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# 7 A N U A L / 2 0 1 2 / 1 5 I SS N: 1 6 46-412 5 5 602720 565590 ANTÓNIO BARRETO PATRÍCIA REIS MARIA MANUEL VIANA MARIA DO CÉU VASCONCELOS MANUEL FERREIRA PATRÍCIO PAULO BUGALHO JOÃO PEDRO FRÓIS ELVIS VEIGUINHA ÁLVARO LABORINHO LÚCIO LUÍS MANUEL JACOB ANASTAS VANGELI FILIPA LEAL MARIA FILOMENA MENDES P. JOAQUIM TEIXEIRA DULCE MARIA CARDOSO DAVID INFANTE

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Page 1: Revista Portefolio

#7ANUAL / 2012 / 15€

ISSN: 1646-4125

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ANTÓNIO BARRETO

PATRÍCIA REIS

MARIA MANUEL VIANA

MARIA DO CÉU VASCONCELOS

MANUEL FERREIRA PATRÍCIO

PAULO BUGALHO

JOÃO PEDRO FRÓIS

ELVIS VEIGUINHA

ÁLVARO LABORINHO LÚCIO

LUÍS MANUEL JACOB

ANASTAS VANGELI

FILIPA LEAL

MARIA FILOMENA MENDES

P. JOAQUIM TEIXEIRA

DULCE MARIA CARDOSO

DAVID INFANTE

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insistoinsistoinsisto

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prazo são possibilidades muito curtas. Estamos nas mãos da Europa, não a 100 por cento, mas quase. Se soubermos o que queremos ser, mas com realismo... Podemos evidentemente desejar voar, ter saúde, ser rico, inteligente e culto... E ter sentido de humor, já agora.Isso (risos). Se soubermos o que queremos ser com realismo, podemos influenciar as decisões sobre o que será o desenho do futuro, as próximas gerações e ainda o que se passa com os nossos parceiros. Os nossos parceiros estão a viver situações semelhantes; não tão drásticas quanto a nossa, é certo, mas ainda há países em pior condição. E convém não esquecer que, fora da Europa, há 150 países que estão em pior estado e piores condições do que nós.Num planeta com cerca de 190 países...Sim, 190. Estamos nos primeiros quarenta, a viver uma má situação, no entanto abaixo de nós há quem esteja muito pior. E vivemos a difícil condição de sermos os últimos dos mais ricos, os mais pobres dos mais desenvolvidos, os derradeiros do “pelotão da frente”...Como é que vê os próximos 50 anos? Sei que deve ser um pouco estranho ter de pensar assim, já que se dedicou a estudar os últimos 50.É uma pergunta estranha, sinceramente não vejo o futuro. Vejo tendências fortes, alternativas se quiser. Uma primeira tendência que vejo e que receio – sublinho já que receio – é que a Europa venha a conhecer uma regressão, nomeadamente no que respeito aos Estados, às suas fronteiras e às alfândegas.

António Barreto, 69 anos, sociólogo, analista, fotógrafo. Este é o retrato de todos os dias. Para nós, é um homem afável, risonho, com capacidade de cativar qualquer ouvinte. Para este homem – um não-desistente – é preciso debater, saber, analisar. De resto, a verdade é o que o move, mesmo que a verdade seja sempre subjectiva.

Há pouco tempo disse: “Convém perguntar-nos o que vai acontecer no futuro”. Quase uma recomendação. O que quer dizer com isto?Cada vez menos o futuro depende exclusivamente de nós. Nunca dependeu inteiramente, mas já dependeu mais. Há 30, 50, 100 anos, os portugueses, nomeadamente os dirigentes políticos, contavam mais para essa ideia de futuro. Tinham mais influência no desenho do futuro. Hoje estamos presos e amarrados ao mundo inteiro por via da globalização, da União Europeia, das transacções comerciais, do capital e das pessoas em livre circulação. Nos últimos dez anos, por mais um laço: o endividamento. É terrível. O endividamento pode matar uma pessoa, uma família, como pode matar um povo. A nossa margem de decisão é muito reduzida e, portanto, convém, mais do que nunca, saber o que, na nossa estreita margem de decisão, o que queremos ser e o que queremos saber. Ainda temos alguma possibilidade de decidir algo relativo ao nosso futuro. Quanto mais cedo decidirmos, mais a nossa margem aumenta ou pode aumentar. Para usar uma expressão inglesa: self fulfilling prophecy. No curto, imediato,

AntÓnio BARREto

Texto: Patrícia ReisFotografia: Ângela Camila Castelo-Branco

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Já disse publicamente que é possível que Portugal reassuma uma posição de Estado e não de país autónomo. Isto quer dizer que num contexto de uma Europa envelhecida, estamos em perigo de nos perdermos?Há muitos anos, li um livro de um historiador inglês, Allan Taylor, que começava mais ou menos assim: era maravilhoso, no final do século XIX, podíamos ir de Inglaterra a Istambul e não mostrar o passaporte. A única excepção era justamente a chegada a Istambul, onde tínhamos de mostrar o passaporte. Depois, tudo mudou. Os países fecharam-se. As fronteiras elevaram-se entre Estados e entre povos. Assim se manteve a Europa, atravessando ainda duas guerras, até aos anos 60 ou 70. Nos anos 70 e 80, a Europa começou a abrir-se, com a União Europeia, o euro e os diferentes tratados entre países. Ou seja, voltámos ao ponto de partida: ir de Londres a Istambul é possível, em Istambul teremos de mostrar o passaporte. Eu considero isto um progresso, uma melhoria significativa na nossa vida colectiva. Um melhoramento da nossa liberdade. Os políticos não foram peritos em equilibrar a construção, em tornar ágil as estruturas e em solidificar os alicerces: ou fizeram a Europa depressa de mais, ou porventura o euro cedo de mais, ou fizeram uma Europa sem euro, ou um euro sem Europa e sem governo... Something went wrong. O que quer que tenha sido não resolveu. Falhou, caso contrário, não estaríamos onde estamos agora.É preciso falhar melhor?(risos). Convém falhar com mais perícia, mais sabedoria, mais espírito empírico, para não se falhar tanto. Os líderes da Europa, há 30 anos, julgaram-se capazes de algo único. Jacques Delors, pessoa que estimo, é um dos principais responsáveis, convenceu-se que podia dominar o fogo e a História. Todos sabiam que estavam a construir uma Europa sem ter suficientemente em conta os povos, as culturas, o tecido social e as tradições. Construíram uma ficção. Não foi por ignorância, foi uma crença errada, própria dos déspotas esclarecidos. Teorizaram o acto, dizendo: se fizermos uma Europa devagarinho – e usaram uma palavra terrível que é

“furtivamente” -, passo a passo, quando os povos se derem conta a Europa já é, já está feita. Enganaram-se. Estavam convencidos de que uma estrutura jurídica chega para moldar as sociedades e modificar os comportamentos. Acreditaram na força criadora das construções intelectuais. Não foram até ao ponto, perigoso, de crer na utopia e de querer realizar uma utopia, mas andaram lá perto!Temos uma Europa cujos valores, em especial, os humanistas não vingam...Também há isso, é evidente, mas é próprio dos países. Os países têm ciclos, envelhecem, estagnam por vezes, aceleram, vêem estabilizar a sua demografia, conhecem sobressaltos... Nada disso me aflige. Quando uma população diminui ou perde força, pode misturar-se com outra. Um governador de um país africano, o Congo francês, lamentava-se com o reduzido número de franceses brancos,

sendo o país tão rico. De Gaulle, que não era exactamente de esquerda, disse: “Você é um burguês! O futuro é dos mestiços”. Confesso que não me desagrada a ideia, apesar dos enormes perigos que isso tem.Perigos em que sentido?Os povos que recebem não têm uma ideia clara sobre o que é a integração ou fusão com os outros, os que chegam. A Europa tem cedido excessivamente à ideia de multiculturalismo. A Europa deveria, a meu ver, optar mais ousadamente pela integração. Os povos que vêm para a Europa – pretos, amarelos, às pintas, às riscas, pouco importa – deveriam ter de fazer um enorme esforço para assumir a ordem jurídica, cultural, a língua... Não digo que se abdique de tudo o que vem de trás, das origens, que se faça uma fusão a 100 por cento. Mas afirmo que a melhor solução, para os que recebem e para os que vêm, reside na integração. Sobretudo dos jovens e das segundas gerações. O multiculturalismo sem integração é o apartheid: aqui vivem estes, ali vivem aqueles. Cada um vive voltado para si e de costas para os outros. O multiculturalismo é uma receita para o conflito cultural, a guerra de religião, o afrontamento étnico e a colisão racial. Ainda hoje é assim. É uma realidade. E temos uma cultura há mais de 500 anos na Europa que não cede às regras dos países onde está: a comunidade cigana.Essa é especial, muito especial. É um caso à parte. Não sei explicar porquê, não se querem integrar e ninguém os quer integrar. Querem manter as suas tradições, respeitam a legalidade quando lhes dá jeito, fogem quando não lhes interessa. O grupo cigano é sempre muito especial, mas deve ser tratado com dignidade e respeito. Abomino o racismo, considero o momento mais baixo da dignidade humana. A pior criação do homem é o racismo e a xenofobia. Já percebemos na Europa que o puro multiculturalismo vai bater na parede e mal, com maus resultados. Não aceito a burka, a excisão e a escravatura. Não aceito as crianças a casar aos dez anos, o voto organizado por clãs ou o sacrifício de animais no meio da rua... Não aceito a compra de noivas. Não aceito. E acho que os cristãos, os ateus, os republicanos, os socialistas, seja quem for, o que quisermos... os europeus não se devem sentir impotentes perante a ideia de que os adeptos do multiculturalismo têm sempre razão. Não é simplesmente verdade. São os multiculturalistas que conduzem as sociedades para os conflitos racistas. São eles que têm costumes bárbaros. E vamos ter problemas, aqui, em Portugal, porque dentro de pouco tempo a inércia do multiculturalismo vai impor-se a um país que teve medo e receio de fomentar energicamente a integração. Por exemplo, há milhares de polígamos no nosso país e não há legislação que preveja tal. Terão problemas de ordem legal, nas escolas, nas heranças, com a habitação e o património. O português vai aceitar a poligamia? Eu acho que não devemos aceitar.

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Nós somos produto de uma sociedade judaico-cristã...Também somos filhos da Grécia, da Antiga Grécia. E das Luzes.Partindo desse ponto – do que a Grécia Antiga nos trouxe – pergunto-lhe: acha que os portugueses debatem, conhecem e estudam? São actos, digamos, que considera essenciais e que estão escritos por si na página de abertura da Fundação a que preside, a Fundação Francisco Manuel dos Santos.Os portugueses têm poucos hábitos de estudo, o hábito de estudo não está no seu ADN. O debate tem de ser organizado, por isso os portugueses não debatem, falam...Queixam-se muito?Sim, queixam-se e resmungam. Mas debater é discutir, ouvir e falar, apresentar argumentos e contra argumentos e isso, infelizmente, não é algo que possamos dizer que seja uma característica nossa. Não estamos habituados. Uma vez mais, o exemplo que as elites dão, há cem anos pelo menos, é muito medíocre.Em que sentido?Eu colaborei em governos e em parlamentos e tive oportunidade de ver a feitura das leis e dos decretos que condicionam a nossa vida. O caso mais absurdo é este: em 1986, era deputado da comissão encarregue de fazer a lei de bases do sistema educativo. Era uma lei muito importante e demorou muito tempo a fazer. No primeiro dia em que reunimos, eu levava três folhas com várias questões e pedi para que o Ministério da Educação nos respondesse: quantos professores temos, quantos alunos, o sexo dos alunos e dos docentes, o dinheiro gasto, as capacidades financeiras das famílias, as taxas de abandono e de sucesso, etc. Eram questões vitais. Era sobre “aquilo” que íamos fazer a lei. A totalidade dos dossiers estatísticos chegou oito dias depois da aprovação da lei, quatro meses depois de os termos pedido. Quer isto dizer que a lei foi aprovada exclusivamente com base em opiniões. Por exemplo, dizia-

-se, devemos aprofundar a integração social nas escolas. E eu perguntava: o que é que sabemos do rendimento das famílias que mandam os alunos para a universidade? Não se sabia. Fazíamos leis para pessoas sobre as quais não sabíamos nada. E isso não o incomodava?Muito. Uma das muitas razões pelas quais saí da política e uma das muitas razões pelas quais fiquei obcecado com as bases de dados, como a Pordata... (instrumento disponível no site da fundação www.pordata.pt ).É por isso que quer fazer um portal com perguntas simples para cidadãos comuns?Está a ser feito neste momento. Será um portal sobre direitos e deveres e terá mil perguntas e respostas. As pessoas não conhecem os seus direitos. E os deveres conhecem?Os deveres conhecem, mas não querem saber deles. Os direitos não conhecem. Conheço uma pessoa, no meu bairro,

que trabalhava numa casa e a família mandou-a embora e ela disse, muito indignada, que ia embora mas que tinham de respeitar os seus direitos. A família concordou e perguntou:

“Quais são os seus direitos?” “Ah, isso não sei, tenho de ir saber, mas têm é de os respeitar.” É uma boa metáfora do que se passa.E este portal terá, então, perguntas para o cidadão comum, numa linguagem simples?Deixe-me inverter a situação: sabe se tem de ter o bilhete de identidade consigo?Deduzo que sim. Sempre mo disseram.Errado. Não tem de ter o bilhete de identidade consigo, salvo em situações específicas. Tem 24 horas para o apresentar na polícia.Portanto, nesse portal teremos esse tipo de respostas a perguntas que, muitos de nós, passámos uma vida a achar que era de uma maneira e, afinal, é de outra.A palavra direito tem sido, infelizmente, nos últimos 30 ou 40 anos, sinónimo de benefício social. O direito ao trabalho, à segurança social, ao subsídio de refeição, ao emprego... São, geralmente, direitos e benefícios de carácter social e económico. E os direitos fundamentais? A liberdade de expressão, a privacidade, a liberdade de associação, o direito à imagem, a liberdade de movimentos e de deslocação, e o direito de ser eleito e de eleger? Tirámos o direito às pessoas de serem eleitas, dado que é preciso ser militante ou incorporar um qualquer partido. Só cerca de 200 mil pessoas é que têm este direito. O direito a ser eleito deveria coincidir com o direito a eleger. Em Portugal, nunca se desenvolveu uma cultura dos direitos individuais. Graças a estruturas sociais e políticas despóticas que vigoraram muito tempo, por causa de ordens sociais verticais de

“come e cala”, em consequência de uma religião igualmente vertical em que o pastor preside e conduz o rebanho... por tudo isto, nunca se desenvolveram a tradição, os costumes, a cultura e o valor dos direitos individuais. Ora, os direitos colectivos, os únicos apreciados pelos portugueses, na realidade não existem. A liberdade é individual. O direito individual é o crucial.Os sindicatos não gostaram dessa interpretação.Não gostam, é verdade. Não gostam de direitos individuais, crêem que a melhor liberdade colectiva é aquela que tem o primado sobre todos direitos individuais. Qual é o seu direito individual que mais aprecia?(pausa) A liberdade de expressão. Mas há outros elementares, como o direito à vida e à integridade física, esses nem se discutem.Acha que tem liberdade de expressão neste país?Tenho. Muitos não têm. Eu já não dependo de ninguém. Ninguém me pode tirar o trabalho, as coisas que tenho, a capacidade de pensar. Não tenho medo de ninguém. Não receio represálias. Não há limites para a minha liberdade e eu próprio não me faço autocensura.

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Há um determinado estatuto que alcançou e que reflecte o seu percurso de vida. A ideia que se tem de si é a de que é um homem reservado, rigoroso, antes de dizer qualquer coisa já pensou muito...Tento ser. Mas já me enganei, já disse e fiz disparates. Bom, mas isso faz parte da condição humana, não somos máquinas, fazemos disparates. Poucas pessoas têm ideia de que é uma pessoa extraordinariamente afável – que é. Não lhe ocorre? Ser uma pessoa afável?Não penso nisso. Eu gosto de gostar das pessoas. Foi isso que o que levou à fotografia?Não, não foi pelas pessoas. Não faço bons retratos, terei feito dois ou três na vida. Sou atraído pela pessoa no seu sítio. O ser humano - mulher ou homem - está em todos os sítios, nos sítios mais naturais, artificiais, inimagináveis, é capaz de tudo. E, sendo assim, estabelece sempre uma relação às vezes de contraste, de oposição, de opressão, de desproporção, de cuidado...É por isso que fotografa, geralmente, a uma certa distância?Sim. O espaço e a relação com o humano são a grande atracção. Deixar a pessoa que está a fotografar – eu – ver como os outros se relacionam e jogar com esta ideia: o que faz o espaço à pessoa ou pessoas, como a ou as condiciona ou não. O que fazem as pessoas ao espaço, como o trabalham, como o tentam moldar. Leva imenso tempo para tirar uma fotografia, aposto.Levo tempo, às vezes um horror de tempo. A fotografia começa ali no visor, no olho e há coisas que, depois, já não se recuperam. Há dez anos, tinha enormes preconceitos em face do Photoshop. Era fundamentalista: “não se deve manipular nada”. Depois percebi que o olho é um Photoshop porque quando escolhemos – mudando a câmara da direita para a esquerda, por exemplo – acabamos por destruir um mundo e apanhar um outro. Tirei isto e coloquei outra coisa. Já estou a forçar. Depois há o Photoshop para mentir, para manipular e isso não me interessa. Eu só tenho máquinas digitais há dois anos, até lá tive máquinas analógicas, que ainda tenho. As digitais são uma espécie de convite à corrupção moral, à corrupção estética (risos). Porque é que é um convite à corrupção moral?Porque eu sei que posso tirar milhares de fotografias, que não tenho de ter cuidado, que alguma será aquela que eu quero e isso retira muito do processo e do prazer de construir a fotografar. Quando fazia fotografias, a preto e branco, de um tema, de um objecto – que estou a fazer outra vez – tirei uma, duas ou três. Demorava muito tempo. De qualquer acontecimento, neste momento, nestes últimos dois anos, tenho muitas imagens porque uso a máquina digital e digo-

-me que, depois, elimino no computador. Percebi que esta espécie de corrupção parte da ideia de que a quantidade gera automaticamente qualidade, o que não é verdade. Portanto, vou voltar às minhas máquinas analógicas. Quando começou a fotografar?

A carregar no botão? Tinha 10 ou 12 anos, ganhei uma máquina fotográfica num concurso, em Vila Real. Era uma Kodak. (A propósito, faz pena ver hoje a Kodak falir! Pelos vistos, não são só os países que podem falir. Também as empresas que foram, durante anos, um colossal êxito!). E, portanto, ganhei esta máquina com rolos de doze imagens. Gostei, mas não me dediquei logo. Só a partir dos anos 60 é que comecei com esta mania (sorri). Revelava os meus rolos enquanto estive na Suíça. É preciso ter tempo. Agora já não o faço. Hoje em dia, na fotografia, na televisão, nos jornais, é fácil tirar as coisas do contexto e, de repente, estamos perante outra coisa qualquer. Não lhe causa aflição?Sim, muita. Na Fundação, temos trabalho a ser apresentado, as coisas estão a aparecer e, às vezes, colocamos mais uma informação e é incrível a velocidade com que a mesma é difundida, deformada, digerida e evacuada. Qualquer coisa dura minutos. É uma sofreguidão de consumir sem pensar. Não fico zangado, fico irritado, mas insisto, insisto, insisto, insisto. Se daqui a 20 anos o papel da informação for diferente, pois melhor. Mas, apesar de tudo, acho que já se sentem diferenças grandes. Não é certamente pelo que temos feito, ainda muito pouco, mas, nos últimos anos, a forma como a comunicação social procura informação objectiva, quantificada e empírica para fundamentar o que diz ou pensa é diferente.Tem muitas reticências, dúvidas, interrogações sobre o papel do jornalista nos dias que correm?Tenho imensas. A concorrência está a matar os jornais. A queda vertiginosa de rigor, de falta de seriedade...

...ética...

... ética, sim... a maneira como as empresas de comunicação estão a substituir pessoas cultas e experientes nas redacções por jovens do ordenado mínimo, e às vezes nem isso, é preocupante. As redacções deixaram de ter memória.Há uma parte dos jornalistas que admitiram que podem ser jornalistas e ainda políticos ou servidores de políticos, assessores, ligados a empresas de comunicação e de manipulação. O ir e vir é medonho. A promiscuidade entre informação e política é tão medonha quanto a promiscuidade entre poder económico e poder político. Há outra parte dos jornalistas que procura, de forma obsessiva, a verdade, com isenção. Nunca se atinge a verdade a 100 por cento, isso não existe, mas alguns procuram-na, o que é de louvar, é esse o quadro de honra da profissão. Há um código diferente neste momento que diz que o jornalismo é “humano” e que tem de obedecer a causas. Faz lembrar os anos 60 em que “être engagé” era o mais importante e isso estava acima da verdade ou da isenção. Repare-se no que se chama, banalmente, a confusão entre a opinião e os factos. Há muitos jornalistas que assumem como uma virtude a ideia de que opinião e facto são a mesma coisa ou se confundem. Isso é quase a prostituição da informação. Repare que hoje há muitas notícias em forma de crónica.

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Isso irrita-o? Fica zangado?Ambas. Fico irritado e zangado. Sobretudo, fico muito triste. Tenho uma enorme paixão pelas coisas da comunicação, a reportagem, a investigação, a televisão, o cinema documentário, a rádio... sempre tive uma enorme atracção por este universo que, hoje, vejo em degradação. Não é verdade – dizia-se há vinte anos – que a internet tenha explodido a produtividade. Explodiu a criatividade, sim, mas criaram-se monstros. As coisas têm de ser feitas depressa, a correr, tudo dura 24 minutos, já nem são 24 horas. Faz-se cada vez pior. Qual é a solução?Não tenho solução. Limito-me a insistir. A tentar não ser complacente. Não tenho poder sobre os outros. A publicidade contaminou tudo, é vergonhoso mas verdadeiro. Vergou tudo: a televisão, as universidades e a cultura. Vergou a verdade e não há recuo. Vamos ter de viver com isto. A ideia de que estamos sempre em progresso é mentira. O progresso tem melhorias em algumas coisas e piorias em outras. A qualidade de informação, do estudo e do pensamento piorou com o progresso. Sou favorável à explosão democrática da ciência e da academia. Sou, sou, sou. Mil vezes sou (risos). Mas a explosão massificada das universidades condenou as mesmas a serem instituições medíocres e reles. E de má qualidade.E isso condenou a população universitária necessariamente.Evidente. Não temos critérios de crítica e de auto crítica, tempo para debater, pensar, saber, estudar, conhecer, pôr à prova, verificar, argumentar, duvidar... A missão da universidade deixou de ser a ciência, a verdade, o conhecimento e a investigação, passou a ser o emprego. Portanto, falhou.Sim, falhou. Há os países onde, por força da sabedoria e do dinheiro, como os EUA ou a Inglaterra, co-existem as duas coisas: universidades com uma missão de ciência, conhecimento e verdade e outras onde se fabricam

“salsichas” para a gestão, para qualquer coisa, até para a medicina. Infelizmente, em Portugal, a produção de

“salsichas” é muito maior. E, por isso, estamos com licenciados do ordenado mínimo nacional que não têm trabalho na sua área...Não, é pior: produzimos 60 mil licenciados desempregados. Muitos deles, se tivessem um diploma técnico ou um estágio profissional, estariam melhor. Cá ou lá fora.É também por isso que os miúdos do secundário dizem que terão de fazer uma licenciatura – que não vale nada, na óptica deles – e depois um mestrado e doutoramento? Talvez assim tenham algumas hipóteses.Quer voltar ao princípio da nossa conversa? A Constituição e a cultura portuguesa dizem que ir para a universidade é um direito, em vez de dizer que é uma responsabilidade e um mérito. E um prémio para quem merece. Isso é um defeito ou uma qualidade da democracia?

É um defeito. A qualidade da democracia é dizer que as pessoas têm direito a votar, à privacidade, a ter paz e sossego, à sua imagem. Dizer que as pessoas têm direito a todas as benesses sociais é um defeito. Há benesses que devem ser conquistadas e merecidas.O nível de abstenção política é assustador?Sim, mas é comum a muitos países. Já reparou que a classe de dirigentes se reúne em cimeiras, reuniões internacionais e coisas assim, e chegam a fechar-se partes de cidades por questões de segurança ou medo? A política é um grande condomínio fechado. Os homens e as mulheres com poder, menos mulheres que homens, circulam pelo mundo e não têm qualquer contacto com os povos. Parece um desenho animado, vivem isolados e fora das sociedades. Vivem com medo, mostram-se nas televisões naquelas fotografias ridículas em que cada um marca o sítio onde põe o pezinho e fazem sorrisos artificiais de êxito e harmonia.Os políticos vivem numa bolha.Sim, e transportam-se para aqui e para ali levando o circo atrás de si. Grande parte da população é-lhes já indiferente. Ora, quando existe uma sociedade mais complexa, organizada – os países nórdicos – o regime político não causa tantos danos, porque existe um corpo sólido que é interveniente e está atento. Veja os países nórdicos, ou simplesmente do Norte, onde a sociedade civil não se limita à queixa. Querem agora criar escolas conforme os pais desejam que estas sejam, já que pagam. Juntam-se famílias, privadas, para fazer escolas pagas pelos seus impostos, isto é, pelo público. Aqui seria o caos, seria contra os direitos de A ou de B. Não pensamos assim, como os nórdicos. Não sabemos ser assim, como os nórdicos. Sofremos de falta de criatividade? O que se deveria fazer nas escolas?Eu envolveria mais os universitários nas escolas primárias e secundárias. Prefiro universitários que abertamente fiscalizem e supervisionem, do que uma dúzia de burocratas invisíveis no ministério. Isso não gosto. Criámos a ideia de que a escola substitui a família. Errado. Depois, que a escola se deve ocupar da formação integral de cada aluno. Errado, ocupa-se de uma parte. Terceiro, a formação e o emprego são superiores ou prioridades relativamente à cultura. Errado. O que distingue um pobre de um rico é a cultura geral, o que distingue as histórias das pessoas e as classes sociais, não é a matemática ou a educação física, é a cultura. Retirámos das escolas as artes. A maior parte das escolas portuguesas não têm uma sala de música, um instrumento, um piano, nem um pífaro. Não têm colecções de reproduções de arte, nem séries de diapositivos, nem sequer máquinas para projectar. É inacreditável que se diga que a música não é tão importante quanto a física ou a química. É muito importante. Por vezes, até mais.

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A preposição «para» marca a relação definalidade. Em grego, a palavra é «telos». Opontoparaquesedirigeumaentidadeenquantotaléoseutelos,asuafinalidade.Não se pode confundir finalidade comessência,ounatureza,aindaqueserelacionemintimamente.Essaconfusãonãopodefazer-senoquetocaàEducação.Antes de nos ocuparmos da finalidade daEducação,temosdeocupar-nosdasuaessência.Ou seja: temos de responder à pergunta «Oque é a Educação?». A educação tem umtelos determinado porque tem uma essênciadeterminada.Porteressaessênciaéquetemaqueletelos.Hádois«para»:oorientadoparaa intimidade, o ser íntimo da entidade; e oorientadoparaaextimidade,ouexterioridade,daentidade.Ouseja:oorientadoparaoserdaentidade,eoorientadoparaofazerouaçãodaentidade.Também não se deve confundir a relaçãoimplícita no «para» com uma mera ideiautilitarista, portanto. Então, antes do «para»escreveríamos«servirpara»,ou«serútilpara».Tudooqueexistetemalgumautilidade,serveparaalcançarourealizaralgumobjetivo.Porém,precisamente,oobjetivonãoéafinalidade.Afinalidadetemquevercomaessência,oobjetivotemquever, apenasediferentemente, comoresultado visado por uma ação ou um tecidointegrado e intencional de ações. A essêncianãotemquevercomautilidade, temquevercom o ser de uma entidade, que justamenteé o que é, é essa entidade. O serviço que elapode prestar para atingir um objetivo práticoqualquer, exterior à sua essência, é que é daordemdautilidade.Amesmaentidade,digamosparasimplificarqueamesmaessência,podetermuitas utilidades, servir muitos objetivos, porvezes contraditórios. A teleonomia tem quever,esótemquever,comaessênciadeumaentidade,nãoemrigorcomasuautilidade.Pode, pois, concluir-se que um é o discursosobre a Educação na sua essência e outro odiscurso sobre a utilidade, ou utilidades, quepode ter a Educação. São discursos distintos;mas relacionáveis. Com efeito, partindo daessência é possível visionar um conjuntode utilidades decorrentes da acção dessaessência.Porexemplo,noquetocaàEducação,é possível visionar para que pode a Educaçãoservir com vista a alcançar determinadosresultados práticos. Por outro lado, partindo

das necessidades práticas, é possível visionarna Educação na sua essência uma série depotênciasativas(potênciasdeação)capazesdedarsatisfaçãoaessasnecessidades.PoderemosentãodizerqueaEducaçãooéparaisto,aquilo,etc. Servindo--nos da profunda subtileza deChuang Tzu (ou Chuang Tzé), podemos entãodizer que a mais alta utilidade da Educação éa sua inutilidade. A inutilidade é, na verdade,portadora da utilidade da inutilidade. Ainutilidadeé,aestaluz,asupremautilidadedaEducação.AEducaçãoéaEducaçãodoHomem.ÀfacedaTerra,sóoHomem,noconjuntodosseresquea povoam, é educável e pode alcançar aquelaformadeperfeiçãoprópriaquesedesignaporEducação. Forma que compreende, ou inclui,a Inteligência do Mundo e a Inteligência deSi Mesmo; o Saber e o Saber Que Sabe e SeSabe.Formaquecompreende,ainda,odesejoe a vontade de aumentar a sua capacidademultiforme de inteligir, fazendo crescer eamplificar a sua própria forma, ou seja, aentidadeautoformadoraqueé.ImmanuelKantreduziuaumasóastrêsperguntasfilosóficasclássicasacercadoHomem.Asseguintes:a)quepossosaber?;b)quedevofazer?;c)quemecabeesperar?.Aperguntaque tudocontinhaera,aseuver,aseguinte:que é o Homem?Ograndegénio de Königsberg, que foi aliás professordePedagogianasuaUniversidade,deixouporformularaquestãoabsolutamentefulcral:como formar o Homem?ÉaperguntapelaEducação.É a pergunta culminante. A que se centra naentidadeportadoradafantástica,emisteriosa,utilidade da inutilidade. Porque só a partir darespostaaestaperguntapodeemergirparaoHomemohorizontedasutilidadesdaEducação.No seu notável livro Educação de Portugal Agostinho da Silva diz-nos sem papas nalíngua que a Educação é extraordinariamenteimportante, mas que garantir o alimentozinhoaosportugueseséprioritário.Estesaudávelefranco realismo coincide, no fundo das coisas,comaconhecidaposiçãodeAristótelesacercadarelaçãoentreavidaeopensamentofilosófico/afilosofia: Primum vivere, deinde philosophari. Primeiroviveredepoisfilosofar.Atéporquenãoépossívelfilosofarseofilosofantenãoestivervivo,comoque isso implicadesatisfaçãodasnecessidadesfundamentaisdosujeito.Tenhamos, pois, isto por assente e nãocometamos o erro de pensar que nós temos

umavisãotoladoqueéavidaedoquenelaépensar,edolugarquenelaocupaopensamento.Aristótelesnãocometeuesseerroarespeitodafilosofia,comoAgostinhodaSilvaonãocometeuarespeitodaeducação.Mas issonãosignificaque não soubesse ambos perfeitamente queanobrezadoserhumanonãoresidenocomer,poisresidenopensar.Atéopovoosabequandodiz «comer para viver» e não «viver paracomer». O processo histórico humano teve (econtinuaater)oseudesenvolvimentonatural,masencontramo-noshojeprecisamentenumafaseemqueaconsciênciadohomemreconhececomnitidezqueoquemarcaasuasuperioridadenoPlanetaTerra,paranãodizernoCosmos,éasuadimensãointelectualeespiritual.Oraéessadimensãoaqueornaasua frontequandoelepensaerealizaaEducaçãodesipróprio.Éessadimensão que o mostra, para além de homo faber, homo culturalis.Eédessadimensãoquehoje necessariamente decorre a atividade deconceçãoerealizaçãodasuaformaçãoàluzdaideiadehumanitasqueéaEducação.Eisporqueentendemosquehádoisníveisdateleonomiada Educação: o nível da essência e o nível daexistência.Estedevesubordinar-seàqueleemtermos ontológicos e axiológicos, ainda quehaja entre ambos uma incontornável íntimarelação, expressa na dimensão praxiológica.Mas esta hierarquia tem de ser respeitada,paraserrespeitadaaunidadecomplexaqueéo homem/o ser humano. Procurei expressar aunidadesubstancialdetodasestasdimensõesquando, no Curso de Teoria da Educação queministrei aos meus alunos de Pedagogia daUniversidade de Évora, desde o princípio dadécada de 80 do século passado, encontrei elhesdeiaconhecerereflectirestaproposiçãodesíntese:Em Educação, é preciso pensar o que se faz e fazer o que se pensa.

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Tomandocomopontodepartidaaideiadequeaacçãoeducativahaverásemprequeconceber-secomoumprocessodelibertaçãodoindivíduoque,«reconhecendo-ocomosujeito,lheproporcionaosinstrumentosdepensamentoedeculturaquelhepermitemagircomoautordoseutempoculturalehumano»1,tantobastaparalogoaísurpreendermosumevidentecompromissoda«educação»comexigênciasdecidadania.Com efeito, seguindo o pensamento de Dominique Schnapper,aquilo que caracteriza a cidadania moderna, a par da suauniversalidade,é justamenteaafirmaçãododireitodecadaumexercer concretamente os seus direitos, daí fazendo decorrer aimposiçãodeseproporcionaratodosascapacidadesintelectuaise cognitivas necessárias para participarem realmente na vidapública,social,económica,culturalepolítica2.Poraquipassa,pois,comoresultaevidente,odesafiodirigidosobretudoàescolaparaqueassuma,comoobjectivoseu,democraticamenteinalienável,aeducaçãoparaumacidadaniaactivaeresponsável.Tarefaque,naturalmente,nãoserádespidadedificuldades.Semquealgumavezaspossamos legitimamentepôremcausa,a democratização do acesso ao ensino e a correspondentemassificação dele resultante, fizeram projectar no interior daescolagrandepartedostraçosquecaracterizamasociedadedosnossosdias.

Álvaro Laborinho LúcioJurista

EDUCAÇÃO E CIDADANIA

1Cit.porÁlvaroLaborinhoLúcio.InEducação, Memórias e Testemunhos,Lisboa,1997,Gradiva,p.1142La Communauté dês Citoyens,Paris,Gallimard,1994,pp.94-95

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A norma, que representava, até há pouco, o instrumento fixode referência com vista à unificação dos comportamentos e àdefinição dos métodos implicados num tradicional processo deaprendizagem social, foi colocada em crise perante um vastoconjunto de novas interpelações para as quais não havia sidotalhada. A par dela, desenvolveu-se a diversidade e, sem ela, esem outros instrumentos alternativos testados, as soluçõesou perderam a sua natureza sistémica e pulverizaram-se semcoerência interna, ou, no limite, deixaram mesmo de existir,enquantotais.Acomplexidadesocialganhoucadavezmaisterreno,enriquecendoodinamismodasrelaçõesintersubjectivas.Neil Postman, assevera que «a diversidade é a narrativa quedescreve como as nossas interacções com todo um conjuntode pessoas diferentes nos transformam naquilo que somos»3 ,retirando daí constituir ela «uma narrativa fecunda à volta daqual se pode organizar o ensino dos jovens»4 , afinal, na linhade reflexãodeGalichet,paraquem«ascriançasencerradasemescolasdeumasóclasse,deumasócultura,estãoprivadasdecidadania,querdizer,dadimensãocentraldessacidadaniaqueéaconfrontaçãocomaalteridadesocial,culturalouintelectualdecolegasquesão,noentanto,seusconcidadãos»5.Ora,este, constitui, porventuraoprimeiroenãomenordesafiocolocado à escola e ao sistema educativo que esta tenderá aprotagonizar, isto é, o desafio de educar na complexidade e nadiversidade.É assim que, muito antes de abordar a questão mesmo dosobjectivos da educação centrada na escola, cumpre trabalhararduamente sobre a própria compreensão do espaço escolare da sua geografia humana. Questões, como a da integraçãoda incerteza própria de um tempo de mudanças profundas,nomeadamente,noscamposdamoraledaciênciae,comesta,adolugaredosentidodanormatantonafixaçãodevalorescomonapadronizaçãodecomportamentosedesaberes,oucomoadapromoção da convivência, no mesmo espaço de relação, entresujeitos oriundos de realidades sociais, económicas, étnicas eculturais profundamente diferenciadas, não podem mais sertomadascomoproblemasidentificadoresdapatologiadosistema,mas, ao contrário, haverão que ser tidas como definidoras denovas características enformadoras de um ambiente tambémnovo, certamente, então pela própria natureza das coisas, maiscomplexoe,porisso,maisexigenteque,antesdomais,importaconhecer.Econhecer,desdelogo,atravésdaselecçãodosfactoresdemudançaqueconduziramaoseuactualdesenho.Ora, aí, fácil será extrair, como primeira conclusão, a de que serevelarádetodoinadequadotentarencontrarapenasnointerior

daescolaqueradefiniçãodosproblemas,queraresponsabilidadedasuaresolução.O que, a ser assim, nos permitirá desenhar a convicção de queo caminho agora a percorrer passará, inevitavelmente, pela«descolarização» da educação e, em alguma parte, da própriarelaçãoensino-aprendizagem.Nãoporqueàescolasedevaretirarumaparcelaquesejadasuaimportância. Mas sim porque não pode, nem deve, continuar aexigir-seàescolaquecumpraasfunçõesqueaoutrosdevemsercometidas.Parece,assim,tornar-seurgenteaassunçãoinequívocadopapeledaresponsabilidadequenestamatérianãopodemdeixardeseratribuídasàchamada«ComunidadeEducativa»,tomandoestanasuadimensãode«sistemaecológicoformadopelaescola,pelasfamílias,pelosbairrosenvolventes,pelasrelaçõesdevizinhançae instituições locais com responsabilidade na educação dascriançasedos jovens»,dando-lhecorpoe formae chamando-aàconsciênciadoprincípio,afinalsecular,dequeparaeducarumacriançaéprecisatodaumaaldeia!Àcomunidadeeducativacaberá,pois,ocupar,responsavelmente,ovazioresultantedoafastamentooperadoentreaescolaeafamília,porumlado;e,poroutro,representar,noprocessoeducativoglobal,a expressão viva da complexidade social e da diversidade que,ela própria, não pode deixar de reflectir, justamente, enquantocomunidadeplural.Flexibilizada, assim, a relação entre a escola e o meio, maisfacilmenteserestabeleceráacomunicaçãoentreumaeoutroemaisnaturalmenteaescolaassumirá,nointeriordesimesma,asdiferenças,ascontradiçõeseosriscosprópriosdeumasociedadecomplexa,integradoradadiversidade.Ora, se educar na complexidade e na diversidade obriga,necessariamente,a fazerdependerdelasumaprofunda revisãonosmodelosdeorganizaçãoedefuncionamentodaescola,aesta,alémdisso,cabeassumirodesígnio,nãomenosdifícil,deformartambém para a complexidade e para a diversidade. Diríamos,simplificandoexcessivamente,queaomesmotempoqueàescolase pede que integre, de fora para dentro, a complexidade e adiversidadesociais,tambémselhedemandaque,dedentroparafora,eduqueparaavidanumasociedadecomplexaemarcadapeladiversidade.É aqui, que adquire expressão superior a importância doconhecimentocomo instrumento fundamentaldaautonomiadosujeito,esta,porsuavez,requisitoprimeiroparaumarespostaàsinterpelaçõesvindasdacomplexidadesocial.É para isso, exactamente, que chama a atenção Manuela Silva,ao afirmar que «se torna indispensável que a generalidade das

3O Fim da Educação,Lisboa,Relógiod’Àgua,2002,pp.168,1694Idem,p.955L’école, lieu de citoyenneté.Paris,ESF,2005,p.112,tambémcit.porManuelBarbosa,EducaçãoeCidadania,Renovação da Pedagogia,Amarante,Agora,2006,p.78.

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pessoaspasseadispordemaiorconhecimentoedemaiornívelde consciência e responsabilização face ao colectivo, de formaa viabilizar um nível superior de auto-regulação do sistema derelações sociais… sob pena de uma progressiva desintegraçãocaótica,aosváriosníveis»6.E por aí também se desenvolve a reflexão de Alain Tourainequando proclama que «a escola não deve pôr a criança aoserviçodasociedadeemuitomenosdeveserumpuro localdeaprendizagem.Pelocontrário,eladeveserumlugardeformaçãodeactoressociaise,acimadetudo,desujeitospessoais»7,paraconcluir entendendo que «é absolutamente necessário que aescolatenhaemconsideraçãoascondiçõesnasquaisumacriançaformaumaimagemdesimesmoedoseufuturo»8.E,assim,nosreencontramosnocentronevrálgicodaescolacomoagenteprivilegiadodeformaçãodoconhecimentoedepromoção,porviadeste,daautonomiadoalunoenquantopessoa.Oquenosremete,agorasim,paraosemprerenovadotemadosobjectivosdaeducação,nomeadamenteatravésdaescola.E aqui um primeiro confronto se desenha, exactamente, entre,porumlado,omodeloqueolhaaeducaçãoessencialmentecomoinstrumentododesenvolvimentoeconómico,encerrando-adentroda matriz fechada da chamada «sociedade de informação, doconhecimentoedasnovascompetências»,tendocomodesígniosprivilegiadosainovaçãoeacompetitividade;e,poroutro,oque,não desprezando o bem fundado do primeiro, não abdica doobjectivo, também central, de educar para a cidadania e para ademocracia.Entreumeooutro,nãoparecedeverpoderhesitar-se.E,assim,nãopodendodeixardeperspectivar-seaeducaçãoeaescolacomo«instrumentos»paraacidadaniaeparaademocracia,delas haverá de reclamar-se a formação de pensamento crítico,promotor de dissidências responsáveis, desde logo, partindo daconsciênciadequeaconcepçãoporforçadaqualcabeàescolaeducarpreferencialmenteparaodesenvolvimentoeconómiconãopoderájamais,comobemassinalaJoaquimAzevedo9,ter-secomopoliticamenteneutra.Umaescolaresponsavelmentepromotoradepensamentocríticoterá,antesdomais,deseinstituirporsimesmaedereivindicaruma autonomia indispensável à formação da sua identidadeprópria. Uma autonomia de expressão local, que permita a suainserção na comunidade a que pertence, que a responsabilizeperanteelaeque,comela,defina,emgrandeparte,umprojectoeducativo e uma estratégia. Não uma autonomia reclamadaem nome do poder burocrático da escola, mas uma autonomiareconhecidaemrazãodevaloresdemocráticosquereclamamumaeducaçãoaoserviçodaspessoas,detodasaspessoas.Essaserá,

entãosim,umaescola«pensadaeestruturadatendoemvistaasistemáticaaprendizagemdacidadaniamoderna»,naideiadeque«umadasfunçõesessenciaisdaescolaconsisteemcontribuirparaa formação de cidadãos e de cidadãs responsáveis e solidários…não de sujeitos administrados e conformados, mas de cidadãosprotagonistasdodestinodassuasvidaspúblicaseprivadas»10.Tudo, então, na procura de uma estratégia educativa que,finalmente, sem perda de horizontes que alarguem a reflexão,cultivando o pensamento crítico e a criatividade e aguçando acapacidadedeescolha,preparetambém,deformaexigente,paraosdesafiosdodesenvolvimentoeconómico.Massóentão!NeilPostman, comentandoopensamentodeThomas Jeffersonsobre o direito à vida, à liberdade e à felicidade, aventa que«dificilmenteteriaocorridoaestehomem,comoacontececomoslíderespolíticosdosnossosdias,queosjovensdeveriamaprendera ler com o único propósito de aumentar a sua produtividadeeconómica».Paraconcluir,afirmandoqueJefferson«serviaaumdeusmaissagaz»11!Éessedeusqueimportareinventar.

6ManuelaSilvaEscolhe–ComissãoInternacionalSobreEducaçãoParaOSéculoXXI–(1996),inEducação Memórias e Testemunhos,cit.,p.2717Um Novo Paradigma – Para Compreender o Mundo de Hoje-,Lisboa,InstitutoPiaget,EpistemoligiaeSociedade,2005,p.1528Idem,p.1549SistemaEducativoMundial,Ensaio sobre a regulação transnacional da educação,FML,5,VilaNovadeGaia,2007,p.2310ManuelBarbosa,Ob.cit.,págs.78e7911O Fim da Educação – Redefinindo o Valor da Escola,Relógiod’Água,Lisboa,2002,p.28

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# T e m a s S o c i a i s

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Patrícia ReisEscritora

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AgustinaBessa-Luísescreveu:nasci velha, morrerei criança.A primeira vez que li esta frase pensei: sou uma privilegiada.Fuieducadaporgentevelha.Senãootivessesidoseriaoutrapessoa?Decerto.Nãosaberiaoqueé“atarostomatesaoDiabo”

–atarasquatropontasdeumlençoecolocaromesmodebaixodealgopesado,qualquercoisaquesetenhaperdidoaparecerádeimediato-,nãosaberiafazerfolaresdaPáscoaoualgumasexpressões coloquiais de outros tempos. Também não saberianada sobre a Simone de Oliveira e Raul Solnado e sobre LuísCristinodaSilva,oarquitectoque,fartodeverDuartePachecodesenhar em cima dos seus desenhos, mandou emoldurar osprojectos para as reuniões com o ministro. Não saberia nadasobre a cifra durante a Segunda Guerra Mundial no MinistériodosNegóciosEstrangeiroseaOperaçãoWilly,operaçãonaziqueplaneavaraptaropríncipedeGalesemterritórioportuguês.

Eugostodegentevelha.Egostodedizer“velho”.Nãoaprecioopoliticamentecorrecto“idoso”eotermogeriátricoarrepia-me.Sãopalavrasquepossuemocheiroinconfundíveldadoençaeaidade,avelhice,nãoéumcaminhodedesgraças.Percebi issoquando li “O velho e o mar” de Ernest Hemingway. Apesar detodasasdificuldades,dasagrurasdavida,aquelevelhosuperatudo,venceomareograndepeixe.Omiúdoacreditaneleatéaofimeolivro,lidoerelidoaolongodestesanos,éumametáforadavida.Ser-sevelhonãoésinónimodedesistir.Denosdeixarmosir.Aminhabisavódizia:“Doem-meascruzes”,edepoisria-seesubiaaumescadotesefossecasodisso.

Gostodeouviraspessoasmaisvelhaseaprendiafazê-lomuitocedo.Naminhacabeça,estasinformaçõessoltas,estespequenostesouros, foram acumulando, como camadas de sabedoria, deumaculturamaistradicionalouapenasdeumepisódiohistórico.Aminhabisavóolhava-meedizia:

Tu a cresceres e eu a minguar.

Eunãosaberiaosignificadodapalavraminguaraosseisanossenãotivesseconvividocomaminhabisavó.Lembro-memuitobemdostraçosdoseurosto,docarrapitoatrás,nanuca, imaculado,sempreacomporumaimagem,adeviúva.Aminhabisavótevequatromeninaseummenino,quemorreupoucotempodepoisde ter nascido. Casou com um espanhol e, por isso, teve doisvestidosdenoiva:umpreto,comoeratradiçãonaterradonoivo,e um branco para as festividades alentejanas. Há um retratodessemomentoque,aindahoje,guardo.Existemaindaoutrascoisas:pequenosbrincosdeviúva,brincosdeouroepedrapreta;pulseirascomumamedalhadeNossaSenhoradoPilar,padroeiradeEspanhaeamigadafamíliaporviadocasamentodaminhabisavó,serviçosdemesaincompletoscomdesenhosantigosqueestãoadesaparecerequeaminhamãeacarinhaeguardacomcuidado.

Atelevisãoeraapretoebrancoetinhapoucointeresseparaumamiúdacomoeu.Gostavadeverosmeusvelhosnosdiferentesafazeres:acozinhaparaasmulheres—asminhastias-avóseaminhabisavó—eoescritórioparaomeutio-avô.Apesardeestarrodeadopormulheres,ohomemdacasa,estemeutio-avô,eracomoumrelógio:avidaacertava-sepelavidadele.Sesaíaparacomprar o jornal, colocávamos a mesa; se ia trabalhar líamos àbraseira,comacamilhaaproteger-nosaspernas.Estasimagens,como pequenos frames de uma vida que já foi, aparecem-mediariamente. Por uma razão ou outra e, de novo, regresso àinfância,aalgoquemefoidadoentãoporgentemaisvelha.Omeuterroreraamorteeapartidadestesdiferentescoloseformasdeser,destescontadoresdehistórias.AminhatiaNitacontavauma versão da história da Branca de Neve que era totalmentediferente da versão da minha tia Bia. Algumas canções — queaindahojesei—aprendienquantomexianostachosenaspanelas.Ouviaaminhabisavóadizer:

São cinco horas, hora do lanche.

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Maistarde,quandocomeceinosjornais,tiveafelicidadedefazerpartedeumageraçãoqueaindaconseguiuusufruireaprendercom a velha escola de jornalistas. Os jornalistas a sério eramosvelhose,aocontráriodehoje,oenvelhecimentosignificavamemória, logo sabedoria, portanto eram muito valorizados.Lembro-medeassistiraumaconferênciadeimprensa—aminhaprimeiraconferênciadeimprensa—,aos17anos,terdito:

Mas para quem é que nós escrevemos?

FernandoAssisPacheco,quepartiutãocedoetantafaltafaz,respondeu-me:

Escrevemos para o abominável homem das neves.

Edepoisriu-semuito,bemdisposto.Euqueriasercomoele.

Ainda hoje tenho guardada uma entrevista extraordinária aCarlos Té que Assis Pacheco fez para uma publicação que jánão existe, O Jornal. A entrevista chama-se “Nasci no tempodas cerejas”. Está ali tudo: a forma correcta de começar umaentrevista,nãointerromper,nãopontificar,deixaroentrevistadobrilhar,mesmoqueatimidezfosseumtraçofortíssimonocasodeCarlosTé,oquedificultavaatarefa.TambémqueriasercomoaMariaTeresaHortaouaMariaAntóniaPalla.Eraumamiúda,achavam-megraça,porissopodiaestar,nãocomomascote,mascomo ouvinte tolerada, digamos. O melhor, fosse como fosse,eraapossibilidadedeperguntar.Teraquemperguntarqualquercoisasobreoutrostempos.Acontextualizaçãosósefazcomorecolherdosaber.

Essaideiaactualdequeumaredacçãodejornalsefazcommeiadúziadelicenciadosemcomunicaçãosocialérisível.Asredacçõesprecisam de velhos. Entrevistei muitas individualidades aolongodestes24anosde jornalismo.Asminhaspreferidassão,geralmente, as pessoas mais velhas. A pessoas que têm uma

vidaparacontarenãoapenasumqualquerfeitoousucessodeconsumoimediato.

UmadasentrevistasquemaismemarcoufoiemcasadeTatianaNikolayeva,pianistarussa,emMoscovo.Temperatura:menos35graus.Conversámosnasalaondetinhadoispianos.Asparedesestavam forradas de recortes que ela fazia: cães, paisagens,casas,pessoasasorrir.Recorteseramoseuhobby.Falámosemalemão.Contou-meque,com12anos,tinhatocadopianoduranteofuneraldeEstaline.Disse-me:

A Rússia, a minha casa, está doente.

ChegouaLisboa,umamulhermínima,paraquemShostakovichcompôs um ciclo de 24 prelúdios e fugas, e tocou no Dia daEuropa,eraCavacoSilvaPrimeiroMinistro.OconcertofoinaSaladosEspelhosdoPaláciodeQueluz.Lembro-mecomose fosseontem. Ela e o piano fundiam-se de uma forma singular. Diasdepois,TatianaNikolayevadeuumrecitalemBostonduranteoqualsofreuumaneurismacerebral.Terminouorecital,agradeceue morreu nos bastidores. Quando mo disseram, na redacção,comoumacoisasemimportância,chorei.

Cadavelhoéumbaúdesurpresas,dehistórias,depossibilidades.

As famílias também os têm e, muitas vezes, não os valorizam.Sempre que vejo os meus filhos enfeitiçados pelo meu avô, obisavódeles,sorrio.EelecontacomofoipilotoemMoçambique,comoestevenumbarcodeguerra,comoavidaeraantigamentee,comobomvelhocontadordehistórias,deixasempreomelhorparaofim.Vaitecendoasmemóriasesorrindo.Omeuavôtemmais de oitenta anos, a sua lucidez é superior à minha. A suasabedoria?Nemvaleapenaacomparação.

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