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SUBVERSA
ANDRÉA DO NASCIMENTO MASCARENHAS | SAT AM
HEITOR LIMA | EVANDRO DO CARMO CAMARGO
TÂNIA ARDITO | MORGANA RECH
RENATO OLIVEIRA ROCHA | ERIC COSTA
FÁBIO DA SILVA BARBOSA | FELIPE LIMA
WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA
@CANALSUBVERSA
SubVersa | literatura luso-brasileira |
10ª Edição
© originalmente publicado em 01 de Fevereiro de 2015 sob o título de
SubVersa ©
Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Fotografia:
© Deb Dorneles
www.debdorneles.com
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como
autores desta obra.
Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos
ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.
CANALSUBVERSA.com
3
10ª Edição
Fevereiro de 2015
ANDRÉA DO NASCIMENTO MASCARENHAS | © INOCÊNCIA | 5
SAT AM | © PHOBOS MONOLITH|6
HEITOR LIMA | © SONETILHOS AO PRESSÁGIO | 8
FELIPE LIMA | © TEMPO PASSADO, DOR SEM FIM: POR
UMA FENOMENOLOGIA MNEMÔNICA EM A MÁQUINA DE
FAZER ESPANHÓIS. | 10
EVANDRO DO CARMO CAMARGO | © ODE à GALINHA
CAIPIRA | 18
RENATO OLIVEIRA ROCHA | © COMÉDIA DA VIDA PÚBLICA |
20
ERIC COSTA |© RABISCOS DA INSÔNIA| 22
TÂNIA ARDITO | © UMA SEMANA | 25
FÁBIO DA SILVA BARBOSA | © OLHOS FURIOSOS | 27
MORGANA RECH | © MARE CLAUSUM | 29
EDITORIAL
ou
Se Newton Trabalhasse na Subversa
Imagine só. Em primeiro lugar,
não se discutiria mais: a
literatura é um corpo vivo,
que produz reação conforme
a sua ação, que tende a
estar em movimento quando
impulsionado com o peso e a
velocidade certa.
E não será esse
justamente o papel de uma
revista literária? Com o peso
dos textos que temos o
privilégio de publicar aqui e a
força entusiasta, nos
desafiamos a mostrar que a
boa literatura está sempre aí
e que não é assim tão difícil
integrá-la no cotidiano das
mais diversas realidades.
Na Sub 10,
apresentamos a primeira
edição com dez textos,
número que agora já somos
capazes de assumir. As fotografias analógicas da Deb Dorneles,
que colabora no website Stout Club e na revista Velô, trazem o
olhar delicado e intuitivo desta gaúcha que fotografa enquanto
pedala pelas ruas de Porto Alegre. A combinação perfeita entre
expressão e recepção, eis a décima. Boa leitura
As editoras.
© D
EB
DO
RN
ELE
S
CANALSUBVERSA.com
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INOCÊNCIA
ANDRÉA DO NASCIMENTO
MASCARENHAS SILVA
SALVADOR, BA, BRASIL
talvez o único valor a salvar desse mundo, talvez o último, o derradeiro
poder . sempre vale a pena preservá-lo . sob o massacre dos astutos
definham afagos que se vestem de nossas almas . sou longe como o
tempo que me separa de mim mesma, menina . como a água de mar
dengoso, aos nossos pés salgada . espio tua poesia: exala olor de
lirismos amadurecidos . com teus olhos me casei e fui feliz . tenho direito
a um passado que não vivemos, pois que (pre)sinto . teus músculos de
ouro frágil, zangam toda. qualquer maresia . medo ou vilania de tua
torpe donzela alimentam meu corcel de irreverência em disfarce de
utopia . lavas pincel em teu sangue purificado a tão alto preço .
esquece a facilidade adocicada de teus dias futuros . entregas a chave
do tesouro a quem já deitou na cama e traiu a fama . mergulhas de
volta em teu temp(L)o máximo . de minha madrugada vislumbro a tua:
insones aprendizes de parcas dimensões a(poetizadas).
ANDRÉA DO NASCIMENTO MASCARENHAS SILVA é docente da área de
Literatura na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Ficou em 13º
lugar no 'XII Festival de poesia, crônica e conto', organizado pela
Fundação Cultural de Imperatriz – MA (2001) com o poema intitulado
Procissão da espiritualidade.
© D
EB
DO
RN
ELE
S
CANALSUBVERSA.com
6
PHOBOS MONOLITH
SAT AM
CURITIBA, PR, BRASIL
Um cosmos frio abençoou meus sentidos conturbados.
Flutuando nesse espaço perdido em meio a constelações antigas,
Eu senti o vento batendo em minha porta,
Exaltando o grito que cada estrela viva despeja em meus ouvidos.
Canções vazias foram entoadas,
E nelas um sentimento de total renegação à vida fora lembrado.
Onde nós, seres menores que se vangloriam de seus feitos quixotescos,
Somos meros espectadores mesquinhos nessa dança macabra.
Tudo está perfeito!
Onde acreditamos que nada, com nossas mentes subdesenvolvidas,
possa existir...
Existe!
© DEB DORNELES
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7
Onde o medo do desconhecido se torna algo maior,
E impede que libertemos sentidos antigos à nossa existência fugaz.
Esta que foi minha última viagem por um tempo esquecido no tempo,
Meu corpo desfeito em poeira cósmica,
Entrelaçado a éons de loucuras espaciais tangíveis ao tato,
Tendo ao meu lado a sombra viva de Azathoth magnânimo,
Inundando minha mente com seu conhecimento ancestral,
Cercado de dores e pesadelos incompreensíveis a um mero mortal
qualquer.
Gritos em um cosmos esquecido pelos ignorantes,
O ídolo erguido a um deus qualquer em um planeta qualquer,
Adorado como a verdade absoluta, universal,
Enquanto aquilo que é verdadeiramente universal o ignora.
Anos-luz distante dessa realidade estúpida eu flutuei,
Viajei até os confins de dimensões paralelas,
E, admirado, contemplei a verdade absoluta obliterada no nada...
(para meu amigo Leandro „Tarik‟)
SAT AM (CURITIBA, PR, BRASIL) É ESTUDANTE DE LETRAS-JAPONÊS DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. GOSTA DE ESCREVER TEXTOS
COMO A TEMÁTICA DOS SENTIMENTOS DE ÓDIO, RAIVA, TERROR E
LUXÚRIA.
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SONETILHOS AO PRESSÁGIO
HEITOR DE LIMA
FORTALEZA, CE, BRASIL
I
Um balir de áries se esvai
Na tua face sublinhada.
Aqui, enquanto o desnível
Carboniza, morrem pétreos
Os desertos angulares,
Segredos de um confidente
Que ora se aguça, de bruço,
Na epiderme. Ora se omite.
© D
EB
DO
RN
ELE
S
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9
O ar fino, fosco, fumaça.
Visão sequiosa, visão
Plural, de intacto menino
Na antinfância (interrompido).
Eu descalço, tu cal, chão:
Ao rés da fala, não muda.
II
Tu sumiço, me persegue.
Tu dobrado nesta escolta
Exclui a ideia, chorume.
Só o disfarçar da agonia
Assiste a carne: Orbital.
O menino não responde,
Gorjeia apenas insultos.
Não se atreve a sentimentos
Próprios, de menino. Luz
Não há, sequer treva... existe
Dor de ser parado, um signo.
Clarividência, sonífero,
Há que resistir ao simples
E esperar pelo presságio.
HEITOR DE LIMA rabisca em versos desde os 9 anos de idade, espera
que o mundo escolha a poesia, mesmo que inconsciente. Vive a
heterogeneidade de ser quem é.
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TEMPO PASSADO, DOR SEM FIM: POR
UMA FENOMENOLOGIA MNEMÔNICA
EM A MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS.
FELIPE LIMA DA SILVA
RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL
“Todos os homens que andam na rua são homens-narrativas, é por isso
que conseguem parar em pé.”
(LEJEUNE, 2014, p. 121).
Tendo como ponto de partida o paralelo entre memória e tempo,
este texto busca traçar um breve exame dos aspectos que permeiam o
romance português A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo
Mãe, atendo-se ao modus operandi do romance no que se refere à
© DEB DORNELES
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11
narrativa e sua relação com a memória. Mais precisamente, será
enfocada a concepção de fenomenologia mnemônica predominante
no romance e o eixo em que estes sintagmas da composição – a
memória e o tempo – agrupam-se para plasmar uma narrativa singular,
tecida a partir de uma rede histórica fundamentada no período
salazarista, que se desdobra, no presente, por meio da narração do
personagem principal Antônio Silva.
Para examinar como opera o mecanismo da memória no
romance, cruzemos a questão com a investigação desenvolvida por
Paul Ricouer a respeito da fenomenologia da memória que consiste na
“representação do passado, [que] aparenta ser mesmo a de uma
imagem” (2007, p. 25). De imediato, a memória assume um papel de
construtora de imagens no desenrolar da narrativa, produzindo
flashbacks que remontam uma “reprodução do antigo presente e
[uma] reflexão do atual” (DELEUZE, 2006, p. 125). Nas linhas do romance,
trata-se de uma simbiose temporal entre o presente antigo (o passado
da personagem) com uma reflexão do atual (o presente da narrativa).
Importa aqui ressaltar que a narrativa em questão configura-se
como uma obra autobiográfica que – segundo Philippe Lejeune, em seu
elegante estudo acerca das narrativas em primeira pessoa – propõe um
pacto fantasmático quando, indiretamente, o leitor é convidado a
tomar os componentes sintomáticos do romance “não apenas como
ficções remetendo a uma verdade da „natureza humana‟, mas
também como fantasmas reveladores de um indivíduo” (2014, p. 50).
O romance de Valter Hugo centraliza-se na memória de um idoso
que remonta os meandros do passado pertinentes ao período
salazarista, recuperando momentos marcantes que geram sentidos de
“inferioridade no povo português” (FONTES, 2013, p. 308). Assim, a
memória é a mediadora da justaposição entre o passado e o presente,
fazendo saltar aos olhos as lembranças mais recônditas do protagonista.
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12
Há, por um lado da narrativa, uma coexistência entre as
memórias do passado de Antônio – marcadas pela vida com a esposa,
Laura, assim como pelo regime da ditadura salazarista; enquanto, por
outro lado, há um imperativo incômodo com o presente que se mostra
referto de dores e melancolias, a saber, as saudades da esposa que
faleceu e o inconformismo com a situação em que se encontra com os
filhos:
já não mandávamos nos filhos, crescidos e
independentes, fazendo isso com que parte dos
nossos papéis ficassem vazios. era como morrer
para determinadas coisas. restava apenas uma
nostalgia, que poderia ser mais doce, se era certo
que nossos filhos estavam vivos e seguiam as suas
vidas como era de ser. (MÃE, 2013, p. 16).
A centralidade concedida à memória é patente desde as
primeiras linhas do romance, devido à configuração enquanto
instrumento mediador da revisão que o protagonista faz de seu
passado. Examinemos, de passagem, que a memória, na tradição
filosófica de criação cartesiana, repousa sobre o estatuto da
imaginação. A esse respeito, é de se repetir o juízo sintético de Paul
Ricouer: “faz[-se] da memória uma província da imaginação” (2007, p.
25).
Sintetizando os elementos principais levantados anteriormente,
pode-se afirmar, junto a Lejeune, que os textos autobiográficos
configuram-se como um gênero contratual cujo funcionamento dá-se
por meio da lógica que se instala entre o leitor e o narrador, na qual
aquele toma as „verdades‟ ditas por este como ficções ou verdades de
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caráter imaginativo e não como verdades absolutas.
Para que se complete o quadro sobre o qual refletimos, é
relevante apontar que a estrutura da narrativa faz-se destoante dos
padrões do romance tradicional, apresentando, por sua conta,
ausência de pontuação e letras minúsculas em lugar de maiúsculas.
Segundo a terminologia de Flávio Carneiro (2005), as narrativas desta
natureza caracterizam-se por sua transgressão ruidosa, na qual a
singularidade da obra, primeiramente, mostra-se através da estrutura
para depois se mostrar pelo conteúdo.
Deixando de lado este breve e atraente desvio pela estrutura
ruidosa do texto, retomemos o fio de nossa reflexão central. Em A
máquina de fazer espanhóis, podemos examinar mais de perto as
manifestações da memória que funcionam, aqui, como meio de
respiração do texto em que o personagem principal busca consolar-se,
já na sua velhice, dos erros do passado, assim como tenta reconstruir
sua vida na ausência de Laura, fazendo desta o núcleo de suas
lembranças. Em uma belíssima passagem, Américo, amigo do narrador-
personagem, reitera que:
a lembrança da sua esposa [Laura] vai trazer-lhe um
sorriso aos lábios porque é isso que a saudade faz,
constrói uma memória que nós nos orgulhamos de
guardar, como um troféu de vida. um dia, senhor
silva, a sua esposa vai ser uma memória que já não
dói e que lhe traz apenas felicidade (MÃE, 2013,
p.77).
Em contrapartida, as lembranças que aludem às ações da
família, no presente, desconstroem em Antônio Silva qualquer sorriso
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14
que a imagem de Laura podia proporcionar. Retratemos as próprias
palavras de Antônio:
se alguma memória má me traziam as suas
presenças, era só a lamentável ideia de se terem
empenhado, com fortunas e subornos, para que eu,
num espaço de tempo recorde, fosse um alívio nas
suas vidas, atarefadas com o social mais volátil e
oportunista (MÃE, 2013, p. 35).
Antônio Silva é fortemente marcado pelo discurso da descrença
que impera nas correntes da pós-modernidade, sofrendo uma fratura
metafísica, desacreditando de qualquer ligação de transcendência
com as questões que permeiam as fábulas, as crenças e a própria
verdade. Deste modo, durante a narrativa, seu discurso é endossado
pela constante descrença em qualquer frase de consolo que parta de
terceiros para justificar a perda de Laura e a reviravolta em sua vida:
“talvez devesse lembrá-los de que não sou um homem religioso e que a
perda não me fez acreditar em fantasias.” (Ibidem, p. 26).
Para que não se perca de vista o objetivo traçado aqui, torna-se
oportuno retomar as linhas do pensamento de Philippe Lejeune a fim de
ressaltar que a memória é uma construção imaginária, merecendo
grande atenção no que se refere às escolhas feitas por aquele que
narra sua história, posto que muito do que se diz, pauta-se naquilo “tudo
que [se] inventa” (LEJEUNE, 2014, p. 123). Assim sendo, proponho
lembrar que o caráter lacunar da memória deve ser associado à
imagem do protagonista, de um idoso que já não tem as certezas
acerca daquilo tudo que faz e fala, produzindo, no curso da narrativa,
fraturas na confiabilidade. À guisa de ilustração, destaca-se o episódio
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do incidente do espancamento da colega da casa de repouso, Dona
Marta, no qual o protagonista acorda sem se lembrar da atrocidade
que realizou na noite anterior:
disse-me que a dona marta tinha passado mal a
noite. estendi novamente as pernas. senti o fresco
dos lençóis nos meus pés grandes e não me lembrei,
nem mesmo vagamente, de me ter levantado às três
da manhã (MÃE, 2014, p.41; grifos nossos).
A fratura da confiabilidade dá-se a partir do momento em que o
leitor compreende que o narrador é responsável pelas falhas
mnemônicas, denunciando-se pela idade e pela vontade de esquecer
certos assuntos e seus aspectos das mais variadas formas. Aliado a isso,
o personagem move-se através da busca de desentranhar de si os
acessos de sofrimento causados pela morte de Laura, pois apenas
havia sobrado uma sensação de papéis vazios, que destilavam uma
sensação equivalente a “morrer para determinadas coisas” (MÃE, 2013,
p. 16), restando apenas uma nostalgia.
A nostalgia move a engrenagem do romance pós-moderno de
Valter Hugo Mãe, exigindo o percpetivismo do leitor para compreender
que, sub-repticiamente, a narrativa funciona na clave confessional, um
testemunho daquilo que se foi e que hoje já não se é mais, mostrando
as fraturas afetivas que o período salazarista produziu em um homem,
ao passo que também funciona como mecanismo de redenção, uma
tentativa de desgarrar-se da culpa que se sente por todos os males
concentrados no seio da família.
Antônio Silva mergulha nos recantos de suas lembranças para
curar-se dos erros que o levam a concluir que “fui, como tantos, um
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16
porco” (MÃE, 2013, P. 175), enquanto, paralelamente, remonta – através
da fenomenologia mnemônica – um retrato de Laura para o leitor.
Nas lentes de José Moura: “uma lembrança é diamante bruto que
precisa ser lapidado pelo espírito” (1988, p. 97), embora seja ele
fraturado pelos sofrimentos que essas memórias possam trazer. Deste
modo, as lembranças de Antônio Silva criam, no romance, uma ponte
para que o leitor conheça o passado salazarista, assim como a própria
Laura, sempre, obviamente, pelo olhar do outro, através das prismáticas
e subjetivas “retinas tão fatigadas”, como diria o poeta gauche, da
alteridade central do romance: os olhos de Antônio Silva.
As lembranças funcionam como imagens de outrora, reclamadas
nas nervuras de uma vida em ato, assentando-se na efetividade dos
acontecimentos, fazendo cruzar a história e a intimidade. Cabe lembrar
que a “História”, aqui, assume o duplo sentido, aquele de história
impregnada na memória coletiva que se dobra e redobra pelos
acontecimentos do período salazarista e a própria memória íntima, as
lembranças da própria personagem, que aqui se revelam, passando de
íntimas para o estado de públicas, recortadas do limbo dos afetos para
serem trazidas aos olhos de pessoas concretas Isto, pois: “as esferas da
exterioridade não são radicalmente separadas do interior” (GUATTARI,
2012, p. 117).
Ainda, as memórias se elaboram pela imaginação e pelo factual
discurso da história, revestem-se de pensamento e fantasia,
espontaneidade e inventividade, para, numa palavra, atravessar as
camadas do humano que, no fim, sentem ruir todas as memórias, assim
como o sentir do último suspiro de dor e alívio:
o meu cérebro estava a afundar-se, estava a aluir
corpo abaixo, já depois do coração, lentamente, a
desregular o sítio de cada coisa, a queimar-se como
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17
em erosão pelo atrito em pedra rugosa. o meu
cérebro levava-se de mim, anulando
progressivamente cada memória, cada desejo.”
(MÃE, 2013, p. 245).
REFERÊNCIAS:
CARNEIRO, Flávio. Das vanguardas ao pós-utópico: ficção brasileira no
século XX. In: _____. No país do presente: ficção brasileira no início do
século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi,
Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
FONTES, Maria Helena S. A revisão do passado colonial como herança
da experiência e das marcas da memória. In: Anais do 24° Congresso
Internacional da Associação Brasileira de professores de literatura
portuguesa. Campo Grande: UFMS, 2014.
GUATTARI, Félix. O novo paradigma estético. In: _____. Caosmose: um
novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora34, 2012.
GONÇALVES FILHOS, José Moura. Olhar e memória. In: NOVAES, Adauto.
O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2014.
MÃE, Valter Hugo. A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac
Naify, 2013.
RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas; São
Paulo: Editora da Unicamp, 2007.
FELIPE LIMA é acadêmico de Letras da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, professor de Literatura e pesquisador das letras luso-
brasileiras do século XVII.
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18
ODE À
GALINHA
CAIPIRA
EVANDRO DO CARMO
CAMARGO
ILHABELA, SP, BRASIL
Mar, oh mar, grande mar.
Como sou pequenino ante a tua grandeza.
Ainda assim, ouso indagar:
Por que tanto te impacientas?
Qual o motivo desse eterno fluir e refluir
Que nada pode nunca refrear?
O mar e suas infindáveis sugestões,
Cantado por tantos poetas desde que a poesia existe,
É grande demais para meus parcos recursos, reconheço.
Mas eis que surgem aos meus pés, providencialmente, na areia,
Nove pintinhos e zelosa mamãe galinha.
Como resistir a quadro tão comovente?
Principalmente a um dos serezinhos bípedes,
Disformemente pintalgado, qual colcha de retalhos mal cosida.
Até sua cabecinha está em desalinho,
Como se tivesse acabado de acordar e,
© D
EB
DO
RN
ELE
S
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19
Apressado em seguir a ninhada,
Não tivesse tido tempo de se pentear.
Um maiorzinho, com seu andar cuidadoso,
Dá uma bicada vã em uma formigona acinzentada, que foge.
Estão de passagem e, ciscaciscando, se vão.
E, nessa manhã de brisa forte e sol fraco, não poderia acontecer
poema mais bonito do que esse.
EVANDRO DO CARMO CAMARGO
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20
RABISCOS DA INSÔNIA
ERIC COSTA
SÃO LUÍS, MA, BRASIL
Quente noite fria
que com ordem ou fora de ordem
os pensamentos varria
Pobre lucidez aparente
Efêmera e quase como miragem
Do sono nos evadia
Ah, sobriedade hipotética
ébria como um diálogo de dialética
de deuses generosos
© DEB DORNELES
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sem dias ociosos
Eles jogam pôquer
bebem, nos céus, em seu saloom
terreno, eu caio em fértil insônia
que de reflexões de ser, crer e ter
faz o seu próprio rum
sob o badalar da sinfonia enfadonha
de ser de nenhum luar
em lugar nenhum
De ser estrangeiro eterno
a respirar o ar
de porquê interno
por ser de algum lugar
em lugar nenhum
Nem toda rima acima cabia
mas o que afinal é sinfonia(?)
Até o pássaro preto que assobia
faz tarefa pouco risonha
Não há perfeita simetria
em uma noite de insônia
Indagar, divagar e lamentar
Os muros da mente quiseram gritar
Ora, vejam: rimou com criar.
ERIC DE MEDEIROS COSTA é acadêmico de Medicina da Universidade
Federal do Maranhão. Vê o escapismo de seus dias, às vezes solitários,
no futebol, na música, literatura e em sua própria introspecção.
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22
COMÉDIA DA VIDA PÚBLICA
RENATO OLIVEIRA ROCHA
CÂNDITO MOTA, SP, BRASIL
Mais um dia para o estagiário. Aquele tinha começado cedo
como todos os outros, mas a chuva atrapalhava seu deslocamento de
casa para a escola. A rotina de estudante resumia-se a acordar às
cinco da manhã, enfrentar ônibus lotado para estudar e mais lotação
para trabalhar – atividade que o destacava entre os amigos. Enquanto
todos tinham a tarde livre para jogar futebol ou ir ao shopping, o jovem
se apresentava pontualmente às 14 horas no fórum para aprender com
os “doutores” como era a vida séria de um homem na sociedade.
Silvinho era discreto, quieto e muito tímido. Mas isso não
atrapalhava seu bom desempenho com o público. Este, aliás, o
agradava. Ficava contente em ajudar a quem, com toda a
© DEB DORNELES
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23
simplicidade, procurava os complicados serviços do Poder Judiciário. O
jovem tinha a percepção de como os colegas de trabalho atendiam as
pessoas. Na maioria das vezes, era muito impessoal; sentia-se como
uma personagem do romance O processo, de Kafka e, por isso, tentava
sempre analisar a situação.
Para um estagiário, ele até que tinha conquistado certo respeito.
Os funcionários comentavam entre si que ele tinha colocado todo
mundo “no bolso”, o que muitos falastrões não conseguiram fazer.
Talvez tivesse conquistado o respeito da maioria. A relação com os
colegas de trabalho era de amizade – conquistada com seriedade.
Apesar disso, nada impedia que delegassem atividades “de gente
grande” ao jovem que, por sua vez, cumpria tudo com perfeição. Sua
eficiência tinha chegado aos ouvidos do juiz – figura que ele sempre via
pelos corredores, e por quem era sempre ignorado.
O jovem magistrado, Doutor Silva, com pouca experiência na
carreira e talvez na vida, exercia muito bem o poder que lhe fora dado:
mandar. Mandava no motorista, na cozinheira e nas faxineiras, mesmo
sem saber o que estava fazendo. Quando entrava na sala, os
funcionários paravam para ouvir um seco “bom dia” enquanto ele
olhava do alto como se procurasse algum erro ou alguma coisa fora do
lugar.
Suas visitas eram raras e por motivos sempre variados. Em uma
delas, demonstrando falta de conhecimento prático, mandou ao chefe
da seção que o motorista fosse comprar remédio para dor de cabeça.
Poderia ser qualquer um, já que ele ignorava qual remédio servia para
quê. Estando o funcionário ocupado, sobrou para Silvinho cumprir a
ordem. Debaixo de chuva, o estagiário foi à farmácia e comprou um
remédio que costumava usar em casa. Seu chefe agradeceu,
demonstrando que ele não tinha feito nada além de sua obrigação. Os
comentários que se ouviram foram:
CANALSUBVERSA.com
24
– Coitado do Doutor Silva... está com dor de cabeça.
– Mas também, trabalha tanto!
– Que dó! Ele é tão bonzinho, não é?
Silvinho ouviu os comentários e pensou em argumentar sobre o
tratamento do juiz com as pessoas, mas preferiu ficar calado. Naquele
dia, voltou para casa tarde da noite, debaixo de chuva e, para piorar,
seu pagamento estava atrasado. Mas nem por isso sentia-se um
coitadinho e ainda ria da inexperiência do “Doutor”.
RENATO OLIVEIRA ROCHA é professor de literatura, graduado em Letras
pela UNESP/Assis. Atualmente, é aluno de mestrado em Estudos Literários
pela UNESP/Araraquara, com dissertação intitulada "Narrativa e
representação: uma leitura de Cidade de Deus".
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25
UMA SEMANA
TÂNIA ARDITO
SÃO PAULO – PORTO
Uma semana. Depois de três anos. Era apenas e todo o tempo
que teriam, uma semana após três longos anos de ausência. Mas, já
bastava uma semana, após três anos seis meses e quatorze dias. Esta
semana surgira um pouco inesperada, quando ele avisou que estaria
em uma viagem de negócios em sua cidade, os dois perceberam que
chegara a hora de resolver o “assunto” adormecido. Justo agora que
ela já não esperava por mais nada e que ele já seguia com a vida. Essa
semana invadia as suas vidas e anunciava o caos, os sentimentos todos
em ebulição; não sentiam falta, pois nunca souberam o que era sentir a
falta, somente ausência e uma mesma pergunta que se repetia em seus
ouvidos ao longo do tempo – como teria sido? Nunca tiveram a chance
de saber e, quando nada mais era esperado aquela uma semana –
talvez- traria a resposta. Não cogitaram sequer a hipótese dele ficar
num hotel, não precisavam combinar e nem acertar nada, ele lá
ficava, afinal sempre esteve. Ele chega, desfaz as malas e entram na
rotina, passeiam, fazem compras, pagam contas, tecem planos; não
© D
EB
DO
RN
ELE
S
CANALSUBVERSA.com
26
falam sobre os anos em que estiveram afastados, o tempo suspenso,
não falam dos motivos e nem das mágoas. Só existe aquele momento.
Durante a semana ele não lembra que vai embora, ela não lembra que
em breve ele não estará ocupando o outro lado da cama. Não
perguntam um ao outro o que sentem, se correspondia ao que
imaginaram, se o que que viviam naquele momento significava serem
felizes juntos, apenas sentem uma cumplicidade no olhar, sabem que
não precisam de palavras. Na hora de partir, ele faz as malas, ela o
café. Vão de mãos dadas durante todo o caminho. Ele faz o chek-in,
beijam-se demoradamente na despedida, ele entra na sala de
embarque, acenam, ela vira as costas e nunca mais olham para trás.
TÂNIA ARDITO atualmente vive na cidade do Porto e é cofundadora e
editora do Canal Subversa.
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27
OLHOS FURIOSOS
FABIO DA SILVA BARBOSA
NITERÓI, RJ, BRASIL
Conheci uma menina
Que apesar de pouca idade
Não conseguia mais dormir
Não tinha onde ir
Olhos furiosos
Pra onde você vai
Olhos furiosos
Não entendem o que você faz
Olhos furiosos
Não me deixe sem você
Olhos furiosos
O que podemos fazer
A vida é o calvário
Amargura e sofrimento
Querem te prender
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Numa parede de cimento
Olhos furiosos
Vão nos afastar
Olhos furiosos
Não deixe que te matem
Olhos furiosos
Por que tudo tem de ser assim
Olhos furiosos
Não vá acabar
Sei que vai sumir
Mas nunca esquecerei
Sempre você
Sempre torcerei
Olhos furiosos
Não pare de lutar
Olhos furiosos
Não vá se entregar
Olhos furiosos
Não vá me esquecer
Olhos furiosos
Não aguento mais sofrer
FABIO DA SILVA BARBOSA
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MARE CLAUSUM
MORGANA RECH
PORTO ALEGRE, RS, BRASIL
(Em homenagem a todos os amores luso-brasileiros)
Nós.
Ainda falamos a mesma língua?
Porque eu me pergunto
com que meios é que o amor atravessa os oceanos, e chega em terra
são e salvo.
Cru, implorando que alguém lhe tome conta.
De que se alimenta, o amor?
Este que viaja só
Tanto tempo
No mar.
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De que pode se alimentar um amor que chega com frio, branco como
cera,
e que só sobrevive no calor de um corpo quente,
como a saudade que
arde ainda na
sombra da
tua
lembrança.
Mas amor não nada sozinho.
É que tu trazias em ti
O dom de extrair
E extraíste-me amor
Como se árvore eu fosse.
Lembras?
E amor não fala,
só quer chegar.
Por isso vieste.
chamado por intimação lunar.
Intimação das Índias.
Encarnação da origem natural das coisas.
Esperaste chegar.
Terra firme.
Era cor que te faltava.
não nas roupas,
no peito.
MORGANA RECH é psicóloga, mestre em Teoria da Literatura,
doutoranda em Teoria Psicanalítica e cofundadora do Canal Subversa.
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Responsáveis técnicas:
MORGANA RECH E TÂNIA ARDITO
Recepção de originais:
Diretrizes para publicação:
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Colaboração especial:
Deb Dorneles