta versar sobre caso concreto, sou por seu conhecimento para respondê-la em tese, tendo em vista ser a parte legítima e a matéria pertinente (aprovado o voto do Conselheiro Relator à unanimidade).

No mérito, respondo à presente consulta no sentido de que nos termos do art. 180 da Constituição Estadual é atribuição da Câmara Municipal julgar as contas do Prefeito, mediante parecer prévio do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais.

Assim, mesmo em caso de falecimento do chefe do Executivo Municipal, a Câmara deve atender à disposição constitucional mencionada, ou seja, julgar as contas do Prefeito.

Saliente-se, no entanto, que deve ser preservado o direito de defesa do responsável pelas contas do Município, nos termos do art. 5º, LV, da Constituição Federal, e em caso de seu falecimento, sem que tenha apresentado suas alegações acerca dos fatos constantes do processo de prestação de contas, é necessário que se dê vista do mesmo a seus sucessores.

É o entendimento, Senhor Presidente (aprovado o voto do Conselheiro Relator à unanimidade).5

Não importa, no presente estudo, a natureza processual referente à atividade de controle exercida por este Tribunal de Contas, quando a questão do falecimento do gestor se impõe no caso concreto. Se o Tribunal de Contas exerce sua competência para dirimir questões atinentes

5 Consulta n. 490.442. Relator: Conselheiro Maurício Aleixo. Autos apreciados na Sessão Plenária de 02/09/98.

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a contas ou a licitação, a repercussão do fato não difere muito, haja vista que o cerne do problema incide na punibilidade do gestor faltoso.

Partindo-se de uma análise prática, há casos em que o desenvolvimento válido e regular dos processos do TCEMG é frustrado, tornando-se impossível a imputação da sanção de multa, em razão do falecimento do gestor ocorrer antes mesmo da sua manifestação nos autos. Diante da inviabilidade de concretização do contraditório e da ampla defesa e inexistindo dano ao erário, a alternativa plausível é a extinção do processo sem julgamento do mérito, com o consequente arquivamento dos autos. Funda-se essa medida em razão de o Tribunal somente poder impor penalidade aos seus jurisdicionados, se observado o devido processo legal.

Em outra situação, o Conselheiro Eduardo Carone Costa, no Processo de Inspeção Ordinária n. 708.969,6 proferiu voto distinguindo as providências em relação às irregularidades passíveis de multa e às que acarretam ressarcimento ao erário, o qual transcrevo abaixo:

VOTO:

Com exceção do item 4 — falta de comprovação de despesas no valor de R$120.037,00, com recursos do Fundef no exercício de 2004, as demais irregularidades e falhas apontadas no relatório técnico não são decorrentes de realização irregular de despesas e não causaram dano ao erário, embora caracterizem má gestão e sejam passíveis de aplicação de multa ao responsável, nos termos da LC n. 102/2008.

Entretanto, considerando que o responsável, Sr. Laurentino Pereira Freire, ex-Prefeito Municipal de Ubaí, faleceu em 02/04/05, e que, de acordo com o disposto no inciso XLV do art. 5º da Constituição da República, nenhuma pena passará da pessoa do condenado, não fixo responsabilidade nem aplico qualquer sanção.

Quanto ao item 4, exaurida a competência deste Tribunal, não foi constatada a existência de herdeiros e ação de inventário, contudo, em razão da expressividade dos gastos realizados com recursos do Fundef sem a devida comprovação, determino o encaminhamento dos presentes autos ao douto Ministério Público para as providências na sua esfera de competência.

Observe-se que pelos indícios de prejuízo causado ao erário, os autos de inspeção ordinária seguiram seu trâmite, com o encaminhamento ao Ministério Público desta Casa.

Apesar de o espólio ou de os herdeiros não poderem responder pelos atos de gestão do falecido, eles devem arcar com o dano ao erário, apurado, nos limites do patrimônio transferido.

Nos casos em que o falecimento do gestor ocorrer antes da sua citação, podem os herdeiros até mesmo exercer o direito de defesa relativamente ao débito imputado em razão do dano causado ao erário. Não se admite, contudo, que sejam questionados os atos de gestão do administrador, como anteriormente pontuado. A defesa se limitará a alegações quanto à procedência ou não do débito em questão. 6 Processo de Inspeção Ordinária n. 708.969, decorrente da Prefeitura Municipal de Ubaí, referente ao exercício de 2004. Relator:

Conselheiro Eduardo Carone Costa. Autos julgados na sessão da Primeira Câmara de 02/10/2008.

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No Processo Administrativo oriundo de inspeção ordinária,7 realizada com a finalidade de analisar os procedimentos licitatórios deflagrados na Câmara Municipal de Bertópolis, no período de janeiro a dezembro de 2002, o relator, Conselheiro Antônio Carlos Andrada, atribuiu ao caso os seguintes contornos na decisão submetida à apreciação da Primeira Câmara, na sessão de 24/03/09, de relatoria do Conselheiro Antônio Carlos Andrada, in verbis:

[...] as irregularidades constatadas são passíveis de aplicação de multa ao gestor, e daqueles elencados no item 1, tão somente de advertência. Contudo, a certidão de óbito a fls. 90 comprova que o responsável pela realização das contratações em análise faleceu no dia 1°/01/2003.

É sabido que a morte, como fato jurídico que é, acarreta consequências na esfera do Direito e, nesses termos, a dimensão sancionatória extingue-se com a morte do gestor, visto que o cumprimento da sanção é personalíssimo, não ultrapassando a pessoa do condenado.

[...]

Em face do exposto, considerando o fato das irregularidades apuradas serem passíveis tão somente de advertência e aplicação de multa, determino o arquivamento dos autos sem julgamento de mérito, de conformidade com o art. 267, inciso IX, do CPC, em virtude do falecimento do gestor devidamente comprovado nos autos.

O Auditor Licurgo Mourão tratou do tema em voto apreciado na sessão da Primeira Câmara de 20/10/2009,8 afastando a tese levantada pelo ilustre Procurador Cláudio Couto Terrão em que defendia a prescrição quinquenal para o exercício da função de controle externo dos Tribunais de Contas, uma vez que tal discussão se revelaria estéril no processo, em face do falecimento do responsável. Assim, prosseguiu na análise do mérito, considerando que não foi comprovado dano ao erário, constatando-se apenas irregularidade de contratação em virtude da ausência de processo licitatório ou de ato formal de dispensa ou inexigibilidade, ensejando a aplicação de multa, asseverando que “deve-se ressaltar que a pena de multa constitui sanção pecuniária de natureza personalíssima, não podendo passar da pessoa da agente, o que inviabilizaria sua eventual aplicação no processo em tela.”

Na proposta de voto apresentada pelo distinto Auditor ficou ainda consignada a extinção da punibilidade, ou seja, a não concretização da segunda dimensão do processo, na acepção de Cavalcanti, nos seguintes termos:

Proposta de Voto

Considerando que não há nos autos elementos indiciários de eventual dano material ao erário;

considerando que as irregularidades constatadas são passíveis tão somente de aplicação de multa ao gestor;

7 Processo Administrativo — Licitação n. 690.958, da Câmara Municipal de Bertópolis, referente ao período de janeiro a dezembro de 2002. Relator: Conselheiro Antônio Carlos Andrada. Autos julgados na sessão da Primeira Câmara de 24/03/2009.

8 Contrato n. 133.611, firmado pela Empresa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), em 01/09/1995. Relator: Auditor Licurgo Mourão. O processo em questão foi submetido à apreciação da Primeira Câmara na sessão de 20/10/2009.

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considerando que em virtude do falecimento do gestor, ocorrido em 05/08/1999, portanto, no curso do processo, ficou extinta a punibilidade, porquanto a aplicação da pena não pode ultrapassar a pessoa do condenado, a teor do disposto no art. 5°, inciso XLV, da Constituição da República;

considerando, ainda, que a dimensão sancionatória do processo é a única que se extingue com morte do gestor, uma vez que o cumprimento da sanção é personalíssimo, o que impossibilita, por conseguinte, estendê-la a seus sucessores.

Adoto o entendimento pela extinção do processo e pelo arquivamento dos autos sem julgamento do mérito, em consonância com o art. 176, III, do RITCEMG e o art. 267, inciso IX, do CPC, em virtude do falecimento do gestor devidamente comprovado nos autos, com espeque ainda no § 3° do art. 196 do RITCEMG, pela ausência de pressuposto de desenvolvimento válido e regular do processo.

Apesar de o processo ter, até certo ponto, subsistido após a morte do gestor, a impossibilidade de se aplicar sanção ao falecido acarretou também a extinção do processo sem julgamento do mérito.

Na sessão da Primeira Câmara de 16/06/2010, foi aprovado o voto do Conselheiro Relator Antônio Carlos Andrada, em que determinou, nos autos de Processo Administrativo9 decorrente de inspeção ordinária, realizada com o objetivo de examinar a regularidade dos atos e despesas relativos ao período de janeiro de 2003 a janeiro de 2004, na Prefeitura Municipal de Andradas, a ilegitimidade passiva do espólio de Wilkye Veronese, in verbis:

Excluo da relação processual o espólio do de cujus Wilkye Veronese, porque as contratações pelas quais o falecido era corresponsável, relacionadas nos itens 2.4 e 3, são irregularidades passíveis da penalidade, na espécie multa, a qual tem caráter personalíssimo e não se transmite aos herdeiros, uma vez que os reflexos da sanção recaem exclusiva e diretamente sobre a pessoa do jurisdicionado infrator.

Ressalte-se que o Sr. Wilkye Veronese, Prefeito Municipal até 15/12/2003, procedeu à contratação irregular de serviços de publicidade, uma vez que fracionou o objeto com vistas a se esquivar da realização de certame licitatório, não observando as disposições do art. 8º e violando os arts. 2º e 3º da Lei n. 8.666/93. E, ainda, relativamente à contratação de serviços de consultoria, assessoria e advocacia, não ficou configurada a hipótese de inexigibilidade prevista no inciso II do art. 25, uma vez que o objeto contratado não possuia natureza singular.

Percebe-se que as irregularidades supracitadas decorrem de atos de gestão ilegal, que resultam unicamente na imposição de multa pessoal ao gestor faltoso. Dessa forma, como a dimensão sancionatória dos processos desta Corte se extingue com a morte do gestor, concluiu-se pela necessidade de desconstituir a fictícia relação processual em face do espólio do falecido.

9 Processo Administrativo — Licitação n. 690.211, em que figura a Prefeitura Municipal de Andradas, referente ao período de janeiro de 2003 a janeiro de 2004. Relator: Conselheiro Antônio Carlos Andrada. Esses autos foram apreciados na sessão da Primeira Câmara de 16/06/2010.

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5 Conclusão

A competência constitucionalmente atribuída aos Tribunais de Contas para o exercício do controle externo compreende a apreciação dos atos de gestão praticados pelos responsáveis por bens e valores públicos, à luz dos princípios da legalidade, legitimidade, economicidade, eficiência e, sobretudo, indisponibilidade do interesse público.

A partir do pressuposto de que a análise dos processos de jurisdição da Corte de Contas mineira não culmina no julgamento da pessoa do administrador, mas pretende avaliar o alcance e a repercussão dos atos de gestão pública, o falecimento do administrador não constitui óbice à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial exercida por este Órgão, considerando-se que os atos praticados pelo gestor ainda em vida são passíveis de apreciação mesmo após a sua morte.

Por isso, diante da constatação de irregularidades na gestão de bens e recursos públicos e, surpreendidos pelo falecimento do administrador responsável, os membros desta egrégia Corte de Contas são unânimes em reconhecer que a primeira providência a ser adotada no curso do processo é caracterizar a irregularidade entre aquelas que ensejam a aplicação de multa e, aquelas as que resultam em ressarcimento ao erário.

Essa providência justifica-se porque, como as consequências de natureza sancionatória, a exemplo da multa, são dirigidas unicamente ao gestor faltoso, os sucessores apenas são alcançados quando houver a responsabilização pela reparação do dano eventualmente causado ao erário. Neste caso, é irretocável a lição de Cavalcanti ao dispor que “o débito não se constitui com o julgamento das contas, quando o gestor já está morto, mas muito antes, quando este, em vida, praticou os atos irregulares que resultaram em prejuízo ao erário” (CAVALCANTI, 1999, p. 26).

Relativamente às sanções de multa, de competência da Corte de Contas mineira, não restam dúvidas quanto à aplicabilidade da previsão constitucional insculpida no inciso XLV do art. 5° da CR/88, acerca da intransmissibilidade da pena. Tal entendimento encontra-se de tal forma consolidado, a ponto de haver decisões em que o julgador até mesmo deixou de aplicar a multa em face do falecimento do gestor responsável, como no Processo de Inspeção Ordinária n. 708.969, ou em outro caso, em que se desconstituiu a relação processual, com a exclusão do espólio do administrador responsável, autos de Processo Administrativo n. 690.211, por se entender que os reflexos da sanção somente incidem sobre a pessoa do jurisdicionado infrator.

Entretanto, constatado dano ao erário nos processos em que se faz presente a figura do gestor falecido, ressai a obrigação de cunho indenizatório, recaindo nos herdeiros o dever de ressarcir aos cofres públicos os prejuízos causados pelo de cujus, no limite do patrimônio transferido por herança.

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Trata-se do único caso em que a responsabilidade estende-se aos sucessores, sendo que a obrigação que subsiste após a morte do gestor é de natureza eminentemente patrimonial. Por tais razões, no tocante à falta de comprovação de despesas com recurso do Fundef, nos autos de Inspeção Ordinária n. 708.969, o relator, Conselheiro Eduardo Carone Costa, entendeu que o processo deveria seguir seu curso especificamente em relação a esta questão, remetendo o processo ao Ministério Público de Contas, para as providências cabíveis quanto ao indício de irregularidade passível de ressarcimento ao erário.

Nessa dimensão indenizatória dos processos do Tribunal de Contas, o escopo é basicamente a recomposição do prejuízo material causado ao erário, que decorre da responsabilidade civil do administrador público.

Amparado ainda pela previsão constitucional de que o cumprimento das sanções, como a multa, na Corte de Contas mineira, é personalíssimo, o ilustre Conselheiro Antônio Carlos Andrada determinou o arquivamento dos autos do Processo Administrativo — Licitação n. 690.958, sem julgamento de mérito, uma vez que a dimensão sancionatória do processo extingue-se com a morte do gestor faltoso.

O Auditor Licurgo Mourão, na proposta de voto apresentada em relação ao Contrato n. 133.611, além de considerar necessária a extinção do processo, sem julgamento de mérito, com base no art. 267, inciso IX, do Código de Processo Civil, ressaltou que o falecimento do gestor no curso do processo acarreta a extinção da sua punibilidade, tendo em vista que a pena de multa é dirigida unicamente ao infrator.

Não há que se esquecer, contudo, da primeira dimensão do processo, atinente ao julgamento da gestão do administrador, considerando-se que o principal destinatário do processo no Tribunal de Contas é antes a coletividade e não o gestor, nos dizeres de Cavalcanti.

Desse modo, a extinção do processo, sem resolução de mérito, é cabível somente nos casos em que não houver mais condições para o desenvolvimento válido e regular do processo. Ou seja, muito embora o Tribunal de Contas reconheça a prática de atos irregulares pelo gestor, não é viável a aplicação de pena ao falecido, por ter se configurado causa de extinção da pretensão punitiva.

Por fim, percebe-se que o tratamento conferido à aplicação da pena de multa pelos Tribunais de Contas nos casos de falecimento do gestor conta com escassos estudos doutrinários e ressente de normatização expressa a respeito. Entretanto, o entendimento encontra-se pacificado no Tribunal de Contas mineiro relativamente ao fundamento que legitima toda e qualquer providência de natureza processual adotada em virtude do falecimento do gestor responsável, qual seja, a plena aplicabilidade do princípio da intransmissibilidade da pena, nos moldes em que preceitua o art. 5º, inciso XLV, da Constituição da República de 1988.

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REFERêNCIAS

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504/94-1a Câmara. Ministro Relator Guilherme Palmeira. Ata 03 de 08/02/2000. Secretaria Geral das Sessões da Primeira Câmara do Tribunal de Contas da União. Aprovada em 15 de fev. de 2000. Publicada em 16 de fev. de 2000.

CAVALCANTI, Augusto Sherman. O processo de contas no TCU: o caso do gestor falecido. Revista do Tribunal de Contas da União. Brasília, n. 81, p. 17-27, jul./set. 1999.

MINAS GERAIS. Constituição (1989). Constituição do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, 2010.

MINAS GERAIS. Lei Complementar n. 102, de 17 de janeiro de 2008. Dispõe sobre o orçamento do Tribunal de Contas [Lei Orgânica do TCEMG]. Disponível em: <www.almg.gov.br> e <www.tce.mg.gov.br>.

MINAS GERAIS. Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Resolução n. 12, de 17 de dezembro de 2008. Contém o Regimento Interno do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Disponível em: <www.tce.mg.gov.br>.

VELOSO, Alexandre Cardoso. Multa aplicada pelo Tribunal de Contas da União a gestor de recursos públicos falecido ou que venha a falecer depois da aplicação da punição (Considerações sobre o princípio da pessoalidade, previsto no art.5º, inciso XLV, da Constituição Federal). Revista do Tribunal de Contas da União. Brasília, n.108, p. 19-26, 2007.

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Estudo Técnicoz

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Tratam os autos de denúncia formulada a esta Corte pela empresa American Banknote S/A, à vista do procedimento licitatório realizado pela Cemig Distribuição S/A, n. MS/CS 530-R80159, na modalidade concorrência, objetivando a contratação dos serviços de impressão de dados variáveis na Nota Fiscal — Conta de Energia Elétrica e outros documentos, incluindo o fornecimento de papel pré-impresso, autoenvelopamento, separação, embalagem, acondicionamento em caixas de postagem, entrega para a empresa distribuidora dos documentos, disponibilização de informações via web, desenho de formulários (dados fixos), tratamento de imagens para a produção de formulários pré-impressos, tratamento dos dados variáveis e impressão de documentos em braille, conforme detalhado na Especificação Técnica — Anexo II do edital.

O Exmo. Sr. Conselheiro Presidente, conforme despacho a fls. 110, determinou a autuação da documentação como denúncia, nos termos do art. 70, § 3º da Lei Complementar n. 102/2008 e a sua distribuição, nos termos regimentais.

Foi procedida a distribuição dos autos ao Conselheiro Simão Pedro Toledo, que, conforme despacho a fls. 112, encaminhou os autos a esta Coordenadoria para análise técnica. Tendo em vista o caráter de urgência, foi feita uma análise prévia da denúncia buscando identificar alguma irregularidade no edital que pudesse ensejar a suspensão do certame.

Este órgão técnico, em seu parecer a fls. 113-117, constatou uma irregularidade no subitem 3.2.3.1 do edital, devido à impropriedade na utilização das expressões “quitação” e “certidão negativa”, quanto à prova de regularidade fiscal para com as Fazendas Públicas, em confronto com o art. 29, III, da Lei de Licitações.

A fls. 121-122, a denunciante apresentou documento extraído do sítio eletrônico de compras da Cemig, informando que a data de entrega das propostas foi adiada sine die.

O Conselheiro Relator Simão Pedro Toledo determinou, a fls. 123-126, a suspensão da concorrência, objeto do processo, até decisão final desta Corte. Determinou ainda, a intimação do Gerente de Contratação de Serviços e Soluções Integradas da Cemig Distribuição S/A para que comprovasse a suspensão do procedimento, concedendo-lhe prazo de 15 dias para o encaminhamento a esta

Irregularidades em edital de licitação*

* O entendimento esposado pelo órgão técnico neste relatório foi acolhido pelo Tribunal.

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Corte de toda a documentação referente ao processo licitatório, incluindo as fases interna e externa, e querendo, apresentar as alegações que entendesse pertinentes em face da denúncia, sob pena de multa.

A fls. 133, o Sr. Anderson Fagundes Duarte, Gerente de Contratação de Serviços e Soluções Integradas da Cemig, apresentou a publicação da suspensão do certame e requereu prazo para apresentar defesa.

Conforme fls. 319, o Conselheiro Relator deferiu prazo de 15 dias para apresentação de defesa, que foi protocolizada sob o n. 01.230.432/2009 a fls. 329-334. Juntamente com a defesa, foi apresentada a documentação relativa à fase interna e externa, a fls. 135-317 dos autos.

Após a juntada da defesa, o processo foi redistribuído ao relator, Conselheiro Licurgo Mourão, que determinou, a fls. 403, o envio dos autos a esta Coordenadoria para que se procedesse à análise e manifestação conclusiva nos termos do § 1º do art. 307 da Resolução TC 12/08.

Cumprindo a determinação, passa este órgão técnico à análise da denúncia e da defesa, examinando os documentos da fase interna e externa apresentados.

1 Preâmbulo do edital — Do direito de preferência previsto no Decreto Federal n. 1070/94

Alega a denunciante que no preâmbulo é invocado como regência legal o Decreto Federal n. 1.070/94 e que não subsiste o direito de preferência previsto no mesmo, uma vez que se encontra revogado pelas disposições das Leis n. 10.176/01 e 11.077/04.

Em defesa, a Cemig afirma que o Decreto Federal n. 1.070/94 está em vigor, já que uma norma legal é vigente até que outra a modifique ou a revogue, o que não aconteceu no caso do referido Decreto.

Da análise

Em 1993, a Lei n. 8.666 trouxe o conceito de preferência claramente vinculado às situações de empate. Em relação aos bens e serviços de informática, essa lei reconheceu a necessidade de tratamento especial, uma vez que a regra geral das licitações é a da compra pelo menor preço, fazendo constar a obrigatoriedade da avaliação dos fatores previstos na Lei n. 8.248/1991, por meio de licitação do tipo “técnica e preço”. Nada no texto da Lei n. 8.666/93 parece indicar autorização, ainda que por dedução, para que a preferência se dê em condições diferentes da prevista no caso de empate. Senão vejamos:

Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da

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legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.

[...]

§ 2º Em igualdade de condições, como critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços:

I — produzidos ou prestados por empresas brasileiras de capital nacional;

II — produzidos no País;

III — produzidos ou prestados por empresas brasileiras.

IV — produzidos ou prestados por empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País. (incluído pela Lei n. 11.196, de 2005).

[...]

Art. 44. No julgamento das propostas, a Comissão levará em consideração os critérios objetivos definidos no edital ou convite, os quais não devem contrariar as normas e princípios estabelecidos por esta Lei.

§ 1º É vedada a utilização de qualquer elemento, critério ou fator sigiloso, secreto, subjetivo ou reservado que possa ainda que indiretamente elidir o princípio da igualdade entre os licitantes.

[...]

Art. 45. O julgamento das propostas será objetivo, devendo a Comissão de Licitação ou o responsável pelo convite realizá-lo em conformidade com os tipos de licitação, os critérios previamente estabelecidos no ato convocatório e de acordo com os fatores exclusivamente nele referidos, de maneira a possibilitar sua aferição pelos licitantes e pelos órgãos de controle.

[...]

§ 2º No caso de empate entre duas ou mais propostas, e após obedecido o disposto no § 2º do art. 3º desta Lei, a classificação se fará, obrigatoriamente, por sorteio, em ato público, para o qual todos os licitantes serão convocados, vedado qualquer outro processo.

[...]

§ 4º Para contratação de bens e serviços de informática, a administração observará o disposto no art. 3º da Lei n. 8.248 de 23 de outubro de 1991, levando em conta os fatores especificados em seu parágrafo 2º e adotando obrigatoriamente o tipo de licitação “técnica e preço”, permitido o emprego de outro tipo de licitação nos casos indicados em decreto do Poder Executivo (redação dada pela Lei n. 8.883, de 1994)”(grifo nosso)

Em 1994, o Decreto n. 1.070, à guisa de regulamentação do art. 3º da Lei n. 8.248/1991, fez renascer o conceito de privilégio ao mercado nacional nas compras governamentais de bens e serviços de informática por meio da expansão do conceito de equivalência para abranger uma faixa de 6% de tolerância na avaliação geral e 12% de tolerância no preço. E ainda, estipulou direito de preferência, conforme transcrição dos seguintes artigos do Decreto n. 1.070/94:1

1 Esta lei foi revogada pelo Decreto n. 7.174, de 2010.

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Art. 3º [...]

[...]

VII — pré-qualificação das propostas, cujas avaliações não se diferenciem em mais de seis por cento da maior delas.

Art. 4° Para os efeitos do disposto no § 2° do art. 3° da Lei n. 8.248/91, considerar-se-ão equivalentes as propostas pré-qualificadas, conforme o inciso VII do art. 3°, cujos preços não sejam superiores a doze por cento do menor entre elas.

Art. 5° Como critério de adjudicação, entre as propostas equivalentes, deverá ser dada preferência, nos termos do disposto no art. 3° da Lei n. 8.248/91, aos bens e serviços produzidos no País, observada a seguinte ordem:

I — bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos com significativo valor agregado local por empresa que preencha os requisitos do art. 1° da Lei n. 8.248/91;

II — bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos por empresa que preencha os requisitos do art. 1° da Lei n. 8.248/91;

III — bens e serviços produzidos com significativo valor agregado local por empresa que preencha os requisitos do art. 1° da Lei n. 8.248/91;

IV — bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos com significativo valor agregado local por empresa que não preencha os requisitos do art. 1° da Lei n. 8.248/91;

V — bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos por empresa que não preencha os requisitos do art. 1° da Lei n. 8.248/91;

VI — bens e serviços produzidos com significativo valor agregado local por empresa que não preencha os requisitos do art. 1° da Lei n. 8.248/91;

VII — outros bens e serviços.

§ 1° Para os efeitos deste artigo, consideram-se: a) bens com tecnologia desenvolvida no País, aqueles cujo efetivo desenvolvimento local seja comprovado junto ao MCT ou por organismo especializado, público ou privado, por ele credenciado; b) programas de computador com tecnologia desenvolvida no País, aqueles cujos direitos de propriedade e de comercialização pertençam a pessoa jurídica constituída e com sede no Brasil ou a pessoa física domiciliada e residente no País, cujo efetivo desenvolvimento local seja comprovado junto ao MCT ou por organismo especializado, público ou privado, por ele credenciado; c) bens produzidos com significativo valor agregado local, aqueles cuja produção comprovadamente preencha os requisitos especificados em ato próprio do Poder Executivo, conforme comprovado junto ao MCT; d) programas de computador, produzidos com significativo valor agregado local, aqueles que, além do uso da língua portuguesa nas telas, manuais e documentação técnica, incorporem módulos, programas ou sistemas com tecnologia desenvolvida no País e cujo efetivo desenvolvimento local seja comprovado junto ao MCT ou por organismo especializado, público ou privado, por ele credenciado; e) serviços produzidos com significativo valor agregado local, os prestados por empresas instaladas no País e executados por técnicos residentes e domiciliados no País, conforme documentação comprobatória que deverá ser exigida pelo licitador no edital da licitação.(grifo nosso)

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Em 1995, a Emenda Constitucional n. 06, ao revogar o art. 171 da Carta Magna, eliminou os conceitos de empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional, retirando do ordenamento jurídico pátrio o tratamento diferenciado conferido às empresas em função da origem de seu capital. Essa emenda surgiu com o intuito de adequar o texto constitucional à nova realidade de mercado, decorrente do processo de globalização. Essa nova realidade, de abertura de mercado, não mais poderia admitir discriminações ao capital estrangeiro.

Ficou, assim, derrogada toda a legislação infraconstitucional que conferia tratamento diferenciado às empresas em razão da origem de seu capital. Portanto, não mais poderiam ser assegurados privilégios às empresas brasileiras de capital nacional.

Entretanto, é preciso esclarecer que essa emenda constitucional não teve o condão de revogar todo e qualquer critério de preferência existente em nosso ordenamento, mas tão somente os privilégios concedidos às empresas de capital nacional.

Em 2001, a Lei n. 10.176 prorrogou os incentivos fiscais à área de Tecnologia da Informação e revalidou, com ajustes, o texto sobre a preferência nas aquisições públicas, novamente evidenciando intenção de conceder preferência, nas situações de equivalência, inclusive de preço. Assim a Lei n. 10.176/01 modificou o art. 3º da Lei n. 8.248/91:

Art. 1º Os arts. 3º, 4º e 9º da Lei n. 8.248, de 23 de outubro de 1991, passam a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 3º Os órgãos e entidades da Administração Pública Federal, direta ou indireta, as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público e as demais organizações sob o controle direto ou indireto da União darão preferência, nas aquisições de bens e serviços de informática e automação, observada a seguinte ordem, a:

I — bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País;

II — bens e serviços produzidos de acordo com processo produtivo básico, na forma a ser definida pelo Poder Executivo.

§ 1º Revogado.

§ 2º Para o exercício desta preferência, levar-se-ão em conta condições equivalentes de prazo de entrega, suporte de serviços, qualidade, padronização, compatibilidade e especificação de desempenho e preço.’”(grifo nosso)

Em 2004, a Lei n. 11.077 alterou a redação da Lei n. 8.248, permitindo a aquisição de bens e serviços comuns de informática por meio de pregão, restrita aos licitantes que atendam a processo produtivo básico.

Art. 1º Os arts. 3º, 4º, 9º, 11 e 16-A da Lei n. 8.248, de 23 de outubro de 1991, passam a vigorar com as seguintes alterações:

‘Art. 3º [...]

§ 3º A aquisição de bens e serviços de informática e automação, considerados como bens e serviços comuns nos termos do parágrafo único do art. 1º da Lei n. 10.520, de 17 de julho de 2002, poderá ser realizada na modalidade pregão,

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restrita às empresas que cumpram o Processo Produtivo Básico nos termos desta Lei e da Lei n. 8.387, de 30 de dezembro de 1991.’

Após a exposição dos artigos de leis que tratam do assunto abordado, este órgão técnico passa à análise quanto à vigência do Decreto n. 1.070/94.

O Decreto n. 1.070/94, que veio regulamentar originariamente o art. 3º da Lei n. 8.248/91, teve várias disposições revogadas pela EC n. 06/95 e pelas Leis n. 10.176/2001 e 11.077/04, além de extrapolar os limites da lei regulamentada em certos aspectos, o que torna algumas disposições desse regulamento inaplicáveis.

A sua interpretação deve se dar da seguinte forma: além das derrogações decorrentes da EC n. 06/95 que, basicamente, retirou as preferências concedidas às empresas brasileiras de capital nacional, todas as disposições que regulamentavam a preferência aos bens e serviços com significativo valor agregado local ficarão tacitamente derrogados pelas Leis n. 10.176/2001 e 11.077/2004.

Nesse tocante, importante transcrever o art. 5º do Decreto n. 1.070/94, ressaltando sua atual aplicabilidade:

Art. 5º Como critério de adjudicação, entre as propostas equivalentes, deverá ser dada preferência, nos termos do disposto no art. 3º da Lei n. 8.248/91, aos bens e serviços produzidos no País, observada a seguinte ordem:

I — bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos com significativo valor agregado local por empresa que preencha os requisitos do art. 1º da Lei n. 8.248/91; (revogado pela Emenda Constitucional n. 06/95, em razão de se tratar de preferência que era assegurada às empresas brasileiras de capital nacional);

II — bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos por empresa que preencha os requisitos do art. 1º da Lei n. 8.248/91; (revogado pela Emenda Constitucional n. 06/95, em razão de se tratar de preferência que era assegurada às empresas brasileiras de capital nacional);

III — bens e serviços produzidos com significativo valor agregado local por empresa que preencha os requisitos do art. 1º da Lei n. 8.248/91; (revogado pela Emenda Constitucional n. 06/95, em razão de se tratar de preferência que era assegurada às empresas brasileiras de capital nacional);

IV — bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos com significativo valor agregado local por empresa que não preencha os requisitos do art. 1º da Lei n. 8.248/91; (revogado pela Lei n. 10.176/2001, que extirpou a expressão “valor agregado local”);

V — bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos por empresa que não preencha os requisitos do art. 1º da Lei n. 8.248/91; (não foi revogado, mas equivale basicamente ao disposto no inc. I do art. 3º da Lei n. 8.248/91);

VI — bens e serviços produzidos com significativo valor agregado local por empresa que não preencha os requisitos do art. 1º da Lei n. 8.248/91; (revogado pela Lei n. 10.176/2001, que extirpou a expressão “valor agregado local”);

VII — outros bens e serviços(não foi revogado).

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Denota-se que o Decreto n. 1.070/94 não foi revogado na sua integralidade, mas as alterações trazidas pelas Leis n. 10.176/01 e 11.077/04 são substanciais no que tange ao direito de preferência numa licitação federal.

Ocorre que o edital em análise é de uma licitação estadual, a Cemig realizará concorrência que, conforme consta no preâmbulo do edital, será regida pelo Decreto Federal n. 1.070, de 02/03/1994, e subsidiariamente, pela Lei n. 8.666, de 21/06/1993, e suas respectivas alterações. Nota-se que o direito de preferência a ser observado numa licitação estadual é o preceituado no art. 3º, § 2º, incisos I, II e III, da Lei n. 8.666/93.

Como regra, o Decreto Federal n. 1.070/94 aplica-se tão somente à Administração Pública Federal, bem como a entidades mantidas pela União, o que não envolve, em princípio, a Administração Pública estadual.

Em seu art. 3º, a Lei n. 8.248/91, atualizada pelas Leis n. 10.176/01 e 11.077/04, estabelece quem tem o dever de seguir suas diretrizes, diga-se: “órgãos e entidades da Administração Pública Federal, direta ou indireta, as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público e as demais organizações sob o controle direto ou indireto da União”.

À luz desse contexto normativo, verifica-se que as normas citadas, em princípio, não se aplicam à Administração Pública estadual, salvo se o projeto desenvolvido for custeado pela União. Afora essa viabilidade, não incidem sobre as contratações estaduais os normativos federais apontados.

Por todo o exposto, entende este órgão técnico que a utilização do Decreto Federal n. 1.070/94 e das alterações constantes nas Leis n. 10.176/2001 e 11.077/2004 é imprópria, uma vez que cumpre à Administração Pública estadual, nos certames que deflagrar, observar as regras gerais estabelecidas na Lei n. 8.666/93 relativamente ao direito de preferência, quais sejam, aqueles fixadas pelo art. 3º, § 2º, incisos I, II e III.

2 Da exigência de quitação junto às Fazendas Federal, Estadual e Municipal, prevista no subitem 3.2.3.1 do edital:

Alegou a denunciante que o edital, ora em análise, exige, em descompasso com o art. 29 da Lei n. 8.666/93, que os licitantes comprovem a efetiva quitação junto às Fazendas Federal e Municipal, mediante a apresentação de certidões negativas, e não apenas sua regularidade fiscal, nos limites da lei. Arguiu que o texto legal não exige

prova de quitação, ou seja, certidões negativas, propriamente ditas, pois é possível haver débito consentido e sob controle do fisco, como é o caso dos parcelamentos, questionamentos judiciais e regimes fiscais especiais — que embora não outorguem ao interessado certidões negativas, propriamente ditas, habilitam os devedores à participação em licitação, mediante prova de regularidade fiscal.

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A fls. 113-117, este órgão técnico reconheceu a irregularidade apontada, constatando a impropriedade na utilização das expressões “quitação” e “certidão negativa”, quanto à prova de regularidade fiscal para com as Fazendas Públicas, previstas no subitem 3.2.3.1 do edital, em confronto com o art. 29, III, da Lei de Licitações.

Em defesa, a fls. 331, a Cemig afirma que o edital foi alterado para exigir, tão somente, a certidão de regularidade para com as Fazendas Públicas.

Da análise

O subitem 3.2.3.1 do edital, a fls. 52, que trata da regularidade fiscal exigia:

3.2. Regularidade fiscal:

3.2.3. Prova de regularidade perante as Fazendas Públicas Federal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante:

3.2.3.1. A prova de regularidade para com a Fazenda Federal deverá ser feita mediante a apresentação da Certidão de Quitação de Tributos e Contribuições Federais, expedida pela Secretaria da Receita Federal e da Certidão quanto à Dívida Ativa da União, expedida pela Procuradoria da Fazenda Nacional; a regularidade para com a Fazenda Estadual, através de Certidão Negativa do ICMS; e Municipal, através da Certidão de Tributos Mobiliários do domicílio ou sede da proponente, ou outra equivalente, na forma da Lei (grifo nosso);

Depreende-se, da minuta do edital apresentada, que o item 3.2. do edital, a fls. 352, foi modificado, passando a conter a seguinte redação:

3.2. Regularidade fiscal:

3.2.3. Prova de regularidade perante a Fazenda Pública Federal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente na forma de lei.

Deste modo, foi sanada a restrição quanto à habilitação daqueles interessados que possuíam situação de regularidade fiscal, mas não possuíam certidão negativa ou de quitação de débito. A alteração citada prestigiou o princípio da isonomia.

Considerando que as determinações desta Corte foram atendidas, entende este órgão técnico, s.m.j, que não mais persiste a irregularidade apontada no item 3.2.3 do edital.

3 Da exigência de comprovação do Patrimônio Líquido cumulado com Capital Circulante Líquido, prevista no subitem 3.3.4 do edital:

A denunciante alega que a exigência de comprovação do Patrimônio Líquido cumulado com Capital Circulante Líquido é ilegal conforme preceitua o art. 31, §§ 2º e 3º da Lei n. 8.666/93.

Em defesa, a Cemig, concordando que não se pode exigir simultaneamente Patrimônio Líquido e Capital Circulante Líquido, resolveu adequar o edital no que tange a esta exigência.

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Da análise

Na primeira publicação do edital a fls. 50 e seguintes, a redação do subitem 3.3.4 exigia:

3.3 — Qualificação econômico-financeira:

3.3.4 — Comprovação da existência de Patrimônio Líquido mínimo de R$ 900.000,00 (novecentos mil reais) e Capital Circulante Líquido (Ativo Circulante — Passivo Circulante) mínimo de R$ 700.000,00 (setecentos mil reais), a ser apurado com base no balanço do último exercício.

Depreende-se, da minuta do edital apresentada, que o subitem 3.3.4, a fls. 353, passou a ter a seguinte redação:

3.3 — Qualificação econômico-financeira:

3.3.4 — Comprovação da existência de Patrimônio Líquido Mínimo de R$ 900.000,00 (novecentos mil reais), a ser apurado com base no balanço do último exercício.

3.3.4.1 — Em caso de formação de consórcio, esta comprovação se fará pelo somatório do Patrimônio Líquido de cada participação consorciada, na proporção de sua respectiva participação.

Verifica-se que não há mais exigência de comprovação de Patrimônio Líquido Mínimo cumulado com Capital Circulante Líquido, uma vez que no edital revisado, constante a fls. 353, a Cemig optou somente pela exigência do primeiro.

Considerando que a Administração modificou o edital visando atender as regras previstas no art. 31 da Lei n. 8.666/93, entende este órgão técnico, s.m.j, que não mais persiste a irregularidade apontada no item 3.3.4 do edital.

4 Da exigência de comprovação de quantitativos superiores ao objeto licitado, prevista no item 3.4.1 do edital e itens 2.3.1; 2.3.11 e 2.8.1 do Anexo II:

Alega a denunciante que os itens 3.4.1 do edital e 2.3.1; 2.3.11 e 2.8.1 e do Anexo II do mesmo edital contêm exigências de comprovação de quantitativos superiores ao objeto licitado, estando em desacordo com o art. 30 da Lei n. 8.666/9.

Em defesa, concordando com a denunciante quanto aos itens 2.3.1, 2.3.11 e 2.8.1, do Anexo II, a Cemig excluiu-os do edital. Já o item 3.4.1 permaneceu sob a alegação que se trata de exigência de quantitativos mínimos nos atestados de capacidade técnica em características, quantidades e prazos compatíveis com o objeto da licitação.

Da Análise

Do item 3.4.1 do edital

O item 3.4.1 do edital preceitua:

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3.4.1 — Comprovação de aptidão para desempenho de atividade pertinente e compatível com o objeto licitado, mediante apresentação de atestado emitido por pessoa jurídica de direito público ou privado, para a qual tenha prestado serviços que constituem o objeto desta licitação.

Conforme estabelecido no art. 30, inciso II, da Lei de Licitações, a comprovação de aptidão, para qualificação técnica dos licitantes, restringe-se ao “desempenho de atividade pertinente e compatível em características, quantidades e prazos com o objeto da licitação”. Portanto, a exigência de comprovação deverá ser similar ao objeto da licitação, de acordo com os motivos técnicos que envolvem a sua execução, vedadas limitações não previstas em lei, que inibam a participação na licitação, conforme § 5º do citado artigo.

Apresentar atestado de prestação de serviço que constitui objeto idêntico ao da licitação é uma exigência que contraria o princípio da ampla competitividade.

O art. 30, §§ 1º e 2º, da Lei n. 8.666/93 dispõe:

Art. 30. [...]

[...]

§ 1° A comprovação de aptidão referida no inciso II do caput deste artigo, no caso das licitações pertinentes a obras e serviços, será feita por atestados fornecidos por pessoas jurídicas de direito público ou privado, devidamente registrados nas entidades profissionais competentes, limitadas as exigências a:

I — capacitação técnico-profissional: comprovação do licitante de possuir em seu quadro permanente, na data prevista para entrega da proposta, profissional de nível superior ou outro devidamente reconhecido pela entidade competente, detentor de atestado de responsabilidade técnica por execução de obra ou serviço de características semelhantes, limitadas estas exclusivamente às parcelas de maior relevância e valor significativo do objeto da licitação, vedadas as exigências de quantidades mínimas ou prazos máximos.

§ 2º As parcelas de maior relevância técnica e de valor significativo, mencionadas no parágrafo anterior, serão definidas no instrumento convocatório.”

Observa-se que não foram estabelecidas no Edital em análise, as parcelas de maior relevância e valor significativo.

Reiterando tal entendimento, observa-se o ensinamento do Professor Marçal Justen Filho2, in verbis:

No entanto, qualquer exigência no tocante à experiência anterior, especialmente quando envolver quantitativos mínimos ou restrições similares, dependerá da determinação prévia e explícita por parte da Administração das parcelas de maior relevância e valor significativo. Assim, está determinado no § 2º do art. 30.

Tal determinação destina-se a assegurar o vínculo de pertinência entre a exigência de experiência e o objeto licitado. A essência da questão reside em que a comprovação

2 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e contratos administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 416.

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de experiência anterior como requisito de habilitação não se justifica por si só. Trata-se de condicionamento de natureza instrumental, destinado a restringir a participação no certame aos sujeitos que detenham condições de executar o objeto licitado. Assim, a comprovação da experiência anterior fundamenta a presunção de que o sujeito dispõe de conhecimento e habilidade técnico-empresariais para executar satisfatoriamente a futura contratação.

Ora, essa concepção apenas pode ser aplicada se a experiência anterior exigida do sujeito envolve os aspectos problemáticos, diferenciados, complexos de que se revista o objeto licitado.

Isso produz duas ordens de efeito distintos.

Em primeiro lugar, não há cabimento em impor a exigência de que o sujeito tenha executado no passado obra ou serviço exatamente idêntico ao objeto da licitação. Parece evidente que o sujeito que executou obra ou serviço idêntico preenche os requisitos para disputar o certame e deve ser habilitado. Mas também se deve reconhecer que a idoneidade para executar o objeto licitado pode ser evidenciada por meio da execução de obras e serviços similares, ainda que não idênticos. Em outras palavras, a Administração não pode exigir que o sujeito comprove experiência anterior na execução de um objeto exatamente idêntico àquele licitado — a não ser que exista alguma justificativa lógica, técnica ou científica que dê respaldo a tanto (grifo nosso).

A exigência de atestados que contenham capacidade específica, características e quantitativos idênticos ao objeto licitado (serviços de impressão de dados variáveis na Nota Fiscal — Conta de Energia Elétrica e outros documentos, incluindo o fornecimento de papel pré-impresso, autoenvelopamento, separação, embalagem, acondicionamento em caixas de postagem, entrega para empresa distribuidora de documentos, disponibilização de informações via web, desenho de formulários, tratamento de imagens para a produção de formulários pré-impressos, tratamento de dados variáveis e impressão de documentos em braille) deve ser justificada, sob pena de ser considerada irregular. Conforme este entendimento o Tribunal de Contas da União decidiu:

Sumário: REPRESENTAÇÃO. CONVÊNIO. RECURSOS FEDERAIS. LICITAÇÃO PARA REFORMA E AMPLIAÇÃO DO HOSPITAL MUNICIPAL DE MAGÉ. EXPEDIÇÃO DE MEDIDA CAUTELAR SUSPENDENDO O PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. RESTRIÇÃO AO CARÁTER COMPETITIVO DO CERTAME. PRONUNCIAMENTO DO CISBAF E DA EMPRESA VENCEDORA DA LICITAÇÃO. REPRESENTAÇÃO PROCEDENTE. DETERMINAÇÃO PARA ANULAÇÃO DO EDITAL E DOS DEMAIS ATOS DECORRENTES. DETERMINAÇÕES. CIÊNCIA AOS INTERESSADOS. ARQUIVAMENTO.

1. É competência constitucional do TCU fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município.

2. Exigir-se comprovação de capacidade técnica para parcelas da obra que não se afiguram como sendo de relevância técnica e financeira, além de restringir a competitividade do certame, constitui-se em clara afronta ao estabelecido pelo art. 30 da Lei n. 8.666/93 e vai de encontro ao disposto no art. 37, inciso xxI, da Constituição Federal.

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3. A inadequação das exigências editalícias relacionadas à avaliação de capacidade técnica, que atentam contra o princípio da isonomia, da legalidade, da competitividade e da razoabilidade, insculpidos no art. 37, inciso XXI, da Constituição da República e no art. 3º, caput e § 1º, inciso I, da Lei de Licitações e Contratos, conduz à anulação do procedimento licitatório.

Relatório do Ministro Relator:

O conteúdo e a extensão da qualificação técnica dependem diretamente do objeto da licitação. A definição dos aspectos relativos à comprovação de capacidade técnica — número e conteúdo dos atestados, quantitativos mínimos e parcelas mais relevantes — deve ser fundamentada em critérios técnicos, baseados nas características do objeto a ser licitado, e deve refletir o equilíbrio entre o interesse da Administração em buscar identificar aqueles que efetivamente dispõem de condições técnicas para executar o objeto pretendido e o interesse público de ampliar ao máximo o universo de possíveis competidores. A propósito, citamos Celso Antônio Bandeira de Mello, nas palavras de Adilson Abreu Dallari (Aspectos jurídicos da licitação, 5. ed. São Paulo: Saraiva, p. 115):

‘Celso Antônio Bandeira de Mello assinala que a Administração deve conciliar o princípio da isonomia com a necessidade de segurança, oferecendo iguais oportunidades de contratação a quem comprove estar realmente habilitado a executar o objeto de cada específica licitação, não havendo sequer a possibilidade de se estabelecer um padrão universal de idoneidade.’ (Processo n. 021.415/2006-6 — Publicação: DOU, 16/02/2007 — Ministro Relator: Valmir Campelo)

Isso posto, restou esclarecido que a Administração não pode limitar a participação no certame, sob a exigência de aptidão de desempenho com quantitativos idênticos ao do objeto licitado, uma vez que, segundo a Lei n. 8.666/93, as exigências contidas nos atestados de capacidade técnica devem se restringir às parcelas de maior relevância e valor significativo do objeto da licitação.

Assim, entende-se como restritiva e ilegal a exigência contida no item 3.4.1 do edital uma vez que o mesmo não estabeleceu quais parcelas do objeto da licitação deveriam ser comprovadas por atestado técnico, restringindo-se o item a exigir “desempenho de atividade pertinente e compatível em características, quantidades e prazos com o objeto da licitação.”

Dos itens 2.3.1 e 2.3.11 do Anexo II do edital

Na primeira publicação do edital, a fls. 67- 68, a redação dos itens 2.3.1 e 2.3.11 do Anexo II do mesmo edital exigia:

2.3.1 — A Contratante emite, aproximadamente, 6.5 milhões de Notas Fiscais — Contas de Energia Elétrica e outros documentos, mensalmente, com previsão de um crescimento vegetativo estimado em 5% ao ano;

[...]

2.3.11 — Os dados variáveis de, no mínimo, 350.000 contas de energia e outros documentos serão disponibilizados e transmitidos, diariamente, obedecendo ao cronograma diário do faturamento;

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Na minuta do Edital apresentado, a fls. 381-382, observa-se que a antiga redação dos itens 2.3.1, 2.3.11 e 2.3.12 foi excluída. Assim, as exigências não são consideradas irregulares.

Do item 2.8.1 do Anexo II do edital

Na primeira publicação do edital, a fls. 72, a redação do item 2.8.1 do Anexo II do mesmo edital exigia:

2.8.1 — O proponente deve apresentar Atestado de Capacidade Técnica que inclua contrato já executado e encerrado de forma satisfatória, até a data de apresentação das propostas, ou em andamento, para um volume diário total (somatória das quantidades contratadas) de, no mínimo, 350.000 documentos, emitidos por pessoa jurídica de direito público ou privado, declarando ter atingido o nível de qualidade de serviços exigido.

Após revisão do edital, a fls. 385, observa-se que o item 2.8.1 passou a ter a seguinte redação:

2.8.1 — O proponente deverá apresentar, juntamente com a proposta, o seguinte:

[...]

2.8.1.2 — Atestado de Capacidade Técnica que inclua contrato já executado e encerrado de forma satisfatória, até a data de apresentação das propostas, ou em andamento, para um volume diário (somatória das quantidades contratadas) de, no mínimo, 350.000 documentos;

2.8.1.2.1 — A comprovação acima deverá ser emitida por pessoa jurídica de direito público ou privado, declarando ter atingido o nível de qualidade de serviços exigido;

Observa-se das redações transcritas, que o item continua com as mesmas exigências, só modificado na forma antes descrita. Assim a exigência de Atestado de Capacidade Técnica para um volume diário de, no mínimo, 350.000 documentos continua a vigorar na minuta do edital apresentada.

Emitindo-se 350.000 documentos diários, conclui-se que a licitante deve emitir uma quantidade de 7.700.000 por mês, considerando 22 dias úteis. Essa exigência não se justifica tendo em vista que é um quantitativo superior ao objeto licitado uma vez que o edital dispõe em seu item 2.3.1 do Anexo II que a Cemig emite aproximadamente 6.500.000 documentos mensais.

Além disso, a exigência de apresentação de atestado de capacidade técnica juntamente com a proposta não é acertada, uma vez que se trata de documento de habilitação e como tal, deveria constar no corpo de edital, no item 3: Condições para Habilitação.

Como o Anexo II trata da especificação técnica, não pode haver exigência de documento a ser apresentado juntamente com a proposta, sob pena de confundir os licitantes, tornando o edital obscuro e confuso.

Assim, conclui-se pela irregularidade do item 2.8.1 e subitens 2.8.1.2 e 2.8.1.2.1 do edital, pois afronta os arts. 5º e 30 da Lei n. 8.666/93.

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5 Da alegação de inexistência de orçamento estimado em Planilha Aberta de Composição de Custos Unitários

Alega a denunciante que a licitação está sendo realizada sem o orçamento estimado em Planilha Aberta de Composição de Custos Unitários, o que contraria a norma prevista nos arts. 7º e 40 da Lei n. 8.666/93.

Em defesa, a Cemig afirmou que a planilha de composição dos custos unitários foi juntada ao Processo Administrativo de Licitação.

Da análise

O art. 7º, § 2º, II, da Lei n. 8.666/93 determina a obrigatoriedade de previsão detalhada das despesas, através de planilhas que indiquem os custos unitários. Apesar de a Cemig informar que referida planilha consta no Processo Administrativo de Licitação, não a juntou aos autos.

Assim, não restou provado nos autos que foi realizado orçamento estimado em Planilha de Custos Unitários.

Jurisprudência do TCU ressalta a importância da presença da Planilha de Custos:

A importância da realização de uma ampla pesquisa de preços no mercado e de uma correta estimativa de custos é inconteste, pois fornece os parâmetros para a Administração avaliar a compatibilidade das propostas ofertadas pelos licitantes com os preços praticados no mercado e verificar a razoabilidade do valor a ser desembolsado, afastando a prática de atos possivelmente antieconômicos.(Acórdão n. 710/2007, Plenário, Relator Ministro Raimundo Carreiro).

Assim, entende este órgão técnico que, no que tange a esse item analisado, a denúncia deve ser julgada procedente.

6 Da alegação de violação do art. 40 da Lei n. 8.666/93 quanto aos itens 2.1 e 2.4 do edital

Alega a denunciante que, nos itens 2.1 e 2.4, não constam o dia e a hora para recebimento da documentação e proposta, bem como para o início da abertura dos envelopes.

Em defesa, a Cemig informa que o edital foi alterado para constar o dia e a hora de recebimento das propostas.

Da análise

Conforme se observa a fls. 351 e 352, na minuta do edital apresentada, consta local reservado para a estipulação e divulgação adequada da data e hora para entrega da proposta e sua respectiva abertura.

Assim, entende este órgão técnico que a nova redação proposta pode sanar esta irregularidade.

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7 Da alegação de ausência de proporcionalidade e razoabilidade dos critérios de pontuação do Anexo F do edital, prevista no subitem 6.3 do edital

Alega a denunciante que o Anexo F — Critérios de Pontuação Técnica — apresenta imensa desproporcionalidade na atribuição de pesos e pontuação, bem como falta de razoabilidade para pontuação de determinados quesitos.

A Cemig alegou que o item 2.1.1 do Anexo F foi excluído do edital e que os demais quesitos foram revistos e reavaliados.

Da análise

Do Anexo F do edital revisado, a fls. 395-397, verifica-se que os itens questionados pela denunciante foram excluídos ou modificados, com exceção do item 2.1.2.12 (fls. 395) que equivale ao item 2.1.1.14 (fls. 108) do edital suspenso.

Referido item afirma que o licitante que comprovar por meio de atestado, a inserção de mensagens em cor de destaque imediatamente após solicitação da contratante obterá 10 pontos, o licitante que comprovar inserção de mensagens em cor de destaque no prazo de até 5 dias após a solicitação ganhará 3 pontos e aquele que comprovar referida inserção em preto negrito, imediatamente após a solicitação, receberá 2 pontos. Pontos esses, que serão multiplicados pelo peso 10, por tratar-se do fator serviços.

Entende este órgão técnico que os critérios de pontuação técnica, mencionados pelo denunciante, não são proporcionais e nem razoáveis. Como se verá adiante, o tipo de licitação adotado “técnica e preço” mostra-se incompatível com o certame em questão, assim não caberia haver critérios de pontuação técnica para o objeto a ser contratado.

8 Do tipo de licitação: técnica e preço

Alega a denunciante que o objeto trazido pelo edital não tem o condão de se enquadrar no tipo técnica e preço, vez que não se está diante verdadeiramente de serviços de informática ou de serviços de natureza predominantemente intelectual, e sim de serviços gráficos.

Em defesa, a Cemig afirmou que adotou a modalidade concorrência do tipo técnica e preço em razão do objeto licitado não se limitar à simples impressão de documentos. A Comissão de Licitação entendeu pelo caráter intelectual do objeto uma vez que envolve análise de sistema e processamento de dados.

Da Análise

A licitação em análise objetiva a contratação dos serviços de impressão de dados variáveis na Nota Fiscal — Conta de Energia Elétrica e outros documentos, incluindo o fornecimento

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de papel pré-impresso, autoenvelopamento, separação, embalagem, acondicionamento em caixas de postagem, entrega para a empresa distribuidora dos documentos, disponibilização de informações via web, desenho de formulários (dados fixos), tratamento de imagens para a produção de formulários pré-impressos, tratamento dos dados variáveis e impressão de documentos em braille. Nota-se claramente a preponderância de serviços gráficos.

Trata-se de serviços que não se enquadram como os de natureza preponderantemente intelectual, mas sim comuns. No presente caso, a adoção do tipo de licitação “técnica e preço” viola a norma prevista no art. 46, caput, da Lei n. 8.666/9, que assim dispõ

Art. 46. Os tipos de licitação “melhor técnica” ou “técnica e preço” serão utilizados exclusivamente para serviços de natureza predominantemente intelectual, em especial na elaboração de projetos, cálculos, fiscalização, supervisão e gerenciamento e de engenharia consultiva em geral e, em particular, para a elaboração de estudos técnicos preliminares e projetos básicos e executivos, ressalvado o disposto no § 4º do artigo anterior. (grifo nosso)

Não assiste razão à Administração, quando, em resposta à impugnação apresentada pela denunciante, alega que o objeto da presente licitação, pelo envolvimento de sistemas e processamento de dados, se refere a serviços de informática exigindo conhecimento intelectual. A análise de sistemas e processamento de dados é acessória do serviço que a Administração pretende contratar, não o fim da contratação em si — serviços de impressão de dados variáveis.

Evidente o caráter não intelectual dos serviços, objeto da licitação em tela; ao contrário, configuram-se serviços gráficos e de informática comuns.

Quanto aos serviços de informática, cumpre a este órgão técnico informar que a Lei n. 11.077, de 30 de dezembro de 2004, trouxe alterações ao art. 3º da Lei n. 8.248/91 que possibilitaram a aquisição de bens e serviços de informática comuns na modalidade pregão. A margem para restringir a aplicabilidade da norma, no caso, cabe ao Poder Executivo, que definirá mediante decreto o processo produtivo básico a ser cumprido pelas empresas. Na ausência de regulamentação expressa, a eficácia da referente norma encontra-se contida, o que permite que a modalidade pregão seja utilizada para contratação de empresas, independente do processo produtivo por elas utilizado, desde que forneçam os bens e serviços de informática desejados pela Administração, e desde que estes sejam comuns.

Logo, não há dispositivo legal que vincule os administradores públicos a adotarem, obrigatoriamente, o tipo de licitação técnica e preço para bens e serviços comuns de informática ou de impressão gráfica. Também não há a necessidade de haver autorização por decreto do Poder Executivo para utilização da modalidade pregão para tal fim.

Nas licitações públicas, a regra geral é a aplicação do tipo “menor preço”, sendo os demais tipos reservados para situações especiais. Segundo o TCU, o pregão é compatível com a aquisição de

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bens e serviços comuns de informática. Posicionamentos divergentes desse entendimento são geralmente anteriores à Lei n. 11.077/2004 e ao Decreto n. 5.450/2005. É importante ressaltar que a licitação de bens ou serviços de informática por qualquer outra modalidade ou tipo requer justificativa especial da Administração.

Assim, vale transcrever as seguintes decisões do Tribunal de Contas da União:

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão n. 2.138/2005 — TCU — Plenário.

9.2.2 — esclarecer ao consulente que é juridicamente possível a aquisição de bens e serviços comuns de informática e automação nas contratações realizadas por intermédio da modalidade pregão, mesmo nas hipóteses em que não seja tecnicamente viável a aplicação da regra da preferência a que alude o art. 3º da Lei n. 8.248/1991, com redação alterada pelas Leis n. 10.176/2001 e 11.077/2004, vale dizer, nas situações em que não haja licitantes que possam fornecer produto ou serviço com tecnologia desenvolvida no País ou não cumpram o Processo Produtivo Básico, assim definido pela Lei n. 8.387/1991.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão n. 1.299/2006 — TCU — Plenário.

9.2. — atribuir ao item 9.3.19 do Acórdão n. 740/2004 — TCU — Plenário a seguinte redação: ‘utilizar a modalidade pregão estritamente para aquisição e/ou contratação de bens e serviços comuns, ou seja, aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado, conforme regra ínsita no art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 10.520/2002, incluindo nessas características os bens e serviços de informática’ (grifo nosso).

Como leciona o ilustre Marçal Justen Filho:3

O § 4º do art. 45 reflete um estágio inicial da evolução tecnológica, em que a inovação se traduzia na ausência de bens e serviços padronizados. O dispositivo perdeu (se é que algum dia o teve) sua razão de ser. Com a evolução e o progresso, os bens e serviços na área de informática inseriram-se no processo de produção em massa. Perderam suas especificidades. Isso significa que, tal como se passa com a maior parte dos produtos, os bens e serviços de informática podem ser distinguidos em duas categorias fundamentais. Há os padronizados, disponíveis facilmente no mercado, e há os dotados de peculiaridades e especificidades.

Assim, é perfeitamente possível encontrar equipamentos de informática à venda em supermercados e lojas não especializadas. Ali também se vendem os chamados “softwares de prateleira”: programas com perfil não diferenciado, comercializados em massa e que podem ser facilmente instalados e operados.

Ora, é evidente que essa espécie de bens e serviços não demanda licitação de técnica e preço, eis que não há sequer possibilidade de cogitação de variação técnica apta a satisfazer de modo mais adequado o interesse

3 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e contratos administrativos. 12. ed. São Paulo:. Dialética, 2008.

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sob tutela do Estado. Aliás, o reconhecimento da procedência do raciocínio conduziu à possibilidade de utilização de pregão para contratação nessa área.

Portanto, tem de interpretar-se o § 4º de modo compatível com a Constituição, para evitar o resultado prático de a Administração ser obrigada a desembolsar valores superiores aos necessários. A licitação do tipo técnica será aplicada sempre que a necessidade administrativa envolver alguma característica especial ou peculiar, que não possa ser satisfeita por meio dos produtos padronizados. Para ser mais preciso, até se pode admitir que a Administração possa adquirir produtos sob encomenda, não disponíveis no mercado, valendo-se de licitação de menor preço quando sua necessidade não exigir variações técnicas, qualidades especiais ou atributos diferenciados por parte dos bens e serviços que pretende adquirir.

É imperioso, por tudo isso, que a adoção técnica e preço seja voltada a selecionar efetivamente os bens e serviços que apresentem desempenho e qualidades técnicas mais significativos (grifo nosso).

Diante de todo o exposto, entende este órgão técnico, s.m.j., que a adoção do tipo de licitação técnica e preço, no presente caso, é irregular.

Conclusão: após análise da defesa, este órgão técnico constatou as seguintes irregularidades:

a) Impropriedade na utilização do Decreto Federal n. 1.070/94, uma vez que se trata de licitação estadual.

b) Impropriedade na utilização da expressão “para a qual tenha prestado serviços que constituem o objeto desta licitação”, quanto à comprovação de quantitativos idênticos ao objeto licitado, prevista no subitem 3.4.1 do edital, em confronto com o art. 30 da Lei de Licitações.

c) Inexistência de determinação de parcelas de relevância e valor significativo quanto à comprovação técnico-operacional.

d) Exigência de quantitativo superior ao objeto licitado e de apresentação de atestado de capacidade técnica junto à proposta, prevista no item 2.8.1 do Anexo II do edital.

e) Inexistência de orçamento estimado em Planilha de Composição de Custos Unitários; em desacordo com o art. 7º, § 2º, II, da Lei n. 8.666/93.

f) Ausência de proporcionalidade e razoabilidade dos critérios de pontuação do Anexo F do edital, previstos no subitem 6.3 do mesmo edital.

g) Ilegalidade do tipo de licitação adotado de “técnica e preço” para serviços gráficos e de informática comuns, em violação da norma prevista no art. 46, caput, da Lei n. 8.666/9.

Assim, considerando-se que foi atendido o princípio da ampla defesa, entende-se, s.m.j., que a denúncia pode ser julgada parcialmente procedente, tendo em vista as irregularidades

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apontadas acima, que ferem o princípio da legalidade e da ampla participação, determinando-se que a Cemig proceda à anulação do Edital de Licitação de Concorrência MS/CS 530-R80159.

Observa-se que o objeto do procedimento licitatório em análise pode ser considerado essencial para a prestação de serviços realizada pela Cemig Distribuição S/A, uma vez que se trata de impressão de dados variáveis na Nota Fiscal. Assim, este órgão técnico entende que pode ser fixado prazo para que seja publicado novo edital, escoimado das irregularidades verificadas e para seu encaminhamento a esta Corte de Contas.

À consideração superior.

Karla da Costa MartinsTécnica do Tribunal de Contas

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TCEREVISTA DO

Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais

REVIS

TA D

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CEM

G —

/nove

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2010

v.

77

n.

4

ano X

XVIII

outu

bro

——

AgripaVasconcelos

Entrevistas:

Professor Canotilho destaca aimportância do Tribunal de Contascomo instância dinamizadorado princípio republicano.

Professor José dos Santos Carvalho Filhoadmite a possibilidade de pessoa jurídicade direito privado exercerpoder de polícia fiscalizatório.

... sou médico por vocação, e escritor e poeta, por inspiração.

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AgripaVasconcelos

Entrevistas:

Professor Canotilho destaca aimportância do Tribunal de Contascomo instância dinamizadorado princípio republicano.

Professor José dos Santos Carvalho Filhoadmite a possibilidade de pessoa jurídicade direito privado exercerpoder de polícia fiscalizatório.

... sou médico por vocação, e escritor e poeta, por inspiração.