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Revista Recine nº 10 - 2013

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A Revista Recine chega ao décimo número trazendo um dossiê ricamente ilustrado que aborda a relação da cidade do Rio de Janeiro com o cinema. Em 16 artigos, são apresentadas diferentes análises sobre como o Rio de Janeiro tem sido retratado em diversas produções cinematográficas ao longo de décadas. A metrópole-sede para empreendimentos artístico-cinematográficos é outra vertente desta temática. Cineastas, produtores, exibidores e distribuidores estabeleceram-se em terras cariocas, consagrando assim a vocação irradiadora do Rio de Janeiro para as artes cinematográficas. As transformações e a evolução da cidade através dos anos foram fartamente documentadas pelas câmeras e, afora os clichês, foi no cinema que o Rio de Janeiro se mostrou mais exuberante e apaixonante, nos filmes de ficção e em documentários que reproduziram os diferentes aspectos da metrópole: música, religiosidade, tipos humanos etc.

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DE JANEIRO, CAPITAL DO CINEMA

Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo Ano 10 Nº 10 Arquivo Nacional Novembro de 2013

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Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo Ano 10 Nº 10 Arquivo Nacional Novembro de 2013

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EM PROSA E FITAS

PATROCÍNIO CHANCELA REALIZAÇÃO

APOIOCULTURAL

PARCERIA

MINISTÉRIO DA CULTURA, CORREIOS, ARQUIVO NACIONAL E RIO DE CINEMAAPRESENTAM

25-29 NOV/2013ARQUIVO NACIONALPRAÇA DA REPÚBLICA, 173 CENTRO – RIO DE JANEIROENTRADA FRANCA

WWW.RECINE.COM.BR

FILMES / PALESTRAS / REVISTA RECINE

EM PROSA E FITAS

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FILMES / PALESTRAS / REVISTA RECINE

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© 2013 by Arquivo Nacional do Brasil Praça da República, 173 CEP 20211-350 - Rio de Janeiro - RJ - BrasilTel. 55 21 2179 1286

Presidente da RepúblicaDilma Rousseff

Ministro da JustiçaJosé Eduardo Cardozo

Diretor-Geral do Arquivo NacionalJaime Antunes da Silva

Coordenação-Geral de Acesso e Difusão DocumentalMaria Aparecida Silveira Torres

Coordenadora de Pesquisa e Difusão do AcervoMaria Elizabeth Brêa Monteiro

EditoraRenata dos Santos Ferreira

Edição, Redação e Revisão de TextosRenata dos Santos Ferreira

Pesquisa de ImagensDenise de Morais Bastos • Renata William Santos do Vale • Viviane Gouvêa

Projeto Gráfico e DiagramaçãoAlzira Reis

CapaMarina Lutfi / Cacumbu

Coordenação-Geral de Processamento e Preservação do AcervoMauro Domingues

Coordenadora de Preservação do AcervoLúcia Saramago Peralta

Digitalização de ImagensAdolfo Celso Galdino • Cícero Bispo • Fábio Martins Flávio Lopes (supervisão) • Janair Magalhães José Humberto • Rodrigo Rangel

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Esta obra foi impressa pela Imprensa NacionalSIG, Quadra 6 | Lote 800 70610-460 | Brasília | DFTiragem: 1.000 exemplares

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cineApresentação 4Renata dos Santos Ferreira

A cidade no cinema brasileiro: Rio de Janeiro, ontem e hoje 8Michelle Sales

O cinema no Rio de Janeiro pelas lentes da Família Ferrez 18Renata William Santos do Vale

Uma nova arquitetura para a Cinelândia carioca: um espaço público de magia nos anos 1920 e 1930 34Evelyn Furquim Werneck Lima

O filme musical carioca dos anos 30 e 40 46Suzana Cristina de Souza Ferreira

O cinema independente carioca dos anos 1950 54Luís Alberto Rocha Melo

As imagens de cinejornais da Agência Nacional – um passeio pelos anos 1950 64Renata Vellozo Gomes

Adorável Carvana 72Regina Zappa

O Rio de Janeiro sob o olhar de Hollywood 80Leonardo Name

Rio que não é rio, imagens: a representação da modernidade urbana carioca no cinema brasileiro entre 1955 e 1970 92Carlos Eduardo Pinto de Pinto

Os cineclubes e a Cinemateca do MAM: espaços culturais da cidade do Rio de Janeiro na década de 1960 104Alice Pougy

A socialização de cineastas na cidade do Rio de Janeiro entre as décadas de 1950 e 1970 112Rosália Duarte

Múltiplas cidades: representações do Rio de Janeiro no cinema e em outras mídias 124Ana Paula Alves Ribeiro

Entrevista: O Rio amoroso e encantador de 138José Inácio Parente

Investigação e catalogação da coleção SRTV do acervo do Centro Técnico Audiovisual do Ministério da Cultura 150Igor Andrade Pontes

Para além da digitalização: aspectos e desafios da preservação sonora hoje 158Marco Dreer Buarque

A importância da produção cinematográfica do Rio de Janeiro no mercado do cinema nacional 168João Luiz de Figueiredo Silva

A favela em cena: uma trajetória do idealismo à selva de sangue 176Lúcia Loner Coutinho

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Nada como o cinema para apresentar os encantos e as mazelas de uma cidade, descobri-la em seus pormenores, em suas vaidades e singularidades. Quantos filmes já não foram produzidos sob o céu inspirador de Paris, Nova York, Roma e Tóquio? E quantos na plateia não sonharam em conhecer aquelas cidades tão capitais e convidativas, mesmo quando pareceram ameaçadoras e enigmáticas em seus contrastes e exotismos? Imaginem então que efeito causa a imagem da cidade do Rio de Janeiro aos olhos sedentos dos viajantes que fazem da sala de projeção seu meio de transporte para outros mundos possíveis!

Poucas cidades no planeta podem se vangloriar de terem sido cenário privilegiado de tantas pro-duções cinematográficas, que exploraram os mais diversos aspectos relacionados à vida de seus ha-bitantes, de todas as classes sociais, seus pequenos dramas cotidianos, sua influência na política de uma nação e até mesmo as tragédias que marcaram sua existência. Mas não é só isso: o Rio de Janeiro tem sido desde os primeiros tempos do cinema um polo atrativo para aspirantes e cineastas pro-fissionais, que sempre encontraram na cidade boas condições para filmagens, belas locações, mão de obra qualificada, entre outros incentivos. A antiga capital da República, onde se credita o começo da história do cinema no Brasil, recebeu de bra-ços abertos ideias e projetos, firmando-se como capital legítima do audiovisual brasileiro, embora em outros estados, como São Paulo, Minas Ge-rais e Pernambuco, tenha havido considerável e importante produção de filmes. Desde Paschoal Segreto, a família Ferrez e Francisco Serrador, passando pela Cinédia, Atlântida e Severiano Ribeiro, estúdios, produtores, exibidores e dis-tribuidores estabeleceram-se em terras cariocas, consagrando assim a vocação irradiadora do Rio para as artes cinematográficas, centro de diversões e manifestações intelectuais de um modo geral, seduzindo artistas, escritores, agitadores políticos e visionários num caldo variadíssimo de eventos culturais e sociais.

Cidade sonhadora que se oferecia bela e irresis-tível ao olhar do público, reduzida muitas vezes ao clichê carnaval, sol e mar, esse Rio do cinema já teve várias representações: romântico, violento,

moderno, libertador, carente, subdesenvolvido, revolucionário. Em todas elas sempre houve ver-dades e contradições. Da favela idealizada, onde prevaleciam o companheirismo e a autenticidade de um povo, visão bastante difundida nos filmes brasileiros dos anos 1940-50, ao gueto do crime e das injustiças sociais dos anos 2000, em filmes de ficção e documentários o Rio foi sendo com-preendido e esquadrinhado ao longo de décadas, ao sabor do contexto político, social e econômico que o Brasil enfrentava. Os estereótipos sobre o estilo de vida local e o jeito de ser do carioca, por sua vez, alimentam um imaginário no cinema internacional, especialmente no norte-americano, mais preocupado em atribuir um caráter extra-vagante ou libertino ao cidadão da cidade, além de oferecer uma visão surreal, frequentemente negativa sobre o Rio, oscilando entre um espaço urbano caótico e perigoso e um lugar onde a natureza escraviza, determinando assim o com-portamento dos nativos, que demonstram ter uma aptidão especial para a conquista amorosa e a diversão constante. Carregam muitas vezes nas cores, instigando o possível turista a conhecer uma cidade fantasiosa, misto de paraíso sensual, quente e musical, incômodo e sórdido ao mesmo tempo, onde as pessoas parecem não conhecer leis e limites, mas são capazes de receber os es-trangeiros com cortesia e satisfação.

Os tempos mudaram, assim como os comporta-mentos, os modismos e as pessoas. A cidade não poderia ficar parada no tempo. E essa evolução, tão dolorosa e fascinante, pode ser constatada nos filmes brasileiros que tiveram o Rio como cenário da trama. Neles podemos reconhecer ou conhecer velhos hábitos, paisagens, edificações, a evolução da cidade. Aquelas histórias que nossos avós contavam sobre um lugar tranquilo, seguro e amistoso parecem figurar nos filmes antigos, com aqueles carnavais quase inocentes, as ruas bucólicas de subúrbio e as praias limpas, sonhos de quem não viveu aquela época, apenas pode deleitar-se com sua música. O choque de realida-de, no entanto, era passível de censura, uma vez que a cidade precisava vender-se para o turismo, provar que progredia e se civilizava, a partir das amplas reformas promovidas pelo prefeito Pe-reira Passos na primeira década do século XX e

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Renata dos Santos FerreiraEditora

que seguiram nos anos seguintes transformando, desequilibrando e alterando substancialmente a paisagem urbana carioca, introduzindo boulevards e arquitetura europeia nas ruas do centro, abrindo amplos espaços de convivência e de trocas de experiências, cinemas suntuosos que acabaram ficando para a história.

Veio então o movimento do Cinema Novo na década de 1960 e, com seu projeto de conscien-tização popular, uma nova visão da cidade, dura e impiedosa com aqueles que nela chegavam vindos de outras partes do Brasil na esperança de conquistar um futuro melhor. O crescimento desordenado da metrópole expõe seus maiores problemas: falta de saneamento básico, faveliza-ção, desigualdade social, sistema de transportes insuficiente, enfim, um retrato do país que crescia sem se preocupar em atender às mínimas condi-ções de vida de sua população. A cidade maravi-lhosa dos esperançosos anos 1940 e 1950 já não era mais a capital da República e dava lugar a um triste cenário de miséria e abatimento dos anos de ditadura, embora houvesse um esforço por parte dos governos militares em enaltecer o progresso econômico da pátria iludida. O Rio atravessaria uma fase ainda mais difícil a partir da década de 80, menos vistosa economicamente, mas ainda com um papel preponderante na cultura nacional. Enfrentaria também o seu maior drama nas três últimas décadas: a violência e o tráfico de drogas, os assuntos principais nos noticiários relacionados ao Rio de Janeiro. Mas teria papel relevante na Retomada do cinema brasileiro, nos anos 90, em que se confirmou como base estratégica para a produção audiovisual no país graças a incentivos estatais. Hoje, na pré-olímpica cidade do início do século XXI, o real e o espetáculo se juntam, se conformam, como uma espécie de contraponto para a difícil realidade de uma nação que ainda busca seu lugar no panteão dos que de fato podem influenciar o mundo.

Neste décimo número, a Revista REcine traz um panorama bem diversificado sobre a importância da cidade do Rio de Janeiro para o cinema de uma forma geral. Os estudos aqui publicados analisam e revelam como o processo cultural e a confluência de diferentes fatores refletem na interpretação do

Rio de Janeiro, na forma como é retratado em diversas produções cinematográficas ao longo de décadas. A metrópole como sede para empre-endimentos artístico-culturais é outra vertente desta temática, revelando como nela foram se reinventando a produção e o comércio de filmes. Além disso, a construção dos primeiros espaços para a projeção de filmes no Rio, o senso de oportunidade de empresários como Paschoal Se-greto, Francisco Serrador, a família Ferrez e Luiz Severiano Ribeiro – que ajudaram a transformar e modernizar arquitetonicamente a cidade e, de certa forma, enobrecer o hábito de ir ao cinema, como, aliás, lhes convinha –, e de produtores como Adhemar Gonzaga, Watson Macedo, Moa-cir Fenelon e, nos últimos anos, a Globo Filmes. O apelo que as festividades carnavalescas e a música sempre exerceram sobre o público espectador é outro tema de destaque, uma vez que serviu de mote para vários filmes documentais e ficcionais, que tanto ajudaram a consolidar o cinema nacional a partir da década de 1930. O Rio hollywoodiano, a visão da favela, a convivência dos cineastas e a cultura cineclubística são também aqui abordados, e muito ajudam a entender a tendência carioca para ser uma capital do cinema, favorecida pela efervescência cultural e o cosmopolitismo.

Nos cinematógrafos e music-halls, nos multiplex de shopping centers, nos palácios da Cinelândia, Tijuca e Copacabana ou nos saudosos cineclubes, redutos de resistência cultural, seja como entretenimento ou re-flexão, o cinema sempre esteve presente no dia a dia do carioca, acostumado a se deparar com um set de filmagem na próxima esquina. O Rio de Janeiro dos filmes é belo, trágico, aconchegante e bruto. Praia, favela, asfalto; subúrbio e Zona Sul. São as visões múltiplas de cineastas, muitos deles declarando seu amor à cidade, tentando expressar em película o fascínio que ela exerce. Para alguns deles, ela foi fonte de inspiração, personagem da trama, liberdade de criação e investimento. Para outros, um retrato de nossa sociedade, com toda a sua perversidade e complacência. Para todos, provavelmente, o cenário mais bonito e admirado do Brasil.

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Cena de Rio, maravilha do mundo (1965), de Ruy Pereira

da Silva e Carlos Fonseca, curta produzidos pelo Ince

e patrocinado pela Unesco. Correio da Manhã

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Doutora em Estudos de Literatura e mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora adjunta da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Michelle Sales

A cidade no cinema brasileiro: Rio de Janeiro, ontem e hoje

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Ao longo do século XIX, em várias partes do mundo, uma série de novos equipamentos e joguetes faz do desejo pela imagem animada um fato constante. A fotografia acabara por ocupar a função social de representação da realidade e tornara-se o objeto arquetípico da memória e do testemunho histórico. Entretanto, como imagem fixa, algo a escapava da “representação total da realidade”. A capacidade de projetar imagens numa velocidade capaz de sugerir movimento através da persistência retiniana causou uma revolução técnica e estética que fez do cinema a arte do século XX.

Em inúmeras crônicas sobre as primeiras exibi-ções de cinema em Paris, em 1895, comentam-se o estarrecimento e pavor da plateia ao ver trens locomovendo-se, pessoas caminhando etc. Essa tese, bastante questionável, cai por terra quando analisamos os diversos equipamentos que ante-cederam a linguagem cinematográfica, como o animatógrafo, kinetoscópio e espelho mágico, já capazes de sugerir imagens animadas. As Expo-sições Universais, eventos realizados no século XIX e XX em capitais como Londres, Chicago e Paris, construíam uma espécie de microcosmo da modernidade exibindo, em grandes feiras in-ternacionais, entre os avanços científicos, novas imagens construídas através de novos aparelhos óticos.

No Brasil, as primeiras sessões de cinema são realizadas em 1896 no Salão de Novidades Paris, do pioneiro Paschoal Segreto, localizado na rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro. Dois anos

mais tarde, seu irmão, Afonso Segreto, seria res-ponsável pelo suposto primeiro filme brasileiro: o “Vista da Baía de Guanabara”. Tal filme, que nunca foi visto, torna-se “mítico” pelo teor das condições de filmagem – Afonso Segreto teria filmado a Baía de Guanabara, de um barco, num grande plano geral, ilustrando a cidade que se modernizava – e por configurar uma relação que consideramos embrionária entre a moderna cidade do Rio de Janeiro e o cinema. Tal relação, que não é particular da cidade do Rio de Janeiro, vai se intensificando ao longo dos anos, por inúmeros motivos que não iremos desenvolver, mas apenas apontar, como a relação do cinema com o Estado brasileiro, já que o Rio de Janeiro é a capital da República até 1960, e com o surgimento dos surtos irregulares de produção cinematográfica importantes, como a Belle Époque do cinema nacional, surgimento da Cinédia, o Cinema Novo e a Retomada do Cinema Brasileiro. Essa relação do cinema com a cidade do Rio de Janeiro acreditamos ser instituída pela modernidade e pelo processo de modernização urbana, crescimento industrial e planificação da cidade, como também aponta o cineasta Wim Wenders no artigo “A paisagem urbana”:

O cinema é uma cultura urbana. Nasceu no final do século XIX e se expandiu com as grandes metró-poles do mundo. O cinema e as cidades cresceram juntos e se tornaram adultos juntos. [...] O cinema é o espelho adequado das cidades do século XX e dos homens que aí vivem. Mais que outras artes, o cinema é um documento histórico do nosso tempo. Esta que chamam de sétima arte é capaz, como nenhuma outra arte, de apreender a essência das

Reflexo da Praça Mauá, centro do Rio, em 1972: a riqueza e a complexidade de uma cidade sempre em transição. Correio da Manhã

Restaurante de luxo da Exposição Nacional de 1908. Tal como as exposições universais organizadas nas grandes capitais mundiais, o evento colaborou na construção de novos olhares para o mundo e apresentou a capital da República urbanizada e saneada, no contexto da celebração do centenário da abertura dos portos do país ao livre comércio. Correio da Manhã

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coisas, de captar o clima e os fatos do seu tempo, de exprimir suas esperanças, suas angústias e seus desejos numa linguagem universalmente compreen-sível [...] a cidade teve que inventar o cinema para não morrer de tédio. O cinema se funda na cidade e reflete a cidade.1

Portanto, o cinema vai constituindo-se como a técnica e, posteriormente, a estética da moder-nidade avançando sobre a linguagem fotográfica na “apreensão” do movimento, tornando-se uma “imagem-tempo”, como sugere Gilles Deleuze anos mais tarde.

O cinema acompanhou as intensas transforma-ções urbanas que aconteceram no Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX e tratou de dar forma à cidade carioca moderna. O novo ritmo imposto à cidade que se modernizava e expandia-se precisava ser traduzido também por um novo tipo de imagem. A pintura, e mesmo a fotografia, estavam por demais associadas à cidade colonial: escravocrata e pestilenta.

Aliado ao projeto de modernização da cidade en-campado pelo prefeito Pereira Passos, conhecido pela construção da avenida Central (1902-1906), o cinema realizado no Rio de Janeiro, em grande parte, nos primeiros anos do século XX, vai repro-duzir o discurso oficial da República comprometida em criar no imaginário da população um Brasil maravilhoso e, melhor dito, uma cidade maravilhosa.

No trabalho intitulado Radiografia da metrópole carioca,2 analisamos os seguintes filmes: Despedida do 19° Batalhão – Tiro Rio Branco (1910), O que foi o carnaval de 1920! (1920), Exposição Nacional do Centenário da Independência (1922), Viagem do Exmo. Dr. Arthur Bernardes à capital da República (1921), Fluminense Football Club: Réveillon de 1925 (1925), Florões de uma raça – A eleição de Miss Brazil (1929), Excursões dos Bandeirantes (1928-31), Fragmentos da Terra Encantada (1923), La cittá di Rio de Janeiro – Seconda Parte (1924), Trechos de Brasil Maravilhoso (1928), Chegada ao Rio de Janeiro do rei da Bélgica (ou

O Brasil já tem azas) (1920), Barão do Rio Branco – A nação em luto – Os funerais (1912), Funeral Del Prete (1928) e Funerais de Ruy Barbosa (1923). Tais filmes foram escolhidos por representarem a cidade do Rio de Janeiro e, alguns, pelo protagonismo da própria cidade, como Fragmentos da Terra Encantada, La cittá di Rio de Janeiro – Seconda Parte e Trechos de Brasil Maravilhoso. Pela exiguidade de espaço, op-tamos aqui por comentar, inicialmente, os filmes realizados no início do século XX que impuseram o Rio de Janeiro como personagem principal.

O Fragmentos da Terra Encantada, de Silvino Santos, e La cittá di Rio de Janeiro, realizado pelos irmãos Botelho, têm como semelhança a construção da imagem do Rio de Janeiro como cidade moderna, urbanizada e na qual a natureza convive de ma-neira integrada com a cidade. Ambos os filmes exibem cenas de Copacabana, exaltando a maneira com a qual a paisagem à beira-mar convive com as primeiras edificações e com o planejamento urbano. A avenida Paysandu, o Palácio Guanabara e a rua do Ouvidor também são imagens recor-rentes, representações capazes de dar forma à cidade que se deseja moderna. O filme Trechos de Brasil Maravilhoso, também realizado pelos irmãos Botelho, apresenta planos aéreos na tentativa de representação totalizante da cidade e, além disso, do desejo de tornar aquela paisagem uma imagem emblemática e oficial da cidade do Rio de Janeiro.

As imagens propagadas nos filmes citados estão relacionadas com o discurso oficial da República. O projeto modernizador foi, por outro lado, pro-fundamente excludente e autoritário, expulsando em grande parte negros e mestiços que viviam em casebres no centro do Rio, o que acabou por acarretar a criação das primeiras favelas do Rio de Janeiro. Esse projeto modernizador foi experimen-tado também a partir de suas tensões entre o desejo oficial de transformar a cidade do Rio de Janeiro no reflexo do espelho da modernidade e as vontades e necessidades da população. Tal dissonância acaba por contrapor a “cidade real” da cidade cinematográfica construída pela poética das imagens.

1 WENDERS, Wim. A paisagem urbana. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Iphan, Brasília, n. 23, p. 181, 1994.2 SALES, Michelle. Radiografia da metrópole carioca: registros da cidade no cinema. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010.

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O bairro da Glória captado no início do século XX: imagem de um Rio de Janeiro que se modernizava, mas que ainda mantinha características do passado. Correio da Manhã

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A crítica a essa “cidade idealizada” era realizada pela literatura e pela crônica jornalística. Assim como Walter Benjamin considera Haussman, responsável pelo traçado urbano de Paris, uma “alegoria das ruínas”, o prefeito Pereira Passos pode ser encarado da mesma forma. O caráter alegórico dessas ruínas rompia, entretanto, o discurso e invadia a cena3 da cidade, exprimindo dicotomias e tensões.

Em seguida, é preciso mencionar três importantes filmes das décadas de 1930 e 1940, produzidos pela Cinédia, empresa carioca de Adhemar Gon-zaga: os filmes Limite, de Mário Peixoto (1931); Ganga bruta, de Humberto Mauro (1933); e O cor-tiço, de Luiz de Barros (1945), constituem impor-tantes experiências de linguagem cinematográfica.

De volta aos primeiros filmes, o tipo de linguagem utilizada – em se tratando de um ainda cinema mudo, as cartelas tratavam de solidificar o dis-curso aclamatório da cidade maravilhosa – quase sempre em tom “realista” e representacional foi sendo, pouco a pouco, questionado por um ci-nema moderno e com forte teor de crítica social que começa a se impor já nos anos 1950 através dos filmes de Nelson Pereira dos Santos: Rio, 40 graus (1955) e Rio, Zona Norte (1957), embriões do Cinema Novo brasileiro. Ambos filmados em locações externas, fora dos estúdios – em contraposição à maioria dos filmes da produtora e distribuidora Cinédia –, os filmes de Nelson lançam um novo olhar sobre a cidade do Rio de Janeiro, influenciado pelo Neorrealismo italiano dos anos 1940, valendo-se de filmagens externas, crítica social e linguagem documental.

Rio, 40 graus é um dos primeiros filmes a abordar a questão da segregação urbana causada pelo desenho que se impõe à cidade do Rio de Janeiro separando favela e asfalto. O filme tem início com um grande plano aéreo, de maneira semelhante aos filmes dos anos 1920, e aponta nos créditos “São Sebastião do Rio de Janeiro, em” salientando

o protagonismo da cidade. A história acompanha a vida de jovens garotos que vendem amendoim na praia de Copacabana e em outros pontos tu-rísticos num ensolarado domingo de sol. O filme trouxe para primeiro plano uma discussão política e social, representando a vida no morro através de personagens marginais que orbitavam em torno dos jovens vendedores de amendoim, como o malandro e a prostituta. Acusado de disseminar ideias comunistas, o filme foi censurado e só foi liberado em 1956, sob a legenda “O filme que abalou o país”, e foi sucesso de público e crítica.

Já no Rio, 40 graus o samba é uma referência estética e cultural imprescindível. A música de abertura e música/tema do filme é a canção A voz do morro, de Zé Kéti, que acabou por trabalhar como assistente de câmera e ator neste filme e no seguinte, Rio, Zona Norte, que tem o próprio samba como personagem central da narrativa. Este úl-timo aponta a trajetória de um sambista que luta para conseguir sobreviver em meio às ambições da crescente indústria fonográfica brasileira. No-vamente, a questão social é crucial na construção narrativa, e o ponto de vista que nos guia ao longo do filme é o do oprimido, como no anterior. O samba que anima o carnaval e sedimenta o ritmo da cidade maravilhosa é o mesmo que dá voz aos humores dissonantes da urbe carioca.

Essa imagem de crise da cidade apontada já nos anos 1950 vai ser desenvolvida por outros realiza-dores vinculados ao movimento do Cinema Novo, que se estabelece na cidade do Rio de Janeiro agrupando os jovens cineastas Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Ruy Guerra, Leon Hirszman, Paulo César Saraceni e outros. A metrópole carioca aparecerá em dife-rentes filmes desta época, dos quais destaco dos primeiros anos do movimento: Cinco vezes favela, direção coletiva (1962); Porto das Caixas, de Paulo Saraceni (1962); A grande cidade, Carlos Diegues (1966); e Terra em Transe, de Glauber Rocha (1968).

3 Renato Cordeiro Gomes, em Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana (Rio de Janeiro: Rocco, 1994), trabalhou os conceitos de cena e obscena, para representar, respectivamente, aquilo que o espaço oficial mostrava e os excluídos da Belle Époque, escondidos por trás das belas fachadas ou descolados para longe da cidade, povoando o subúrbio carioca.

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A natureza e o urbano convivendo de maneira harmônica na Copacabana do início do século XX, um dos cenários preferidos para filmes que exaltavam as belezas da cidade. Correio da Manhã

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A imagem da cidade vai revelando as contradições e tensões que nela sempre existiram. O tom de crítica social do Cinema Novo ressaltava, em contraposição às imagens do cinema do início do século, uma ima-gem de crise da cidade. Antecipava a cidade partida, conceito amplamente difundido pela sociologia urbana carioca e pela mídia apenas nos anos 1990, com a publicação do livro de Zuenir Ventura.4

Ainda sobre o Cinema Novo, o contexto da crítica social tinha como texto germinal o Estética da fome, de Glauber Rocha. Tal manifesto fazia ressaltar o caráter de violência subversiva que, segundo Glauber, fazia-se fundamental para dar conta da representação dos espaços marginais da vida social brasileira no cinema, cuja imagem da favela e do sertão, já nos anos 1960, tentava impor ao espectador sua existência social, política e estética.

Naqueles anos 1990, outro acontecimento é definitivo para o cinema brasileiro: possibilitado pelas leis de incentivo à cultura e ao audiovisual, o cinema retoma a produção cinematográfica que havia sido paralisada com o fim de empresa estatal Embrafilme, durante o governo do ex-presidente Fernando Collor.

Na virada para os anos 2000, dois importantes filmes recuperam uma discussão profunda sobre a cidade do Rio de Janeiro e tornam, aliás, a cidade um elemento central na narrativa e determinante em relação ao comportamento e caráter dos prota-gonistas. Madame Satã, do cineasta Karim Aïnouz, de 2002, reconstrói a vida do transformista João Francisco dos Santos, também conhecido como Madame Satã, personagem da noite marginal ca-rioca dos anos 1950 em diante, até sua morte em 1976. O filme de Karim põe em evidência a margi-nalidade e a boêmia carioca, a vida dos mendigos, das prostitutas, dos travestis e a violência social a que todos esses estavam (e estão) submetidos. Foi bastante atual no momento de estreia, pois o bairro da Lapa, no centro do Rio de Janeiro, passava por um intenso processo de “revitalização” que tinha

como objetivo recuperar o espaço da boêmia e ser novamente reduto da noite carioca, o que de fato aconteceu. A Lapa, entretanto, no filme de Karim, e nos dias atuais, revela nos seus espaços inúmeras tensões de classe, de gênero e de opção sexual, que se refletem nas separações entre zonas de negros, bailes funk e hip-hop, casas de show para a burguesia, bares e restaurantes caríssimos e zonas de prostituição, travestis, gays e transexuais.

O outro filme é Cidade de Deus, também de 2002, do cineasta Fernando Meirelles. O filme é baseado no romance homônimo de Paulo Lins, publicado pela Companhia das Letras. Morador da Cidade de Deus, bairro construído em Jacarepaguá nos anos 1960 para abrigar famílias removidas das fa-velas da Zona Sul carioca, Paulo Lins começa sua trajetória na literatura como poeta da Cooperativa dos Poetas, ainda nos anos 1980. Seu livro, Cidade de Deus, narra a transformação pela qual passou o bairro onde cresceu, tornando-se uma das favelas mais perigosas do Rio de Janeiro, lugar estratégico para o tráfico de drogas.

O filme de Fernando Meirelles transforma o personagem Buscapé em narrador, e é este quem vai-nos apresentando a vida e os dramas da fa-vela através dos moradores da Cidade de Deus. Segundo a pesquisadora Ivana Bentes,5

Se o livro retratava, quase em forma de colagem, relatos brutais e diferenciados do surgimento e de-senvolvimento do tráfico de drogas na favela carioca Cidade de Deus, o filme vai homogeneizar essas falas e criar uma narrativa na primeira pessoa. Conta essa história do ponto de vista de um personagem já clás-sico no cinema, o “sobrevivente”, o garoto Buscapé, irmão de um ladrão morto e que decide ter outro destino, o que não é tão natural como suporíamos. Sua história de conquista desse lugar, o garoto quer se tornar fotógrafo, é o tênue fio condutor de uma série de outras biografias, bem diferentes da sua. As histórias dos jovens traficantes: Zé Pequeno, Bené, Mané Galinha e Cenoura.

O processo de modernização

excludente expulsou das

áreas centrais a população

pobre, que acabou gerando

as favelas. Só a partir dos anos 50, o

cinema trataria de mostrar o

cotidiano dessas comunidades, com um olhar

idílico e de crítica social. O debate sobre o

tema voltaria com força nos

anos 2000, quando alguns filmes mostram uma realidade mais violenta.

Correio da Manhã

4 VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.5 BENTES, Ivana. Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosmética da fome. Alceu, v. 8, n. 8, p. 252, jul.-dez. 2007.

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Madame Satã, personagem da noite boêmia da Lapa, inspirou o cineasta Karim Aïnouz a realizar o filme que enfoca a vida marginal na “cidade maravilhosa”. Correio da Manhã

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Seguindo a crítica de Ivana, ao filme de Fernando Meirelles ficou associado a ideia de “cosmética da fome”, em alusão ao artigo de Glauber Rocha de 1963. Em contraposição à imagem da favela que o Cinema Novo impunha como espaço de tensão social, mas também de questionamento e transformação, Ivana Bentes argumenta que no filme de Meirelles a favela aparece como um lugar autônomo, autogerido pelos moradores e habitat da violência natural e banal a que todos estão acostumados a lidar e difundir.

Criticado pelo espetáculo da pobreza promovido pela beleza da fotografia, velocidade da mon-tagem, figurinos coloridos e estilhaços de bala, Cidade de Deus promoveu um intenso debate so-bre a favela, questões de classe, raça, gênero e de representação, que também o tornaram bastante significativo na geração da Retomada do Cinema Brasileiro. Duplamente representada, a cidade em Cidade de Deus aparece, poucas vezes, do “lado de fora” da favela, mas sem estabelecer conexões mais profundas, como as que de fato existem entre favela e asfalto no Rio de Janeiro.

A crise na representação da cidade, que no início do século tinha como interesse também captá-la na sua totalidade, surge em diferentes contextos nos filmes Ônibus 174, de José Padilha, e Edifício Master, de Eduardo Coutinho, todos com estreia em 2002. No filme de Eduardo Coutinho, a cidade não apa-rece, a não ser através de olhares recortados através das janelas de um conjugado em Copacabana. A cidade está ausente, mas esta ausência é também uma presença, como vemos no filme. Neste do-cumentário, a cidade é sempre mencionada e vista através do cotidiano dos moradores do Edifício Master. A totalidade da representação deixa de ser um interesse para tornar-se uma condição impraticável, tendo em vista a complexidade das metrópoles pós-modernas. Essa complexidade da

cidade do Rio de Janeiro, cuja riqueza e diversidade ainda são um elemento central em inúmeros filmes brasileiros contemporâneos.

O filme de Padilha polariza a imagem cinema-tográfica que vai sendo construída ao longo da narrativa com a imagem precária da cidade ofe-recida pela televisão. Ao lado da instantaneidade, fugacidade e velocidade da transmissão ao vivo, o documentário de Padilha vai aprofundando e tornando essa imagem precária em algo mais denso, com lastro e histórias de vida, recontando a violência urbana através do personagem cen-tral, o Sandro. O filme representa uma primeira aproximação à cidade do Rio de Janeiro, cuja continuidade acontecerá nos filmes seguintes Tropa de elite 1 (2007) e Tropa de elite 2 (2010), do mesmo diretor.

Por conta do sucesso dos filmes de Padilha, mes-mo reconhecendo que a cidade do Rio de Janeiro é personagem central de inúmeras temáticas (vida urbana, personagens históricos, carnaval, samba e bossa nova), a tríade “ação, favela e violência urbana” que, de um ponto de vista crítico, ocupa um maior interesse desde Cidade de Deus, tem se tornado o contrário do teor de crítica social (cuja paternidade estaria resguardada no Rio, Zona Norte), além de representar uma imagem do tipo exportação que é capaz de garantir a distribuição e, por isso, bilheteria aos filmes, além de prêmios e visibilidade no exterior.

Necessário é recuperar a densidade das imagens desgastadas pelo excesso e pela superficialidade da televisão, que tanto se ocupa da cidade. O recente embate e ocupação pelas ruas do Rio de Janeiro estão fazendo surgir também novas imagens, dando lugar, não para a violência banalizada, mas para a cidade desejosa e pulsante, tão presente no nosso imaginário e nos nossos corações.6

6 Outras referências bibliográficas: GOMES, Renato Cordeiro. Modernização e controle social: planejamento, muro e controle social. In: MIRANDA, Wander Melo (Org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999; ______. Fotogramas, grafias e vozes: Lisboa e Rio de Janeiro. Semear: Revista da Cátedra Padre Antônio Vieira de Estudos Portugueses, Instituto Camões, PUC-Rio, Rio de Janeiro, n. 3, 1999; SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil – República: da Belle Èpoque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; ______. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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“O homem mesmo do momento atual [...] será classificado, afirmo eu já com pressa, como o Homus cinematographicus.

Nós somos uma delirante sucessão de fitas cinematográficas. Em meia hora de sessão tem-se um espetáculo multiforme e assustador cujo título geral é: Precisamos acabar depressa.” João do Rio1

1 RIO, João do. Cinematógrafo: crônicas cariocas. Rio de Janeiro: ABL, 2009. p. 268.

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Carta da firma Marc Ferrez

& Filhos, representantes

exclusivos da Pathé Frères

no Brasil, para o empresário

Jacomo Staffa, dono do cinema Parisiense, sobre

a impossibilidade de lhe enviar

naquele momento novas

fitas da Pathé. Marc Ferrez avisa

que já havia encomendado as “novidades” que deveriam chegar

em vinte dias. Rio de Janeiro, 22

de abril de 1908. Arquivo Família

Ferrez

Mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pesquisadora do Arquivo Nacional.

Renata William Santos do Vale

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O ano de 1907 representou um marco na história do cinema no Brasil e nos países onde o mercado cinematográfico já se instalara. Este ano é apontado pela historiografia como o ano de estabelecimen-to das salas fixas de cinema, em local apropriado para exibição, com telas, mobiliário e instalações próprias para assistir aos filmes e aos outros espe-táculos de entretenimento que aconteciam nos in-tervalos das películas. Esse processo praticamente decreta a morte do cinematógrafo itinerante, pelo menos nas grandes cidades, como Rio e São Paulo, deixando os “ambulantes” para os locais do interior onde ainda não havia condições e público para a instalação de salas de exibição.

Esse ano pode ser lembrado por diversos fatos, mas os que mais nos interessam no âmbito deste artigo são: a instalação da primeira sala fixa de Marc Ferrez e seus filhos, em sociedade com Arnaldo Gomes de Souza, um dos pioneiros na cidade, cujo nome serviu de fachada para os Ferrez, que não po-diam lançar-se no mercado exibidor por obrigação contratual com a Pathé Frères. Voltaremos depois a este ponto. Outros acontecimentos marcantes que influenciaram a experiência cinematográfica dos habitantes da cidade foram a inauguração, um ano antes, da avenida Central, boulevard em estilo parisiense, que passava a ser o eixo central da cidade, expressão do progresso e da civilização nacional, endereço das empresas mais destacadas do mercado nacional, e que não podia deixar de ser o local preferido pelos exibidores para instalar suas salas. A eletrificação da avenida também contribuiu de forma decisiva para facilitar a instalação de cine-mas. Embora a energia fornecida pela luz oxietérica fosse suficiente e funcionasse para os projetores, exigia um manejo mais sofisticado e arriscado, já que envolvia a realização nos bastidores de rea-ções químicas que podiam e chegaram a resultar

Programa do segundo cinema Pathezinho, que ficava na avenida Rio Branco, 116. Anunciava o filme Luzes da cidade (1931), com Charles Chaplin. As novidades estreavam no cinema principal dos Ferrez, inaugurado em 1928, e depois seguiam para o cinema mais antigo, evidenciando a mudança do eixo cinematográfico da cidade da avenida Central para a Praça Floriano Peixoto. Arquivo Família Ferrez

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Rara imagem do interior do primeiro Pathezinho, cinema de Marc Ferrez em sociedade com Arnaldo Gomes de Souza, na avenida Central, no dia de sua inauguração. As primeiras salas fixas de cinema eram apertadas e desconfortáveis. O filme exibido era um sucesso do comediante Max Linder, Max quer patinar. Rio de Janeiro, [17 de setembro de] 1907. Arquivo Família Ferrez

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em acidentes e incêndios. A eletricidade deu mais independência para a projeção e permitiu avanços tecnológicos nos equipamentos de projeção.

No caso específico dos Ferrez, foi neste ano, como já dito, que se deu a inauguração de seu primeiro cinema, conhecido como “Pathezinho”, e a as-sinatura de um contrato de exclusividade com a empresa Pathé Frères, maior distribuidora mundial de filmes e equipamentos para montagem de salas de exibição, passando a ser os únicos represen-tantes da marca no Brasil e na América Latina e a fornecer para todo o mercado, de norte a sul do país. Voltemos um pouco no tempo para melhor entendermos a presença do cinema no Brasil e o papel exercido pela família Ferrez nesta empreitada.

Em dezembro de 1895, os irmãos Louis e Auguste Lumière fizeram a primeira exibição pública de cinema em Paris, no Grand Café, boulevard des Capucines. Um dos primeiros brasileiros a ter con-tato com a novidade foi o célebre fotógrafo Marc Ferrez, que teve a oportunidade de conhecer o in-crível invento das “fotografias animadas”, evolução da lanterna mágica que já existia a este tempo no Brasil. Incentivado por seu filho Júlio e animado pelo espírito empreendedor e pela visão para os negócios que demonstrara com os assuntos fotográficos, tra-tou de levar a invenção para o Brasil, certo de que seria um grande sucesso e traria grandes lucros. Ele, que já tinha contratos com os irmãos Lumière para fornecimento de equipamento fotográfico, ampliou suas atividades e seus parceiros, como a Gaumont e a Pathé Frères, duas grandes empresas do mercado francês de quem se tornou agente autorizado e fornecedor único no Brasil até 1912.

Há divergências entre os pesquisadores de his-tória do audiovisual acerca de qual seria o marco

mais correto para a invenção do cinema. Não era novidade que Thomas Edison já estava há algum tempo trabalhando na invenção de um aparelho que “animasse” os filmes, e ele acabou chegando a um projetor antes dos Lumière, mas o cinema como produto final de aparato técnico e exibição de “arte” acabou cabendo aos franceses, que maravilharam (e assustaram um pouco) o público com seu trem em movimento e os passageiros que desembarcavam dele apressados. Outra dúvida que ainda perpassa os estudos é se a invenção do cinema deve ser creditada ao momento em que se inventa o aparelho capaz de projetar as películas ou quando se fez o primeiro filme. Todas as questões são perti-nentes; de todo modo, o fenômeno cinematográfico aconteceu na última década do século XIX.

A entrada da história nos campos de investigação do cinema contribuiu para mudar um pouco o foco das pesquisas dos filmes para os bastidores, e também para o cinema como fenômeno cultu-ral, específico do início da modernidade. Passou a ser objeto de pesquisa para história cultural, das mentalidades, das linguagens e das representações simbólicas, para história econômica e para a his-tória social.2 Neste setor, voltou-se para o estudo das práticas de seus frequentadores, quem era este público e em que medida essa novidade com-plementava um esforço empreendido pelas elites brasileiras e também de todo o mundo. Juntamente com as exposições nacionais e universais, o cinema auxiliaria no processo de educação e controle das então consideradas “classes perigosas” por uma via pedagógica, promovendo bons hábitos e costumes e recriminando os considerados inadequados aos novos tempos e às elites, bem como reprimindo os impulsos dos trabalhadores e dos mais pobres de ga-nhar voz e protestar por melhores condições de vida e por leis que regulassem as atividades trabalhistas.

2 SCHVARZMAN, Sheila. História e historiografia do cinema brasileiro: objetos do historiador. Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas, Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, v. 10, n. 17, p. 15-40, jan.-jun. 2007. Embora a eleição do cinema como objeto da história e fonte de trabalho para o historiador que trabalha com documentos audiovisuais seja fruto da penetração da Nova História no Brasil nos anos 1970, ela abriu também uma frente para a consideração do cinema como mais do que simplesmente o filme. “O cinema, muitas vezes, não é o foco central. Ele é elemento de estudo como objeto de fruição, hábito da modernidade. Ele é algo sobre o qual se projetam visões. O foco não é o filme, mas o fato cinematográfico. [...] Com historiadores e outros especialistas, o foco sai da tela para a sala, o espectador, as significações simbólicas do cinema, a frequentação e as práticas sociais. Isso agregou rigor aos estudos de cinema, ampliou o foco e tornou mais ricas as abordagens. Ou seja, o cinema é um foco privilegiado de observação de algo que é mais ampliado – o cotidiano, a vida na fábrica ou na cidade.” (p. 36).

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O que nos importa agora é estabelecer outro tipo de diferenciação: na história do cinema no Brasil há duas vertentes de estudos, uma voltada para a análise dos filmes, dos enredos, da estética visual e da participação brasileira neste mercado de criação. O outro aspecto, que me interessa neste artigo, é o da indústria, voltado para conhecer a atuação dos primeiros empresários que investiram neste novo campo de entretenimento no Brasil. Essa é uma história difícil de recuperar: a maior parte dos documentos produzidos pelos pioneiros do cinema no Brasil, e mais especificamente no Rio de Janeiro, não foi preservada para que se possa examinar e compreender esse período da introdução da sétima arte no país. Um dos caminhos de pesquisa é a aná-lise dos periódicos da época, uma vez que não nos restaram muitos impressos ou mesmo películas, ainda de material muito frágil para resistir a tanto tempo. Por meio dos jornais e revistas é possível, principal-mente em crônicas e anúncios, ter uma ideia dos filmes que passavam nas salas mais famosas, quais as mais frequentadas, as novidades, a crítica às histórias e também a reação e o comportamento do público.

Especialmente para uma história da recepção dos filmes, os jornais e revistas continuam sendo uma das principais fontes de pesquisa, até mesmo para conhecer os jornalistas que influenciavam na opi-nião do público, como sugere José Inácio de Mello e Souza em Imagens do passado.3 No entanto, para conhecer os meandros da atividade cinematográ-fica como um negócio, era muito difícil encontrar somente na imprensa elementos que pudessem tirar dúvidas sobre os acordos, os contratos, os valores despendidos, além da relação desta atividade mais administrativa somada à distribuição e exibição.

Essa situação mudou um pouco quando, em 2007, foi doado ao Arquivo Nacional o acervo da Família

Ferrez. Não quero dizer que este acervo seja o único e suficiente para compreender todos os passos e ações da atividade cinematográfica no Brasil, mas joga luz em processos que ainda eram pouco conhecidos dos pesquisadores por escassez de documentação ou pelas muitas lacunas deixadas por ela. O esforço do neto de Marc Ferrez, Gilberto Ferrez, fotógrafo, pesquisador de fotografia e da iconografia brasileira, em preservar o acervo em sua quase totalidade per-mite percorrer a trajetória singular desta família na introdução da fotografia e da sétima arte no Brasil, e mais especificamente no Rio de Janeiro.

A vida de Marc Ferrez como fotógrafo já foi alvo de numerosos estudos em áreas que vão da fotografia à história. Há diversos livros publicados sobre sua vasta e expressiva obra, de grande beleza e apuro técnico, considerada importante registro icono-gráfico do Rio de Janeiro da passagem do século XIX para o XX. Ainda falta, no entanto, um estudo mais alentado sobre o Marc Ferrez fornecedor de material e criador de técnicas fotográficas. Em um dos seus cadernos de anotações, encontram-se, entre uma grande variedade de assuntos, muitas “receitas” de misturas de materiais químicos e seus efeitos na revelação de fotografias: há dosagens para se obter mais ou menos contraste, mais du-rabilidade e outras possibilidades.4 Ele comprava reveladores e outros produtos químicos, realizava testes e reações para chegar aos melhores resulta-dos para fotografia e depois comercializava suas fórmulas. Chegou a ter também uma fábrica de papéis especiais, e só conseguia estes feitos porque ia pessoalmente à França se manter constantemente atualizado sobre os novos equipamentos, processos e os melhores materiais para sua profissão. Tinha os melhores fornecedores europeus e se tornou ele também provedor de materiais para outros fotó-grafos brasileiros. A experiência dos Ferrez com a

3 No capítulo intitulado “O Rio civiliza-se”, José Inácio analisa o papel da imprensa carioca, encantada com a civilização e a modernidade vindas com a inauguração da avenida Central, e interessada em difundir e comentar o novo tipo de entretenimento que veio a reboque do progresso. Jornalistas, colunistas e escritores comentavam com muita frequência os filmes, as histórias, as novas salas de exibição e recomendavam ao público comparecer em certas sessões que julgassem mais apropriadas para as boas famílias do Rio de Janeiro. Entre eles, Figueiredo Pimentel, que assinava a coluna O Binóculo da Gazeta de Notícias, a quem se atribui a célebre frase que intitula o capítulo de José Inácio, e era considerado o colunista que mais influenciava as opiniões do público, recomendando e reprovando não somente certos filmes, como também certas salas. Arthur Azevedo, João do Rio, Olavo Bilac são alguns dos outros grandes nomes que se somam nos comentários publicados nos periódicos da época. SOUZA, José Inácio de Mello e. Imagens do passado: São Paulo e Rio de Janeiro nos primórdios do cinema. São Paulo: Senac, 2004. p. 105-161.4 Ver, por exemplo, um dos cadernos de anotações de Marc Ferrez. As notas estão na maioria em francês e há diversos assuntos registrados, desde as fórmulas dos processos fotográficos a assuntos pessoais. S.l., [191-]. Série Marc Ferrez, Arquivo Família Ferrez (FF-MF.1.0.2.1).

Fachada do Pathezinho, inaugurado

em 1912, na avenida Central. O

filme em cartaz era Sangue de fidalgo

(Fighting for gold), do astro

dos filmes western mudos Tom Mix. Uma

produção americana da

Fox Filmes, que começou

a penetrar no mercado

brasileiro depois do fim da

Primeira Guerra. Rio de Janeiro,

[1919]. Foto Ferreira Junior. Arquivo Família

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fotografia era antiga, tanto quanto sua habilidade com o comércio e abastecimento de produtos para o mercado, que não lhe rendiam poucos lucros.

No início do novecentos, a passagem da fotografia fixa para as “fotografias animadas” foi quase natu-ral para esta família. Tanto Marc quanto os filhos eram fotógrafos. Claro, o patriarca alcançara um prestígio e reconhecimento internacionais como poucos tiveram, foi fotógrafo da Marinha Impe-rial, da Casa Imperial, responsável por muitas das imagens do Rio de Janeiro da virada do século que correram o mundo e que conhecemos até hoje. Foi ainda responsável por registrar a construção e a

inauguração da avenida Central, recebeu prêmios e láureas nas exposições internacionais das quais par-ticipou e soube passar para os filhos o gosto pelo ofício. Esses, embora não chegassem a ser tão bri-lhantes como o pai, produziram séries memoráveis também sobre o Rio de Janeiro, como a demolição do morro do Castelo e a construção dos pavilhões para a Exposição Internacional Comemorativa do Centenário da Independência, ambos os eventos entre 1921-1922.5 Entretanto, o destaque que Júlio e Luciano Ferrez merecem é pelo empenho que tiveram na introdução e manutenção da atividade cinematográfica no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX. Júlio chegou a produzir,

5 Para algumas fotografias dessas séries, ver a exposição virtual do Arquivo Nacional O Rio do morro ao mar, disponível em www.expo-sicoesvirtuais.arquivonacional.gov.br.

Programa de inauguração do

cinema Mauá, construído

por Gilberto e Eduardo Ferrez,

filhos de Júlio, no bairro de

Ramos, em 1952. O filme

apresentado foi o drama italiano

Amanhã será tarde demais

(Domani è troppo tardi,

1950), com Pier Angeli e Vittorio

de Sica. Rio de Janeiro, 26 de abril de 1952.

Arquivo Família Ferrez

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dirigir e fotografar algumas comédias com sucesso, como Nhô Anastácio chegou de viagem, de 1908, além dos “filmes cantantes”, anteriores ao cinema falado. Sua carreira, no entanto, destacou-se mais como empresário do ramo do cinema.

Logo depois de ter tido contato com o cinema em Paris, tão logo fora inventado, Marc Ferrez e seu filho Júlio se empenharam junto aos irmãos Lumière para trazer o cinematógrafo para o Rio de Janeiro. Já nos anos seguintes, começam as pri-meiras exibições no Passeio Público, promovidas por Arnaldo Gomes de Souza, que se tornaria sócio dos Ferrez na abertura do primeiro cinema Pathé na avenida Central. O cinema era então um entretenimento itinerante, barato, frequentado por trabalhadores e humildes, por jornalistas e senhoras da boa sociedade encantados com a “mágica” da tela. Os filmes que passavam eram muito curtos, duravam apenas uns poucos minutos e eram entremeados pelas projeções de imagens fixas. Explico melhor: as películas, de baixa qualidade ainda, eram proje-tadas em um pano branco pendurado. As imagens ficavam tremidas, tinham um brilho excessivo que se procurava diminuir molhando o tecido sobre o qual eram projetadas. O artifício de molhar o pano também servia para que esse não balançasse muito durante a projeção. Não era incomum que pessoas se sentissem mal durante a exibição, o que não diminuía o encanto da plateia com as cenas cotidianas que viam no pano. Ver a realidade transmutada para algo ao mesmo tempo tão verdadeiro, mas irreal, atraía multidões para onde quer que estivessem os filmes: assistir cenas de guerra, de uma fábrica ou de uma estação de trem na França, sentados numa sala no Brasil, era um feito extraordinário.

Para manter o espetáculo e diminuir o desconforto visual entre uma exibição e outra, projetavam-se imagens fixas de paisagens para “descansar a vista” até que a próxima sessão começasse, ou até que um

show de variedades, de cantores, teatro, animais adestrados, lutas livres e outros tipos de diversão fossem apresentados para ocupar o público e fazer valer o ingresso. Até 1907 não havia tantas películas para passar – estávamos há apenas alguns anos da invenção do cinema, a produção de filmes ainda era insuficiente em relação à produção de projetores e equipamentos.6 Nesta época, os exibidores eram em sua maioria ambulantes, levavam as telas e projetores para as praças e ruas de cidades grandes ou pequenas, apresentando a prodigiosa invenção a preços módicos.

Tudo corria assim até que a avenida Central foi inaugurada em 1906 e passou a ser a vitrine do progresso e da civilização da cidade do Rio de Janeiro. Expressão mundial desse processo de mudança, da modernidade e de um novo tempo “apressado”, parafraseando João do Rio no início deste artigo, o cinema, se ainda era tímido, passou a crescer vigorosamente como entretenimento de massa e diversão da moda para as elites cariocas. A construção de salas de cinema fixas na novíssima avenida começou a dividir também os espaços de diversão na cidade: nos nobres endereços, cinemas para a boa sociedade; em locais como a Praça Tira-dentes, antigo largo do Rossio, tradicional reduto das classes menos favorecidas, de negros e traba-lhadores pobres, cinemas para atender a demanda de distrair e divertir essa população que precisava ser educada e controlada, mas que também neces-sitava de recreio e alívio para sua dura faina diária.

Estamos então de volta ao ano de 1907, quando houve um “surto” de cinema no Brasil. Um dos elementos que possibilitou essa expansão tão rá-pida das salas foram os contratos firmados entre empresário brasileiros e empresas estrangeiras para fornecimento de filmes. Se os Ferrez foram os únicos representantes da gigante Pathé no Brasil, Francisco Serrador, talvez o maior empresário do

6 A maior parte do material fílmico produzido nas primeiras décadas desde a invenção do cinema não sobreviveu aos dias de hoje. Mas há notáveis exceções. O que consta ser o primeiro filme feito no Brasil foi apresentado ao setor de Registros e Patentes do Ministério da Indústria e Comércio em 1897, junto com uma proposta de invenção de um aparelho que projetava imagens animadas. O aparelho já havia sido inventado uns anos antes, mas não impediu que o médico e advogado José Roberto da Cunha Sales pedisse a patente assim mesmo e possibilitasse, involuntariamente, que dois filmes de 12 fotogramas cada fossem preservados junto com o processo, que está no acervo do Arquivo Nacional. O título do raro “filme” é Ancoradouro da Baía da Guanabara, e é considerado o primeiro feito no Brasil, entre 1896-1897, pelo próprio Cunha Sales. Processo 8663, Rio de Janeiro, 1897. Fundo Privilégios Industriais.

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ramo no país, firmou contrato com a casa Edison e tinha relações com a Pathé, via Ferrez. Paschoal Segretto e irmãos trouxeram muitos filmes italia-nos para o Brasil, mas também exibiam de outras produtoras e eram mais voltados para o ramo do entretenimento em geral, não ficaram somente com os filmes. Esses monopólios foram responsáveis pela criação das casas de cinema no Rio de Janeiro, e também por alimentá-las, visto que, com a inau-guração de um estabelecimento próprio e voltado somente para os filmes, era preciso que houvesse grande rotatividade de películas para manter o interesse e a frequência do público.

O primeiro contrato dos Ferrez com a Pathé Frères foi assinado entre 1907-1908, por Júlio Ferrez, a esta altura assumindo a liderança dos negócios da família em relação ao mercado cinematográfico. É nesse ano também que a firma Marc Ferrez se torna Marc Ferrez e Filhos, tornando Júlio e Luciano responsáveis por gerir a maior parte dos assuntos relativos ao cinema, enquanto o pai continuava a se dedicar à fotografia, não descuidando, no entanto, da nova área de investimento. A firma então passa a ser a única distribuidora autorizada da Pathé Filmes no Brasil. Esse contrato, no qual os Ferrez atuavam como intermediários, na verdade, foi o responsável pela guinada da MF&F e do mercado cinemato-gráfico brasileiro, já que os maiores fornecedores de filmes nesta época eram os franceses da Pathé (e os de projetores eram os da Gaumont, também afiliada da firma Ferrez). A forma de concessão dos filmes também deixava de ser por compra e passava a ser por aluguel durante uma temporada, o que barateava bastante os custos para os locatários, que anteriormente compravam as fitas caras e, quando as plateias perdiam o interesse, simplesmente se desfaziam delas. Deste modo, ao fim do período combinado, as fitas eram retornadas para a firma MF&F e depois alugadas por outros cinemas da cidade, ou até mesmo do interior. Esse processo também possibilitou que algumas dessas películas chegassem aos dias de hoje, por revenda e doação ao longo dos anos, em vez do descarte praticado antes.

O contrato previa, entretanto, que os Ferrez não mantivessem, eles próprios, salas de cinema no Rio. Problema que foi habilmente sanado com a aliança e sociedade com Arnaldo Gomes de Souza, que era

dado como o dono e diretor do cinema, enquan-to os Ferrez se encarregavam de providenciar as fitas e os materiais necessários para as exibições. O primeiro estabelecimento deles foi fundado na nova avenida Central. Como não havia ainda condicionamento de ar, a sala, que ficava no lado do sol na avenida, era muito quente, o que quase impossibilitava a permanência por muito tempo no recinto, ainda mais durante o dia. No entanto, algumas melhorias já podiam ser sentidas a partir de 1907 em relação aos anos anteriores. As telas de pano foram trocadas por telas fixas; havia cadeiras para todos (antes alguns espectadores precisavam ver o filme de pé); melhor iluminação, muitas salas ainda eram totalmente iluminadas para evitar lará-pios e os famosos “bolinas”, que se aproveitavam da escuridão para mexerem com as moças; havia um lugar apropriado para as orquestras e, no geral, mais conforto. Tão logo foi possível, os Ferrez e Arnaldo Gomes mudariam seu cinema para o lado da sombra da avenida, em 1912. Esta casa durou até os anos 1940, tendo sobrevivido a um incêndio no local que a destruiu parcialmente. Mas a sociedade já fora desfeita desde o final da Primeira Guerra Mundial.

Se o boom do cinema se inicia em 1907, o ano de 1912 também registra uma importante inflexão para os Ferrez. É o momento da incorporação da MF&F (Marc Ferrez e Filhos, criada em 1907) à Companhia Cinematográfica Nacional (CCB), de Francisco Serrador, aqueles se responsabilizando pelo fornecimento de filmes e equipamentos e o último pelo mercado exibidor. Essa parceria não durou muito tempo; já às vésperas da Primeira Guerra Mundial, Serrador desejava se voltar para o mercado fornecedor americano, mais ativo naquela época, enquanto o europeu, e, sobretudo, o francês, enfrentava uma guerra, na qual tudo o que fosse considerado supérfluo, como diversão, por exemplo, passava a ser deixado de lado. Não havia capital para manter o mesmo ritmo anterior de produção, con-sequentemente os filmes da Pathé escassearam. O mercado americano, em franca produção para aten-der a seu público interno, passou a prover películas para os vários mercados das Américas, evitando que se interrompessem as exibições por falta de filme.

No Brasil houve um momento em que as novidades praticamente pararam de chegar. Os maiores for-

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Pathé Palácio, na Cinelândia, na estreia do filme Fantasia, em agosto de 1941. Na ocasião compareceram o próprio Walt Disney, o presidente Getúlio Vargas e outras autoridades. Disney escolheu pessoalmente o Pathé Palácio por considerá-lo o único em condições de receber seu filme. Arquivo Família Ferrez

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necedores eram Pathé-Ferrez, e com a guerra não era possível trazer filmes com a mesma frequência anterior, não somente pela falta deles, mas também pelo encarecimento dos preços. Como os Ferrez eram muito ligados aos produtores franceses, aca-bam por romper a sociedade com Serrador. A CCB e a MF&F se separaram e os Ferrez reassumiram o contrato somente com a Pathé, que passou a liberar a atividade de exibição também para os fornecedores e distribuidores. Assim, a partir do final da guerra, quando a sociedade entre os Ferrez e Arnaldo Gomes também se encerrou, eles passaram oficial-mente a ser os donos do “Pathezinho”, como era comumente chamado o cinema inaugurado em 1907.

A partir de 1925, aproximadamente, no terreno ao fim da avenida Central, onde ficava o Convento da Ajuda, começaram a ser erguidos diversos prédios

que foram usados para abrigar salas de cinema. O terreno e o projeto eram de Francisco Serrador, que pretendia criar nesse lugar um novo bairro, dedicado ao cinema. Não é por acaso que a Praça Marechal Floriano tenha ficado conhecida como Cinelândia, até hoje. Daquela época, pouquíssimas salas resistem ainda como cinemas, talvez a única exce-ção seja o Cine Odeon. Esses prédios representaram um grande avanço em relação às primeiras salas de cinema da avenida Central. São construções que fo-ram erguidas pensando na atividade cinematográfica e no público que estaria presente, com antessalas de espera e muitos lugares, poltronas mais confortáveis e espaçosas. Algumas salas já investiam em som de boa qualidade − considerando que já por volta de 1928 começaram a aparecer os primeiros filmes fa-lados −, e logo introduziram os primeiros aparelhos de refrigeração do ar, obrigatórios a partir de 1937.

Recorte do jornal Correio

da Manhã com a programação

do segundo Pathezinho. Em destaque, mais uma aventura

com o “célebre cômico” Max Linder, desta vez em Max,

vítima da mão do diabo. Rio

de Janeiro, janeiro a

junho de 1917. Arquivo Família

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O Pathé Palácio dos irmãos Ferrez foi inaugurado na Cinelândia em 1928, com uma sessão especial do filme A cabana do Pai Tomás, e era considerado o cinema mais moderno do Rio de Janeiro, aliando conforto com tecnologia e beleza, não somente em seu interior, mas na fachada, de inovadora decoração art decó, feita como uma verdadeira obra de arte. Prova disso foi que em agosto de 1941, quando Walt Disney veio ao Brasil, não aceitou lançar o longa-metragem de animação Fantasia no cinema para o qual estava previsto. Depois de percorrer a maioria das salas da cidade, a única que afirmou estar em condições de exibir seu filme era o Pathé Palácio, embora a Metro Goldwyn Mayer tivesse contrato de exclusividade com os cinemas de Luís Severiano Ribeiro. A qualidade do som foi o diferencial para Disney, que compareceu à engalanada sessão de estreia acompanhado pelo próprio presidente do Brasil, Getúlio Vargas.

Os Ferrez ainda inauguraram o cinema Paratodos, no Méier, em 1935, e o Mauá, em Ramos, em 1952, em um esforço de levar diversão aos bairros do subúrbio carioca de alta densidade populacional. A ideia principal era promover o entretenimento de qualidade em todos os pontos da cidade, fazendo com que muitas pessoas que não teriam acesso ao cinema pudessem frequentá-lo. As elites cariocas continuavam a frequentar as salas elegantes do centro da cidade – os bairros da Zona Sul, da orla, começavam a ser ocupados nestes anos 1930, e ainda demorariam alguns anos para receber suas próprias salas. Enquanto isso, os moradores dos subúrbios e arredores teriam acesso ao cinema em estabelecimentos mais simples e mais baratos, os chamados “poeiras”; os cinemas da Casa Ferrez não seguiam essa tendência, pois eram espaçosos, confortáveis e refrigerados, mesmo nos subúrbios. Depois da morte de Júlio Ferrez em 1946, a Casa Marc Ferrez, Cinemas e Eletricidade Ltda. (novo nome da firma) começou a se desinteressar do mer-cado exibidor e passou a se concentrar no mercado fornecedor e distribuidor, mais lucrativo e tradicional entre as atividades da família. Com o passar dos anos vão fechando seus cinemas, o último a ser vendido foi o Palácio, na Cinelândia, que hoje não existe mais.

No arquivo da Família Ferrez ainda é possível ter uma ideia dos filmes que foram exibidos para o

público desde a década de 1910. Tanto nos folhetos de propaganda, quanto nos recortes de jornais, nas revistas publicadas pela empresa, nos programas, mas principalmente nas muitas fotografias de cena enviadas para os jornais a fim de divulgar a programação semanal, podemos ver que a maioria dos filmes exibidos era europeia, sobretudo de franceses, mas também alguns ingleses, italianos, alemães e dinamarqueses. O gênero preferido no início das atividades cinematográficas era a comé-dia, seguido dos romances e os dramas; Max Linder foi um dos atores mais conhecidos pelo público das primeiras décadas do século XX e suas comédias atraíam grandes plateias. Aliás, foi com um filme dele, Max quer patinar, a inauguração com grande sucesso do Pathezinho em 1907, atraindo, além do público habitual, alguns ilustres jornalistas e escritores, como Arthur Azevedo, um entusiasta da arte cinematográfica.

Outro ator e diretor famoso por suas comédias e que fez muito sucesso no Brasil foi Charles Cha-plin. No acervo encontramos várias fotografias de filmes do eterno “Carlitos”, de Buster Keaton, Harold Lloyd e outros astros muito populares do cinema mudo de comédia, até mesmo de Marlene Dietrich, em filmes alemães, antes de tornar-se estrela do cinema americano. Já na virada dos anos 1920 para 1930 começam a tomar força os filmes americanos de aventura, de “capa e espada” e de estilo western, o famoso “bangue-bangue”, que era um sucesso nas matinês de Tom Mix. Essa virada para os filmes americanos começou depois do fim da Primeira Guerra. A Europa devastada, princi-palmente a França, não tinha condições de investir em produções cinematográficas para exportação – produzia muito pouco e não eram películas de grande alcance. Quando chegavam ao Brasil eram muito caras para os cinemas nacionais. Há uma carta interessante do próprio Charles Pathé para Marc Ferrez, em 1914, na qual dizia que havia con-seguido uma série de filmes para passar no Brasil, que alcançaram grande sucesso na América e que eram capazes de agradar, nas palavras de Pathé, a “saxões e latinos”, mas que estavam muito caros. Fez um esforço junto aos produtores e conseguiu-as por um preço mais em conta para Ferrez, que deveria mandar a ordem de pagamento o mais rápido possível, já que, como ele sabia bem, “o

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Fachada do Pathé Palácio com o filme A cabana do Pai Tomás (Uncle Tom’s cabin, 1927). A concorrida sessão de estreia promovida pela Universal em 2 de junho de 1928 teve ingressos especiais gravados em metal dourado. Rio de Janeiro, 1928. Arquivo Família Ferrez

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dinheiro está raro”. Apesar das dificuldades, diz ainda que a guerra não duraria para sempre, acredi-tando que tudo provavelmente voltaria ao que era.7 Infelizmente, suas previsões não estavam corretas, a guerra prolongou-se por mais quatro anos e quase arruinou a indústria cinematográfica europeia.

Neste ínterim, os Estados Unidos estavam em franca expansão econômica e política no mundo e perdiam seus maiores e diretos concorrentes no mercado cinematográfico. Com mais consumidores em outros países, passaram a fornecer para a maior parte dos cinemas no Brasil também. Apesar de uma resistência inicial dos Ferrez em aceitar essa alteração – afinal, a família era tão francesa quanto brasileira –, não houve como resistir por muito tem-po, até mesmo por falta de filmes para passar. Marc Ferrez mantinha relações pessoais e profissionais com o diretor gerente da Fox Films do Brasil, o que pode indicar algum contrato de cessão de direitos de filmes entre as duas empresas já nos anos 1920.8

Além de documentos relativos aos filmes exibidos nos cinemas Pathé da família, outros registros interessantes também podem ser pesquisados: contratos, balanços financeiros, notas fiscais de compra de materiais cinematográficos e até de móveis para equipar as salas, além dos catálogos de

produtos e aparelhos, tanto de fotografia quanto de projeção de cinema, que são muito interessantes e podem servir àqueles que desejam estudar a evolu-ção técnica do cinema no Brasil, conhecendo seus processos e produtos mais usados. Há ainda uma grande quantidade de correspondência trocada entre Marc Ferrez, que passou a maior parte de seus últimos anos de vida na França, e seus filhos que administravam os negócios no Brasil, do escritório da firma na rua da Quitanda, no Rio de Janeiro. São cartas de teor familiar, algumas pessoais, mas, sobretudo a correspondência entre homens de negócios, que cuidavam de seus bens e discutiam os rumos a serem tomados pela firma. Apesar da saúde já frágil, Marc Ferrez, que viria a falecer em 1923, fazia questão de saber dos negócios da firma e da família, evidenciando o quanto as atividades que exerciam eram parte indissociável de sua vida. O arquivo da família contém documentos para se estudar múltiplos aspectos que compõem a indús-tria do cinema, embora seja a perspectiva de apenas uma família de empresários, entre diversas daquela época. No entanto, foi uma das mais importantes e influentes neste campo até pelo menos os anos 1940, e que soube preservar os documentos que contam parte da história da fotografia e do cinema no Brasil, o que torna esse acervo muito precioso para os pesquisadores da sétima arte.9

7 Correspondência de Charles Pathé a Marc Ferrez acerca da dificuldade no envio de filmes, devido aos altos custos de compra e aluguel (em francês). New Jersey, 2 de novembro de 1914. Série Marc Ferrez. Acervo Família Ferrez (FF-MF.1.0.1.13.1).8 Correspondência entre o diretor da Fox Films do Brasil, Alberto Rosenwald, e Marc Ferrez. Não ficam evidentes os negócios que ambos tinham, mas Alberto conhecia também Júlio e Luciano. Rio de Janeiro, 1º de dezembro de 1921. Série Marc Ferrez. Acervo Família Ferrez (FF-MF.1.0.1.14.3).9 Referências bibliográficas: CONDÉ, William Nunes. Marc Ferrez & Filhos: comércio, distribuição e exibição nos primórdios do cinema brasileiro (1905-1912). Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012; COSTA, Renato da Gama-Rosa. Os cinematógrafos do Rio de Janeiro (1896-1925). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 153-168, mar.-jun. 1998; MORAES, Júlio Lucchesi. A trajetória econômica da firma Marc Ferrez & Filhos (1904-1921). Anais do XX Encontro Regional de História: História e liberdade. ANPUH/SP – Unesp-Franca. 6-10 set. 2010; REVISTA FILME CULTURA. Embrafilme, Rio de Janeiro, n. 47, abr.-ago. 1986; VASQUEZ, Pedro Afonso. Do Império à República: Família Ferrez, uma dinastia a serviço da cultura brasileira. Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 109-118, jan.-jun. 2010.

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A Praça Marechal Floriano em obras: a futura

Cinelândia carioca, com suas construções imponentes, cinemas, teatros, bares e restaurantes, se tornaria

o centro de diversões mais popular da cidade na primeira metade do século XX. Arquivo Família Ferrez

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Plateia no cinema Pathé formada por

marinheiros em sessão especial do filme Ela e

os três marujos, em 1934.

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Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Arquiteta e urbanista, é pesquisadora do CNPq e professora associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, onde coordena o Laboratório de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana. Autora dos livros premiados Arquitetura do espetáculo (UFRJ, 2000) e Avenida Presidente Vargas: uma drástica cirurgia (Secretaria Municipal de Cultura, 1990). Publicou também Das vanguardas à tradição (7 Letras, 2006), Entre arquiteturas e cenografias (Contracapa, 2012), entre outros livros.

Evelyn Furquim Werneck Lima

Uma nova arquitetura para a Cinelândia carioca: um espaço público de magia nos anos 1920 e 1930

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Por volta dos anos 1920, o cinema exigia uma ar-quitetura que envolvesse os espectadores em sonho e magia, e esta teve que se reinventar para abrigar o novo tipo de espetáculo. Foi necessário adequar as antigas salas de teatro e music-halls como salas de exibição de filmes, e os empresários tiveram que adaptar os espaços. O retrato em cores vibrantes esboçado por João do Rio,1 referindo-se à atmos-fera dos music-halls, onde filmes eram também exibidos ainda em ambientes ruidosos, demonstra que aqueles reduzidos e enfumaçados espaços não eram adequados à fruição do cinema, fosse apenas por distração no caso das massas, fosse pelo reco-lhimento exigido pelo conhecedor que demanda concentração tal como defendeu Walter Benjamin, já nos anos 1930.2

Muitos teatros – além de music-halls – também se transformaram em cinemas, na medida em que a arte cinematográfica conquistava o público. Até mesmo o Teatro Lírico do Rio de Janeiro exibiu fil-mes em várias ocasiões.3 A popularidade do cinema crescia e, quando o tradicional Teatro Trianon foi transformado em cinema, o fato muito revoltou o mundo artístico teatral.4 Alegavam os intelectuais cariocas aficcionados ao teatro que os filmes exibi-dos no Trianon eram produções de baixa categoria, compradas a baixo preço no exterior. Segundo a

revista Palcos e Telas, uma figura proeminente do mundo cinematográfico protestara em 1921, que “o Trianon, que há muito vinha sendo o teatro de comédias que o público elegante frequentava, será abandonado por este mesmo público no dia em que começar a exibir os films velhos que o sr. Stappa trouxe da Europa”.5

Apesar dos inúmeros teatros que foram transfor-mados em cineteatros, a necessidade de novos espaços melhor adequados à exibição de imagens em movimento induziu os arquitetos a novas pes-quisas no campo da arquitetura do espetáculo. Na Europa, Mallet-Stevens – um dos precursores da arquitetura de cinemas – afirmava na década de 1920 que entre todos os tipos de construção que se faziam naquela época, “uma sala de cinema é o tipo que deve apresentar o caráter mais moderno”.6 Alguns elementos arquiteturais importantes vieram a modificar o que vinha sendo projetado para as salas de teatro, como permitem observar a foto do interior do Cine Avenida no dia de sua inaugura-ção em 1911 e a foto do cinema Pathé Palace, em 1928. Na primeira, percebe-se a pouca largura da sala e os camarotes ao longo de balcão em forma de “U” alongado construído em ferro fundido torneado, enquanto na segunda, observa-se um notável acréscimo na largura da sala, apenas um

1 RIO, João do. O que ensinam os dias. Porto: Imprensa Moderna, 1912. p. 353.2 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 192-193.3 Por outro lado, alguns cinemas foram temporariamente adaptados para espetáculos teatrais, como o antigo cinematógrafo Éclair Palace, reinaugurado como Teatro Trianon em 16 de março de 1915. Esse teatro tornou-se um dos mais frequentados da então capital da República.4 Ainda que tenha sido inaugurado como o cinematógrafo Éclair-Palace, foi por algum tempo um teatro que marcou uma geração.5 Palcos e Telas, ano III, n. 153, 3 mar. 1921.6 Citação de Mallet-Stevens apud CLÉMENT, Jérome. Les studios et les salles de cinémas: une politique de sauvegarde. In: Monuments Historiques, n. 137, p. 2, fev.-mar. 1985.

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leve abaulamento da primeira ordem de camarotes e uma larga curvatura para o balcão nobre.7

Advogando em favor de modificações radicais na forma e na estética do espaço da sala de exibição de filmes, Mallet-Stevens alegava que: “Uma sala de cinema não se constrõe como um teatro ou uma sala de concertos; o programa que deve realizar o arquiteto é totalmente diferente. As primeiras filas não são mais as melhores; as poltronas laterais uti-lizadas nos teatros de plano circular, poltronas das quais se pode olhar em frente e observar os cama-rotes elegantes, não têm qualquer valor no cinema. A sala é escura, olha-se a tela e não o público”.8

No início, o cinematógrafo congregou todos os tipos de público. Como afirmou Mesghish, auxiliar de Lumière, “antes de conquistar a elite, o cinema-tógrafo obteve o sufrágio popular”.9 O cinema era uma maneira divina de contar a vida, permitindo

espelhar um mundo semelhante ao mundo real, mas ao mesmo tempo criando mundos desconhe-cidos que levavam multidões às salas de espetáculo. Ao contrário do teatro, o cinema não custava caro. Espaço de sonho através do filme, o cinema era também espaço de magia através de seus interiores.

No Brasil, e em especial no Rio de Janeiro, o ci-nema atraía indiscriminadamente pobres e ricos. As agruras da vida das classes trabalhadoras ou o ócio, no caso dos mais abastados, eram motivo para que a sociedade fruísse a nova arte. Os hábitos difundidos pelo cinema atuaram de maneira pola-rizadora para que o público fosse cada vez maior. E há que considerar o impulso do crescimento demográfico da cidade, ampliado também com os muitos imigrantes que chegavam em busca de novos horizontes de trabalho. Percebe-se, pelas crônicas e pelos anúncios nos periódicos, que a população afluía aos cinematógrafos com grande

7 Para consultar as plantas e cortes ver LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Arquitetura do espetáculo: teatros e cinemas na formação da Praça Tiradentes e Cinelândia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000.8 Citação de Mallet-Stevens apud CABEZAS, Hervé. Du cinéma “théâtre” au théâtre “cinéma”. Monuments Historiques, n. 137, p. 18, fev.-mar. 1985.9 Declaração de Mesghish no livro Tour de Manivelle, p. 6, apud RITTAUD-HUTINET, Jacques. Le cinéma des origines. Seyssel: Champ Vallon, 1985. p. 56.

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A Praça Floriano da década de 1920, com o

Palácio Monroe ao fundo.

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assiduidade e que estes eram insuficientes para a demanda. O cinema estimulava a imaginação, e sonhos eram o que almejavam os indivíduos que habitavam a cidade no final dos anos 1920.

Conforme estatística da Prefeitura Municipal, em 1912 havia no Rio de Janeiro 37 cinemas com capacidade de lotação de 12.983 lugares (5.434 na 1ª classe e 7.459 na 2ª classe), ocupando a aveni-da Rio Branco, rua da Carioca, rua Visconde do Rio Branco, espalhando-se também por bairros e subúrbios.10 Aos poucos, o público – no princípio constituído por operários e frequentadores de music-halls – começou a ficar mais seletivo de acordo com a categoria do cinema. Os segmentos sociais que frequentavam assiduamente o Cine Popular, na rua Marechal Floriano, mais conhecido como Po-eira, não eram os mesmos que assistiam aos filmes nos cinematógrafos situados ao longo da avenida

Rio Branco. Neste cinema, havia um pátio com chafariz no qual o público, em geral empregados das fábricas e do comércio, deixava seus pertences e embrulhos enquanto assistia ao filme.11

A invenção do filme sonoro transformou a indús-tria do cinema, com alteração inclusive da técnica, mas as antigas salas não haviam sido projetadas para propagar o som por meio da eletricidade. A volumetria interna dos cinemas teve que ser simplificada. O novo tipo de espetáculo implicava a formação de técnicos especializados, cujo papel seria fundamental para projetar o som uniforme-mente por toda a sala de projeção, principalmente sob o balcão. Uma arquitetura mais adequada às salas de cinema começou a ser estudada a partir de então. As primeiras salas de projeção haviam tomado emprestada a linguagem arquitetural e de-corativa dos teatros. Urgia construir grandes casas

10 Dados extraídos das fichas cadastrais do processo de tombamento dos prédios da Cinelândia. Histórico de Sonia Zylberberg.11 LIMA, Pedro. Na década de 10, os fãs lotavam o Íris e o Ideal. Filme Cultura, n. 47, p. 39, ago. 1986.

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Fachada do Capitólio na década de 20, primeiro cinema inaugurado no Quarteirão Serrador. Família Ferrez

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de espetáculo para atender a esse desejo de prazer. Mas a arquitetura não poderia continuar sendo uma simples adaptação de sobrados ou galpões. As novas técnicas da engenharia eram propícias a que novas salas fossem edificadas.

A simplificação dos projetos especificamente des-tinados ao cinema demonstrava que a principal atração deste tipo de programa arquitetônico era a valorização do filme e, consequentemente, da tela. Partindo da importância da visibilidade da tela – mais relevante que as condições acústicas da sala –, os arquitetos e construtores passaram a se preocu-par mais com esse aspecto técnico. A projeção do filme, exigindo um ambiente escuro, utilizou inusi-tados recursos luminotécnicos com jogos de luzes concebidos de forma cenográfica, que reduziam a iluminação da sala até a total obscuridade. Pouco

12 LACLOCHE, Francis; GRIBE, Gérald. 50 Lieux, 50 Villes: salles de cinéma, situations urbaines, architectures, aménagement. Paris: Eldorado; Ministère de la Culture; Délégation à l’Aménagement du Territoire et à l’Action Régionale, 1984. p. 26.

a pouco a atenção do público se dirigia para a tela, que a cortina desvendava lentamente. No final dos anos 20, algumas salas ganhariam um novo léxico, e as fachadas dos cinemas passaram a ter seu próprio discurso, repleto de magia e fantasia.

Arquitetos de cinema na Europa

Na Europa dos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, os arquitetos que haviam abraça-do o Movimento Moderno achavam-se diante de um fértil terreno para experimentações no campo da arquitetura do espetáculo. Todavia, poucos foram os arquitetos de renome que conseguiram edificar os seus projetos. Segundo Lacloche e Gri-be, Le Corbusier projetou um cinema em Mont-parnasse que jamais foi construído.12 É provável que a inexistência de ornatos pregada pelo purismo,

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movimento liderado por Le Corbusier e Ozenfant, não desse conta dos símbolos necessários às re-presentações. Gropius dedicou-se mais ao teatro, mas seu Teatro Total para Erwin Piscator também não foi edificado. Naquele momento, a pureza arquitetural parecia incompatível com o ambiente de sonho requerido pelo ato mágico do indivíduo transportar-se a outra realidade, oferecida não só pela película, mas também pelos elementos deco-rativos e cenográficos das salas de projeção. Já os arquitetos expressionistas, que lidavam mais com o emocional e com o sonho, conseguiram realizar alguns projetos, como foi o caso de Mendelsohn, que ganhou fama pelo projeto do Cine Universum de Berlin, inaugurado em 1926-29.

Aos poucos, o vocabulário arquitetônico herdado das construções de teatros foi sendo substituído. Porém, até os anos 1950, observa-se a preocupação dos arquitetos com as curvas dos balcões, com as largas marquises na fachada e com as escadarias nobres. Algumas salas se adaptaram a um discurso mais modernista, em que à monumentalidade bur-guesa suceder-se-ia a racionalidade do engenheiro. As fachadas se recobriram de luz e o néon se tornou o símbolo do magnetismo.

O sonho realizado de Francisco Serrador

No Rio de Janeiro, com a inauguração quase simul-tânea dos prédios do Supremo Tribunal Federal, do Teatro Municipal, da Escola Nacional de Belas-Artes e da Biblioteca Nacional, até o final da pri-meira década do século XX, completava-se o qua-drilátero da Praça Floriano que, numa das arestas, exibia ainda a singela volumetria do Convento da Ajuda, integrando a praça recém-urbanizada. Havia muita discussão sobre a permanência da maciça edificação no cenário carioca há quase dois séculos. Contudo, como revela Lima Barreto, o alto valor da desapropriação fez com que o prefeito Pereira Passos e seu assessor Paulo de Frontin – autor do traçado definitivo da avenida Central – desistissem de demolí-la na primeira década do século.

O convento tinha história, mas aquele espaço urba-no fazia parte de um plano maior no imaginário dos homens do poder, para os quais um monumento do Rio colonial não se coadunava com o progresso da nova avenida e da Praça Floriano. As polêmicas em torno da demolição do antigo convento para a construção de cinemas e hotéis de luxo foram acirradas. Lima Barreto, que também discordava da destruição do imóvel e de sua possível substituição por um grande hotel moderno anexo a um com-plexo de cinemas, argumentou que “o convento não tinha beleza alguma, mais era honesto; o tal hotel não terá também beleza alguma e será deso-nesto, no seu intuito de surrupiar a falta de beleza com suas proporções mastodônticas”.13 A opinião pública também se dividiu, mas apesar de todas as polêmicas, na administração de Bento Ribeiro, em 1911, o citado imóvel foi demolido. Sob o aplauso dos “urbanistas” da época, e até de Vieira Fazenda, que muito havia escrito sobre a história do antigo convento, louvou-se a magnificiência da nova avenida, que não podia mais comportar aquela edificação vetusta. Concretizou-se a demolição com a justificativa de que o ruído da vida agitada da praça estava em desacordo com uma casa de meditação e penitência.

No entanto, a manchete que mais atenção chamava na capa do jornal A Gazeta de Notícias de 9 de março de 1914 era “um protesto em nome da cidade”, no qual o articulista se revoltava contra a destruição do histórico convento, adquirido pelo grupo de empresários que tinha se comprometido a construir um hotel naquele local. Passaram-se anos e nada foi construído, e a empresa declarou “ter mudado de intuitos, por isso, e como compensação, abrira a rua a que se obrigara, e dava à municipalidade parte de seu terreno, necessária para o futuro edifício do Conselho Municipal”.14

Fascinado pelos modelos de cinemas europeus e norte-americanos, o espanhol Francisco Serrador desenvolveu ambiciosos projetos no Brasil, criando inclusive uma indústria cinematográfica nacional

13 LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Bagatelas. São Paulo: Brasiliense, 1956. p. 86.14 Cf Gazeta de Notícias, 9 mar. 1914.

Cinema Odeon, construído em 1932, é o único remanescente da velha Cinelândia carioca nos dias de hoje. Arquivo Família Ferrez

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capaz de competir com os próprios estúdios es-trangeiros. De origem humilde e tendo chegado ao Brasil em 1887, Serrador iniciou seus negócios como proprietário de quiosques, nos quais exibia películas, e com o sucesso, passou a importar fitas e aparelhos, trabalhando como divulgador do cinema nos circos, praças e jardins públicos. Fez propaganda das marcas Pathé Frères, Vitagraph, Biograph, Triangle, entre outras. Fundou também a Richemburg, importadora de fitas e aparelhos, juntamente com um sócio.

Segundo Gastão Pereira da Silva, a atividade de proprietário de cinemas no Rio começou com a inauguração do Cinema Chantecler, na rua Vis-conde do Rio Branco. Aliando-se a um grupo de capitalistas de São Paulo, com a cooperação finan-ceira de Vivaldo Leite Ribeiro, Francisco Serrador adquiriu vários cinemas, passando a controlar em bloco a exibição. Em 1917, fundou a Companhia Brasil Cinematográfica, que adquiriu pequenos cinemas da área central do Rio de Janeiro, como o Avenida, os antigos Pathé e o Odeon, além de outros cinemas em Niterói, Belo Horizonte e Juiz de Fora.15 Com os lucros auferidos em tais empreendimentos, Serrador acumulou o capital necessário à aquisição de um dos lotes resultantes da demolição do Convento da Ajuda.

A área total demolida foi desmembrada em lote A e lote B. O primeiro lote, com 1.700 m², corres-pondentes a parte das terras do antigo convento, permaneceria desocupado até meados da década de 1920.16 Comprado pela Light & Power, em 1911, para abrigar um complexo hoteleiro, foi posteriomente adquirido pela Companhia Brasil Cinematográfica, fundada por Francisco Serrador em 1917. Empresários brasileiros foram conven-cidos por Serrador a comprar o restante das terras. Apesar do extenso terreno vazio, a Praça Floriano

15 Mais tarde, investiria também em São Paulo. A revista Cinearte, de 14 de julho de 1926, registra que Serrador, além de já possuir em São Paulo o cinema Royal, estaria inaugurando também o Teatro Sant’ana e o Teatro Capitólio naquela capital.16 Apesar de abandonado e transformado em local de vadia-gem, o terreno era esporadicamente utilizado como um centro de diversões denominado Parque Centenário, tendo abrigado algumas feiras, exposições e até mesmo um circo, cuja licença para construção foi requerida em 1913.

Os dois prédios vizinhos onde

se situavam os cinemas Capitólio e

Pathé Palace: símbolos de uma cidade

que se queria moderna e

cosmopolita. Correio da

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era já naquela época o ponto de convergência das elites cariocas, provavelmente ávidas de equipa-mentos de lazer.

O objetivo principal de Francisco Serrador era transformar o terreno no maior centro de diversões da América do Sul, conforme o demonstram os inúmeros projetos que idealizou. O maior sonho do empresário era deslocar o comércio de luxo da rua do Ouvidor e adjacências para o novo centro comercial, que atrairia o público pelos cinemas de grandes proporções inseridos em imponentes “arranha-céus”. Pode-se imaginar a audácia de Serrador ao propor para a área um conjunto de altos edifícios a uma população que ainda não se habituara aos elevadores e às moradias em apar-tamentos. Mas a ideia de ocupar os pavimentos acima dos cinemas com salas de escritórios e com quartos de hotel seria posteriormente bem rece-bida. A despeito de sua visão capitalista e incrível confiança nos sonhos que acalentava, Serrador teve inicialmente muita dificuldade para vender sua ideia. Questionado sobre como conseguiria convencer os comerciantes e profissionais liberais a saírem da rua do Ouvidor para se instalarem no novo complexo, o empresário argumentou: “O que vamos inaugurar não são casas adaptadas a cinemas. São cineteatros os mais modernos, reproduzindo o que de melhor vi no estrangeiro neste particular, com todos os requisitos da técnica atual”.17

Antes da implantação do projeto de Serrador, com exceção de alguns casos específicos, os cinemató-grafos existentes no centro do Rio de Janeiro foram instalados em salas abafadas e desconfortáveis, improvisadas em antigos sobrados. A proposta do empresário previa a construção de amplos cinemas de luxo, com local para pianeiros e orquestras. Em 1926, um dos articulistas da revista Cinearte louvava a iniciativa de Serrador constatando que:

Atualmente, depois de por muitos anos termos ficado reduzidos a ridículas salinhas de projeção que eram a vergonha de uma grande cidade como o Rio de

17 Citação de Serrador in SILVA, Gastão Pereira da. Francisco Serrador, o criador da Cinelândia. Rio de Janeiro: Empresa de Pro-paganda Ariel, s/d. p. 128.

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Janeiro, constroem-se grandes edifícios destinados exclusivamente aos espetáculos cinematográficos com capacidade para muitos espectadores, o que permite a exploração econômica dos grandes filmes de locação cara.18

Enquanto perdurou a arquitetura improvisada dos primeiros cinemas da avenida, os filmes que vinham da Europa eram geralmente destinados à Argentina. Bastou edificar as grandes casas de exibição – Capitólio, Glória, Império, Odeon e mais tarde o Pathé Palace – para que “os olhos atentos dos interessados se voltassem para o Rio de Janeiro, como mercado digno de ponderação”.19 A fisionomia da Praça Floriano imprimiu um proces-so de espetacularização da cidade, tanto no que se refere à arquitetura ainda pouco recorrente no Rio de Janeiro, quanto ao uso social mais seletivo dos frequentadores das novas casas de espetáculo ergui-das ao longo da praça, tendo em uma extremidade o Theatro Municipal e na outra o Palácio Monroe.

Na ânsia de conquistar mercados consumidores, a indústria cinematográfica criou veículos na im-prensa especializada para divulgar astros e estrelas, incentivando o público a participar de concursos para eleger o melhor estúdio. Essa competição, no âmbito exclusivo da indústria cinematográfica dos Estados Unidos da América, transmitia a ideia de que a arte do cinema significava primordialmente o cinema americano. E, como consequência do marketing, interessava ao produtor americano lançar seus filmes em cinemas que se coadunassem com os altos investimentos da produção.

Benjamin, considerando o filme como uma criação da coletividade, afirmou em 1927 que para um filme de longa metragem auferir bons resultados financeiros precisaria atingir um público de nove milhões de pessoas.20 Cabia, portanto, aos im-portadores de películas reforçarem a imagem de consumidores à altura das exigências dos grandes

estúdios exportadores. De nada adiantava exibir um filme de grande publicidade nos pequenos cinematógrafos. Economicamente seria inviável, e grande parte do sucesso de um filme residia no ritual que acompanhava as grandes estreias, quando o público, motivado pelo que ocorria também fora dos cinemas, sentia-se atraído pelo espetáculo. Este reflexo se faria sentir na própria arquitetura dos ci-nemas do Bairro Serrador ou Cinelândia, já no final dos anos 1920, quando o luxo e os materiais nobres caracterizariam os muitos cinemas construídos pelos empresários, ansiosos pelos lucros fáceis. A opulência da arquitetura de cinemas e o ritual que acompanhava as estreias tornaram-se um prazer às plateias que sonhavam com o luxo hollywoodiano.

Os planos de Serrador implicavam modernizar a cidade e incluíam construir além de três teatros, quatro cinemas com oitocentos lugares cada um e mais um hotel, 17 grandes lojas, um rinque de patinação, amplo parque de diversões, nove ruas de acesso ao parque e saídas dos cinemas, fontes luminosas, salas de escritórios e terraço em toda a extensão dos prédios, destinados a, entre outras atrações, bares e restaurantes.

À primeira vista, quem visse e examinasse o grandio-so e imenso plano dos palácios de Serrador, alguns de linhas clássicas, helenicas (sic), outros em estilos aperfeiçoados pela escola francesa, ou singelos mas gigantescos como os de Nova York, espantava-se e, mesmo diante das demonstrações eloquentes que eram feitas, não se conformava e duvidava da saúde mental de seu autor: Isto no Brasil?21

Na época, os empresários capitalistas a quem Serrador apresentava a proposta consideravam quase impossível atrair o público do centro da ci-dade para aquele lugar, não acreditando que a área comportasse arranha-céus com elevadores, nem que houvesse suficientes profissionais liberais e empresas que quisessem deixar seus escritórios já

18 Observação registrada na seção “Um pouco de technica”, in Cinearte, ano I, n. 25, 18 ago. 1926.19 Cinearte, ano I, n. 23, 4 ago. 1926.20 BENJAMIN, Walter, op. cit., p. 172.21 Em artigo na revista Vamos Ler!, de 27 de julho de 1944, ano VIII, n. 417, Gastão Pereira da Silva comenta que os croquis, como figuras inacessíveis e encantadas, ficaram expostos por algum tempo nas paredes da sala de espera do antigo Odeon.

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conhecidos na rua do Ouvidor e adjacências. Mas a tenacidade do empresário conseguiu convencer homens de visão como Luiz da Rocha Miranda, Affonso Vizeu, Eugenio Honold, Marcolino Ri-beiro de Carvalho, Vivaldo Leite Ribeiro, Marc Ferrez e Filhos, Antônio Ribeiro Seabra, que acabaram empregando seus capitais na edificação dos imóveis, como averiguamos nos processos de construção dos vários prédios erigidos sobre a área já então loteada.22

O cinema seria, pois, na concepção de Serrador, o principal atrativo para o público e, para tal, o persistente empreendedor não poupou esforços, importando os melhores filmes, assumindo a representação dos estúdios e inspirando-se nos modelos importados para a luxuosa arquitetura que fazia edificar. Submetido a grandes alterações, o grandioso projeto tornou-se realidade em 1925.

Conforme idealizara, Serrador revolucionou o padrão das casas de espetáculos, criando uma ar-quitetura arrojada pela técnica, apesar da roupagem eclética, ainda tradicional, que recobria as fachadas dos suntuosos prédios. Pelo luxo e pelo conforto, antes desconhecidos, pelo próprio ineditismo das técnicas construtivas, as salas de cinema realmente transformaram os costumes da população.

Um repórter do Jornal do Brasil de 1928 observou as transformações urbanas pelas quais passara a cidade desde que embarcara para a Europa du-rante a Primeira Guerra Mundial, comparando a avenida Rio Branco e a Cinelândia com o Times Square de Nova York.23 Percebe-se também pela carta de uma leitora da revista Paratodos o impacto causado pelas novas casas de espetáculo não só no contexto urbano, mas também no sociocultural. A missivista relata que:

22 Ver LIMA, Evelyn Furquim Werneck, op. cit.23 ANDRADE, Gabriel de. As transformações do Rio de Janeiro. Jornal do Brasil, 28 set. 1928. p. 5.

Vista da Praça Floriano, com o Teatro Municipal ao fundo. Correio da Manhã

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Eu nunca fui grande frequentadora dos cinemas da Avenida, porque sempre me sentia mal naquelas sale-tas de minúsculas proporções, com pouco ar, pouca higiene, contatos forçados e quase sempre pouco agradáveis, em atmosfera viciadíssima por variados perfumes (por não dizer outra cousa), muito calor e defeituosa projeção dos aparelhos cinematográficos. [...] Os novos cinemas do fim da avenida, porém, habituaram-me de tal sorte a esse genero (sic) de diversões, que rara é a semana em que não os procure três e quatro vezes.24

Os “arranha-céus”, verdadeiros palacetes dotados não apenas de cinemas e teatros, mas de lojas, res-taurantes e salões para escritórios, não pertenciam aos mesmos proprietários. A Companhia Brasil Cinematográfica construiu e ficou responsável pelo Cinema Odeon e contratou outros empresários para explorar os demais cineteatros. Buscando rea-firmar o caráter do espaço urbano que funcionaria no imaginário da população espelhando progresso e prosperidade, Serrador resolveu também associar-se aos comerciantes que desejassem investir em pequenos estabelecimentos. Foram então apare-cendo os primeiros bares, os cafés e sorveterias. Em 1928, Cinearte informa que sob o edifício do Itajubá Hotel seriam inaugurados salões de chá e bar, na área do Quarteirão Serrador.25

Na Praça Floriano, hábitos importados do he-misfério norte eram pouco a pouco apropriados. Michel de Certeau defende arduamente que as práticas do espaço tramem realmente condições determinantes da vida social de uma cidade26 e, na praça, percebe-se que a estratégia dos empresários cinematográficos, em especial Serrador, envolvia uma racionalidade econômica que incentivava a mudança de costumes. Detectou-se que o cinema tinha a capacidade de, em poucos meses, alterar hábitos de conforto e de relacionamento social, bem como de criar nos indivíduos um gosto de caráter americanizado para a arquitetura.

As construções inusitadas, de altos gabaritos para a época, ao mesmo tempo em que firmavam carac-terísticas urbanas de uma população consumidora dos produtos da indústria cinematográfica interna-cional, alteravam os hábitos e os costumes de uma parcela considerável de usuários da praça. Cada tipo de indivíduo se apropriava diferentemente da imagem daquele espaço recém-transformado. Os múltiplos usos que ali coexistiam não poderiam ter significados idênticos para cada usuário, visto que “cada indivíduo impõe à cidade sua lei de consu-midor do espaço”.27 Em pouco tempo o quarteirão passou a ser reconhecido como Bairro Serrador. Um domínio no qual a relação espaço-tempo era mais favorável para os transeuntes que passaram a entender a Praça dos Cinemas como um espaço delimitado, no qual o cidadão se imaginava inte-grado ao seu próprio cotidiano, como se estivesse em seu verdadeiro bairro.

Os objetivos práticos dos empresários cinemato-gráficos, alcançados com a remodelação do espaço físico e social da Praça Floriano, subordinaram-se à função simbólica. O que dominou a substancial mudança da praça não foi apenas o valor funcio-nal introduzido pelos luxuosos cinemas enquanto equipamento de lazer, mas sim a projeção cultural alcançada pelo novo significado da Praça Floriano no contexto da cidade. A recepção da arquitetura dos altos prédios, que pretendiam desbancar a área comercial e de lazer da rua do Ouvidor, foi bastante polêmica. Por um lado, o carioca de 1925 ainda

24 Paratodos, ano VIII, n. 372, 30 jan. 1926. p. 37.25 Cinearte, ano 3, 26 set. 1928.26 DE CERTEAU, Michel. L’invention du quotidien: arts de faire. Paris: Gallimard, 1990. Collection Folio-Essays, p. 22.27 Idem.

A Praça Floriano no final dos

anos 50: tráfego difícil.

O glamour da Cinelândia migrava para

outros bairros. Correio da

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não estava familiarizado com a nova maneira de morar ou trabalhar. Por outro, havia aqueles mais arraigados aos modelos franceses, que estranharam a grandiosidade do complexo, verdadeiro paredão de palacetes, inspirado nas modas ditadas pelos norte-americanos. Em termos sociais, as camadas burguesas da sociedade carioca acabaram por se identificar com os amplos cinemas, garantindo o êxito do empreendimento. A leitura da revista Cine-arte no decorrer do ano de 1926 permite observar que a elite passou a frequentar os famosos “elefantes brancos”. O articulista da seção “Theatro fobos” da Cinearte de 7 de julho de 1926 assim se expressou defendendo sua sessão dos ataques dos cinéfilos, que “por suas condições técnicas (os cinemas) tinham conseguido atrair um público fino, a elite social do Rio de Janeiro, habituando essa clientela a ir seguidamente ao Império, ao Capitólio, ao Odeon, garantindo o êxito da iniciativa do sr. Serrador”.28

Aos poucos se estabeleceu um paredão de edifícios altos no Quarteirão Serrador, e o primeiro cinema a ser inaugurado foi o Capitólio. Em contraste com as demais salas de espetáculo existentes na cidade, ainda adaptadas em sobrados tradicionais, oferecia 1.200 lugares. Pouco depois, abrem suas portas o Glória, o Império e o Odeon. O Pathé Palace, mais tarde apenas Pathé, pertencente à família Ferrez, foi inaugurado em 1928 e – quatro anos depois, o Alhambra – atraía o público para a rua Senador Dantas, esquina da rua do Passeio.29.Pouco mais tarde, surgiram o Rex e o novo Palácio, que, apesar de não estarem exatamente no Bairro Serrador, também integravam o complexo de cinemas da área além do Casino e do Plaza, muitas vezes utilizados como cineteatros. Somente em 1936, a distribuidora Metro Goldwyn Mayer edificaria seu majestoso Cinema Metro, na rua do Passeio.

Os cinemas do Bairro Serrador atraíram um novo tipo de espectador, mais requintado do que aquele que frequentava os antigos cinematógrafos. Ofere-ciam o conforto dos “lanterninhas”, que recebiam e encaminhavam os espectadores até as poltronas.

O local da orquestra foi ampliado, e nos grandes lançamentos porteiros e bilheteiros vestiam-se a caráter, de acordo com a temática do filme que es-tava sendo exibido. Segundo as crônicas de época, apesar do preço considerado elevado, a lotação se esgotava todos os dias. A população da cidade na-quele período era de cerca de um milhão e duzentos mil habitantes, mas o segmento social mais atraído para o novo local de lazer da cidade era de alto poder aquisitivo, como atesta o cronista da revista Cinearte: “[...] tornou-se um hábito chic frequentar o Capitólio, em cuja porta paravam todos os dias centenas de automóveis particulares, reveladores da classe social que se aglomerava no interior”.30

Os ventiladores especiais que foram instalados nos novos cinemas permitiam aos empresários lançar filmes inéditos também na época do verão.

A Praça Floriano trazia em seu bojo todos os em-blemas da importação cultural. A importação da arquitetura do espetáculo, cujas matrizes francesas, empregadas nos primeiros music-halls e cinema-tógrafos, foram parcialmente substituídas pelos modelos americanos, ou seja, cinemas e teatros no interior de altos prédios; a importação de um urbanismo cosmopolita, em que a praça é a culmi-nância de um largo e moderno bulevar que adquire características de ágora, lugar de encontros sociais e de manifestações políticas. No âmbito da forma-ção do espaço urbanístico, o novo tecido urbano colava-se à já consolidada estrutura espacial da primeira década do século. Estava definitivamente estabelecida a fisionomia da área que no imaginário popular era a própria “Terra dos Cinemas”, e por isso alcunhada de Cinelândia. A velocidade, o tênue, o supérfluo ocasionaram a mudança da fisionomia da cidade. O flâneur que Benjamin estudou como o curioso que vaga pela cidade foi uma constante nas primeiras décadas do século, porém, após os anos 1950, foi aos poucos sendo substituído pelo indivíduo apressado que percorria a praça em busca de condução para entrar e sair do local de trabalho. A magia migrara para outros centros de bairro em construção, como Copacabana, Tijuca e Méier.

28 “Theatro fobos” da Cinearte, ano I, n. 19, 7 jul. 1926, p. 8.29 Para conhecer os projetos de arquitetura destes grandes cinemas, ver LIMA, Evelyn Furquim Werneck, op. cit.30 Citação tirada da Cinearte, apud SILVA, Gastão Pereira da, op. cit., p. 115.

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O carnaval esteve presente em muitos

dos registros cinematográficos das

três primeiras décadas do século XX, e continuou

inspirando o cinema brasileiro das décadas

seguintes, que soube se aproveitar da cultura

popular para conquistar o público. Correio da

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Doutora e mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora do curso de Cinema e Audiovisual do Centro Universitário Una (Belo Horizonte). Autora do livro O samba nas telas da cidade: os filmes musicais cariocas nos anos 30 e 40 (UFMG/Annablume, 2003).

Suzana Cristina de Souza Ferreira

O filme musical carioca dos anos 30 e 40

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O filme musical cariOca dOs anOs 30 e 40

O texto do presente artigo tem como ob-jeto os filmes musicais que foram produzi-dos no Rio de Janeiro, entre o começo da década de 1930 até o final dos anos 1940, orientado pela pers-pectiva de localizar os filmes como uma produção que tem seu lugar histórico e so-cial. Observa-se que o carnaval foi aconteci-mento ostensivamente presente nos registros cinematográficos das três primeiras décadas. Se primeiro documen-

talmente, depois ficcionalmente, à medida da mu-dança de tratamento operada quando, a partir dos anos 30, teve início a produção carioca de filmes dentro de um processo “industrial”.

O “filmusical” surgiu, e foi como se tivesse sido encontrada a resposta a uma das várias questões colocadas ao cinema brasileiro até aquele momento. Essa produção cinematográfica lançou mão da mú-sica popular e dos seus intérpretes de sucesso, tanto no disco como no rádio, e usou deste recurso para tornar tais filmes eficazes em termos de garantir a constância da sua exibição e a presença do público.

Desde o começo da produção cinematográfica no Brasil, no início do século XX, as então chamadas “vistas animadas” já abordavam temas carnavales-cos. O cinema ainda estava longe de ser sonoro, e Paschoal Segreto já registrava as folias de Momo. O ano era 1906. Também a comédia ligeira vinha sendo experimentada, tanto com motes urbanos quanto rurais e/ou mesmo uma contraposição destes temas, como é o caso da célebre e sempre citada Nhô Anastácio chegou de viagem (Rio de Janeiro,

1 AUGUSTO, Sérgio. Este mundo é um pandeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 88.2 SALLES GOMES, Paulo Emílio. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 94-96.3 AUGUSTO, Sérgio, op. cit., p. 85-103.

1908). Muitos autores/pesquisadores da história do cinema brasileiro a tomam como a primeira comédia do cinema nacional.1

Entre o primeiro filme de comédia Nhô Anastácio e o clássico musical carnavalesco Alô, alô Carnaval (1936), o cinema mundial e o brasileiro sofreram inúmeras transformações técnicas, estéticas e nar-rativas. Sem desprezar nenhuma dessas inovações, certamente foi o som que mais impacto causou nas plateias e, sem dúvida alguma, possibilitou o apare-cimento do musical como gênero cinematográfico, tendo dado ao cinema nacional uma produção mais volumosa.2 Primeiramente, os filmes musicais com a imperativa presença do samba; posteriormente, o humor fora-lhe acrescido; mais tarde ainda torna-se um deboche e uma crítica ao próprio país, ao cinema americano e aos americanos.

Pertencentes ao estilo cômico-carnavalesco, o Rio de Janeiro produziu filmes tanto “posados” como “naturais”, ou seja, ficção e documental. Foram registrados durante vários anos o carnaval da avenida Central, o Corso de Botafogo e de outras áreas da capital.

Até o ano de 1929, o cinema brasileiro permanecera mudo, salvo uma ou outra tentativa de incorporar som às projeções com a utilização de recursos pouco viáveis, como cantores atrás das telas em-prestando a voz aos números musicais, ou o uso de disco, também atrás da tela.3

Surge então, naquele ano de 1929, o primeiro filme brasileiro considerado totalmente falado: era Acabaram-se os otários, com direção de Lulu de Barros, também sonorizado por ele através do sis-tema Synchrocinex, que, segundo Lulu, funcionava da seguinte forma:

O operador colocava (o filme) no projetor número um, as cenas sincronizadas acertando o ‘Start’ do disco e do filme. Enquanto esta cena era projetada, ele colocava no projetor número dois a cena intermediária

Mesquitinha encabeçava

o elenco de Alô, alô

Brasil (1935), de Wallace

Downey, João de Barro e

Alberto Ribeiro. Correio da

Manhã

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cine Rio de JaneiRo, capital do cinema

não sincronizada e no outro toca-discos a música que deveria acompanhar. Quando no projetor número um a cena chegava ao fim, ele passava para o projetor número dois, como até hoje se faz na passagem de uma parte para a outra.4

Acabaram-se os otários deu provas não apenas da capacidade criativa cinematográfica brasileira, como também confirmou o potencial das comé-dias musicais. Em 1931 é produzido em São Paulo o primeiro filme-revista sonoro. Mais uma vez, Moacyr Fenelon estivera à frente do som. Coisas nossas era sincronizado pelo sistema Vitafone: Fe-nelon gravou previamente em discos tanto as falas como as canções dos atores, sendo reproduzido como playback diante das câmeras. Era mais um passo dado em direção à sonorização definitiva do cinema nacional.5

Se o cinema no Brasil dos primeiros anos da década de 30 ainda não era falado, isso se devia à falta de recursos financeiros, tanto dos produtores, para im-portar o sistema de som ótico (Movietone), como dos exibidores, para equipar as salas de exibição. Só em 1933 a Cinédia importa dos Estados Unidos o sistema Movietone e lança A voz do carnaval, um semidocumentário carnavalesco escrito por Joracy Camargo e dirigido simultaneamente por Adhemar Gonzaga e Humberto Mauro.6

As músicas, as personalidades do rádio, do teatro, da imprensa e também do cinema eram mostradas em todas as suas qualidades aos foliões, mais ou menos eufóricos. Certo é que, deste momento em diante, o cinema brasileiro, ou melhor dizendo, o

cinema carioca não poderia negar a total aceitação desses filmes pelo público.

Sendo possuidor de uma forte tradição cultural popular, principalmente na música, o Rio de Janeiro vivia a se movimentar, no seu cotidiano, ao com-passo do samba que nunca perdeu o tom em face de qualquer transformação ocorrida na cidade. As casas das “tias” baianas, a festa da Penha, os clu-bes carnavalescos eram redutos, entre outros, nos quais a manifestação popular tinha lugar garantido. Nada do aspecto da cultura popular fora criado pelo cinema ou pelos filmusicais. Se muitas vezes a vida imita a ficção, neste caso, a relação era de fato inversa. A música popular, seus autores e/ou

4 Ibidem, p. 105-106. Em 1928, o cinema tinha se tornado sonoro nos Estados Unidos e Europa. Lá, os primeiros filmes, apenas com algumas intervenções sonoras, logo dariam lugar aos totalmente sonorizados. No Brasil, quando Broadway melody estreou, trouxe não só a estupefação pela novidade, mas a curiosidade e o desejo de encontrar a solução que resolvesse o problema do som no cinema nacional. AUGUSTO, Sérgio, op. cit., p. 75-130. Ver também a este respeito: VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1959; VIEIRA, João Luiz. A chanchada e o cinema carioca. In: RAMOS, Fernão (Org.). História do cinema brasileiro. São Paulo: Arte Editora, 1987. p. 129-187.5 AUGUSTO, Sérgio, op. cit., p. 75-130.6 Ibidem, p. 72-102.7 Muito se idealizou a cultura brasileira em vários períodos da história do país, assim como os mitos a respeito do que era comum aos brancos, mulatos, negros e índios. Muitos dos intelectuais brasileiros contribuíram para tal com teorias sobre branqueamento da raça, as crenças da antropologia física e com uma narrativa histórica quase sem revoltas. Mitos que estiveram durante muito tempo, e ainda estão, transitando pelo imaginário do povo brasileiro. A característica antropofágica da cultura do país foi assinalada pelos modernistas e perma-neceu como uma figura de folclore. Mas será que é só folclore? Será que a cultura brasileira não tem de fato essa qualidade de transformar em outra coisa com a cara do país as influências e as superexposições que sofre do produto de outras culturas? A ordem das coisas no país não se pauta por uma ortodoxia, a cultura brasileira ainda está vivendo o seu ritual de passagem. Ver a respeito DA MATTA, Roberto. Ensaios de antropologia estrutural. Petrópolis: Vozes, 1973; TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.

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Belmira de Almeida e Jaime Costa atuaram no filme Favela dos meus amores (1935), de Humberto Mauro. Correio da Manhã

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intérpretes, a vida nos morros e bairros da perife-ria da cidade, com suas alegrias e tristezas, foram utilizados como grandes atrações dessa produção sonorizada a partir do ano de 1930.7

Ainda no período do cinema mudo no Brasil, o carnaval já era registrado em curtas e médias-metragens. Então, não era de admirar que o cinema, ao se sonorizar, tornasse-o um tema constante, um filão, uma saída de continuidade para produtores, realizadores, atores e técnicos de forma geral.

Em toda a década de 1930, o estúdio de Adhemar Gonzaga, a Cinédia, liderou a produção cinemato-gráfica não apenas no Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil. Em 1935, a Cinédia lança a produção Alô, alô Brasil, selando definitivamente a parceria entre o rádio e o cinema brasileiro. O filme possuía, antes de mais nada, uma enorme constelação de astros e estrelas do rádio e do disco, desfilando em meio ao enredo de João de Barro e Alberto Ribeiro.8

Alô, alô Brasil foi lançado às vésperas do carnaval, obtendo grande sucesso de público. Esta estratégia acabou sendo repetida também no meio do ano, visando às festas juninas e às férias. Com isto, dava-se sustentação ao lançamento dos discos com os musicais de meio de ano, além de promover o rádio, já que o carnaval carioca e todo o aparato promo-cional no qual estava envolvido levavam o cinema junto, estimulando e promovendo sua produção.

No período pós-Revolução de 30, o país vai sendo convencido da necessidade de sua entrada no re-gistro de atuação conforme o exigido pela moder-nidade mundial. Na produção cultural, esta atitude foi prontamente adotada. A imediata criação pelo Governo Provisório de um Ministério de Educação e Saúde Pública, que pôs em prática importantes reformas no país, aponta para a disposição do Es-tado em fazer crível esta necessidade e estimular o gênio intelectual brasileiro. Mas, na atividade cinematográfica, a história vinha sendo um pouco diferente, e, já no meio dos anos 30, os estúdios de cinema cariocas entravam em crise financeira, e

assim buscavam formas alternativas para atuarem no registro desta tal “modernidade brasileira”.

A alternativa do filme musical de carnaval obede-ceu, em parte, a uma vocação da sociedade carioca: o cômico a ele acrescentado trouxera mais vigor e mais público, principalmente quando estas histórias e narrativas mostravam o Rio de Janeiro com sua própria cara. O cômico era a linguagem descritiva que representava a possibilidade das vivências e das sociabilidades cotidianas de forma incomum, no seio de uma comunidade imaginada. O cômico é uma forma cultural de representação coletiva pelos caminhos da inversão e recriação dos sentidos, pelo jogo entre o real e o representado.

Ao se produzir e dirigir estes filmes nos anos 30, e aqueles que mais tarde seriam conhecidos como “chanchadas”, no final dos anos 40 e em toda a década de 50, tem-se, de uma forma não muito consciente, a manifestação de uma sensibilidade coletiva capaz de captar as coisas do mundo. No caso aqui específico, fizeram desses filmes uma porta de entrada para um tipo de vida social que era negada pelo Estado, pelos estratos mais altos da sociedade, pelos meios legitimadores de uma representação estética idealizada como homogênea para o país.

Em oposição, o grau de idealização do Rio existente nos “filmusicais” de forma alguma transportava o espectador a outra realidade estetizada. Quase sempre servia de índice para as deficiências e para um nacionalismo menos ufanista. Tipos humanos negados durante muito tempo por serem a imagem do carioca malandro, descolado, na verdade espa-lhado em todo o país, eram personagens constan-tes. Somado a tudo, estava o fato de esses filmes quase sempre descortinarem o Rio como uma cidade com virtudes e defeitos como tantas outras.

No ano de 1936, a Cinédia produz aquele que seria o seu filme carnavalesco de retumbante sucesso, e chegaria à atualidade como um clássico do musical de carnaval: Alô, alô Carnaval. A narrativa repetia o

8 VIEIRA, João Luiz, op. cit., p. 42.

Humberto Mauro (foto) e Adhemar Gonzaga, os diretores de A voz do carnaval (1933), um semidocumentário sobre

a festa mais popular do Brasil. Correio da Manhã

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sucesso da experiência anterior do Alô, alô Brasil. Intercalava números musicais à narrativa das aven-turas de dois autores cariocas de teatro de revista, encarnados pelos atores Pinto Filho e Barbosa Júnior, para conseguir o patrocínio de um rico empresário, vivido pelo ator Jaime Costa.

Nesta produção, dirigida por Adhemar Gonzaga e Wallace Downey, parodia-se o cinema americano, e não há como esquecer o fato deste cinema ter sido sempre modelo para os realizadores brasileiros daquele período e consequentemente a sociedade americana. Mas a paródia e o deboche sempre foram acirradamente feitos à sociedade carioca, legítima representante da cultura e da sociedade brasileira.

Os produtores cariocas não possuíam recursos para financiar, tal como nos Estados Unidos, as grandes produções, e os filmes brasileiros pretensamente sérios não faziam sucesso. Assim, o deboche torna-se o casamento ideal com a música popular, além de um tiro certeiro no gosto carioca, formado pelo humor rasgado, de certa forma ingênuo, mas sempre muito cruel.

Anterior a Alô, alô Carnaval, o filme Favela dos meus amores marcaria a primeira metade da década de 30. Na segunda metade de década, a Cinédia proporciona ao público Samba da vida (1937), com direção de Luiz de Barros, já inserindo nesta produção os duplos, sempre adotados nas futuras chanchadas. Ensaiando um descortinamento ao espectador das ordenações invertidas da sociedade brasileira, a década de 30 terminaria com dois filmes de uma trilogia frutífera da Sonofilmes: Banana da terra, de 1938, e Laranja da China, de 1939; Abacaxi azul só viria em 1944.9

Os “filmusicais” dos anos 30 levaram para a tela um pouco de toda essa mistura, eram o resultado de um cinema menos erudito e nobre, no entanto mais possível e brasileiro, resultado das condições de produção, e não de um projeto de intelectuais ou mesmo dos realizadores naqueles anos. A consciên-cia adquirida por produtores e realizadores frente aos problemas e dificuldades de industrialização do país levara-os, forçosamente, a olharem de frente para a sua própria realidade e encontrar nela os componentes para as histórias contadas na tela. Divertidas, confusas, povoadas de tipos comuns, cheias de “jeitinhos”, narradas sempre ao ritmo, se não do carnaval, certamente da música popular.

Não houve crítica à sociedade carioca e à brasileira feita pelos filmes musicais dos anos 30 que não passasse pelo riso, tendo o cinema musical carna-valesco, desde o seu começo, subvertido, na sua representação, a ordem social estabelecida de uma sociedade na qual a inversão já é um traço cultural, e não aparece somente como momentos de exceção.

Pelo fato de serem imagens do cotidiano da vida da cidade do Rio de Janeiro, estes filmes criaram impressões profundas na população, o que produziu uma relação identitária com o público. Este cinema, pouco considerado pelos especialistas naqueles dias, e mesmo hoje, era o Rio de Janeiro e, por que não dizer, o Brasil se expressando como se sabia fazer nas con-dições possíveis: ao compasso do samba e do riso.10

9 AUGUSTO, Sérgio, op. cit., p. 85-130.10 Outras referências bibliográficas: BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979; DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1983; FERREIRA, Suzana Cristina de Souza. O samba nas telas da cidade: os filmes musicais cariocas nos anos 30 e 40. São Paulo: PPGH/FAFICH/UFMG/Annablume, 2003. p. 220.

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Censurado pelo regime militar, o filme Meu lar é Copacabana ou Fábula (Mitt hem är Copacabana, 1965) foi dirigido pelo sueco Arne Sucksdorff, formador de uma geração de cineastas brasileiros. A praia e o morro serviram de cenário para a trama que acompanha o cotidiano de meninos de rua. Correio da Manhã

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Formas de produção independente: sistemas e modelos

Na história tradicional do cinema brasileiro, apon-ta-se o advento dos grandes estúdios paulistas (Vera Cruz, Maristela, Multifilmes) como o fato mais marcante ocorrido na passagem dos anos 1940-50. São Paulo assume, com isso, inegável protagonismo no movimento de cultura cinematográfica daquela época. Ao mesmo tempo, o cinema que se faz contemporaneamente no Rio de Janeiro será quase sempre identificado à produção das chanchadas, isto é, das comédias musicais populares – carna-valescas ou não –, sobretudo as produzidas pela Atlântida, com astros como Oscarito, Grande Otelo, Eliana e Anselmo Duarte.

Em contraposição a esses dois núcleos – os es-túdios paulistas e as chanchadas carnavalescas – haveria um terceiro grupo, o dos independentes, composto por realizadores e críticos ligados em sua maior parte ao Partido Comunista Brasileiro, com forte atuação em São Paulo e no Rio de Ja-neiro. Os independentes foram bastante ativos na organização das mesas-redondas da Associação Paulista de Cinema (1951) e dos Congressos Na-cionais do Cinema Brasileiro (1952-53), além de realizarem alguns filmes emblemáticos, tais como O saci (Rodolfo Nanni, 1953), Alameda da Saudade, 113 (Carlos Ortiz, 1953), Agulha no palheiro (Alex Viany, 1953), Rio, 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955) e O grande momento (Roberto Santos, 1959), entre outros.

1 Este artigo resume uma série de ideias desenvolvidas na minha tese de doutorado intitulada “Cinema independente”: produção, distribuição e exibição no Rio de Janeiro (1948-1954), defendida em 2011 no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro.

Os independentes questionaram, no calor da hora, o modelo “industrial” importado pelos grandes estúdios paulistas, associando tal modelo, direta ou indiretamente, à ação imperialista do cinema estrangeiro – notadamente o norte-americano –, em um processo conjunto de dominação econômi-ca e cultural. Por outro lado, defendiam a procura por uma forma “brasileira” e “realista” de fazer cinema, essencialmente popular e comunicativa, expressa sobretudo pelo “conteúdo”, isto é, pelos temas e histórias levados à tela, compreendendo aí aspectos culturais e sociais, tais como o folclore, a música popular, o campo, a favela, o universo do trabalhador e do “homem comum” etc. Um cinema verdadeiramente independente significaria, assim, um compromisso ético e estético a partir do qual a realização de filmes no Brasil fizesse parte de um sentido maior de reflexão em torno das condições sociais, econômicas e culturais do próprio país, donde a crença de que tais filmes imbuídos desse espírito progressista certamente encontrariam diálogo com o público.

Essa leitura histórica é de grande valia para estabe-lecer as origens ideológicas de um “cinema moder-no” no Brasil, consubstanciado pelo movimento do Cinema Novo. Contudo, ela não é suficiente quando se busca entender o que significava falar em “produção independente” no meio cinemato-gráfico carioca naquele período.

Em termos bastante amplos, é possível datar o final dos anos 1940 como o momento em que surge no

Doutor e mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense. Professor adjunto do curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens da Universidade Federal de Juiz de Fora, cineasta e pesqui-sador. Realizou, entre outros filmes, o longa Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo (2012), o curta Que cavação é essa? (2008) e o média O galante rei da Boca (2004).

Luís Alberto Rocha Melo

O cinema independente carioca dos anos 19501

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Brasil, especificamente na cidade do Rio de Janeiro, o debate sobre a produção independente de filmes de longa metragem de ficção. O termo independente deve ser entendido aqui no interior das disputas políticas travadas no meio cinematográfico, isto é, entre produtores, distribuidores e exibidores. O contexto em que se dão essas disputas caracteriza-se pela marginalidade do setor da produção de filmes, que não encontra em seu próprio mercado espaço suficiente para fazer retornar seu investimento, e pela intermediação do Estado visando a compen-sar a presença excessiva do produto estrangeiro, sem, contudo, atingir o gargalo da distribuição e da exibição, setores tradicionalmente dominados pelas majors. Inicialmente sob o governo do general Eurico Gaspar Dutra (1946-50) e depois durante o segundo governo de Getúlio Vargas (1951-54), o Estado vai ser um importante agente ideológico e mediador nessa relação conflituosa entre produto-res e exibidores, sobretudo através dos sucessivos decretos e leis de obrigatoriedade de exibição do longa-metragem brasileiro nos cinemas.

De 1948 a 1954, o meio cinematográfico carioca vai conhecer uma intensa batalha pela afirmação

política da classe dos produtores, ocasião em que o termo “independente” vai adquirir inegável peso político, sobretudo a partir da atuação do veterano técnico de som, produtor e diretor Moacyr Fenelon. Um dos fundadores da Atlântida – Empresa Cine-matográfica do Brasil S.A., Fenelon lá permaneceu de 1941 até 1947, como produtor e diretor. Após desligar-se do cargo de diretor-superintendente da Atlântida, constituiu no ano seguinte sua própria produtora, a Cine-Produções Fenelon. A partir de então, passou a assumir publicamente, em diversas entrevistas concedidas à imprensa, o discurso e o rótulo de “produtor independente”, conferindo ao termo uma evidente carga ideológica.

Entre 1948-49, a Cine-Produções Fenelon realizou cinco filmes em associação com os estúdios Cinédia em São Cristóvão, de propriedade de Adhemar Gon-zaga: Obrigado, doutor (Moacyr Fenelon, 1948), Poeira de estrelas (Moacyr Fenelon, 1948), Estou aí? (Cajado Filho, 1949), O homem que passa (Moacyr Fenelon, 1949) e ...Todos por um! (Cajado Filho, 1949). Em 1950, Fenelon associou-se ao empresário de comunicações e político Rubens Berardo Carneiro da Cunha, com quem fundou a Flama Produtora Cinematográfica

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Filme de estreia do cineasta Alex Viany, Agulha no palheiro (1953) é um dos mais emblemáticos produzidos na década de 50, fora do padrão “industrial” da época. Arquivo Família Ferrez

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Ltda., sediada no bairro das Laranjeiras. Lá dirigiu e produziu, entre outros filmes, o policial O dominó negro (1950), a comédia Tudo azul (1952) e o longa de estreia de Alex Viany, Agulha no palheiro (1953).

O que Moacyr Fenelon entendia por “produtor independente” diferia em alguns pontos das ideias defendidas pelo grupo dos críticos e realizadores ligados ao PCB (Carlos Ortiz, Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos, Rodolfo Nanni, Galileu Garcia, Salomão Scliar etc.). Para Fenelon, ser indepen-dente significava antes de mais nada defender pu-blicamente um perfil diferenciado de profissional integrado ao mercado de trabalho – ou, para usar as expressões correntes, de um “produtor avulso” inserido na “indústria”. A ideia de autonomia ou de independência ajudava a legitimar uma estratégia competitiva de abertura e delimitação de espaços

específicos no interior de um exíguo mercado de trabalho. Definir-se como “independente” era afirmar-se a um só tempo como profissional técnico, homem de ideias e produtor executivo. No período que estamos abordando, Moacyr Fenelon soube como ninguém encarnar esse perfil.

Afora Moacyr Fenelon e o grupo ligado ao PCB, alguns outros poucos realizadores cariocas con-temporâneos também fizeram uso ou refletiram mais detidamente sobre a produção independente, embora de maneira incipiente: é o caso de Luiz de Barros e de Silveira Sampaio. Cronistas e repórteres especializados como o veterano Pedro Lima e os jovens Manoel Jorge, Joaquim Menezes, Luiz Alípio de Barros e Costa Cotrim, entre outros, também farão uso esporádico mas estratégico da expressão “produtor independente”, conferindo à mesma

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um caráter de diferenciação em relação ao cinema “empresarial”, isto é, de estúdio: “independentes” seriam os produtores “avulsos”, sem estúdios, que através de diversos expedientes conseguiam levantar recursos para produzir. Assim, para esses realizadores e cronistas, falar em “independência” era fundamentalmente pensar em termos de relações de produção, não importando a questão conteudís-tica e ideológica dos filmes: tanto um produtor de chanchadas quanto um diretor de filmes dramáticos poderiam ser considerados “independentes”.

No cinema carioca dos anos 1940-50 era frequente a associação entre donos de estúdios e produtores autônomos. Vejamos o caso do acordo entre a Cine-Produções Fenelon e a Cinédia, firmado em 1948: ele segue exatamente o modelo da produção associada, de resto usual desde os anos 1930. Os cinco filmes coproduzidos por Gonzaga e Fenelon correspondiam a uma estratégia de mercado bem delimitada: dois dramas, uma comédia musical, dois carnavalescos. A estrutura da Cinédia era o que pos-sibilitava a Fenelon elaborar um programa de ação, planejando um total de títulos a serem realizados em sequência, dentro de uma outra estratégia de fundamental importância para a sobrevivência do produtor independente: a produção planificada.

A Cinédia cobria para Fenelon grande parte dos custos de produção: funcionários, parte da equipe técnica e dos operários do estúdio; equipamen-tos, carpintaria e cenários; palcos de filmagem, montagem e laboratório. Era responsabilidade de Fenelon, por sua vez, pagar a equipe técnica prin-cipal (fotógrafo, montador, cenógrafo etc.) e provi-denciar todo o material sensível para as filmagens. Esses gastos, no entanto, não cobriam a totalidade dos orçamentos. Atores e atrizes principais e se-cundários; maestros, músicos, cantores e cantoras; bailarinos e coreógrafos; direitos autorais para os compositores; móveis e objetos de cena; transporte, alimentação e hospedagem para filmagens fora do Rio de Janeiro; figurino e material cenográfico, além do eventual aluguel de espaços para filmagem fora dos estúdios e demais gastos extras – todos esses itens demandavam recursos que estavam fora do alcance tanto do estúdio quanto do produtor autônomo. O principal mecanismo utilizado para contornar ou cobrir esses outros gastos – inte-

gralmente ou ao menos em parte – era o chamado sistema de cotas, algo muito próximo do que hoje ocorre com projetos realizados a partir do sistema de crowdfunding via redes sociais na internet. Aliás, as cotas de participação, vale dizer, não se restringiam aos independentes: era de uso generalizado, mesmo por empresas como Atlântida, Cinédia e Flama.

Tratava-se de um acordo estritamente privado: produtores, estúdios, equipe e demais cotistas eram investidores particulares de risco, sem quaisquer bases de garantia caso a iniciativa fracassasse. Evi-dentemente, a integralização de um orçamento por meio de cotas exigia um trabalho de convencimento desses possíveis sócios. Em geral, os produtores trabalhavam com agentes ou corretores encarre-gados de “vender” as cotas de participação, o que demandava manter um mínimo e constante círculo de relações profissionais ou de amizade com os “capitalistas”, ou seja, industriais, comerciantes ou mesmo – o que era bem mais raro – pessoas ricas que simplesmente se mostravam interessadas em investir no cinema.

No caso da Atlântida, por exemplo, era relativa-mente fácil vender cotas de participação: bastava que os comediantes Grande Otelo ou Oscarito, mantidos sob contratos de exclusividade, encabe-çassem o elenco. Mas que garantias semelhantes poderia oferecer um produtor independente descapitalizado? Entende-se assim a estratégia de Moacyr Fenelon ao contratar nomes conhecidos do grande público (como Rodolfo Mayer e Lourdinha Bittencourt) e investir no gênero carnavalesco e no melodrama. Isso tudo para não falar da associação com a Cinédia, marca que avalizaria qualquer inicia-tiva e que tinha em seu currículo êxitos de bilheteria como Alô, alô Carnaval (Adhemar Gonzaga, 1936) e O ébrio (Gilda de Abreu, 1946).

O sistema de cotas (incluindo aí a própria lógica da associação entre um produtor autônomo e um estúdio) não era, portanto, apenas uma alternativa de financiamento, e sim o único recurso possível para o produtor independente. Evidentemente, isso interferia, informava e na maior parte dos casos acabava por orientar a escolha de temas, atores e gêneros, determinando, assim, o próprio tratamen-to estético a ser dado a cada filme.

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Produção, distribuição e exibição: o “cir-cuito independente” carioca

Em 1946, Luiz Severiano Ribeiro Júnior era um jovem empresário de 34 anos que controlava sessenta das 120 salas do Rio de Janeiro. Como vice-presidente da Companhia Brasileira de Ci-nemas (com seus seis circuitos de exibição) e da Empresa L. S. Ribeiro, atuava no Norte, Nordeste e Sudeste – Belém, Fortaleza, Recife, Petrópolis, Niterói, Rio de Janeiro, Juiz de Fora e Belo Hori-zonte –, programando mais de quatrocentos dos cerca de dois mil cinemas em território nacional. A posição de maior exibidor do país decorria de uma política agressiva de arrendamentos e aquisições de salas, iniciada já nos anos 1920 por Severiano Ribeiro pai. Por outro lado, sua lide-rança no mercado exibidor nacional logo atraiu os interesses das distribuidoras norte-americanas (Fox, Warner, Columbia etc.), que passaram a manter com Ribeiro estreitas e duradouras liga-ções, alimentando o seu vasto circuito de salas e ocupando, consequentemente, a maior fatia do mercado interno.

Nos anos 1940, Ribeiro Júnior ampliou o campo de atuação da exibição para outros setores da atividade cinematográfica, incluindo serviços de laboratório e publicidade (Laboratório e Gráfica São Luiz), dis-tribuição (União Cinematográfica Brasileira) e pro-dução de filmes (em outubro de 1947, torna-se o acionista majoritário da Atlântida). Nada disso por acaso: o investimento no ramo da indústria se deu justamente quando o decreto nº 20.493, de 24 de janeiro de 1946, obrigou os cinemas lançadores em todo o território nacional a exibirem anualmente no mínimo três filmes brasileiros de longa metragem (um longa por quadrimestre), classificados como de “boa qualidade”. Além disso, o decreto reiterava que o preço mínimo da locação de um filme deveria ser de 50% da renda da bilheteria.

A atuação centralizadora de Luiz Severiano Ribei-ro Júnior na produção de filmes criará um forte laço entre os setores da produção e da exibição no Rio de Janeiro. A segunda metade da década de 1940 verá Ribeiro Júnior ligado a diversas inicia-tivas de produção, participando como cotista de alguns filmes e realizando sucessivos adiantamen-

tos sobre a previsão de renda de outros tantos. Foi esta última modalidade de atuação, por sinal, que o permitiu adquirir, em 1947, a maior parte das ações da Atlântida, empresa da qual logo se tornou credor e, em seguida, diretor-presidente. A influência de Ribeiro Júnior era praticamente incontornável. Para se ter uma ideia, mesmo após tornar-se “independente”, Moacyr Fenelon acabou tendo de negociar com a UCB (União Cinematográfica Brasileira) a distribuição dos dois primeiros filmes da Cine-Produções Fenelon/Cinédia, Obrigado, doutor e Poeira de estrelas, além de exibi-los nos cinemas do novo dono da Atlântida.

Por outro lado, as batalhas contra o “truste” de Severiano Ribeiro (sobretudo nos anos 1948-49) fizeram da figura desse empresário uma espécie de símbolo contra o qual os produtores independentes deveriam se insurgir politicamente. A eleição de Moacyr Fenelon, em 30 de maio de 1952, para a presidência do Sindicato das Empresas Cinemato-gráficas do Rio de Janeiro é um exemplo concreto desse antagonismo: de um lado, concorria a chapa A, do “grupo Severiano Ribeiro”; de outro, a chapa B, “do grupo independente”. A chapa dos “inde-pendentes” foi a vencedora, fortalecendo Moacyr Fenelon como liderança política da classe.

Os produtores independentes cariocas precisavam enfrentar não apenas a concorrência desigual do “truste” de Severiano Ribeiro como a má-vontade dos demais “exibidores independentes”. Diante de um mercado interno ocupado pelo produto estrangeiro e altamente concentrado, os produ-tores procuraram na interlocução com o Estado as alternativas possíveis para a inserção de seus filmes nos cinemas. Esse é o contexto em que os decretos e leis de proteção ao filme brasileiro, baseados na compulsoriedade da exibição, termi-naram por “disciplinar” minimamente o mercado e criar as únicas condições de penetração do filme brasileiro nas salas exibidoras naquele período, ainda que de forma limitada e a reboque do pro-duto estrangeiro. Esse processo obrigou a que se reconfigurassem as relações entre produtores, distribuidores e exibidores, culminando, entre os anos 1951-52, na formação de um “circuito independente” no Rio de Janeiro. Mas como se deu a criação desse circuito?

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A promulgação do decreto nº 30.179, de 19 de novembro de 1951, conhecido como a “lei dos 8 x 1”, foi decorrência de uma longa batalha entre pro-dutores e exibidores. Em 1950, o governo atendeu aos produtores e baixou uma portaria aumentando a obrigatoriedade de três para seis longas brasilei-ros anuais (dois filmes por quadrimestre). No ano seguinte, também por pressão dos produtores independentes, capitaneados por Moacyr Fenelon e Rubens Berardo, Vargas promulgou o decreto nº 30.179/51, estabelecendo a proporção de um filme brasileiro para cada oito estrangeiros.

O dado mais interessante desse decreto é que ele não interferia propriamente nos cinemas lançado-res de primeira linha – aqueles que exibiam um filme estrangeiro por semana –, mas atingia, sobre-tudo, os circuitos de segunda e terceira linhas, que

exibiam vários filmes estrangeiros por semana ou mesmo por dia. Essas salas (o grosso do mercado exibidor brasileiro, se tomado em termos nacionais) é que se sentiram prejudicadas pelo decreto. Afinal, como a base de sua programação eram os chama-dos “programas duplos” ou a exibição de vários filmes por semana, tais salas seriam em tese obriga-das, proporcionalmente, a passar uma quantidade muito maior de filmes brasileiros. A reação dos exi-bidores foi obviamente violenta, e não tardaram a surgir na imprensa os protestos encabeçados pelos presidentes dos Sindicatos dos Exibidores de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, respectivamente Mansueto de Gregório, Nelson Cavalcanti Caruso e Francisco Cupello. Estes três nomes representavam por meio de seus sindicatos a maioria esmagadora dos exibidores nacionais – que se autointitulavam, por sinal, “independentes” –, com o óbvio (embora estrategicamente discreto) apoio das grandes empresas exibidoras do Rio e de São Paulo, tais como Severiano Ribeiro, Vital Ramos de Castro ou Francisco Serrador.

A grita dos exibidores terá como resultado a assinatura do decreto nº 30.700, de 1952, que vai modificar a “lei dos 8 x 1”, instituindo, em vez de um filme brasileiro por oito estrangeiros, a nova proporção de um filme brasileiro por oito progra-mas de filmes estrangeiros. Para se ter uma ideia do que isso significava, um “programa” poderia incluir de um a dez títulos estrangeiros por dia. Essa simples mudança sem dúvida beneficiava os exibidores de segunda e de terceira linhas, os ci-nemas de bairro e os chamados “independentes”. Aparentemente, os produtores sairiam perdendo; mas não foi bem isso o que aconteceu. O decreto nº 30.700/52 foi o resultado de um acordo de bastidores entre produtores e exibidores indepen-dentes, forçados a sentarem à mesa para negociar uma solução para o conflito.

O acordo se deu nos seguintes termos: de um lado, os produtores aceitaram mudar o critério de proporcionalidade (oito programas ao invés de oito filmes estrangeiros). Em troca, os exibidores resgatariam da sombra uma velha distribuidora criada por eles em 1946, a Unida Filmes S.A., até então apagada no mercado, transformando-a em uma distribuidora atuante, voltada exclusivamente

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Uma das estratégias do produtor Moacyr Fenelon para conquistar público foi contratar atores de prestígio como Rodolfo Mayer para estrelar seus filmes. Correio da Manhã

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para filmes brasileiros independentes, quer dizer, produzidos, distribuídos e exibidos sem a partici-pação, em nenhum dos três setores, do grupo de Luiz Severiano Ribeiro. Sendo uma distribuidora de propriedade dos próprios exibidores, a Unida Filmes automaticamente passaria a contar com as salas independentes, completando o circuito de produção-distribuição-exibição.

O decreto nº 30.700/52 foi, assim, vantajoso para os dois lados: para produtores como Moacyr Fe-nelon e Rubens Berardo, porque poderiam exibir seus filmes fora do circuito de Severiano Ribeiro – o que de fato ocorreu com as produções da Flama Tudo azul, Com o diabo no corpo (Mario Del Rio, 1952) e Agulha no palheiro; para os exibidores, porque além de conseguir alterar a lei a seu favor, ainda participariam dos lucros dos filmes por eles distribuídos e exibidos.

Entre 1952-54, sob a direção dos exibidores Carlos Flack e Nelson Cavalcanti Caruso, a Unida Filmes distribuiu e coproduziu filmes de diversas produ-toras independentes cariocas – Flama, Produções Watson Macedo, Brasil Vita Filmes, Cinematográ-fica Mauá, Castelo Filmes etc. –, que, por sua vez, eram lançados nos cinemas dos independentes Vital Ramos de Castro (circuito Plaza) e Casa Marc Ferrez (circuito Pathé Palace), no Rio de Janeiro, além do circuito Serrador, em São Paulo. A combinação Flama-Unida Filmes-Vital Ramos de Castro, por exemplo, permitiu que Tudo azul, o maior sucesso comercial da produtora de Rubens Berardo e Moacyr Fenelon, fosse lançado em vinte cinemas no Rio e ficasse duas semanas em cartaz somente no Plaza. Além de distribuir, a Unida Fil-mes também entrou diretamente na produção de filmes, financiando Rua sem sol (Alex Viany, 1954) em coprodução com a Brasil Vita Filmes e a pau-lista Cinedistri, película lançada no circuito Pathé Palace. Além disso, a Unida Filmes também entrou na produção e na distribuição de vários filmes de Watson Macedo, distribuiu os primeiros filmes de Roberto Farias (Rico ri à toa, 1957; No mundo da lua, 1958) e, já no período final da distribui-dora, coproduziu e distribuiu Mandacaru vermelho (Nelson Pereira dos Santos, 1961). Pouco depois, em 1962, a Unida deixaria de atuar no mercado.

Apesar das vantagens aparentes, o “circuito in-dependente” de produção-distribuição-exibição criado no Rio de Janeiro se mostrou frágil e circuns-tancial. Uma vez reacomodados com o decreto nº 30.700/52, os interesses de produtores e exibidores voltaram a se divorciar, justamente porque não es-tavam ancorados em uma situação real de domínio do mercado, mas, ao contrário, mantinham-se em uma faixa muito estreita de possibilidades, ditada pela própria legislação à qual os setores da produ-ção e da exibição de comum acordo se adequaram.

Quando Nelson Cavalcanti Caruso e Carlos Flack deixaram a presidência da Unida Filmes e passa-ram a se dedicar somente à exibição, à frente da Cinemas Unidos S.A., ambos tinham como pro-pósito estabelecer uma “rede de associações” que ocasionou uma renovação no circuito de cinemas independentes no Rio de Janeiro. Os novos rumos desse “circuito independente” ficaram claros em

Adhemar Gonzaga, fundador

da Cinédia, empresa com

que Fenelon se associou para

produzir filmes. Correio da

Manhã

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junho de 1955, quando seus integrantes fecharam um acordo com a Warner Bros. para a exibição de filmes em Cinemascope, fato que foi anotado pela revista Cine-Repórter (Rio de Janeiro, 25/06/1955) como o “grande acontecimento no mundo da cinematografia carioca”. No final daquele mesmo ano, um outro acordo, desta vez com a Allied Artists, que também fornecia filmes em processo anamórfico, fortaleceu ainda mais o “circuito in-dependente”.

Assim, a partir de 1954, os cinemas Caruso, Pax, Azteca, Imperator, Coliseu e São Pedro, perten-centes ao novo “circuito independente” exibidor carioca, passaram a integrar o circuito lançador, estabelecendo forte concorrência com Luiz Seve-riano Ribeiro. Ao fechar o acordo com as empresas Cinemas Unidos e Azteca, em 1955, a Warner Bros. rompia uma relação comercial de vinte anos com o grupo L. S. Ribeiro.

Para um realizador como Watson Macedo, que em 1952 deixara a Atlântida e se tornara produtor in-dependente com a sua Produções Watson Macedo, essa alteração no mercado de exibição ocorrida a partir da segunda metade dos anos 1950 acabou sendo momentaneamente positiva, por conta da entrada em cena dessa nova cadeia de lançadores. Atento à nova conjuntura, o novo diretor da Uni-da Filmes, Mário Falaschi, lançou O petróleo é nosso (Watson Macedo, 1954), Carnaval em Marte (Watson Macedo, 1955) e Sinfonia carioca (Watson Macedo, 1955), três dos maiores sucessos de bilheteria da distribuidora, nos habituais circuitos Pathé, Presi-dente e São José, mas também nos cinemas Caruso, Imperator, Pax, Coliseu e São Pedro.

Mesmo com grande sucesso de público, a “fór-mula” Unida Filmes-Produções Watson Macedo sobreviveu apenas enquanto o gênero carnavalesco se manteve interessante, isto é, até o início dos anos 1960, sendo aos poucos rejeitado pelo novo tipo de espectador que, já por volta de 1954-55, refletia as alterações do comércio exibidor e começava a mudar o perfil social e econômico do público con-sumidor de filmes, ditando novos padrões culturais. Por outro lado, como foi visto, o incremento das salas “independentes” não foi senão ocasional-mente revertido para a produção e a distribuição

de filmes brasileiros, já que seu intuito era atender, prioritariamente, a demanda de companhias norte-americanas como a Warner Bros. e a Allied Artists.

Os independentes e o Estado

Do ponto de vista da produção, a segunda metade da década de 1950 trouxe uma série de transfor-mações tanto para as concepções industrialistas – representadas pelos grandes estúdios paulistas Vera Cruz, Maristela e Multifilmes – quanto no que tange ao discurso sobre a produção independente. O dado principal desse novo período que se abre nos anos 1954-55 é que a partir daquele momento a atividade da produção de filmes passou a contar efetivamente com o financiamento oficial – fosse o da Prefeitura de São Paulo, em 1955, fosse o do Banco do Estado de São Paulo, em 1956.

A chamada Lei do Adicional de Renda do municí-pio de São Paulo e a Carteira de Cinema do Banespa estimularam as produções paulistas logo após a paralisação dos grandes estúdios (Vera Cruz em 1954; Maristela em 1957). Isso teve consequências decisivas para a alteração do modelo tradicional de “produção independente” até então praticado no Rio, isto é, baseado na produção associada e no sistema de cotas. Como foi visto anteriormente, esse esquema tinha como fundamento a iniciativa privada – produtores, artistas, equipe técnica, “ca-pitalistas”, exibidores, distribuidores e donos de estúdios e laboratórios. O Estado entrava apenas como legislador e “disciplinador” do mercado de exibição. Com o início do financiamento oficial em São Paulo, aos poucos a participação dos órgãos públicos passou a substituir a do financiador priva-do, em um longo processo político que culminaria no atrelamento de parte significativa da produção cinematográfica ao Estado logo após a criação, em 1966, do Instituto Nacional do Cinema (INC).

A partir de 1956, quando o Banco do Estado de São Paulo criou a Carteira de Cinema para filmes produzidos ou coproduzidos por empresas se-diadas em São Paulo – inicialmente fixando os empréstimos em um milhão de cruzeiros e, no ano seguinte, ampliando o teto para dois milhões –, verificou-se uma gradual transferência da política cinematográfica do Rio de Janeiro para São Paulo.

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O cinema independente cariOca dOs anOs 1950

Aos poucos, os produtores paulistas passaram a ditar os novos rumos das relações entre o cinema e o Estado – nas Comissões Municipal, Estadual e Federal de Cinema e na liderança dos Grupos de Estudo e Executivo da Indústria Cinematográfica (GEIC e GEICINE) criados durante os governos desenvolvimentistas de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros.

Os produtores independentes cariocas serão fortemente abalados pela total desarticulação do núcleo original hegemônico dos anos 1950. Moacyr Fenelon falece em 1953; Adhemar Gonzaga fecha a Cinédia em 1950 e se muda para São Paulo dois anos depois; Luiz de Barros mantém-se ativo na profissão, mas desarticulado politicamente; Rubens Berardo abandona o cinema e elege-se deputado estadual pelo PTB em 1954; Manoel Jorge aos pou-cos se afasta do campo de batalha para dedicar-se ao funcionalismo público; entidades atuantes como a Associação do Cinema Brasileiro, a Cooperativa Cinematográfica Brasileira, o Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica e a Associação Bra-sileira dos Cronistas Cinematográficos tornam-se inexpressivas agremiações sem maior influência política. Tudo isso ao lado dos traumáticos acon-tecimentos precipitados pelo suicídio de Getúlio Vargas e, mais tarde, pela transferência do centro de decisões do Poder Executivo da antiga Capital Federal para Brasília.

Bem outra era a atmosfera que animava São Paulo, bastando citar o caso do distribuidor-produtor Oswaldo Massaini, dono da Cinedistri. Nesse mesmo período (segunda metade dos anos 1950), a Cinedistri vai aumentar consideravelmente o volume de sua produção. Dirigidas por José Carlos Burle, Eurides Ramos, Watson Macedo, J.B. Tanko, Luiz de Barros e Victor Lima – todos realizadores sediados no Rio de Janeiro –, as co-médias coproduzidas pela Cinedistri apoiavam-se na popularidade de astros como Arrelia, Dercy Gonçalves, Carequinha & Fred, Grande Otelo, Renata Fronzi, Violeta Ferraz, Catalano, Eliana, Zé Trindade, Mazzaropi e Ankito. Enquanto durou, o investimento de Massaini nas chanchadas foi uma opção bastante consciente para a capitalização de sua produtora-distribuidora. Não por acaso, a Cinedistri se tornou, nos anos 1960, uma das

mais bem-sucedidas empresas cinematográficas paulistas, chegando a conquistar a Palma de Ouro de melhor filme no Festival de Cannes, em 1962, com O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962).

Durante a segunda metade dos anos 1950, verifica-se também uma nova disposição em se discutir a figura do “produtor” – não qualquer produtor, mas aquele ideal. Ocorre que esse produtor, no Brasil, é quase inexistente: “A falta de produtores no Bra-sil é um dos lados mais preocupantes do cinema nacional”, afirma o cineasta Flávio Tambellini ao Diário da Noite (São Paulo, 17/03/1955).

A questão poderia também ser colocada de outra forma, como o faz Cavalheiro Lima em O Tempo (São Paulo, 21/12/1954): não existem produtores porque não existe uma indústria, donde se conclui que o Estado deveria intervir nessa conjuntura desfavorável. Cavalheiro Lima receita o “remédio adequado”, que curou as indústrias cinematográ-ficas americana e europeia: “a criação do crédito cinematográfico, no Banco do Brasil, através da constituição de uma subgerência para financia-mento de filmes”.

Se o Estado deve se ocupar com o financiamento, o que resta para o produtor? O jovem Nelson Pereira dos Santos, que em 1957 realizava Rio, zona norte, vai oferecer um novo ponto de vista sobre a questão:

A parte do governo é de ordem prática, e consiste particularmente em resolver o problema da matéria-prima controlada pelo mercado negro, e medidas de fiscalização do mercado exibidor, para aumentar o lucro dos produtores. Quanto ao outro problema, de índole artística, cabe aos produtores: o autor de uma história deve ser o produtor e o diretor do seu filme, pois só numa indústria que chegou à perfeição essas três pes-soas podem ser distintas. Reunidas as funções numa só pessoa, ela, pelo menos, pode fazer o que idealizou.

Eis aqui a nova palavra-chave: “autor”. O verda-deiro produtor, para Nelson Pereira dos Santos, deveria ser também o “autor” do filme, pois é este o perfil ideal daquele que trabalha em uma situação “não-industrial”. Em entrevista conce-dida aos jovens Cláudio Mello e Souza e Joaquim Pedro de Andrade (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,

Graças à popularidade

de astros como Grande Otelo,

a produtora Cinedistri,

de Oswaldo Massaini, se tornou uma

das mais bem-sucedidas de

São Paulo. Mais tarde ganharia

a Palma de Ouro em Cannes com O pagador

de promessas (1962). Correio

da Manhã

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cine Rio de JaneiRo, capital do cinema

01/11/1959), o cineasta vai afirmar que, em países onde não há uma indústria de cinema (é o caso do Brasil), a “autoria” é uma contingência ditada pela ausência de verdadeiros produtores. Contudo, essa contingência também é desejada, também se configura como uma opção, pois ela ao menos pode garantir a liberdade de criação, eventualmente com bons resultados. Daí o conceito de “autor” acabar suplantando, necessariamente, a figura do “produtor”. Sendo o principal compromisso ideológico desse novo “diretor-produtor-autor” a realização de um cinema de transformação social e cultural – “O importante é dizer alguma coisa digna do homem e urge dizer essa alguma coisa no Brasil”, afirma Nelson Pereira na entrevista de 1959 –, não é na iniciativa privada ou no mercado cinematográfico que serão obtidas as condições ideais para financiamento e continuidade da pro-dução cinematográfica, e sim junto ao Estado, que teria o dever de abraçar o cinema como fato cultural e artístico.

A noção de “cinema de autor” é, portanto, o dado ideológico realmente novo surgido na segunda metade dos anos 1950, e será nele que se baseará o discurso dos cinemanovistas a partir da década de 1960. O debate em torno da produção indepen-dente ganhará, por meio da questão do “autor”, um novo impulso. É necessário compreender, contudo, o quanto esse impulso corresponde a uma con-juntura inteiramente diversa da que se verifica no Rio de Janeiro entre os anos 1948-55. A primeira metade da década de 1950, embora marcada pela intervenção legisladora do Estado, caracterizou-se por uma atividade de caráter eminentemente priva-

2 Referências bibliográficas: GALVÃO, Maria Rita. O desen-volvimento das ideias sobre cinema independente. Cadernos da Cinemateca: 30 anos de cinema paulista, 1950-1980, Cinemateca Brasileira, São Paulo, n. 4, p. 13-23, 1980; ______; e SOUZA, Carlos Roberto. Cinema brasileiro: 1930/1960. In: COSTA, João Bérnard da (Org.). Cinema brasileiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian/Cinemateca Portuguesa, 1987; GONZAGA, Alice. Palácios e poeiras: 100 anos de cinemas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Record/Funarte, 1996; MELO, Luís Alberto Rocha. “Cinema independente”: produção, distribuição e exibição no Rio de Janeiro (1948-1954). Tese (Doutorado em Comunicação) – Uni-versidade Federal Fluminense, Niterói, 2011; SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo: Annablume/Fapesp, 1996; SOUZA, José Inácio de Melo. Congressos, patriotas e ilusões: subsídios para uma história dos congressos de cinema. São Paulo, 1981 (datil.).

do, baseada em esquemas associativos e em cotas de participação. O surgimento dos financiamentos oficiais diretos e, com isso, o fortalecimento do protagonismo do Estado, a partir de 1955, inaugu-rará um novo patamar nas relações entre o cinema brasileiro e as instâncias de poder, desarticulando os antigos sistemas de produção independente e eclipsando a figura do produtor no discurso do “cinema de autor”.2

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1 GOMES, Renata Vellozo. Cotidiano e cultura: as imagens do Rio de Janeiro nos cinejornais da Agência Nacional nos anos 50. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007. Orientação Prof. Dr. Rogério Medeiros.

De todo o acervo de cinejornais da Agência Na-cional, cuja tarefa era cobrir assuntos da agenda de governantes no nosso país, podemos encontrar algumas relíquias entre ângulos e temas curiosos de acontecimentos ocorridos na cidade do Rio de Janeiro. São momentos onde o cidadão comum tem destaque e a paisagem da cidade atua mais do que um cenário, e sim como uma personagem participativa do filme.

De forma breve e informativa gostaria de situar o leitor em dois pontos essenciais para a com-preensão da leitura deste artigo. Primeiramente é explicar o que é cinejornal. Um cinejornal pode ser entendido como um filme jornalístico de curtíssima duração veiculado nas sessões de cinema antes dos filmes de longa metragem. Agrega em pouco tempo notícias sobre cultura, notas esportivas, ofi-ciais e, às vezes, acontecimentos inesperados. São documentos visuais que divulgam fatos variados. As exceções são os cinejornais de tema único, que tomavam o tempo de um cinejornal tradicional, como por exemplo, uma parada militar, que con-templava quase todas as sequências do desfile, ou então aqueles destinados exclusivamente para a cobertura dos campeonatos de futebol. Outras denominações para cinejornal são: Cine Atualida-des, Jornal da Tela, Jornal Cinematográfico, Filme Periódico ou Semanal. Tinha início com o emblema da produtora seguido do título da reportagem a ser assistida. Algumas vezes, no canto da imagem, um nome de destaque de um cinegrafista ou de um narrador. A edição era narrada por vozes marcantes e o fundo musical era sempre instrumental, varian-

do o tema de acordo com o assunto apresentado. O cinejornal era bastante popular, visto que dava a oportunidade das pessoas verem imagens em movimento de acontecimentos recentes que eram reportados no rádio ou na mídia impressa, quando muitas famílias brasileiras ainda não tinham televi-são em casa. Hoje, esta mídia está extinta: “nasceu” e “morreu” no século XX.

Em segundo lugar, apresentá-los à Agência Nacio-nal, que foi a agência oficial de notícias do governo brasileiro, cuja atuação como empresa pública de comunicação se estendeu por mais de três décadas. Foi instituída em 1946 e extinta em 1979 suceden-do órgãos de função similar e sendo substituída por outros. Compreendeu diferentes mandatos presidenciais e particularmente um período histó-rico de empreendimentos pela modernização do Brasil. Nas suas origens, o papel fundamental de um órgão dessa natureza é estudar a utilização do cinematógrafo, a radiodifusão e demais processos técnicos e meios que servissem como instrumento de difusão. Além dos cinejornais, uma agência de notícias do governo tem como atribuições distri-buir à imprensa o noticiário e o material fotográfico de eventos ligados ao governo e fazer a publicidade dos órgãos governamentais.

Em uma pesquisa1 realizada na última década, procurou-se descobrir o que as imagens de cinejor-nais da Agência Nacional poderiam oferecer além de mostrar os compromissos dos governantes do Brasil. E, de fato, tivemos a evidência de que o acervo dessas imagens compõe um material rico

Mestre e doutoranda em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora de Artes Visuais, pesquisa sobre os cinejornais e a moda no Rio de Janeiro.

Renata Vellozo Gomes

As imagens de cinejornais da Agência Nacional – um passeio pelos anos 1950

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Alunos do Colégio Pedro II na volta às aulas cercam o guarda de trânsito. Agência Nacional

Flagrantes do cotidiano de uma cidade: a praia de Ipanema

em um dia de verão em 1952. Agência Nacional

Cerimônia de abertura dos Jogos Infantis de 1951 no estádio do Fluminense, com desfile das delegações de pequenos atletas. Agência Nacional

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As imAgens de cinejornAis dA AgênciA nAcionAl

se trata do trecho entre as praias do Arpoador e de Ipanema ao vermos alguns edifícios na orla e atrás as montanhas do maciço da Tijuca. Depois o filme se encaminha para o cotidiano dos estudantes e elege o centro da cidade, na instituição Colégio Pedro II, como o exemplo de estabelecimento de ensino que retoma as suas atividades após o recesso escolar. Temos então o flagrante dos jovens que atravessam as ruas do centro em direção à escola e a figura ilustre do guarda de trânsito que opera o semáforo para que os estudantes cruzem a rua em segurança. A farra da garotada é inevitável. Interessante é também observar os uniformes dos meninos e das meninas, os carros ao longe, o bonde passando e a cadeia de edifícios de mesma altura, assim como as árvores ainda de pequena estatura, se as compararmos com as dos nossos dias, crescidas e grandiosas. O filme termina com

que oferece fatos da cultura e do cotidiano dos habitantes do Rio de Janeiro, tendo em vista que essa cidade foi capital federal durante muitos anos. Quero compartilhar com os leitores algumas dessas descobertas ao observarmos essas imagens que falam por si mesmas. Como metodologia, vamos analisar alguns quadros (frames) que compõem o filme de cinejornal. Para isso, proponho fazermos uma viagem à década de 1950!

Iniciaremos com o Cinejornal Informativo vol. 3, no 6 “Ano novo! Vida nova!”. Este trata do início do ano letivo nas escolas da cidade e fala com um tom de despedida da temporada de férias de verão. Apresenta boas panorâmicas da praia de Ipanema e um trechinho do Arpoador. O filme flagra as pessoas à beira-mar e o cenário belíssimo de um dia tranquilo de sol e lazer. Podemos concluir que

Multidão acompanha o cortejo de

despedida da cantora Carmem

Miranda em 1955. Correio da

Manhã

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algumas tomadas de dentro do colégio, com rápidas passagens em algumas salas de aula, as respectivas classes e a arquitetura interna do histórico edifício da unidade Centro do tradicional colégio carioca.

Falando ainda sobre crianças, gostaria de destacar o Cinejornal Informativo vol. 2, no 21 “Jogos Infantis – Solene abertura no Estádio do Flumi-nense”, onde podemos observar a movimentação infantil em um dia que marca o início de atividades esportivas e recreativas que tiveram o campo do Fluminense como palco dessas demonstrações. Há todo um protocolo que é cumprido, com um desfile das delegações, o juramento dos atletas e a entrada da bandeira representativa dos jogos. As arquibancadas estão cheias de espectadores. É um dia nublado, que venta muito, inclusive no mo-mento do juramento o papel lido pelo atleta-mirim representante quase voa de suas mãos. Na imagem escolhida temos a formação dos estudantes no campo, ao fundo o morro que compõe a paisagem, e podemos até especular que se trata do mirante Dona Marta. Podemos arriscar um palpite: não es-tariam os jovens e as crianças formando a imagem do mapa do Brasil no gramado? Bonito, não é?

Outro cinejornal que chama muita atenção é o que mostra a ousadia dos alemães acrobatas e também a coragem de um cinegrafista da Agência Nacional que aceitou participar de seus números, resultando em interessantes imagens de panoramas do centro da cidade: é o Cinejornal Informativo vol. 2, no 24 “Equilibristas no Castelo”. Estamos na região conhecida como Esplanada do Castelo, que foi urbanizada depois do desmonte do morro do Castelo e viria a abrigar edifícios de ministérios do governo. Um grupo de acrobatas alemães se prepara para se apresentar à audiência ali presente e cumpre a tarefa ao percorrer com um cabo de aço a distância entre os altos prédios. Como se não bastasse a “loucura” de tal ato, um cinegrafis-ta da agência também se transforma em acrobata e, com toda segurança, se prende ao cinto que o levará às alturas. Os dois alemães estão do lado esquerdo, vestidos de branco, fazendo os últimos ajustes no equipamento. O nosso bravo cinegrafista sobe levado por uma espécie de motocicleta que percorre o cabo de aço com uma roda especial. Algumas cenas são obtidas por cinegrafistas que

estão em solo firme e outras por um profissional que estaria no ponto de chegada do cabo de aço em um dos edifícios. De lá é que temos as imagens da evolução dos artistas do ar, que ousam desafiar a gravidade e que não medem esforços em nos surpreender. As sequências são impressionantes. Curioso também é perceber a aglomeração de au-tomóveis estacionados no local. O filme não nos dá uma informação precisa de que dia da semana essa apresentação aconteceu, parecendo ser um dia útil, a julgarmos pelo número de pessoas ali presentes e que tinham o hábito de estacionar no local por ser amplo e desimpedido. Vejamos o desenvolvimento da ação dos acrobatas, que inserem no espetáculo objetos como escadas e outros cabos quase im-perceptíveis para que eles se pendurem no ar. Na imagem escolhida podemos reconhecer o amplo espaço tomado por carros e ao fundo os prédios que compõem parte do centro da cidade. Arrisco dizer que a baía de Guanabara se faz presente no fundo da imagem, assim como a cidade de Niterói. Um passatempo agradável seria descobrir que edi-fícios são esses que podem ser vistos, especular se ainda se encontram nesses locais e imaginar o que viria a ser construído posteriormente no amplo espaço tomado pelos carros. Os alemães tornam-se apenas alguns elementos brancos no todo da imagem e desafiam nossa convicção de que estão realmente pendurados no ar. Esse trecho do filme é quase surrealista, parece que os personagens foram adicionados por meio de recursos computacionais: o claro e escuro (acrobatas/fundo da imagem) contrastam demasiadamente. Por fim, as imagens são um deleite, atos de diversão e coragem em um cenário tão sério como a esplanada do Castelo.

Em 1957, a diretora do Museu de Arte Moderna (MAM) visita as obras de construção da nova sede no Aterro do Flamengo. A Agência Nacional tem um registro fílmico desse dia onde podem ser vistas as estruturas do novo prédio e a urbanização do entorno. Vale a pena dizer que antigamente o MAM tinha sede nos pilotis do Palácio Gustavo Capane-ma, sede do Ministério da Educação e Cultura. A Agência Nacional também tem um cinejornal que conta a inauguração do museu, assim como de al-guns salões de Arte Moderna que aconteceram ali! No curtíssimo e sem som Cinejornal Informativo no 11/57 “Diretora do Museu de Arte Moderna,

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Niomar Bittencourt, visita obras de construção da sede no Aterro do Flamengo”, temos um aperitivo do que viria a ser anos mais tarde um templo para as artes moderna e contemporânea do país. “São Paulo, já teria então protagonizado a produção de edições da Bienal, estimulando assim a capital da República atualizar-se nas instâncias culturais.”2 O MAM, instituição de referência para aqueles que estavam empenhados em estudar e se dedicar às correntes artísticas de vanguarda, se firmaria como um programa cultural e turístico da cidade, com-pletando a criação do Parque do Flamengo, obtido com o aterro daquela região, que tinha o mar ba-nhando os pés do Outeiro da Glória. Nessa direção, refletimos que mais de sessenta anos depois temos o Museu de Arte do Rio (MAR), inaugurado no ad-vento da reurbanização do porto do Rio de Janeiro, consagrando o papel de um equipamento cultural de suma importância para a cidade e marcando as artes visuais em um território a ser reconquistado pelos cariocas. Na imagem, a estrutura do MAM, o Pão de Açúcar e o Morro da Urca ao fundo. Documen-tada também está a histórica placa de informação da espécie de obra, com o nome da construtora e demais informações que, infelizmente, não podem ser apuradas pela distância do texto.

A inesperada morte de Carmem Miranda causou extrema comoção. A chegada e a passagem do caixão contendo o corpo da cantora mobilizaram a cidade inteira. As imagens da aglomeração de pes-soas no Cinejornal Informativo no 34/55 “Carmen Miranda. A cidade do Rio de Janeiro presta às últi-mas homenagens à sua cantora” são comparáveis a uma aglomeração atenta ao caminho percorrido pelo papamóvel na visita do Papa Francisco ao Rio (julho de 2013) ou até mesmo à quantidade de pessoas que segue o bloco de carnaval Cordão da Bola Preta, que cresce a cada ano. Pessoas vão até a base aérea do Galeão para ver a chegada do avião que traz o corpo da cantora, outros se equilibram nas marquises dos prédios e há aqueles que ainda sobem em árvores: tudo foi atentamente registrado por esse cinejornal. O velório aconteceu no Palácio Pedro Ernesto. A Cinelândia tomada de

gente por todos os lados incorporava a expressão de luto e tristeza por uma figura tão grandiosa para os brasileiros. Cenas de choro, de profundo pesar e inconformidade, e os clássicos lenços brancos que são abanados o tempo inteiro. O tom da nar-ração, o fundo musical, a edição primorosa fazem desse arquivo cinejornalístico uma verdadeira joia documental. Já em outro momento, uma diferente aglomeração de pessoas se faz na comemoração da conquista do campeonato mundial de futebol, a Copa de 1958. Os cariocas recebem os campeões do mundo em clima de total alegria e conquistam os espaços da cidade na medida em que o carro de bombeiros passa nas ruas do centro da cidade transportando os atletas, que são saudados todo o tempo. Tudo tem palco na avenida Rio Branco, principalmente, e culmina no Palácio do Catete, onde os jogadores campeões são recebidos pelo presidente Juscelino Kubitschek. Essa feliz re-cepção está contida no Cinejornal Informativo no 6/58 “Brasil campeão do mundo. Homenagens espetaculares aos jogadores brasileiros”.

Continuaremos passeando entre tantos momentos interessantes da nossa cidade, como a chegada dos cinco jangadeiros do Nordeste à praia de Copacaba-na, quando vieram reivindicar ao presidente melho-res condições para os pescadores da região. Um ato tão corajoso, vir de jangada de tão longe, mobilizou a nação e obteve apoio da imprensa nacional.3 A chegada foi emocionante, com os pescadores sendo recebidos por uma multidão de cariocas na praia de Copacabana, que mesmo em um dia chuvoso não poupou homenagens a esses destemidos homens de bem. A praia repleta de guarda-chuvas que se movem acompanhando os passos dos jangadeiros na areia, cercados pela imprensa e por pessoas ilus-tres. Interessante nesse cinejornal é poder reparar na arquitetura da avenida Atlântica, com muitos prédios ainda em fase de construção ou com edifi-cações que talvez não existam mais.

Interessante também é poder acompanhar os eventos sociais da capital federal, como as elegan-tes tardes com desfiles de moda que aconteciam

2 Ibidem, p. 176.3 NEVES, Berenice Abreu de Castro. Os jangadeiros de Vargas: reflexões acerca das viagens reivindicatórias de jangadeiros cearenses. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, jul. 2011.

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no Copacabana Palace, patrocinados pelas senho-ras da sociedade ou por esposas de governantes e presidentes. Eventos que tinham como foco arrecadar fundos para instituições de caridade, serviços de chá seguidos de desfiles, mostrando as últimas tendências da moda, que eu carinhosa-mente denomino de fase “Pré-Fashion Rio”. Os salões do Copa repletos de pessoas, os figurinos que correm a estreita e alta passarela, o “baile” dos garçons frenéticos a todo momento. Assim como o cinejornal que flagra as candidatas ao Concurso de Miss Brasil de 1956, misses de todos os estados brasileiros em uma visita ao Palácio do Catete. Lugar onde também são recebidos astros de Hollywood, os melhores cantores do rádio e a estrela Marlene Dietrich. Tudo isso em eficientes edições cinejornalísticas! Outra curiosidade: em um cinejornal acompanhamos a formatura do curso de corte e costura na sede da Central do Brasil, quando

na ocasião, no momento de receber o diploma, o marido ou pai da formanda recebia o canudo das mãos dos mestres, que só então era entregue à discípula. Eram outros tempos!

Ao final deste artigo deixo um convite ao leitor para visitar o Arquivo Nacional e conhecer e se deleitar com as imagens preciosas do acervo dos cinejornais da Agência Nacional. Lembro que es-ses filmes fazem parte de um arquivo público, do patrimônio da memória de todos os brasileiros, e são arquivos audiovisuais que nos ajudam a com-preender melhor a trajetória política e cultural de nosso país. Finalmente, quero louvar o trabalho de todos4 os participantes que dedicaram sua vida ao empreendimento do cinejornalismo. Sem a de-dicação dessas pessoas, não teríamos o prazer de ver esses cinejornais passados mais de cinquenta anos de sua criação.

A seleção brasileira campeã da Copa do Mundo de 1958 desfila no carro dos bombeiros pelas ruas da cidade. Correio da Manhã

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4 GOMES, Renata Vellozo, op. cit., anexo I – Análise dos livros de ponto da Seção de Cinema da Agência Nacional dos anos 50.

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Maria Bethânia, Hugo Carvana, Ana Maria Magalhães, Chico Buarque, Nara Leão e Antônio Pitanga se divertem em Quando o carnaval chegar (1972), de Cacá Diegues. Correio da Manhã

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O primeiro texto a seguir é a apresentação que abre a biografia de Hugo Carvana, Adorável vagabundo, que publiquei em 2005, pela Relume Dumará. O prazer de ouvir as histórias contadas por ele, as conversas com os amigos, os filhos, com Martha Alencar, sua mulher, com os colegas e companhei-ros, só não foi maior que a possibilidade de ser sua amiga e poder conviver com pessoa tão rica e pro-fissional tão competente. Para contar um pedaço da história de Carvana, da sua maneira de ser, das suas realizações, enfim, desse universo “carvania-no” que é puro Brasil, selecionei trechos do livro, que vêm a seguir. São “fragmentos” retirados da biografia que falam da formação de Carvana como ator e diretor, mas retratam também a cena cultural brasileira daqueles tempos.

São muitos os fragmentos de paisagens que talha-ram a personalidade de Hugo Carvana. Suburbano que incorporou a Zona Sul, figura escandalosamen-te carioca, ator brasileiro, chanchada no coração e Cinema Novo na cabeça, Carvana tem tanto do Brasil que sua trajetória se confunde com a história cultural recente do país. Ele entrou na cena artística em um dos momentos mais criativos e férteis da cultura brasileira e formou-se dentro de um cal-deirão cultural que misturava tradição e vanguarda, censura e militância, desbunde e criatividade.

Viveu um período excepcional. Ingressou na te-levisão quando ela engatinhava, e sua formação passa pelo Teatro Nacional de Comédia, o teatro engajado do Arena e do Opinião, o cinema popular

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ã Jornalista, escritora, roteirista e professora universitária. Autora da biografia de Hugo Carvana, Adorável vagabundo (Relume

Dumará, Prefeitura do Rio, 2005).Regina Zappa

Adorável Carvana

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e o Cinema Novo, as novelas da TV, até chegar a um jeito muito próprio de fazer filmes. Vivenciou um forte entrosamento entre as expressões artísticas do seu tempo, e moldou-se dentro de uma eferves-cência intelectual e política (do final dos anos 1950 ao final dos anos 1970), que atravessou a ditadura militar e permitiu que teatro, cinema, música, lite-ratura e artes plásticas dialogassem como nunca.

Atuou em mais de oitenta filmes, dirigiu nove. Fez oito peças de teatro, vinte novelas, oito minisséries e seriados. Viveu o desespero, a falta de perspectiva, a censura e as metáforas que o levaram à busca do sonho nas drogas e no álcool.

Na memória, ele leva muitas paisagens. Do garoto que divertia a família fazendo palhaçadas, da vida gregária, das loucuras, das realizações. Dos teatros-follies, das figurações no cinema, dos caóticos estúdios de TV ao vivo, do teatro de resistência, da boate Arpège. Do tempo em que nos bares todo dia se criava um Brasil novo. Da esperança e das trevas. Do Teatro Duse, da Boate Plaza, do Beco da Fome, do Zicartola. De Vinicius, Leon, Elis, Glauber, Vianinha. Do orgulho de fazer parte de uma geração que lutou pela liberdade. “E, funda-mental, do autoimposto mandamento de viver a vida com muito humor e prazer.”

Fragmentos do livro Adorável vagabundo

O irresistível cheiro de cola

Quando pisou pela primeira vez na TV Tupi, em 1955, para fazer um teste para figurante, Carvana ficou deslumbrado com aquele ambiente nervoso e neurótico, a confusão, o caos, e decidiu: “Aqui é meu lugar”. Ele nunca tinha pensado em ser

ator. Tinha 17 anos, trabalhava como escriturário numa firma de sabonetes e dentifrícios quando foi levado pelo amigo e vizinho tijucano Joel Barcelos para fazer um teste na TV Tupi. Carvana ficou completamente fascinado pela alta incidência de adrenalina que movia aquelas pessoas. A televisão engatinhava. Joel arrastou o amigo, que nem sabia o que significava fazer figuração. “É um troço que a gente vai lá, bate palma e ganha dinheiro.” Carvana não teve dúvida: “Oba, é comigo mesmo!”

Nesse dia fatídico em que ele entrou no estúdio da TV Tupi, sua alma foi capturada para sempre. Ele sentiu o cheiro da cola que escorria do cená-rio, tropeçou nos cabos espalhados pelo chão e sua cabeça rodou em meio a refletores, luzes e microfones. Uma agitação geral. Era pura mágica, excitação. Não demorou muito para ele se conven-cer de que estava em casa e de lá nunca mais sairia. “Foi o momento em que encontrei a minha vida, o meu caminho, quando descobri que era ator. Foi inesperadamente. É o momento mais forte na minha memória.”

De ponta em ponta

Carvana conseguiu um papel como figurante e debutava no cinema com Trabalhou bem, Genival. Perguntaram a ele se tinha um smoking e, diante da negativa, arrumaram um para ele fazer uma ponta, o papel de um cidadão que tocava violão numa festa.

Pouco depois, recebeu um telefonema de Ismar Porto (assistente de direção de um diretor de chan-chadas chamado Watson Macedo, que fazia filmes no Brasil Vita Filmes): o Macedo ia começar a rodar um filme. Fez o primeiro com ele, que se chamava Depois eu conto. A partir daí, sempre que havia um

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filme de Macedo, Carvana era chamado por Ismar Porto. Começou a filmar continuamente com Macedo, no estúdio da Brasil Vita Filmes, fundado por Carmem Santos nos anos 1930, com o nome de Vox Filme. O estúdio passou a se chamar Brasil Vita pouco depois e foi palco para filmagens de diretores como Humberto Mauro, Lulu de Barros e Watson Macedo. Em 1959, foi comprado pelo produtor Herbert Richers, que realizou ali comé-dias dirigidas por especialistas como Victor Lima e J. B. Tanko e instalou seus estúdios de dublagem.

[...]

Nesse processo de fazer figuração, Carvana passou a habitar o universo do cinema, convivendo com gente famosa, mitos da época como Grande Otelo, Anselmo Duarte, José Lewgoy, Wilson Grey. A televisão estava nos seus primórdios, não havia

ainda mitos de TV, só do cinema. Essa convivência foi despertando em Carvana o desejo de ser ator. “Uma coisa foi me tomando sem eu perceber, sem eu desejar, sem ser premeditado. No meu tempo, ser ator era uma coisa que surgia, era um somatório de sentimentos internos que jorravam isso.”

De figuração em figuração, Carvana foi se apaixo-nando definitivamente pelo ofício de ator. Até que, novamente, Joel Barcelos falou a Carvana sobre o Teatro do Estudante, o Teatro Duse, dirigido por Paschoal Carlos Magno, que abria inscrições para teste. Na época, era a única escola importante de teatro que existia no Rio. O equivalente ao que seria hoje o Teatro Tablado, criado por Maria Clara Ma-chado, embora hoje também existam muitas outras. Inscreveu-se e passou no teste. Os candidatos eram examinados por uma banca e tinham que recitar um poema épico ou romântico. Havia também

Hugo Carvana com Wilson Grey e José Lewgoy em Quando o

carnaval chegar (1972), de Cacá

Diegues. Correio da Manhã

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um teste de improvisações. Carvana escolheu Camões e recitou Os Lusíadas. Em seguida, Olavo Bilac (“parnasiano que sou, recitei Ora direis, ouvir estrelas”). Mas foi o teste de improvisação o que mais impressionou a banca. Carvana soube disso anos mais tarde, quando o ator e diretor de teatro José Maria Monteiro, na época diretor da banca, revelou a ele que sua nota fora excelente por causa da improvisação. Na banca examinadora estava também Nina Raveski, segundo Carvana, a melhor professora de teatro, que deu as melhores aulas de improvisação que ele teve na vida. Ela ensinava pelo método de interpretação de Stanilavski.

Passou no teste e começou a frequentar a escola de teatro. Em casa, porém, as notícias do progresso na vida artística não eram tão bem recebidas. A mãe não gostou. Não tinha criado filho para ser viado. Carvana teve que ouvir isso quando comunicou em casa que queria ser ator. A crítica da mãe vinha acompanhada do corte da mesada. A partir dali não tinha mais grana. Só casa e comida, e olhe lá. O salário de escriturário era uma mixaria, mas a empresa era americana e tinha o pomposo nome de Sidney Ross Company – fabricante da Kolynos, leite de magnésia de Phillips, Melhoral –, multi-nacional e grande patrocinadora dos programas radiofônicos na grande época do rádio. Trocar essa seriedade toda por uma vida na flauta? Essa, não! “Vai trabalhar, vagabundo!”

[...]

Começaram novamente, então, os convites para fazer figuração em chanchada. Assim, ele levantava um dinheirinho e dava para ir levando. Começou também a aparecer convite para fazer show na noite, em palco de boate. Eram miniespetáculos de teatro de revista, com oito ou dez pessoas no palco, no máximo. Muitos na Boate Plaza, no Hotel Serrador, no teatro onde é hoje o Brigitte Blair. Era a época dos chamados teatros-follies de Copacabana, pequenos teatros, de cento e poucos lugares, que apresentavam shows e espetáculos teatrais. Isso era por volta de 1955-56.

Naquela época, a Cinelândia, no centro da cidade, era o point dos artistas e técnicos de cinema e teatro desempregados – atores, maquinistas, eletricistas,

maquiadores, iluminadores. Por ali passavam dire-tores e produtores arregimentando atores e equipe para filmes e peças. Carvana fazia ponto lá e tinha muitos amigos. Da mesma forma que os músicos buscavam trabalho nas escadarias do Teatro João Caetano, onde se encontravam à noite para trocar ideias e aguardar um chamado, o pessoal do cinema e do teatro saía em busca de trabalho na Cinelândia, local em que ficavam os cinemas.

Uma noite, na esquina da Spaghettilândia, que ficava no Beco da Fome, na Cinelândia, Al Ghil – o Alcebíades, ator e produtor de cinema, às vezes bem na vida, às vezes mal, grande amigo da turma de Wilson Grey – passou por lá e levou Carvana para o primeiro filme em que teria uma fala. Jun-tos, iam atuar em Contrabando, do diretor espanhol Eduardo Lhorente, e cujo ator principal era Glauco Carneiro. Desta vez, nada de figuração! Então, no seu primeiro papel consistente no cinema, coube a Carvana a determinante, original e notável frase: “Siga aquele carro”.

No reino da chanchada

As chanchadas dos anos 1950 e 1960 abriram as portas da carreira artística para Carvana. Uma mis-tura de comédia e musical, apimentada com uma boa dose de sensualidade, as chanchadas serviram de laboratório para a formação do seu estilo de re-presentação leve e informal. Dos 82 filmes em que atuou, pelo menos 30 eram chanchadas. “A chan-chada me deu o lúdico. Ela me deu a brincadeira, a irreverência, a musicalidade.” No teatro, Carvana escolheu fazer um trabalho mais racional e político, mas quando, mais tarde, foi dirigir cinema, levou para seus filmes muitos elementos da chanchada.

Não por acaso, posteriormente, Carvana foi buscar na chanchada a inspiração para fazer seu Apolônio Brasil, campeão da alegria, que presta homenagem às suas origens. “Conheci vários artistas como o Apolônio e queria muito contar essa história.” Entre pontas e papéis nas chanchadas – só naquele ano de 1957 ele fez Tudo é música, Tem boi na linha, Rio fantasia, Rico ri à toa, Metido a bacana, Baronesa transviada, Ga-rotas e samba –, Carvana recebeu um convite do rei do mambembe, o comediante Milton Carneiro, que formava todo ano um grupo teatral e mambembava

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pelo Brasil. Montava duas peças e saía viajando com a trupe durante meses. Milton estava montando elenco e alguém o apresentou a Carvana, que foi logo contratado. A partir daí, começou, de fato, sua carreira de ator, ganhando até salário.

O engajamento

No final dos anos 1950, Carvana ingressou no Arena, o teatro engajado do momento no Brasil. O mesmo que se fazia, na época, na Europa. Com as raízes fincadas em São Paulo, o Arena queria trazer sua vanguarda teatral para o Rio. Pretendia criar no Rio um núcleo carioca da experiência paulista.

Carvana lembra, fascinado: “Depois de Nelson Rodrigues, foi a grande revolução no teatro bra-sileiro. Nelson era cronista da alma humana, com todas as suas perversidades e deformidades, mas o Arena injetava política na dramaturgia brasileira”.

O Arena tornara-se uma verdadeira coqueluche em São Paulo. Naquele tempo, em geral, as companhias de teatro existentes juntavam duas ou três estrelas para fazer temporada de cinco ou seis meses. De-pois, cada um seguia para seu canto e o grupo se desfazia. O Arena, não. Era um grupo de teatro em que seus integrantes tinham afinidades culturais e ideológicas e apostavam num trabalho contínuo. Consolidou-se com a proposta nova de investir na dramaturgia brasileira. Fundado em São Paulo, em 1953, entregou-se à missão de nacionalizar o palco brasileiro, que ganhou força a partir da estreia de Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1958. Era a primeira vez que um personagem operário aparecia num palco brasileiro. O espírito da mudança germinava na produção artística bra-sileira, inspirado no engajamento político.

Pouco depois do Arena, outro grupo em São Pau-lo seguia a trilha da vanguarda e da brasilidade: o Oficina, dirigido por José Celso Martinez Corrêa, que passou meteoricamente pelo Arena, deixando claras as diferenças radicais entre os dois grupos.

[...]

O teatro brasileiro começava a conhecer um es-plendor que mais tarde seria sufocado pela censura

e pela repressão. Era final dos anos 1950, início da década de 1960. Vivia-se um dos momentos mais criativos da cultura brasileira. Os paulistas tinham criado o Teatro Brasileiro de Comédia, o Arena e o Oficina, fortalecendo a cena teatral. E o Rio, caixa de ressonância da cultura do país, escolhia a música, a literatura e o cinema e ainda era a capital federal. Juscelino Kubitschek governava sobre a efervescência da cidade. “Era uma loucura, uma loucura!”, lembra Carvana.

[...]

Carvana despertou para algo novo. Revelou-se para ele, no Arena, a “função social da arte”, e ele aprendeu que arte era muito mais importante do que simples entretenimento. Descobriu que havia um modo de representar brasileiro.

“Entendi que eu devia recriar o homem brasileiro e abrir mão daquela visão anterior elitizada, aris-tocratizada. A transformação para o ator era ini-maginável. Até então, as peças montadas no Brasil eram os clássicos, os autores gregos. O TBC havia trazido os diretores europeus. Era um trabalho importantíssimo, mas o estilo de representação era europeu. Para mim, o Teatro de Arena de São Paulo foi um salto qualitativo na vida.”

[...]

Wilson Grey, um dos ídolos

do cinema brasileiro da

década de 50 e grande fonte

de inspiração para Hugo

Carvana seguir na carreira de

ator. Correio da Manhã

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Numa época em que não havia televisão, os grandes cantores se exibiam nos filmes, e as chanchadas ser-viam de plataforma de lançamento para as músicas de carnaval. Os ídolos populares eram os ídolos do cinema. A chanchada foi a primeira respiração de vida para Carvana e, com ela, a música se instalou definitivamente em seu coração. Os elementos da chanchada seriam retomados mais tarde, quando começou a dirigir seus próprios filmes.

Mas, a partir dos anos 1950, a cena cultural mu-dava de feição. Percorrendo o final dos anos 1950 e o início da década de 1960, a paisagem era das mais férteis. Fervilhava o Rio e também a cultura brasileira. Em 1958, surgia a bossa nova, um mo-vimento musical desconcertante e inovador que ganhou força nos anos 1960 e tinha como prin-cipais representantes João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Tudo se movimentava com vigor e originalidade. A conscientização política e o desejo de transformação buliam com as artes e os artistas. Embora sem uma marca política visível, a bossa nova agitava a música. O teatro revolucionava a cena artística no Rio e em São Paulo. E, por fim, o cinema começava também a desenhar sua nova cara. E Carvana, bebendo dessas águas.

Desse panorama, um grupo de jovens universitá-rios, apaixonados por cinema, movimentava-se no cenário cultural em ebulição. Atentos às mudanças de comportamento e de mentalidade da época, eles fundaram cineclubes em que discutiam os destinos do país e descobriam uma nova estética cinematográfica. Entre esses jovens, e nos cineclu-bes que criaram, foi lançada a semente do Cinema Novo. E com ela, como se observou mais tarde, a missão de criar uma arte transformadora no país. Ficou estabelecido então, à medida que o Cinema Novo se desenvolvia, que uma de suas tarefas era destruir a chanchada. “Era a maneira que viam de se impor e contestar o poder existente do cinema.” E foi o que conseguiram, não sem arrependimento, revelado tardiamente por Carvana.

A chanchada revista

“A chanchada tinha consolidado um estilo. Não entendíamos, naquele momento, que cinema é uma arte eminentemente popular. Por isso, o Cinema

Novo interrompeu esse caminho que o Brasil tri-lhava de forma original. Como nosso discurso era estruturado e éramos consistentes no que faláva-mos, a mídia nos recebeu de braços abertos e a re-percussão foi enorme. Achávamos que a chanchada não traduzia o homem brasileiro. Então, embarquei nessa canoa e fechei a porta do passado.”

Carvana se referia ao passado, recente então, de mais de trinta chanchadas que havia feito antes de se engajar no Cinema Novo.

“Eu não posso dizer que uma escola é mais impor-tante que a outra, são complementares. Como ator, fiz um trabalho racional, político. Mas quando fui ser diretor, fiz filmes ligados à chanchada”, diria ele, tempos depois, em uma entrevista.

Não só ele, mas o próprio Glauber Rocha repensou a questão. Foi durante a filmagem de O leão de sete cabeças, que Glauber rodava na África, em 1969. Carvana tem a cena viva na memória.

“Uma noite, a gente estava na beira do rio Congo e falávamos sobre esse assunto quando eu disse: ‘Pô, Glauber, nós entramos pesado com o Cinema Novo’. E ele me respondeu: ‘Carvana, até hoje eu me arrependo apenas de uma coisa: de ter feito o que fizemos com a chanchada brasileira. Mas a gente precisava fazer...’”

À medida que Carvana se distanciava da chanchada, aproximava-se do cinema de vanguarda por meio do Arena. Os jovens cineclubistas frequentavam o Arena, tinham afinidades com aquele grupo e com ele absorveram a capacidade de organização e do trabalho coletivo.

Cinema Novo

Arregimentado pelo pessoal do Cinema Novo, Carvana começou a fazer filmes com essa turma que despontava. [...] Mais uma vez, Car-vana rodopiava no meio do turbilhão daquilo que de mais importante acontecia na cultura brasileira. Ele recorda que Ruy Guerra foi a pri-meira pessoa com quem conversou

O cineasta Ruy Guerra, diretor de Os fuzis (1962), primeiro grande papel de Carvana no cinema. Correio da Manhã

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sobre cinema de uma forma diferente. “Logo me identifiquei com ele, que sempre teve uma enorme capacidade de transmitir a sua linguagem cinemato-gráfica. Com ele comecei a entender o que era uma lente de cinema, as diferenças de uma para outra.” [...] Antes de fazer Os cafajestes (1962), Ruy havia escrito uma história que se passava na Grécia, que falava de pessoas famintas, miseráveis, que invadiam uma ci-dade para roubar comida e que eram ameaçadas por lobos. Como não conseguiu dinheiro para filmar na Grécia, resolveu fazer uma adaptação dessa história para o Nordeste brasileiro, mas, em vez de lobos, as pessoas eram ameaçadas por soldados. Nascia assim o roteiro de Os fuzis (1963), que foi realizado depois de Os cafajestes. Ruy chamou Carvana para fazer um dos personagens principais, um soldado. Foi o primeiro grande papel de Carvana no cinema.

[...]

Mais tarde, já enredados pelo movimento estudantil e a criação do Centro Popular de Cultura, é que surgem Cacá Diegues, Leon Hirszman, Arnaldo Jabor, David Neves, Gustavo Dahl, Geraldo Sar-no, Paulo Gil Soares, Eduardo Escorel, Maurice Capovilla, entre outros.

Carvana trabalhou com vários deles e todos se co-nheciam. Nessa época, foi dirigido por Gustavo Dahl em O bravo guerreiro (1968), por Cacá Diegues em Os herdeiros, por Joaquim Pedro de Andrade em Macuna-íma (1969) e por Arnaldo Jabor em Pindorama (1970).

A estreia como diretor, enfim

Carvana tinha 33 anos e nenhuma coragem para vencer o pânico de dirigir seu próprio filme. Nesse momento, a psicanálise foi fundamental. [...] Esse momento – em que decidiu dirigir – se transformou num marco em sua vida. “Nesse processo, descobri que poderia dirigir um filme, seguir minha vida com meus próprios pés e meus próprios sonhos. Poderia testar, na prática, um desafio. Achava que meu uni-verso estava restrito à arte de representar como ator. Mas escrevi uma história e senti que ela só podia ser dirigida por mim porque nasceu da minha cabeça, do meu coração. Quando tive esse insight, me assustei. Como ousava? Mas houve um conflito entre esse pensamento e a ideia de que poderia, sim, dirigir.”

A decisão veio numa sessão de psicanálise. Carvana chegou, não deixou ninguém falar e disse:

– Quero comunicar que decidi fazer o filme.

Foi abraçado por todos, e todos choraram.

“Acho que todos tinham medo. No fundo, quando diziam para mim ‘faz’, diziam para eles mesmos, ‘faz’. Fiz o filme, lancei e foi um sucesso. A vitória foi de todos.”

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Filmes dirigidos por Carvana:

Vai trabalhar, vagabundo, 1973Se segura, malandro, 1978Bar Esperança, 1982Vai trabalhar, vagabundo II, a volta, 1991O homem nu, 1997Apolônio Brasil, o campeão da alegria, 2003Casa da Mãe Joana, 2008Não se preocupe, nada vai dar certo, 2011Casa da Mãe Joana 2, lançado em setembro de 2013

Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão observam Carvana em cena de Quando o carnaval chegar. Correio da Manhã

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Desde sua invenção, na Paris do fin-de-siècle, o cine-ma tem mantido intrínseca relação com as cida-des. Ele não foi apenas por excelência o grande espetáculo do século passado; também foi, desde que nasceu, uma forma de entretenimento essen-cialmente urbana e deve muito de sua natureza ao desenvolvimento da cidade.1 Criado no auge da metrópole moderna, o cinema necessitava de pronto tanto de seu aparato industrial quanto de seu adensamento, por ser uma arte de reprodução e de massa.2 Já nos primeiros filmes dos Irmãos Lumière, misturavam-se um olhar estrangeiro, etnográfico, e uma perspectiva econômica, na medida em que inúmeras cidades dos mais dis-tantes lugares foram filmadas, contribuindo para a difusão e visualização de suas especificidades e, ao mesmo tempo, abrindo terreno para a comer-cialização de filmes mundo afora.

Tal como as antigas monografias regionais da Geografia ou os relatos etnográficos da Antropo-logia, o cinema servia e ainda serve a instâncias ideológicas que decodificam e representam o mundo e o Outro sob determinados recortes. Os filmes possuem narrativas e, a partir delas, a opinião de determinado grupo sobre outras cul-turas e outros indivíduos ganha maior visibilidade e poder de sedução.3 São inúmeros os autores4 que mostram o papel do cinema, particularmente aquele produzido em Hollywood, na difusão de

1 RODRIGUES, Antonio. Cinemas, arquitecturas. In: Cinema e arquitectura. Lisboa: Cinemateca Portuguesa/Museu do Cinema, 1999. p. 54; TEIXEIRA, M. C. Arquitectura e cinema. In: Cinema e arquitectura, op. cit., p. 34.2 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibi-lidade técnica. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 165-196.

Doutor e mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de Geografia e Meio Ambiente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.(Secretaria Municipal de Cultura, 1990). Publicou também Das vanguardas à tradição (7 Letras, 2006), Entre arquiteturas e cenografias (Contracapa, 2012), entre outros livros.

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O Rio de Janeirosob o olhar de Hollywood

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representações sobre a História e sobre a diver-sidade de lugares e paisagens do planeta pautadas por assimetrias de poder e ranços eurocêntricos e do processo colonizador.

No que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro captada e representada por um olhar externo, em diversos filmes, de diferentes gêneros e nacio-nalidades, vêm sendo exaustivamente repetidas imagens e representações. De maneira recorrente, cosmopolitismo, exotismo, natureza e sexualidade se contrapõem a caos, estranhamento, violência e pobreza. De um lado a capital fluminense se apresenta como paraíso selvagem, polo turístico de povo receptivo e lócus para exercício de uma sexualidade exacerbada; e, por outro lado, como inferno de gente vil e de violência incontrolável.

No texto que se segue, discutirei as relações entre a cidade do Rio de Janeiro, o cinema hollywoodia-no e suas representações. Primeiramente, visarei a expor recorrências na organização e construção da paisagem carioca nos filmes estadunidenses, buscando perceber quais elementos e quando os mesmos são repetidos. Em seguida, tratarei da singularização da cidade, visando a perceber de que maneira os lugares constantemente utilizados nos filmes e vivenciados pelos personagens em tela recebem diferentes conotações – positivas ou negativas – a partir de sua associação a de-terminados valores que lhes são atribuídos pelo desenrolar narrativo.

Por fim, é fundamental entender que, na análise que se segue, não se busca expor uma oposição entre realidade e representação, o que é real e o que é imaginário, nem descobrir quais represen-tações da capital fluminense são verdadeiras ou quais são ofensivas. Não há juízo de valor.

O olhar estadunidense e a construção da paisagem do Rio de Janeiro

Denis Cosgrove5 defende que a paisagem é uma ideia, uma maneira de ver que faz com que se represente a si e os outros, bem como o mundo onde as relações entre estes se dão: “a paisagem não é somente o mundo que nós vemos, é uma construção, uma composição desse mundo”.6 A paisagem também depende das especificidades do observador, não residindo, portanto, apenas nos objetos nem somente no sujeito, mas na sua interação complexa:7 “o senso de paisagem é uma elaboração cultural. Nós o apreendemos, abandonamos a ‘selvageria’, adquirimos certos

3 AMANCIO, Tunico. O Brasil dos gringos: imagens no cinema. Niterói: Intertexto, 2000.4 AMANCIO, Tunico. Um contraplano imaginário: o Rio dos estrangeiros. In: A paisagem carioca. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro/Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria Municipal de Educação/Rioarte, 2000. p. 128-133; FREIRE-MEDEIROS, Bianca. O Rio de Janeiro que Holywood inventou. Rio de Janeiro: Zahar, 2005; SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006; NAME, Leonardo. Geografia pop: o cinema e o outro. Rio de Janeiro: Apicuri/PUC-Rio, 2013.5 COSGROVE, Denis. Social formation and simbolic landscape. Madison: The University of Wisconsin Press, 1998. p. 1.6 Ibidem, p. 15.7 BERQUE, Augustin (Org.). Cinq propositions pour une théorie du paysage. Seyssel: Champ Vallon, 1994. p. 5.

Walt Disney em visita ao Rio

de Janeiro, em 1941, aprecia

a pequena dançarina da

Portela. Correio da Manhã

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modos de falar, de ver e de sentir e assim pode-mos apreciar uma paisagem e a natureza como se convém”.8 O cinema é um meio visual por excelência e o gosto e sentimento, com certeza, induzem a escolha das paisagens e locações, a utilização de determinada película e dispositivos de iluminação para melhor fotografá-las, torná-las ainda mais belas – ou mais feias, se o interesse do filme for pelo abjeto. Neste sentido, as paisagens captadas pelas lentes cinematográficas são marca e matriz.9 Marca, porque possuem componentes físicos adquiridos ao longo do tempo que lhes dão uma materialidade física, percebida de fato pela visão, útil para os contextos de determinados filmes. Matriz, porque podem ser trabalhadas e modificadas para transmitirem ideias.

A imagem do Rio de Janeiro como paisagem de férias de estrangeiros é bastante antiga, e este é

o principal motivo que traz personagens estadu-nidenses à cidade no cinema. Até mesmo o Pato Donald já a visitou em Alô, amigos,10 filme que mistura narrativa documental e ficcional, desenho animado, imagens de arquivo e da visita da “cara-vana da boa vizinhança” de desenhistas da Disney ao Lago Titicaca na Bolívia, a um hangar no Chile, aos pampas argentinos e Buenos Aires e, por fim, ao Rio de Janeiro. A partir do percurso sobre um mapa tridimensional da América do Sul que reduz o Brasil às cidades de Porto Alegre, São Paulo – representadas por toscos casebres e palmeiras – e o Rio de Janeiro – suntuosamente representado pelo Pão de Açúcar, a Baía de Guanabara e o Cristo Redentor –, um narrador extasiado afirma que “a Cidade Maravilhosa ultrapassa tudo o que se tem dito e escrito sobre ela”. Um establishing shot mostra o Pão de Açúcar e o mar. Sobrepõem-se à narração imagens dos lugares citados: “Do alto do Pão de Açúcar vimos o nosso primeiro panorama deslumbrante: ali estava Copacabana! O Corcova-do com a estátua do Cristo Redentor, as ruas da cidade e os seus cafés ao ar livre. Tudo isso era o ambiente que procurávamos. As calçadas de mo-saico para nós, estrangeiros, foram um motivo de grande curiosidade”. Surgem aquarelas de tucanos, bananas e flores exóticas, resultado do que ocorre a “uma cidade indefesa quando se vê invadida por um grupo de desenhistas”.

Essa exposição de paisagens e costumes de outros lugares em conjunto com narração de cunho didá-tico, presente em Alô, amigos, é uma recuperação dos antigos travelogues – conferências sobre viagens a terras distantes e exóticas, que eram comuns na Europa e nos Estados Unidos mesmo antes do surgimento dos filmes. Essa prática cultural era resultado de uma proposta de educação para conhecimentos gerais reveladora da mentalidade do período, e tornou-se mais popular entre 1902 e 1903, utilizando as imagens cinematográficas como atração. As paisagens exibidas faziam apologia aos valores ocidentais cultivados pela burguesia – ideias

8 Ibidem, p. 15.9 BERQUE, Augustin. Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da problemática para uma geografia cultural. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (Orgs.). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EdUerj, 1998. p. 84.10 Saludos amigos, Wilfred Jackson, Jack Kinney, Ham Luske e Bill Roberts, EUA, 1942.

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relativas ao imperialismo, à superioridade cultural e racial da Europa, ao sexismo e ao darwinismo como concepção de sociedade.11

“Saudamos a todos da América do Sul, a terra onde o céu sempre é bem azul” são as palavras que, musicadas, abrem o filme da Disney. Apesar de se travestir em um discurso laudatório, a partir dos espantados e confusos Pateta – na Argentina

– e Pato Donald – na Bolívia e no Brasil – Alô, amigos reforça certo discurso colonizador: o Rio e as demais cidades são apreendidos com legítima curiosidade, porém sua apresentação as coloca em um nível abaixo dos Estados Unidos, em que suas paisagens e lugares, sua fauna, sua flora e seu povo são descritos de maneira semelhante àquela da taxionomia classificatória dos antigos exploradores do Novo Mundo.12 O olhar estadunidense transfor-ma o continente sul-americano em campo de coleta de dados, reorganizando-o e hierarquizando-o: Bue-nos Aires e Rio de Janeiro são vistas em paisagens urbanas que evidenciam seu desenvolvimento, mas as cidades da Bolívia e do Chile são descritas como “pequeníssimas” e “pitorescas”. O filme distribui o poder pela América do Sul, ao mesmo tempo em que mapeia e domina seu território. Alô, amigos é parte de uma estratégia dos tempos de guerra, em que para se enfrentar os desafios do Eixo, projetam-se ideologicamente os Estados Unidos sobre o resto do mundo, apontando quem são seus aliados.13

A paisagem do Rio de Janeiro, construída ao longo dos anos pelo olhar estadunidense, mostra-se a partir de um uso restrito e repetitivo. Se a política de boa vizinhança iniciada em 1933 por Franklin Roosevelt e estendida ao longo dos anos 30 e 40 ajuda-nos a compreender a representação positiva da cidade do Rio de Janeiro em Alô, amigos e outros filmes dessas décadas cuja ação se passa na cidade do Rio de Janeiro, como Voando para o Rio14 e os posteriores Uma noite no Rio15 e Interlúdio,16 por exemplo, não esclarece a recorrência e permanên-cia, até hoje, de determinados ícones da paisagem carioca na tela. As imagens dos mais variados filmes que apresentam a cidade a personagens estadu-nidenses e à audiência pouco mudam conforme o tempo. Sem grandes variações, em locação, em imagens de arquivo, pelo process shot, pintados em painéis, reconstruídos em estúdio ou feitos por

11 COSTA, Flávia Cesarino. O primeiro cinema. São Paulo: Scritta, 1995. p. 27.12 DUNCAN, James. Sites of representation: place, time and the discourse of the other. In: DUNCAN, James; LEY, David (Orgs.). Place, culture and representation. London: Routledge, 1994. p. 41-42.13 AMANCIO, Tunico, op. cit., 2000, p. 53.14 Flying down to Rio, Thornton Freeland, EUA, 1933.15 That night in Rio, Irving Cummings, EUA, 1941.16 Notorious, Alfred Hitchcock, EUA, 1946.

Dolores Del Rio estrela, ao lado de Fred Astaire

e Ginger Rogers, o filme Voando

para o Rio (Flying down to Rio, 1933),

de Thornton Freeland.

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17 Nancy goes to Rio, Robert Z. Leonard, EUA, 1950.18 Latin lovers, Mervyn LeRoy, EUA, 1953.19 Blame it on Rio, Stanley Donen, EUA, 1984.20 Carlos Saldanha, EUA, 2011.21 Wild orchid, Zalman King, EUA, 1989.22 Walter Avancini e Zalman King, Brasil/EUA, 1994.23 Kickboxer 3: the art of war, Rick King, EUA, 1992.24 Fast five, Justin Lin, EUA, 2011.

meio dos recursos da animação tradicional ou por computador, as mesmas paisagens se revelam em filmes posteriores à Segunda Guerra, como Romance carioca,17 Meu amor brasileiro18 e Feitiço do Rio.19 A cidade parece reduzida a um cartão-postal: separadas por quase setenta anos, a sequência final de Alô, amigos, em que a audiência assiste a flores, flamingos e pelicanos cantando a Aquarela do Brasil de Ary Bar-roso com entusiasmo, e a abertura do recente Rio,20 em que pássaros de variadas espécies celebram a cidade entoando um samba de Carlinhos Brown, comprovam a permanência da celebração de uma paisagem colorida, pulsante e exuberante, em que a representação da flora e da fauna tropicais, tendo ao fundo o Pão de Açúcar e o Corcovado, tem papel fundamental.

Mesmo quando o motivo da presença do estrangei-ro no país não é o turismo, o fenômeno se repete: em Orquídea selvagem,21 a advogada Emily (Carré Otis) vem de Kansas City ao Rio para negocia-ções que giram em torno de um tropical resort, mas logo em sua chegada ela já se deslumbra com os corpos que passeiam e se exercitam na Praia de Copacabana; em Boca,22 é no carnaval do Centro que a repórter J. J. (Rae Dawn Chong) tem seu pri-meiro contato com a cidade aonde veio investigar a chacina da Candelária; já em Kickboxer 3 – a arte da guerra,23 o protagonista David (Sasha Mitchell) vem ao Rio para uma competição de luta marcial, o que não impede que se visualize o Pão de Açúcar várias vezes. Recentes, esses três últimos filmes citados inserem um novo elemento na construção e composição da paisagem carioca: a favela. Seus personagens estadunidenses convivem de longe ou até mesmo penetram numa favela que é quase “conceitual” – genérica, acabando por representar todo o conjunto existente na cidade. E ainda que a paisagem da favela carioca esteja passando por

profundas reformulações a partir de sua crescente incorporação como mercadoria nos circuitos tu-rísticos, no cinema de Hollywood ela permanece distópica, lócus de pobreza e da reunião de toda a bandidagem da cidade, como no recente Velozes & furiosos 5: Operação Rio24 – ainda que tenham sido as favelas de Porto Rico as que lhe serviram como locação.

Carmem Miranda com o ator norte-americano Jimmy Durante em 1955. A atriz tornou-se um ícone definitivo da brasilidade e do carnaval carioca, presente no cinema americano de todas as épocas. Correio da Manhã

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O olhar estadunidense e a singularização do Rio de Janeiro como lugar

Para J. Nicholas Entrikin, os lugares combinam tanto o senso da materialidade de um objeto no espaço quanto as qualidades existenciais de nossa experiência; descrevem e entendem tanto o con-texto natural associado com maneiras particulares de vida quanto incluem o contexto simbólico em que, como agente, o sujeito cria o mundo; são ao mesmo tempo um contexto externo de nossas ações e um centro de significado.25 Ele propõe a narrativa como artifício de articulação entre estes dois polos, entendida como

uma visão das coisas em conjunto, ... uma forma distinta de conhecimento que deriva da redescrição da experiência em termos de síntese do fenômeno heterogêneo ... [e cuja] mais simples forma possui dois componentes, a história e o contador de histórias.26

O cinema é um contador de histórias e pode-se dizer que “narrativa cinematográfica” é um termo bastante difundido e conhecido, um jargão. Os filmes localizam objetivamente suas tramas em um lugar, preparando e modificando sua reali-dade física, mas a partir do roteiro, do trabalho do diretor, da fotografia e da direção de arte, por conta da encenação e finalmente da montagem, o lugar não se registra no celuloide tal como ele é. Ele adquire um significado, uma mensagem, uma dimensão subjetiva.

No filme Voando para o Rio, de 1933, um grupo de músicos estadunidenses vem à capital fluminense. Participando de um concurso em um hotel ornado de densa vegetação tropical, os músicos estrangei-ros veem a apresentação do quinteto “Los Coru-na”, fictício conjunto musical brasileiro. Dotados de sombreros e instrumentos nada familiares a um carioca, o grupo brasileiro pergunta à plateia se, em homenagem aos visitantes estadunidenses, pode executar um foxtrot. A audiência prontamente recu-sa a oferta: “Não, nós queremos o carioca!”, que no filme designa um suposto ritmo musical brasileiro.

Fred Astaire se dirige a um funcionário do local e indaga: “Qual o problema com o foxtrot ? ” O nativo responde que o ritmo estadunidense é muito lento e sem graça, e que todos no Rio preferem o tal carioca. O “Los Coruna” inicia então uma canção, enquanto os elegantes espectadores começam a dançar aos pares. Muito mais um maxixe caribenho que um samba brasileiro, o ritmo faz Ginger Rogers declarar que sua mente está ruborizada. A canção The Carioca é interpretada por duas jovens ricamente vestidas e pela cantora negra norte-americana Etta Moten, que surge em roupas de baiana. Outras baianas, acompanhadas de homens em trajes de marinheiro, executam coreografia alegre e ritmada. “É por isso que nunca faz frio neste país”, diz um dos músicos estadunidenses.

Fundem-se neste número musical diversas re-presentações então existentes sobre o Rio que se perpetuariam no cinema nos anos seguintes: a exposição de suas raízes negras, a mistura com elementos de outros países latino-americanos, o clima como determinante da personalidade carioca e a constante associação com a figura da baiana a que Carmen Miranda viria eternizar. O “novo carioca” da canção é ao mesmo tempo um ritmo esfuziante e um amante latino com quem se sonha. É também burguês de posses, cultura e elegância visíveis, imagem cuidadosamente elaborada pela política de boa vizinhança, e que evidentemente agradava o governo brasileiro. A cidade de Voando para o Rio mescla, portanto, imaginação cultural e geográfica, sensualidade e civilidade, imagens que outros filmes vão reforçar.

É comum o Rio de Janeiro das representações cinematográficas se revelar a partir de misturas de traços culturais de diversos lugares: o México fundia-se ao Rio no cartaz original de A caminho do Rio 27 que trazia os protagonistas em meio a maracas e sombreros; em Romance carioca, Carmen Miranda executa um número de baião em pleno carnaval do Rio, que em Boca apresenta foliões e integrantes de escolas de samba dançando reggae; as roupas de baiana de Carmen – que assim já se apresentava nos

25 ENTRIKIN, J. Nicholas. The beetweeness of place. London: Macmillan, 1997. p. 6-7.26 Ibidem, p. 23.

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filmes brasileiros – é referenciada nas imagens do carnaval de rua de Alô, amigos, onde o rosto de uma brasileira caracterizada desta forma merece atenção da câmera; em A caminho do Rio, em que Bob Hope faz uma hilária paródia da artista; ou em filmes bem posteriores, como Feitiço do Rio e Orquídea selvagem, que trazem figurantes caracterizados como essa tão famosa internacionalmente quanto exuberante artista do Brasil.

Os personagens dos filmes podem também fazer resumos sobre as cidades, atribuindo-lhe quali-dades: “São Paulo é onde está todo o trabalho. Onde está toda a diversão é no Rio... Em todos os sentidos, é a mais excitante e sensual cidade do mundo”. Com estas palavras, Mathew (Michael Caine) se dirige à audiência em Feitiço do Rio. Em férias na capital fluminense com seu melhor amigo e suas respectivas filhas, a personagem tem várias experiências na praia, emblema do lazer na cidade: de manhã os banhistas tocam violões e pandeiros e as mulheres fazem topless; à noite, celebra-se um casamento onde estão presentes uma baiana, dan-

çarinos de frevo, diversas entidades do candomblé e inúmeros macacos, que termina numa farra em que os convidados tiram as roupas e se jogam ao mar. Velloso28 lembra que já nos anos de 1920 a desmoralização da cidade do Rio de Janeiro e o alçamento de São Paulo como matriz da naciona-lidade brasileira apontavam a proximidade com o mar e a exuberância da natureza como configura-doras de certa “personalidade” carioca. A condição portuária colocaria o carioca em contato com a “nociva” cultura estrangeira, configurando-se um “espírito universalista” aberto a novas modas. As belezas do mar, do verde e das montanhas, por sua vez fariam do carioca um ser contemplativo, avesso ao trabalho. Feitiço do Rio, a partir da inserção de nativos na figuração e em personagens secundárias, resgata esta antiga e tão difundida imagem do ha-bitante do Rio de Janeiro, indivíduo sedutor que traz alegria a qualquer lugar, não trabalha e acolhe o estrangeiro facilmente, que na década de 40, em Alô, amigos, já tomava a forma de Zé Carioca.

O “papagaio das anedotas do Rio”, que tão bem acolhe o Pato Donald, sintetiza as contradições inerentes a uma oposição binária que até hoje estrutura a imagem da cidade do Rio de Janeiro e de seu povo: trabalho versus boemia. Nos dis-cursos da cidade, a boemia dos jovens intelectuais dos anos de 1920 a 1940 é vista como positiva e saudosa. Praticada pelos pobres, porém, sempre foi entendida como malandragem a ser punida e controlada, emblematicamente representada pela lendária figura de Madame Satã e se associando à promiscuidade das prostituas e à inatividade dos bêbados e mendigos.29 Ócio e boemia, diversão e trabalho, portanto, se misturam na configuração da alma carioca e, por isso, tornava-se possível, à época de Alô, amigos, que ao mesmo tempo em que malandros fossem caçados pela polícia no bairro da Lapa, o malandro civilizado Zé Carioca se transformasse em embaixador da boa vizinhança.

A cidade do Rio de Janeiro como lócus para enla-ces românticos e sexuais dos estrangeiros é outra

27 Road to Rio, Norman Z. McLeod, EUA, 1947.28 VELLOSO, Mônica Pimenta. A “cidade voyeur”: o Rio de Janeiro visto pelos paulistas. Revista Rio de Janeiro, v. 1, n. 4. p. 55-65, 1986.29 VELASQUES, Muza Clara Chaves. A Lapa boêmia: um estudo da identidade carioca. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1994.

Lana Turner interpreta a mulher que se apaixona pelo Rio de Janeiro e por um moreno nativo em Meu amor brasileiro (Latin lovers, 1953), de Mervyn LeRoy. Correio da Manhã

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representação comum: “o Rio é utilizado como um território erótico e ficcional onde se experimenta os ritmos ‘carnais’, os prazeres de Eros e onde pes-soas, principalmente o americano branco, podem obter gratificação sexual imediata”.30 Filmes como A caminho do Rio e Voando para o Rio se sustentam a partir de protagonistas masculinos estrangeiros que se apaixonam pela exuberância de uma mulher brasileira que, mesmo sendo da “alta sociedade”, não oferece resistência, sendo facilmente seduzida. Meu amor brasileiro inverte esta situação: Nora (Lana Turner), a protagonista estadunidense do filme, rende-se aos encantos da cidade e de Roberto (Ri-cardo Montalban), um nativo moreno que mistura

os excessos de um amante latino e a polidez de um pequeno burguês. A culpa para tamanhas paixões recai sobre a cidade: “há algo no ar do Rio que modifica qualquer um”, justifica-se. Experiências menos românticas e mais carnais são obtidas em Orquídea selvagem. Com um contato mínimo com os nativos, a texana Emily se descobrirá reprimida sexualmente no Rio de Janeiro, abrindo-se para experiências de prazer. Espectadora de tórrida e selvagem relação sexual entre negros nativos em um edifício abandonado, ela também participará de um baile de máscaras que novamente funde o Rio a vários lugares: Salvador e Veneza se misturam em ritual em que nativos seminus tocam atabaque e

30 FREIRE-MEDEIROS, Bianca. The travelling city: representations of Rio de Janeiro in U.S. films, travel accounts and scholary writing. Tese (Doutorado em Teoria e História da Arte e da Arquitetura) – Graduate School of Binghamton University, State University of New York, 2002. p. 142.

O mar e a exuberância da natureza colaboraram

para a construção

de uma “personalidade”

carioca aos olhos do norte-

americano. A imagem que se consolidou no cinema é a de um indivíduo

sedutor e pouco afeito ao trabalho.

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realizam uma dança sensual, estrangeiros dançam um minueto vestindo roupas de gala e máscaras, e onde o sexo é livremente permitido. O mesmo ocorre com a jornalista estadunidense de Boca: presente a uma cerimônia de candomblé realizada em plena quaresma, J.J. e seu cicerone Boca de Ouro (Tarcísio Meira), chefe do tráfico de uma favela, verão o ritual religioso transformar-se em orgiástico e orgástico, no qual a repórter participa ativamente após ingestão de droga oferecida por uma entidade.

Todavia não só prazeres são obtidos pelos fo-rasteiros na cidade. Boca e Kickboxer 3 põem seus personagens em situações de níveis diversos de desprazer. O mito do carioca acolhedor se desfaz completamente, na medida em que nestes filmes os estadunidenses sofrem com as mais variadas ações hostis por parte dos nativos, como assaltos, tentativas de assassinato, humilhação, estupro e sequestro. O Rio em tela não é mais aquele lugar divertido e sensual descrito por Michael Caine em Feitiço do Rio. É caótico, impossível de se viver, e nele a violência é generalizada. Personagens esta-dunidenses estão em trânsito constante e, se não declaram ter vontade de sair do Rio ao longo da trama, o fazem ao final do filme.

Considerações finais

Cada um dos filmes citados ao longo deste trabalho defende uma ideia de Rio de Janeiro. E isto revela uma importante questão para sua análise: deve-se ter claro que não é apenas pelo que se vê na tela que um lugar chamado Rio de Janeiro se singulariza no cinema. A cidade do Rio de Janeiro é um lugar geograficamente determinado, com suas especi-ficidades físicas e seus modos de vida próprios e, como já dito, quase sempre os mesmos edifícios, ruas e ícones urbanos e da natureza são filmados pela lente do cinema. É impossível negar, contudo, que apesar de terem utilizado e exibido em épocas distintas conjuntos semelhantes de lugares e pai-sagens, a capital fluminense de Meu amor brasileiro agrega valores diametralmente opostos àqueles de

Boca, por exemplo. No primeiro, o Rio de Janeiro é lugar alegre, festivo e cosmopolita, que acolhe e seduz o estrangeiro; no outro, é hostil, de gente vil e criminosa, que põe os estadunidenses em perigo. E estas diferenças não se explicam apenas nas meras paisagens e localizações objetivas, que têm de fato importância simbólica, mas no sentido de familiarizar a audiência com o local onde se desenrola a trama e gerar uma atmosfera agradável ou desprazerosa. As diferenças destes filmes são resultado muito mais das ações dos personagens no espaço, do que elas dizem sobre a cidade e dos diferentes valores que circulam na sociedade ao longo do tempo a respeito do lugar chamado Rio de Janeiro, fatores que corroboram para singularizá-lo a partir de determinado recorte.

Quando, em 1933, os músicos de Voando para o Rio opinavam sobre The Carioca ou, em 1984, Mathew confessava à câmera de Feitiço do Rio o quanto a sensualidade carioca havia lhe gerado problemas amorosos, estavam agindo no espaço da cidade e à sua maneira apreendendo a cultura e descrevendo a realidade carioca. Suas experiências são de fato parte de uma ficção e fruto da imaginação de um roteirista, mas não deixam de singularizar o Rio aos olhos da audiência e realizar um discurso verossímil sobre seu povo e seu modo de vida. Como afirma o geógrafo Paul Claval (1997),31 “os homens quase sempre ouviram falar de lugares que eles abordam antes de os pisarem, de modo que seu olhar não é mais perfeitamente novo”. Embora não exclua a possibilidade de discordância do espectador com aquilo que lhe é mostrado em imagens e narrado em discursos, um dualismo se instaura a partir dos filmes: ao mesmo tempo em que eles (re)cons-troem paisagens e singularizam a cidade a partir de práticas e traços culturais presentes em alguns de seus lugares, absorvem antigos e recorrentes pensamentos sobre o que é viver no Rio e quem nele mora, sob um recorte de olhar estrangeiro, quase sempre estupefato – maravilhado ou cheio de horror. Assim contribuem para perpetuar a ideia do que pode vir a ser a experiência de um estrangeiro na cidade.

31 CLAVAL, Paul. As abordagens da geografia cultural. In: CASTRO, Iná Elias de; COSTA GOMES, Paulo César da; CORRÊA, Roberto Lobato. Explorações geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 93.

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Joel Barcellos e Anecy Rocha no filme de Cacá Diegues, A grande cidade (1966), que mostra as agruras enfrentadas por imigrantes nordestinos no Rio de Janeiro. Também no elenco Leonardo Vilar e Antônio Pitanga. Correio da Manhã

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O dualismo presente na letra da canção de Caetano Veloso, que serve de epígrafe a esse texto, estabelece a cisão entre a cidade (espessa), seu nome e suas imagens, evocando o célebre questionamento de Shakespeare sobre a rosa e o nome da rosa. Nas palavras dos poetas, a gravidade dessa tarefa que é “dar nomes”, que na mitologia judaico-cristã coube a Adão, o primeiro homem, que viu desfilar diante de si todos os seres vivos da Terra e os batizou. O eu lírico da canção também compreende que o nome – apesar da pouca espessura – é matéria grave, do âmbito do sagrado. No verso seguinte, “Rio que não é rio: imagens”, a tríade se completa, sacramentando a relação do nome com o que se vê – imagem, outra matéria inefável, mas potente. É certamente um risco chegar ao nome e se perder nas imagens, antes de alcançar a materialidade espessa da cidade. Ou, quem sabe, sejam essas

“Cheguei ao nome da cidade Não à cidade mesma, espessa Rio que não é rio: imagens”

(O nome da cidade, Caetano Veloso)

as únicas formas de se tocar a sua espessura? Ao me deter nessas reflexões iniciais, preparo o terreno sobre o qual pretendo seguir: pensar a representação cinematográfica do Rio de Janeiro ao longo de uma década e meia: entre 1955 e 1970.

Tarefa árdua, capturar a energia caudalosa de uma grande cidade que, como todas as outras, pode apresentar faces submersas inimagináveis caso se olhe apenas para a sua superfície. No caso específico do Rio, seu nome ainda carrega – além da metáfora fluvial mais evidente – o peso de um engano engendrado pelo tempo. Por não haver, no século XVI, distinção clara na denominação dos acidentes geográficos, a descoberta de uma baía – a de Guanabara –, em janeiro de 1502, rendeu à região o batismo de “Rio de Janeiro”. Com o tempo, tal imprecisão lançou sobre o nome da cidade sombras

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense e mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Autor da tese Imaginar a cidade real: o Cinema Novo e a representação da modernidade urbana carioca (1955-1970).

Carlos Eduardo Pinto de Pinto

Rio que não é rio, imagens:a representação da modernidade urbana

carioca no cinema brasileiro entre 1955 e 1970

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1 XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

que a memória não hesitou chamar de engano, porém a metáfora já estava sacramentada. Assim, poderia inferir que filmar o Rio seria tentar capturar com matéria frágil e friável – luz e celuloide – uma cidade que fora nomeada com os recursos de uma imagem tão escorregadia que não se prende nem mesmo ao leito de um referencial verdadeiro.

Ao prosseguir em meu caminho reflexivo, me aproximo de um debate que tomou de assalto o cinema em diversos lugares do mundo entre os anos 1950 e 1970, cujas questões mais prementes eram: o que resta do real nas imagens criadas pelo cinema? Como saturar de real uma sequência de imagens? Ou ainda, de forma mais ampla e ambiciosa: o que

é o real? Diversos teóricos, cineastas e críticos se debruçaram sobre esse questionamento, escrevendo textos e realizando filmes – que se convencionou denominar “modernos”1 – com a pretensão de fazer do cinema, não um dispositivo para falsear a realidade (o que ele já era), mas um meio de revelá-la. Cabe reforçar que, nessa altura da história, modernidade e política se interpenetravam. Daí o pathos (no sentido de uma atração apaixonada) do real e da realidade, marcando-se o sentido filosófico do primeiro e sócio-histórico da segunda.

O Brasil é um dos lugares em que essas proposições vingaram, perpassando o cinema independente da década de 1950, bem como o Cinema Novo e o

Márcia Rodrigues no filme de Leon Hirszman, Garota de Ipanema (1967). Correio da Manhã

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Rio que não é Rio, imagens

Cinema Marginal entre os anos 1960 e 1970. E um dos protagonistas dessa busca pela reinvenção do realismo foi o Rio – acompanhado

do sertão e de outras cidades, como São Paulo –, foco de interesse de muitos filmes modernos, sobretudo no âmbito do Cinema Novo, alguns deles abordados aqui. Começarei pelo que é considerado o inaugurador do

cinema moderno brasileiro, Rio, 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955). Embora

ainda não houvesse referência, em seu contexto de criação, ao termo “Cinema Novo”, o filme e seu diretor seriam incorporados pelo movimento na década seguinte. Os outros filmes abordados já

estão circunscritos ao espaço de criação cinemanovista: Cinco vezes favela (coletivo, 1962), Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962), A grande cidade (Cacá Diegues, 1966), O desafio (Paulo César Saraceni, 1965), Garota de Ipanema (Leon Hirszman, 1967) e Todas as mulheres do mundo (Domingos de Oliveira, 1967). Este último, apesar de não ser considerado um filme cinemanovista, mantém relações formais com o movimento e se inscreve, igualmente, no conjunto dos filmes modernos. Vale apontar que, por questões pragmáticas – tempo e espaço reduzidos, sobretudo – a seleção contém lacunas, tanto no que se refere à representação da cidade quanto à variedade do cinema moderno brasileiro, mas ainda assim permite traçar algumas observações sobre a existência cinematográfica do Rio.

Embora pouco mais de uma década separe tais obras, muitas mudanças houve entre 1955 e 1967 – como a perda do posto de capital em 1960, com a inauguração de Brasília, e a instauração da ditadura civil-militar em 1964. Assim, se é possível que o pathos do realismo permaneça, é imprescindível

admitir as transformações que fizeram com que a tarefa de alcançar a “cidade mesma, espessa” (também ela em mutação) tenha sido tentada de formas distintas. Não pretendo aferir se os cineastas foram bem-sucedidos, pois ao proceder dessa forma estaria aceitando uma separação entre filmes e realidade, concebendo a representação2 como uma possibilidade de acesso a uma realidade que estaria fora dela. Ao contrário, acredito que – ao buscarem atingir a realidade – os cineastas a estavam construindo, reformulando imaginários sociais3 sobre a cidade e incentivando práticas.

Em 1955, a realidade, para Nelson P. dos Santos, estava nas bordas do social, preservada pela distância do poder público e das garras da modernização. No caso da cidade que elegeu para filmar, essa mesma que ardia a 40 graus, o núcleo pleno do magma de uma realidade ao mesmo tempo bruta e moldável estava nas favelas. Consideradas centros da força transformadora do povo, as favelas estavam incrustradas na geografia urbana, sendo ainda assim periféricas, porque socialmente excluídas. Para chegar até elas, o diretor acreditava na inutilidade de toda estética: a própria forma – fôrma? – do que existia moldaria o filme. Tal crença era alicerçada na relação do cinema independente brasileiro com o Neorrealismo que, mesmo não estando só,4 teve uma marca inequívoca nessas produções. Por esse motivo, seria interessante observar as escolhas de Nelson pelo prisma dos que escreveram sobre o movimento italiano.

Em primeiro lugar, é preciso remarcar a diversidade de seu horizonte intelectual, “que oscila entre o espiritualismo e o materialismo, a moral e a política”.5 Em seguida, compreender que o denominador comum a essas tendências era a localização das narrativas “no plano da crônica e do testemunho, [...] rejeitando as tradições expressivas artificiais”.6 Assim, independente de

2 FALCON, Francisco J. Calazans. História e representação. Revista de História das Ideias, Faculdade de Letras, Coimbra, n. 21, 2000.3 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.4 FABRIS, Mariarosaria. O Neorrealismo italiano em seu diálogo com o cinema independente brasileiro. Cinemais: revista de cinema e outras questões audiovisuais, Rio de Janeiro, n. 34, abr.-jun. 2003.5 GILLI, Jean A. Le néorrealisme: filmer la société italienne. CNDP, premier trimestre, 2011. “Représentations de la ville: 1945-1968”. p. 21. Livre tradução de: “qui balance entre le spiritualisme et le matérialisme, la morale et la politique [...]”.6 Idem. Livre tradução de: “sur le plan de la chronique et du témoignage [...] en rejetant les traditions expressives artificielles”.

Vianinha atuou em Escola de Samba Alegria de

Viver, episódio dirigido por

Cacá Diegues em Cinco vezes

favela (1962). Correio da

Manhã

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qual fosse o posicionamento político, ideológico ou filosófico do cineasta, era a assunção da imagem como testemunho que contava. Cesare Zavattini, considerado um dos mais importantes teóricos deste movimento, se esforçava por definir essa busca do “testemunho”, afirmando que o objetivo seria fazer “[...] um cinema sem mediação aparente, no qual os fatos ditassem a forma e os acontecimentos parecessem contar-se a si próprios”.7 Aqui, é importante enfatizar que o teórico – também roteirista – não ignorava a mediação, nem acreditava que os fatos pudessem realmente contar-se por si mesmos, postulando apenas que a mediação não deveria ser aparente.

É a partir dessa diferença entre o desprezo pela narrativa e a intenção de camuflá-la que Gilles Deleuze, pensando com André Bazin, afirma: “O real não era mais representado ou reproduzido, mas ‘visado’”.8 Esse objetivo era alcançado através da utilização de outros recursos que não os da narrativa clássica, sobre a qual me aprofundarei mais adiante. Recusava-se, notadamente, a montagem, que tenderia a “representar”, em termos deleuzianos, o real, preferindo-se os planos-sequência e as panorâmicas. Assim, o Neorrealismo tendeu a criar personagens que viam mais do que agiam, não porque fossem passivos, mas “videntes” – e “sensitivos”, eu acrescentaria –, assumindo-se o sentido místico que tais palavras podem ter: ver e sentir a realidade para além das aparências, impregnando a película com a objetividade das coisas do mundo.

É preciso delimitar que Deleuze utiliza o conceito de “representação” para criticar a forma como ele é incorporado à lógica da narrativa clássica: ao invés de se assumir como construção de um real, tal narrativa assumiria uma falsa capacidade de “re-apresentar” o real. Não é, portanto, o mesmo

sentido que dou ao conceito de representação ao longo do texto. Por minha perspectiva, o que Deleuze defende seria mais bem exposto caso se opere com a assunção da ideia de representação, e não com o seu abandono. Assim, ao “visarem” a realidade, os neorrealistas estariam explicitando a crença na capacidade mimética do material fílmico (celuloide) e seriam, portanto, mais “realistas” do que os diretores que o “esquartejavam” através da montagem, recriando a realidade, mais que a representando.

Apesar dessas reflexões a respeito da linguagem cinematográfica, o Neorrealismo foi recebido no Brasil como reiteração da seguinte fórmula: “a realidade é mais importante que o filme”,9 daí o desprezo de Nelson pela forma. Contudo, mesmo sem querer realizar opções estéticas, ele as fazia e era através delas que se dava a construção do seu Rio de Janeiro. Pela exploração da profundidade de campo e dos travellings que percorrem as cenas urbanas, o diretor procurava criar a impressão de “mergulho” na realidade. Contudo, essa “realidade” não escapava à construção: desde as primeiras sequências, a favela e seus moradores (além da cultura que se produz nela, representada pelo samba) aparecem como mais reais do que o restante da urbe.

Por exemplo, ao contrapor meninos favelados no primeiro plano – aquele das percepções hápticas10 – às imagens de cartão-postal, como o Cristo Redentor, Nelson opera a partir de uma dualidade que “imagina” a cidade real. O filme conjuga, portanto, duas estratégias de representação urbana: uma associada aos establishing shots, tomadas amplas realizadas do alto, que apresentam a cidade como um todo, não raro focando ícones de fácil identificação; outra, aos travellings – “passeios” da câmera pela cidade,

7 STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003. p. 92. Grifos nossos.8 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo: cinema II. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 9.9 AVELLAR, José Carlos. O Neorrealismo e a revisão do método crítico. Cinemais: revista de cinema e outras questões audiovisuais, n. 34, p. 141, abr.-jun. 2003. Embora Deleuze já tenha teorizado na década de 1980, enfatizo que Bazin e Zavattini são contemporâneos do Neorrealismo e do cinema independente brasileiro.10 “O olho vê, mas também toca: há na visão percepções óticas, puramente visuais, mas também hápticas, visuais-táteis, duplo modo que, aliás, responde a outra divisão, entre Nahsicht (a vista de perto, a visão corrente de uma forma no espaço vivido, onde é possível aproximar-se e tocar) e Fernsicht (a vista de longe, visão dessas mesmas formas conforme as leis específicas da arte).” AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 148. Grifos do autor.

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dando a conhecer a paisagem aos poucos, como numa caminhada.11

Assim, as imagens idílicas são astuciosamente localizadas ao fundo e em plano aberto, como um cenário de ópera inerte por trás da cena “viva” protagonizada pelos pobres. Aqui, o excluído social, concreto e agente; lá, o simulacro, a imagem da cidade construída (pintada? fotografada? filmada?) “para inglês ver”. Como afirmou João Luiz Vieira, “a extraordinária pujança icônica da paisagem urbana carioca carrega em si o destino estereotipado do cartão-postal”.12 Contudo, tal dualismo não é uma regra rígida da narrativa e, às vezes, a cidade é devassada também a partir do olhar da classe média, apresentada como inescrupulosa e hedonista. Nesse caso, ao invés da distância em relação aos cartões-postais, ocorre a diluição, como se a classe média fosse tão superficial quanto os clichês. No entanto, o samba, considerado manifestação popular, está sempre ao fundo, reforçando os contrastes entre excluídos e inseridos.

Mesmo que o filme proceda a tal cisão, seria interessante fazer o esforço de costurar as duas dimensões. Afinal, é a mesma urbe que se oferece à representação de maneiras distintas – caso se admita, como não se fazia então, que a favela também é cidade. Nas duas instâncias, o que aparece como mediador da representação é a capitalidade – capacidade de representar a nação e de projetá-la em direção ao futuro, abrigando as experimentações da vanguarda urbana.13 Retornando ao filme percebo que, se por um lado o Rio poderia ser encarado como uma cidade moderna (a vitrine do Brasil), que não destruíra a monumentalidade de sua natureza (também a do país), por outro ele seria o cadinho da nação, onde a diversidade brasileira se encontrava sintetizada. Esta síntese, contudo, que não se dava através da modernidade, mas justamente onde ela estava ausente: nas favelas, consideradas mais “puras” e autênticas.

Essa dualidade é percebida com mais força quando se observa a recepção do filme, censurado por Menezes Cortes, chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, que via na representação das favelas uma ofensa à vitrine do Brasil. Em oposição, o amplo apoio recebido pela obra por parte da imprensa e de intelectuais diversos depõe sobre os que compartilhavam o olhar de Nelson, vendo nas favelas um índice de capitalidade mais enfático – mais realista – que as imagens de cartões-postais.

Essa recorrência à análise de Rio, 40 graus se deve ao fato de que, cinco anos mais tarde, o Cinema Novo daria prosseguimento ao dualismo presente nessa obra, apesar de apresentar-se menos determinista. Cinco vezes favela (coletivo, 1962) e A grande cidade (Cacá Diegues, 1966) são os melhores exemplos dessa apropriação, seja também contrapondo pobreza e beleza (A grande cidade) ou simplesmente desprezando e eclipsando os cartões-postais (Cinco vezes favela). Apesar de já não ser mais capital, o Estado da Guanabara – a cidade-estado em que se convertera o Rio – teve a memória da capitalidade fortemente mantida por seu primeiro governador, Carlos Lacerda. Daí que, para além do status político da cidade, o Cinema Novo ainda pudesse manter interlocução com esses imaginários (que, afinal, se mostrariam duradouros e independentes de qualquer esforço administrativo, presentes ainda hoje na identidade carioca).

É preciso, no entanto, demarcar uma separação frente ao filme de Nelson: mesmo assumindo o desejo de realidade – e a sua busca – já presente no cinema moderno da década anterior, os jovens cineastas deixam de postular a inutilidade da estética nessa empreitada. Nesse processo, ganha destaque a influência de Eisenstein e sua concepção de cinema, bastante formalista e valorizando a montagem – o que parecia inadequado ao Neorrealismo. Afinal, como observa José Carlos

11 Cf. MÜLLER, Jürgen E. La ville comme imag(o)ination ou quelques thèses sur la construction audiovisuelle de la “métropole” d’Amsterdam. In: PERRATON, Charles; JOST, François (Org.). Un nouvel art de voir la ville et de faire du cinéma: le cinéma et des restes urbaines. Paris: L’Harmattan, 2003.12 VIEIRA, João Luiz. Rio de Janeiro. In: JOUSSE, Thierry; PAQUOT, Thierry (Dir.). La ville au cinéma: encyclopédie. Paris: Cahiers du Cinéma, 2005. Livre tradução de: “L’extraordinaire puissance iconique du paysage urbain carioca porte en soi le destin stéreotypé de la carte postale”.13 MOTTA, Marly Silva da. Rio, cidade-capital. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

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Avellar, “a vontade de refletir o real, revelar o real como ele é, e a de compor uma imagem mais reflexão do que reflexo do real, para revelar como gostaríamos que ele fosse, eram sentidas na década de 1950 como antagônicas e não conciliáveis”.14

Seria a síntese dessas ideias antagônicas que o Cinema Novo faria a partir da década de 1960, saindo “a passeio para encontrar a realidade, como sugeria o Neorrealismo, mas (para resumir a questão) com as câmeras de Buñuel e de Eisenstein (talvez porque não quisesse apenas encontrá-la, mas transformá-la) [...]”.15 Mais que cineastas, os cinemanovistas pretendiam ser “autores” (e aqui o diálogo se dá com a crítica francesa, principalmente através dos Cahiers du cinéma): como os textos escritos, utilizados para defender ideias e incentivar práticas, os textos fílmicos deveriam ser considerados instrumentos de combate intelectual. Logo, não apenas “mostrar a realidade”, mas também “moldá-la”.

A forma como o Rio foi representado não sofreu uma ruptura substancial. Afinal, nas duas obras

citadas continua-se a usar planos abertos do alto para se referir à totalidade dos “cartões-postais”, contra uma focalização intimista (palpável) dos excluídos sociais, mostrados mais como categorias sociais do que personagens psicologicamente complexos. A geografia imaginária incorpora, no caso de A grande cidade, outros lugares que não as favelas – como o Centro e a Zona Sul –, embora a ênfase continue nelas. Ainda no plano visual (mas também se estendendo para as diegeses16) se dá uma aproximação da favela com o universo sertanejo, em diálogo com os modernismos visual e literário, que já apresentavam uma relação de identidade entre os dois. Pela lógica nacional-popular – que o Cinema Novo ajuda a erigir – essa identidade parecia óbvia, já que tais universos estavam fora da lógica da modernidade e, portanto, ainda próximos da “essência” da nacionalidade.

Através do uso da câmera e da montagem são inseridas mudanças sutis, mas determinantes. A lógica espaço-temporal contínua, típica do Neorrealismo, é substituída pela irrupção de

14 AVELLAR, José Carlos, op. cit., p. 138.15 Ibidem. p. 176.16 É o universo dos personagens, o que está contido no argumento do filme: nomes, profissões, lugares por onde circulam, eventos dos quais fazem parte etc.

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Lucy Carvalho em Os cafajestes (1962), de Ruy Guerra. Correio da Manhã

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imagens descontextualizadas diegeticamente, mas cujo sentido narrativo é evidente. Trata-se de closes ou de planos abertos, às vezes estáticos como uma fotografia (enfocando o rosto de excluídos sociais, a totalidade de uma favela, máquinas parando de funcionar, edifícios em construção), que interrompem a fruição diegética em prol de uma ênfase narrativa. Ainda, a presença da câmera é reafirmada, seja pela trepidação das imagens ou por conta dos transeuntes que a encaram com curiosidade, o mesmo sendo feito pelos atores.

O som, às vezes dessincronizado, desempenha função semelhante, passando a ser tomado como parte assumida da narrativa, e não como um elemento de ênfase imperceptível. Desse modo, as canções funcionam como um dos elementos de destaque, “falando” tanto quanto os personagens. Aqui, a presença do samba ainda é hegemônica. Outro ponto a se destacar são os elementos urbanísticos e arquitetônicos, que ganham relevo, quase literalmente. Mais que simples construções “por trás” dos personagens, são visualmente dissecados (seja pela câmera, seja pelos personagens), ganhando sentidos que ultrapassam o plano da materialidade. Trata-se de mais um diálogo com o modernismo, dessa vez em sua versão urbanística e arquitetônica. Atravessada por contradições, essa interlocução ora aponta para o modernismo como evidência de uma descaracterização da essência nacional, ora como a possibilidade de se manter essa essência, ao mesmo tempo em que se cria uma linguagem nova, exatamente como o Cinema Novo pretendia fazer.

Essa hibridação entre o Neorrealismo e outras vertentes do cinema moderno – aparentemente antagônicas – pode ser inserida num horizonte mais amplo, que ultrapassa as fronteiras do país. Como já indicado, o Cinema Novo é contemporâneo de movimentos que, como ele, se propunham a realizar uma espécie de “cruzada”

contra a narrativa clássica norte-americana.17 Encarada como um conjunto de convenções pseudorrealistas, essa forma de narrar – também denominada “hollywoodiana” – serviria a enganar o espectador, apresentando posicionamentos políticos e ideológicos “disfarçados” por sua transparência e linearidade.18 Acreditavam que, com ela, havia surgido e se difundido um código de encenação supostamente universal, que tenderia a manter submersos os vestígios da construção do filme.

Pela lógica apresentada acima, a câmera seria utilizada de forma a sumir da consciência do espectador, funcionando como extensão de seus olhos ao focar somente o essencial para a compreensão da história contada. Mais especificamente, ela

17 Entre outros, Nouvelle Vague, Oberhausen Group (Jovem Cinema Alemão), Cinema Novo Argentino, Mexicano e Cubano; mais tarde, com posicionamentos mais radicais, o grupo Dziga Vertov (França), o Cinema Novo Alemão, o Cinema Novo Chileno e o Cinema Marginal (Brasil). Cf. AITKEN, Ian. European film theory and cinema: a critical introduction. Bloomington: Indiana University Press, 2001; BURTON, Julianne. Repensando os anos 1950. Cinemais: revista de cinema e outras questões audiovisuais, n. 34, abr.-jun. 2003.18 XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

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substituíra a visão binocular por um olhar ciclópico, representativo “de uma noção de sujeito centrado e pontual que vem se conformar a partir de um ponto de vista unitário, determinado pela posição da câmera”.19 A montagem, por seu turno, cortaria o fluxo contínuo do real, reconectando-o de forma a criar outra lógica, diferente da original, mas que também se apresentava como uma totalidade, constituída “para além da incidência subjetiva em sua conformação”.20

Os movimentos modernos21 tenderiam, pois, a romper com tais regras, dialogando com o estruturalismo e o pós-estruturalismo, bem como com as já citadas teoria e montagem soviética22 e o teatro de Brecht.23 Em sua “cruzada”, esses autores não procederiam a uma recusa do realismo, presente na narrativa hollywoodiana, mas a uma tentativa de criar outro realismo, com a esperança “de que procedimentos estilísticos [pudessem] contornar [a] natureza da conformação câmera, em si mesma condenável”.24 Segundo Deleuze,25 eles dão continuidade ao afrouxamento das ligações sensório-motoras, como no Neorrealismo, mas vão além, criando situações puramente óticas e sonoras (opsignos e sonsignos) que correspondem a imagens diferentes das criadas pelo movimento italiano. “Ora é a banalidade cotidiana, ora são circunstâncias excepcionais ou limites”26 que se realizam em um “espaço qualquer”, seja por sua desconexão (montagem fragmentada), seja pelo vazio representado (desertos e grandes espaços inabitados). Ainda, o Cinema Verdade, criado por Jean Rouch, seria incorporado: a presença do cineasta e de sua equipe é assumida, ficando em evidência “na frente” das câmeras. Assim, o “real” seria menos o que a câmera capta (de forma espontânea ou encenada), e mais o próprio ato de filmar, postulando-se não um “cinema de verdade, [mas a] verdade do cinema”.27 Ou, como bem resumiu Truffaut, assumindo-se que “um filme é um filme”.28

O Cinema Novo, como parte desse processo, realiza hibridações similares, em um diálogo constante com os demais movimentos, operando tanto sínteses quanto distanciamentos. Dessa

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Leila Diniz (ao centro) é a estrela de Todas as mulheres do mundo (1967), de Domingos de Oliveira. Correio da Manhã

19 RAMOS, Fernão. Cinema e realidade. In: XAVIER, Ismail (Org.). O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 145.20 Idem.21 Ian Aitken usa o termo “modernista” ou, mais especificamente, “cinema político modernista” (political modernist cinema). AITKEN, Ian, op. cit., p. 132s.22 XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal/Embrafilme, 1983.23 AITKEN, Ian, op. cit.24 RAMOS, Fernão, op. cit., p. 145.25 Embora o Cinema Novo apresente interesse para Deleuze apenas através da obra de Glauber Rocha, quando trata do cinema do Terceiro Mundo (e aborda o modo fabulizante de ver, mesmo sem usar tal terminologia), acredito que as reflexões tecidas, sobretudo para a Nouvelle Vague, também sejam válidas para tratar do movimento brasileiro.26 DELEUZE, Gilles, op. cit., p. 14.27 Ibidem, p. 183.28 TRUFFAUT, François. O cinema segundo François Truffaut. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 318.

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forma, sobrepunha alguns modos de ver, entendidos por Roger Odin como as maneiras que os filmes podem ter os sentidos criados, a depender dos espectadores e das situações envolvidas em suas exibições.29 Apesar de estarem atrelados à recepção, os modos de ver já se fazem presentes na narrativa dos filmes, embora nada garanta que tais modos sejam os mesmos que as plateias mobilizarão. De acordo com a tendência à hibridação apontada acima, defendo que as narrativas dos filmes analisados combinem quatro modos de ver: o documentário, construído em diálogo com o Neorrealismo ao procurar registrar o fluxo do real; o fabulizante, o argumentativo/persuasivo e o artístico – os três atrelados aos outros movimentos de cinema moderno, procurando, na contramão do modo documentário, quebrar a aderência da imagem-câmera ao real. Assim, os filmes buscam a realidade ao documentá-la, mas também ao interferir artisticamente sobre ela (que é compreendida, mas também moldada).

Apesar dessa viragem demarcada, a recepção a Cinco vezes favela e A grande cidade não destoa tanto

da que Rio, 40 graus teve. Ainda é, sobretudo, pelo modo de ver documentário que os sentidos dos filmes são criados. Por certo, também se mobilizam, em alguns casos, os outros modos de ver, somente para discutir o olhar do artista sobre a realidade, reforçando a crença na capacidade da câmera em “tocá-la”. Daí que os temas abordados, sobretudo favelização e migração, sejam debatidos pelo prisma sociológico, ou rebatidos por discursos políticos (no sentido institucional). Enfim, não se completa, de modo geral, a problematização da representação realista, que continua plenamente aceita por diversos tipos de público.

Já as outras obras indicadas, O desafio (Paulo César Saraceni, 1965) e Todas as mulheres do mundo (Domingos de Oliveira, 1967) – rejeitado, mas orbitando à volta do Cinema Novo –, bem como Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962) e Garota de Ipanema (Leon Hirszman, 1967), efetuam um corte mais profundo em relação à obra de Nelson P. dos Santos. Como afirma Ismail Xavier, dá-se “a recusa de uma visão dualista do Brasil. Esta sublinhava a oposição entre um país rural, matriz da identidade nacional, e um país urbano, lugar de uma descaracterização da cultura por força da invasão dos produtos da mídia internacional”.30

Embora o autor relacione essa característica apenas ao biênio 67/68, prefiro recorrer a uma flexibilização da cronologia, já que Os cafajestes (1962), que se enquadra na análise de Xavier, mas antecede o recorte temporal proposto, serve à percepção de que essas concepções de país não seguem uma divisão tão estanque. Dessa forma, tendo a crer que as mutações efetuadas na forma de representação do Rio estão atreladas a um complexo de fatores. Estes incluem não apenas a resposta a eventos políticos (como o governo de Carlos Lacerda na Guanabara, a chegada de Jango ao poder ou o golpe civil-militar de 1964)

29 ODIN, Roger. A questão do público: uma abordagem se-miopragmática. In: RAMOS, Fernão (Org.). Teoria contemporânea do cinema. vol. II. São Paulo: Senac, 2005; ______. Les espaces de communication: introduction à la sémio-pragmatique. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 2011.30 XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001 (Coleção Leitura). p. 31.PH

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Cláudia Morena, atriz e cantora,

fez parte do elenco de Rio,

40 graus, de Nelson Pereira

dos Santos. Correio da

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e artísticos (além dos já citados, o Tropicalismo, a Bossa Nova, a Jovem Guarda), mas também aos fenômenos de percepção, ligados à vivência singular da urbe que cada criador possui.

Dessa maneira, creio que é possível afirmar que os profissionais envolvidos na criação de tais obras mobilizam quase todos os recursos narrativos descritos até agora, mas recriam a cidade de forma bastante distinta. Essas narrativas estão menos interessadas nos imaginários associados à capitalidade e mais centradas na fruição do universo urbano, passando de uma concepção da urbe como discurso macropolítico para a sua apreensão como espaço da vivência micropolítica, arena dos embates privados (ainda que alguns personagens não deixem de se interessar pela política institucional). Esse processo foi detectado e incentivado (malgrado a recepção problemática) pelo lançamento, em 1967, do livro Brasil em tempo de cinema, de Jean-Claude Bernardet. A principal tese da obra causou furor, ao afirmar que o cinema moderno brasileiro era, mesmo quando representava o sertão ou as favelas, um “cinema de classe média”. Apesar disso, o autor concordava que os filmes urbanos fossem mais explícitos, ao realizarem “um corpo a corpo com a situação da classe média”31 – que tinha, por “habitat”, as cidades.

Seria justamente aí, nesse modo “classe média” de se relacionar com a cidade, que estaria a realidade dos cineastas, que passam a se identificar com os personagens, enquanto estes ganham complexidade psicológica, se caracterizando como intelectuais e/ou artistas. Agora, o realismo era mobilizado para se representar a “realidade deles” (cineastas), e não mais “A” realidade (do país). Pesquisas estéticas voltadas a representar a experimentação do real (no sentido filosófico) também têm vez aqui, já que o próprio fazer cinema é assumido como uma das temáticas possíveis, o que aumenta o processo de identificação entre cineastas e personagens. A

prática cinematográfica, no jogo metalinguístico, é percebida também como parte da realidade, e não só como porta de acesso a ela.

Em consonância com essa mudança de perspectiva, a representação urbana sofre uma inflexão, ganhando em variedade, tanto na qualidade dos planos, na seleção dos espaços, quanto na distribuição dos personagens por eles (acompanhando as transformações de seus perfis sociais, como descrito acima). Chama a atenção o eclipse da favela e de seus personagens (que só aparecem esporadicamente, de forma pouco enfática) e a ausência de planos abertos e de tomadas do alto enfocando cartões-postais.32 Esses recursos, que serviam a marcar a dualidade com que a capitalidade era mobilizada, cedem lugar a uma focalização fragmentada e mais intimista, centrada antes nos personagens – moradores da (ou circulando pela) Zona Sul – que no espaço. Assim, se recorre a uma redução da geografia imaginária, o que faz com que espaços como o subúrbio da Zona Norte sejam pouco explorados.33 As praias, marcantes na identidade carioca, antes incorporadas como espaço de hedonismo e alienação, têm seus sentidos complexificados. Há também um diálogo mais intenso com a arquitetura e o urbanismo modernistas (pautado antes pela aceitação que pela crítica), bem como a incorporação na trilha de outros ritmos além do samba. Por fim, se a política continua presente no horizonte,34 agora é defendida indiretamente: os debates politizados passam a fazer parte do universo diegético, voltados a uma crítica interna (faz-se política no filme, mas não com o filme – ao menos não necessariamente).

O resultado dessas operações é o estilhaçamento da imagem da cidade. Quando trazida para o plano do olhar dos personagens e atrelada a suas vivências, a câmera está livre para percorrer o caminho que quiser, recompondo a cidade a partir de seus fragmentos. É reforçada aqui a dimensão do “lugar

31 BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 150.32 Nesse ponto, a única ressalva se deveria às praias (Copacabana e Ipanema), que serão discutidas adiante.33 Mesmo em outros filmes em que a Zona Norte aparece, não chega a haver uma problematização. É o caso de A grande cidade e de dois filmes não abordados no texto, Rio, Zona Norte (Nelson P. dos Santos, 1957) e A falecida (Leon Hirszman, 1965).34 Nesse sentido, é digno de nota o fato de que a ausência da política na diegese tenha causado a rejeição de Todas as mulheres.

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qualquer”, como apresentada por Deleuze, cuja consequência mais drástica seria a obrigatoriedade de reconstruir, caso a caso, a representação da cidade, de acordo com o olhar que lhe lançam (os personagens, os criadores). Contudo, uma linha – frágil, porém carregada de tensões – ainda percorre essas obras, o que permite continuar pensando em termos de Cinema Novo (cujos limites são evidenciados em Todas as mulheres) e de Rio de Janeiro.

Tal linha pode ser acompanhada através dos traços deixados pelo hedonismo – acolhido ou rejeitado pelos personagens – privilegiadamente associado ao único lugar, nesses filmes, que poderia fazer as vezes de um cartão-postal: as praias. É pela rejeição (caso de O desafio) ou pela problematização (Os cafajestes e Garota de Ipanema) desses lugares que os cinemanovistas se afirmam. Por outro lado, é justo quando da assunção (arriscaria dizer “contaminação”) das praias como espaço de fruição do prazer que se dá a rejeição, como em Todas as mulheres – embora o filme seja lido como “carioquíssimo”. A recepção, por sua vez, continua a mobilizar o modo de ver documentário, mas agora debate temas como geração, posicionamento político (alienação) e moral.

Do cruzamento dos dados levantados, concluo que os limites do uso da cidade pelo Cinema Novo eram fornecidos pela circunspecção que pudesse conter. Ou ela serviria a representar os complexos problemas nacionais, através da capitalidade (e o foco estaria na exclusão social, entendida como “realidade”), ou tematizaria o mea culpa da classe média – a que os cineastas pertenciam –, ao mesmo tempo percebendo-se inserida no espaço de fruição do prazer, e rejeitando tal inserção, porque incomodada pela impotência frente à exclusão social (ainda parte da realidade, mas do Outro). Ao estender as observações para fora do Cinema Novo, porém permanecendo no âmbito do cinema moderno, é possível apreender que tal dicotomia nem sempre se fazia presente e o hedonismo também poderia ser representado sem culpa e como índice de “carioquice”.

Enfim, por essas polaridades segue a “correnteza sem paragem” – para citar, mais uma vez, Caetano Veloso – desse Rio que não é rio: cidade-imagens.

Rio que não é Rio, imagens

Morro da Providência.

Incrustada na geografia da

cidade, a favela era considerada centro da força transformadora

do povo, inspirando

Nelson Pereira dos Santos na realização de

Rio, 40 graus. Correio da

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Mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.Alice Pougy

Os cineclubes e a Cinemateca do MAM:espaços culturais da cidade do Rio de Janeiro na década de 1960

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Plateia lotada na terceira sessão de cinema do Museu de Arte Moderna, em 1955, ainda no auditório da Associação Brasileira de Imprensa. Correio da Manhã

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Os cineclubes e a cinemateca dO mam

Os cineclubes e a Cinemateca do Museu de Arte Moderna foram importantes espaços culturais no Rio de Janeiro dos anos 60, época de grande efervescência política, econômica e cultural. Sucedendo os tempos de desenvolvimentismo e nacionalismo da era JK, aqueles anos foram marcados por muita agitação e grande produção intelectual. Transformada em cidade-estado após a mudança da capital federal para Brasília, o Rio continuou a ser ainda por toda a década a caixa de ressonância do país, de onde floresceram importantes movimentos políticos e culturais.

O Brasil de então mudava seu perfil econômico. Um forte esforço de industrialização, identificado como desenvolvimentismo, permitiu a entrada maciça de capitais estrangeiros, gerou enorme inflação e promoveu o aprofundamento da exclusão social. A classe operária começou a se organizar e lutar por seus direitos. Foi um tempo de muitos movimentos reivindicatórios que suscitavam a ampliação de uma consciência nacional. Época em que cultura e política eram como duas faces de uma mesma moeda. Essa nova realidade foi fator decisivo na intensificação das atividades culturais, pois havia a convicção de que estas eram uma forma importante de participação social e política. E essa convicção conduziu muitos jovens a expressarem-se em termos de uma cultura popular, assumindo um papel de provocadores de transformações sociais, o que determinou a estética e as questões que inspiraram o período.

A cultura era particularmente “viva” no Rio. O espírito do novo esteve presente em todas as manifestações artísticas. O design arrojado nas artes plásticas e o concretismo na poesia foram respostas a essa demanda. Na literatura, os poetas concretos pediam poemas à altura dos novos tempos. A vanguarda intelectual de esquerda acreditava no papel transformador e revolucionário da arte e, com este objetivo, a cidade foi palco de várias manifestações, tais como os Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE), o Cinema Novo e o Teatro Opinião. Na música, tomava corpo o movimento da Bossa Nova, onde a musicalidade brasileira, expressa principalmente através do samba, era recriada com a assimilação de harmonias que em sua originalidade muito deviam

às formas musicais do jazz e da melhor canção internacional. Mas até mesmo a Bossa Nova acabou se politizando.

A vida cultural engajou-se à esquerda e direcionou-se para conscientizar as classes trabalhadoras do que seria seu papel histórico e político: tomar o poder e transformar a ordem econômica e social do país. Havia uma utopia e uma vontade de mudar. Acreditava-se, no entanto, que as mudanças só viriam com rupturas políticas, sociais e culturais. O discurso em moda era o que defendia que a vanguarda intelectual conscientizaria a massa da população e a exortaria à luta contra o capital estrangeiro e o grande latifúndio.

Com o golpe militar, em 1964, o cenário mudou e resistir ou capitular passou a ser o grande dilema do momento. Multiplicaram-se as profissões de fé relativas ao papel social do intelectual. A cultura passou a ser reativa.

Os anos de 1964-68 foram aqueles em que a esquerda politicamente vencida se impôs com triunfo no plano cultural. A repressão concentrava-se mais nos sindicatos e nas organizações políticas e, com isso, abria brechas significativas para manifestações culturais.

A cultura de oposição se construiu então através dessas apresentações artísticas. O Grupo Opinião centralizou o teatro de protesto e de resistência e foi um núcleo de estudos e difusão de uma dramaturgia nacional e popular. Os festivais da canção reuniram uma safra rara de compositores e intérpretes que defenderam, no palco do Maracanãzinho, com “sangue, suor e lágrimas”, um repertório com força para mudar o país. O Cinema Novo produziu filmes com uma estética revolucionária, sem grandes apelos técnicos, mas com o objetivo de conscientizar a classe trabalhadora. Todos esses eventos contaram com uma ativa participação de um público sedento de contestação.

Estudantes e intelectuais se reuniam em espaços eleitos para discutir novas “estratégias revolucionárias”. Pretendiam, através da denúncia e da resistência, efetuar sua revolução política. Havia uma crença na palavra. Havia a ilusão de

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que com a palavra, com a arte e com a imprensa se conseguiria mudar o país. Em 1968, as passeatas eram eufóricas, todos achavam que derrubariam o governo com palavras.

Em dezembro de 68, com o AI-5, foi mais uma vez desfeita a ilusão da hegemonia cultural e o mundo intelectual de esquerda sofreu profundas transformações. A censura política intensificou-se, agora também na vida cultural, e as dificuldades foram crescentes para aqueles que não pretendiam acatar o status quo vigente.

Os cineclubes

O cineclubismo viveu seu apogeu na década de 1960 e teve como caldo de cultura toda essa multiplicidade de fatores. Contra o domínio do cinema americano, que até então reinava absoluto, surgiu um movimento de afirmação nacional que fez crescer entre os jovens brasileiros da classe média um especial interesse pelo cinema.

O cineclube caracterizava-se por ser esse espaço usado para pensar, discutir e eventualmente até produzir filmes, mas essencialmente para reunir pessoas que amavam o cinema, essa arte da modernidade, internacional e com inesgotável poder de comunicação. Representava ainda uma

forma ativa de ir ao cinema, era um espaço de sociabilidade, formador de identidade de um público jovem, ávido por estar a par de seu tempo. Era a única forma de se aproximar e conhecer a produção cinematográfica mundial de distribuição mais restrita. A televisão não cumpria esse papel.

Os cineclubes eram em sua maioria vinculados a universidades e a entidades estudantis e frequentados por um público que procurava obras que expressassem suas inquietações e aspirações. Naquele momento, participar da vida cultural e frequentar cineclubes era a marca de uma fase em que não se compreendia cultura que não fosse participativa e engajada; fazê-la significava fazer política. A ideia de cultura como elemento de simples lazer era malvista e, no mínimo, inescrupulosa. E foi assim que o cinema pôde ser utilizado com o objetivo de conscientizar politicamente os espectadores.

A principal função dos cineclubes era então fazer chegar ao público o chamado “bom cinema” – com valores éticos e estéticos, que significasse alguma coisa a mais – , e não o cinema que predominava na ocasião. Ali se travaram acaloradas discussões sobre diferentes estéticas cinematográficas. A bipolarização internacional, por conta da Guerra Fria, gerava um forte antiamericanismo que se

Odete Lara e Helena Ignez estrelam no Teatro Opinião, núcleo de resistência política, a peça Se correr o bicho pega. Se ficar o bicho come (1966), de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar. Correio da Manhã

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manifestava num repúdio à estética americana representada pelas produções de alta qualidade vindas da indústria hollywoodiana. A ela se contrapunha um cinema mais barato, de autor, que utilizava atores não profissionais como o Neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa, que tinha como divulgador a revista Cahiers du Cinema, a bíblia do bom cinema.

Os problemas enfrentados pela incipiente produção cinematográfica brasileira, a viabilidade dessa indústria no Brasil e os possíveis caminhos a serem seguidos em resposta ao cinema industrial e monopolizador de Hollywood eram temas de inflamadas discussões entre os cineclubistas para conhecer, debater e pensar novos rumos para o cinema brasileiro.

Dois cineclubes tiveram maior importância na formação da mentalidade cinéfila da época: o Centro de Estudos Cinematográficos (CEC), o cineclube da Faculdade Nacional de Filosofia (que ficou conhecido como o Cineclube da Filosofia) e o Grupo de Estudos Cinematográficos da União Metropolitana dos Estudantes (GEC da UME). O Cineclube da Filosofia foi fundado em 1953. Exibia então tudo o que de cinema se conseguia passar: a cinematografia soviética, como Encouraçado Potemkin e Alexandre Nevsky, de Eisenstein, Mãe, de Pudovkin, e Aldeia do pecado, de Olga Preobrazhenskaya; o cinema neorrealista italiano, como Ladrões de bicicleta, de Vittorio de Sica; filmes franceses como La bataille du rail, de René Clement; além de filmes americanos com Greta Garbo, pois a atriz era maior que qualquer desavença política.

Torcida pela música Sabiá,

de Tom Jobim e Chico Buarque,

no Festival Internacional

da Canção em 1968, palco não

só de disputas artísticas, mas

também de protestos contra

a ditadura militar. Correio

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O Cineclube da Filosofia chegou a ter mais de trezentos associados, mas fechou um ano depois de sua fundação, permanecendo assim até 1959, em consequência de grande disputa política para se decidir quem seriam seus diretores e, portanto, quem teria o direito de escolher a programação. Reabriu então com uma orientação francamente esquerdista, quando a própria universidade havia se tornado um campo de batalha entre direita e esquerda.

O GEC da UME foi fundado em 1957 e tinha forte intenção de transformar-se em uma Escola Nacional de Cinema, mas isso não chegou a acontecer. Sua programação era feita com sucessivos ciclos de cinema organizados por temas: Ciclo de Cineastas, Ciclo de Diretores, de Atores e Ciclo de Temas-Questões. Foi um cineclube com acentuada preocupação didática, expressa em seus boletins mensais, edições bastante precárias, rodadas em mimeógrafo, mas bastante ricas em conteúdo. Além da programação, havia a “Chamada”, espécie de editorial que levantava questões sobre o tema do mês e propunha discussões. E era aí que se veiculavam as proposições políticas da diretoria.

Pelo número de associados, quantidade e qualidade dos filmes exibidos e dos debates promovidos, fica evidenciada a decisiva participação desses dois cineclubes, não apenas na formação de um gosto por cinema, mas também no desejo de produzir um cinema genuinamente nacional. Entretanto, até o advento do Cinema Novo não houve nesses cineclubes um ciclo sequer que tratasse de filmes brasileiros, já que os poucos produzidos até então não foram considerados bons o bastante para serem ali exibidos.

Cinemateca do Museu de Arte Moderna

A Cinemateca do MAM é a coordenadoria do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro dedicada à pesquisa, conservação, restauração e difusão de filmes e de materiais cinematográficos. O museu foi criado no final da década de 1940 com a proposta de divulgar a arte moderna e abrir espaço para que os artistas atuantes na capital federal entrassem em contato com as novas correntes cosmopolitas e abstratas então em voga. Pretendia ser, o que era considerado então, um museu moderno inspirado no

modelo de museu-escola norte-americano, como o MoMA de Nova York, com nítida vocação didática, que não quer ser apenas um refúgio romântico, mas uma instituição com função social definida.

O MAM era composto fundamentalmente por um setor de artes plásticas, uma biblioteca, um centro de documentação, os ateliers de desenho, gravura e pintura, um setor de cursos e a cinemateca. Representou um espaço de discussão e de produção de ideologias, especialmente a partir dos anos 60, quando a questão cultural brasileira passa a ser discutida mais enfaticamente.

A cinemateca nasce em 7 de julho de 1955, quando o MAM cria seu setor de cinema, promovendo sessões mensais no auditório da Associação Brasileira de Imprensa. Dois anos depois, as sessões do “Cinema do Museu” (como era chamado) passaram a ser semanais e já ofereciam um Boletim Mensal de Cinema. Em janeiro de 58, com a inauguração do primeiro bloco da sede permanente do museu, já podia ser chamada de cinemateca, pois o setor de cinema do MAM foi aceito como membro da Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF).

Em 1958 foi ali apresentada a I Mostra Internacional de Arte Cinematográfica, que exibiu no mesmo ano o Festival A História do Cinema Americano. Nos anos subsequentes foram apresentados festivais sobre o cinema francês, italiano, polonês, soviético e inglês. Esses festivais tiveram inegável importância, já que serviram para apresentar ao público carioca o que de melhor estava sendo produzido no mundo. No entanto, naquele momento apresentaram filmes que seguiam uma linha tradicional, tendo sido premiadas obras de René Clair e Fellini, considerados mais conservadores, ao invés dos mais inovadores, como Jean Renoir e Visconti.

Ao fim da década de 1950, assume uma nova diretoria, com uma proposta mais atual. Defende o surrealismo e propõe um estilo anárquico europeizante. São apresentados filmes de Henri Langlois, criador e conservador da cinemateca francesa, responsável pela localização e restauração de um dos maiores patrimônios da cultura cinematográfica mundial. Foi com a doação desses filmes, no começo dos anos

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60, que se tornou possível dar início ao acervo da Cinemateca do MAM.

Em 1964 foi inaugurado um auditório provisório e oferecidos cursos de crítica, realização e história do cinema. A linha de cursos seguiu até 1978, quando ocorreu o trágico incêndio do MAM. Esses cursos tiveram grande importância e por eles passou toda uma geração de futuros cineastas brasileiros.

Cosme Alves Neto assume, em 1965, a diretoria da cinemateca. Militante da Ação Popular, uma organização da esquerda católica, Cosme imprime uma linha própria priorizando o cinema brasileiro sem, contudo, abandonar os filmes clássicos. Nesse momento, o museu e a cinemateca tornaram-se o centro de resistência cultural da época: “tudo o que era possível ser feito, era feito ali”, afirma Cosme. Dali em diante, fica definido o caminho que a cinemateca trilhará, conduzida por seu diretor, até meados dos anos 80.

A cinemateca passou a ser um espaço eleito por intelectuais e estudantes que ali se reuniam, viam e produziam filmes de arte, pensavam a realidade nacional e driblavam a censura com o intuito de resistir ao regime e de continuar “fazendo a cabeça” do público que para lá se dirigia. “Pensar brasileiramente”, este era o lema do pessoal que frequentava a cinemateca.

As exibições eram programadas sob forma de ciclos temáticos, como por exemplo, Ciclo do Cinema Fantástico, Curtas Canadenses Premiados e Ciclo do Cinema Social. Havia também o Festival da Segunda Chance, onde era oferecida

a possibilidade de se rever bons filmes que passaram despercebidos em temporada anterior. A cinemateca assim cumpria seu papel didático.

Em entrevista à autora,1 antes de falecer em 1996, Cosme Alves Neto contou que sua proposta era apresentar “um pouco de tudo”: projetar filmes desconhecidos que pudessem instruir e promover debates e discussões, pesquisar e selecionar títulos que preenchessem a finalidade da cinemateca ser um centro difusor da cultura cinematográfica, sem perder a necessária prioridade para o cinema brasileiro, linha defendida por ele acima de qualquer outra questão.

Tudo isso fez com que, principalmente nessa segunda metade da década, a Cinemateca do MAM fosse o pulmão da cidade, quando se falava de cinema. Tanto que sua principal meta, que era a de pesquisa e restauração de filmes, ficou prejudicada por conta da importância que ali se dava à exibição e discussão.

A “Geração Paissandu”

Ampliando seu campo de influência, a Cinemateca do MAM, ainda sob a responsabilidade de Cosme Alves Neto, fechou acordos com os cinemas Paissandu, no Flamengo, e com o Tijuca Palace, na Zona Norte, para exibição de filmes de arte e marginalizados pelos circuitos tradicionais. Com isso, familiarizou milhares de jovens com o cinema de qualidade artística e intelectual francês, sueco, italiano, japonês, russo, polonês e, mais especialmente, o latino-americano. O Tijuca Palace não logrou muito sucesso, ao contrário do Paissandu, que representou o espaço de atuação da juventude intelectual que ficou conhecida como “Geração Paissandu”. O interesse da cinemateca foi criar um público com uma mentalidade mais consciente a respeito do cinema em geral e do Cinema Novo, em particular. Por ser sua programação mais comercial do que a do MAM, as sessões do Paissandu atingiam um público maior, o que, aliás, era seu principal objetivo.

1 Entrevista realizada em janeiro de 1996 com Cosme Alves Neto, diretor da Cinemateca do MAM no período de 1965 a 1988.

Reunião presidida por

Niomar Moniz Sodré, diretora-

executiva do MAM, para dar prosseguimento

à iniciativa de promover

um festival de cinema francês em 1959. Entre

os presentes estavam a adido cultural francesa Gabrielle Mineur

e o crítico de cinema Moniz Sodré. Correio

da Manhã

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As cantinas e bares vizinhos à cinemateca e ao cinema Paissandu foram importantes pontos de encontro dessa geração, responsáveis pela badalação que ali reunia diferentes grupos intelectuais de esquerda e, principalmente, de jovens, para discutir cinema, cultura, política e gritar contra o regime militar.

Uma cidadela da cidade das letras

A Cinemateca do MAM, mais que o cinema Paissandu, sobreviveu à repressão que se abateu sobre o país após o AI-5 e continuou, pelas décadas seguintes, cumprindo seu papel de organismo cultural dos mais atuantes. Considerada mais núcleo do que apêndice do museu, criou em torno de si, juntamente com os cineclubes a partir dos anos 60, um espaço culto, letrado e intelectual que difundiu a cultura cinematográfica na cidade e assim divulgou seu projeto de país, em consonância com o pensamento da esquerda, predominante na época. Pela cinemateca passaram os mais importantes nomes do cinema e da cultura brasileira.

Angel Rama, em seu livro A cidade das letras, faz uma leitura orgânica do processo histórico-cultural da América Latina, desenvolvendo o conceito de “cidade letrada”: aquela existente no centro de toda cidade e que rege e conduz sua parte visível e sensível. Constituída por religiosos, administradores, educadores profissionais, escritores e toda uma gama de diferentes servidores intelectuais, a cidade letrada compõe um anel protetor do poder e executor de suas ordens.2

O Museu de Arte Moderna, especialmente através de sua cinemateca, e os cineclubes do Rio de Janeiro constituíram-se em centros irradiadores de cultura, espaços não apenas físicos, mas também simbólicos; e nesse sentido podem ser considerados como “cidadelas da cidade das letras”, pois cumpriram durante os anos 1960, principalmente, seu papel de elaborar mensagens, desenhar modelos culturais e constituir ideologias. Pode-se concluir então que os cineclubes e a Cinemateca do MAM desempenharam a importante função de educar e instruir a cidade real.3

2 RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985.3 Ver também: POUGY, Alice. A Cinemateca do MAM e os cineclubes do Rio de Janeiro: formação de uma cultura cinematográfica na cidade. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1996.

Com sessões no Teatro Maison de France, o Festival História do Cinema Francês, realizado pelo MAM entre julho e agosto de 1959, apresentou filmes dos cineastas Abel Gance, Max Ophuls, René Clair, entre outros. Correio da Manhã

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As mesas do bar Amarelinho na calçada

da Cinelândia, um dos mais concorridos pontos de encontro

dos cineastas entre os anos 50 e 70. Correio

da Manhã

Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e mestre em Educação pela Fundação Getúlio Vargas. Professora do Departamento de Educação da PUC-Rio, onde coordena o Grupo de Pesquisa Educação e Mídia.

Rosália Duarte

A socialização de cineastas na cidade do Rio de Janeiro entre as décadas de 1950 e 1970

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Uma pesquisa realizada na França, na década de 1990,1 com setecentos diretores em atividade na-quele momento, constatou a importância de viver em Paris para a inserção profissional no cinema francês: cerca de dois terços dos entrevistados ou eram parisienses de nascimento ou haviam residido em Paris durante os primeiros anos de vida (até os vinte anos). Se for verdade, como sugeriu certa vez o sociólogo francês Pierre Bourdieu, que “numero-sos cineastas contemporâneos não existiriam sem a internacional literária, artística e cinematográfica cuja sede social é Paris”,2 pode-se supor, também, que muitos cineastas brasileiros devem sua inserção profissional no cinema à cidade do Rio de Janeiro, em especial, durante certo período, no qual foram implantadas e difundidas, sob circunstâncias his-tóricas e sociais muito particulares, certa maneira de ver, apreciar e fazer cinema.

1 LES RÉALISATEURS. Responsable: THONON, Marie. Chercheurs: BEC, Colette; BENARD, Monique; DELATTE, Jeanine; VIL-LEGLE, Valérie. Convention d’étude entre le CNC et l’AIC, Université Paris VIII, avec la participation de la SCAM et du Ministère de la Culture. Paris: Bibliotéque du CNC, 1990. Brochura.2 BOURDIEU, Pierre. Bourdieu desafia a mídia internacional. Folha de S. Paulo, 17 out. 1999. Caderno Mais!, p. 8.3 SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. p. 182.

No mundo artístico, a atmosfera metropolitana, que implica uma oferta cultural mais intensa e diversificada, diferencia os habitantes dos “es-trangeiros”, entendidos, aqui, como os que estão geograficamente situados fora dos grandes cen-tros de produção cultural. Para um “estrangeiro”, definido por Simmel como alguém que ingressa em um universo social que não é o de origem, a inserção na rede de relações estabelecida entre os que já pertencem a esse universo é mais difícil e mais complexa. Sua posição no grupo é muitas vezes determinada, “essencialmente, pelo fato de não ter pertencido a ele desde o começo”.3

É possível que hoje o acesso a tecnologias da comunicação e a descentralização da produção e da formação profissional tenham tornado as posi-ções de “habitante” e de “estrangeiro” de grandes

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metrópoles menos desiguais no que se refere à produção cultural. Mas, no período a que estamos nos referindo – décadas de 1950 e 1970 –, a questão geográfica influenciava fortemente a possibilidade de um jovem ver o cinema como atividade profis-sional, ou seja, de vir a se tornar cineasta. Em uma entrevista concedia a Amir Labaki,4 em 1994, o documentarista Vladimir Carvalho mencionou as dificuldades enfrentadas por ele e por seus amigos, moradores de João Pessoa, para ingressar profissio-nalmente no cinema: “Na década de 50, o cinema americano era um rolo compressor; fazia a nossa cabeça, a nossa alma”. Era difícil ver outro tipo de filme e mais difícil ainda fazer cinema: “Na Paraíba a gente não tinha referência alguma de produção”.

Nessa entrevista, Vladimir conta que, para escre-verem o roteiro de Aruanda (considerado um dos fundadores do documentário brasileiro), ele e Linduarte Noronha (diretor do filme)5 leram um tratado de roteiro e o seguiram, ponto por ponto, como se fosse um manual. A realização do filme exigiu a ida ao centro de produção – “aquela coisa da margem para o centro” –, diz Vladimir, para conseguir um fotógrafo (Rucker, que tinha migrado para São Paulo) e para obter financiamento, equi-pamentos e apoio técnico (obtidos no Instituto Nacional de Cinema Educativo – INCE).

Assim, o fato de boa parte dos cineastas que atua-vam profissionalmente naquele período residirem na cidade do Rio de Janeiro não era coincidência. Viver nessa cidade era um diferencial importante para quem se interessava por cinema, pois permitia o acesso a um importante circuito exibidor,6 a co-nhecimentos técnicos e equipamentos, além de uma proximidade maior com quem fazia ou desejava fazer filmes. Tinham sua sede no Rio a Atlântida Cinematográfica, o INCE, a Líder Cinematográfica e o Canal 100, entre outras produtoras.

4 Entrevistada realizada no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, publicada na revista Cinemais, em abril de 1999. p. 14-16.5 Aruanda (1960) é considerado o filme inaugural do documentário brasileiro e hoje empresta seu nome ao troféu outorgado, anualmente, ao melhor filme do gênero apresentado na Jornada de Cinema da Bahia.6 Do qual participava o Grupo Severiano Ribeiro.7 SIMMEL, Georg, op. cit., p. 13.8 VELHO, Gilberto. Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. p. 32.

De acordo com Simmel,7 a vida na metrópole extrai do homem uma quantidade de consciência diferen-te da que a vida em cidades pequenas pode extrair. A rápida convergência de imagens em mudança, a descontinuidade das percepções, o ritmo e a multiplicidade da vida econômica, o inesperado de impressões súbitas exigem condições intelectuais e psicológicas diferentes das adequadas à vida de pequena cidade. Além disso, “quanto mais exposto estiver o ator a experiências diversificadas, quanto mais tiver de dar conta de ethos e visões de mundo contrastantes, quanto menos fechada for a sua rede de relações ao nível de seu cotidiano, maiores serão suas chances de ampliar seus horizontes de pers-pectivas e metamorfosear projetos e iniciativas.8

Pela diversidade de experiências sociais, políticas e culturais que propiciava, a cidade do Rio de Janeiro contribuiu significativamente para a socialização profissional de muitos dos mais importantes diretores de cinema nas décadas mencionadas. Eram, em sua maioria, jovens universitários de camadas médias, moradores da Tijuca e da Zona Sul da cidade, filhos de profissionais liberais, professores e funcionários públicos, que dispunham de condições de vida sufi-cientemente boas para usufruir o que a cidade tinha a lhes oferecer, em um contexto social de forte valoriza-ção da leitura. A intensa atividade cultural na cidade, mesmo sob a ação da censura (após o golpe militar), favorecia o acesso a espetáculos teatrais e musicais, mostras e exposições, além do ingresso em uma rede social de pessoas interessadas em fazer cinema.

Acima de tudo, a cidade propiciava aos jovens cineas-tas uma experiência cinematográfica única no contex-to brasileiro do período, o que certamente favoreceu a aquisição de disposições que lhes permitiriam ver o cinema como prática social legítima, admiti-lo como fonte de formação cultural e, desse modo, incluí-lo no leque de suas possíveis escolhas profissionais.

Joaquim Pedro de Andrade. Correio da Manhã

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Cineclubes e cinematecas

Pode-se afirmar que a grande maioria dos que ingressaram profissionalmente no cinema, como diretores, nas décadas de 1950 e 1970 deve grande parte de sua formação aos cineclubes, dos quais participavam ativamente, quer como organizadores, quer como frequentadores assíduos.

De acordo com Pedro Simonard Santos,9 que anali-sa a geração do Cinema Novo, os cineclubes teriam sido uma “importantíssima estrutura de sociabili-dade” também para a geração “cinemanovista”, cumprindo entre outras funções a de “circuito exibidor paralelo e alternativo e a de formador de um público específico”, além de terem sido o principal espaço onde eram ministrados os poucos cursos de cinema da época.

O cineclubismo era muito forte e estava dissemina-do pelos grandes centros urbanos do país. No Rio, havia o CEC (Centro de Estudos Cinematográficos, da Faculdade Nacional de Filosofia – FNFi), o cine-

9 SANTOS, Pedro Henrique Simonard. A geração do Cinema Novo. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de São Paulo, 1995. Orientadora: Profª. Drª. Marília da Silva Franco. p. 53.10 Depoimento concedido à autora.

clube da Aliança Francesa, os cineclubes ligados aos Centros Populares de Cultura da UNE, os que eram organizados e mantidos pelas entidades estudantis secundaristas, cineclubes administrados pela Igreja Católica, entre outros. A Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) e o Cine Paissandu também atuavam como clubes de cinema, reunindo e for-mando interessados na sétima arte.

Impulsionado por estudantes e intelectuais que viam no cinema um instrumento de transforma-ção da realidade social, os cineclubes ocuparam espaço considerável no cenário político e cultural da cidade, especialmente durante a ditadura militar, já que, além de exibir filmes de vanguarda, tinham como tradição a realização de cursos e debates, o que fazia com que funcionassem, também, como centros de formação estética e política. A ação desses clubes terminava por atribuir valor a certos filmes, legitimando certas maneiras de fazer cinema e participando diretamente da produção de um sis-tema de preferências (gostos) cuja posse favorecia significativamente a inserção social e profissional.

Configurava-se ali um ambiente que difundia um tipo específico de cinefilia, que implicava conhecer o cinema de autor, identificar estilos e marcas dos di-ferentes diretores e cinematografias e, fundamental-mente, não ver ou não gostar do “cinema indústria” produzido em Hollywood. De acordo com Nelson Hoineff,10 “naquela época, não era de bom tom você gostar de cinema americano, não era uma coisa que você ousava. Então, os cineclubes, sobretudo o cinema Paissandu, funcionavam como uma espécie de trincheira contra o cinema americano”.

Ainda do ponto de vista da formação como cinéfilo que, na maioria dos casos, antecedeu e antecipou a formação profissional propriamente dita dos que faziam cinema naquele período, vale ressaltar o impacto de uma ação “pedagógica” empreendida pela Cinemateca Brasileira – Sociedade de Amigos da Cinemateca, cuja sala funcionava no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. No início dos B

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Cacá Diegues. Correio da

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anos 1960, O MAM promoveu cinco retrospecti-vas de cinema (cinema francês, italiano, soviético, alemão e japonês).

Eduardo Escorel11 considera a experiência de assistir aos filmes exibidos nessas mostras como fator determinante do seu interesse por ingressar profissionalmente no cinema:

Houve uma grande retrospectiva do cinema francês, depois uma grande retrospectiva do cinema italiano, do cinema soviético, do cinema americano, em que foram exibidos assim, de maneira seguida, uma sele-ção dos grandes filmes de cada um desses países. E eu, a partir daí, comecei, a cada ano que passava, a cada nova retrospectiva, a ver uma quantidade maior de filmes e fui aos poucos me interessando... começando a procurar coisas para ler sobre cinema, a fuxicar nas livrarias. E foi mais ou menos esse o processo pelo qual fui me interessando por cinema.

Teve também forte impacto na formação das gera-ções de cineastas do período o curso oferecido, em 1963, pela Cinemateca do MAM com o fotógrafo, naturalista e documentarista sueco Arne Sucksdorff, com o patrocínio da Unesco e do Ministério das Relações Exteriores, do qual participaram David Neves, Joaquim Pedro de Andrade, Eduardo Es-corel, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Orlando Senna, Arnaldo Jabor, entre outros. O curso propiciou aos jovens cineastas radicados no Rio de Janeiro a oportunidade de conhecer melhor o cinema que era feito na Europa naquele momento e experimentar inovações técnicas, operando com equipamentos de última geração.

Segundo Escorel, o aspecto prático desse curso possibilitou aos que dele participaram “aprender a mexer num gravador Nagra, de som direto – que era uma novidade no Brasil naquele momento –, aprender a mexer com mesa de montagem Steen-beck, que também era uma novidade no Brasil, aprender a mexer com a câmera e aprender certas coisas de fotografia”. O que, naquele momento, não era pouco.

Militância política

No período a que nos referimos, os clubes aos quais se dirigiam os amantes de cinema para ver filmes proibidos pela censura ou de menor interesse para o circuito comercial também eram frequentados por artistas renomados, políticos e militantes de organi-zações de esquerda. Ali, muitas vezes os debates em torno da narrativa e da técnica cinematográfica se transformavam em acaloradas discussões filosóficas sobre a função social do cinema e em debates políti-cos sobre desigualdades sociais, subdesenvolvimento e, não raro, sobre o combate à ditadura militar.

Mesmo que o cineclube pudesse ser visto (ou proposto) como “uma coisa muito mais cultural do que política” (Escorel), naquela época as duas coisas se confundiam. Na trajetória de muitos dos que vieram a se tornar diretores de cinema, o envolvimento com uma coisa acabou levando necessariamente à outra: “Havia uma espécie de sintonia, de fusão, entre um projeto de cinema e um projeto mais político de transformação do país [...] uma maneira de fazer alguma coisa, de participar de um processo, de um movimento”.

Desse modo, o cinema tanto podia ser um instru-mento de descoberta do país quanto de atuação política e “conscientização das massas”. Essa perspectiva constituiu uma espécie de ideia-força no meio cinematográfico.

Como observa Rogério Durst,12 se, naquele período, frequentar “um certo cinema” era “um ato político e libertário, de se manifestar, de reafirmar o senti-mento de uma geração, de ir contra o que estava estabelecido”, fazer cinema era uma espécie de “serviço prestado à nação”, seja por participar do projeto de afir-mação da identidade nacional, seja por estar discutindo os problemas que mais afligiam o país ou, mesmo, por fazer uso da câmera “como arma na luta contra a injustiça e a opressão”. De certo modo, a temática política dava a tônica da

11 Entrevista concedida à autora.12 DURST, Rogério. Geração Paissandu. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996. p. 33.

Arnaldo Jabor. Correio da Manhã

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produção cinematográfica, e era preciso ter algum domínio de uma para pretender fazer parte da outra.

Mesmo não sendo buscado com esse fim, muitas vezes o engajamento em agremiações de esquerda e entidades estudantis podia funcionar como “pas-saporte” para o ingresso no meio cinematográfico, especialmente para os que advinham de segmentos sociais onde esse debate não era cotidiano nem tão valorizado.

Amigos e bares

No trânsito pela cidade, os pares (rede de amizades) e os bares constituíram-se como elementos importantes na socialização dos que ingressaram profissionalmen-te no cinema no período mencionado. Mais do que eventuais pontos de encontro, os bares eram parte integrante do ambiente social em que essas gerações de cineastas se formaram. Da paisagem social com-partilhada, naquele momento, por esse conjunto de agentes, jovens adultos, moradores (definitivos e/ou temporários) da cidade do Rio de Janeiro, faziam parte, além das atividades políticas e do circuito dos cinemas de arte (cinema Paissandu, Cinemateca do MAM e cineclubes universitários), o circuito dos bares contíguos a estes espaços (o bar da Senador Vergueiro, o bar da ABI – Associação Brasileira de Imprensa, o Amarelinho da Cinelândia, o Lamas, entre outros).

Analisando formas de apropriação do espaço urba-no, Magnani13 define os lugares da cidade que atuam como pontos de referência, física e simbólica, para um certo número de frequentadores de variadas pro-cedências como manchas urbanas: “Áreas contíguas do espaço urbano dotadas de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam – cada qual com sua especificidade, competindo ou complementando – uma atividade ou prática predominante”.

Para o autor, as múltiplas relações estabelecidas entre os equipamentos, edificações e vias de acesso no interior de uma mesma mancha urbana tornam aquele espaço propício a determinadas práticas, transformando-o em ponto de referência públi-co para tantos quantos se interessam por aquele tipo de atividade. Os espaços frequentados pelos jovens aspirantes a cineastas, de que trata este texto, enquadram-se na categoria formulada por Magnani como uma mancha composta pelo circuito alternativo de cinema da Zona Sul e do centro da cidade e os bares contíguos a este, uma área que tinha como prática de referência assistir a filmes e discuti-los exaustivamente no bar da esquina.14

Pedro Simonard Santos menciona os bares em seu estudo sobre os fundadores do Cinema Novo. Respondendo à pergunta sobre o que teria levado pessoas “com personalidades e gostos tão díspares” a se integrarem a um mesmo movimento cinemato-gráfico, David Neves não titubeia: “O bar da Líder, onde todo mundo se reunia às seis horas da tarde”.15

O “bar da Líder”, como o próprio nome indica, ficava próximo ao laboratório Líder “onde eram feitos a revelação e o acabamento laboratorial dos filmes do grupo”.16 Nesse período, eram também

13 MAGNANI, José Guilherme; TORRES, Lilian de Lucca. Quando o campo é a cidade: fazendo antropologia na metrópole. In: ______ (Orgs.). Na metrópole: textos de antropologia urbana. São Paulo: USP/Fapesp, 1996. p. 40.14 Analisando lembranças do Rio de Janeiro entre pessoas que iniciaram sua vida adulta nos anos 30 e 40 do século XX, Myriam Lins de Barros (A cidade dos velhos. In: VELHO, Gilberto (Org.). Antropologia urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 50-52) também men-ciona a Cinelândia como “mancha de cinemas e bares”, objeto das recordações de seus entrevistados. Para a autora, essa era a forma de lazer “mais evocada pelas lembranças” dos que aqui viveram nesse período. Na cidade Rio de Janeiro, a chamada “mancha de cinemas e bares” constitui ainda hoje uma das formas de apropriação do espaço urbano para um conjunto de moradores, numa experiência que de certo modo preserva uma tradição.15 SANTOS, Pedro Henrique Simonard, op. cit., p. 58.16 Idem.

Paulo César Saraceni.

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pontos de referência: o Alcazar, em Copacabana, frequentado por intelectuais e artistas que partici-pavam da ebulição vivida pelo Rio de Janeiro do início dos anos 1960; o Amarelinho, que ficava entre a ABI e o MAM; e o Vermelhinho, que ficava “exatamente em frente à ABI”.17

Os bares próximos ao cinema Paissandu sig-nificavam muito mais do que mesas, cadeiras e cerveja gelada para os jovens cinéfilos aspirantes a cineastas. Constituíram-se como cenário privi-legiado de aprendizagem não formal, de troca de informação sobre cinema, de leitura e de discussão dos artigos publicados nos Cahiers du Cinéma e no Jornal do Brasil e, principalmente, como fonte de produção e difusão de crenças, valores, saberes e regras que orientavam o mundo do cinema daquele momento.

A esse respeito, Rogério Durst comenta:

No espaço físico do Cine Paissandu algumas tendên-cias típicas dos anos 60 se encontraram e se irmana-ram, para um filminho e um chope com bate-papo. No Paissandu, e ao seu redor, se desenvolveram uma es-tética, uma ideologia e uma atitude cinematográfica.18

Tão importante quanto assistir aos filmes exibidos nas salas de referência era falar deles no bar da esquina. Era nesse tipo de discussão que se pro-duziam os significados dos filmes e sua avaliação estética. Nas palavras de Lúcia Murat:

O Paissandu era muito mais o bar do lado do que o filme em si. Não era usufruir do prazer, era refletir, entender. Mesmo a proposta estética ou o que fosse. Não necessariamente a proposta política, mas mesmo a proposta estética.19

Nelson Hoineff também se recorda do “barzinho que ficava na esquina da rua Paissandu com a Se-nador Vergueiro” e dos debates e divergências que se desenrolavam ali:

Você ia conhecendo todo mundo, os caras que esta-vam fazendo os filmes do Festival JB ou que estavam nas sessões eram pessoas que sentavam com você no bar. Houve até um momento, mais ou menos entre 67 e 69, em que o mundo se dividia entre godardianos e antigodardianos [riso].[...] E aí você se sentava no bar junto com os godar-dianos ou os não godardianos e as pessoas iam se conhecendo e, desse conhecimento, iam nascendo parcerias em filmes.20

Fizeram ponto na Senador Vergueiro, cinema e bares, Abel Flávio, Arnaldo Jabor, Gilberto Bra-ga, Domingos de Oliveira, Murillo Salles, Nelson Pereira dos Santos, David Neves, Cacá Diegues, Neville D’Almeida, Paulo César Saraceni, Glauber Rocha, Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Helena Ignez, Eduardo Escorel, Leon Hirszman, José Lewgoy, Sérgio Augusto, Arthur Omar, Lúcia Mu-rat, Sérgio Rezende, Paulo Sérgio Almeida, Nelson Hoineff. Nas palavras de Hoineff:

A impressão que eu tenho é que naquele barzinho as pessoas meio que decidiam se iam fazer filme por esporte, se iam virar cineastas, se iam virar críticos, se iam virar produtores, se iam virar montadores, fotógrafos. Aquilo era muito decidido ali, era o grupo, a gente, todo mundo conhecia todo mundo.

Todo mundo conhecer todo mundo indicava tam-bém a possibilidade de se fazer (re)conhecido, se incluir, se integrar. É o que parece estar implícito no depoimento de Paulo Sérgio Almeida, ao afirmar que, “naquela época, você ia para a Cinelândia e todo mundo estava lá”:

Você tomava café com Glauber, com Nelson Pereira, aquilo ia te formando. Você ia sabendo quem estava fazendo o quê e ia correndo atrás. Até o lazer dos ba-res era para procurar emprego, para procurar trabalho, para procurar informação. Você ao mesmo tempo se formava emocionalmente e ao mesmo tempo se formava profissionalmente.21

17 Ibidem, p. 60.18 DURST, Rogério, op. cit., p. 16.19 Entrevista concedida à autora.20 Entrevista concedida à autora.21 Entrevista concedida à autora.

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As teorias sociológicas ressaltam que o indivíduo em formação social sofre a ação de uma multi-plicidade de agentes de socialização, que podem ensinar sem que uma relação formal de ensino/aprendizagem precise ser estabelecida, produzin-do efeitos que perduram muito tempo depois da experiência imediata. Essa perspectiva admite que, além das políticas de socialização deliberadamente educativas (família, escola etc.) e dos aspectos não deliberadamente educativos implícitos nessas po-líticas (colegas de escola, valores dos professores etc.), atuam, de modo bastante significativo, na produção do ser social momentos de existência social sem qualquer vocação educativa como a rua e o café. Esse parece ter sido o caso dos bares próximos aos cinemas na cidade do Rio de Janeiro.

Festival Brasileiro de Cinema Amador e Festival Brasileiro de Curta-Metragem

O Festival Brasileiro de Cinema Amador desempe-nhou um importante papel no contexto de forma-ção dos cineastas desse período: o de instância de descoberta, reconhecimento, revelação. O Festival JB/Mesbla, como ficou conhecido, contribuiu de forma significativa para que jovens cineastas e aprendizes de cinema conquistassem um lugar de relativo destaque no cenário cinematográfico na-cional, entre meados dos anos 1960 e os primeiros anos dos 70.

O festival do filme de curta metragem, criado e promovido pelo Jornal do Brasil, se dividiu em duas partes: a primeira, inteiramente dedicada ao filme amador, em 16mm, chamada Festival Brasileiro de Cinema Amador, criada em 65, durou seis anos, sendo que nos primeiros quatro anos contou com o apoio da Mesbla – por isso ficou conhecido como Festival JB/Mesbla. A segunda parte, que passou a ser em 35mm e era aberta aos cineastas profissionais, foi realizada a partir de 1971 com o nome de Festival Brasileiro de Curta-Metragem.22

Foi em meio à efervescência cultural que caracte-rizou esse período e ao “afã de fazer cinema” que nasceu o Festival JB:

Na época, o Jornal do Brasil era um dos poucos órgãos que se preocupavam com o cinema brasileiro. Foi nas suas páginas que levantamos o problema de séries de reportagens, mostrando o que estava se passando no setor, inclusive com entrevistas de realizadores que ainda pisavam num terreno quase de sonho. O JB, que sempre manteve um calendário de promoções cultu-rais, sentiu a importância do fato e o atraiu para si.23

O significado simbólico do Jornal do Brasil, assim como de seus jornalistas e críticos, especialmente, Miriam Alencar e Ely Azeredo, para o “povo de cinema dos anos 60 e 70” foi enfatizado por Nel-son Hoineff:

O Jornal do Brasil era a bíblia absoluta do pensamento cinematográfico carioca, talvez brasileiro, mas, sem dúvida alguma, carioca. [em matéria de cinema] Os padrões eram ditados pelo que estava no JB [...] tinha um time de críticos que era muito respeitado pelas pes-soas, pelos teenagers, como eu, como as outras pessoas.[...] Eu me lembro que a pessoa que fazia a reportagem de cinema era a Miriam Alencar e o crítico principal do JB era o Ely Azeredo. Então, todo mundo ficava na expectativa de ter uma entrevista de dez linhas feita pela Miriam Alencar ou que o Ely Azeredo dissesse duas linhas sobre um filme seu. Isso era a consagração.

O Festival JB/Mesbla era a única instância que permitia que os jovens cineastas exibissem seus primeiros filmes e viessem a se tornar conhecidos e/ou reconhecidos; enquanto ele existiu, o JB fazia cópias de todos os filmes premiados e as enviava em lotes para correr os cineclubes do Norte, Nor-deste, Centro e Sul do país.24 Isso ampliava o raio de ação e valorizava, ainda mais, sua premiação.

Ter um filme aceito pelo festival JB significava reconhecimento de valor, sobretudo se este fosse

22 ALENCAR, Miriam. O cinema em festivais e os caminhos do curta-metragem no Brasil. Rio de Janeiro: Artenova, 1978.23 Ibidem, p. 96.24 Ibidem, p. 101.

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premiado. O Festival Brasileiro de Cinema Ama-dor podia conceder um tipo de distinção ao filme e, sobretudo, ao seu criador, que dificilmente seria obtido de outro modo, pois, além de ser único em sua categoria, levava a chancela do Jornal do Brasil. Significava usufruir da oportunidade de ser visto e reconhecido por representantes de diversos segmentos do cinema brasileiro e ver seu nome projetado na tela do Cine Paissandu: “A mesma tela em que você estava vendo Godard, estava ven-do Resnais, você estava vendo o seu filme. E isso tinha um peso monstruoso!” (Nelson Hoineff).

Nas entrevistas que me foram concedidas, foram recorrentes as referências ao Festival JB/Mesbla, quase sempre associadas a circunstâncias que es-timularam ou mesmo favoreceram o ingresso no cinema: a partir de uma premiação ser convidado, por um diretor, para atuar como assistente, mere-cer comentários elogiosos de um dos críticos do Jornal do Brasil e assim por diante. De certo modo, o cinema entrou “por acaso” na vida de algumas pessoas dessa geração e o Festival JB/Mesbla foi uma das instâncias que possibilitou isso.

Assim, por uma série de razões, inclusive de natureza conjuntural, as várias edições desse evento acabaram desempenhando um papel decisivo na constituição de uma importante geração de cineastas, cuja atuação no campo cinematográfico e no campo social apressou os passos (aparentemente irreversíveis) do cinema brasileiro em direção à sua profissionalização.

Um Rio de cinema

Ainda que se reconheça a importância de outros centros de formação e criação cinematográfica como Salvador, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, entre outros, não se pode deixar de reconhecer o papel fundamental desempenhado pela cidade do Rio de Janeiro no desenvolvimento do cinema brasileiro, sobretudo entre os anos 1950 e 1970. Nesse período, uma configuração peculiar de fatores políticos, econô-micos e sociais constituiu, na cidade, uma atmosfera cultural bastante favorável à experimentação estética e à reflexão político-filosófica sobre cinema, no interior da qual se formaram os profissionais cujas ideias e ações deram origem a algumas das mais relevantes obras da nossa cinematografia.25

25 Ver também: DUARTE, Rosalia. A socialização profissional de uma geração de cineastas na cidade do Rio de Janeiro. In: DAUSTER, Tânia (Org.). Antropologia e educação. Rio de Janeiro: Forma & Ação, 2007.

Domingos de Oliveira. Correio da Manhã

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Jardel Filho e Odete Lara estrelaram o episódio Balbino, homem do mar, baseado no conto de Orígenes Lessa, no longa-metragem Esse Rio que eu amo (1961), de Carlos Hugo Christensen. Correio da ManhãB

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Quantas cidades cabem em uma cidade? Quantas cidades cabem em filmes sobre a(s) cidade(s)? Quantas cidades estão na experiência dos diretores e personagens, na sua vivência e inscritas nos seus corpos? Quantas cidades são possíveis em uma narrativa e nas interpretações que estas narrativas suscitam?

Estas perguntas são frutos da minha curiosidade sobre os diálogos entre cinema, espaço urbano e suas representações. Interessa-nos refletir, a partir do enfoque da Antropologia do Cinema em parti-cular (e das Ciências Sociais & Cinema), sobre as imagens das cidades no cinema, nas (re)construções dos espaços urbanos e das formas de se apropriar desses espaços, nas políticas culturais desenvolvidas na(s) cidade(s), nos sujeitos envolvidos no processo do fazer cinematográfico. Desdobram-se também em outras possíveis análises: metrópoles e dilemas das metrópoles no cinema, militância e engajamen-to, subjetividades e memórias, filmes de arquitetos e sobre arquitetos, enfim, as mais diversas relações entre cinema e cidade.

Este artigo é uma reflexão inicial do projeto de pesquisa que desenvolvo atualmente sobre as múl-tiplas representações da cidade do Rio de Janeiro no cinema e em outras mídias. Na pesquisa, tanto ficções como as não-ficções me interessam, assim como suas inter-relações. Para o desenvolvimento deste texto estou considerando especificamente os documentários de longa metragem produzidos (e que entraram em cartaz) entre 1995 e 2010, que retratem o Rio de Janeiro (ou que o Rio de Janeiro esteja representado) ou, mais especificamente, sua arquitetura e a relação da população com o espaço urbano, do indivíduo com a metrópole, a partir do entendimento da multiplicidade desta cidade.1

Este artigo é, ainda, um desdobramento das minhas reflexões sobre a cidade do Rio de Janeiro, desen-volvidas nos últimos 15 anos, desdobramentos dos meus estudos de pós-graduação. Entre 2000 e 2009, enquanto realizava o mestrado e o doutorado, uma das metodologias de pesquisa utilizadas por mim para pensar meu tema de pesquisa foi a análise fílmica, que ajudou a refletir sobre o que eu traba-

1 Importante ressaltar que a análise apenas dos documentários se deve a questões metodológicas, e que não deixo de lado outras pers-pectivas, tais como uma comparação com as imagens e representações do Rio de Janeiro no cinema de ficção do mesmo período, assim como em outras mídias, principalmente séries televisivas, produzidas pelas TVs abertas ou para os canais a cabo.

Meninos observam

do alto do Morro do Pasmado

a praia de Botafogo,

1961. Correio da

Manhã

Doutora em Saúde Coletiva e mestre em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Antro-póloga, professora universitária e pesquisadora associada do Grupo de Análises Políticas e Poéticas Audiovisuais e do Núcleo de Estudos em Cultura, Identidade e Subjetividade (Cultis), ambos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Colaboradora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e do Núcleo de Pesquisa das Violências, ambos da UERJ.

Ana Paula Alves Ribeiro

“De uma cidade não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas.”Ítalo Calvino, em Cidades invisíveis.

Múltiplas cidades Representações do Rio de Janeiro no cinema e em outras mídias

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lhava naquele momento: apropriação dos diversos espaços da cidade pelos seus moradores, violência urbana e políticas sociais e culturais (principalmente relacionadas ao carnaval e ao samba).2

Uma das principais questões percebidas naquele momento era a impossibilidade de, em pesquisas socioantropológicas, generalizar sobre os espaços da cidade, fosse porque a cidade se constitui em sua diversidade de povoamento, economias, cons-truções arquitetônicas, da dinâmica de políticas (de todo tipo: urbanísticas, culturais, de segurança pública) e de acesso a bens e serviços e equipamen-tos culturais, do ethos e das identidades dos seus moradores e de zonas da cidade que se compõem

inclusive como radicalmente diferentes dentro de-las mesmas (bairros que fazem parte da Zona Oeste são muitos diferentes entre si, podendo contemplar Barra da Tijuca e Santa Cruz, por exemplo). E esta percepção não se refere apenas ao Rio de Janeiro, basta olhar para a produção em cinema e TV de outras cidades, como Recife3 ou na Nova Orleans (EUA) pós-Katrina.4

Essas diferentes reflexões e suas possibilidades de pensar qualquer cidade sob a óptica de múltiplos olhares, múltiplas representações e identidades, vai desde um debruçar sobre fenômenos urbanos, tais como violência urbana, as transformações radicais nas paisagens urbanas causadas por catástrofes ou

2 Este texto que agora apresento é um desdobramento também de reflexões sobre a cidade do Rio de Janeiro nos últimos 15 anos. Cientista social de formação, desde a graduação venho pesquisando os diferentes espaços da cidade e como a violência urbana afeta moradores de áreas menos cuidadas ou com menos políticas públicas e equipamentos (sejam eles direitos sociais, sejam equipamentos culturais). No caso específico do Rio de Janeiro, optei por estudar movimentos culturais e políticas sociais de prevenção à violência no subúrbio do Rio de Janeiro, pensando principalmente em ONGs e associações que tivessem projetos ligados à musicalidade negra (afro-brasileira), principalmente o samba e o jongo.3 No Recife, realizadores como Kléber Mendonça Filho, Cláudio Assis, Gabriel Mascaro, entre outros, têm representado os seus “Recifes” nas telas nos últimos anos.4 Após a passagem do furacão Katrina, em 29 de agosto de 2005, e a inundação de várias cidades no entorno do Golfo do México, deixando mais de 1.800 mortos e um rastro de destruição, houve como consequência a diáspora de seus moradores para outras cidades norte-americanas e uma reconfiguração do seu espaço urbano e da sua cultura local. Desde o furacão, período denominado pós-K, têm sido produzidos pelos próprios moradores da cidade e ativistas (músicos, ambientalistas, do movimento negro, por exemplo) filmes de ficção e documentários, assim como programas televisivos sobre a cidade, recuperando trajetórias, memórias, culturas musicais e, no caso das ficções, utilizando a cidade como cenário e incrementando a indústria cinematográfica local, as ofertas de emprego e o turismo.

Os jardins encharcados

pela chuva torrencial: o

cenário urbano sujeito às

intempéries dá lugar a uma

visão poética, imagem de uma cidade

de múltiplos olhares. Correio

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megaeventos, um olhar mais acurado para determi-nadas áreas da cidade, passando por personalidades e suas biografias individuais, movimentos culturais, ou elementos de identificação de um determinado meio característico da cidade, como praias ou fave-las, espaços estes que aparecem nas representações sobre identidade do Rio de Janeiro.

Pensar esta multiplicidade se faz necessário e deve ser feita com algumas ressalvas: a primeira é que a cidade pensada por especialistas, sejam estes ar-quitetos e urbanistas, antropólogos, sociólogos e geógrafos entre tantos é, via de regra, radicalmente diferente da cidade filmada. A cidade filmada é uma obra de arte e daí vem nossa segunda res-salva: mesmo levando em consideração que ela é resultado e por si só uma obra de arte, há o olhar do cineasta, que é um olhar no mundo. Cinema en-gajado, interesse social, ativismo político. Algumas representações influenciarão olhares e percepções, geram identificações, poderão ser utilizadas em sala de aula como metodologia de pesquisa e estratégia de divulgação de resultados.

Uma das premissas deste trabalho é que a fotogra-fia, desde meados do século XIX, depois o cinema e hoje os registros em novas mídias têm captado e retratado as várias cidades existentes no Rio de Janeiro. Das diferenças dos espaços – povoamento, construções, apropriações, políticas públicas, dis-cursos – emergiu uma cidade que se entende como múltipla, o que se reflete nas imagens produzidas sobre ela. Esta ideia de múltiplas cidades agrega ou absorve os discursos urbanísticos e arquite-tônicos e as proposições da antropologia de uma determinada época. E se cada cidade é plural, em suas várias dimensões, os filmes também o são. São inúmeras as possibilidades de representar uma cidade, sejam estas na ficção ou na não-ficção. Es-pecificamente no caso do Rio de Janeiro, a análise prévia dos dados demonstra que as representações da cidade na ficção são compostas, em sua maioria, por imagens de uma metrópole que enfrentou dile-mas específicos de um crescimento acelerado e de mudanças em suas organizações políticas durante o processo que emerge ao final da ditadura militar e no período de redemocratização. Emergência e crescimento das favelas ao longo do século XX e um quadro de violência urbana consequente das

guerras de facções do tráfico de drogas, altamente armado e violento. No Rio de Janeiro visto pelo ci-nema, estes dois fatores, juntos ou separados, estão presentes, fazendo com que tenhamos um eterno retorno a estas questões e imagens, mesmo com a diferença de abordagem dos diretores em cada produção, tornando tais representações do Rio uma recorrência. Neste sentido, cabe perguntar: O Rio de Janeiro da ficção é tão múltiplo assim?

Rio cenário, Rio turístico, violência, favela e poucas coisas mais

Antes de olharmos para os documentários, cabe falar dessas imagens quase homogêneas do Rio, de uma era pré-UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), como uma cidade violenta e que esta violência está localizada em bairros mais pobres e favelas. Este Rio de Janeiro enfrenta o dilema de lidar com o tráfico e a guerra gerada pela necessidade de se as-sumir os pontos de drogas e, posteriormente, uma mudança nesta dinâmica, que é o aparecimento das milícias e a disputa do mercado de segurança.

Dos 33 filmes levantados inicialmente, em 13 pelo menos uma destas duas abordagens está presente. A violência aparece em dois dos filmes de Murilo Salles, Como nascem os anjos (1996) e Seja o que Deus quiser (2002). Está presente em Orfeu (1999), de Carlos Diegues; Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles; Quase dois irmãos (2004) e Maré – nossa história de amor (2008), de Lúcia Murat; Tropa de elite (2007) e Tropa de elite 2: o inimigo agora é outro (2010), de José Padilha; Cidade dos homens (2007), de Paulo Morelli; Era uma vez... (2008), de Breno Silveira; Verônica (2008), de Maurício Farias; Última parada 174 (2008), de Bruno Barreto; 5x favela: agora por nós mesmos (2010), de Manaíra Carneiro & Wagner Novais, Rodrigo Felha & Cacau Amaral, Luciano Vidigal, Cadu Barcellos e Luciana Bezerra. Filmes como os de Murilo Salles (principalmente Como nascem os anjos) e Carlos Diegues (com Orfeu) são frequentemente objetos de análise em áreas como sociologia, antropologia, comunicação e estudos de cinema. Não é exagero dizer que Cidade de Deus e os dois Tropa de elite são três dos filmes mais analisados no Brasil e por brasilianistas na última década, originando artigos, dissertações e teses também nestas áreas, e que caberia um le-

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vantamento específico sobre os diferentes olhares e reflexões oriundos destes filmes. Olhares “de perto” e “de dentro”, como diria o antropólogo urbano José Guilherme Cantor Magnani sobre a diferença de olhares entre quem “sabe” e quem “vivencia”. Tendo Cidade de Deus virado roteiro a partir do livro de Paulo Lins, do mesmo nome, publicado pela Companhia das Letras em 1997, e de Tropa de elite ser originado de Elite da tropa, de André Batista, Rodrigo Pimentel e Luiz Eduardo Soares, publicado pela Objetiva em 2006, os Rios de Janeiros contidos nas narrativas de Paulo Lins, ex-morador da Cidade de Deus, e dos policiais do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), no caso de Batista e Pimentel, ou do ex-secretário de segurança pública do Estado do Rio entre 1999 e 2000, no caso de Soares, podem ter feito destes filmes símbolos desta cidade.

Outros olhares neste quadro surgem na produção de 5x favela: agora por nós mesmos, um projeto de cinco curtas, que, como o nome diz, foi concebido e realizado por moradores de favelas da cidade.

Ainda que as favelas ou o tráfico de drogas (ou os dois juntos) não sejam foco ou cenário dos filmes, a violência urbana, mesmo quando não é parte constituinte da narrativa, algumas vezes emerge em episódios para marcar a especificidade de se viver em uma metrópole onde a pobreza e a desigualdade estariam postas. Para além da equação favelas, tráfico de drogas, violência ur-bana, parte do que passa essas ficções “reais” é a imagem de um Rio de Janeiro cenário/paisagem ou do exotismo do olhar sobre a cidade e seus moradores. Neste sentido, quais são as imagens alternativas a estas que a ficção apresenta? Acre-dito que Transeunte (2010), de Eryk Rocha, é uma destas possibilidades.

O filme Transeunte tem como protagonista Expe-dito, um recém-aposentado e sem grandes laços sociais, morador do Rio de Janeiro que tem uma experiência singular com a cidade onde mora. Na sinopse, aparece como um filme que fala principalmente da vivência de um indivíduo na metrópole, do seu envelhecimento e da sua soli-dão. Com 125 minutos, filmado em película e em preto e branco, o filme é um mergulho no univer-

so de Expedito e no seu contato com o urbano. Transeunte é um filme no qual o envolvimento se dá aos poucos, assim como o reconhecimento de espaços e situações, numa construção em que ficam pouco claros os limites entre documentário e ficção, entre aqueles que são atores e os não profissionais. A ausência de limites, algumas vezes, nos joga dentro do filme, já que alguns planos dão a sensação de sermos um na multidão, testemu-nhas da história de Expedito e da sua memória. O que se vê pelos olhos de Expedito? Gente comum como o próprio personagem, os trânsitos entre as várias cidades (cemitério, estádio de futebol, bares, ruas, transportes) e em uma cidade que está em transformação acelerada, assim como a vida do personagem, obras em andamento, operários trabalhando e construções. Em contrapartida, o que não vemos? E por que não vemos o que Ex-pedito provavelmente não vê? Favelas. Parte do centro do Rio de Janeiro é cercado de morros e favelas. No centro do Rio deste filme se vê prédios e nenhuma favela.

É uma cidade fora do eixo, fora do espaço, deslocada. É Rio de Janeiro e não é. Como foi apontado em toda a divulgação do filme, poderia ser qualquer cidade da América Latina, e seu centro poderia ser o centro de qualquer grande metrópole. Assim, Expedito poderia estar em qualquer lugar, em qualquer metrópole. Isso se dá porque em Transeunte, o que é comum, o cotidiano é privilegiado e qualquer imagem pré-concebida do Rio de Janeiro é recusada. Não há violência, tráfico de drogas, favelas no horizonte, e o preto e branco aplaca a imagem (real) de abandono e decadência que a cidade pode ter. Tudo tem um pouco de abandono e decadência na vida, na casa e na cidade que Expedito habita, trazendo um ar atemporal ao filme. Tudo mesmo, até a camiseta oficial do Flamengo que ele utiliza. Cabe notar, porém, o centro antigo do Rio de Janeiro se revi-talizando aos poucos, ao mesmo tempo em que a vida de Expedito sofre transformações.

Tendo a considerar Expedito um narrador singular de cidades que vão sendo desvendadas por meio dos trânsitos, que se mostram mais possíveis e plurais nos filmes documentários produzidos sobre e na cidade do Rio de Janeiro.

Foliões descansam na calçada após mais um desfile de escola de samba. O carnaval é uma das mais frequentes representações da cidade do Rio de Janeiro no cinema. Correio da Manhã

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Documentários sobre o Rio de Janeiro

Quando os documentários sobre o Rio entram em foco, comparando com as ficções produzidas no mesmo período, as perspectivas mudam. Nos documentários, o Rio de Janeiro que aparece é muito mais plural. A cidade que nos é apresentada, no mesmo período é muito significativa: Santo Forte, de Eduardo Coutinho, assim como Notícias de uma guerra particular, de João Moreira Salles, os dois de 1999, trazem uma perspectiva muito própria em cada um. Em Santo Forte, filmado na Vila Parque da Cidade, na Zona Sul do Rio, o documentário nos apresenta a visões da religiosidade carioca, brasi-leira, sincrética, e como se dá a relação com esta religiosidade – independente qual seja: o sincretis-mo, os trânsitos religiosos e a fé estão presentes. Notícias de uma guerra particular, de João Moreira Sal-les, vai retratar os dilemas de uma cidade em guerra constante por conta do tráfico de drogas, trazendo a dimensão de especialistas, soldados em lados opostos nesta guerra e moradores. Ambos de 1999, ambas perspectivas plurais. Eduardo Coutinho já havia retratado uma favela do Rio de Janeiro (Santa Marta: duas semanas no morro, 1987), assim como retratará no ano seguinte outra favela, em Babilônia 2000 (filmado no Morro da Babilônia, estreou em 2000). Três favelas da Zona Sul com personagens construídos distintamente, assim como estes três documentários têm perspectivas muito distintas, que recusam um olhar maniqueísta sobre a favela bem como recusam colar a favela a uma imagem de violência. As pessoas vivem suas religiosidades, têm as suas expectativas quanto ao futuro no início de uma nova década e vivem um cotidiano que não nega a violência urbana ou a criminalidade existente na cidade, mas que ao mesmo tempo está para além dela. O filme de João Moreira Salles, Notícias ..., faz com que acompanhemos personagens tão distintos como Hélio Luz, que foi chefe da polícia civil do Rio de Janeiro de 1997 a 1999, Paulo Lins e Rodrigo Pimentel, então do Bope, hoje comentarista da área de segurança pública da Rede Globo.5 A cidade na qual estas pessoas nasceram e a cidade que perce-bem definitivamente não é a mesma.

João Moreira Salles produziu em anos anteriores uma série para o canal a cabo GNT chamada Futebol (1998),6 que apresentava a vivência na cidade dos jogadores de futebol – aspirantes, profissionais e aposentados. A luta para se consolidar no campo, o trânsito pela cidade para participar das diversas pe-neiras, as dificuldades de deslocamento no caso das famílias mais pobres, assim como o início do sucesso e as possibilidades de vivenciar a profissionalização no futebol no caso dos que estavam se consolidando na profissão são algumas das propostas apontadas naquele filme. No terceiro filme da série, Paulo Cé-sar Caju, antigo jogador, morador de Copacabana, era uma possível interpretação das escolhas feitas durante o processo de profissionalização.

Ao fazer o filme Edifício Master (de 2002), sobre um edifício de apartamentos conjugados em Co-pacabana, Eduardo Coutinho dá face a histórias e trajetórias que teriam se despersonalizado em uma metrópole.

São estas várias faces da cidade que passam a emer-gir em documentários tão distintos em estilo como em propostas: o centro do Rio quase desconhecido em uma pré-revitalização da área do porto e seus antigos moradores em Morro da Conceição (Cristiana Grumbach, 2005), a tradição de bate-bolas nos bairros do subúrbio do Rio de Janeiro em Carnaval, bexiga, funk e sombrinha (de Marcus Faustini, 2006) ou sobre o próprio subúrbio, como Alma suburbana (de Luiz Cláudio Lima, Hugo Labanca, Leonardo Oliveira e Joana D’Arc, 2007), uma suposta identi-dade carioca que passa pela praia em Faixa de areia (Daniela Kallmann e Flávia Lins e Silva, 2007) são alguns destes exemplos. Há outros passos a analisar mais detalhadamente nos casos a seguir. Um dos mais interessantes é a cidade como palco eleitoral dos aspirantes a vereadores de Vocação do poder (Eduardo Escorel e José Joffily, 2005).

O filme acompanha seis candidatos a vereador na eleição de 2004 na cidade do Rio de Janeiro. Mari-nheiros de primeira viagem, Carlo Caiado, a pastora Márcia Teixeira, André Luiz Filho, Antonio Pedro,

5 Paulo Lins e Rodrigo Pimentel têm se constituído como vozes constantes sobre imagens da cidade.6 O primeiro filme da série Futebol, de João Moreira Salles, acompanha durante meses meninos do subúrbio e das favelas do Rio de Janeiro, alguns de outros estados, que têm como sonho tornarem-se jogadores de futebol.

A praia como espaço de

convivência e lazer é um

dos locais que melhor descreve

uma suposta identidade

carioca. Correio da Manhã

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Felipe Santa Cruz e MC Geleia representam um pouco da diversidade política do município. Com inserções religiosas, idades, classes sociais e trajetó-rias políticas bem distintas, os candidatos conseguem construir uma relação de empatia com a câmera, algo dificultado pelas filiações político-partidárias de cada um. Eles encarnam quase à perfeição uma fatia do eleitorado carioca e suas opções. A tentativa deles de passar credibilidade, mostrar a relação com a família e os amigos e o apoio que eles têm cria certa simpatia com o público que os assiste.

Ao expor suas plataformas de campanha, algumas falas clientelistas emergem nos discursos, e a tenta-tiva de se aproximar do eleitor, seja ele quem for, faz com que se explicite como a política municipal é exercida de maneiras e com estratégias tão dife-rentes nas várias regiões da cidade.

Projetos sociais que só funcionam em função das eleições, distribuição de cadeiras de roda, apa-drinhamento político, reconstrução de telhados, pagamento de cabos eleitorais e, em alguns casos, a vontade de se manter distante deste tipo de prática tão natural para alguns candidatos que reproduzem parcialmente o que vemos desde que o voto foi instituído no Brasil.

Já em documentários como Moro no Brasil e Contra-tempo, cineastas vão começar a trabalhar não apenas com a concepção de que os jovens são o futuro do país, mas também de que os projetos sociais foram criados para aumentar o leque de oportunidades dos jovens quanto à capacitação profissional, à inserção no mercado de trabalho e às oportunida-des de lazer nos bairros mais pobres e nas favelas.

Esses filmes apresentam um duplo movimento. Primeiro porque demonstram que a história desses jovens e das pessoas que fizeram diferença em suas comunidades é passível de virar filmes produzidos por Hollywood, para a televisão ou se transfor-marem em documentários e objeto de programas vespertinos no estilo Oprah Winfrey. Ao mesmo tempo, ao transformar em ficção algumas dessas histórias reais, inspiram diversas comunidades a se organizarem para defender seus interesses po-líticos e criar alternativas educacionais, esportivas, culturais e de lazer para suas crianças e jovens,

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Copacabana vista do Morro

da Babilônia. Durante os

preparativos para a festa da virada do ano

2000, Eduardo Coutinho

gravou depoimentos

dos moradores da favela

sobre suas expectativas para a nova

década, resultando no documentário

Babilônia 2000. Correio da

Manhã

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além de efetivamente trabalhar com a prevenção e o desenvolvimento do capital cultural e da cultura cívica dentro das vizinhanças a que elas pertencem.

No documentário Moro no Brasil (de 2002), Mika Kaurismäki defende a tese de que o samba é a mú-sica por excelência do Brasil e como tal não é único, não tem uma única matriz, não tem um único dono. É a partir das influências regionais de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro que o diretor pensa também na transformação deste ritmo e em como as novas gerações o recebem, o respeitam, o transformam e tem suas vidas também transformadas por ele. Especificamente no Rio de Janeiro, o projeto es-colhido é o Funk’n’Lata, criado por Ivo Meirelles, que deixa claro no filme disputar os meninos com o tráfico por meio do consumo. A escolha deste grupo traz uma face moderna e atual da música inserida em políticas sociais, a importância do trabalho voluntário e a negritude como elemento agregador desses jovens, imagem próxima (sem o elemento da cultura negra carioca) apresentada em Contratempo, de 2009. Documentário de Malu Mader e Mini Kerti, conta a história de 11 jovens do Rio que tiveram suas vidas transformadas pela música através do projeto Villa-Lobinhos.

Perfis biográficos e musicais podem ser pensados de diversas maneiras, entre as quais o biografado como partícipe de movimentos culturais, ícone de uma geração ou determinado comportamento, referência fundamental em determinado estilo de música, ou aquele que viaja entre os bairros para levar seu talento ou pensar a si e sua própria cidade. Destaco alguns deste período que são bons para pensar as diversas conexões que a cidade pode ter, a partir dos movimentos musicais. Paulinho Viola: meu tempo é hoje (de Izabel Jaguaribe, 2003) é um deles. Paulinho da Vila, carioca nascido em Botafogo, morador da Zona Oeste, portelense e frequentador de Oswaldo Cruz, com parceiros e amigos em toda cidade, representante do samba, do choro e um dos melhores músicos brasileiros, nos apresenta parte da cidade que frequenta, quase como um flâneur. Da sinuca aos sebos, das rodas de samba à vida em família, o trânsito pela cidade mostra uma possibi-lidade cotidiana não estereotipada, seja da vivência da cidade pautada em sua identidade de carnaval e samba, seja da cidade violenta que o Rio apresenta

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A comunidade do Morro Santa Marta retratada por Eduardo Coutinho em Santa Marta: duas semanas no morro (1987). Correio da Manhã

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no mesmo momento nos filmes de ficção. Em uma linha semelhante, a escola de samba Mangueira dos filmes de Thereza Jessouroun (Samba, de 2001, e mais recentemente Coração do samba, de 2012) ou do filme de Geórgia Guerra-Peixe (O samba que mora em mim, 2010), ou a Portela do filme de Lula Buarque de Hollanda e Carolina Jabor (O mistério do samba, 2008), filmes “de dentro”. Dentro da escola, dentro das comunidades, dentro da cidade. Mesmo que as escolas sejam do Grupo Especial e importantes no cenário do carnaval do Rio de Janeiro, e que sejam olhares “de fora”, pois foram realizados por cineastas não moradores dos bairros onde estas escolas estão, são “olhares de dentro” de quem vivencia aquelas experiências, e o olhar homogêneo e estereotipado passa longe, da dança, da bateria, do morro e da velha guarda e sua tra-dição, respectivamente. Aliás, o que está posto é a tradição das escolas, sua consolidação comunitária e o engajamento que os sambistas e cineastas têm nestes casos. Outro exemplo de trânsito entre a ci-dade que falará sobre a tradição e os percussionistas das escolas de samba é o filme As batidas de samba, de Bebeto Abrantes (2010), só que, neste caso, o diretor opta por não focar em uma escola ou no carnaval, mas na profissionalização do músico de samba, que atravessa a cidade para apresentar sua arte. Cenas de trânsitos, de passagens, dos bairros são, neste sentido, constantes nesses filmes. A arte existe na cidade, sambistas, funkeiros e rappers são cronistas e mediadores desta cidade filmada.

Fala tu, de Guilherme Coelho (2004), Sou feia mas tô na moda (2005), de Denise Garcia, e L.A.P.A: um filme sobre o bairro da Lapa, um filme sobre o rap carioca (2008), de Cavi Borges e Emílio Domingos, podem ser pensados nesta mesma categoria. Destaco Fala tu, que ao optar por entrevistar e acompanhar três per-sonagens, incorporando o cotidiano do trabalho e a vivência familiar a uma busca pela profissionalização no hip-hop, fez de Macarrão, anotador de jogo do bicho morador do Morro do Zinco (região central da cidade), da operadora de telemarketing Mônica Combatente e do vendedor de produtos esotéricos Thogun, ambos moradores da Zona Norte, nossos guias entre as diversas partes da cidade e suas percep-ções sobre as diferenças apresentadas entre o andar de dia, a noite, a favela, a não favela, o que é centro, o que não é, os olhares masculinos, o feminino.

Estamos falando de Rios de Janeiros e as possibi-lidades interpretativas são tão múltiplas quanto esta cidade, estas cidades. São cidades e análises abertas e que podem se desdobrar em muitas outras. Porém, não gostaria de deixar de apontar uma categoria que existe como campo de pesquisa das relações entre o cinema e a cidade, que são os filmes de arquitetos ou que retratam marcos ou expoentes da arquitetura. Reidy: a construção da utopia (2009), de Ana Maria Magalhães, sobre o urbanista Affonso Eduardo Reidy (1909-1964); Irmãos Roberto (2011), de Ivana Mendes e Tiago Arakilian, sobre os arquitetos e irmãos cariocas Marcelo (1908-1964), Milton (1914-1953) e Maurício Roberto (1921-1996); e HU (2011), de Pedro Urano e Joana Traub Csekö, sobre o Hospital da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fazem parte deste último caso.

Nesses três filmes, o que está em jogo é a memória da cidade e de sua arquitetura em três casos singulares. Como exemplo temos o Conjunto Habitacional do Pedregulho, em São Cristóvão, o Museu de Arte Mo-derna do Rio de Janeiro, ambos de Reidy; os edifícios da Associação Brasileira de Imprensa e do Instituto de Resseguros do Brasil no centro da cidade, dos ir-mãos Roberto; e a história do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, que funcionou parcialmente durante anos até que sua parte inativa foi implodida em dezembro de 2010. Filmes que uti-lizam arquivos para refletir sobre edifícios e pessoas que fazem parte da memória e da história da cidade. Cidade, paisagem, arquitetura. Mais um exemplo de como uma cidade pode ser múltipla.

Conclusão ou como a cidade se torna uma cidade filmada

Hoje vivemos dois momentos distintos. Por parte do poder público uma euforia da cidade em trans-formação, de mudanças urbanísticas significativas e megaeventos, que, em contrapartida, impactam (uma vez mais) em migrações internas, remoções. Nesse processo junta-se outro, em curso há algum tempo: a difusão de equipamentos como celulares e câmeras digitais e a existência de universos tão amplos quanto diversos, que incluem cineclubes, diálogos entre cinema e escola, grupos de sensibi-lização ao audiovisual, projetos de extensão reali-zados nas faculdades e universidades, o audiovisual

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como ativismo e engajamento político e cultural, fazem com que percebamos que há uma maior apropriação da cidade (e de várias cidades) por seus atores e uma consequente reflexão dos espaços que habitamos e transitamos. Desta forma, vai sendo traçado um mapa visual do Rio de Janeiro (assim como de outros municípios). Especificamente no Rio de Janeiro, o samba, o carnaval, o hip-hop, as festas, os bailes, assim como as cenas menos cen-trais (periféricas), a religiosidade, as transformações (n)a paisagem, (n)a arquitetura, (n)o espaço, (n)as pessoas: anônimas e ilustres. Coberturas das ma-nifestações que ocuparam a cidade desde maio de 2013, realizadas por mídias alternativas, coletivos e indivíduos têm trazido outras faces da cidade.

Para terminar uma reflexão que está começando, vejo inúmeras possibilidades aos dispostos, no

7 Ver http://www.ladoleste.org/sobre.html.8 Referências bibliográficas: BALLERINI, Franthiesco. Cinema brasileiro no século 21: reflexões de cineastas, produtores, distribuidores, exibidores, artistas, críticos e legisladores sobre os rumos da cinematografia nacional. São Paulo: Summus, 2012; COSTA, Maria Helena. A cidade como cinema existencial. RUA: Revista de Urbanismo e Arquitetura, v. 7, n. 2, 2006. Acesso em: 15 ago. 2013; LINS, Con-suelo; MESQUITA, Cláudia. Filmar o real: sobre documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. NAME, Leonardo. Escalas de representação: sobre filmes e cidades, paisagens e experiências. RUA: Revista de Urbanismo e Arquitetura, v. 7, n. 2, 2006. Acesso em: 7 jun. 2012; RIBEIRO, Ana Paula Alves. A memória – a leveza – o olhar – o olfato – o tato – o jogo: Transeunte, de Eryk Rocha. Trabalho apresentado na 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 2 e 5 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil. Grupo de trabalho 09: Antropologia do cinema: entre narrativas, políticas e poéticas; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da; ECKERT, Cornelia. O tempo e a cidade. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2005.

fazer cinema e no estudar cinema e seus diálogos interdisciplinares com a cidade. E daí temos alguns projetos para se colocar nas agendas: a) o que foi produzido na oficina do REcine sobre as cidades (e sobre o Rio de Janeiro); b) análises dos curtas documentais, pois se as cidades desenham sua di-versidade de representações nos longas-metragens, a hipótese é que resultados tão ou mais interessan-tes podem surgir nos curtas; c) a ideia de mapas colaborativos das produções audiovisuais sobre os bairros e cidades. Lá do Leste – uma etnografia audiovisual compartilhada, cujos DVDs e livro são de Rose Satiko e Carolina Caffé, é um bom exemplo deste trabalho;7 d) mais pesquisas e au-torreflexões sobre a produção cineclubista, como no recém-lançado livro O cerol fininho da Baixada – Histórias do cineclube Mate com Angu, de Heraldo HB (Aeroplano, 2013).8

O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, obra do arquiteto Affonso Reidy, tema do documentário Reidy: a construção da utopia (2009), de Ana Maria Magalhães. Correio da Manhã

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Com a câmera fotográfica, José Inácio Parente vem revelando nas últimas décadas a sua arte ao registrar as belezas cinematográficas e a poesia do Rio de Janeiro. O fascínio pelas lentes vem de sua infância no interior do Ceará – as câmeras reluzentes expostas na loja de seu pai despertavam a curiosidade do menino, até que, depois de muita insistência, seu pai finalmente deixou que ficasse com uma delas e desse início à descoberta que mudaria a sua vida para sempre.

Depois veio a segunda paixão: o Rio de Janeiro. A cidade conquistou o jovem estudante, que pas-

seava pelas ruas com sua câmera, enfrentando a timidez e se destacando graças ao talento naquele mundo agressivo da metrópole, mas repleto de encantos naturais e culturais. As duas paixões de José Inácio Parente, fotógrafo, cineasta e psica-nalista, o levaram a publicar seis livros, como o Guia amoroso do Rio, e produzir, entre outros, um filme inesquecível e obrigatório para quem deseja entrar no mundo da fotografia: Rio de Memórias, realizado em 1987, com muita pesquisa, criativi-dade e camaradagem, coisas que a tecnologia de hoje não consegue superar. O filme, que mostra a evolução da fotografia e da cidade do Rio de Janei-

Fotos estereoscópicas

de paisagens cariocas.

Estereoscopia é a forma mais

antiga de ver fotos em terceira

dimensão. Para isso, usam-se

visores ou óculos que adaptam

cada olho a uma das imagens.

Fotografias Avulsas

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Realizada em 18 de setembro de 2013, no Arquivo Nacional. Entrevistadores: Renata Ferreira e Mauro Domingues. Câmera: Fernando Rocha. Still: Ana Moreira.

Entrevista

O Rio amoroso e encantador de José Inácio Parente

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ro no período de 1840 a 1930, coleciona prêmios em diversos festivais no Brasil e no mundo e nos ensina a importância de se preservar os acervos fotográficos, pois guardam a história para os olhos e mentes curiosos do futuro.

Há oito anos, José Inácio vem reunindo retratos de família. É sua nova paixão, na mesma linha da paixão pela fotografia antiga. A coleção de mais de nove mil fotos, guardadas em álbuns, todo se-lados, se chama Retratos da Família Brasileira, e vai desde 1845 até 1960. Recebeu o Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia e logo estará disponível

pela internet, servindo de fonte para quem deseja pesquisar costumes, roupas de época etc.

Em mais de duas horas de entrevista, José Inácio Parente falou sobre sua carreira e nos contou como foi dirigir o Rio de Memórias, uma viagem no tempo e uma jornada pelos acervos de fotografias fluminenses em parceria com a antropóloga Patrícia Monte-Mór, com quem está casado há quase trinta anos. Ele também nos fala sobre a experiência como coordenador da Mostra Internacional do Filme Etnográfico, com 15 edições.

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O RiO amOROsO e encantadOR de JOsé ináciO PaRente

RECINE: Como surgiu a ideia de fazer o filme Rio de Memórias?

JOSÉ INÁCIO PARENTE: Realizei esse filme em 1985, são tantas histórias que a gente merece que as pessoas conheçam, tentar valorizar a fotografia e a evolução que teve daquela época para cá, erros e acertos, como é que foi difícil, e fácil também, naquela época fazer um filme assim.

A primeira coisa que eu diria é que o filme não nasce na hora que você pretende, às vezes ele nasce muito tempo antes. Estava no Rio de Ja-neiro e comecei a pesquisar as imagens do Rio, eu ficava muito encantado com a cidade, vim de uma cidade pequena, uma cidadezinha sem graça nenhuma naquela época, aí vim para o Rio de Ja-neiro com todos esses encantos culturais. Um dia,

fui para uma exposição de fotografias antigas do Marc Ferrez e Augusto Malta, não conhecia nada naquela época, no Clube de Engenharia, e quando vi essa exposição, fiquei encantado em descobrir que o Rio não era só aquele encanto turístico, cultural do presente, mas tinha um encanto do passado enorme, Marc Ferrez principalmente. Fiquei muito chocado quando olhei, e pensei: as pessoas estão mortas, todas estão mortas. Tive uma sensação meio dolorosa, ao mesmo tempo uma descoberta, de que a fotografia tem muito a ver com a morte, que quando você fotografa al-guém, e eu tenho essa sensação quando fotografo uma pessoa idosa, estou preparando a fotografia que vai constar no álbum da família, a pessoa da qual só restará aquela fotografia. E a pessoa quando fotografa pretende eternizar, dar uma existência. Esse foi o primeiro encanto, e Rio de

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Memórias tem muito a ver com isso, com essa ideia de um filme que quer mostrar a fotografia como uma maneira de eternizar as pessoas, que querem vencer a morte. As últimas frases do filme têm isso, exatamente assim, “quem olhará por meus olhos quando meus olhos não puderem ver?” “Quem olhará para minha face quando meus olhos não puderem ver?” Tem a ver com como vencer a morte.

Então, essa descoberta da fotografia antiga foi muito importante, comecei a desenvolvê-la fre-quentando a Biblioteca Nacional. Lembro uma vez, eu fui pesquisar, queria fazer exatamente pesquisa sobre o Rio de Memórias, e aí uma pessoa me disse: “Aqui tem umas estereoscopias”. Eu não sabia o que era estereoscopia e ela me deu uma série de estereoscopias, uma delas era da Princesa

Isabel. Quando ela colocou aquilo no estereoscó-pio, a Princesa Isabel parecia um fantasma, parecia que ela estava me olhando. Fiquei espantadíssimo, um dia vou fazer um livro sobre isso.

Como é que começou o Rio de Memórias. A Embra-filme fez um edital, um concurso de roteiros. Eu já estava encantado com essa história de fotografia, ia à Biblioteca Nacional, já com esse projeto de fazer um filme só de fotografias antigas, sobre a história da fotografia. Tirou primeiro lugar e ia ser um filme de 13 minutos. José Carlos Avellar, na época, era diretor da Embrafilme, e foi uma das pessoas que batalhou pelo filme. Daí a primeira coisa do trabalho é a pesquisa desse material. Esse é um lado interessante de a gente conhecer, na época ninguém nem sabia quais eram os acervos que existiam, e os acervos nem sabiam o que eles

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Rio antigo: de Santa Teresa, a vista da Baía de Guanabara, moldada pelo casario dos bairros da Lapa e Glória. Arquivo Família Ferrez

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tinham, tampouco. Então, por exemplo, a gente sabia que tinha a Biblioteca Nacional, o Museu da Imagem e do Som, o Museu Histórico, tinha o museu lá de Petrópolis, d. Pedro, o Gilberto Ferrez, tinha os mais conhecidos, além dos colecionadores particulares. A gente começou a pesquisar. Nisso, eu estava me casando com a Patrícia, minha mu-lher, e ela é pesquisadora, é antropóloga, e tinha uma coincidência de que a mãe dela foi diretora da Biblioteca Nacional por mais de dez anos. Ela tinha um conhecimento de pessoas, então facilitou muito essa pesquisa. Calculo que eu e Patrícia vimos mais de setenta mil fotografias, e era muito difícil na época porque os acervos não conheciam as suas coleções. Era muito difícil, não pela dificuldade de acesso, mas porque eles não sabiam o que tinham. Muito mal preservado. A importância da fotogra-fia era tão pequena, que uma das coisas que eles faziam era carimbar na frente da fotografia, para dar a posse daquele objeto. Isso foi bastante com-plicado. Os museus davam aparência de seriedade, quando você chegava lá, eles “não, não pode tocar na fotografia”, e aí davam as luvas, uma lupa. No dia seguinte, você não precisava mais de lupa, não precisava mais de luva. Daqui a pouco, eles te em-prestavam para você levar a fotografia num saco de supermercado para casa.

A gente foi aos poucos fazendo um roteiro, na medida em que foi vendo fotografias, a pesquisa foi indicando por onde a história podia seguir. Não havia praticamente livro sobre a história da fotografia na época, então a gente foi descobrindo essa história enquanto pesquisava, não havia um guia anterior a isso.

RECINE: Quanto tempo levou todo esse processo, pesquisa, seleção de fotos, até o filme ficar pronto?

PARENTE: A pesquisa foi feita pela Patrícia e por mim. Mais ela, ela foi na frente, pesquisar, abrir os acervos. Acho que um ano e meio mais ou menos de pesquisa. Eu não me dedicava full time a isso, trabalhava no consultório também. Patrícia também dava aula. A gente ia quarta ou sexta e passava o dia inteiro nos museus pesquisando.

Considero o filme Rio de Memórias meio um filme artesanal. Acho que a gente conjugou a beleza do

artesanal com o rigor técnico. O artesanal é, por exemplo, toda a trilha sonora. Foi feita em casa, por mim, barulho de água na piscina no clube, máquina de costura, liquidificador, eu tinha um gravador que podia mudar a velocidade.

Essa ideia de fazer um filme artesanal, mas com grande rigor técnico, foi o que norteou a gente, o roteiro foi nascendo enquanto pesquisávamos. Quase ninguém conhecia a fotografia nessa época. Essa trilha sonora é muito valorizada, em Grama-do deram prêmios, em quase todos os festivais que ele foi deram sempre destaque. Em Gramado não existia prêmio para trilha sonora, deram um prêmio especial para o filme. A parte de trilha sonora merece um destaque grande, tinha sete trilhas, sete pistas de som para montar, e sempre teve muito rigor nisso. E o texto foi todo escrito por mim, baseado em textos de época. Foi todo feito com um português mais antigo, e eu pedi ao Rubens Correa para ser o locutor, fazer a voz, ele tentou forçar um pouco essa ideia de um português do começo do século. Todos os textos têm essa característica da escrita daquela época. As músicas também, todas eram daquela época. A flautista Odete Ernest Dias trabalhou, pegou material dela, gravou com a gente, com pianista e tudo. Um primo meu, Geraldo Parente, que é pianista, tocou piano, então tem uma coisa de artesanato, que foi muito gostoso de fazer.

Agora, como que o filme é feito no ambiente de filmagem? Foi tudo feito no CTAv, numa época em que o Affonso Beato era o diretor, o Zequinha Mauro trabalhava lá, estava meio que inaugurando o CTAv, e lá tinha uma truca Oxberry carérrima, que ninguém sabia usar, ninguém sabia como mexer, e fui meio descobrindo com o técnico como é que ela funcionava. Essa truca ficava numa sala que ninguém tinha acesso, mas começamos a decifrar como ela funcionava. Era uma câmera 35 mm, que ficava numa torre enorme, uns quatro metros e uma mesa embaixo, essa mesa ela se mexe, se move na direção norte-sul, leste-oeste, e a câmera desce ou sobe, então, tudo é feito quadro a quadro, o que era muito complicado, por várias razões, porque era tudo efeito ótico e não tinha nada de computador que pudesse fazer um preview, o preview vinha na semana depois quando viesse da

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Líder, então, você não sabia se tinha dado certo, além de ser uma coisa de animação mesmo.

E no CTAv contei com uma boa vontade enor-me das pessoas. Acho que o Rio de Memórias é como se fosse um filhote que estava nascendo junto. Outra dificuldade, apesar de ter tantas fa-cilidades, amigos colaborando, era a questão da continuidade, o filme tem fotografias que quando envelhecem ficam muito suavizadas no contraste, outras são ao contrário, cresce muito o contraste. Como você vai fazer descontinuidade entre uma coisa de muito contraste que faz transição de baixo contraste? É complicado porque não tem Photoshop, não tem tratador de imagem, na época, tinha que ser feito quimicamente, então, importei uns filmes de muito baixa velocidade e trabalhava com esse filme para permitir uma latitude maior, e aí a Líder foi de uma gentileza enorme, entrou nesse barato de pesquisar também.

O filme tem essas grandes dificuldades técnicas, de pesquisa, de filmagem, que são contestadas com uma grande facilidade humana, das pessoas que iam abrindo os caminhos e entravam nas pesqui-sas e faziam dele a vida, até as pessoas ligadas ao CTAv. Eu queria fazer um registro muito afetivo do Zequinha Mauro, um cara que me ajudou muito a inventar pequenos gadgets, a acontecer no filme, mas o mais importante é que me lembrava muito na minha infância aquela história de ver a imagem aparecer, e eu sempre tive a ideia “vou filmar isso”. O mais mágico da fotografia é ver a imagem sendo revelada, e como é que vou fazer isso? Aí era uma dor de cabeça, porque se você iluminasse, velava o filme, o papel. Não poderia iluminar com luz vermelha para não velar a fotografia do papel, a luz que tem na câmera escura, mas isso não imprimiu o filme da câmera. Como você vai fazer isso? Per-guntei ao Zequinha se ele não tinha uma solução. Ele era muito inventivo, silencioso, trazia solução e falou “descobri a maneira”, e aí fez um negócio espetacular e, de novo, na melhor simplicidade.

O filme ganhou muitos prêmios, muitos festivais internacionais e aqui no Brasil. No Festival do Rio ganhou também todos os prêmios. A Elaine Correia, quem editou o filme, merece um destaque muito especial, pois foi de uma paciência enorme,

passou seis meses editando o filme, e ela tem uma grande riqueza que é uma humildade fantástica.

RECINE: Como “conversam” o psicanalista e o pesquisador para a concepção e realização de um trabalho como o Rio de Memórias?

PARENTE: Muita gente me pergunta o que isso tem a ver com a minha profissão, por que eu sou psicanalista. Sou cineasta, sou fotógrafo também, mas, o que tem a ver com ser psicanalista? Engra-çado que os psicanalistas me perguntam: “Você ainda faz psicanálise?”, eu falo assim: “Se fizesse só psicanálise, eu já teria terminado. Só faço psi-canálise até hoje porque faço cinema, faço foto-grafia”. Acho que uma das grandes dificuldades do psicanalista é que eles ficam só no consultório, o que gera uma vida muito sedentária, muito frus-trante também, porque você vê o mundo através dos sonhos dos seus pacientes, e não um mundo através dos seus sonhos. É como se você ficasse vendo o mundo pela janela, eu prefiro ir à rua, faz muito bem para a minha saúde mental. Se fizesse só psicanálise, já teria me aposentado, me abandonado, e adoro fazer psicanálise, tenho uma clientela muito grande, tenho quase 22 anos de consultório. Mas acho que, em partes, as pessoas me procuram por esse a mais que represento, de ser artista, de ser fotógrafo, fiz muitas exposições de fotografia, e os filmes também, é como se pensasse assim, “se a pessoa é psicanalista e tem essa sensibilidade”... Porque imagino que você tem uma profissão, dentista, médico, psicanalista e tem uma coisa a mais, além disso, te dá um destaque, como quem pensa assim, “se essa pes-soa faz um filme assim, faz fotografia assim, ela tem sensibilidade para me tratar também”. Isso aumenta muito a clientela, as pessoas me procu-ram também por isso e eu acho interessante, não escondo dos meus pacientes que faço fotografia, todos vão aos meus filmes, todos vão às minhas exposições, acho que ficaria muito frustrado se não tivesse meu sonho também.

RECINE: Daquela realidade que você encontrou, há quase trinta anos, no momento de fazer a pes-quisa para o filme, o que hoje mudou, e não só em relação ao cuidado, mas também em relação à importância desses acervos?

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PARENTE: Acho que a fotografia mudou. A cultura valorizou a fotografia como obra de arte. Antiga-mente, quando a gente pesquisava no interior, nas fazendas, via uns álbuns de família sem fotografia dentro. “Cadê as fotografias?” – “A gente queima, porque a pessoa morre, a gente queima a fotogra-fia”, pela aflição que era ter a pessoa morta-viva, e não tinha o menor valor, as pessoas jogavam fora, e alguém mais sensível guardava aquilo. Mas, nor-malmente, as instituições tampouco davam valor à fotografia como arte, a preservação dela como elemento da história, porque a fotografia não ti-nha valor histórico algum, e isso mudou muito. A fotografia, hoje em dia, tem preço, tem valor comercial também. Fotografias atuais de um bom fotógrafo custam dez mil reais. Fotografia era coisa que se dava como água benta nas igrejas, não tinha o menor valor. Isso mudou muito. Com o advento da informática, acho que foi a mudança maior na organização, você permite um acesso privilegiado àquelas fotografias. A memória é a fonte de sabedo-ria e a memória é fonte da sabedoria. A humanidade encantada com o futuro e com as tecnologias numa certa época desvalorizava completamente o velho. O velho é uma inspiração também, de sabedoria. Acho que foi uma mudança cultural geral. E o Ministério da Cultura e todos esses órgãos passaram a valorizar muito mais os seus acervos por causa disso.

RECINE: Ver o Rio de Memórias é ver um processo de evolução da cidade do Rio de Janeiro. Começa com aquelas pinturas, na época da escravidão, e vai seguindo até o início da transformação do Rio numa cidade, de fato, se modernizando. Temos essa imagem daquela época graças a fotógrafos como Marc Ferrez, Augusto Malta. Você acredita que eles tinham consciência da importância da-quele trabalho que estavam fazendo, fotografando uma cidade em transformação, deixando essa imagem para as gerações futuras?

PARENTE: Acho que tinham certa noção disso, especialmente o Marc Ferrez, que era uma pessoa muito culta. Os pais e avós vieram da França, com a missão francesa para poder colonizar cultural-mente o Rio de Janeiro. Já o Malta, especialmente no começo, não tinha a menor noção. Não sei se vocês sabem que a prefeitura destruindo os bairros do centro da cidade para poder fazer as

avenidas precisava fotografar as casas para calcular as indenizações, aí procuraram um fotógrafo e ele tinha uma bicicleta. Ele vendeu a bicicleta, com-prou uma câmera e se candidatou a ser o fotógrafo da prefeitura. Você imagina que uma pessoa assim não tinha muita noção do futuro das fotografias dele, até porque as fotografias são todas marcadas por ele. “Rua Rezende, 37, casa 2”. Porque era feita para indenizações, não era para guardar na memória. É claro que a fotografia faz o fotógrafo, à medida que você vai fazendo a fotografia, vai se educando, se sensibilizando e criando essa noção. É claro que com o tempo Malta foi notando a valorização que, culturalmente, se dava. Agora, Ferrez tinha mais essa noção.

RECINE: Qual o estado de conservação do Rio de Memórias 26 anos depois de realizado? Ele está em bom estado de conservação?

PARENTE: Olha, não está em bom estado, porque a quantidade de material para fazer um filme é muito grande. Devo ter em casa umas 15 latas de mate-rial, nos quais umas oito são de negativo de som, tem a primeira imagem sem tratamento, a segunda imagem com tratamento, o negativo de imagem, é muito disperso. Como não tenho uma instituição, sou autônomo, foi guardado em péssimas condi-ções. Tenho uma sala onde estão as fotografias minhas, estão lá empilhadas. Infelizmente, não só teve essa cópia que o CTAv está disponibilizando para refazer a digitalização, como tem as imagens feitas dos 16 mm, que era uma imagem não digital, na época, quase fotográfica, quadro a quadro, e é feita dos 16 mm, que a gente conseguiu que alguém fizesse de graça. Acho que essa iniciativa de fazer uma remasterização, se pode dizer assim, a partir de um negativo para um digital mais poderoso, não só é uma maneira de digitalizar, como de preservar, vai dar outra imagem do filme. Esse filme visto em 35 mm tem uma beleza muito maior do que visto como a gente tem em DVD.

RECINE: Rio de Memórias ainda é muito exibido até hoje em universidades, escolas de fotografia, é muito usado para formação de jovens fotógrafos e cineastas. Você acha que o filme continua cum-prindo seu papel e abrindo caminhos, alertando, informando esses jovens da necessidade de con-

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servação dos acervos? Você pensou que o filme poderia contribuir para isso?

PARENTE: Eu estava fazendo uma brincadeira séria de fazer um filme que recuperasse a minha infância na casa do meu pai e em cima do Rio de Janeiro que passei a conhecer. Eu, um jeca cearense, chegando aqui, sem conhecer nada, passei a ser um conhecedor do Rio de Janeiro, um especialista do Rio de Janeiro, iria ser um produto disso, mas não tinha ideia que ia ter essa repercussão. O filme é falado em quatro línguas, você pode escolher francês, inglês, espanhol e português, e é muito visto, e o mais curioso é que é sempre usado para aulas de fotografia, de cinema. Ele é um poema aberto, não é nada didático, não se presta a muitas ilustrações de aula. Algumas vezes, mostrei esse filme em escolas quando meus filhos eram pequenos e era interessante como as crianças vibravam e riam, crianças de oito, nove anos.

Agora, é interessante uma passagem do filme que, especialmente, mexe muito, eu me lembro em plateias de festivais. Aparecem muito negros no filme, escravos. Quando mostrei esse filme no festival em Portugal, e havia muitos negros de ou-tros países, provocava uns arrepios, até umas vaias, quando mostrava o trabalho escravo. Os escravos aparecem de duas maneiras: uma são fotografias que selecionei de escravos e coloquei como trilha sonora umas músicas com tambores e um canto fúnebre yorubá. Depois, quando eles voltam a aparecer, são escravos libertos. Coloquei tambores de guerra e um canto yorubá de guerra. As pessoas que vão ao Festival de Portugal, tem muita gente de Moçambique, de Angola que conhecia isso, e deu uma emoção. Eles sabiam que eram tambores de guerra, eram tambores fúnebres, e é uma coisa forte, me arrepio até agora quando me lembro dessas duas passagens dos negros.

RECINE: Com essa facilidade da câmera digital, as fotos perdem um pouco aquela contemplação, o valor sentimental, elas se tornam banais demais, será que não se está perdendo o romantismo de fotografar? O ofício do fotógrafo não está per-dendo um pouco aquela aura?

PARENTE: Eu acho que ele tem que ter o cuidado de não virar um alquimista, porque o tempo muda

e a necessidade muda. A fotografia se é digital ou não, teve um papel na humanidade fundamental. Em 1950, por exemplo, se você perguntasse a uma pessoa: “Você tem alguma imagem em casa?”, a pessoa diria que tem Nossa Senhora de Fátima, porque imagem era imagem de santo, a huma-nidade era desprovida de imagem. A fotografia povoou o mundo de imagens, a gente conhece o mundo por elas, vive num mundo de imagens, e há cinquenta anos imagem não existia, era ima-gem de santo mesmo. Isso é uma modificação fundamental na humanidade.

RECINE: Você já tinha feito algum trabalho antes do Rio de Memórias utilizando acervos?

PARENTE: Rio de Memórias foi o primeiro filme que lidei com acervo, nunca fiz nada com acervo, e também, na época, não tinha câmera capacitada para reproduzir fotografias, por exemplo, era bem mais complicado, ainda mais para fazer o movimento e truca. Nunca tinha pensado nisso e todos os meus filmes eram mais documentários, não tinha essa capacidade de filmar fotografia.

RECINE: Antes de começar a fazer seus filmes, o que você via de cinema? Alguma coisa te serviu de referência, não só para o Rio de Memórias, mas para outros filmes?

PARENTE: Havia, nessa época, aquela geração Paissandu. Todo mundo assim, meio esquerda, vivia nos mesmos ambientes etc., Fellini, Glau-ber Rocha, todo esse pessoal. Agora, confesso o seguinte, pode parecer pretensioso, é mais uma sugestão que estou dizendo. Uma vez tinha aqui no Rio de Janeiro uma academia de ioga em Co-pacabana, que fazia todo ano uma expedição para o Tibet, e uma cliente minha fazia parte dessa academia e foi para o Tibet. Ela me contou que ficou impressionada, porque foi lá na montanha e encontrou um monge sentado no chão, silêncio, e aí a pessoa perguntava coisas para o monge e ele dava respostas sábias. Então, uma pessoa do grupo perguntou assim, “o senhor é tão sábio, responde coisas tão importantes, e eu vejo que não tem nenhum livro aqui, o senhor não lê livros?” Ele parou um tempão e falou assim: “E a senhora? Poria água na fonte?”

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Acho que as inspirações para os nossos trabalhos não nascem dos livros e nem dos filmes, nascem de uma intuição da gente, podem ser facilitadas pelo conhecimento. É perigoso achar que quanto mais você estuda, mais é capaz de produzir. Às vezes, a intuição é muito antes de você começar a estudar. Normalmente, quando vou dar uma aula, por exemplo, procuro não ler nada, procuro fechar os olhos e começar a pensar o que quero falar. Se eu quiser depois fundamentar o que es-crevi ou o que vou escrever, leio um livro. Pode parecer pretensioso, acho que o produto cultural, o produto artístico, ele nasce de uma postura e de uma intuição mais do que de um conhecimento.

RECINE: Vamos falar da Mostra Internacional do Filme Etnográfico. Sabemos que os festivais e mostras de cinema são importantes para apre-sentar filmes que dificilmente seriam exibidos no cinema comercial ou na televisão. Você acredita que existe futuro para os festivais de cinema no modelo em que eles acontecem hoje? Qual é a sua maior motivação em realizar a Mostra Inter-nacional do Filme Etnográfico?

PARENTE: Existe uma revista que é feita sobre profissionais e tem um número sobre diretores de cinema. Cada diretor tem que dar uma resposta. Um deles diz assim: “Eu fiz para pagar as contas do filme anterior”. Claro que é uma resposta meio jocosa, mas acho que o efeito do festival não está bem na quantidade de plateia que produz. O efeito está muito mais nas pessoas que produzem o festival do que, propriamente, na plateia que teve duas mil pessoas. Porque, se for por esse lado, o pior inves-timento cultural é do festival. A televisão, no pior canal, no pior horário, no pior programa, tem, pelo menos, cinco mil pessoas vendo. O melhor festival, no melhor dia, no sábado, tem duzentas pessoas.

Aí pelo décimo festival, a gente já tinha montado a grade da programação, estava indo para a gráfica, e nos telefona um índio de uma cidade chamada Primavera do Leste, no Mato Grosso do Sul. Esse índio se chama Divino, que é o nome católico dele. “A gente fez um filme, eu e meu colega, e queria mostrar esse filme” – “Então, manda o filme, a gente faz uma sessão extra”. Aí ele ligou: “Olha, Patrícia, tem um problema, nós não temos

o dinheiro para a estrada, a gente conseguiu do prefeito uma passagem de ônibus, mas não tem dinheiro para a estrada e nem para comer. Você pode mandar para gente?” – “Mas quanto é que você precisa?” – “Duzentos reais dão”. Duzentos reais não são grande coisa, mandamos para ele. De repente, chegaram dois índios, com cocares, tudo que tem direito. O Divino deveria ser jovem na época, tinha uns 25 anos. A Unesco era um dos patrocinadores do festival. O filme era de uma be-leza, primeiro filme deles, extraordinário. A Unes-co deu o primeiro prêmio do festival para o filme deles. E ele nunca tinha feito um filme antes. No último dia, falei para ele: “Divino, a gente precisa agora que você dê um recibo daqueles duzentos reais, porque a gente tem que prestar conta”, e ele falou assim: “Você não pode fazer, não? Eu só sei assinar o nome”. Agora, passa cinco anos, esse cara hoje em dia é professor de cinema para os índios. De vez em quando está em Nova York, foi para a França, fez uns oito filmes já. Eu acho que ir para o festival, preparar o material para o festival, isso cria e mobiliza diretores.

Acho que ninguém pode avaliar o resultado do festival só pela audiência. Tem que analisar a im-portância para quem organiza, os diretores que organizam os filmes para os festivais, a vivência entre eles, a aprendizagem que você tem ao ver outros filmes. Agora, a audiência fora é o pior cri-tério para avaliar, por isso que eu acho que poderia compensar essa deficiência fazendo alguma liga-ção com o Canal Brasil, por exemplo, que tenho certeza que vai expandir cem vezes a audiência, essa parte que é mais precária dos festivais.

RECINE: Psicanalista, fotógrafo, cineasta, produ-tor cultural, pesquisador, o artista só se realiza quando ele se dedica a mais de uma atividade?

PARENTE: Eu acho que a arte está em poder se dedicar a mais de uma coisa, mas não acho que seja necessário me dedicar só a várias coisas para poder ser artista, tem que ter arte para conseguir articular tudo isso.

Tem uma frase que eu gosto muito em latim, Vita brevis, ars longa, a arte é longa e a vida é breve. Isso é terrível, a gente tem que fazer muita coisa, né?

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O bairro do Leblon no início do século XX, quando ainda era pouco habitado. Fotografias Avulsas

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Marpessa Dawn e Breno Mello em Orfeu negro (1959), filme ítalo-franco-brasileiro de Marcel Camus. Baseado na peça Orfeu da Conceição, de Vinícius de Mores, traz o mito grego de Orfeu e Eurídice para o carnaval carioca. Com trilha sonora de Tom Jobim e Luís Bonfá, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro. Correio da Manhã

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Cartela de apresentação do programa Coisas Nossas. CTAv

Luiz de Barros é entrevistado por Aída Marques no lançamento de seu livro de memórias. CTAv

Formando em Comunicação Social – Cinema pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Estagiário do projeto de catalogação e reorganização da Biblioteca da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Igor Andrade Pontes

Investigação e catalogação da coleção SRTV do acervo do Centro Técnico Audiovisual do Ministério da Cultura

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Neste artigo pretendo compartilhar com o leitor a minha experiência na catalogação dos materiais rela-tivos ao Setor de Rádio e Televisão da Embrafilme1 (SRTV) entre 2011 e 2013, período em que estagiei no acervo de filmes do Centro Técnico Audiovi-sual do Ministério da Cultura (CTAv). Portanto, o texto aqui elaborado provavelmente suscitará novas dúvidas e, assim espero, salientará em alguma me-dida sobre a necessidade de uma investigação mais aprofundada dessa coleção, bem como sobre a necessidade de ações para que a preservação desses materiais possa ser continuada e ampliada.

Conheço poucos textos que abordem o SRTV e os produtos por ele gerados entre 1976 e 1980. Quase tudo o que sei sobre esse setor da Embrafilme é baseado em documentos que, em sua maioria, nunca saíram do acervo do CTAv. Se faço uso de termos por demais genéricos, o faço como reflexo daquilo que é o próprio processo de catalogação e investigação: uma investida sobre algo genérico, buscando informações que possibilitem encontrar no objeto de pesquisa aquilo que é específico a ele.

Para além do rigor acadêmico, para muito além, em verdade, o trabalho cotidiano de um arquivo de filmes ou de uma cinemateca é por vezes quase ca-ótico, uma busca diária e constante por estabilidade, uma aventura que me faz sentir como se estivesse em campo escavando em busca de resquícios de dinossauros ou de civilizações antigas. Provavel-mente paixão de iniciante, mas essa paixão me fez querer ir mais a fundo quando me vi diante dos materiais telecinados dos filmes 16mm da coleção SRTV no acervo do CTAv.

1 N. da E.: Criada em 1969 e extinta em 1990, a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme) funcionou como fomentadora, produtora e distribuidora estatal de filmes nacionais.

Quando tomei conhecimento daquele que hoje considero o mais “completo” texto sobre o Setor de Rádio e Televisão da Embrafilme, eu já havia assistido quase todo o material 16mm do CTAv telecinado entre 2011 e 2013, e chegava ao fim o meu período como estagiário no CTAv. O texto encadernado foi deixado na mesa em que eu cos-tumava trabalhar, e segundo Rosângela Sodré, pes-quisadora do CTAv, aquele era um dos documentos que estavam na mesa do Gustavo Dahl, gerente da instituição entre janeiro de 2008 e junho de 2011, quando faleceu. Tratava-se de um informativo emitido em 18 de setembro de 1978 por Martha Alencar, supervisora do SRTV.

O documento, intitulado “Setor de Rádio e Tele-visão – SRTV – Embrafilme: informações tiradas da prática”, divide-se em seções que abordam os produtos do setor, a resposta a este trabalho junto aos espectadores, sua repercussão na imprensa, os gastos, “onde está o lucro”, o modo como os pro-gramas eram feitos, a equipe do SRTV e o objetivo do setor. A leitura desse documento e o confronto dessas informações com os materiais fílmicos e documentais dos programas do SRTV encontrados no CTAv podem ajudar na melhor compreensão da natureza desses materiais.

Segundo o informe de Martha Alencar, àquela altura eram os seguintes os programas de televisão produzidos pelo SRTV: Cinemateca Rio, “programa semanal sobre a atualidade do cinema brasileiro”, exibido na TV Educativa do Rio de Janeiro (TVE), todas as quintas-feiras, às 22 horas; Cinemateca Bra-sília, “adequação de trechos do Cinemateca Rio para

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InvestIgação e catalogação da coleção sRtv

2 Na base de dados Filmografia brasileira disponível no site da Cinemateca Brasileira (www.cinemateca.gov.br) o filme está catalogado com o título “P. E. Salles Gomes”, sem nenhuma referência ao Setor de Rádio e Televisão da Embrafilme. Segundo o roteiro do programa encontrado no acervo do CTAv, o especial foi exibido no dia 7 de setembro de 1979 na TVE. O cruzamento de informações da cata-logação e experiência diária do acervo do SRTV com as informações dos documentos emitidos à época e com os dados da Cinemateca Brasileira é um dos meios pelo qual novos dados sobre os programas produzidos pelo SRTV podem ser obtidos.3 Na base de dados Filmografia brasileira, o filme consta como “Jorge Amado no cinema”.4 Trata-se do documentário Nelson Pereira dos Santos saúda o povo e pede passagem. Na coleção SRTV do acervo do CTAv são encontrados muitos materiais, provavelmente sobras, referentes a esse documentário especial, inclusive as cartelas de apresentação do filme.5 Consta na Filmografia brasileira com o mesmo título. Segundo a base de dados, a direção do documentário ficou a cargo de Walter Carvalho.6 Na Filmografia brasileira, o material aparece com o mesmo título, indicando como diretor Tininho Fonseca.

Brasília”, exibido na TV Nacional, todas as quartas, meia-noite e meia; 1978, “quadro semanal sobre cinema brasileiro para o informativo 1978”, veiculado pela TVE, às quartas, 22:30 horas; Coisas Nossas, “programa semanal mostrando e comentando curtas-metragens brasileiros”, na TVE, todas as segundas, com reprise aos sábados, às 23 horas.

Havia ainda os especiais, segundo o informe, “programas sem periodicidade, com trata-mento de documentário”, dentre eles, o filme Paulo Emílio Salles Gomes,2 dirigido por David Neves, e Jorge Amado,3 o documentário de Glauber Rocha. O setor apoiou também a finalização de projetos em 16mm, em regime de coprodução, como O universo de Mojica Marins, de Ivan Cardoso, e O alquimista do som, de José Valter Lima.

Os dados levantados por Martha Alencar indicam que os índices de audiência dos programas exibi-dos pela TVE do Rio de Janeiro, em dias de baixa, atingiam cerca de mil casas ou televisões-famílias e, em dias de altos níveis de audiência, até 61 mil tevês-famílias. Assim sendo, a supervisora do setor afirmava que o principal objetivo dessas produções estava sendo atingido: o SRTV estava “formando público, sob a chancela da Embrafilme”.

Dentre os detalhados dados trazidos pelo informe em questão, havia a informação de que, até aquele momento, em setembro de 1978, tinham sido produzidos 28 programas Cinemateca, com dura-ção média de 50 minutos; nove programas Coisas Nossas, também com média de 50 minutos; os dois especiais já citados; as duas coproduções acima

citadas; e cinco especiais estavam em finalização: Nelson Pereira,4 Futebol, Geraldo José, MAM-SOS5 e Waldir Onofre.6 O custo médio por programa che-gava a 38 mil cruzeiros.

As reportagens do programa Cinemateca Rio eram feitas em 16mm reversível, e as “cabeças” – a apre-sentação do programa feita em estúdio –, em vídeo, realizadas pela equipe de televisão. O produto final do programa era um “videoteipe convencional”. A equipe do Cinemateca Rio se dividia em quatro gru-pos, com funções específicas na etapa da produção, finalização e catalogação do material: jornalismo, cinema, televisão e produção.

O programa Cinemateca Brasília, cujo produto final era, segundo o informe, um “videocassete”, foi realizado através da seleção de trechos de diferen-tes episódios do Cinemateca Rio, adequando-os ao cenário da produção cinematográfica da capital.

Coisas Nossas, o programa sobre curtas-metragens exibidos pela TVE, tinha como produto final ma-teriais em 16mm reversível, com som magnético. A produção ficava responsável pela seleção dos curtas que comporiam cada programa; produção dos negativos destes curtas; burocracia para que

O ator Waldir Onofre é

entrevistado por Hilda Machado.

CTAv

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os curtas pudessem ser exibidos na TVE; cópia e transcrição dos filmes para banda de som mag-nético; filmagem da apresentadora em estúdio, introduzindo e comentando os curtas do programa; e pelas demais filmagens, caso fossem necessárias.

O programa 1978 tinha como produto final um videoteipe convencional ou uma transmissão ao vivo para a TVE. Nada sei, além disso, sobre esse programa, já que, supostamente, não há materiais relacionados a ele no CTAv.

Como “outras atividades”, o documento sobre o SRTV emitido por Martha Alencar colocava o arquivamento e catalogação das entrevistas, repor-tagens e trechos de filmes, num total, até aquele momento, de “400 latas de 400 pés”.

Parte desta catalogação inicial foi feita por Aída Marques, atualmente professora da Universidade Federal Fluminense, que trabalhou também como repórter no programa Cinemateca Rio. O trabalho realizado por ela foi a principal base documental da catalogação que realizei entre 2011 e 2012, orien-tado por Débora Butruce, Roberto Souza Leão e Natália de Castro, preservadores audiovisuais ligados a um já finalizado projeto vinculado ao acervo de filmes do CTAv, ainda em andamento no período em questão.

Ainda assim, não posso afirmar com total certeza que Aída foi a primeira pessoa a catalogar os materiais do SRTV, já que o informe da Martha Alencar é de 1978, e as fichas de inventário da Aída que estão hoje depositadas no CTAv datam, em sua maioria, de 1982.

O acervo de filmes do CTAv guarda aproximada-mente 850 entradas de materiais fílmicos em 16mm relacionados ao Setor de Rádio e Televisão da Em-brafilme. Cada entrada ou “título” corresponde a um “trecho” ou a uma “obra” relacionada, que pode corresponder a materiais com um ou mais rolos de filme, basicamente, correspondentes aos programas Cinemateca Rio e Coisas Nossas e ao especial Nelson Pereira. Abordarei com mais detalhamento a natureza da coleção SRTV do CTAv mais tarde.

Destas 850 entradas, cerca de 690 são “trechos” de materiais relacionados ao programa Cinemateca Rio e

aos programas especiais; e cerca de 150 são entradas relacionadas ao programa Coisas Nossas, havendo en-tre estes materiais, além de vinhetas de apresentação, cartelas, testes de laboratório e sobras de estúdio, alguns programas completos, muito provavelmente tais quais estes foram ao ar pela TVE.

Catalogando os materiais da coleção SRTV do acer-vo de filmes do CTAv, correspondente a trechos, sobras, materiais diversos e programas completos (no caso de alguns Coisas Nossas), pude me deter com mais atenção sobre 175 entradas, durante meu estágio no CTAv, e realizar uma breve “des-crição de conteúdo”, com o intuito de ampliar e complementar o inventário feito por Aída Marques nos anos 1980, bem como os demais trabalhos de catalogação feitos no CTAv antes de mim ao longo dos anos 2000 por André Andries, João Carlos Rodrigues e Rodrigo Castello Branco.

Cruzando as informações dessas catalogações com o documento sobre o SRTV da Martha Alencar e o breve contato com os roteiros do programa Ci-nemateca existentes no acervo do CTAv, é possível montar um panorama, ainda que talvez incompleto, da equipe de profissionais que realizaram os pro-gramas de televisão produzidos pelo SRTV.

De todo o material referente ao programa Cinema-teca existente no CTAv, a conclusão à qual cheguei após a catalogação foi a de que a totalidade, ou a quase totalidade desses materiais, é de sobras. Em muitas das latas nas quais esses trechos de entrevistas, eventos, materiais de divulgação de filmes, trailers e bastidores de produções de filmes brasileiros estão guardados, lê-se sobras. Não posso afirmar com certeza essa minha suspeita. Mas, tanto a natureza incompleta de muitos desses registros, que terminam abruptamente, quanto o fato de o programa Cinemateca Rio ser finalizado em vídeo, e não em película 16mm, fortalecem a minha sus-peita. No CTAv não há nenhum material com os trechos do programa Cinemateca que se passavam em estúdio, e estes também eram gravados em vídeo, e não filmados em 16mm.

Retornando à questão da equipe do SRTV. Alber-tino Fonseca foi o chefe de produção do setor em 1978; Luís Maurício Azevedo, o secretário-geral;

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InvestIgação e catalogação da coleção sRtv

e Martha Alencar, a supervisora. Cruzando infor-mações é possível montar o seguinte quadro, sem especificar os períodos, apenas aglutinando os profissionais que colaboraram em algum momento nas produções Cinemateca e Coisas Nossas, exibidas na TVE entre 1976 e 1980:

Equipe do programa Cinemateca e alguns especiais: Haroldo Marinho Barbosa (direção); David Neves (direção do especial dedicado a Paulo Emílio Salles Gomes); Glauber Rocha (direção do especial dedicado a Jorge Amado); Fernanda Pacheco (assistência de produção); José Carlos Asbeg (supervisão, reporta-gem, roteiro e montagem); Geisa Mello (reportagem, roteiro e montagem); Aída Marques (reportagem e montagem); Tizuka Yamazaki (reportagem especial e edição de jornalismo); Hilda Machado (reportagem

Equipe do programa Coisas Nossas: Luiz Fernando Sarmento (direção); Tininho Fonseca (direção de produção); Francisco Drummond (assistência de pro-dução); Carmem Gomes (assistência de produção); Fátima Costa (assistência de produção); Fernanda Pacheco (assistência de produção); Luiz Maurício Ca-piberibe (assistência de produção); Vera Lúcia Sastre (assistência de produção); Walter Carvalho (direção de fotografia); Francisco Nunes (direção de fotografia); Zequinha Borges (direção de fotografia); Nonato Estrela (assistência de fotografia); Caio Márcio (assis-tência de fotografia); Newton Medeiros (assistência de fotografia); Nilson Barbosa (roteiro e pesquisa); Sura Berditchevsky (apresentação); Priscila Camargo (apresentação); Helber Rangel (apresentação); Gilber-to Gil (tema musical da abertura do programa); José Carlos Avellar (redação); Almir Muniz (texto); Lilian

O crítico e historiador de cinema

Jean-Claude Bernardet em

depoimento para o especial

sobre Nelson Pereira dos

Santos. CTAv

no especial dedicado a Nelson Pereira dos Santos); Denise Bandeira (apresentação); Cidinha Milan (apre-sentação); Renato Machado (apresentação do especial dedicado a Paulo Emílio Salles Gomes); Walter Car-valho (direção de fotografia); José Mariani (assistência de fotografia); Ulisses Alves Moura (elétrica); Carlos Cox (montagem); Ricardo Miranda (montagem); Fátima Costa (assistência de montagem e respon-sável pelo arquivo de filmes usados na produção); Lilian Nabuco (responsável pelo arquivo de fotos e textos usados na produção); Luís Fernando de Mota Azevedo (estúdio de televisão – direção de gravação, edição e sonorização); Germana Araújo (estúdio de televisão – produção); Tibiriçá de Figueiredo Neto (estúdio de televisão – assistente).

Newlands (texto); Carlos Cox (montagem); Mário Murakami (montagem); Elizeu Ewald (montagem); Hélio Vicente (técnico de som); Henrique Fonseca (técnico de som); Ulisses Alves Moura (elétrica); Sandoval Teixeira (elétrica); Maurício Villela (letrei-ros); Joaquim Eufrazino (auxílio); Aires Figueiredo (auxílio); Marco Aurélio Marcondes (ideia e sugestão para o nome do programa “Coisas Nossas”).

Segundo a edição número 32 da revista Filme Cul-tura (fevereiro de 1979, p. 67 e 68), foram produ-zidos, até a data dessa publicação, 26 episódios do programa Coisas Nossas, com um total de 69 filmes de curta metragem exibidos, geralmente três filmes por programa. Na matéria consta a lista completa

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cine Rio de JaneiRo, capital do cinema

dos curtas veiculados até então.7 Segundo a revista Filme Cultura, o programa Coisas Nossas começou a ser exibido em caráter experimental no dia 3 de julho de 1978, na TVE.

Quanto ao número total de programas Cinemateca produzido, não sou capaz de informar com exati-dão. Caso a periodicidade do programa tenha sido mantida, por cálculo pode-se chegar a um número aproximado. Se em setembro de 1978 haviam sido feitas 28 edições do programa, até dezembro de 1979 teriam sido exibidos aproximadamente 88 programas, sem contar com os especiais.

Quando colocados em comparação os materiais fílmicos catalogados no CTAv e os documentos do SRTV, novas demandas de pesquisa são gera-das, como a investigação dos roteiros guardados no acervo do CTAv, que podem fornecer algumas informações e indicar caminhos para o levantamen-to de dados mais precisos. Entrevistar as pessoas que trabalharam no Setor de Rádio e Televisão da Embrafilme é outro caminho para a continuação e enriquecimento desta pesquisa.

Com a ajuda desses documentos talvez seja possível melhor compreender como os materiais relaciona-

dos ao programa Cinemateca que se encontram no CTAv se encaixavam ou não dentro da estrutura dos programas completos exibidos na TVE.

Em 2005, segundo Renata dos Santos Ferreira, da Coordenação de Pesquisa e Difusão do Acervo do Arquivo Nacional, o acervo da TVE foi transferi-do para essa instituição. Uma investigação nesses materiais talvez possa fornecer pistas sobre o paradeiro dos episódios completos do programa Cinemateca e das demais produções televisivas do Setor de Rádio e Televisão da Embrafilme.

A suposta incompletude dos materiais relacionados ao programa Cinemateca encontrados no CTAv, po-rém, não faz dessa coleção menos rica. Ainda que a minha suposição de que os materiais realmente são sobras dos programas televisionados esteja correta, essas sobras, enquanto materiais autônomos em relação ao programa ao qual estavam originalmente ligados, formam um tesouro “escondido” da memó-ria do cinema brasileiro, sobretudo dos anos 1970.

Com o intuito de exemplificar o conteúdo e ilus-trar, em alguma medida, a diversa natureza dos materiais do CTAv correspondentes à produção do programa Cinemateca do SRTV e seus especiais,

7 A página da matéria da revista Filme Cultura com a lista de filmes veiculados pelo programa Coisas Nossas está disponível no seguinte link: http://filmecultura.org.br/edicoes/32/pdfs/edicao32%2070.pdf.

O diretor de cinema José Medina e seu filho em uma entrevista para o programa Cinemateca Rio. CTAv

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Sura Berditchevsky no estúdio em gravação do Coisas Nossas. CTAv

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cine Rio de JaneiRo, capital do cinema

listo abaixo a descrição de conteúdo de seis desses materiais não editados ou sobras,8 os quais consi-dero os meus favoritos. Os títulos a seguir foram atribuídos ao longo do processo de organização e catalogação dos materiais do SRTV do acervo do CTAv. As descrições foram feitas por mim a partir da visualização dos materiais telecinados, com a ajuda das catalogações anteriores à minha.

SRTV 407. Waldir Onofre – 1976: Entrevistado por Hilda Machado, Waldir Onofre fala de “As aventuras amorosas de um padeiro”, e faz balanço sobre o cinema brasileiro no ano de 1976, destacando uma “busca pela linguagem cinematográfica brasileira” em filmes como “O rei da noite”, “O predileto” e “As aventuras amorosas de um padeiro”.SRTV 094. José Medina: José Medina conta sobre a sua carreira cinematográfica. Fala sobre os filmes “Exemplo regenerador”, “Fragmentos da vida”, “Gatuninha do Brás”, “Gigi” e “O canto da raça”.SRTV 455. Volta Grande e a Casa de Humberto Mauro na estreia de “A noiva da cidade”. Jan – 1979: Humberto Mauro em sua casa em Volta Grande (MG). O cineasta exibe o “Diploma de sócio hono-rário” da Associação Mineira de Cinema (AMICI). / Fachada do estúdio “Rancho Alegre”. / Imagens diversas de Volta Grande. / Um pequeno cartaz es-crito à mão anuncia: “Dia 07 de janeiro. Sensacional baile no ‘Volta Grande Campestre Clube’ com o conjunto Sombrasa 8. Estreia do filme ‘A noiva da cidade’. Traje esporte”.SRTV 294. Salas de exibição – Entrevistas portas de cinema – 1977: Espectadores são questionados sobre a estrutura das salas de cinema do Rio de Janeiro, sobre as diferenças na qualidade de projeção entre filmes estrangeiros e brasileiros. / O gerente do ci-nema Paissandu, no Flamengo, fala do aumento do público por conta da exibição de “filmes de arte”, em programação realizada em parceria com a Cinema-teca do MAM. / Um funcionário do cinema Pathé, na Cinelândia, fala sobre os gêneros de filme que o público mais gosta de assistir, e sobre o aumento de frequência de público para os filmes brasileiros. / As entrevistas são realizadas nas fachadas dos seguintes

cinemas: Leblon, Paissandu, Pathé e Império.SRTV 176. Nelson Especial – Jean-Claude Bernardet: Jean-Claude Bernardet fala sobre “Vidas secas”; sobre o papel e a trajetória de Nelson Pereira dos Santos no quadro do Cinema Novo e do cinema independente; sobre a filmografia de Nelson Pereira; e sobre a falta de estudos brasileiros sobre os cineastas em atividade naquele momento no país, como Nelson Pereira e Joaquim Pedro de Andrade.SRTV 118. Jornada de Salvador – Entrevista com alunos de Paulo Emílio – 1977: Luís Alberto Pereira fala da participação de Paulo Emílio Salles Gomes em seu filme “O sistema do dr. Alcatrão e do prof. Pena”. Alunos falam da importância das aulas que Paulo Emílio ministrava na USP.

Esses filmes 16mm apresentam um relativo bom estado de conservação, apesar de todas as agruras de se preservar filmes em um país tropical. A cor em praticamente todos esses materiais mantém-se viva; os suportes, em sua maioria, não apresentam encolhimento ou abaulamento avançado; e as pistas de som magnético dos materiais reversíveis não apresentam grandes danos.

Seria imprudente de minha parte, porém, afirmar que os materiais não correm riscos, afinal, a dete-rioração de um filme é como uma bomba-relógio, e cabe às instituições de preservação e guarda e seus profissionais lutarem contra o tempo, a fim de que a bomba demore o máximo possível para explodir, e garantir que a preservação esteja continuada através dos materiais duplicados. Os trabalhos de preser-vação e catalogação do acervo do CTAv devem ser continuados, apesar dos avanços na investigação desses materiais e da digitalização de quase todo o acervo relativo ao SRTV localizado na instituição.

O meu contato com os materiais documentais e fíl-micos do Setor de Rádio e Televisão da Embrafilme se deve, sobretudo, à confiança depositada em mim por Débora Butruce, Natália de Castro e Roberto Souza Leão, assim como o apoio de Rosângela Sodré e Rosiane Fonseca, já no período final de meu estágio.

8 Gostaria ainda de reiterar sobre a importância da investigação dos roteiros dos programas Cinemateca depositados no acervo do CTAv. Os roteiros cujas folhas de rosto foram preservadas indicam o título, número do programa, o número de videoteipe correspondente, o dia em que foi editado, o dia em que o programa foi exibido, o apresentador no estúdio e o repórter escalado para a realização das matérias veiculadas.

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Mestre em História, Política e Bens Culturais, com especialização em Cinema Documentário pela Fundação Getúlio Vargas, graduado em Cinema pela Universidade Federal Fluminense. Especialista em preservação sonora e audiovisual.

Marco Dreer Buarque

Para além da digitalização: aspectos e desafios da preservação sonora hoje

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RIO DE JANEIRO, CAPITAL DO CINEMA

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cine

O Brasil não é só reconhecido como o país da mú-sica. É um país que guarda histórica tradição com a geração e o consumo de documentos sonoramente gravados. Ao desembarcar no Brasil com a expec-tativa de explorar um novo e pulsante mercado, o comerciante de origem tcheca Frederico Figner realizou um périplo por diversas regiões do país com o intuito de apresentar as últimas novidades tecnológicas que àquele momento enchiam os olhos, sobretudo, dos públicos europeu e norte-americano. Entre os inventos científicos mais im-pactantes trazidos por Figner estava o fonógrafo, desenvolvido por Thomas Edison por volta de 1877, no qual um cilindro, em geral composto de cera de carnaúba, era o suporte onde uma série de riscos gerados por uma agulha reproduziam analogicamente os sons emitidos através de uma espécie de corneta. Mas a trajetória de Figner e seus fonógrafos ganham contornos historicamente mais consistentes quando da sua chegada ao Rio de Janeiro, cidade onde seus intuitos comerciais se re-alizariam mais plenamente. Encurtando a história, no ano de 1900, Figner funda a Casa Edison no Centro do Rio de Janeiro, considerada hoje a pri-meira gravadora comercial do Brasil. Já no ano de 1903, ou seja, apenas três anos após a inauguração da Casa Edison, é possível verificar que o volume de registros sonoros gravados era de grande escala: cerca de três mil gravações, conferindo ao Brasil o terceiro lugar no ranking mundial de registros sonoros gravados. A façanha de Figner parece apontar para um pioneirismo brasileiro relacionado a um ímpeto em gerar e consumir registros sonoros, possível de ser verificado até os dias presentes nas mais diversas regiões do país.

Estudo sobre a situação da preservação sonora

Diante do volume da produção no Brasil desde os tempos de Figner, uma consequente preocupa-ção vem à tona no que tange à permanência dos documentos sonoros no país, tanto em relação ao passivo produzido quanto ao enorme contingente de arquivos sonoros natos digitais (born digital ) ge-rados a todo momento nos dias atuais. Se estudos e levantamentos acerca do estado dos registros sono-ros produzidos no país ainda estão para ser postos em prática, iniciativas nesse sentido podem ser observadas em outros países e podem contribuir, entre outros fatores, para chamar a atenção para desafios comuns relativos à preservação sonora no contexto da era digital. E um dos estudos recentes mais amplos e relevantes nesse âmbito foi realizado em 2010, nos Estados Unidos, desenvolvido pela Library of Congress norte-americana em parceria com o Council on Library and Information Resour-ces (Conselho de Recursos em Biblioteconomia e Informação – CLIR) e intitulado The state of recorded sound preservation in the United States: a national legacy at risk in the digital age (ou, numa livre tradução, A situação da preservação sonora nos Estados Unidos: um legado nacional em risco na era digital). O relatório é resultado de um estudo acerca da atual condição da preservação sonora nos EUA, o primeiro abran-gente realizado no país sobre o tema, envolvendo pesquisa extensa e análises desenvolvidas ao longo de cinco anos. O estudo foi, por sua vez, consequên-cia de uma lei federal promulgada no ano de 2000, intitulada The National Recording Preservation Act of 2000 (Public Law 106-474), pela qual se afirmou o

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Para além da digitalização

1 BAMBERGER, Rob; BRYLAWSKI, Sam (Orgs.). The state of recorded sound preservation in the United States: a national legacy at risk in the digital age. Washington, D.C.: National Recording Preservation Board of the Library of Congress, 2010. Cap. VI. Disponível em: <http://www.clir.org/pubs/reports/pub148/pub148.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2013.2 O plano nacional, intitulado The Library of Congress National Recording Preservation Plan, está disponível online: <http://www.loc.gov/rr/record/nrpb/PLAN%20pdf.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2013.

interesse coletivo em preservar os registros sonoros para a posteridade e através do qual se pretendeu promover um maior conhecimento público sobre essas questões. O ato de 2000 também apontou para a criação de um abrangente plano nacional de preservação de registros sonoros, com a respon-sabilidade de “... realizar estudos e investigações de atividades de preservação de gravação de som, conforme necessário, incluindo a eficácia de novas tecnologias, e recomendar soluções para melhorar essas práticas”.1 O plano nacional pretendido finalmente veio a termo em 2011,2 um ano após a redação do referido estudo.

Este artigo pretende, portanto, trazer uma série de reflexões envolvendo a preservação de documentos sonoros à luz do panorama da preservação sono-ra atual abordada pelo estudo norte-americano. Alguns dos principais aspectos apontados pelo estudo e que também são identificáveis no Brasil serão abordados aqui, aspectos esses que ajudam a apontar para a complexidade da preservação sono-ra hoje, que envolve procedimentos encadeados e não restritos ao processo de digitalização enquanto mera operação de conversão de um sinal sonoro analógico para um sinal digital.

A fragilidade dos arquivos digitais

Assim como o Brasil, os Estados Unidos também mantêm uma tradição de um grande volume de registros sonoros, os quais vêm sendo produzidos há mais de 130 anos. E tanto aqui quanto lá a ener-gia coletiva voltada para criar e consumir registros sonoros não vem sendo acompanhada por igual preocupação na manutenção dessas gravações para a posteridade. O estudo norte-americano prevê que grande parte do patrimônio sonoro norte-ame-ricano já desapareceu ou encontra-se inacessível por diversos fatores. Ainda que um levantamento da situação brasileira ainda não tenha sido em-preendido, é improvável que um panorama mais

alvissareiro se dê no Brasil, sobretudo se levarmos em conta fatores como a falta de recursos crônica por parte das instituições públicas, dependências econômicas frente a países estrangeiros e condições tropicais desfavoráveis quanto ao armazenamento de documentos sonoros.

É fato que vivemos em uma era digital, com uma explosão de registros digitalmente gerados em grande volume todos os dias. No que concerne ao campo da preservação, é também notória a presença crescente das ferramentas digitais que vêm se tornando os meios mais recomendáveis na manutenção de documentos, em particular os sonoros. No entanto, o estudo norte-americano conclui que, ao contrário de certa percepção pu-blicamente disseminada, os arquivos digitais são extremamente frágeis, podendo durar cerca de 150 anos a menos do que os documentos analógicos. Em outras palavras, um disco de goma-laca, por exemplo, gravado há mais de setenta anos pode ter uma maior longevidade do que o arquivo digital gerado há algumas semanas. Portanto, é possível concluir que, no que concerne a um documento sonoro, o fator tempo não é um indicativo seguro nem para assegurar a sua permanência nem para determinar o seu risco iminente. É determinante, no entanto, que os arquivos digitais em particular estão em risco e merecem cuidados especiais.

Os arquivos digitais trouxeram novos desafios para o campo da preservação sonora, pois, além dos cuidados tradicionalmente associados à guarda dos documentos analógicos, um novo conjunto de requisitos se faz necessário para que a preservação dos arquivos digitais ocorra em um longo prazo. A preservação digital requer uma sofisticada infraes-trutura de tecnologia da informação e um processo contínuo para manter a integridade dos arquivos digitais para futuras gerações. Não basta mais, por parte do especialista em preservação, adotar uma conduta pautada pelo que os americanos

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cine RIO DE JANEIRO, CAPITAL DO CINEMA

3 SCHÜLLER, Dietrich. La preservación de la herencia digital. In: RESÉNDIZ, Perla Olivia Rodríguez; CARMONA, Leopoldo Ortega. La preservación de la memoria audiovisual en la sociedad digital. México: Radio Educación, 2006. p. 92.4 BRADLEY, Kevin. Lineamientos para la producción y preservación digital sonora. In: RESÉNDIZ, Perla Olivia Rodríguez; CAR-MONA, Leopoldo Ortega, op. cit., p. 131.

costumam chamar de store and ignore – ainda que os documentos analógicos também necessitem de cuidados permanentes.

Se por um lado o digital trouxe transformações perceptíveis para diversos aspectos do campo audiovisual, como a agilidade e a praticidade das gravações feitas em campo e em situações de en-trevista de história oral, por outro lado questões relativas às técnicas necessárias para prolongar a sua permanência ainda são pouco conclusivas, dada a fragilidade do novo meio. O que se sabe é que a preservação digital deve envolver uma conduta interdisciplinar, com a junção de diferentes áreas do conhecimento, um gerenciamento constante, além de um investimento de recursos significati-vo – alto o suficiente de modo a se tornar pouco sustentável para a grande maioria dos acervos brasileiros. Ademais, a preservação digital envolve muitas questões ainda não resolvidas, como, por exemplo, um acordo sobre os requisitos mínimos envolvendo os metadados que devem acompanhar os arquivos digitais, bem como o desenvolvimento de ferramentas para a criação de metadados de forma eficiente. Considera-se que, até que tais questões não sejam solucionadas, não teremos garantia de que os arquivos digitais estarão seguros em um longo prazo.

Para além da digitalização

Há um entendimento corrente, tanto por parte de leigos quanto por parte de profissionais da área, de que a preservação é o mero processo de extrair o sinal sonoro de uma gravação e de, em seguida, gerar um arquivo digital. Em outras palavras, nessa ótica a preservação se limita à digitalização propriamente dita, enquanto que esta é apenas uma etapa inicial no interior de todo um processo de preservação sonora. A própria fragilidade dos documentos digitais apontada acima já exige uma percepção mais fina por parte do profissional de preservação para o que seja de fato um trabalho de

preservação pautado por bases profissionais. A pre-servação de documentos sonoros hoje envolve um conjunto de processos, exigindo um planejamento cuidadoso e uma infraestrutura técnica sofisticada. Após a captura do áudio em um suporte analógico e a geração de arquivos digitais, os sistemas de arma-zenamento devem proteger os arquivos e garantir sua integridade – o que requer a migração periódica dos arquivos para novas mídias, validações para garantir que as cópias dos arquivos digitais sejam fiéis às gerações anteriores e novas medidas para garantir que esses arquivos sejam acessíveis por um longo prazo. A preservação sonora é, portanto, uma cadeia de eventos e um processo permanente.

É possível notar que um grande número de pro-jetos tem sido realizado sem um planejamento sistemático prévio e sem estratégias bem elaboradas no sentido de permitir que uma preservação de longo prazo venha a acontecer. Parece haver uma noção limitada acerca das implicações logísticas e financeiras que envolvem a preservação digital. Esta não deve se restringir somente à transferência de documentos analógicos em digitais, mas, como destaca Dietrich Schüller, cobrir vários outros aspectos relevantes:3

• manutenção de hardware e software;• revisão da integridade da informação;• renovação (refreshment) da informação armazenada;• migração da informação para novos sistemas de armazenamento, uma vez que os sistemas se tornam obsoletos.

Quando nos referimos à migração, este termo, portanto, pode envolver quatro medidas distintas.4 A digitalização seria a primeira etapa da migração, quando um objeto é transferido para um formato digital ou quando passa de um suporte sonoro a outro. O segundo tipo de migração envolve a reno-vação (refreshment) de dados, uma vez que nenhum sistema consegue sobreviver sem a atualização dos seus dados. Quando ocorrem mudanças tec-

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Para além da digitalização

nológicas, mais dois tipos de migração devem ser realizadas: a migração sistemática e a migração de formato. A migração sistemática se dá quando o sistema onde estão sendo armazenados os registros sonoros se torna obsoleto e há a necessidade de substituí-lo. Já a migração de formato acontece quando não é mais possível gerar e reproduzir determinados formatos (como o arquivo Wave, por exemplo), de maneira que todos eles devem ser convertidos para novos formatos.

É importante ter consciência dessas diferentes formas de migração porque cada uma delas envolve ações específicas. A digitalização, portanto, é em tese rea-lizada uma única vez, enquanto que os outros tipos de migração apontados devem ocorrer de maneira constante e sistemática. Não basta digitalizar uma fita magnética tendo a expectativa de que aquele registro durará para sempre, mas sim encarar a digitalização como uma etapa específica dentro de um ciclo, pelo qual sempre se terá que atualizar a informação.

Finalmente, além das questões de natureza técnica, o processo de preservação também deve abarcar as-pectos gerenciais. Os responsáveis pela preservação dos documentos sonoros devem gerenciar a seleção dos materiais a serem adicionados aos acervos, promover um inventário, avaliar as necessidades de preservação e catalogação, definir estratégias de acesso e difusão, buscar ações cooperativas interinstitucionais, angariar recursos, entre outras atividades.

Tentativas de padronização e “melhores práticas”

Os profissionais de preservação sonora devem tentar embasar o seu trabalho em padrões e em melhores práticas consolidados em seu campo de atividades. Na última década, algumas publicações importantes, todas elas originalmente em língua inglesa, vieram a público e aos poucos foram se tornando referência para o campo da preservação sonora. A primeira delas foi elaborada pelo comitê técnico da International Association of Sound and Audiovisual Archives (IASA) no ano de 2004, intitulada Guidelines on the production and preservation of digital audio objects. Esse guia, informalmente cha-mado de “TC-04”, acabou se tornando a referência

principal para as práticas de preservação sonora, ganhando uma nova edição, revista e ampliada, em 2009. O TC-04 dedica um longo capítulo às ques-tões relativas à captura de praticamente todos os suportes sonoros, incluindo questões de manuseio e higienização; outro capítulo é voltado para alguns padrões de metadados que podem acompanhar os objetos sonoros digitais; mais um capítulo volta-se para a implementação de sistemas de armazena-mento digital em massa, bem como sistemas de pequeno porte; entre diversos outros temas re-levantes para a preservação sonora. Também em 2004, a National Recording Preservation Board (NRPB), agência federal pertencente à Library of Congress, reuniu uma série de engenheiros e espe-cialistas em preservação sonora para que fossem debatidas as melhores práticas relativas à captura de fitas magnéticas e discos analógicos. O debate foi reunido na publicação Capturing analog sound for digital preservation: report of a roundtable discussion of best practices for transferring analog discs and tapes, editada em 2006, onde um conjunto de profissionais gaba-ritados aponta para quais seriam as melhores prá-ticas de captura dos suportes sonoros analógicos. Finalmente, em 2007, um projeto de preservação sonora em parceria entre a Universidade de Indiana e a Universidade de Harvard resultou no extenso relatório Sound directions: best practices for audio preserva-tion. A publicação concentra-se no fluxo de trabalho e nas melhores práticas relacionadas com a geração de arquivos digitais, incluindo os metadados neces-sários para a descrição dos arquivos e as questões relativas à manutenção dos arquivos em um longo prazo. São ao todo 47 melhores práticas descritas com riqueza de detalhes e precisão técnica.

Em conjunto, essas três publicações deram uma contribuição formidável para que o trabalho desenvolvido por arquivistas e especialistas em preservação sonora se tornasse mais tecnicamente embasado e para que a implementação de estraté-gias de preservação junto aos acervos pudesse se tornar mais viável. Até certo ponto, no entanto, esses “guias” podem ser muito abstratos e pouco factíveis para orientar grande parte das instituições, a não ser aquelas com recursos e competências grandes o suficiente para a implantação de um programa de preservação digital profissional. A realidade da maioria das instituições, sobretudo no

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Brasil, é pautada pela severa limitação orçamentá-ria, a falta de recursos humanos especializados e a ausência de um aparato técnico de caraterísticas profissionais. Todas essas carências fazem com que os padrões e as melhores práticas apontados nas publicações citadas se tornem intimidadores, pouco exequíveis e muito distantes do contexto brasileiro dos acervos – ainda que os mesmos problemas sejam percebidos pelos profissionais norte-americanos diante de suas instituições.

Apesar disso, as instituições devem ao menos se inteirar das recomendações apontadas por essas publicações e avaliar, a partir de suas possibili-dades e contextos, quais as ações são passíveis de implementação, de forma a possibilitar um aprimoramento técnico do corpo de profissionais envolvidos e, por conseguinte, oferecer uma maior expectativa de vida aos documentos sonoros. Por outro lado, é necessário que haja uma iniciativa dos profissionais brasileiros não só em absorver e implementar as recomendações das publicações estrangeiras na medida do possível, mas também em fazer com que possam vir a ser autores de suas próprias recomendações. Como a bibliografia dedi-cada à preservação sonora é quase que inteiramente em língua inglesa, seria de grande relevância o esfor-ço por parte dos profissionais brasileiros em reunir os seus conhecimentos de forma a compor uma literatura em português. Uma iniciativa como essa poderia contribuir tanto para um entendimento mais preciso dos termos técnicos, por exemplo, quanto para um melhor enquadramento das atuais questões da preservação sonora em um contexto nacional.

Metadados

As tentativas de padronização, mesmo quando envolvem o uso de um formato amplamente incorporado às práticas de preservação sonora, podem apresentar problemas pontuais. Em meio às recomendações mais bem assentadas entre os engenheiros de áudio e outros profissionais de preservação sonora está a adoção do formato BWF (Broadcast Wave File) como arquivo matriz de pre-servação, uma vez que este não gera compressão do sinal sonoro. Além disso, o BWF, desenvolvido pela European Broadcast Union (EBU), é uma espécie de sofisticação do Wave tradicional criado

pela Microsoft, permitindo que mais metadados possam ser inseridos e armazenados no cabeçalho do próprio arquivo. Apesar de sua adoção cada vez mais disseminada, o BWF costuma receber críticas tanto no que toca à limitação dos seus campos para a inserção de determinados tipos de informação, quanto principalmente pelo fato de que muitos metadados alimentados no arquivo podem não ser corretamente lidos por determinados softwares de áudio – sendo que alguns dos quais simplesmente apresentam total incompatibilidade com o BWF.

Outra questão muito presente e debatida nos dias correntes é a ausência de um padrão de metadados para os arquivos sonoros digitais. Esse é um dado especialmente crítico e preocupante quando leva-mos em conta a importância dos metadados para a sustentabilidade e a permanência dos arquivos digitais. Meios analógicos, como discos e fitas, são físicos e seu conteúdo está documentado nos estojos e nos invólucros igualmente físicos, bem como nos rótulos que os acompanham. Arquivos de áudio digital, por outro lado, são intangíveis, dependendo da incorporação de informações, que podem ser armazenadas no próprio arquivo ou serem inteiramente separadas deste. O BWF é, como vimos, um formato que possibilita a inserção de metadados no próprio arquivo. Além dos pro-blemas associados ao uso do BWF já apontado, o que mais preocupa os profissionais de preservação sonora é a falta de um padrão de metadados exter-namente associado aos arquivos digitais. Entre as tentativas de adoção de um padrão de metadados podemos apontar o uso desde um sistema simples como o Dublin Core (que se restringe a metadados descritivos concentrados em alguns campos), assim como outros mais complexos como o METS (sis-tema que pode incluir uma variedade de metadados descritivos, administrativos e estruturais) e também o AES31 (desenvolvido pela Audio Engineering Society para profissionais da indústria de áudio, mas que pode ser aplicado em projetos de pre-servação de áudio). O que chama a atenção é que, além do pouco entendimento quanto a um padrão a ser amplamente adotado, a maioria dos modelos utilizados são complexos, sistemas ou esquemas que são mais adequados para programas de preser-vação em instituições maiores, com infraestrutura de tecnologia da informação altamente sofisticada.

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Para além da digitalização

Nesse sentido, é importante lembrar que a geração de metadados é um dos aspectos mais complexos e custosos dentro de um programa de preservação de áudio digital, pois requer profissionais treina-dos e ferramentas que possibilitem processos mais automatizados. Como se trata de um elemento essencial para todo projeto de preservação sonora, é preciso que soluções menos complexas e mais plenamente factíveis sejam desenvolvidas para as instituições de menor porte e com restrições orçamentárias. Para que isso aconteça, é neces-sário também que um conjunto de metadados essenciais seja melhor definido pela comunidade de profissionais de preservação sonora, o que vale tanto para instituições de pequeno porte quanto para as de maior porte. Nesse ínterim, soluções paliativas podem ser adotadas, mas que colocam em risco a permanência de artefatos tão frágeis como são os arquivos digitais.

Repositórios digitais

Embora os arquivos digitais apresentem desafios, são hoje a melhor opção para os objetivos da preservação sonora. Mesmo armazenados sob condições ideais de temperatura e umidade relativa, suportes analógicos, especialmente as fitas de gravação magnética, se dete-rioram com o tempo, tanto física quanto sonoramen-te. Esses suportes, enquanto pertencentes ao domínio analógico, não são possíveis de serem copiados sem perda de sinal sonoro e introdução de ruído. Outros fatores a se considerar são a dificuldade de encontrar fitas virgens, a pouca disponibilidade de equipamentos de reprodução com características profissionais, bem como de técnicos especializados na manutenção e na correta operação desses mesmos equipamentos. Geralmente os arquivos digitais são armazenados em discos rígidos, fitas de dados (como LTO) e discos óticos (como CD-R ou DVD-R). Nenhuma dessas mídias foi concebida para o armazenamento de longo prazo, de modo que o conteúdo armazenado deve ser permanentemente monitorado e os sistemas eventualmente atualizados.

Como os arquivos de áudio digital podem ser copiados com relativa facilidade e sem perda de qualidade do sinal de áudio, sistemas de preserva-ção são projetados e construídos para gerenciar esse conteúdo em um pretendido longo prazo. Esses chamados repositórios digitais monitoram a integridade do arquivo e garantem que os ar-quivos digitais sejam migrados para novas mídias, quando necessário. Um repositório digital inclui rotinas para verificar a integridade dos arquivos, proteção por meio de firewalls e sistemas de backup e redundância em funcionamento, devendo estar em conformidade com o modelo OAIS.5 No en-tanto, um projeto que pretenda prolongar a vida dos documentos digitais costuma não se viabilizar plenamente em função de alguns fatores, sendo o principal deles o relativo aos custos de implemen-tação e gerenciamento. Por ser imensamente caro para desenvolver um repositório digital, a maioria dos profissionais de preservação sonora, tanto no Brasil quanto em outros países, faz uso de sistemas de armazenamento de pequeno porte locais. Muitas vezes o melhor que se pode fazer no interior de uma instituição é armazenar arquivos de preservação di-gital em servidores locais e se manter na expectativa de que os arquivos estejam razoavelmente seguros e sendo copiados durante ciclos regulares.

Base científica e iniciativas educacionais

A falta de padrões e melhores práticas muitas vezes é agravada pela relativa ausência de uma abordagem científica que sirva de sustentação para essas práti-cas, conforme aponta o relatório norte-americano. Os ensinamentos do campo da engenharia de som geralmente destinam-se a atividades voltadas para a indústria fonográfica, muitas vezes sendo insu-ficientes e incompatíveis com as necessidades da preservação sonora. Deve haver uma tentativa de aproximação de profissionais da engenharia de som para a prática arquivística e ao mesmo tempo atrair os engenheiros para as questões da preservação.

5 OAIS (Open Archival Information System) é um modelo de referência ISO que vem sendo aceito pela comunidade de preservação digital como um padrão fundamental para repositórios digitais. O modelo OAIS especifica como os recursos digitais devem ser preservados em um longo prazo por uma comunidade de usuários, desde o momento em que o dado digital é alimentado na área de armazenamento digital até quando de sua divulgação.

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165

cine RIO DE JANEIRO, CAPITAL DO CINEMA

Há inúmeros exemplos na história da preservação dos suportes sonoros de que um embasamento científico contribuiria em grande medida para melhor fundamentar as tentativas de padronização. Um exemplo típico se refere ao procedimento geralmente adotado para recuperar fitas em alto grau de deterioração. A grande ameaça à fita mag-nética com base de poliéster é a degradação do aglutinante, provocando a hidrólise, onde ocorre a separação entre as partículas magnéticas e o suporte que sustenta a fita. Fitas com hidrólise acentuada sofrem a chamada “síndrome da fita pegajosa” (sticky-shed syndrome), processo de deterioração que eventualmente pode danificar severamente as cabe-ças de gravação da máquina de reprodução, fazendo interromper a operação. A solução mais utilizada para uma gravação com esse nível de degradação é esquentar (baking) a fita em baixa temperatura, em fornos especialmente desenvolvidos para a operação, durante várias horas. No entanto, muitos arquivistas e demais profissionais de preservação sonora questionam a eficácia do procedimento e temem possíveis efeitos em longo prazo sobre os suportes. Temor que se demonstra verdadeiro, pois não é incomum encontrar fitas que são impossíveis de serem reproduzidas após passarem algumas horas dentro de um forno. Muitos profissionais se perguntam se uma solução melhor e mais bem embasada não poderia ser encontrada, uma vez que ainda não há verificação científica que ateste a segurança do procedimento em um longo prazo. De modo geral, há uma carência evidente de base científica envolvendo diversos procedimentos do campo da preservação sonora, os quais, na maior parte das vezes, são pautados pelo empirismo e pela observação impressionista.

Por fim, outro importante aspecto a ser destaca-do envolve a questão da educação. Salvo alguns workshops bissextos, não há no Brasil disciplinas

universitárias dedicadas à preservação sonora, muito menos cursos de graduação e especialização voltados ao tema. Já há diversos cursos pelo Brasil que oferecem cadeiras universitárias dedicadas à preservação audiovisual como um todo, muitas vezes dando ênfase à preservação fílmica, mas um curso dedicado especificamente às questões que envolvem a preservação do som ainda está para surgir no Brasil. O investimento em educa-ção, agregado à sedimentação científica apontada anteriormente, pode fazer com que o campo da preservação sonora ganhe consistência técnica e fundamentação conceitual, atraindo cada vez mais profissionais para o setor.

Conclusão

Por meio de alguns aspectos apontados e tendo como base um recente estudo norte-americano sobre a situação da preservação sonora atual, conseguimos verificar que a preservação é hoje um processo para além da digitalização. A preser-vação sofreu uma significativa mudança conceitual, passando de um processo básico de conversão ou digitalização e se transformando em uma es-tratégia ampla de gestão de arquivos. É também importante enfatizar, por fim, que a digitalização é um elemento fundamental para tornar evidente o valor do patrimônio sonoro. No entanto, como no universo digital ocorre uma ênfase muitas vezes excessiva na tecnologia, nos sistemas e nos proces-sos, pode haver o risco de que indivíduos e insti-tuições considerem os documentos sonoros nada mais do que códigos binários em uma “nuvem”. É válido não se perder de vista, portanto, que os documentos sonoros são conteúdos, que por sua vez conservam dados sonoros do nosso tempo, seja a música, a natureza, a voz humana, entre diversos outros registros que compõem o nosso patrimônio histórico e cultural.6

6 Outras referências bibliográficas: BRADLEY, Kevin (Org.). IASA-TC 04: guidelines on the production and preservation of digital audio objects. 2. ed. Aarhus, Denmark: International Association of Sound and Audiovisual Archives (IASA), 2009; CASEY, Mike; GORDON, Bruce. Sound directions: best practices for audio preservation. Bloomington/Cambridge: Indiana University/Harvard University, 2007. Disponível em: <http://www.dlib.indiana.edu/projects/sounddirections/papersPresent/index.shtml>. Acesso em: 29 ago. 2013; THE NATIONAL RE-Acesso em: 29 ago. 2013; THE NATIONAL RE-CORDING PRESERVATION BOARD. Capturing analog sound for digital preservation: report of a roundtable discussion of best practices for transferring analog discs and tapes. Washington, D.C.: Council on Library and Information Resources and Library of Congress, 2006. Disponível em: <http://www.clir.org/pubs/reports/pub137/pub137.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2013.

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BR

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Reginaldo Faria e Adriana Prieto contracenam em Os paqueras (1969), comédia tipicamente carioca. Correio da Manhã

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Conta-nos a história que, no ano de 1911, um grupo de capitalistas estadunidenses aportou no Rio de Ja-neiro em busca de possibilidades de investimentos,1 dentre as quais identificaram o crescente interesse do brasileiro pelo cinema. A continuação dessa história é oferecida por Sidney Ferreira Leite, que revela como Hollywood dominou o mercado cinematográfico bra-sileiro a partir da segunda metade da década de 1910:

Para tamanho êxito [hegemonia hollywoodiana], mui-to contribuiu o fato de os proprietários das principais salas de cinema, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, e notadamente o mais poderoso de todos, Francisco Serrador, firmarem contratos de arrendamento com os grandes estúdios cinematográ-ficos norte-americanos, como a Paramount e a MGM. Segundo tais contratos, cinemas como o Capitólio e o Império, duas das maiores e mais frequentadas salas da capital, por exemplo, passaram a exibir exclusivamente

produções norte-americanas. Cabe destacar que não existia naquele momento nenhuma lei que impedisse a realização de tais contratos.Nesse contexto, é interessante destacar a formação da primeira grande rede de cinemas no país, a Com-panhia Cinematográfica Brasileira, de propriedade de Francisco Serrador, que passou a funcionar na prática como um truste que comprava salas de exibição por todo o país e mostrava preferencialmente, como nos casos acima citados, apenas filmes norte-americanos.2

Hoje, passados mais de cem anos, diversas mu-danças ocorreram na cinematografia brasileira em termos técnicos e artísticos, entretanto, no que concerne à comercialização do filme nacional a sen-sação mais presente, ao longo de todos esses anos, foi, e continua a ser, a de que o cinema brasileiro luta por espaço em seu próprio mercado invadido, como podemos ver no gráfico 1.

Fati

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%)

2007 2009 20111999 2011 2003 2005

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1995 19970

Gráfico 1: Fatia de mercado do cinema nacional no Brasil (1995 e 2011)

Fonte: BUTCHER, Pedro.3 Cinema brasileiro hoje. São Paulo: Publifolha, 2005; ANCINE. Filmes nacionais lançados de 1995 a 2011. Disponível em: <http://oca.ancine.gov.br/filmes_bilheterias.htm>. Acesso em: 13 dez. 2012. Gráfico elaborado pelo autor.

Doutor e mestre em Geografia Econômica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenador do Núcleo de Economia Criativa e chefe do Departamento de Gestão do Entretenimento da Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de Geografia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde também é pesquisador do Grupo de Pesquisa Gestão Territorial no Estado do Rio de Janeiro (GeTERJ).

João Luiz de Figueiredo Silva

A importância da produção cinematográfica do Rio de Janeiro no mercado do cinema nacional

1 MOURA, Roberto. A Bela Época (Primórdios-1912), Cinema carioca (1912-1930). In: RAMOS, Fernão (Org.). História do cinema brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987.2 LEITE, Sidney Ferreira. Cinema brasileiro: das origens à retomada. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005. p. 263 BUTCHER, Pedro. Cinema brasileiro hoje. São Paulo: Publifolha, 2005.

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Rio de JaneiRo, capital do cinema

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cine

Nessa luta, a produção do Rio de Janeiro sempre desempenhou papel relevante, mas qual é o papel da produção cinematográfica do Rio de Janeiro atu-almente no mercado nacional? Como se estrutura o nosso sistema produtivo? Essas serão as perguntas a serem respondidas neste artigo.

A importância das produtoras cariocas no conjunto da indústria cinematográfica nacional

A fase atual do cinema brasileiro identificada como “Retomada” “designa o processo de recuperação da produção cinematográfica no Brasil depois de uma de suas mais graves crises, no começo dos anos 90”.4 Não se trata de um novo movimento artís-tico ou de uma nova linguagem cinematográfica, mas de um novo modelo de negócio, fortemente viabilizado pelas leis de incentivo que permitiram o financiamento da produção cinematográfica.

Conforme podemos analisar no gráfico 2, no período 1995-2011 há um aumento expressivo do número de filmes produzidos no país, revelando, assim, o fortalecimento da indústria cinemato-gráfica nacional. No mesmo gráfico, evidencia-se a primazia do Rio de Janeiro no total de filmes produzidos no país, porém percebe-se o aumento da produção de filmes em São Paulo e em outras cidades espalhadas pelo país.

No gráfico 3, relativizam-se os dados, de modo a demonstrar que em todos os anos o Rio de Janeiro foi responsável por mais de 40% das produções ci-nematográficas brasileiras, obtendo taxas próximas de 70% em alguns anos.

No gráfico 4, ratifica-se a primazia das produto-ras cinematográficas cariocas no total de filmes produzidos no Brasil entre os anos de 1995 e 2011, sendo que das 798 produções, 437 foram realizadas no Rio de Janeiro, 243 em São Paulo, 34 no Rio Grande do Sul e 84 em outros estados.

Se, por um lado, os três gráficos ratificam a pri-mazia das produtoras cariocas no total de filmes produzidos entre os anos de 1995 e 2011, por outro, sugerem o fortalecimento das produtoras paulistas, a estabilidade da produção gaúcha e um interessante florescimento de atividade cinema-tográfica em outras cidades do país. No entanto, além do volume de produção, necessitamos de informações sobre o sucesso dessas produções, uma vez que, para a consolidação de uma indús-tria cinematográfica, níveis mínimos de público e renda são indispensáveis.

Nos gráficos 5 e 6, confirma-se a importância dos filmes produzidos pelas produtoras cariocas no total de público e renda obtidos pela cinemato-grafia nacional. Exceção feita ao ano de 2002, os filmes do Rio de Janeiro sempre se posicionaram como os maiores geradores de público e renda, sendo que o grande sucesso do referido ano foi Cidade de Deus, rodado no Rio de Janeiro, com te-mática carioca e coproduzido pela Globo Filmes, sediada na cidade.

O comportamento das curvas nos dois gráficos expõe a relevância dos filmes cariocas para a con-solidação da indústria cinematográfica nacional, na medida em que se verifica que a variação das curvas totais se manifesta de modo correlato com

PH_F

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0300

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4

4 Ibidem, p. 14.

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A importânciA dA produção cinemAtográficA do rio de JAneiro

Gráfico 4: participação dos estados no total de filmes produzidos no Brasil (1995 e 2011)

Fonte: ANCINE. Filmes nacionais lançados entre 1995 e 2011. Gráfico elaborado pelo autor.

Gráfico 2: produção cinematográfica brasileira por sede da produtora (1995 e 2011)

ano

100

120

Qu

an

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ad

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ilm

es

1995 1997 1999 2011 2003 2005 2007 2009

80

60

40

20

02011

Fonte: ANCINE. Filmes nacionais lançados entre 1995 e 2011. Gráfico elaborado pelo autor.

a variação das curvas das produtoras sediadas no Rio de Janeiro. Ou seja, a consolidação da indústria cinematográfica nacional depende, em grande parte, do sucesso ou do fracasso dos filmes produzidos no Rio de Janeiro.

Vale dizer que, apenas nos anos de 2003 e 2010 o público do cinema nacional superou a linha das vinte milhões de pessoas. No gráfico 6, percebe-se que, com exceção de 2003, foi apenas nos últimos três anos que o faturamento de bilheteria

do cinema nacional conseguiu superar a linha dos R$ 100 milhões, sendo esse fato um limitador ao financiamento de novas produções e de filmes com maior orçamento.

Nos gráficos 7 e 8, relativizam-se os dados, de modo a demonstrar que em muitos anos a pro-dução cinematográfica do Rio de Janeiro foi res-ponsável por mais de 80% do público e da renda do cinema nacional, obtendo taxas acima de 90% em 1995, 1996, 1998, 2000, 2006 e 2010.

Gráfico 3: Fatia da produção cinematográfica nacional por sede da produtora (1995 e 2011)

ano

80

1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007

50

40

30

20

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2009

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Fonte: ANCINE. Filmes nacionais lançados entre 1995 e 2011. Gráfico elaborado pelo autor.

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0295

7_07

6

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171

cine Rio de JaneiRo, capital do cinema

Gráfico 5: público da cinematografia brasileira por sede da produtora (1995 e 2011)

ano

Fonte: ANCINE. Filmes nacionais lançados entre 1995 e 2011. Gráfico elaborado pelo autor.

1995 1997 1999 2001 2003 2005 20070

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Gráfico 6: Renda da cinematografia brasileira por sede da produtora (1995 e 2011)

ano

0

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1995 1997 1999 2011 2003 2005 2007 2009 2011

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Fonte: ANCINE. Filmes nacionais lançados entre 1995 e 2011. Gráfico elaborado pelo autor.

Gráfico 7: Fatia de mercado do cinema brasileiro em termos de público, por sede da produtora (1995 e 2011)

ano

Fonte: ANCINE. Filmes nacionais lançados entre 1995 e 2011. Gráfico elaborado pelo autor.

1995 1997 1999 2001 2003 2005 20070,00

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A importânciA dA produção cinemAtográficA do rio de JAneiro

Gráfico 9: Fatia de mercado do cinema brasileiro em termos de público, por sede da produtora (1995 e 2011)

Fonte: ANCINE. Filmes nacionais lançados entre 1995 e 2011. Gráfico elaborado pelo autor.

Gráfico 10: Fatia de mercado do cinema brasileiro em termos de renda, por sede da produtora (1995 e 2011)

Fonte: ANCINE. Filmes nacionais lançados entre 1995 e 2011. Gráfico elaborado pelo autor.

Gráfico 8: Fatia de mercado do cinema brasileiro em termos de renda, por sede da produtora (1995 e 2011)

ano

Fonte: ANCINE. Filmes nacionais lançados entre 1995 e 2011. Gráfico elaborado pelo autor.

1995 1997 1999 2001 2003 2005 20070,00

Fati

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2009

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50,00

40,00

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Nos gráficos 9 e 10, ratifica-se a primazia das produ-toras cinematográficas cariocas no total conquistado de público e renda do cinema nacional ao longo de todo o período selecionado, pois obtiveram a expressiva fatia de 83% e 84%, respectivamente.

Diante de todas as informações expostas até aqui, não há dúvidas acerca da importância das produ-toras cinematográficas cariocas dentro da indústria cinematográfica nacional e podemos concluir que, enquanto outros estados do Brasil ainda lutam para consolidar a existência da atividade produtiva, o Rio

de Janeiro encontra-se em uma fase posterior que consiste na consolidação do público para os seus filmes. Dessa forma, embora os últimos anos do período analisado revelem uma participação menor do Rio de Janeiro no total de filmes produzidos no país, percebe-se um importante aumento do sucesso comercial dos filmes cariocas.

No entanto, a primazia da metrópole do Rio de Janeiro é ainda mais evidente se considerarmos o papel hegemônico ocupado pela Globo Fil-mes, criada como departamento da TV Globo

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173

cine Rio de JaneiRo, capital do cinema

em 1997, mas que somente a partir de 2000 teria uma atuação intensa no mercado cinematográfico brasileiro. Através de um modelo de negócio es-pecífico, a associação da Globo Filmes às diversas produtoras não ocorre pelo financiamento da produção, mas pelo oferecimento de espaço para divulgação do filme na mídia, ou seja, a Globo Filmes não se envolve diretamente com a produ-ção, mas desempenha papel central no marketing do filme, ao oferecer uma estrutura nacional de divulgação na televisão e nos seus outros veículos.

O resultado dessa estratégia da empresa é, além da alavancagem do cinema nacional e da instituição de um padrão cinematográfico, uma impressio-nante concentração de mercado em torno dos filmes em que ela participa.

O sistema produtivo da indústria cinema-tográfica brasileira

Essa condição hegemônica da Globo Filmes a coloca como elemento central na organização do sistema produtivo cinematográfico brasileiro, de maneira que, para Butcher,5 a produção indepen-

dente no Brasil deve ser definida pela ausência da Globo Filmes no projeto. Entretanto, essa pro-posta reduz a importância que as distribuidoras possuem para o sucesso comercial de um filme. Sendo assim, em função do domínio do mercado cinematográfico exercido pela Globo Filmes e do amplo controle que as majors exercem sobre a distribuição, estabelecemos que quando um desses elementos estiver integrado a um determinado projeto, este será considerado como integrante do subsistema produtivo hegemônico da indústria cinematográfica. De outra forma, os projetos que não contarem com a participação dessas empresas serão considerados independentes.

No gráfico 11, ilustramos o volume de produção, considerando quatro tipos de filmes: aqueles que tiveram parceria entre a Globo Filmes e uma major; os que foram coproduzidos pela Globo Filmes e distribuídos por uma distribuidora independente; os que não tiveram parceria com a Globo Filmes mas foram distribuídos por uma major; e, final-mente, os plenamente independentes, ou seja, não tiveram participação da Globo Filmes e nem foram distribuídos por uma major.

Gráfico 11: evolução da produção cinematográfica nos subsistemas hegemônico e independente da indústria cinematográfica brasileira entre os anos de 2003 e 2011

02003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

90

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60

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Globo Filmes

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Plenamente independente

Fonte: ANCINE. Filmes nacionais lançados entre 1995 e 2011; e site da Globo Filmes. Gráfico elaborado pelo autor..

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5 BUTCHER, Pedro, op. cit.

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A importânciA dA produção cinemAtográficA do rio de JAneiro

Gráfico 12: produção cinematográfica nos subsistemas hegemônico e independente da indústria cinematográfica brasileira entre os anos de 2003 e 2011, por sede da produtora

0

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

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Plenamente independente

Fonte: ANCINE. Filmes nacionais lançados entre 1995 e 2011; e site da Globo Filmes. Gráfico elaborado pelo autor.

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No gráfico 12, desagregamos os dados do qua-dro acima por sede da produtora e, dessa forma, confirmou-se a liderança produtiva do Rio de Janeiro, tanto nos filmes hegemônicos como nos independentes. Além disso, é muito interessante perceber o crescimento da produção independente fora do eixo Rio-SP.

Pelo gráfico anterior podemos visualizar a cres-cente participação dos projetos independentes no total de filmes realizados no país. Parte deles foi conduzida por produtoras que ora se inserem no subsistema hegemônico, ora não. Outra parte é realizada por produtoras efetivamente independen-tes, cujos projetos nunca interagem com a Globo Filmes ou com as majors.

Embora o gráfico sugira um dinamismo na pro-dução independente, o acesso desses filmes ao mercado cinematográfico é bastante restrito e, consequentemente, costumam ter desempenhos economicamente inferiores à média. Ou seja, in-felizmente, mesmo os filmes que possuem grande valor simbólico não geram valor econômico na mesma proporção. Em função disso, são projetos plenamente dependentes de financiamentos exter-nos à produtora.

Se, por um lado, muitas críticas podem ser realiza-das a determinados projetos cujos desempenhos de mercado são muito distantes dos valores capta-

dos para suas realizações, por outro lado, deve-se enfatizar que nesse subsistema também se geram externalidades positivas para o sistema produtivo, incluindo a possibilidade de fluxo de talentos para o subsistema hegemônico.

Considerações finais

Pelas informações expostas anteriormente, fica evidente a importância dos produtores de cinema do Rio de Janeiro na indústria do cinema nacio-nal, mas algumas tendências e futuros caminhos merecem ser sistematizados nestas últimas linhas.

1. Apesar de possuir papel de grande liderança na produção de filmes ao longo do período, é certo que os produtores do Rio de Janeiro passarão a conviver cada vez mais com a produção cinemato-gráfica de outros centros do país. Nessa dispersão geográfica da produção cinematográfica, São Paulo apresenta níveis crescentes de produção e Rio Grande do Sul encontra dificuldades para expan-dir sua capacidade produtiva. O grande destaque, entretanto, é o vigoroso crescimento da produção no Nordeste do país, especialmente em Pernam-buco, potencializando a diversificação artística da cinematografia nacional.

2. Embora, por um lado, os dados tenham revelado a dispersão da atividade cinematográfica no país, por outro, confirmaram que em termos comerciais

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cine Rio de JaneiRo, capital do cinema

a indústria do Rio de Janeiro continua com ampla vantagem competitiva frente aos demais centros produtivos, conquistando frequentemente fatias de mercado acima de 80%.

3. A estabilidade da quantidade de filmes produ-zidos pela indústria cinematográfica do Rio de Janeiro, desde 2006 em torno dos quarenta filmes anuais, e o aumento das fatias de mercado anuais que esses filmes conquistam, próximo dos 90% nos últimos três anos, revelam uma clara tendência das políticas públicas para o setor no Rio de Janeiro, as quais têm privilegiado o sucesso comercial das produções. Nesse contexto, merece grande menção a redefinição do papel da RioFilme na indústria do cinema do Rio de Janeiro, a qual deixou de ser uma empresa pública de fomento para se configurar em uma empresa pública de investimento, de maneira que isso possibilitou a elevação do volume de re-cursos investidos nos últimos anos.

4. Sabe-se que nenhum sistema produtivo de bens e serviços culturais no mundo é capaz de se desenvolver apenas com produtos ou serviços de um dos subsistemas, seja do hegemônico ou do independente. Nesse sentido, o sistema produti-vo que conseguir equilibrar melhor os conflitos entre os seus subsistemas e gerar um processo de complementaridade e cooperação entre eles tenderá a gerar vantagens competitivas no médio e no longo prazo para os profissionais e empresas que nele estão inseridos. Isso significa reconhecer a importância do subsistema independente para a inovação e para a revelação dos novos talentos para o conjunto do sistema produtivo, ao mesmo tempo em que o subsistema hegemônico se revela determinante na geração de fluxos financeiros capazes de alimentar todo o sistema produtivo. Deve-se, portanto, ter cuidado com as políticas públicas que priorizem apenas um dos subsiste-mas produtivos.

5. A concentração do mercado nos filmes co-produzidos pela Globo Filmes demonstra a

carência da indústria em sua totalidade, a qual não consegue implementar planos de comuni-cação eficientes para elevar a sua bilheteria. Sem dúvida, o principal ativo da Globo Filmes para o sucesso comercial das produções em que atua como coprodutora é a sua imensa capacidade de comunicação, de forma que, ao utilizar os seus próprios programas para fazer cross media, ela se torna decisiva para a formação de público de uma produção.

6. Embora neste artigo tenhamos priorizado as informações sobre as produtoras, a rede produtiva do cinema é muito mais complexa, envolvendo diversos serviços especializados e demandando variados equipamentos e instalações. A cidade do Rio de Janeiro, assim como São Paulo, possui toda essa rede produtiva, entretanto, é crescente a integração produtiva entre as empresas e os profissionais criativos e técnicos dessas cidades.

7. Por fim, mas sem qualquer pretensão de ter es-gotado a discussão sobre o mercado cinematográ-fico brasileiro, devemos considerar a necessidade de se superar os históricos gargalos estruturais que impedem que os filmes brasileiros conquistem maiores fatias de mercado. Em especial, políticas capazes de ampliar as redes de distribuição do cinema nacional, expandir o número de salas de exibição para fora dos grandes centros urbanos e formar novos públicos para o conteúdo nacional são sempre bem-vindas. Porém, devemos ficar atentos a um aspecto concorrencial do cinema brasileiro. Em uma visão rápida, podemos acre-ditar que o filme nacional concorre diretamente com o filme estrangeiro, entretanto, em função da heterogeneidade dos produtos, a competição não ocorre apenas no mercado agregado, mas princi-palmente dentro dos gêneros cinematográficos. Em outras palavras, a animação nacional concorre com a animação estrangeira; a comédia nacional com a comédia estrangeira; o drama nacional com o drama estrangeiro; e assim por diante. O cinema nacional não é um gênero de filme!6

6 Ver também: FIGUEIREDO SILVA, João Luiz de. Gravando no Rio! A indústria do cinema e a metrópole do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009.

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A favela é um cenário tradicional do cinema brasi-leiro, desde as décadas de 1950 e 1960, os subúrbios empobrecidos das grandes cidades, principalmente do Rio de Janeiro, então centro político e cultural do país, eram retratados em seu cotidiano e dilemas. Neste artigo identificamos, através de um breve histórico, duas fases do cinema nacional em que a representação da favela toma maior destaque: os primórdios do movimento do Cinema Novo e o recente cinema da pós-Retomada, no início do século XXI. Chegando a ser chamados de favela-movies, por sua proximidade a linguagens televisivas e estética pós-moderna, tais filmes reabilitaram a favela no imaginário cinematográfico, tendo como foco especialmente a violência.

A linguagem não é, no entanto, a única diferença dos filmes que representam as favelas na última década para os que traziam este tema na década de 60; o retrato da favela e de seus moradores foi claramente modificado, deixando de lado uma visão romantizada e frequentemente idealista das comu-nidades para dar lugar a um retrato da violência existente neste ambiente, mas também da pobreza como um obstáculo a ser contornado no caminho a outros objetivos. Temos dentre esses filmes alguns dos mais bem-sucedidos da trajetória do cinema nacional recente, que, com apelo massivo, reabriram espaço para a reflexão sobre problemas estruturais da sociedade brasileira.

O primeiro filme brasileiro a ter a favela como cená-rio principal foi A favela dos meus amores, de Humberto Mauro, em 1935, filme do qual não restam cópias. Mas foi nas décadas de 50 e 60 que a favela tornou-se um cenário marcante em algumas das primeiras

1 ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. p. 151.

produções do Cinema Novo. Rio, 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, é considerado um marco fundador deste movimento estético-cultural. O filme traz uma mistura de ficção e realidade, com atores-mirins moradores da comunidade do Morro do Cabuçu. A produção de Nelson Pereira dos Santos foi censurada na época por suposta conexão com Partido Comunista Brasileiro, que havia sido banido da cena política nacional em 1948.

Para Miriam Rossini (2003), Rio, 40 graus incentivou os cineastas brasileiros da época a buscar retratar o Brasil pobre e subdesenvolvido, o chamado “ver-dadeiro Brasil”. Com este ideal foram produzidas outras películas como Assalto ao trem pagador (1962), de Roberto Farias, ou Cinco vezes favela (1962), di-rigido por cinco iniciantes, todos tendo as favelas do Rio de Janeiro como cenário principal. Muitos dos cineastas do Cinema Novo eram ligados a movimentos políticos de esquerda, como é o caso de Nelson Pereira dos Santos, que foi filiado ao PCB. Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues e Leon Hirszman, três dos cinco jovens diretores de Cinco vezes favela, eram oriundos do movimento estudantil e tinham como projeto conscientizar e mobilizar a sociedade através da arte. Isto pode ser observado nos filmes desta época, através de visões idealizadas da vida nos morros.

Como exemplo das visões do cinema da metade do século XX e do início deste século sobre a favela, citamos as duas adaptações da obra Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes, a primeira por Marcel Camus em Orfeu do Carnaval, de 1959, e a segunda por Cacá Diegues, em 1999, com Orfeu, conforme Oricchio:1

Mestre e doutoranda em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.Lúcia Loner Coutinho

A favela em cena – uma trajetória do idealismo à selva de sangue

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O Cristo Redentor visto do alto do Morro Santa Marta, no bairro de Botafogo. Correio da Manhã

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Então, de um lado há a representação idílica dos morros. Lugar onde se é irresponsavelmente feliz, onde se ama e se samba, pouco importando que as pessoas estejam doentes ou morrendo de fome. O antecessor de Cacá, o Orfeu de Marcel Camus, é o mais significativo emblema desse tipo de atitude [...].De outro, há a representação que a esquerda tradi-cional faz do morro, imerso em profunda ignorân-cia, ocupando-se em tarefas menores, em lugar de, disciplinadamente, revoltar-se e organizar-se e fazer a revolução.Com sua nova versão de Orfeu, Cacá Diegues tentou juntar as duas pontas dessa contradição e fazê-la interagir em equilíbrio instável, que é o que ocorre no país concreto.

Ao confrontar o Orfeu de Camus ao de Diegues, as mudanças sociais nos quarenta anos de intensa urbanização e inchaço das periferias ficam à mostra. A favela deixa de ser idealizada romanticamente e a situação da violência urbana nas zonas desprivi-legiadas ganha espaço. Diegues, que em sua repre-sentação da favela em Cinco vezes favela (episódio Escola de Samba Alegria de Viver), subscreve a ideais da esquerda tradicional da época, porém mostra seu amadurecimento como cineasta (e também politicamente) já em Orfeu e, como veremos, na produção de 5x favela – agora por nós mesmos.

Já nas décadas de 70 e 80, as periferias urbanas foram postas de lado nas produções nacionais. É necessário lembrar que a produção fílmica brasileira sofreu progressiva diminuição na penúltima década do século XX, culminando no fechamento da Em-brafilme. Somente a Retomada,2 a partir de meados dos anos 90, levaria o país, lentamente, a voltar a ter uma produção cinematográfica relevante.

Após esse “hiato” institucional do cinema brasilei-ro, o que vemos, no final da década de 90 e início do século XXI, é a favela e a pobreza voltarem a fazer parte do cotidiano da cinematografia do país, sendo

tema de diversos filmes. A favela que se apresenta e representa neste momento, no entanto, não é vista da mesma forma que no pessimismo romântico da metade do século XX. Acompanhando a evolução dos problemas urbanos do Brasil neste meio século, a favela no cinema virou espaço de violência bruta.

Mostrando uma mudança clara na forma de repre-sentar a pobreza e as comunidades que ela forma, se a marca da representação da favela nos filmes até a década de 60 era o romantismo idealista, vendo a favela como um lugar de pessoas humildes e trabalhadoras, espaço da pobreza, mas também da amizade e da família, a marca da favela no final dos anos 90 e na primeira década do século XXI será a violência.3

Em alguns dos principais documentários que tematizam as favelas do Rio de Janeiro deste perí-odo é exatamente a violência a principal reflexão.

2 Retomada é o termo utilizado para referir-se ao retorno da produção cinematográfica brasileira a partir da década de 1990, após o fechamento da Embrafilme. Segundo Oricchio (op. cit.), tal fase encerra-se no início dos anos 2000.3 ROSSINI, Miriam de Souza. Favelas e favelados: a representação da marginalidade urbana no cinema brasileiro. Sessões do Imaginário, Porto Alegre, n. 10, nov. 2003. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/famecos/article/viewFile/795/604>. Acesso em: 25 ago. 2013.

A atriz Marpessa Dawn, que interpretou

Eurídice, e o diretor Marcel

Camus na première

carioca do filme Orfeu do

carnaval (1959). Correio da

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Destacamos aqui três que focam nos problemas estruturais e violência institucional como geradores da criminalidade. Primeiramente, Notícias de uma guerra particular, de João Moreira Salles, abordaria o confronto entre o tráfico de drogas e a polícia nos morros cariocas, escrutinado sob os pontos de vista dos criminosos, dos policiais e da população dos morros. Ônibus 174 (2002), dirigido por José Padilha, concentra-se na história do sequestro al-tamente midiatizado de um ônibus, protagonizado por Sandro Barbosa do Nascimento, desvelando os vários níveis de descaso social que levaram um dos sobreviventes da chacina da Candelária ao trágico desfecho. Em 2006, o rapper MV Bill e seu empresário Celso Athayde dirigiram o documen-tário Falcão – Meninos do tráfico, apresentado inte-gralmente no programa Fantástico, da Rede Globo. Falcão apresenta um diferencial em relação aos demais filmes citados por se tratar de um trabalho

realizado por diretores oriundos das periferias as quais retratam. E assim transforma-se em um elo, entre favela e suas representações, uma espécie de filme-denúncia de uma realidade ainda mais cruel do que a violência escancarada.4

Entre os filmes de ficção, certamente o maior destaque deve ser dado para o que consideramos, de certa forma, como paradoxal em sua época e tendência. O impacto de Cidade de Deus, lançado em 2002, foi tanto que alguns autores o consideram como um divisor de águas no cinema brasileiro. Cidade de Deus é o ponto de inflexão, emblema da tendência que se tornou mais forte a partir de seu sucesso. Também foi um paradigma que mostrou que as mazelas sociais do país são um tema que atrai profundamente o público brasileiro.

Cidade de Deus foi baseado no romance homônimo de Paulo Lins, que cresceu na favela de Cidade de Deus testemunhando a ascensão do crime orga-nizado no lugar. Dirigido por Fernando Meirelles e produzido pela O2 Filmes em parceria com a Globo Filmes, Cidade de Deus teve um orçamento de 3,3 milhões de dólares5 e levou 3,2 milhões de espectadores às salas de cinema no Brasil, até então o maior sucesso de público pós-Retomada. No fil-me, a saga do avanço do crime no bairro é retratada ainda com certo romantismo em seu início, nos anos 60. No desenrolar da história, com o tempo (no fim dos anos 70 e começo dos 80), o roman-tismo dá lugar à crueldade do mundo do crime.

Exatamente esta crueldade, que no filme mostra ser quase inerente à favela, misturada à espetacu-larização da violência, foi o traço mais criticado da produção. Para Ivana Bentes,6 o filme é de fato um marco, interessante e bem construído, porém pro-blemático em sua narrativa. A pesquisadora destaca a violência contínua, massacrante e estetizada que perdura por todo o longa-metragem. O banho de

4 HAMBURGER, Esther. Violência e pobreza no cinema brasileiro recente: reflexões sobre a ideia de espetáculo. Novos estudos, Cebrap, São Paulo, n. 78, jul. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000200011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 jun. 2009.5 Dados sobre a produção retirados do website: http://cidadededeus.globo.com.6 BENTES, Ivana. Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosmética da fome. Alceu, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, p. 242-255, jul.-dez. 2007a. Disponível em: <http://publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/media/Alceu_n15_Bentes.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2013.

Roberto Farias, diretor de Assalto ao trem pagador (1962). Correio da Manhã

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sangue transforma a favela de Meirelles em um inferno do crime, a película faz desta violência e também da pobreza um espetáculo de consumo. A “cosmética da fome”, portanto, seria para Ben-tes uma forma vazia e estilizada de consumo das imagens da pobreza e da violência.

Outra crítica comum ao filme é a descontextualiza-ção da favela frente ao mundo exterior. São poucas as referências do enredo ao resto da sociedade, o bairro-favela no filme é estanque e quase autocon-trolado, uma ilha de violência. Essa brutalidade não aparece na película como tendo relação com a realidade socioeconômica nacional, ou seja, ao contrário dos filmes que exploravam este tema nos anos 60, não existe um discurso político explicativo para a condição que é apresentada.7

Independente às críticas, Cidade de Deus foi um su-cesso entre o público e com inovações em termos de linguagem, e clara relação com a publicidade e com o videoclipe.8 A circularidade do enredo envolve a nar-ração e deixa claro que não há saída no crime. Para o morador da favela, o envolvimento na criminalidade não abre portas a uma vida melhor, leva somente à cadeia, à morte e à subsequente substituição. O ciclo de violência continuará, de uma maneira ou outra.

Outra herança de extrema importância que a película deixou foi a interação entre o cinema e a televisão, pois a partir de Cidade de Deus foi pro-duzida Cidade dos homens, que abriu o nicho para séries reproduzindo histórias cinematográficas. Tal relação não é novidade, a televisão sempre esteve próxima do cinema, não apenas pela afinidade dos meios, mas por razões econômicas e industriais. Nos últimos anos, a parceria entre produtoras independentes e a Rede Globo de Comunicação transpôs o envolvimento da Globo Filmes na produção cinematográfica para a produção de séries de televisão. Desta forma, se a linguagem de Cidade de Deus tem um diálogo forte com gêneros televisivos, esta linguagem, assim como a estética e a temática narrativa da película, irá se transladar para a televisão no formato de seriados.

O primeiro passo nesse sentido foi dado durante a preparação para as filmagens de Cidade de Deus. Fernando Meirelles e Kátia Lund dirigiram o curta-metragem Palace II em 2001. Em outubro de 2002, com o sucesso do longa-metragem de Meirelles, Palace II foi transformado em episódio piloto para a produção de Cidade dos homens, novamente com a parceria entre a O2 Filmes e a Rede Globo. Apre-sentando linguagem semelhante à Cidade de Deus, a série mostrava a amizade de dois adolescentes residentes em uma comunidade favelada. Em 2007, dirigido por Paulo Morelli, foi lançado Cidade dos homens – o filme como encerramento à história. Embora Cidade dos homens não seja uma adaptação direta de Cidade de Deus, o segundo serviu como clara inspiração, e não fosse a aceitação da película, o seriado provavelmente não teria sido continuado

7 Idem.8 ORICCHIO, Luiz Zanin, op. cit.; BENTES, Ivana, op. cit.

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após o curta Palace II. Essa relação entre as mídias formou duas vias, com a saída de produtos criados para a televisão, com sua linguagem típica, para o cinema, mas também com a ida de produtos com linguagem visual de cinema para a televisão.9

Mostrando outra perspectiva sobre a violência, Tropa de elite, especialmente em sua primeira pelí-cula, apresenta a ação da polícia dentro da favela como parte de um intrincado problema socioeco-nômico. Dirigido por José Padilha e lançado em

2007, Tropa de elite teve uma circulação peculiar: devido ao vazamento de cópias “piratas”, o filme foi transformado em sucesso de público antes mesmo de sua estreia nos cinemas. Uma pesquisa do Ibope realizada na época estima que cerca de 11 milhões de pessoas tenham assistido ao filme com cópias irregulares.10 A distribuição “pirata” de cópias transformou o filme em um fenômeno popular, uma vez que possibilitou a parte da po-pulação que dificilmente teria acesso às salas de cinema assistir ao filme.

9 As favelas e outras periferias urbanas foram representadas na TV em séries como Carandiru – outras histórias (continuação do filme de Hector Babenco), de 2005, que mesmo tendo como cenário principal o presídio, apresentava a periferia paulistana como palco de muitos enredos; e Antônia, realizado entre 2006 e 2007 (continuação do filme de Tata Amaral), também foi ambientada na periferia de São Paulo. Apesar de terem uma linguagem bastante diferente da cinematográfica e da apresentada nestas séries, achamos importante citar que as favelas passaram, na última década, também a ser cenário nas telenovelas, Vidas opostas da Record (2006-2007) e Duas caras da Rede Globo (2007-2008) foram as pioneiras e abordaram de maneiras diferentes as favelas cariocas da atualidade; Salve Jorge, também da Rede Globo (2012-2013), tinha como um de seus cenários principais uma comunidade pacificada. Já Lado a lado (2012-2013) mostrava os primórdios da favelização do Rio de Janeiro no início do século XX.10 A pirataria, no entanto, não impediu que o filme fizesse uma excelente arrecadação nas salas de cinema, com cerca de 2,5 milhões de espectadores e faturamento de mais de 20 milhões de reais, tendo sido a sétima maior bilheteria do ano de 2007 no Brasil.

Cenas de Couro de gato, filme de Joaquim Pedro de Andrade em Cinco vezes favela (1962).

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Chama a atenção o fato de que a truculenta figura do Capitão Nascimento (interpretado por Wagner Moura) transformou-se em herói para parte da população, inclusive dentro das próprias perife-rias do Rio de Janeiro. Tal questão é paradoxal, uma vez que uma das mais contundentes críticas observadas na representação recente da favela no cinema – vista em filmes como Notícias de uma guerra particular, Orfeu ou Cidade de Deus – é a presença do Estado nas periferias apenas através de seu braço armado, isto é, a polícia.

Sem o mesmo apelo à violência e o mesmo su-cesso de público dos estrondosos Cidade de Deus e Tropa de elite, outros filmes com referências a favela foram lançados no encalço do filme de Meirelles. É o caso de Antônia – o filme (2006), que apresenta quatro amigas de infância residentes na comunidade paulistana da Brasilândia, trabalhando para realizar seu sonho de alcançarem sucesso como cantoras de rap. Apesar das dificuldades sempre presentes em suas trajetórias, as cantoras superam obstáculos e seguem rumo à realização de seu projeto. Linha de passe, de Daniela Thomas e Walter Salles, conta a história de uma mãe solteira e seus filhos, e traz as escolhas e experiências de vida como mote principal.

Filmes como estes retiram o foco da violência como algo autogerativo da condição de pobreza. A vio-lência trazida pela criminalidade é deixada de lado – apesar de não ser esquecida –, mas é dado também destaque à violência da sociedade contra o pobre e o negro, como o descaso do sistema de saúde pública, ou o preconceito contra a população favelada.

Com o objetivo de mostrar outra perspectiva sobre as favelas, Cacá Diegues, um dos jovens diretores do filme de 1962, buscou dentro das favelas e co-munidades cariocas a equipe de jovens cineastas de 5x favela – agora por nós mesmos, do qual Diegues assina a produção. O projeto foi o primeiro longa-metragem completamente concebido e dirigido por moradores de favelas do Rio de Janeiro. Ao con-

trário de Cinco vezes favela de 1962, cujos diretores eram todos filhos da classe média e idealistas, os diretores do filme de 2010 têm um olhar diferente – e talvez mais objetivo – por serem eles mesmos residentes de favelas. O filme de 2010 mostra uma visão muito mais otimista e menos romantizada sobre a favela e seus moradores, e também sobre a própria pobreza. Apesar de todas as histórias terem como mote problemas decorrentes da pobreza, apenas uma delas tem um final trágico (exatamente o único curta a focar a violência na favela – Concerto de violino); as outras, de forma geral, são episódios focados no cotidiano dos moradores da favela e em maneiras de driblar tais problemas. Já no filme de 1962, o embate dos favelados com a injustiça social mostra-se muito mais pungente e presente na vida dos moradores da comunidade.

Cinco vezes favela, assim como Orfeu, nos serve de exemplo para observarmos o quanto projetos com a mesma história, ou o mesmo foco, podem ser concebidos e realizados de forma distinta, depen-dendo do contexto sociocultural ao qual perten-cem. No caso de Cinco vezes favela, não apenas temos a distinção do filme de 2010 ter sido realizado por moradores das próprias comunidades a serem re-presentadas, o que seria impensável há cinquenta anos, mas vemos também uma visão menos este-reotipada da vida na favela e menos paternalista sobre seus moradores. É claro que deve ser também levada em consideração a passagem temporal, que traz diferentes realidades econômicas e culturais, não apenas às comunidades representadas, mas às formas do cinema representá-las.

As favelas, palco de inúmeras histórias, passaram através das décadas por diferentes formas de re-presentação cinematográfica. Todas estas formas retiram partes da realidade nacional, seja ela vista como romântica, idealista, cotidiana ou violenta, e as transpõe como fonte, que até o momento tem sido inesgotável para o que de melhor o cinema nacional tem produzido.11

11 Outras referências bibliográficas: BENTES, Ivana. O contraditório discurso da TV sobre a periferia. Entrevista concedida a Dafne Melo. Portal Brasil de Fato, 2 fev. 2007b. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/entrevistas/a-periferia-como-convem>. Acesso em: 15 ago. 2009; COUTINHO, Lúcia Loner. Antônia sou eu, Antônia é você: identidade de mulheres negras na televisão brasileira. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2010.

A Cidade de Deus em 1970, já em processo de favelização, como é mostrado no filme de Fernando Meirelles (2002). O conjunto habitacional foi construído na década de 60 no bairro de Jacarepaguá para abrigar famílias removidas das favelas da Zona Sul do Rio. Correio da Manhã

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Orson Welles (o segundo à esquerda) filma no Rio, em 1942, o inacabado É tudo verdade (It’s

all true, só finalizado em 1993 por Myron Meisel e Bill Krohn). A obra, que documenta costumes do povo

brasileiro, era parte da estratégia do governo norte-americano de se

aproximar da América Latina nos anos da Segunda Guerra Mundial.

Correio da Manhã

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EM PROSA E FITAS

PATROCÍNIO CHANCELA REALIZAÇÃO

APOIOCULTURAL

PARCERIA

MINISTÉRIO DA CULTURA, CORREIOS, ARQUIVO NACIONAL E RIO DE CINEMAAPRESENTAM

25-29 NOV/2013ARQUIVO NACIONALPRAÇA DA REPÚBLICA, 173 CENTRO – RIO DE JANEIROENTRADA FRANCA

WWW.RECINE.COM.BR

FILMES / PALESTRAS / REVISTA RECINE

EM PROSA E FITAS

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MINISTÉRIO DA CULTURA, CORREIOS, ARQUIVO NACIONAL E RIO DE CINEMAAPRESENTAM

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Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo Ano 10 Nº 10 Arquivo Nacional Novembro de 2013

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