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revista Dilemas e desafios da educação no século XXI v. 1 | n.1 | abr./set. 2011 | ISSN 2236-3424

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Dilemas e desafios da educação no século XXI

v. 1 | n.1 | abr./set. 2011 | ISSN 2236-3424

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ISSN 2236-3424

revista faac | publicação semestral | Bauru | v. 1, n.1 | p. 1-116 | abr./set. 2011

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revista faac • Av. Luiz Edmundo Carrijo Coube, nº 14-01 • Centro de Estudos Multidisciplinares, Sala 69 • Vargem LimpaCEP 17.033-360 • Bauru/SP • Telefone: [+ 55 14] 3103.6172 • E-mail: <[email protected]>

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JOSE CARLOS PLÁCIDO DA SILVA – Universidade Estadual Paulista

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MARIA ANTONIA BENUTTI – Universidade Estadual Paulista

GUSTAVO CIMADEVILLA – Universidad Nacional de Río Cuarto [Argentina]

Revista Faac é uma publicação eletrônica semestral e interdisciplinar vinculada à

Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista

“Júlio de Mesquita Filho” (FAAC/UNESP). O periódico tem como missão principal

publicar estudos relevantes e inéditos, na forma de artigos, ensaios, resenhas e

similares, nacionais e internacionais, contribuindo para o debate intelectual face

à excelência acadêmica e científica de sua produção e diversidade temática,

voltada prioritariamente à comunidade acadêmico-científica. Sem prejuízo de

acolhimento e difusão de contribuições de outros campos do conhecimento,

suas áreas preferenciais são: arquitetura e urbanismo; artes e representação

gráfica; desenho industrial; ciências humanas; comunicação social.

Os artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores. É permitida

sua reprodução, total ou parcial, desde que seja cilada a fonte.

Copyright© FAAC, 2011

Revista FAAC / FAAC - Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. - - Bauru, SP: a Instituição, 2011.v.

SemestralISSN 2236-3424

1. Ciências Humanas - periódico I. Revista FAAC. II. FAAC - Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação.

CDD: 070 CDD: 370CDD: 720

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PRODUÇãO GRÁFICA - Canal6 Projetos Editoriais <www.canal6.com.br>CAPA E DIAGRAMAÇãO - Anderson Jun Aoyama

REVISãO - Carlos Alberto Valero Figueiredo

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Sumário

Apresentação

Chamada de ArtigosO Brasil pós-Lula: cenários e tendências contemporâneas

DOSSIÊ TEMÁTICODilemas e desafios da Educação no século 21

Fragmentação do conhecimento ou interdisciplinaridade: ainda um dilema contemporâneo?Rita Maria de Souza Couto

Tecnologia e multidisciplinaridade inovando o ensino de arquitetura e engenhariaRegina Coeli Ruschel, Ana Lúcia Nogueira de Camargo Harris e Núbia Bernardi

A educação escolar no contexto das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC): de-safios e possibilidades para a prática pedagógica curricularThaís Cristina Rodrigues Tezani

Educação escolar e transformação socialAdriano Moreira

Interação humano-tv digital (IHTVD) e interatividadeJosé Luis Bizelli e Maicon Ferreira de Souza

Culturas juvenis em uma escola pública de São PauloMaíra S. Ferreira

ARTIGOS LIVRES

Jornalismo participativo, subjetividade e práticas discursivasAna Silvia Lopes Davi Médola e Mariana Dourado Grzesiuk

A reabilitação de conjuntos habitacionais na cidade de Sâo PauloEstevam Vanale Otero e Maria Lúcia Refinetti Martins

RESENHAS

Compromisso acadêmico-político para discutir a escola, sua reconfiguração, seus atores e seus determinantesLuis Enrique Aguilar

A “Era Lula” e a “Grande imprensa”: crônica de uma relação viciadaFernando Lattman-Weltman

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Apresentação

Todo rito de passagem envolve perdas e ganhos – e, sobretudo, aprendizado e adaptação. Aqui esta-mos a confirmar a regra: qualquer iniciação implica aprender a lidar com novos desafios e adaptar-se a um ambiente original em que nem todas as va-riáveis estão sob controle. Revista Faac tem sua primeira edição marcada pelo signo do noviciado, com todos os atributos e deslizes que marcam esse tipo de experimentação. O tempo, a cumplicidade dos colaboradores, a humildade para reconhecer problemas e a disposição para superá-los poderão se encarregar de aperfeiçoar um empreendimento que, esperamos, veio para ficar.

Dentre as virtudes de nosso novo periódico, des-tacamos seu caráter interdisciplinar, característica própria da unidade e da instituição que o lançam e que se pretende como predicado permanente. É ge-nerosa a possibilidade de se abordar determinados temas sob diferentes ângulos cognitivos. Da mesma forma, se revela promissor o caminho de promover o diálogo e a aproximação entre múltiplas áreas do conhecimento. Revista Faac, portanto, postula um lugar que, se não é propriamente original, não dei-xa de reconhecer que, de certa forma, nada contra a maré em razão das conhecidas tendências insti-tucionais contemporâneas de segmentação e exces-siva especialização do saber científico. O desafio, enfim, consiste em demonstrar que não deve haver oposição irreconciliável entre abordagens holísticas e particularizadas. Mais ainda: evidenciar que as

fronteiras do conhecimento são menos rígidas do que se poderia supor.

Desde o lançamento da revista e da primeira chamada de artigos, tivemos resposta acolhedora da comunidade acadêmico-científica, cujo retorno temos agora o prazer de publicar.

Abrindo a edição sob o dossiê temático Dilemas e desafios da Educação no século 21, Rita Maria de Souza Couto [PUC/RJ] aborda justamente um dos temas candentes da educação contemporânea em “Fragmentação do conhecimento ou interdiscipli-naridade: ainda um dilema contemporâneo?”. Ad-verte a autora que o paradigma educacional bra-sileiro tem tradição linear e fragmentária, e esse legado é problematizado à luz dos correspondentes marcos institucionais referenciais, a saber: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), os Currículos Mínimos Profissionalizantes e as Diretri-zes Curriculares Nacionais.

Em “Tecnologia e multidisciplinaridade inovando o ensino de arquitetura e engenharia”, Regina Coeli Ruschel, Ana Lúcia Nogueira de Camargo Harris e Núbia Bernardi [FEC/UNICAMP] relatam e proble-matizam experiência de pesquisa aplicada ao ensino nas áreas de Arquitetura e Urbanismo e Engenharia com base no uso de ferramentas inovadoras. Con-cluem que inovações pedagógicas fazem irromper um cenário promissor para a educação superior.

Na sequência, Thaís Cristina Rodrigues Tezani [FC/UNESP] envereda pelo tema contemporâneo da

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revistafaac, Bauru, v. 1, n. 1, abr./set. 2011.Apresentação

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contextualização das novas Tecnologias da Informa-ção e da Comunicação (TIC). “A educação escolar no contexto das tecnologias da informação e da co-municação: desafios e possibilidades para a prática pedagógica curricular” propõe reflexões provocati-vas que implicam repensar práticas pedagógicas em geral e os currículos em particular. Nessa abordagem também são retomados os tópicos da integração tec-nológica e da inter e da transdisciplinaridade.

A inquietação em relação às novas tecnologias da informação se repete em “Interação Humano-TV Digital (IHTVD) e Interatividade”, de José Luis Bizelli e Maicon Ferreira de Souza [FAAC/UNESP]. Aqui o objeto é a implantação da TV digital e suas múltiplas implicações, tomando-se como suposto a sinergia existente entre o telespectador coletivo ou não, a interface apresentada e o emissor, que pode ser representado por um serviço de Inteligên-cia Artificial (IA).

Fechando o dossiê temático, “Culturas juvenis em uma escola pública de São Paulo”, de Maíra S. Ferreira [FE/USP], relata pesquisa desenvolvida junto a alunos do ensino médio de uma escola pú-blica paulista, na qual os temas racismo, exclusão social e integração cultural emergem de forma pro-vocante. Os interlocutores são originários de famí-lias afro-brasileiras e indígenas Pankararu, oriundas do sertão pernambucano, que se alojaram na peri-feria paulistana. A afirmação étnico-social aparece aqui de forma tão dramática quanto criativa.

Na seção de Artigos Livres, Ana Silvia Lopes Davi Médola e Mariana Dourado Grzesiuk [FAAC/UNESP], apresentam “Jornalismo participativo, subjetividade e práticas discursivas”, artigo que versa sobre a linguagem do jornalismo participa-tivo com base em análise comparativa das aborda-gens do site de notícias Brasil Wiki e do portal Fo-lha Online. Já Estevam Vanale Otero e Maria Lúcia

Refinetti Martins [FAU/USP], em “A reabilitação de conjuntos habitacionais na cidade de São Paulo”, revisitam o assunto recorrente da produção do es-paço urbano mediante análise do programa Viver Melhor, desenvolvido pela COHAB-SP. Em síntese, uma análise crítica sobre os alcances e limites de ações de requalificação urbana.

Por fim, na seção Resenhas, pesquisadores competentes abordam obras atuais e emblemáti-cas. Em “Compromisso acadêmico-político para discutir a escola, sua reconfiguração, seus atores e seus determinantes”, Luis Aguilar [FE/UNICAMP] resenha o livro organizado por Anete Abramowicz e Miguel Arroyo (A reconfiguração da Escola – en-tre a negação e a afirmação de direitos). A indaga-ção perturbadora “Por que as crianças não apren-dem” é tratada sob a ótica da universalização da cidadania e da urgência de respostas e soluções, alerta o resenhador. A propósito, Revista Faac pretende manter a postura editorial de que pelo menos uma das obras resenhadas tenha afinidade temática com o dossiê da edição. Em “A ‘Era Lula’ e a ‘grande imprensa’: crônica de uma relação vi-ciada”, Fernando Lattman-Weltman [CPDOC/FGV] analisa o livro de Merval Pereira (O Lulismo no poder), coletânea de crônicas políticas publica-das originalmente no jornal O Globo. Aqui, o tema é o papel da mídia e seu lugar em tempos de crise e transição, questão aguçada pelo calor da recente disputa presidencial. Questões pertinentes emer-gem, dentre as quais a credibilidade da imprensa, seu perfil político e os processos contemporâneos de formação da opinião pública.

A versatilidade das abordagens, a atualidade dos temas e a competência dos autores convergem para um convite irrecusável à reflexão. Boa leitura!

O Editor

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Chamada de artigos

O Brasil pós-Lula: cenários e tendências contemporâneas

Revista Faac convida pesquisadores de todas as áreas a colaborarem com textos para o dossiê temá-tico de sua segunda edição. O tema escolhido é O Brasil pós-Lula: cenários e tendências contemporâ-neas. Independente de juízo de valor sobre os dois governos do presidente Lula, parece axiomático que o país passou por importantes transformações po-líticas, socioeconômicas e culturais nesse período. Contudo, o cenário que se abre a partir das eleições de 2010 carece de múltiplas interpretações e pro-jeções. De um lado, há indefinição sobre os rumos da economia nacional e seu grau de interdependên-cia com a economia global, sobretudo a partir dos efeitos da crise de 2008-2009. Nesta perspectiva, cumpre refletir sobre o lugar do Brasil no cenário mundial e sua política externa. Por outro lado, há questões internas igualmente complexas que recla-mam reflexão. Nesse vasto leque podem ser lem-brados alguns dilemas decisivos para o desenvolvi-mento nacional: Como funciona efetivamente nossa democracia e que tipo de reformas nos sistemas de-

cisórios podem aperfeiçoá-la? Quais os alcances e limites dos programas de inclusão social em curso? A atual regulação da mídia é satisfatória para asse-gurar o direito à informação? O planejamento de nossas cidades reclama reformas urbanas parciais ou, diversamente, estamos diante do imperativo de uma autêntica mudança de paradigma? No plano da cultura, das artes ou do design, quais as tendências e exigências contemporâneas? Nesse contexto desa-fiador, que tipo de balanço pode ser elaborado sobre as políticas públicas de ciência e tecnologia? Res-ponder, ou pelo menos esboçar explicações a essas e tantas outras questões é tarefa intransferível da aca-demia, afinal o conhecimento é inseparável da vida social. Além do dossiê temático, também podem ser encaminhados artigos, ensaios e resenhas sobre te-mas livres. As normas de submissão e análise estão disponíveis aqui. Os trabalhos serão recebidos por via eletrônica até 21/08/2011, e cada autor poderá acompanhar o andamento de sua respectiva sub-missão através do sistema eletrônico da revista.

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Dossiê Temático

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Fragmentação do conhecimento ou interdisciplinaridade:

ainda um dilema contemporâneo?

COUTO, Rita Maria de Souza

ResumoAs transformações que vêm ocorrendo na sociedade e na educação, bem como a complexidade que

tem marcado a contemporaneidade, encontram-se na base da presente discussão sobre a questão da frag-mentação do conhecimento. A produção avassaladora de informações propiciada por novas tecnologias, que reforçam a tendência do monodisciplinar, é problematizada em contraponto a questões sobre inter-disciplinaridade e produção de conhecimento. A educação superior no Brasil, marcada por um modelo de conhecimento linear e fragmentador, é discutida por intermédio de uma breve incursão na trajetória das Leis de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), dos Currículos Mínimos Profissionalizantes e das Diretrizes Curriculares Nacionais.

Palavras-chave: Contemporaneidade – Fragmentação Disciplinar – Educação Superior – Interdisciplinari-dade; LDB.

AbstractThe transformations occurring in the society and in the education, as well as the complexity marking the

Contemporaneity, are in the basis of the present discussion on knowledge fragmentation. The huge production of informations made available by new technologies, reinforcing the tendency toward the monodisciplinar, is discussed below in counterpoint with questions on interdisciplinarity and knowledge production. Education in Brazil, marked by a linear and fragmented model of knowledge, is discussed by the way of a brief incursion in the trajectory of the ‘Leis de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira’ (LDB), of the ‘Currículos Minimos Profissionalizantes’ and of the ‘Diretrizes Curriculares Nacionais’.

Keywords: Contemporaneity – Disciplinary Fragmentation – Superior Education – Interdisciplinary; LDB.

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ProlegómenaA complexidade das transformações que vêm

marcando a contemporaneidade encontra-se na base da discussão empreendida neste artigo sobre a ques-tão da fragmentação do conhecimento e da vigência do interdisciplinar. O conhecimento fragmentado conduz à prevalência de uma inteligência míope, como lembra Japiassu (2006), impondo o sacrifício da aptidão humana de religar os conhecimentos em proveito da capacidade de separar e desconectar.

Por um lado, assistimos à inadequação do saber fragmentado das diversas disciplinas. Ao mesmo tempo, vemo-nos às voltas com questões multidi-mensionais, globais e transnacionais. Pontua Ja-piassu (2006) que o conhecimento e a ação, longe de se excluírem, se conjugam, porque é o homem em situação, e não o homem atemporal, a-histó-rico, desenraizado culturalmente, que introduz e instaura o interdisciplinar, cujo caráter exige uma coordenação bem maior de esforços. Múltipla pela pluralidade de seus objetos e pela diversidade de seus métodos, a ciência é, pelo menos teoricamen-te, una pelo sujeito que a concebe e a produz.

A reforma do pensamento e da educação parece ser um dos maiores desafios da contemporaneida-de. Fragmentado em unidades estanques, o am-biente universitário tende a tolher a atitude natural do espírito humano de contextualizar e globalizar.

O trabalho interdisciplinar, com observa Fri-gotto (1992), não se efetivará se não for possível transcender a fragmentação. Mesmo entendida a necessidade de transcendê-la, o convívio democrá-tico e plural, necessário em qualquer espaço hu-mano, não implica junção artificial, burocrática e falsa de indivíduos que objetivamente se situam em concepções teóricas, ideológicas e políticas diver-sas. A diluição forçada do conflito e da diversidade não colabora para o avanço do conhecimento nem para a prática democrática.

Dentre os maiores desafios que se apresentam ao ensino superior está a necessidade de reforma do pensamento e da educação. Segundo Japiassu (2006), é preciso promover a atitude natural do espírito humano de contextualizar e globalizar, co-locando em prática uma visão transcultural, trans-religiosa, transpolítica e transnacional.

Desafios da contemporaneidadeContemporâneo é aquele que consegue escrever

mergulhando a pena na obscuridade do presente. Perceber esse escuro da contemporaneidade não é

uma forma de inércia ou de passividade, mas implica uma atividade e uma habilidade particular que equi-valem a neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial, que não é, no entanto, separável daquelas luzes.

G. Agamben

Parece consensual a ideia de que a sociedade como um todo se encontra atualmente em um pro-fundo e vertiginoso processo de transformação. Os debates sobre essa questão desembo-cam inevitavel-mente nas discussões que vêm sendo empreendidas por pensadores modernos e pós-modernos a respei-to da gravidade dessas mudanças.

Na visão de Goergen (1998), a grande discussão que se coloca em relação à contempora-neidade, do ponto de vista filosófico, e que por isso mesmo abrange todas as áreas de conheci-mento, gira em torno do estatuto da modernidade enquanto conjunto de valores, proce-dimentos e conceitos ainda vigentes ou sua superação por outro estatuto denominado pós-modernidade.

Os pressupostos que sustentam ambas as leitu-ras da contemporaneidade – a linha mo-derna e a pós-moderna – são, segundo Nonato (2006), deter-minantes para compreender os proje-tos societários, sócio-político-econômicos, a lógica que os rege, os objetivos a que se destinam e os limites conceituais dentro dos quais se circunscrevem.

Compreendendo a ordem social como regramen-to fundado sobre jogos de linguagem, a pós-moder-nidade desmonta as certezas de verdade e realidade pela via dos pretensos esquemas de legitimação, já que, como advoga Lyotard (1985), na sociedade e na cultura contemporânea – sociedade pós-industrial e cultura pós-moderna – a questão da legitimação do saber coloca-se em outros termos. O grande relato perdeu sua credibilidade, seja qual for o modo de unificação que lhe é conferido (Lyotard, 1985).

O pensamento pós-moderno funda-se na assertiva de que a modernidade, que definiu de forma previsí-vel nosso presente, passado e futuro a partir do século XVII, extinguiu-se como grande narrativa estruturado-ra do pensamento e do modo de vida ocidental e deu lugar a uma nova ordem que pressupõe a desarticula-ção da ordem existente. Assim, apresenta-se a pós-mo-dernidade, marcada pela desconstrução de certezas, temporalidades, espacialidades e institui-ções.

Nessa perspectiva, Giddens (2003) delimita o conceito de modernidade, ao afirmar que ele se re-fere a um estilo, um costume de vida ou uma orga-nização social que emergiram na Euro-pa a partir do século XVII, mas que não ficou restrito a um perío-

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do de tempo e a uma localização geográfica inicial. A modernidade se realiza ao longo do processo his-tórico. Argumenta esse autor que, nesses termos, a modernidade foi apenas anunciada no século XVII, mas não totalmente concretizada naquele período.

A modernidade não acabou, como postulam os pós-modernos. Embora se reconheça um caráter um pouco fractário da atualidade, permanece plena-mente possível, segundo observa No-nato (2006), a construção de conhecimentos sobre a vida social e os padrões de desenvolvimento social generalizá-veis. Em defesa desse postulado, esse autor afirma que continuamos vivendo sob uma lógica social ca-pitalista, tanto em seu sistema econômico como em suas demais instituições, e que não parece coerente com a realidade contemporânea pensar que tal or-denamento tenha sido superado. Argumenta ainda que o sentido de desordem ou desencaixe, o caráter dinâmico e desarticulado da atualidade é um des-dobramento próprio da modernidade, característi-ca apenas destacada na contemporaneidade, mas já presente e perceptível desde o século XVII.

Giddens (2003), por seu turno, ressalta a im-possibilidade de pensar num fim da moderni-dade, já que ela parece a cada dia mais pujante, embora multifacetada. O desmonte das certezas e a sensação de desamparo e deslocamento não são indicadores do fim da modernidade, mas o sinal de seu apogeu. Em lugar de se estar entrando na pós-modernidade, sustenta o autor, os pro-cedimentos da atualidade são, na verdade, desdobramentos da própria mo-dernidade, já que as instituições, as estruturas e os conceitos da modernidade permanecem balizadores da dinâmica da vida na contemporaneidade.

Sem pretender alongar as discussões, que eviden-temente merecem maior aprofundamen-to, ou nive-lar as diferenças que distinguem as duas posições, concordo com as ideias de Goergen (1996) quando ele considera que esse ideário se aproxima do reco-nhecimento das importantes transformações que vêm ocorrendo e da abrangência de seus efeitos sobre os mais diferentes âmbitos da vida contemporânea.

Como afirma Ianni (1993), mesmo as coisas que não sofreram maiores abalos já não po-dem ser mais como antes, uma vez que as relações no jogo das forças em curso na vida das soci-edades nacionais e da sociedade mundial foram alteradas para sem-pre. Para esse autor, no cenário contemporâneo a velocidade e o caráter permanente das transforma-ções têm propiciado mudan-ças rápidas, que antes teriam levado décadas ou mesmo séculos para ocor-rer. Assim, o mundo contemporâneo caracteriza-se

pela capacidade enorme de armazenamento e trans-missão de co-nhecimentos e informações num espa-ço e tempo cada vez menores.

Vale ressaltar, contudo, que a revolução tecno-lógica, responsável por introduzir na socie-dade re-alidades e possibilidades nunca antes imaginadas, não constitui um elemento de descom-passo com a modernidade, pois, como assevera Nonato (2006), o homem sempre esteve marcado pela tecnologia. O que é peculiar nas novas tecnologias de informação e comunicação é a centra-lidade da informação como meio e produto, como bem de consumo final.

Caminhos e descaminhos da fragmentação disciplinar

Quando o mundo nos apresenta uma série de anéis de conhecimento, acho impossível, para não dizer imoral, que se permaneça em um horizonte umbilical (...). A especialização é uma catástrofe (...). Falo de um novo horizonte que é, de certa forma, o olhar de Dom Quixote sobre o mundo: o herói de Cervantes podia fazer de tudo, era um anti-es-pecialista por excelência. Tinha o olhar generoso e comunicativo. Na figura do novo humanista, porém, o cavalo de Quixote é virtual.

M. Lucchesi

Na contemporaneidade, o volume avassalador da produção de informações, propiciado pelas no-vas tecnologias, torna a organização dos conheci-mentos em torno de problemas fundamentais uma operação cada vez mais difícil, imprimindo um re-forço da tendência ao monodisciplinar, à fragmen-tação, como adverte Japiassu (2006). Em função disso, uma pergunta se impõe: o que fazer, quando a consciência de que os conhecimentos atuais reve-lam uma tremenda incapacidade de pensar o mun-do globalmente e em suas partes?

Se há pouco mais de um século todos os co-nhecimentos disponíveis podiam ser dominados por um único ser humano e cabiam dentro de uma pequena biblioteca, isto é atualmente inimaginável. O homem contemporâneo necessita especializar-se, fazer recortes restritos da realidade sobre os quais concentra seus conhecimentos. Como ressalta Ianni (1993), a explosão do saber ocorrida no último sé-culo obrigou os intelectuais a delimitarem seus cam-pos de conhecimento – processo que levou às supe-respecializações que caracterizam a ciência hoje.

Apesar do aprofundamento da fragmentação dis-ciplinar ter marcado o século XIX, a divisão crescen-te do saber só se transformou numa hiperespeciali-

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zação disciplinar em meados do século XX, com o crescimento exponencial do volume e da complexi-dade dos conhecimentos e pela multiplicação e sofis-ticação das tecnologias. Como observa Sommerman (2006), até o início do século XX a divisão do saber ainda era circular. As ciências ainda dialogavam en-tre si, como sempre haviam feito, apesar de, desde o século XIV, tal circularidade constituir círculos cada vez menores devido à exclusão progressiva de vários campos de saber: da gnose ou da teologia mística no século XIII, da religião no século XVIII, e da filosofia ou da metafísica no século XX. Especialidades disci-plinares cada vez mais delimitadas foram sendo gera-das, cada uma delas travando uma luta permanente para manter sua identidade e independência. Isso fez surgir o que Japiassu (2006) denomina como “ilhas epistemológicas”, que têm por marca o dogmatismo e são acriticamente ensinadas.

A especialização apresenta-se como oposto da síntese imaginativa que, sem limites, culminou na fragmentação do horizonte epistemológico, como assevera Japiassu (2006). Ela repartiu ao infinito o território do conhecimento, no qual cada especia-lista ocupou seu minifúndio de saber. Dessa forma, o especialista ficou cego pelo desejo de saber, agar-rando-se à sua posse, e tem desejado cada vez mais a propriedade, buscando a ultra-especialização e di-vidindo interminavelmente seu território.

O epistemológico tornou-se incapaz de controlar soberanamente todo o conhecimento. A epistemolo-gia se transformou num lugar de incerteza e de diá-logo. Devido a isto, impõe-se a necessidade de con-siderar que o estatuto epistêmico atual (que inclui os modos culturais de compreender, pensar e agir) exige a descoberta e o emprego do método interdisciplinar, pois somente este é capaz de modificar, deslocar e re-estruturar o campo das disciplinas existentes.

O fato é que, em função da fragmentação, tornou-se hegemônico, nos três níveis de ensino formal, um ensino puramente disciplinar. Conteúdos divididos e organizados, que nasceram sob um pressuposto es-tritamente didático, dividiram-se em um corpo cada vez mais fechado de especialidades disciplinares.

Sob essa perspectiva, ao abordar a fragmentação no contexto do ensino, Follari (1995) questiona a validade do modelo adotado pela maioria das insti-tuições universitárias, que afirmam aceitar a interdis-ciplinaridade como um pressuposto, mas planejam sua estrutura por meio de departamentos fragmen-tados em áreas isoladas de conhecimento. O mes-mo autor observa que, fora da universidade, onde o objetivo não é gerar conhecimentos, mas resolver

problemas práticos, as divisões são menos demarca-das, possibilitando a vigência do trabalho conjunto e da troca de conhecimentos. Para ele, nesses casos, de um modo geral, não existem muitos preconcei-tos epistemológicos e as pessoas não se inquietam quanto a se reunirem com pessoas de outras áreas para abordar um problema específico.

No ambiente de ensino, a falsa imagem de que está ocorrendo trabalho interdisciplinar surge mui-tas vezes de ideias equivocadas, como, por exemplo, a de que um professor de um determinado curso, ao lecionar em outra cadeira, está estabelecendo uma relação interdisciplinar. Isto tem pouco a ver com a definição de interdisciplinaridade como um conceito orgânico, comum, entre disciplinas. O que costuma acontecer nesses casos é que o profissional que leciona numa área que não é a sua é incapaz de adequar os conteúdos de seu curso às necessidades da nova área (Couto, 1997).

Quanto à pesquisa acadêmica, diz Sommerman (2006), começaram a aparecer em meados do século XX propostas que buscavam compensar a hiperespe-cialização disciplinar que marcou a primeira metade desse século, e que propunham diferentes níveis de cooperação entre as disciplinas. O objetivo desse mo-vimento foi ajudar a resolver problemas causados pelo desenvolvimento tecnológico e pela falta de diálogo entre os saberes decorrentes dessa hiperespecialização.

Propostas de pesquisas conjuntas entre disciplinas diversas só começaram a ter alguma expressão nas uni-versidades a partir da década de 1970, com a criação de institutos ou núcleos de pesquisa interdisciplinares e o estabelecimento de alguns institutos ou núcleos trans-disciplinares, a partir das décadas de 1980 e 1990.

A adoção da interdisciplinaridade como cami-nho na pesquisa tem provocado em muitos pesqui-sadores atitudes de medo e de recusa. Além de ser uma inovação, a perspectiva interdisciplinar põe em evidência práticas cristalizadas de desagregação, de isolamento e de manutenção de barreiras. Essas prá-ticas se inserem no sentido oposto ao das atitudes de parceria, diálogo e complementariedade.

O fato é que, na contemporaneidade, a grande maioria dos objetos de estudo só consegue ser apre-endida por um pensamento multidimensional. Nesse particular, a interdisciplinaridade apresenta-se como um caminho no qual não existem táticas particulares ou trajetos obrigatórios solidamente demarcados. O que existe são estratégias que apelam a dinâmicas a serem inventadas, desvios a serem tomados e a toda uma gama de ações e práticas a serem construídas e reconstruídas permanentemente.

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Pode-se considerar que a vivência de ações e práticas interdisciplinares é praticamente inexisten-te no atual sistema educacional, tanto no campo do ensino quanto no da pesquisa. Na maioria dos casos, o que existe são encontros, eventos ditos interdisci-plinares, que, na verdade, são multidisciplinares.

Japiassu (2006) observa que a efetivação da inter-disciplinaridade no ensino, na pesquisa e nas ativida-des humanas se exprime em duas grandes correntes. A primeira delas, de inspiração analítica e holística, conduz a uma interdisciplinaridade apenas metodo-lógica do tipo “multi”1. A segunda corrente, do tipo “trans”2, privilegia a inteligibilidade sistêmica, na qual os conhecimentos que se pretendem produzir são empiricamente plausíveis e culturalmente aceitáveis.

O pensamento complexo é um elemento novo que veio alterar o rumo da pesquisa interdisciplinar. Apresenta-se como um pensamento não parcelar, não estanque, não redutor e trabalha com o reco-nhecimento de sua incompletude.

Postulando a religação de saberes dispersos3 sem fundi-los numa hipotética síntese global, pensadores da complexidade reconhecem – e dentre eles desta-ca-se Edgard Morin4 – ser possível integrar ao co-nhecimento do real, a ordem, a desordem, o incerto, o inesperado e o acaso. Advogam que é necessário considerar os fenômenos naturais, sociais e huma-nos, permitindo a interação de vários fatores interde-pendentes, sem comprometer o rigor (científico).

O caminho em direção ao multi, inter ou pluri-disciplinar revela-se longo e difícil, permeado de ár-duos problemas e resistentes obstáculos. Mas precisa ser percorrido, para que se instaure um novo espí-rito científico, que somente poderá surgir por meio de um exercício de ousadia, como observa Japiassu (2006). De acordo com essa perspectiva, a interdisci-plinaridade, longe de ser um mero modismo, é uma forma de superação da divisão entre o domínio do pensamento teórico e o da ação informada, ou seja:

Convém salientar que os problemas concernen-tes ao confronto, à aproximação e à possível integra-

1 Multidisciplinar: trabalho simultâneo de uma gama de disciplinas, sem que se ressaltem as possíveis relações entre elas.

2 Transdisciplinar: coordenação de todas as disci-plinas e interdisciplinas do sistema de ensino, com base em uma axiomática geral, ponto de vista ou objetivo comum.

3 A respeito, ver Morin (2001).

4 A respeito, ver Morin (2008).

ção dos múltiplos domínios da atividade humana, não se colocam apenas no plano do conhecimento ou da teorização, mas também e, sobretudo, no do-mínio da ação ou da intervenção efetiva no campo da realidade social e humana. Se a fragmentação das disciplinas é um fato, ela é também a expressão do desmembramento da realidade humana (Japiassu, 1976, p. 44-45 apud Couto, 1997).

A necessidade de interdisciplinaridade fundamen-ta-se, pois, no caráter dialético da realidade social, que é, ao mesmo tempo, una e diversa. Se o processo de geração de conhecimento impõe a delimitação de um problema situado num campo mais amplo, isto não significa que tenhamos que abandonar as múl-tiplas determinações que o constituem. É nesse sen-tido que, para Frigotto (1992), mesmo quando um objeto é delimitado, ele teima em não se dissociar da totalidade de que faz parte indissociável.

Educação superior no Brasil: concepção linear e fragmentada do conhecimento

O grande desafio lançado à educação neste início de século é a contradição entre, de um lado, os problemas globais, interdependentes e planetários, do outro, a per-sistência de um modo de conhecimento privilegiando os saberes fragmentados, parcelados, compartimentados.

H. Japiassu

A Educação Superior no Brasil funda-se, segundo Almeida Filho (2008), num modelo linear e fragmen-tador do conhecimento. Nessa perspectiva, aderente a uma concepção que se encontra presente, e às ve-zes dominante, em todos os ramos do pensamento ocidental, o conhecimento é apresentado como um bloco passível de ser dividido em segmentos. Para problematizar essa concepção linear e fragmentada é oportuno realizar uma breve incursão na trajetória das Leis de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB). Para realizá-la, me basearei, entre outras refe-rências, em livro de minha autoria (Couto, 2008).

A universidade brasileira surgiu tardiamente, adotando um modelo de organização em que o peso das faculdades isoladas impediu o desenvol-vimento do verdadeiro espírito universitário. Esse modelo priorizou o ensino profissionalizante, a fi-gura do catedrático, e enfatizou a transmissão do saber. Contudo, o processo de modernização da so-ciedade brasileira levou nossa universidade a bus-car novas formas de organização.

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A estruturação por de departamentos começou a ser adotada no país na década de 1940, na Universi-dade Federal do Rio de Janeiro, então Universidade do Brasil, e foi seguida pelas universidades federais da Bahia, de São Paulo e de Brasília. Sarmento e Tei-xeira (1992) esclarecem que a forma de organização departamental, inspirada no modelo norte-ameri-cano, tinha por objetivo responder às necessidades impostas pelo avanço e diversificação do saber e ao crescimento da demanda por ensino superior. O es-forço de modernização da universidade, por meio da implantação de departamentos, esbarrou inicial-mente numa estrutura rígida e voltada para a ma-nutenção de privilégios, concentrada na figura da cátedra e na tradição bacharelesca valorizada pela sociedade brasileira da época.

A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei 4.024, de 20/12/1961, foi elaborada com muita lentidão e algumas dificuldades. Passa-ram-se oito anos e meio entre a chegada do texto à Câmara Federal, em outubro de 1948, e o início dos debates sobre o texto, em maio de 1957, aos quais foram acrescidos mais quatro anos e meio para sua aprovação. Ou seja, entre o encaminhamento do texto e sua aprovação decorreram treze anos.

Ainda assim, o texto da Lei de Diretrizes e Ba-ses de 1961 trouxe, pela primeira vez na história do país, uma estrutura na qual era possível perceber claramente as “diretrizes e bases” da Educação Bra-sileira. Com a definição dessas diretrizes foi possí-vel empreender um movimento de flexibilização da estrutura do ensino, possibilitando o acesso à edu-cação universitária, independentemente do tipo de curso que o aluno tivesse concluído anteriormente. Ao mesmo tempo, foi aberta a possibilidade de mi-gração interna do aluno de um ramo de ensino para outro, por meio de aproveitamento de estudos.

A segunda Lei de Diretrizes e Bases, Lei 5.692, editada em 1971, oficialmente denominada Lei da Reforma do Ensino de primeiro e segundo graus teve, como a LDB de 1961, um lento processo de elaboração. Contudo, não incluiu a participação da sociedade civil nas discussões, devido ao regime de exceção imposto pelo regime militar da época.

Num ambiente refratário a debates e contribui-ções, as universidades posicionaram-se contraria-mente ao poder estabelecido e, em função disso, a reforma da educação começou pelo ensino univer-sitário, antecipando-se à reforma dos níveis de ensi-no anteriores. Foi editada, então, a Lei 5.540/68 e, somente três anos mais tarde finalmente foi editada a Lei de Diretrizes e Bases 5.692/71, a qual, como

já mencionamos, estava dirigida para o ensino de primeiro e segundo graus. Dessa forma, duas legis-lações diferentes sucederam a Lei 4.024/61, a pri-meira Lei de Diretrizes e Bases do Brasil.

A reforma universitária ocorreu basicamente a partir de estudos sobre a eficiência, modernização e flexibilidade administrativa das universidades. Aprovada em 28/11/1968, num Congresso total-mente engessado pela ordem política vigente, a Lei 5.540/68 levava em seu bojo normas de organização e funcionamento do ensino superior e sua articu-lação com a escola de ensino médio. Entre outros dispositivos, ela extinguia a cátedra e a estrutura de universidade passava a ser prioritária como forma de organização do ensino superior.

Sancionada em 11/08/1971, a Lei da Reforma do Ensino de primeiro e segundo graus (Lei de Diretri-zes e Bases 5.692/71) seguiu o mesmo espírito da Lei 5.540/68 e, sob o ponto de vista técnico, educa-tivo e formal, não se pode afirmar que ela seja efeti-vamente uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação porque: primeiro, não envolvia todos os níveis de ensino, da pré-escola à universidade; segundo, nela o “processo educativo” era substituído por uma vi-são positivista da educação.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasilei-ra, 4.024/61, no art. 9º, seguido pelo art. 26 da Lei 5.540/68 da Lei de Reforma Universitária, conferiu ao Conselho Federal de Educação a competência para fixar os currículos dos cursos de graduação. Dessa medida resultou a observância obrigatória aos denominados “Currículos Mínimos Profissio-nalizantes” de cada um dos cursos de graduação existentes no país ou que viessem a ser criados a partir daquela data, inclusive de suas habilitações, regulamentadas através de resoluções daquele Cole-giado, válidas nacionalmente para qualquer sistema de ensino. Como foi referido anteriormente, no seio dessa Lei foi consagrada a estrutura departamental no âmbito das universidades, herança dos Decretos-Lei nº 53/66 e nº 252/67.

Os Currículos Mínimos, direcionados basica-mente ao exercício profissional e asfixiados por es-truturas rígidas, conduziram a uma formação supe-rior fragmentada e carente de flexibilidade que, na maioria das vezes, não acompanhou as mudanças sociais, tecnológicas e científicas do processo de de-senvolvimento da sociedade. Desse estado de coisas resultou uma crescente defasagem dos graduados em relação ao desempenho competente necessário no contexto pós-acadêmico. No modelo do Currí-culo Mínimo, a inovação e a criatividade das insti-

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tuições foram inibidas. Não havia espaço e liberdade para reformulações, uma vez que os componentes curriculares e o detalhamento de conteúdos obriga-tórios estavam, por Resolução do Conselho Federal de Educação, estabelecidos nacionalmente.

Comprometidos com a emissão de um diploma e com o exercício profissional, os Currículos Mínimos estavam baseados na crença de que o desempenho do formando resultaria especialmente das discipli-nas ou matérias profissionalizantes, arranjadas em grades curriculares no sentido pleno da expressão, com os conteúdos mínimos obrigatórios fixados em uma resolução por curso. Esse modelo relacionava matérias, ou seja, áreas consolidadas do conheci-mento, que por sua vez eram desdobradas em dis-ciplinas pela estruturação dos currículos plenos. Assim, uma matéria era pulverizada em disciplinas isoladas, criando uma compartimentação artificial do saber, fato que teve consequências graves na for-mação do estudante que dificilmente conseguiria sintetizar esses conhecimentos num todo orgânico.

A partir da implantação dos Currículos Mínimos, que praticamente igualavam os currículos plenos em cada área, ficou reservada às instituições de ensino superior apenas a escolha de componentes curricu-lares complementares, através da oferta de discipli-nas optativas. As características acima contempladas compõem um elenco de fatores que reforçaram a fragmentação do ensino superior brasileiro.

A busca de uma alternativa ao modelo do Currí-culo Mínimo aconteceu com a Constituição Federal de 1988, que editou, em 20 de dezembro de 1996, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasi-leira, LDB 9.394/96, contemplando, na nova ordem jurídica, como foi apresentado em seu texto origi-nal, um desafio para a educação brasileira.

A nova LDB, tendo como ponto de partida a análise crítica do cenário esboçado resumidamente acima, conduziu à geração de novas “Diretrizes Cur-riculares Nacionais”, que enfatizam a dimensão po-lítica das instituições de ensino superior, levando-as a assumir a responsabilidade de se constituírem em respostas às efetivas demandas sociais e aos avanços tecnológicos e científicos do país.

A Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação estabeleceu, por intermé-dio dos Pareceres CES/CNE 0146/2002, 67/2003 e 0195/2003, novas Diretrizes Curriculares Na-cionais. São nítidas as diferenças entre o modelo anterior (construído sob os pilares dos currículos mínimos nacionalmente fixados para cada curso de graduação) e o atual (com o qual se pretende pro-

mover a flexibilização dos currículos, retirando-lhes as amarras da concentração e da inflexibilidade).

As Diretrizes Curriculares Nacionais observaram paradigmas, níveis de abordagem, perfil do forman-do, projeto pedagógico da cada curso, competências e habilidades, conteúdos ou tópicos de estudo, du-ração dos cursos, atividades práticas e complemen-tares, aproveitamento de habilidades e competências extracurriculares, interação com a avaliação institu-cional como eixo balizador para o credenciamento e avaliação da instituição para autorização e reconhe-cimento de cursos, bem como suas renovações.

Contudo, mesmo representado uma melhora qualitativa considerável em relação à composição dos currículos dos cursos de graduação brasileiros, as no-vas diretrizes (as gerais e, em muitos casos, as espe-cíficas por curso) pouco ou quase nada contemplam o exercício da interdisciplinaridade – um trabalho voltado para tentar reverter o quadro de fragmenta-ção do conhecimento que há muito rege o ensino e a pesquisa no país, como apontamos anteriormente.

Nos textos das diretrizes atualmente em vigor as referências à interdisciplinaridade são tímidas. Ob-serva-se a menção a essa questão quando é abordada a elaboração do projeto pedagógico de cada curso de graduação, na qual consta a orientação de que, entre outros elementos estruturais, devem ser observadas “formas de realização da interdisciplinaridade”.

Na definição de atividades complementares, que permitem o reconhecimento de habilidades e competências do aluno (inclusive as adquiridas fora do ambiente acadêmico), observa-se um apelo ao estímulo da prática de estudos independentes, transversais, opcionais, “de interdisciplinaridade”. Em relação a estas atividades, menciona-se que os conteúdos que não estejam previstos no currículo pleno de um curso podem ser aproveitados porque “circulam em um mesmo currículo, de forma inter-disciplinar, e se integram com os demais conteúdos realizados”.

Após uma década depois implantação das Di-retrizes Curriculares Nacionais, é evidente que se pode perguntar se surgiram propostas efetivas de currículos interdisciplinares ou se existe conheci-mento claro, por parte de dirigentes e professores, sobre o que caracteriza um trabalho conjunto, em parceria, que promova o diálogo entre as discipli-nas de um currículo. Ou mesmo, como romper a ideia de disciplinas estanques, configurando no-vas alternativas ao modelo disciplinar comparti-mentado e estanque.

Ao que tudo indica, a fragmentação de saberes

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parece estar conduzindo à elaboração de currículos que são, no máximo, multidisciplinares5, estreitos e bitolados, apesar da flexibilização que vem pautan-do o ensino superior brasileiro desde o advento das novas Diretrizes Curriculares Nacionais.

Considerações finaisNo seio da universidade brasileira, a interdisci-

plinaridade tem sido percebida por muitos como uma necessidade da nossa época, devido ao de-sencanto crescente que a hiperespecialização tem produzido. Como foi demonstrado neste artigo, o saber fragmentado é parte constitutiva do homem contemporâneo, e sua superação não depende ape-nas de um mero “ato de vontade”. A compartimen-tação está atualmente controlando e dirigindo am-bientes físicos, formação acadêmica, mercado de trabalho, políticas de agências de fomento e outros elementos afins.

O grande desafio imposto pela interdisciplina-ridade é a necessidade de uma mudança de atitude que possibilite ao indivíduo conhecer realmente os limites de seu saber para que ele consiga acolher contribuições de outras disciplinas. A interdis-ciplinaridade deve ser entendida, antes de tudo, como uma atitude pautada pelo rompimento com

5 Entendendo-se aqui o termo multidisciplinar como mera justaposição de disciplinas, sem a prevalên-cia de diálogo e trabalho conjunto.

a postura positivista de fragmentação, objetivando uma compreensão mais ampla da realidade. So-mente mediante esta postura pode ocorrer a inte-ração efetiva, que é sinônimo do interdisciplinar (Couto, 1997).

Na visão de Fazenda (1993), a relação de reci-procidade, base do diálogo entre os interessados no trabalho interdisciplinar, depende dessa mudança de atitude, por intermédio da qual a colaboração entre as diversas disciplinas conduzirá a uma inte-ração, a uma intersubjetividade num regime de co-propriedade, de diálogo, como única possibilidade de efetivação de um trabalho interdisciplinar.

Assim, a interdisciplinaridade fundamenta-se na intersubjetividade (através da linguagem como for-ma de expressão humana) e na interação (atitude natural do ser humano enquanto ser social). Segun-do Marcondes (1994), a consciência subjetiva se constitui como tal num processo de interação com outras consciências. Esse processo, base formadora da intersubjetividade, envolve o reconhecimento da consciência individual por outras consciências como etapa fundamental da sua constituição.

As ideias acima expostas permitem que eu consi-dere que a prática interdisciplinar caracteriza-se pelo sentimento de intencionalidade, por uma atitude de espírito, constituída de curiosidade, de abertura, de senso de aventura e de descoberta, o que conduz a uma atitude consciente, clara e objetiva.

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Rita Maria de Souza Couto é professora titular do Departamento de Artes e Design e do Programa de Pós-Graduação em Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: <[email protected]>.

Recebido para avaliação em outubro de 2010. Aprovado para publicação em janeiro de 2011.

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Tecnologia e multisciplinaridade inovando o ensino de arquitetura

1e engenharia*

RUSCHEL, Regina CoeliHARRIS, Ana Lúcia Nogueira de Camargo

BERNARDI, Nubia

* As autoras agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo apoio recebido e aos colegas pesquisadores dos Laboratórios pelo apoio no desenvolvimento de experimentos e ações de aprendizagem.

ResumoInspirados num cenário de inovações tecnológicas para uso pedagógico, o Grupo de Pesquisa Modelagem

da Informação e Colaboração Digital na Arquitetura, Engenharia e Construção tem realizado experimentos que agregam dinâmicas diferenciadas de ensino em Arquitetura e Engenharia. O objetivo principal das atividades deste grupo é trabalhar a motivação dos alunos para o uso de tais ferramentas, habilitar professores e valorizar o ensino continuado. Este artigo demonstra o uso de inovações disponíveis em termos de ambientes colaborativos, ferramentas de comunicação, mundos virtuais 3D, Laboratórios de Acesso Remoto (LAR), automação e simulações. Os experimentos de ensino apresentados variam na temática (conforto ambiental, e projeto digital e integrado de projeto), no modo de oferecimento (presencial, semipresencial ou à distância) e no nível educacional (graduação e pós-graduação), mas todos têm como premissa utilizar o design instrucional como instrumento de estímulo ao envolvimento do aluno no aprendizado. Tais inovações pedagógicas têm se colocado como um campo fértil para debates e descobertas, na busca por respostas aos desafios da educação no século XXI.

Palavras-chave: Ensino – Arquitetura – Engenharia Civil – Capacitação Tecnológica – Design Instrucional.

AbstractInspired by a scenario of technological innovations in education, the Research of Group Information Modeling

and Digital Collaboration in Architecture, Engineering and Construction has performed experiments that add differentiated class dynamic in Architecture and Engineering. The main objective of the activities of this research group is to motivate students in the use of such tools, enable teachers and value continued education. This article demonstrates the use of innovations in terms of collaborative environments, communication tools, 3D virtual worlds, Remote Access Laboratories, automation and simulation. The teaching experiments presented vary in theme (environmental comfort, digital design and integrated project), in offering mode (presence, semi-presence or distance) and educational level (undergraduate and graduate), but all have premised on using instructional design as a tool to stimulate student involvement in learning. Such pedagogical innovations present a fertile field for discussions and discoveries in the search for answers to the challenges of education in the XXI century.

Keywords: Education – Architecture – Civil Engineering – TIC Competence – Instructional Design.

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revistafaac, Bauru, v. 1, n. 1, p. 21-34, mar./set. 2011.RUSCHEL, Regina Coeli; HARRIS, Ana Lúcia Nogueira de Camargo; BERNARDI, Nubia. Tecnologia e multisciplinaridade inovando o ensino de arquitetura e engenharia.

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Segundo Hinrichs (2004), todos os computado-res do mundo não farão diferença sem estudantes entusiasmados, professores habilitados e compro-metidos, pais envolvidos e informados em uma sociedade que subestima o valor do aprendizado continuado. Encontrar formas efetivas de usar a tec-nologia para melhorar o aprendizado é um desafio que educadores, políticos e a indústria da tecnologia precisam resolver de forma conjunta.

Num exercício de imaginação, Hinrichs vislum-brou em que patamar a tecnologia estaria em 2020: imaginou brinquedos inteligentes que aprenderiam a conhecer seu usuário se adaptando, incentivando progresso e informando aos pais o perfil da criança; vislumbrou o aprendizado baseado em jogos por meio da realidade virtual, da individualização, do aprendizado baseado em problemas, encontrando habilidades e motivando-as; pensou na colabora-ção social por meio de comunidades e computação pervasiva; desejou livros eletrônicos gerados pelos próprios alunos em mídias diferenciadas e apontou para a popularização e viabilização de ambientes 3D imersivos, comunicação por voz, displays amplia-dos, internet nos ouvidos, interfaces ubíquas, simu-ladores e sensores, objetos inteligentes em laborató-rios e gerência de projeto.

Estamos em 2010, já tendo percorrido um ter-ço do tempo projetado por Hinrichs, e podemos perguntar: quais tecnologias, dentre as vislumbra-das por ele, estão disponíveis para uso no proces-so de projeto de Arquitetura e Engenharia e, por-tanto, também no seu ensino? A revista eletrônica AECbytes [http://www.aecbytes.com], centrada na divulgação de pesquisas e na análise e revisão de produtos de tecnologia e serviços para a indústria da construção civil, pode nos dar uma resposta a esta pergunta. No universo da análise e revisão de produtos, destaca-se a síntese de algumas das tecno-logias atualmente disponíveis para teste de usuário no Autodesk Labs (Khemlani, 2008). O Autodesk Labs tem como missão envolver o cliente no pro-gresso de soluções de tecnologia de design, baseada em tecnologias inovadoras e desenvolvimento cola-borativo [http://labs.autodesk.com]. Verificam-se soluções para as indústrias da Arquitetura, Enge-nharia e Construção (AEC), manufatura, midialogia e educação. Para a indústria de AEC e educação, nota-se ênfase na inovação por meio de ferramentas para: compartilhamento de designs 3D/2D, edição de arquivos de desenho usando o web browser; reco-mendações automatizadas sobre o uso de ferramen-tas; visualização interativa de dados do projeto, per-

mitindo a revisão em equipe em múltiplos sistemas operacionais e equipamentos variados; interfaces de ferramentas de projeto, permitindo a interação com mãos e gestos; novas formas de criação de mode-los e geometrias, a partir de fotografias e nuvens de pontos, e o uso da nuvem computacional para pro-cessamento e compartilhamento de informação.

Em relação a ambientes 3D imersivos, verifica-se também a disponibilização de tecnologias viáveis, tanto para a prática de projeto de AEC como para o ensino. Balding (2009) discute como a incorporação de inovações e tecnologias imersivas pode modificar a arte de projetar. Os ambientes imersivos aponta-dos são: display ampliado, para visualizar projetos ou objetos em escala real, visualização do espaço com realidade aumentada e cavernas digitais. O au-tor também apresenta inovações em termos de mo-delagem (modelos parametrizados e prototipagem rápida) e de interfaces (canetas, tablets, monitores multi-touch e reconhecimento de gestos). Gül, Gu e Williams (2008) relatam uma experiência de en-sino-aprendizagem de projeto colaborativo e cons-trução de habilidades de comunicação em mundos virtuais 3D e apresentam os desafios enfrentados. Este trabalho considera as competências essenciais e os processos cognitivos envolvidos na concepção e aprendizagem em mundos virtuais 3D.

Inspirados no cenário de inovações tecnológicas no ensino imaginado por Hinrichs (2004), e con-cordando que é necessário motivar alunos, habilitar professores e valorizar o ensino continuado, nosso Grupo de Pesquisa vem desenvolvendo pesquisas que agregam dinâmicas diferenciadas de ensino em Arquitetura e Engenharia utilizando inovações tec-nológicas. Neste grupo, demonstra-se como utilizar inovações disponíveis em termos de ambientes co-laborativos, ferramentas de comunicação, mundos virtuais 3D, Laboratórios de Acesso Remoto (LAR), automação e simulações. Os experimentos de ensi-no apresentados a seguir variam na temática (con-forto ambiental em arquitetura e projeto digital e integrado em engenharia), modo de oferecimento (presencial, semipresencial ou à distância) e no ní-vel educacional (graduação e pós-graduação). Todos os experimentos têm em comum um design instru-cional que enfatiza situações para manter o aluno constantemente envolvido e interessado no apren-dizado. Com esses relatos criaremos subsídios para discutir se novas ferramentas da comunicação po-dem democratizar o conhecimento e elevar a quali-dade educacional.

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Novas tecnologias aplicadas ao ensino

Experimentação no ensino de conforto

Esta ação aprendizagem foi desenvolvida no âmbito do Projeto FAPESP TIDIA-Ae, em conjunto com o Laboratório e-Labora do Núcleo de Informá-tica na Educação (NIED) da UNICAMP, e o tema selecionado para a experimentação foi o conforto ambiental (Ruschel et al., 2006, Freire; Ruschel, 2007, Ruschel et al., 2008). A ação aprendizagem (oferecida à distância) teve como proposta didáti-ca articular conteúdos, materiais e modos de inte-ração, visando à participação ativa e colaborativa entre alunos e entre alunos e professor, utilizando para isso a Tecnologia da Informação e Comuni-cação (TIC) e recursos de robótica e automação. Portanto, a interação proposta para cada atividade/experimentação utilizou uma combinação diferente de recursos num ambiente eletrônico existente de ensino à distância, o TelEduc (agenda, repositório centralizado, ferramentas de comunicação, tutoriais on-line) e tecnologias acopladas, como: Laboratório de Acesso Remoto (LAR), maquete automatizada, realidade virtual ou robô controlado remotamente. Dez alunos de graduação de cursos de Arquitetura e Urbanismo de três universidades públicas paulistas participaram dessa ação durante o segundo semes-tre de 2005. O oferecimento da ação aprendizagem contou continuamente com a presença de um mo-nitor e um professor, sendo que este último variou a cada semana, de acordo com o tema abordado. Especialistas convidados também participaram de algumas ações mais específicas.

A agenda genérica de cada semana resumiu-se à apresentação do conteúdo teórico por meio de um material diferenciado e variado (vídeo, apresentação com narração ou texto ilustrado), na execução de um experimento de forma colaborativa, na participação em discussões sobre estas atividades e no desenvol-vimento de um projeto individual, cuja proposta foi detalhada semanalmente pelo professor, com apoio de um monitor. Os conceitos e as discussões rea-lizadas em cada semana subsidiaram o desenvolvi-mento do projeto individual do aluno por fases. O objetivo inicial era que, ao final do curso, cada alu-no apresentasse uma proposta de projeto de reforma para o ambiente de uma sala de TV – área escolhida para o estudo de caso –, com ênfase na qualidade do conforto ambiental. Duas tecnologias se destaca-

ram no desenvolvimento dessa ação aprendizagem: a utilização de experimentos implantados na forma de laboratório de acesso remoto e a execução de exercício de desenvolvimento de hipótese e verifi-cação da mesma por meio de interação em páginas de hipertextos.

Durante toda ação aprendizagem as ferramentas de comunicação síncrona e assíncrona foram essen-ciais para dar suporte à participação ativa e cola-borativa entre alunos e entre alunos e professor. A ferramenta síncrona de comunicação mais utilizada foi o bate-papo (chat). Esta ferramenta foi utilizada nos momentos de discussão agendados e durante os LARs, mostrando ser muito importante no segundo caso, pois o participante precisava invariavelmen-te se comunicar com a equipe no local do experi-mento quando este era executado em tempo real. Também foi utilizada, como ferramenta de comuni-cação síncrona, a videoconferência. Esta ferramen-ta foi utilizada somente no módulo de fechamento da ação aprendizagem, servindo para agregar todos os participantes, sintetizar e apresentar resultados, bem como para obter opinião informal dos parti-cipantes sobre o oferecimento da ação. O uso desta ferramenta é mais complexo, pois exige que a equi-pe programe, antes do oferecimento da ação apren-dizagem, inúmeros itens, como por exemplo: bus-ca de salas nos locais próximos aos participantes, agendamento de horário nestas salas, confirmação de participação de convidados e comunicação entre gerentes destas salas, para ajustes de configuração de comunicação.

A seguir são apresentados os laboratórios de acesso remotos (LARs), implantados para essa ação aprendizagem, e o exercício interativo desenvolvido para a formulação de hipóteses e teste das mesmas. Os LARs abordaram o tema Conforto Funcional e Térmico. O exercício interativo abordou o tema Conforto Visual.

Conforto funcional

Neste módulo foram apresentados conceitos sobre arranjo espacial e suas relações com fatores ergonômicos: antropometria, proporção e escala hu-mana. Questões como acesso às edificações e fluxo de usuários foram abordadas através de exemplos ilustrativos. Como base teórica foram apresentados os conceitos de Desenho Universal e de aplicabilida-de da acessibilidade plena no ambiente construído.

A atividade teve como objetivo específico dis-cutir os conceitos básicos do Conforto Funcional,

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com ênfase na acessibilidade e no Desenho Univer-sal, através da introdução de técnicas de avaliação de um ambiente construído, incluindo observações utilizadas em Avaliações de Pós-ocupação (APOs). Os aspectos pedagógicos desta atividade foram con-templados a partir da utilização do Laboratório de Acesso Remoto (LAR-SIROS), onde os alunos pude-ram fazer uma avaliação da acessibilidade física do pavimento térreo do edifício da Faculdade de En-genharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Foram enfatizados, principalmente, os acessos do estacionamento às salas de aula, cantina e sanitários. Também foi considerada a existência ou ausência de rampas e obstáculos, tais como mobiliários e equi-pamentos.

A atividade foi executada individualmente, a par-tir do controle remoto de um robô por um aluno. O robô registrava as situações de falha e de acessibili-dade. Também houve comunicação simultânea do aluno com sua equipe, que se encontrava em outro local de estudo, por meio da ferramenta de bate-pa-po. Na avaliação desta atividade foram consideradas as qualidades das imagens comentadas e dos textos produzidos e enviados ao portfólio.

Este LAR foi implementado utilizando-se os re-cursos e a tecnologia desenvolvida pelo Projeto SI-ROS do instituição (Figura 1A). A equipe do Projeto SIROS utiliza tecnologias de hardware e software de baixo custo, que podem ser implantadas em labora-tórios de instituições de ensino fundamental, médio e superior (D’abreu; Chella, 2003). Dessa forma, as partes constituintes do LAR-SIROS foram cons-truídas obedecendo a critérios de modularidade e portabilidade que possibilitam facilmente sua mo-bilidade, ou seja, sua instalação em locais geogra-ficamente distintos do laboratório onde foi criado. Para a instalação do LAR-SIROS, basta haver um computador com acesso à Internet e um programa específico de comunicação do mesmo com um dis-positivo robótico a ser controlado remotamente. A comunicação com o dispositivo robótico é realizada através de um link de rádio (Figura 2A). A interface gráfica do LAR-SIROS possui botões que permitem: deslocamento do robô para a frente ou para trás (ré), com incrementos de 30 cm a cada passo; giro para a direita ou para a esquerda, em incrementos de 20° (Figura 1B). Além disso, a interface possui botões que permitem posicionar a câmera de vídeo do robô, bem como tirar e armazenar fotos do local por onde o robô está se deslocando (Figura 2B). As fotos armazenadas podem ser posteriormente recu-

peradas para análise e enviadas por e-mail para os usuários do LAR (esta tarefa não foi automatizada).

Figura 1: (A) Robô Projeto SIROS e (B) Interface LAR-SIROS

A

B

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Figura 2: (A) Equipe do LAR-SIROS controlando ser-vidor e comunicando-se com participante via bate-papo e (B) acompanhamento do robô sendo controla-do remotamente no local de estudo

A

B

Conforto visual e acústico

Neste módulo foram concentradas, na mesma se-mana, atividades sobre duas importantes subáreas do conforto ambiental (visual e acústico). Porém, mante-ve-se a individualidade temática dos exercícios pro-postos. A ementa de acústica abordou os temas relacio-nados aos conceitos fundamentais do som, percepção e audição, níveis de ruído, levantamento das fontes de ruído e controle de ruído em edificações. Quanto à iluminação, foram enfatizados aspectos da iluminação natural, níveis de contraste, presença de ofuscamento, distância entre objeto e usuário e a relação entre os ele-mentos internos e externos para proteção solar.

Entre os objetivos específicos, as atividades procu-raram incentivar a percepção, tanto acústica quanto visual, e estimular a discussão de propostas de inter-venções num ambiente construído para a melhoria do conforto luminoso e acústico. Os aspectos pedagógi-cos foram aplicados em exercícios que compunham

atividades simuladas em Realidade Virtual (RV) e ob-servação in loco (para conforto visual) e atividades de práticas de observação de fontes de ruídos na residên-cia (para conforto acústico). A avaliação considerou a qualidade das imagens geradas pelos alunos, dispo-nibilizadas nos portfólios, e a participação no bate-papo, através do qual os alunos puderam comentar e discutir as propostas de intervenção no ambiente.

Foi desenvolvido um objeto de aprendizado (OA) em formato de hipertexto, que inclui recurso simples de RV sem imersão (imagem panorâmica, Figura 3). A atividade consistia na simulação de intervenções, numa sala de aula, para solucionar um problema de ofuscamento sobre a lousa. Essa atividade foi execu-tada individualmente. Cada participante recebeu um link único para uma página em HTML, onde realizava primeiramente uma visita virtual à sala, por meio de uma simulação desenvolvida em QuickTimeVR. Para essa simulação foram criados links a partir de marca vermelha, inseridos na planta da sala de estudo (Fi-gura 4A). Finalizada essa visita inicial, o participante escolhia um ponto com ofuscamento na lousa para estudar. Visualizando a imagem que apresentava o ofuscamento no ponto escolhido (Figura 4B), o aluno formulava uma hipótese para solucionar o problema, como por exemplo: fechar cortina, acender luzes e/ou fechar portas. A hipótese criada pelo aluno era regis-trada. Em seguida, ele recebia uma tabela com links para imagens, com todas as combinações possíveis de intervenções, e escolhia a que representasse melhor sua hipótese. Caso o aluno, ao visualizar a imagem selecionada, concluísse que não havia solucionado o problema, então uma nova hipótese podia ser for-mulada, possibilitando a simulação de uma dinâmica de avaliação e realimentação para novas soluções. O resultado dessa atividade, enviado ao professor ava-liador, era o histórico de navegação pelo hipertexto que registrava o conjunto de hipóteses formuladas e verificadas, até o aluno se considerasse satisfeito com as intervenções propostas por ele para a solução do problema. Assim, o professor pôde avaliar o processo de aprendizagem e o raciocínio lógico apresentado pelo aluno sobre o tema proposto.

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Conforto térmico

Neste módulo foram apresentados conceitos fundamentais e introdutórios sobre variáveis térmi-cas que afetam a vivência num ambiente. A teoria abordou os seguintes temas: espaço urbano e clima; variáveis climáticas e sua interferência no projeto arquitetônico considerando temperatura ambiente e ventilação natural.

O objetivo específico dessa atividade foi traba-lhar conceitos básicos do conforto térmico, enfati-zando a implantação da edificação e os efeitos da ventilação natural sobre a mesma, sem utilização de túnel de vento. No experimento descrito é pos-sível visualizar a influência de múltiplas soluções de abertura sobre a ventilação no interior de ma-quetes. O objetivo não é substituir simulações em túnel de vento, mas complementá-las, permitindo uma utilização em ensino que prevê colaboração e compartilhamento para o aprendizado.

Os aspectos pedagógicos foram obtidos por meio da realização de uma atividade colaborativa entre pe-quenos grupos de alunos, tendo como tarefa princi-pal a exploração em um Laboratório de Acesso Re-moto, neste caso denominado LAR–REAL. Grupos de alunos executaram um experimento utilizando uma maquete especialmente construída para a atividade. O projeto arquitetônico da maquete, executada em

escala 1:50, representava uma residência de interesse social padrão, da região de Campinas, SP, existente em bairros de autoconstrução e em loteamentos de habi-tação de interesse social (Kowaltowski et al., 2005) (Figura 5A). Para esta atividade foram instalados na maquete dispositivos mecânicos que permitiam o acionamento remoto de portas e janelas (Figura 5B). A maquete, fixada sobre uma base robotizada, podia rotacionar horizontalmente, permitindo a simulação de diferentes orientações de implantação (norte, sul, leste, oeste, nordeste, noroeste, sudeste, sudoeste – Figura 6). A avaliação desta atividade foi semelhante às anteriores, considerando qualidade das imagens, participação no LAR e na sessão de bate-papo.

O experimento desenvolvido teve como objeti-vo observar a variação do fluxo do vento a partir da variação nas condições de suas aberturas. Para isso, a maquete foi estruturada de modo a permitir a realização independente das seguintes variáveis: orientação da frente da maquete (norte, nordeste, leste, sudeste, sul, sudoeste, oeste e noroeste), com-binações de abertura/fechamento de janelas e por-tas, combinadas a uma variável fixa, e o vento no sentido Sudeste (direção de vento predominante na região de Campinas). Para permitir a visualização em planta da ventilação no interior da maquete, a cobertura foi substituída por uma placa de acrílico. Por meio desse experimento, o projetista tem con-

Figura 3: Vista panorâmica do ambiente simulado em QuickTime VR

Figura 4: (A) Sala de aula de estudo da atividade sobre conforto visual e (B) imagens dos pontos A e B apresentando ofuscamento na lousa da sala de aula

A

B

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dições de verificar qual orientação de implantação do projeto no lote implicará numa melhor condição de conforto térmico, associado à ventilação natural, podendo, por exemplo, influenciar no desenho do loteamento onde o projeto será multiplicado.

Esse experimento foi implantado utilizando-se a infra-estrutura do Projeto REAL (Remotely Acces-

sible Laboratory Project), um plano de cooperação entre Centro de Pesquisa Renato Archer (CenPRA) e a Faculdade de Engenharia Elétrica e de Com-putação da UNICAMP (Guimarães et al., 2003). O objetivo do projeto é prover acesso remoto aos robôs movies do Laboratório de Robótica e Visão Computacional do CenPRA.

O experimento de estudo de ventilação em ma-quete, implantado com a infra-estrutura do Projeto REAL, foi denominado LAR REAL-TC (REAL for Thermal Comfort). O LAR REAL-TC exigiu o de-senvolvimento de um novo módulo para o controle de automação da maquete. Foram necessários três módulos para o controle do experimento: o módulo de controle do robô, o de controle da câmera pano-râmica e o de controle de aberturas da maquete. A maquete foi posicionada sobre o robô, que permi-tia um giro completo de 360°. Giros parciais de 45° permitiam simular implantações variadas da edifi-cação (norte, nordeste, leste, sudeste, sul, sudoeste, oeste e noroeste). Foi simulado um vento sudeste predominante mantendo-se o ventilador fixo. Uma câmera panorâmica posicionada acima da maquete permitia a visualização do experimento e seu regis-tro: dinâmico (filme) e estático (fotos). Franjas de papel celofane foram colocadas nas aberturas (por-

tas e janelas). A movimentação destas franjas, devi-do à ventilação, possibilitou a marcação do fluxo de ar. As aberturas da maquete eram controladas remo-tamente em conjuntos pré-definidos, assim como o giro do robô e o acionamento do ventilador.

A Figura 7A apresenta a interface do LAR RE-AL-TC, na qual podem ser visualizados: no quadro central, a maquete; no quadro esquerdo superior, o controle para giro da maquete; no quadro esquerdo inferior, os controles de conjuntos possíveis de aber-turas; no quadro direito, os controles da câmera pa-norâmica (zoom, deslocamentos, registro em filma-gem ou foto), e no quadro central inferior, os dados da sessão (usuário e horário de início e término). A Figura 7B apresenta uma síntese, preparada pelo professor, dos resultados dos participantes, obtidos com a marcação da ventilação em diferentes orienta-ções de implantação, que serviu como subsídio para a discussão posterior sobre o experimento.

Figura 5: (A) Maquete na escala 1:50 e (B) mecânicos na base da maquete para o acionamento remoto das portas e janelas

A B

Figura 6: (A) Vista superior da maquete apresentando conjunto de aberturas com acionamento automatizado e (B) maquete posicionada sobre robô e dispositivos de automação

A B

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Avaliação dos participantes

Ao final do oferecimento dessa ação aprendiza-gem foi feita uma avaliação do curso pelos partici-pantes. A seguir são apresentadas algumas respostas à pergunta “Como você avalia a contribuição deste curso na sua forma de pensar o projeto arquitetôni-co?”, as quais deram subsídios para avaliar se obje-tivo da ação foi atingido:

“O curso me ajudou a perceber melhor o con-forto ambiental nos diversos ambientes arquite-tônicos já existentes e pensar nos recursos que podem ser utilizados nos projetos. A minha visão de conforto funcional aumentou bastante com o conhecimento do desenho universal e do expe-rimento virtual. Eu, que já tive essa matéria na faculdade, consegui me atentar mais para sua im-portância”.

Ou:“Tive uma experiência muito boa com este curso

(mesmo não participando integralmente), foi impor-tante para mim como uma contribuição na forma-ção extra-curso e como futuro arquiteto. Projetar pensando Conforto ambiental provoca desafios, e essa busca pela percepção (todos os sentidos) ficou forte para mim nesses experimentos”.

O ambiente Second Life como espaço vir-tual de sala de aula

O ambiente Second Life foi experimentado como espaço virtual de sala de aula em dois contextos: numa dinâmica de grupo (em forma de entrevista) e numa aula virtual ministrada remotamente. Estas experiências ocorreram durante o primeiro semestre de 2009, na dis-ciplina “Ensino à Distância na Construção Civil”, do Pro-

grama de Pós-Graduação em Engenharia Civil (PPGEC) da UNICAMP, oferecida no modo semipresencial.

Simulando uma entrevista nos moldes do programa Roda Viva

A entrevista é uma técnica de trabalho em grupo que também é conhecida como método de interro-gação, podendo ser utilizada no ensino como uma oportunidade de diálogo com um especialista sobre um tema em estudo (Minicucci, 1997). Desenvolve-se com uma ou mais pessoas formulando perguntas a um ou mais indivíduos, criando assim uma dinâ-mica entre entrevistador(es) e entrevistado(s).

Experimentou-se desenvolver a técnica de grupo de entrevista utilizando a dinâmica do Pro-grama Roda Viva, da TV Cultura (Figura 8). Este programa tem uma dinâmica bastante específica e representa importante painel do pensamento contemporâneo brasileiro. O cenário do programa foi recriado no interior do ambiente colaborativo 3D Second Life pelo Laboratório INTERLAB (Fi-gura 9). Além do desenvolvimento do espaço, foi implantado um mobiliário adequado que incluiu, por exemplo, cadeira giratória a ser utilizada pelo entrevistado, com botões de controle que permi-tiam ao avatar que estivesse sentado nela contro-lar o posicionamento da cadeira, de forma similar ao que ocorre no programa real. O tema escolhido para a discussão foi a utilização de ambientes co-laborativos 3D no processo de projeto de arquite-tura e engenharia. O entrevistado foi o Prof. Dr. Romero Tori, especialista em computação gráfica e ensino à distância e coordenador do Laboratório INTERLAB da USP.

Figura 7: (A) Interface do LAR-REAL e (B) discussão sobre os fluxos de ventilação obtidos

A B

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Figura 8: (A) Dinâmica de entrevista do Programa Roda Vida da TV Cultura; e (B) site Memória Roda Viva [http://www.rodaviva.fapesp.br]

A

B

Antes da realização da entrevista, foram reali-zadas várias atividades de ambientação e teste do cenário com os participantes da atividade (alunos da disciplina de “Ensino à Distância na Constru-ção Civil” do PPGEC da UNICAMP e membros do Laboratório INTERLAB da USP). Todos os partici-pantes criaram avatares dentro do ambiente virtual estudado. As atividades de ambientação incluíram personificação de avatares, passeios guiados (Figura 10A) e individuais e reuniões agendadas. Também foram realizados testes no cenário e na dinâmica da entrevista. A Figura 10B mostra um momento de teste da dinâmica da entrevista com o cenário ainda inacabado, sem as cadeiras dos entrevistado-res. Durante o teste percebeu-se a necessidade de chamada com o uso de um gesto específico do en-trevistador para o entrevistado, pois este precisava ser identificado entre os que participavam da roda de entrevistadores.

Figura 9: Cenário para a dinâmica de entrevista nos moldes do Programa Roda Viva no ambiente colaborati-vo 3D Second Life: cenas de entrevista realizada

Figura 10: Atividades de ambientação no ambiente Second Life - (A) passeio guiado e (B) teste do cenário e dinâmica

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Os participantes se prepararam para a atividade não apenas com as atividades de ambientação, mas também estudando o tema da entrevista, compreen-dendo a especialidade do entrevistado e planejando seus questionamentos. A dinâmica ocorreu com sen-sações e resultados muito similares ao modelo de en-trevista original, demonstrando ser viável o método de interrogação no ensino como uma oportunidade de diálogo com um especialista sobre o tema em es-tudo, propiciado por um ambiente virtual 3D.

Aula virtual on-line

Neste experimento também foi ministrada uma aula na sala de aula virtual implantada no ambien-te Second Life para o ambiente TIDIA-Ae pelo La-boratório INTERLAB. A aula foi de fechamento da disciplina, cujos alunos participaram da entrevista apresentada anteriormente. A aula ocorreu em ho-rário normal de aula da disciplina, com os alunos dispersos geograficamente (Figura 11).

Figura 11: Aula de fechamento da disciplina IC052 realiza-

do na sala de aula virtual no Second Life para o TIDIA-Ae

Essa atividade também exigiu ambientação dos participantes. As atividades de ambientação foram de aprendizado do caminho de entrada para a sala (Figura 12A) e uso da mesma (Figura 12 B-C).

Avaliação dos participantes

Essa experiência também se mostrou muito proveitosa e teve boa aceitação por parte dos par-ticipantes. Ambas as experiências, viabilizadas pela colaboração com o Laboratório INTERLAB, enrique-ceram sobremaneira a disciplina “Ensino à Distância na Construção Civil” do PPGEC da UNICAMP. O relato de alunos demonstra tal sucesso e inovação no ferramental e dinâmicas experimentados:

“... A terceira parte foi a mais interessante na mi-nha opinião, pois todas as etapas trilhadas foram novas. Primeiro aprendemos a nos habituar com um novo espaço, o “virtual”. Depois tivemos duas experiências inovadoras: uma entrevista online e uma aula também online. A entrevista foi uma ex-periência realmente produtiva, pois mesmo todos os participantes estando separados no espaço real, pa-recia que estávamos todos juntos, como uma entre-vista real. Até os sentimentos eram iguais, como o nervosismo, surpresa, alegria, entre outros. Na aula ministrada pela professora o mesmo ocorreu. Real-mente parecia que estávamos em uma aula no mun-do real, com a professora palestrando e os alunos um ao lado do outro. É diferente de uma conferência online, onde a pessoa está ouvindo sente-se sozinha e acaba perdendo o interesse.”

Ou:“O processo trabalhado durante a disciplina

foi dividido em três etapas bem definidas: for-mação, avaliação e aprendizagem digital. (…) A terceira etapa, de aprendizagem virtual, foi muito nova para mim, pois se caracterizou como uma experiência interessante, no mínimo. A sensação virtual de estar reunida com a classe toda, apesar de estarmos todos longe uns dos outros (alguns de cidades e estados diferentes) foi muito estranha, mas muito boa também. Era a mesma sensação do estar fisicamente em um ambiente de sala de aula, mas era virtual. Muito gratificante! Espero ter outras oportunidades com novas experiências virtuais. Obrigada!”

Integração entre cursos e uso de simulação

Simulações 4D associam ao modelo virtual de uma edificação o fator Tempo e permitem, ainda em projeto, a visualização da simulação da evolu-ção da obra, quando o Tempo representar o cro-nograma planejado. Fischer, Haymarker e Liston (2003) apontam que simulações 4D trazem bene-fícios não somente para projetos complexos, mas também para projetos simples, desde projetos no-vos até reformas e/ou ampliações, abrangendo tan-to o detalhe como a visão geral.

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A iniciativa aqui apresentada busca quebrar a barreira cultural em relação à utilização da simu-lação 4D, habilitando o profissional, ainda em for-mação, para essa forma inovadora de projetar. A seguir é apresentada uma experiência de ensino, desenvolvida por meio de uma disciplina eletiva de Integração em CAD, oferecida pela primeira vez em 2008, presencial e simultaneamente para os cursos de graduação em Engenharia Civil (EC) e em Arquitetura e Urbanismo (AU) da UNICAMP (Ruschel; Guimarães Filho, 2008).

Como a disciplina é válida para os dois cursos, os alunos puderam vivenciar uma experiência de integração de projeto. Foi utilizada nessa expe-riência a infra-estrutura de graduação existente na instituição de ensino, em termos de ferra-mentas computacionais instaladas, versões edu-cacionais gratuitas ou comerciais, disponibiliza-das temporariamente. Foram utilizados três tipos de ferramentas computacionais de projeto: uma ferramenta de modelagem tridimensional, a ferra-menta de CAD 4D e um ambiente de colaboração assíncrona.

A turma foi dividida em equipes que conti-nham alunos de EC e AU, e cada equipe escolheu um projeto de multipavimentos para desenvolver. Os alunos de AU ficaram responsáveis pelo mo-delo geométrico arquitetônico, e os alunos de EC pelo modelo geométrico estrutural da edificação. O ambiente de colaboração permitia o processo de colaboração assíncrono (Figura 13). Os alunos de EC foram responsáveis pelo desenvolvimento do cronograma genérico da obra. O modelo geo-métrico e o cronograma foram sincronizados no aplicativo de CAD 4D (Figura 14), resultando na animação da construção.

Figura 13: Esquema de colaboração para desenvolvimen-to de modelo 3D arquitetônico e estrutural integrados

Figura 14: Interface da ferramenta Project 4D da Com-mon Point

O processo de simulação 4D desenvolvido ini-ciou-se com o desenvolvimento do modelo geomé-trico. Paralelamente, desenvolveu-se o cronograma genérico da obra. Em seguida, o modelo geométri-co e o cronograma foram integrados no aplicativo de CAD 4D. Porém, como os programas utilizados tinham apresentavam interoperabilidade, foram ne-cessários esforços de conversão de arquivos entre formatos, como mostra a Figura 15.

Figura 12: Atividades de ambientação da sala de aula virtual no Second Life para o TIDIA-Ae: (A) porta de entrada para a sala de aula; (B) colocando conteúdo na tela; e (C) movimentação de slides

A B C

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Figura 15: Processo 4D de desenvolvimento

Uma vez inseridos o modelo geométrico e o cronograma no aplicativo de CAD 4D, foi neces-sário criar, dentro do programa, uma estrutura in-dependente da geometria e do cronograma que representasse a lógica organizacional da edificação. Adotou-se organizar a edificação por pavimentos, e o pavimento por lajes, paredes, fechamentos (portas e janelas), vigas e pilares. Em casos específicos como coberturas, foram acrescentados elementos específi-cos de cada situação, como, por exemplo, telhado. Associou-se a esta lógica a geometria e as atividades da obra. Esta associação pode ser de 1:1 ou 1:n. Por exemplo, no caso de fechamentos, a relação entre a lógica organizacional e o modelo geométrico é de 1:n (isto é, múltiplas janelas e portas associadas a uma única atividade de instalar fechamentos). Ob-serva-se que o nível de detalhamento da estrutura organizacional depende da precisão desejada para a animação da obra. O resultado é uma animação (ar-quivo no formato AVI) que pode ser visualizado em ferramentas do tipo Realplayer. Também é possível criar registros estáticos da evolução da obra (ima-gens do tipo JPG). Além disso, são gerados arquivos auxiliares (extensões RAW e VFE), que possibilitam a manutenção/edição do modelo 4D.

Avaliação dos participantes

Participaram dessa disciplina 29 alunos de gra-duação, sendo 12 alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo, 16 do curso de Engenharia Civil, e um aluno de intercâmbio. No final da disciplina foi aplicado um questionário de satisfação, composto

por perguntas abertas, cujas respostas foram sujei-tas a uma análise semântica para possibilitar a com-posição dos gráficos apresentados.

Foi perguntado aos alunos o que mais gosta-ram na disciplina, pois haviam sido utilizados vá-rios recursos diferenciados, quando comparados com disciplinas anteriores, tais como: recursos mais complexos de CAD para composição de arquivos (referência externa, padronização de localização do modelo no sistema de coordenadas e de nomencla-turas), desenvolvimento de um modelo geométrico 3D único da edificação (composto por arquitetura e estrutura), compartilhamento centralizado de ar-quivos em ambiente colaboração (com recursos de controle de versões, visualizadores e marcadores) e utilização da ferramenta de simulação 4D. Pode-se observar que este último recurso foi o mais motiva-dor para os alunos, devido ao fato de terem podido experimentar um ambiente de colaboração e tra-balhar em equipes multidisciplinares. A seguir são apresentados exemplos de depoimentos dos alunos sobre esta questão:

“Transformar em CAD 4D um projeto que cria-mos em CAD 3D.”

“Simulação das fases de construção de uma edi-ficação foi o tópico que mais gostei, achei muito in-teressante ver a simulação real e poder resolver os problemas com uma ferramenta visual a mais.”

“Achei interessante todo o processo de trabalho, o uso dos aplicativos e o trabalho com os alunos da civil.”

“O que mais gostei na disciplina foi descobrir que há modos de comunicação, através de desenhos e en-tre profissionais da área, usando o Buzzsaw e o CAD em XREF.”

“Perceber o uso do CAD na construção e através de um projeto prático. O tópico CAD 4D embora as-sustador no começo mostrou-se muito interessante.”

Com o objetivo de avaliar se o aluno tinha uma noção clara de que a disciplina havia oferecido uma oportunidade de se trabalhar de forma colaborativa num formato diferenciado das disciplinas tradicio-nais do curso, verificou-se que 66% da turma tive-ram esta consciência, associando este fato ao uso de inovação tecnológica e trabalho multidisciplinar. A seguir são apresentadas algumas afirmações dos alunos, ao responderem à questão sobre inovação tecnológica e integração entre os cursos de Enge-nharia Civil e Arquitetura e Urbanismo:

“Sim houve uma colaboração diferenciada atra-vés de meios de comunicação e transição de arqui-vos diferentes do convencional.”

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Tecnologia e multisciplinaridade inovando o ensino de arquitetura e engenharia.

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“Sim , desenvolvemos bem o trabalho em grupo a distancia.”

“Sim, ao mesmo tempo em teoria o ambiente Bu-zzsaw ofereceu novas perspectivas de trabalho em conjunto.”

“Sim, pois não trabalhamos apenas arquitetos e engenheiros civis separado, tivemos que ter conver-sas para acertar o processo…”

“Sim. Foi um processo interessante ter aula com alunos de outro curso, apesar de que a diferença de área tenha comprometido alguns aspectos do trabalho.”

“Sim. O contato com alunos da engenharia civil na elaboração (mesmo que somente do modelo 3D) de projeto quando a parte da arquitetura e estrutural de uma obra foi bem interessante pois na faculdade essa relação é muito pouco explorada.”

“Sim. Quando há apenas estudantes de um cur-so a visão se torna unilateral, enquanto que com a integração a ajuda mutua torna-se mais interessante e engrandecedora.”

“Sim, a presença de arquitetos e engenheiros ci-vis no desenvolvimento propiciou visões de diferen-tes áreas de projeto.”

Discussão

Os alunos de graduação e pós-graduação – enge-nheiros civis, arquitetos e tecnólogos – envolvidos nas experiências de ensino-aprendizagem apresen-tadas neste artigo tiveram contato com tecnologias múltiplas e diferenciadas, envolvendo desde auto-mação de maquetes, medições por sensores e robó-tica, até o uso de ambientes colaborativos virtuais em 3D. Tecnologias da Informação e Comunicação foram extensivamente utilizadas, bem como todo o ferramental associado ao uso de ambientes de apoio ao ensino à distância (chat, fórum de discussão, wiki, blog e compartilhamento de arquivos em re-positório centralizado), destacando-se como ferra-mental inovador a web authoring e casting (autoria e transmissão) e a conferência online, utilizando-se recursos de mobilidade.

Além do contato com tecnologias diferenciadas, foi utilizada uma dinâmica de ensino-aprendizagem que encoraja o vínculo entre alunos e professores, a participação em desenvolvimento de cursos, a colaboração e o trabalho em equipe, a discussão e o aprendizado ativo, de modo a manter constante-mente o foco em estreita relação com a pesquisa.

As experiências aqui relatadas, com ênfase em tecnologia num ensino específico, evidenciaram uma transformação e potencialização do aprendizado aplicadas ao ensino nas áreas de Arquitetura e En-genharia, mas que são passíveis de serem aplicadas a inúmeras outras áreas. Testemunhos dos alunos en-

volvidos indicaram um melhor aproveitamento e per-cepção dos conteúdos abordados e uma grande moti-vação no desenvolvimento das atividades propostas. Uma boa parcela das inovações tecnológicas imagi-nadas por Hinrichs (2004) foi utilizada e encontra-se disponível para o uso em ensino e prática de proje-to. A elaboração do design instrucional foi planejada para propiciar a interação entre os participantes e a apropriação da tecnologia utilizada no processo de aprendizagem. Entretanto, o esforço do desenvolvi-mento para a preparação, realização e acompanha-mento destes experimentos só foi possível devido à composição multidisciplinar da equipe envolvida. Participaram do processo não apenas arquitetos e en-genheiros civis, mas também engenheiros elétricos, cientistas da computação e especialistas em ensino, sem os quais não teria sido possível a realização des-ses experimentos e oferecimentos de disciplinas.

Observa-se, portanto, que, embora boa parte das idealizações de Hinrichs (2004) para 2020 já possam ser experimentadas, ainda falta algo mais para que elas possam ser realmente incorporadas ao cotidiano do ensino-aprendizagem. Este algo mais parece estar vinculado à presença de um cará-ter multidisciplinar no ambiente educacional.

Assim, cabe aqui uma pergunta: como as ins-tituições de ensino devem se preparar, em termos de equipes multidisciplinares, e planejar, por meio de esforços conjuntos, o aprimoramento de um ambiente educacional que propicie a aplicação das tecnologias emergentes em prol da transformação e potencialização do ensino de Arquitetura e Enge-nharia? Esta não será uma tarefa fácil, mas deve ser abraçada urgentemente. Uma ação nesse sentido consistiria em criar mecanismos para aproximar os desenvolvedores de inovações tecnológicas de seus potenciais usuários no contexto do ensino, como nos exemplos aqui apresentados.

As novas ferramentas podem democratizar o conhecimento e elevar a qualidade, desde que as-sociadas a um design pedagógico apropriado, mas para que isto ocorra é imprescindível o envolvi-mento de uma equipe multidisciplinar na constru-ção da proposta didática almejada. Concordamos, portanto, com Hinrichs (2004), quando ele afirma que a tecnologia aplicada à educação pode transfor-mar e potencializar a relação ensino-aprendizagem. Entretanto, é indispensável sair da zona de confor-to e aplicar esforços multidisciplinares para a apro-priação dessa tecnologia, pois é isso que levará seu caráter inovador, criativo e colaborativo a exercer uma ação impactante e transformadora.

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Regina Coeli Ruschel é professora associada da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Campinas (FEC/UNICAMP). E-mail: <[email protected]>.

Ana Lúcia Nogueira de Camargo Harris é professora do Departamento de Construção Civil da FEC/UNICAMP. E-mail: <[email protected]>.

Núbia Bernardi é professora do Departamento de Arquitetura e Construção da FEC/UNICAMP. E-mail: <[email protected]>.

Recebido para avaliação em setembro de 2010. Aprovado para publicação em fevereiro de 2011.

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ResumoO texto apresenta algumas reflexões, em forma de questões, sobre os desafios e as possibilidades da

educação escolar em relação à integração das tecnologias da informação e da comunicação no currículo es-colar. Para tanto, apresenta: considerações iniciais sobre a educação contemporânea e a necessidade urgente de se repensar as práticas pedagógicas curriculares diante da sociedade da informação e do conhecimento; perspectivas sobre o currículo escolar e os momentos pelos quais ele passa até ser traduzido em práticas pedagógicas curriculares cotidianas; e, para finalizar, enfatiza a necessidade de integração das tecnologias, no modo transversal, nas práticas pedagógicas curriculares por meio de projetos inter e transdisciplinares.

Palavras-chave: Eucação Escolar – Currículo – Tecnologias da Informação e da Comunicação

AbstractThe paper presents some reflections, in the form of questions, about the challenges and possibilities

of education in respect to integration of information technology and communication in the school cur-riculum. For this, we present: initial considerations on contemporary education and the urgent need to rethink the teaching curriculum on information society and knowledge, perspectives on the school curriculum and the moments for which it permeates even be translated into everyday curriculum for teaching practices , and finally, emphasizes the need for integration of technologies, so cross-curricular teaching practices through inter-and transdisciplinary projects.

Keywords: School Education – Curriculum – Information Technology and Communication

A educação escolar no contexto das tecnologias da informação e

da comunicação: desafios e possibilidades para a prática pedagógica curricular

TEZANI, Thaís Cristina Rodrigues

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revistafaac, Bauru, v. 1, n. 1, p. 35-45, abr./set. 2011.TEZANI, Thaís Cristina Rodrigues. A educação escolar no contexto das tecnologias da informação e da comunicação: desafios e possibilidades para a prática pedagógica curricular

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A contemporaneidade é marcada pela velocida-de na qual as mudanças acontecem. Assim, a socie-dade da informação e do conhecimento utiliza-se das tecnologias de armazenamento e transmissão de dados e informações a todo instante. A generali-zação da informação vem acompanhada por inova-ções organizacionais, comerciais, sociais e jurídicas que estão alterando o mundo social, o do trabalho e o escolar, ou seja, vivemos numa nova era diante das tecnologias da informação digital.

Nessa perspectiva, podemos citar, por exemplo, a globalização, a velocidade, a aceleração, a instan-taneidade, a desarticulação, a formação permanen-te e a mediatização.

A tecnologia é uma extensão do ser humano. Tal afirmação tem gerado inúmeras discussões, princi-palmente quando nos referimos aos novos recursos tecnológicos da informação e da comunicação no co-tidiano escolar. Há três grandes visões sobre o tema: os que podem ser considerados defensores ativos da virtualidade; os que negam e até repudiam qualquer tipo de tecnologia; e os que defendem o uso racional da tecnologia em benefício da sociedade.

Defendemos o uso das tecnologias como posi-tivas, e sua incorporação, reconhecimento e apro-veitamento por meio da vivência dos alunos com esses recursos na vida social. Assim, propomos uma reflexão sobre os desafios e as possibilidades das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) no contexto escolar.

Para repensar as práticas pedagógicas cotidia-nas é necessário refletir sobre algumas questões que serão apontadas no decorrer deste artigo. Portanto, propomos apresentar mais questões do que respostas. Cabe então indagar: quais são os desafios da educação escolar diante desse contex-to? Quais são as possibilidades, para a educação escolar, oferecidas pelo uso das TIC como recursos para construção de práticas pedagógicas curricula-res inovadoras e eficazes?

Considerações sobre a educação contemporânea

Ensinar e aprender exige hoje muito mais flexibi-lidade espaço-temporal, pessoal e de grupo, menos conteúdos fixos e processos mais abertos de pesquisa e de comunicação (Moran, 2009, p. 29).

A evolução biológica fez com que desenvolvês-semos a faculdade de imaginar nossas ações futu-ras e seu resultado sobre o meio externo. Garças a

essa capacidade de simular nossas interações com o mundo por meio de modelos mentais, antecipamos o resultado de nossas intervenções e usamos a expe-riência acumulada. Além disso, a espécie humana é dotada de uma habilidade operacional superior à de outras espécies animais. Talvez a combinação des-sas duas características – o dom da manipulação e a imaginação – possa explicar por que quase sempre pensamos com o auxílio de metáforas e de pequenos modelos concretos, muitas vezes de origem técnica. E, como conseqüência, transformamos e projetamos o ambiente em que vivemos e nos relacionamos tão bem com as inovações tecnológicas presentes no nosso cotidiano (Lévy, 1993).

O homem busca incessantemente descobrir, do-minar e encontrar, e tem feito isso utilizando tecno-logias na busca de melhoria das suas condições de vida, o que resulta num processo de aprimoramen-to constante. As Tecnologias da Comunicação e da Informação (TIC) permitem a interação num pro-cesso contínuo, rico e insuperável que disponibiliza a construção criativa e o aprimoramento constante rumo a novos aperfeiçoamentos.

A educação escolar vem acompanhando o rit-mo do progresso das TIC, influenciando e sendo influenciada pela sociedade contemporânea e suas características, adaptando-se ao processo de evo-lução tecnológica. Essa situação representa, para a escola, exigências complexas nas políticas, nos cur-rículos e nas práticas, de modo que se prepare o in-divíduo para dominar os conteúdos historicamente acumulados pela humanidade no seu processo de construção, simultaneamente à possibilidade de de-senvolvimento de estratégias de ação articuladas às exigências sociais.

Diante do exposto, surgem algumas indagações problemáticas: quais Tecnologias da Informação e da Comunicação são exploradas pelos docentes em sua prática pedagógica cotidiana? Como a educação escolar pública utiliza tais recursos em favor do pro-cesso de ensino e aprendizagem? Como a integração das TIC aparece no currículo escolar?

O uso das TIC na educação escolar possibilita ao professor e ao aluno o desenvolvimento de compe-tências e habilidades pessoais que abrangem desde ações de comunicação, agilidades, busca de infor-mações, até a autonomia individual, ampliando suas possibilidades de inserções na sociedade da informa-ção e do conhecimento. Isto possibilita a construção de uma nova proposta de educação que insere o con-ceito de totalidade no processo educativo, ou seja:

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desafios e possibilidades para a prática pedagógica curricular

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A educação não é mais vista como transmissão de conhecimentos, mas como um processo perma-nente que se desenrola no ser humano e o leva a apresentar-se a si mesmo, a comunicar-se com ou-tros, a questionar o mundo com base em experiên-cias próprias (Peters, 2001, p. 192).

A educação escolar atualmente se vê diante da possibilidade de construção de uma nova organiza-ção curricular e didático-pedagógica, enriquecida pela diversidade de modelos e conteúdos. Hoje, através da internet, a informação disponibilizada pela tecnologia digital possibilitou o acesso de to-dos aos fatos, acontecimentos e conteúdos. Segun-do Lévy (1993, 1999), novas maneiras de pensar e conviver estão sendo elaboradas no mundo das telecomunicações e da informática, e a escola está sendo influenciada por essas perspectivas.

A informação possibilita duas vertentes: a rapi-dez do movimento e sua quantidade, o que depende necessariamente da tecnologia. Assim, é importan-te ressaltar que o controle da comunicação foi uma grande modificação advinda da inovação da técnica, resultado do processo de abstração e evolução da mente humana (Lévy, 1996; 1999).

Salientamos que o uso das TIC como possibili-dade pedagógica utilizada transversalmente permite o desenvolvimento de novas competências, como o pensamento em rede e a competência em informa-ção (Barros, 2005). Dessa forma, busca-se assegurar que todos, em idade escolar, tenham acesso efetivo a uma educação de qualidade com as tecnologias dis-poníveis e a comunicação livre e sem preconceitos, contribuindo para a efetivação do direito à educação de qualidade. Daí a urgência da integração das TIC ao currículo escolar.

Quando falamos em preparar as pessoas para o uso das tecnologias, nos reportamos à capacidade de estimular e desenvolver competências e estilos de ensino e aprendizagem diferentes dos tradicio-nais, uma vez que o cérebro humano está cada vez mais preparado para utilizar de forma qualitativa e criativa as tecnologias disponíveis. Com as tecno-logias digitais, a mente humana passou a trabalhar com outras capacidades e condições para o seu desenvolvimento:

O uso das tecnologias no processo de ensino e aprendizagem é algo complexo, e necessita que o do-cente apresente uma série de habilidades e competên-cias. Além de competências técnicas, exige também as competências pedagógicas, as mais importantes para a gestão das tecnologias para o ensino. Ressalta-

se que as tecnologias têm várias possibilidades na educação, que vão desde os antigos recursos audiovi-suais até os aplicativos de software e atuais recursos da internet (Barros, 2009, p. 62).

Vivemos numa sociedade em transformação política, na qual a informação e a comunicação ocupam papel central e reorganizam as formas de organização do trabalho e a convivência social. Esta situação demanda novas decisões e orientações em relação aos currículos e programas das escolas, no sentido do desenvolvimento de novas habilidades cognitivas, sociais e profissionais (Gatti, 2000).

Integrar o currículo escolar e o trabalho peda-gógico com as TIC ainda esbarra em diversas re-sistências no cotidiano das escolas, de modo que “o grande desafio existente no processo de ensino e aprendizagem é como integrar os professores na cultura tecnológica” (Barros, 2005, p. 65).

Atualmente nos defrontamos, na escola pública, com duas situações: de um lado, alunos que já pos-suem conhecimentos tecnologicamente avançados e acesso pleno ao universo de informações disponí-veis nos múltiplos espaços virtuais e, de outro, alu-nos que se encontram em plena exclusão tecnológi-ca, sem nenhuma outra oportunidade de vivenciar e aprender essa nova realidade, a não ser na escola.

A superação da atual situação só poderá ser enfrentada se os processos curriculares e a forma-ção docente forem alterados. Valente (2003) pro-põe modos de integrar a informática às atividades pedagógicas, pois, para este autor, a integração entre saber e prática docente ao uso das TIC é essencial, devido às necessidades sociais da socie-dade contemporânea. A tecnologia na educação deve estar inserida na cultura escolar de modo transdisciplinar.

Destacamos, portanto, que a educação escolar atualmente se vê diante da possibilidade de reor-ganização didática, pedagógica e curricular, pois a facilidade de acesso às informações disponibili-zadas pelas tecnologias digitais proporciona uma nova maneira de ensinar e aprender. Este é um desafio atual.

Perspectivas sobre o currículo escolar

Sobre o currículo incidem as decisões sobre os mínimos a que se deve ater a política da adminis-tração num dado momento, os sistemas de exame e controle para passar para níveis superiores de edu-

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cação, assessores e técnicos diversos, a estrutura do saber de acordo com os grupos de especialistas dominantes num dado momento, elaboradores de materiais, os seus fabricantes, editores de guias de livros-texto, equipes de professores organizados etc. (Sacristán, 2000, p. 101).

Queremos apresentar aqui algumas considera-ções sobre as concepções curriculares, relacionan-do-as à sua prática de modo que se fomente o olhar para dentro da escola: sua realidade, seus sujeitos, suas complexidades e suas rotinas. Somente assim poderemos indagar criticamente a respeito das condições concretas nas quais a prática pedagógica se realiza.

A escola constitui espaço e ambiente educativos que proporcionam a ampliação da aprendizagem humana. É lugar de construção de conhecimentos, de convívio social e de constituição da cidadania; isso nos leva a olhar para o campo do currículo es-colar como uma dimensão que envolve múltiplos agentes que têm compreensões diversas, peculiari-dades e singulares.

Indagar sobre questões curriculares nas escolas e na teoria pedagógica demonstra consciência de que os currículos não são conteúdos prontos e aca-bados a serem transmitidos aos alunos. O currículo é construção, seleção de conhecimentos e práticas que são produzidos em contextos concretos e em dinâmicas políticas, sociais, intelectuais, culturais e pedagógicas.

Repensar questões curriculares e suas interfaces com as práticas pedagógicas implica buscar possibi-lidades mais eficazes e a garantia do direito à educa-ção para todos com qualidade e eficiência pedagó-gica. E, no caso em tela, olhar para a integração das tecnologias digitais ao currículo escolar.

Os problemas curriculares são abordados por alguns autores (Featherstone, 1997; Silva, 2000), os quais indicam a necessidade de se compre-ender os aspectos políticos, administrativos, de produção de materiais institucionais, pedagógi-cos, entre outros, para se compreender as práticas pedagógicas cotidianas. Assim, para refletirmos sobre tal situação, é necessário olharmos para sua construção interna, que ocorre no desenvolvi-mento das práticas escolares, pois atualmente o que visualizamos em educação é que as decisões não se produzem linearmente conectadas com a prática educativa.

Inúmeras e sucessivas reformas educacionais não alcançam o sucesso pretendido porque são criadas

sem considerar os locais e os tempos nos quais serão implantadas. Além disso, desconsideram a experi-ência dos atuantes no cotidiano escolar, isto é, “se efetivamente desejamos mudar, faz-se indispensável estabelecer um diálogo fértil e também crítico com o que convencionamos chamar de prática” (Alves et. al., 2002, p. 12).

Mas, enfim, o que é currículo e qual é o seu significado para a prática pedagógica? “À palavra currículo associam-se distintas concepções, que derivam dos diversos modos de como a educa-ção é concebida historicamente, bem como das influências teóricas que a afetam e se fazem he-gemônicas em um dado momento” (Moreira e Candau, 2008, p. 17). Assim, diversos fatores socioeconômicos, políticos e culturais propor-cionam o entendimento da palavra, em alguns casos, como, entre outros: lista de conteúdos a serem ensinados aos alunos; experiências de aprendizagem escolares; planos pedagógicos ela-borados por professores, escolas e sistemas edu-cacionais; objetivos a serem alcançados; proces-sos de avaliação.

Alguns falam do currículo como algo imposto pela administração central do sistema, impondo um plano de estudos, relacionando objetivos, conteú-dos e habilidades (Featherstone, 1997). Entretanto, diante de tanta controvérsia sobre o tema, qual seria essa a melhor definição de currículo?

Acreditamos que o currículo está relacionado a uma questão de concepção epistemológica do pro-cesso educativo. Nesse sentido:

Concebemos o conhecimento escolar como uma construção específica da esfera educativa, não como uma mera simplificação de conhecimentos produzidos fora da escola. Consideramos, ainda, que o conhecimento escolar tem características próprias que o distinguem de outras formas de co-nhecimento. Ou seja, vemos o conhecimento esco-lar como um tipo de conhecimento produzido pelo sistema escolar e pelo contexto social e econômico mais amplo, produção essa que se dá em meio a relações de poder estabelecidas no aparelho esco-lar e entre esse aparelho e a sociedade. O currícu-lo, nessa perspectiva, constitui um dispositivo em que se concentram as relações entre a sociedade e a escola, entre os saberes e as práticas socialmente construídos e os conhecimentos escolares (Moreira e Candau, 2008, p. 22).

Portanto, o currículo é algo amplo e significa-tivo, mais do que uma simples lista de objetivos,

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desafios e possibilidades para a prática pedagógica curricular

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conteúdos e critérios de avaliação com os quais o professor deve trabalhar durante o ano letivo. Assim, “o currículo é sempre resultado de uma se-leção de um universo mais amplo de conhecimen-tos e saberes” (Silva, 2001, p. 15), pois a seleção é feita a partir de interesses diversos, o que irá constituir precisamente o currículo. Portanto, o currículo exprime relações de poder, identidade, conflito e interesses.

Dentre as várias definições de currículo, pode-se mencionar que se trata de uma série estruturada de resultados; conjunto de matérias e experiências que os estudantes desenvolvem sob a tutela da escola; intento de comunicar os princípios essen-ciais de uma proposta educativa, ou seja, “ultima-mente, vem sendo entendido como uma seleção de conhecimentos extraídos de uma cultura mais ampla” (Pedra, 1993, p. 31). Nessa perspectiva, as questões curriculares tornam-se explicitamente um campo de luta de interesses.

Mas o currículo nas escolas é um objeto que se constrói num “processo de configuração, implan-tação, concretização e expressão de determinadas práticas pedagógicas” (Sacristán, 2000, p. 101). Há diferentes níveis nos quais as decisões curriculares ocorrem, e estes não são dependentes uns dos ou-tros, e sim convergentes na definição da prática pe-dagógica que pode apresentar forças diversas e até contrárias que acabam criando um campo natural de conflito.

Esses níveis que o currículo perpassa recebem o nome de sistema curricular. Os subsistemas atuam na intervenção do currículo praticado, ou seja, no real e na sua autonomia funcional, mesmo manten-do relações de determinação recíproca ou hierár-quica. Tal perspectiva pode possibilitar compreen-der algumas peculiaridades dos níveis curriculares. A primeira seria a criação de uma realidade cur-ricular independente que acaba instaurando um espaço de autonomia própria dos subsistemas dos meios didáticos. Uma segunda envolveria a ques-tão da atuação dos diferentes elementos do currí-culo, com força desigual no processo: conteúdos, estratégias pedagógicas, avaliações. Pois o processo de balanceamento desses elementos resulta no que podemos denominar “grau de autonomia de cada um dos agentes na definição da prática” (Sacristán, 2000, p. 102).

O equilíbrio de cada caso expressa uma determi-nada política curricular. Por isso, ora se valorizam os conteúdos, ora os objetivos, ora a avaliação. As-sim, o currículo faz parte de um sistema global que

representa o equilíbrio relativo no sistema educati-vo, realizado por meio da prática pedagógica, sendo resultado de uma série de influências que podem ser consideradas convergentes, sucessivas, coerentes ou contraditórias, num processo que se transforma e se constrói simultaneamente. Pode também ser anali-sado como um equilíbrio entre múltiplos compro-missos, para que se possa compreender a prática pedagógica desenvolvida na escola.

De modo sintético, “o conceito de currículo adota significados diversos porque, além de ser suscetível a enfoques paradigmáticos diferentes, é utilizado para processos ou fases distintas do desenvolvimento cur-ricular” (Sacristán, 2000, p. 103). A adoção da visão de que o currículo é algo que se constrói exige que na realidade escolar esse processo seja ativo e aberto, e do qual todos os sujeitos participem. Dessa forma, para compreendermos melhor as práticas curriculares desenvolvidas nas unidades escolares, temos de qua-lificar o campo curricular como objeto de estudo e sermos capazes de analisar suas múltiplas dimensões: epistemológicas, técnicas, práticas e políticas. Assim, é o caráter processual desses múltiplos fatores que nos impede de realizar um olhar estático e a-histórico para o currículo escolar e a prática pedagógica.

Somente uma teoria unitária do processo cur-ricular na sua totalidade poderia ser capaz de ex-plicar os efeitos do currículo prescrito na prática pedagógica. Portanto, “qualquer tentativa de orga-nizar uma teoria coerente deve dar conta de tudo o que ocorre nesse sistema curricular, vendo como a forma de seu funcionamento num dado contexto afeta e dá significado ao próprio currículo” (Sacris-tán, 2000, p. 103).

A compreensão do processo de construção cur-ricular é condição fundamental para entender suas transformações processuais e como isto incide di-retamente na prática, de modo que o campo do currículo passa ser visto como campo de integração de conhecimentos especializados, paradigmas de pesquisas diversos, ou seja, o currículo como algo construído no cruzamento de influências e campos de atividade diferentes e inter-relacionados. Para compreendermos melhor o currículo em ação, ou seja, como ele se configura na prática, utilizamos o modelo que apresenta seis momentos ou fases que perpassam o currículo, a saber:

Currículo oficial, as transformações em nível local, o currículo dentro de uma determinada es-cola, as modificações que o professor introduz pes-soalmente, o que ele realiza, a transformação que

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ocorre no próprio processo de ensino e, por último, o que realmente os alunos aprendem (Sacristán, 2000, p. 104).

Apresentaremos brevemente esses momentos ou fases:

Currículo prescrito: ordenação do sistema cur-ricular, ponto de partida para elaboração de mate-riais, situação política e estrutural.

Currículo apresentado aos professores: interpre-tação do currículo prescrito. Nesse momento, a for-mação e as condições de trabalho dos docentes in-terferem no processo, pois ocorre a interpretação do docente em relação ao conteúdo do livro didático.

Currículo moldado pelos professores: o professor é agente ativo e decisivo na concretização dos con-teúdos e seus significados, moldando as prescrições administrativas e os conteúdos dos livros conforme sua tradução. “O plano que os professores fazem do ensino, ou que entendemos por programação, é um momento de especial significado nessa tradução” (Sacristán, 2000, p. 105). Esse processo pode ocor-rer individual ou coletivamente, dependendo das condições de trabalho dos mesmos, e a organização social do seu trabalho incidirá diretamente sobre a prática pedagógica.

Currículo em ação: é a prática concreta, real, guiada por esquemas teóricos e práticos do profes-sor, que se concretizará na ação pedagógica. Essa fase influenciará realmente na qualidade do ensino.

Currículo realizado: ao colocar em prática sua proposta curricular, os professores enfrentam efei-tos complexos – cognitivo, afetivo, social, moral, ocultos – que interferem na efetivação do currícu-lo, pois o contato das ideias com a realidade al-tera as propostas iniciais. Assim, a efetivação das práticas curriculares “refletem em aprendizagens dos alunos, mas também afetam os professores, na forma de socialização profissional, e inclusive se projetam no ambiente social, familiar etc.” (Sacris-tán, 2000, p. 106).

Currículo avaliado: controles de avaliação, im-posição de critérios para o ensino do professor e aprendizagem dos alunos. Os sistemas de avalia-ção acabam delimitando a prática docente, uma vez que as atuais políticas públicas educacionais atrelam o desempenho discente ao processo de bonificação docente (caso do sistema estadual de ensino paulista). Assim, o “controle do saber é inerente à função social estratificadora da educa-ção e acaba por configurar toda uma mentalidade

que se projeta inclusive nos níveis de escolaridade obrigatória e em práticas educativas” (Sacristán, 2000, p. 106).

Para sintetizar o exposto, adaptamos a Figura 1, a qual minimiza a visão fragmentada do currí-culo, pois as divisões dificultam a visão integral do processo de transformação e concretização curricular.

Para finalizar nossa discussão sobre as questões curriculares, cabe destacar que as práticas curricula-res envolvem a questão do poder. O quê? Como? Por que? Estas são algumas das questões que emergem quando conteúdos, métodos e formas de avaliação são selecionados para serem praticados. Afinal, “sele-cionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo de conhecimento é uma operação de poder” (Silva, 2001, p. 16). Em outras palavras, “o currículo pode ser visto como um objeto que cria em torno de si campos de ação diversos, nos quais múltiplos agentes e forças se expressam em sua configuração, incidindo sobre aspectos distintos” (Sacristán, 2000, p. 101).

Cabe ressaltar ainda a questão do currículo oculto, uma vez que comparece entrelaçado às práticas curri-culares. Destacamos que muitas das práticas curricu-lares que não estão descritas em nenhum documento ou registro docente são o que chamamos de currícu-lo oculto, que pode ser descrito como conjunto de atitudes, comportamentos, valores e orientações, ou definido como “todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, ex-plícito, contribuem, de forma implícita, para apren-dizagens sociais relevantes” (Silva, 2001, p. 78).

Ao abordarmos a integração das tecnologias di-gitais ao currículo, adentramos também no campo do currículo oculto, ou seja, no campo das práticas veladas, das interações sociais, das trocas grupais, pois os alunos realizam contatos virtuais com os demais alunos dentro e fora do contexto escolar, além, é claro, de interagirem com o universo das tecnologias no seu cotidiano. O currículo oculto

Envolve, dominantemente, atitudes e valores transmitidos, subliminarmente, pelas relações so-ciais e pelas rotinas do cotidiano escolar. Fazem parte do currículo oculto, assim, rituais e práticas, relações hierárquicas, regras e procedimentos, modos de orga-nizar o espaço e o tempo na escola, modos de distri-buir os alunos por grupamentos e turmas, mensagens implícitas nas falas dos(as) professores(as) e nos livros didáticos (Moreira e Candau, 2008, p.18).

Portanto, quando nos reportamos à questão da inte-gração das TIC ao currículo escolar, evidenciamos que

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há certa ambiguidade, pois ao mesmo tempo em que há euforia em relação à utilização de tecnologias em todos os ramos da atividade humana, no sistema educacional isto ainda gera críticas, inseguranças e incertezas. Urge repensar novas formas de integração das tecnologias ao currículo escolar, proporcionando avanços significati-vos nos processos de ensino e aprendizagem.

A integração das tecnologias nas práticas pedagógicas curriculares

As vertiginosas evoluções sócio-culturais e tecno-lógicas do mundo atual geram incessantes mudanças nas organizações e no pensamento humano e revelam um novo universo no cotidiano das pessoas. Isso exige independência, criatividade e autocrítica na obtenção e na seleção de informações, assim como na constru-ção do conhecimento (ALMEIDA, 2000, p. 9).

Para completar a epígrafe, as tecnologias pro-porcionam o acesso ao universo não linear de in-formações, e assim o estabelecimento de conexões e o uso de redes de comunicação possibilitam a aquisição do conhecimento, bem como o desen-volvimento de diferentes modos de representação

Figura 1: Os momentos do currículoRevista Faac – Ano I, Vol. 1, mar-set. 2011 52

Fonte: Sacristán (2000, p. 105).

Para finalizar nossa discussão sobre as questões curriculares, cabe destacar que as práticas

curriculares envolvem a questão do poder. O quê? Como? Por que? Estas são algumas das ques-

tões que emergem quando conteúdos, métodos e formas de avaliação são selecionados para se-

rem praticados. Afinal, “selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo de conhecimen-

to é uma operação de poder” (Silva, 2001, p. 16). Em outras palavras, “o currículo pode ser visto

como um objeto que cria em torno de si campos de ação diversos, nos quais múltiplos agentes e

forças se expressam em sua configuração, incidindo sobre aspectos distintos” (Sacristán, 2000, p.

101).

Cabe ressaltar ainda a questão do currículo oculto, uma vez que comparece entrelaçado às

práticas curriculares. Destacamos que muitas das práticas curriculares que não estão descritas em

nenhum documento ou registro docente são o que chamamos de currículo oculto, que pode ser des-

crito como conjunto de atitudes, comportamentos, valores e orientações, ou definido como “to-

dos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explícito, con-

tribuem, de forma implícita, para aprendizagens sociais relevantes” (Silva, 2001, p. 78).

Ao abordarmos a integração das tecnologias digitais ao currículo, adentramos também no

campo do currículo oculto, ou seja, no campo das práticas veladas, das interações sociais, das trocas

Currículo prescrito 

Currículo apresentado aos 

Currículo modelado pelos 

Currículo em ação 

Currículo realizado e seus efeitos 

Currículo avaliado 

Condicionantes do trabalho in­terno nas escolas 

Determinantes econômicos, polí­ticos, sociais, cul­turais e adminis­trativos 

Fonte: Sacristán (2000, p. 105).

e compreensão do pensamento.Os processos de ensino e aprendizagem media-

dos pelas TIC proporcionam aos alunos representar e testar ideias e hipóteses num mundo de criação abstrata e simbólica. Além disso, elas possibilitam a interação entre as pessoas que não estão situadas no mesmo tempo e espaço. Para Almeida (2000), o uso das tecnologias proporciona o desenvolvimento da racionalidade técnico-operatória e lógico-formal, pois elas ampliam a compreensão de aspectos sócio-afetivos e tornam evidentes fatores pedagógicos, psicológicos, sociológicos e epistemológicos.

Masetto (2009) indica que a educação escolar não valorizou o uso das tecnologias como possibilidade de se buscar novas práticas pedagógicas que fomen-tem avanços nos processos de aprendizagem e desen-volvimento. O que se buscou até o momento foi o aprimoramento de técnicas, não a construção de um novo paradigma. Nessa perspectiva, o uso das TIC pela educação escolar tem provocado inúmeras in-consistências: o professor preparado numa pedagogia baseada na acumulação da informação, os alunos em contato com as tecnologias digitais fora do contexto escolar, o mundo digital fazendo parte do cotidiano das pessoas, mas rejeitado pelo contexto escolar.

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Profissionais da área educacional, comprometidos com a qualidade da sua prática pedagógica, reconhe-cem a importância da integração das tecnologias no currículo e na prática escolar como um veículo para o desenvolvimento social, emocional e intelectual do aluno. Em pesquisa realizada em 2010 – com autoriza-ção do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e da Secretaria Municipal de Educação de uma cidade de porte médio do interior do Estado de São Paulo – foram entregues 150 questionários (dos quais 100 re-tornaram) em dez escolas de ensino fundamental.

A Tabela 1 apresenta os resultados dos recur-sos tecnológicos apontados pelos docentes como os mais usados em sua prática pedagógica cotidiana.

Os dados apresentados demonstram que os do-centes dos anos iniciais do ensino fundamental da rede municipal estudada utilizam pouco as TIC dis-poníveis. Como podemos identificar, a maioria dos docentes utiliza o DVD como recurso.

Nos anos iniciais do ensino fundamental, o uso das TIC pelos docentes não representa sim-plesmente um “passatempo” para distração dos alunos. Pelo contrário, corresponde a uma profun-da exigência do organismo e ocupa um lugar de importância extraordinária na educação. Estimula o crescimento e o desenvolvimento, as faculdades intelectuais, a iniciativa individual e favorece o ad-vento e o progresso da palavra (oral e escrita).

Podemos constatar ainda que os professores pesquisados não estão seguros quanto ao uso pe-dagógico das TIC nos anos iniciais do ensino fun-damental, como mostra o Gráfico 1, que apresenta as respostas negativas para as questões.

O gráfico simboliza a situação dos professores pesquisados em relação ao uso das TIC e o seu des-preparo para o uso das mesmas em sua prática pe-dagógica. Ao analisarmos a questão “Você considera saber usar as TIC em favor do processo de ensino e aprendizagem?”, 70% dos professores afirmam não saber utilizá-las de forma pedagógica. Na questão 2, “Você conhece alguma teoria que justifique o uso das TIC no processo de ensino e aprendizagem?”, 90% dos professores afirmaram não conhecer qual-quer teoria educacional que justifique o uso dessas tecnologias. E, para finalizar, na questão 3, “Você acredita ser importante conhecer melhor as TIC para usá-las em sala de aula?”, 80% dos professo-res consideram ser importante obter conhecimentos para melhor utilizá-las.

Ressaltamos que a utilização de tecnologias como recurso pedagógico favorece aprendizagens e desenvolvimentos, além de proporcionar melhor domínio na área da comunicação.

As novas maneiras de ensinar, aprender e desen-volver o currículo por meio da integração das TIC fomenta na prática pedagógica o desenvolvimen-to de aprendizagens significativas, especialmente quando se realiza a integração dos conteúdos esco-lares por meio de projetos interdisciplinares. Diante dessa proposta, o aluno torna-se ativo no processo de aprendizagem, aprendendo a fazer, testar e le-vantar ideias e hipóteses.

Ao professor cabe gerar situações instigantes nas quais os alunos passam interagir, trabalhar em grupo, pesquisar novas informações e, consequen-temente, produzir novos conhecimentos:

Tabela 1 – Recursos usados na prática pedagógica

Escola/Ano Computador DVD Slides CD player TV educativa TV comercial Internet Total

Escola 1 - 20% - 30% - - - 100%

Escola 2 10% 30% - 20% 10% - 10% 100%

Escola 3 - 30% - 10% - - - 100%

Escola 4 20% 40% - 40% - - - 100%

Escola 5 30% 10% - 10% - - 20% 100%

Escola 6 10% 50% - 60% 20% - - 100%

Escola 7 - 20% - 20% - - - 100%

Escola 8 10% - - 30% - - 30% 100%

Escola 9 - 30% - 10% - - - 100%

Escola 10 20% 40% - - - - - 100%

Total em nº. 10 27 0 23 30 0 6 90

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Para isso, o fundamental é que o professor possa observar e dialogar com seu aluno para compreender suas dúvidas, inquietações, expec-tativas e necessidades, e, ao propor atividades, colocar em negociação as próprias intenções, objetivos e diretrizes, de modo que desperte no aluno a curiosidade e o desejo pelo aprender (Al-meida, 2000, p. 10).

Valente (s/d, p. 23) afirma que as tecnologias proporcionarão um grande impacto no processo de ensino e aprendizagem, uma vez que essa facilida-de de acesso às informações pode oferecer inúmeras possibilidades para a prática pedagógica. Entretanto, esse mesmo autor alerta que existe uma gama de ati-vidades que podem contribuir para o processo de construção do conhecimento, mas os professores devem ficar atentos, pois as tecnologias podem ser utilizadas favorecendo o trabalho com os conteúdos de modo tradicional, sem inovação, e assim não con-tribuir para a construção de novos conhecimentos:

No trabalho com projetos há de se ir além da su-peração de desafios, buscando desvelar e formalizar os conceitos implícitos no desenvolvimento do tra-balho para que se estabeleça o ciclo da produção do conhecimento científico que vai tecendo o currículo na ação (Valente, s/d, p. 30).

Ensinar não é simplesmente transmitir conheci-mento, mas criar possibilidades para sua própria pro-dução ou construção. Entretanto, consideramos que aprender é construir conhecimentos e, para tanto, é necessário que haja interação entre pessoas e obje-tos. Este processo interativo nos coloca em situações diversas, nas quais necessitamos buscar informações

e saber aplicá-las. A aplicação da informação exige sua interpretação e seu processamento, o que implica a atribuição de significados, para que a informação passe a ter sentido para aquele aprendiz.

Portanto, nesta perspectiva em que aprender sig-nifica apropriar-se de informações, cumpre buscar novas possibilidades e construir conhecimentos, pois é assim que as práticas pedagógicas ganham novo sentido: possibilitar a criação de ambientes de aprendizagem em que o aluno possa interagir com seus pares, ensinar novas situações e problemas, e assim construir novos conhecimentos.

Considerações finaisA prática pedagógica permeada pelo uso das

TIC pode, do ponto de vista cognitivo, contribuir para a formulação de conceitos e estratégias, possi-bilitando ao aluno resolver com mais facilidade um problema ou elaborar um projeto.

Cabe ressaltar que, além do aspecto cogni-tivo, essas tecnologias também despertam o as-pecto afetivo, na medida em que combinam tex-tos, imagens, animações e possibilitam alcançar o objetivo traçado, pois o uso da internet, como fonte de informação, possibilita ao aluno o con-tato com essa combinação, o que torna a busca ainda mais atraente.

A navegação possibilita escolher, entre várias opções, a mais adequada e, assim, o aluno pode refletir sobre a opção escolhida e selecionar outras. A internet, devido à sua ampla gama de possibilida-des de uso, está cada vez mais criativa e interativa. Isso possibilita que o trabalho docente faça uso de blogs, sites informativos e interativos, chats, salas de aula virtuais, realidade aumentada etc.

Gráfico 1 – As TIC e as concepções docentes

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MOREIRA, A.F. e CANDAU, V.M. Indagações sobre currículo: currículo, conhecimento e cultura. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2008.

Portanto, há necessidade de que as barreiras de ordem administrativa e pedagógica sejam ultrapas-sadas, para que o sistema fragmentado se dilua e a abordagem integradora dos conteúdos, voltados para a elaboração de projetos temáticos, seja desen-volvida com os alunos. O desafio é enorme, pois falamos de integração efetiva das tecnologias no currículo, de modo que elas sejam incorporadas às práticas pedagógicas docentes.

Para finalizar, gostaríamos de levantar algumas questões que podem contribuir para a reflexão so-bre o tema, para que o leitor possa repensar a prática pedagógica cotidiana diante do contexto das TIC.

Há possibilidade de integração real das TIC •ao currículo escolar?A construção curricular é permeada por •práticas democráticas?

Como preparar o docente para a integração •das tecnologias ao currículo escolar?Afinal, qual seria a melhor forma de inte-•grar as TIC ao currículo escolar?Como garantir que a prática pedagógica •curricular cotidiana atenda aos anseios do processo de ensino e aprendizagem e traba-lhe com as TIC de modo transversal?

A articulação do trabalho com projetos e a in-corporação das TIC ao currículo enfatizam a pos-sibilidade de construção de novos conhecimentos e aprendizagens cognitivas, sociais e afetivas. Para tanto, reconhecemos que o trabalho com projetos propõe uma inversão curricular, na qual questões cotidianas passam a ser foco do processo de pes-quisa, de modo que tais temas se transformem em projetos investigativos.

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revistafaac Bauru, v. 1, n. 1, p. 35-45, abr./set. 2011.TEZANI, Thaís Cristina Rodrigues. A educação escolar no contexto das tecnologias da informação e da comunicação:

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Thaís Cristina Rodrigues Tezani é professora do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista (FC/UNESP). E-mail: <[email protected]>.

Recebido para avaliação em setembro de 2010. Aprovado para publicação em fevereiro de 2011.

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ResumoO objetivo do presente estudo é discutir a relação entre educação escolar e transformação social. As

análises foram realizadas a partir das categorias trabalho, alienação e superação. Adotamos como referen-cial a teoria marxista, com base em textos de Marx (2001); Saviani (1997); Duarte (1993; 2006; 2008); Mészáros (1981; 2005); e Bahro (1980). Foram analisados ainda documentos governamentais e não-go-vernamentais. Tomando como pressuposto que a transformação da realidade exige antes sua compreensão e interpretação, e sendo o conhecimento essencial para a realização destas atividades, conclui-se que a educação escolar pode contribuir para a transformação social na medida em que permite que as camadas populares se apropriem do conhecimento produzido historicamente pelo homem, de modo que possam não apenas compreender e interpretar a realidade, mas expressar seus interesses de forma elaborada, sis-tematizada.

Palavras-chave: Educação Escolar – Transformação Social – Trabalho – Trabalho Educativo – Alienação.

AbstractThe objective of the present study is to argue the relation between pertaining to school education and social

transformation. The analyses had been carried through from the categories work, alienation and overcoming. We adopt as referencial the marxist theory, on the basis of texts of Marx (2001); Saviani (1997); Duarte (1993; 2006; 2008); Mészáros (1981; 2005); e Bahro (1980). Governmental and not governmental documents had been analyzed still. Taking as estimated that the transformation of the reality before demands its understanding and interpretation, being knowledge essential for accomplishment of this activities, we consider, to end of work, that education pertaining to school can to contribute for transformation social in measure where it allows that the popu-lar layers if appropriate historically of the knowledge produced for the man, in way that can not only understand and interpret the reality, but to express its interests of elaborated form, systemize.

Keywords: School Education – Social Transformation – Work – Educative Work – Alienation.

Educação escolar e transformação social

MOREIRA, Adriano

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revistafaac, Bauru, v. 1, n. 1, p. 47-57, abr./set. 2011.MOREIRA, Adriano. Educação escolar e transformação social.

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Trabalho e educaçãoA educação é um fenômeno próprio dos seres

humanos (Saviani, 1997), razão pela qual compre-ender sua essência exige, antes de tudo, a compre-ensão da própria essência humana.

No que consiste a essência humana? O que di-ferencia o homem dos outros animais? De acordo com Marx (2001, p.116), os animais buscam in-cessantemente manter sua existência física, o que requer a satisfação de suas necessidades corporais: comer, beber, dormir, procriar etc. Essa é sua ativi-dade vital e através delas eles não se diferenciam. Ao contrário, identificam-se prontamente, fazen-do dela sua própria atividade. Os homens fazem de sua atividade vital objeto da própria vontade e consciência. Encontra-se aqui a diferença essencial entre o homem e os animais: diferentemente da atividade destes, a atividade vital humana é lúcida e, portanto, livre.

A natureza, por sua vez, é entendida como o corpo inorgânico do homem, ou seja, é o próprio corpo inorgânico do homem, na medida em que ela própria não é corpo humano. Assim, ao mes-mo tempo em que o homem é parte da natureza, ele necessita estabelecer com ela um intercâmbio permanente, sem o qual morrerá. Nesta perspecti-va, o homem aparece como o corpo inorgânico de outro homem e deve reconhecer neste, enquanto membros da mesma espécie, seu próprio ser (Marx, 2001, p.116).

A atividade vital humana, ou seja, o meio pelo qual o homem se relaciona com a natureza e, por conseguinte, com os outros homens e consigo mes-mo, é o trabalho, que compreende dois aspectos constitutivos: o ato do trabalho (a mediação do ho-mem com seu corpo inorgânico) e o produto do trabalho, aquilo que foi fixado num objeto, que as-sumiu uma forma física (objetivação do trabalho). É no tipo dessa atividade que reside todo caráter de uma espécie, o “seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem” (Marx, 2001, p.116). Em outras palavras, a vida genérica do homem corresponde à sua vida produ-tiva livre, em que tanto o ato do trabalho como o produto desta ação são determinados conforme sua consciência e vontade.

Duarte (1993, p. 64) ressalta que o homem, portanto, não é meramente um ser natural – em-bora destaque que o homem é, antes de qualquer coisa, um ser vivo, um produto da natureza –, mas também um “ser natural humano”, cujo “ato de

nascimento” é a história, entendida como o pro-cesso que se inicia a partir do momento em que o homem, através do trabalho, passa a produzir os meios para satisfazer suas necessidades, ou seja, a partir do momento em que o homem passa a “apro-priar-se da natureza, objetivando-se nos produtos de sua atividade transformadora”.

Esse autor aponta ainda que, à medida que de-terminadas necessidades humanas são satisfeitas, outras, de novo tipo, são originadas, exigindo para sua satisfação objetivações mais complexas e eleva-das. Tal processo desencadeia-se num movimento sem fim. Desse modo, a humanização do homem, isto é, a constituição do “gênero humano” ocorre ao longo da história pela relação entre objetivação e apropriação:

As características do gênero humano não são, po-rém, transmitidas pela herança genética, porque não se acumulam no organismo humano. As característi-cas do gênero humano foram criadas e desenvolvidas ao longo do processo histórico, através do processo de objetivação, gerado a partir da apropriação da na-tureza pelo homem. A atividade humana, ao longo da história, vai construindo as objetivações, desde os objetos stricto sensu, bem como a linguagem e as re-lações entre os homens, até as formas mais elevadas de objetivações genéricas, como a arte, a filosofia e a ciência. Cada indivíduo tem que se apropriar de um mínimo desses resultados da atividade social, exigi-do pela sua vida no contexto social do qual faz parte (Duarte, 1993, p. 40-41).

Em síntese, a essência humana é o trabalho (livre e consciente). É este que ratifica o homem como ser humano, que o torna capaz de reconhe-cer os outros homens como seu próprio ser e viver deliberadamente como um ser social (Marx, 2001, p.140). Não obstante, o mesmo autor aponta que, em um sistema econômico e social onde impera a propriedade privada, a relação do homem com a natureza e com sua atividade vital é deformada. Referimo-nos à relação entre trabalho e capital.

O capital é definido como trabalho acumulado, que se revela quando esta acumulação proporciona rendimento ou lucro: “recursos, stock, é toda acu-mulação de produtos da terra ou de manufatura. O stock só se chama capital quando traz ao proprietá-rio rendimento ou lucro” (Marx, 2001, p.80).

Desse modo, o capitalista – o homem que se apropria do trabalho acumulado de outrem – é aquele que vive de capital e de renda. O proletário, inversamente, vive somente de seu salário. Este,

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contudo, não equivale a todo o trabalho fixado num produto, e sim a uma parte mínima, somente “tanto quanto precisa para subsistir como traba-lhador, não como homem, e para originar a classe aprisionada dos trabalhadores, não a humanidade” (Marx, 2001, p.70).

Numa sociedade caracterizada pelo domínio do capital, ou seja, num “sistema de comando cujo fun-cionamento é orientado para a acumulação” (Antu-nes, 1998, p. 137), o homem que não dispõe de capital e de renda fatalmente tenderá a se tornar um trabalhador assalariado e será forçado a vender seu trabalho para manter sua existência física. Neste caso, o trabalho é transformado em mercadoria e, portanto, o próprio homem é reificado e igualmente convertido em mercadoria; seu intercâmbio com a natureza deixa de ser livre e consciente, e seu tra-balho deixa de lhe pertencer, passando ao controle do capitalista.

Consequentemente, a transformação do homem em trabalhador assalariado o aliena de sua ativi-dade vital, da natureza, de seu ser genérico e dos outros homens (Mészáros, 1981, p.16), suprimin-do sua condição humana e reduzindo-o a um ser em estado animal (Marx, 2001, p.115). O trabalho alienado representa, portanto, a negação da essên-cia humana do homem. A propriedade privada – que abrange o trabalho objetivado e a mediação do homem com a natureza – aparece como o produto necessário do trabalho alienado, da relação estranha do trabalhador com a natureza e consigo mesmo:

[...] embora a propriedade privada apareça como o fundamento, a causa do trabalho alienado, cons-titui antes a conseqüência deste último, da mesma maneira que os deuses são essencialmente, não a causa, mas o produto dos absurdos da inteligência humana (Marx, 2001b, p.120).

Entretanto, embora o trabalho assalariado se apresente ao homem como uma força estranha, como um martírio, ele constitui certamente o úni-co meio de que aqueles que vivem do salário dis-põem para assegurar sua existência. É por isso que Marx (2001) afirma que o trabalhador se tornou uma mercadoria, e que terá sorte se conseguir en-contrar um comprador, isto é, o capitalismo se ca-racteriza não apenas como um sistema econômico e social que priva o homem de sua condição hu-mana, mas que também nega a muitos a manuten-ção da própria existência física (animal), haja visto que atualmente até “os requisitos mínimos para a satisfação humana [têm sido] insensivelmente

negados à esmagadora maioria da humanidade” (Mészáros, 2005, p.73).

A superação desse estado de coisas se impõe, indubitavelmente, como uma necessidade urgente, da qual depende a própria sobrevivência humana. Mas será que isso é possível?

Mészáros (2005) discute duas tentativas de su-peração das mazelas decorrentes do capitalismo, ao analisar analisa propostas de duas “grandes figuras da burguesia iluminista” – o economista político Adam Smith e o reformador social e educacional utópico Robert Owen. Desse esforço resultam con-siderações importantes que colaborarão para res-pondermos a questão posta no parágrafo anterior.

Mesmo estando profundamente comprometido com a forma capitalista de organização da reprodu-ção econômica e social, Smith condenou o impacto negativo do espírito comercial sobre a classe traba-lhadora. Para ele, a divisão do trabalho, que sempre impõe ao trabalhador uma mesma operação sim-ples a ser realizada, limita as visões do homem, pois esse tipo de atividade não exige elaboração mental:

Quando toda a atenção de uma pessoa é dedi-cada a uma dentre dezessete partes de um alfinete ou a uma dentre oitenta partes de um botão, de tão dividida que está a fabricação de tais produtos. [...] As mentes dos homens ficam limitadas, tornam-se incapazes de se elevar (Smith apud Mészáros, 2005, p.28-9, itálicos nossos).

Smith propôs corrigir esse “defeito” por meio da exploração capitalista do tempo ocioso dos traba-lhadores, partindo aparentemente da ideia de que a alienação sofrida durante as horas de trabalho po-deria ser amenizada durante as horas de lazer. O problema, segundo ele, era que a partir do momen-to em que o “rapaz se torna adulto não tem idéias de como possa se divertir, [...] devido à ignorância eles não se divertem senão na intemperança e na li-bertinagem” (Smith, apud Mészáros, 2005, p.29) e, consequentemente, a solução seria tutelá-los para além dos muros das fábricas.

Mészáros (2005) observa nessa proposta nada mais do que uma denúncia moralizadora dos efeitos degradantes do capitalismo, que culpa os trabalhado-res pelos infortúnios que os atingem, e não o próprio sistema, que na verdade é o que lhes impõe essa si-tuação infeliz. Dessa maneira, ainda segundo esse au-tor, seria uma proposição completamente incapaz de se dirigir às causas do problema que pretende sobre-pujar, permanecendo “aprisionada no círculo vicioso dos efeitos condenados” (Mészáros, 2005, p.29).

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Já Robert Owen, meio século depois de Smith, também denunciou “os erros do sistema atual”: a busca do lucro e o poder do dinheiro, que Le-vam o empregador ver no empregado apenas um mero instrumento de ganho. Mesmo partindo de um diagnóstico crítico, Owen não aponta a origem dos erros citados nas próprias “regras implacáveis da ordem estruturalmente incorrigível do capital”, substituindo-as, de forma fictícia, pela suposta prevalência da ignorância sobre a razão, ou seja, a redução do homem a instrumento de ganho não decorreria da lógica capitalista, mas da ignorância (Mészáros, 2005, p.31).

Para corrigir tais “erros”, Owen propõe revelar a “verdade” justamente àqueles “que não conseguem pensar o trabalhador em quaisquer outros termos a não ser como mero instrumento de ganho”, dotan-do-os de esclarecimento:

Espera-se, confiantemente, que esteja próximo o tempo em que o homem, por ignorância, não mais infligirá um sofrimento desnecessário sobre o ho-mem; porque a maioria da humanidade se tornará esclarecida, e irá discernir claramente que ao agir assim inevitavelmente criará sofrimento a si própria (Owen apud Mészáros, 2005, p.31).

A propositura de Owen é entendida por Mészá-ros como circular, vaga e atemporal, e condenada ao fracasso porque abriga uma contradição insolúvel: a concepção de mudança significativa como perpe-tuação do que já existe. Este autor também destaca que a contradição visível entre o discurso crítico de Owen e sua solução educacional não decorre de erros presentes em sua lógica formal, mas “são descarrilamentos práticos e necessários” da incorri-gível lógica do capital que, ou tem êxito em impor os imperativos estruturais do seu sistema como um todo, ou “perde a sua viabilidade como o regulador historicamente dominante do modo bem-estabele-cido de reprodução metabólica universal e social” (Mészáros, 2005, p.27).

Em síntese, as propostas dos dois autores clás-sicos parecem inócuas. O primeiro, por se limitar a uma denúncia moralizadora dos efeitos degradan-tes do capitalismo, e Owen por propor mudanças apenas formais. Em última análise, elas não se di-rigirem às verdadeiras causas dos problemas que tentam resolver, e assim, por buscar corrigir algo incorrigível (a lógica do capital), conseguem ape-nas reafirmá-lo.

Nesse sentido, Mészáros (2005, p.62) afirma que a única alternativa à eliminação dos males do capi-

talismo, isto é, das condições de uma alienação de-sumanizadora (marcada por miséria, fome, violência etc.), é a superação do capitalismo como um todo, o que implica uma transformação estrutural radical.

É importante salientar que a superação do capita-lismo, segundo Marx, implica no conceito de comu-nismo: a “superação positiva da propriedade priva-da, enquanto auto-alienação humana” (Marx, 2001a, p.168). Trata-se, portanto, do restabelecimento da essência humana do homem. A esse respeito, é per-tinente atentarmos para o fato de que o conceito de superação, em Marx, derivado do termo alemão Au-fhebung, significa ao mesmo tempo transcendência, supressão, preservação e substituição pela elevação a um estágio superior (Bahro, 1980, p.27).

O comunismo compreende o estágio final de um processo que se inicia com a ascensão do socialismo (Bahro, 1980), o que, por sua vez, ocorreria após a classe burguesa cumprir um papel fundamental: so-cializar as forças produtivas. Concretizada essa etapa de conquista burguesa (inclusive liberdade e democra-cia burguesas), tal conquista deveria ser superada, mas não sentido de ser recusada, negada, ou mesmo elimi-nada, e sim preservada e elevada a um nível superior.

O processo de socialização dos bens de produ-ção, “sem o qual não pode haver a superação do ca-pitalismo” (Duarte, 2006, p.97), envolve a apropria-ção universal da riqueza intelectual (conhecimento científico, filosófico e artístico) produzida em meio às relações sociais erigidas pela ordem capitalista. Como veremos a seguir, isto coloca em questão o importante papel que a educação formal pode de-sempenhar para a superação do capitalismo, ou seja, o papel de dimensão transmissora do conhecimento produzido historicamente pelo homem, propician-do às novas gerações a apropriação das objetivações necessárias para a formação do gênero humano.

Portanto, se a superação dos males do capitalis-mo implica a abolição desse sistema econômico e social como um todo, isto não corresponde à mera eliminação de toda a produção humana efetivada em meio à sociedade burguesa, mas sim à sua ele-vação a um estágio superior, no qual essa produção será desenvolvida a partir das necessidades huma-nas, e não mais pela lógica meramente econômica.

Natureza e especificidade da educação

A afirmação de Saviani (1997), de que a edu-cação é um fenômeno próprio dos seres humanos, parte das seguintes premissas: a) é o trabalho que

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confere humanidade ao homem, diferenciando-o dos demais seres vivos; b) para satisfazer suas necessidades, o homem, ao invés de adaptar-se à natureza, adapta-a a si mesmo, transformando-a e criando, por conseguinte, um mundo humano – entendido por Saviani como o mundo da cultura –; e c) o trabalho se inicia no momento em que seu agente antecipa mentalmente a finalidade da ação, de modo que “o trabalho não é qualquer tipo de atividade, mas uma ação adequada a finalidades. É, pois, uma ação intencional” (Saviani, 1997, p.15). Esta constatação, segundo este autor, implica afir-mar que a educação é simultaneamente “uma exi-gência do e para o processo de trabalho, bem como é, ela própria, um processo de trabalho”. Contudo, o mesmo autor distingue o trabalho material do tra-balho não-material: enquanto o primeiro se refere ao processo de produção de bens materiais necessá-rios à existência humana, o segundo, que se relacio-na ao “conhecimento das propriedades do mundo real (ciência), de valorização (ética) e de simboli-zação (arte)”, constitui o instrumento que permite antecipar em idéias a ação do trabalho material.

A princípio, é nessa segunda categoria que se situa a educação. Contudo, o autor afirma que o trabalho não-material possui duas modalidades: a primeira, relativa às atividades em que há separação entre o produto e o produtor, nas quais existe um intervalo entre a produção e o consumo, como por exemplo, nos casos dos livros e dos objetos artísti-cos; a segunda modalidade abrange as atividades em que o produto não se separa do ato de produção e não há intervalo entre produção e consumo, como é o caso da atividade docente em sala de aula:

[...] se a educação não se reduz ao ensino, é certo, entretanto, que ensino é educação e, como tal, par-ticipa da natureza própria do fenômeno educativo. Assim, a atividade de ensino, a aula, por exemplo, é alguma coisa que supõe, ao mesmo tempo, a presen-ça do professor e a presença do aluno. Ou seja, o ato de dar aula é inseparável da produção desse ato e de seu consumo, a aula é, pois, produzida e consumida ao mesmo tempo (produzida pelo professor e con-sumida pelos alunos). (Saviani, 1997, p. 16-17).

Assim, vê-se que a educação (sua natureza) constitui um “trabalho não-material”, no qual o ato de produção e o ato de consumo se imbricam. Tal fenômeno está relacionado à produção de “idéias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes, ha-bilidades. Assim, [...] trata-se da produção do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre

a cultura, isto é, o conjunto da produção humana” (Saviani, 1997, p.16).

Quanto à especificidade da educação, o au-tor aponta que: considerando que a natureza humana não é um dado inato ao homem, mas por ele produzida, o “trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produ-zida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (Saviani, 1997, p.17). Nesse sentido, o autor assevera que o objeto da educação compre-ende, concomitantemente, a definição dos ele-mentos culturais (que precisam ser assimilados pelos indivíduos para que eles se tornem huma-nos) e a descoberta das formas mais adequadas para se atingir esse objetivo.

O primeiro aspecto do objeto educacional se re-fere ao ato de distinguir entre o que é essencial e o que é supérfluo para a produção do gênero huma-no, trata-se, pois, da definição de conteúdos. Para a efetivação deste ato, o autor chama a atenção para a idéia de “clássico”, ou seja, aquilo que resis-tiu ao tempo, que se afirmou como fundamental: “que não se confunde com o tradicional e também não se opõe, necessariamente, ao moderno e muito menos ao atual” (Saviani, 1997, p.18). O segun-do aspecto refere-se à organização dos conteúdos, bem como dos espaços, tempos e procedimentos para o desenvolvimento do trabalho pedagógico:

[...] o homem não se faz homem naturalmente; ele não nasce sabendo ser homem, vale dizer, ele não nasce sabendo sentir, pensar, avaliar, agir. Para saber pensar e sentir; para saber querer, agir ou avaliar é preciso aprender, o que implica o trabalho educativo. Assim, o saber que diretamente interes-sa à educação é aquele que emerge como resultado do processo de aprendizagem, como resultado do trabalho educativo. Entretanto, para chegar a esse resultado a educação tem que partir, tem que tomar como referência, como matéria-prima de sua ativi-dade, o saber objetivo produzido historicamente (Sa-viani, 1997, p. 11, itálicos nossos).

A conceituação de Saviani sobre a especificida-de da educação remete ao conhecimento sistema-tizado (o saber advindo da ciência), e à educação formal (a escola, entendida como a “instituição cujo papel consiste na socialização do saber siste-matizado”), ou seja:

Vejam bem: eu disse saber sistematizado; não se trata, pois, de qualquer tipo de saber. Portanto, a

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escola diz respeito ao conhecimento elaborado e não ao conhecimento espontâneo; ao saber sistematiza-do e não ao saber fragmentado; à cultura erudita e não à cultura popular (Saviani, 1997, p. 19).

Neste ponto, cabe indagar: o saber que está sendo produzido na sociedade capitalista não se configura como um saber voltado apenas para a concretização dos interesses do capital? Logo, a transmissão deste saber (pela escola) às camadas populares não reafirmaria os interesses burgue-ses, em detrimento dos interesses populares, sen-do, conseqüentemente, danoso à superação da ordem capitalista? Ao abordar estas questões, Sa-viani (1997, p.94) assinala, primeiramente, que a produção do saber é realizada historicamente pelo conjunto dos homens, e não apenas pelas classes dominantes. Por essa razão, mesmo sendo apropriado pela burguesia, o saber não se reduz a algo inerentemente burguês. Em outras palavras, o que se chama de “saber burguês” representa na verdade um conhecimento que foi apropriado pela burguesia e colocado por ela ao seu serviço.

Assim, a questão fundamental para o desenca-deamento das transformações sociais necessárias para a superação do capitalismo não estaria em de-finir o saber erudito como puramente burguês, e tampouco a cultura popular como meramente po-pular, nem buscar ofertar às massas apenas o saber popular, negando-lhe o erudito, e sim viabilizar o acesso das camadas populares ao saber sistematiza-do, permitindo-lhes expressar de forma elaborada os seus interesses (Saviani, 1997).

Partindo do pressuposto de que cultura popu-lar é a cultura que o povo domina, Saviani (1997, p.94) sustenta que, a partir do momento em que o povo passar a dominar o saber sistematizado, este deixará de ser um privilégio das elites e se tornará popular. Aqui se revela a importância da escola, pois é por meio dela que o povo poderá ter acesso ao saber sistematizado. A escola, po-rém, é entendida de forma dialética, isto é, não se reduz a um instrumento estritamente a serviço da burguesia contra as camadas populares. Se, por um lado, o autor reconhece que ela é uma insti-tuição determinada pela sociedade capitalista, por outro, aponta que essa determinação é relativa e apresenta uma forma de ação recíproca, ou seja, ao mesmo tempo em que a escola é determinada pela sociedade, ela reage a esta ação, interferindo na sociedade e podendo impulsionar transforma-ções. Portanto, “determinado também reage sobre

o determinante” e deste modo a escola também pode ser um instrumento dos trabalhadores na luta contra a burguesia (Saviani, 1997, p. 107).

Nessa perspectiva, a aquisição do conheci-mento sistematizado pelas massas pode consistir numa ameaça à ordem estabelecida. Não é por acaso, adverte o autor, que as classes dominan-tes têm negado o saber sistematizado às camadas populares, como forma de perpetuar sua condi-ção e privilégios. Outro ponto interessante dessa análise é que isto não se refere apenas ao fato de se negar ao povo o acesso à escola, mas também pela desvalorização e secundarização desta, isto é, pelo ato de alienar a escola daquilo que lhe é específico: a transmissão do conhecimento pro-duzido historicamente pelo homem:

[...] a expansão da oferta de escolas consisten-tes de modo a atender a toda a população significa que o saber deixa de ser propriedade privada para ser socializado. Tal fenômeno entra em contradição com os interesses atualmente dominantes. Daí, a tendência a secundarizar a escola esvaziando-a de sua função especifica, que se liga à socialização do saber elaborado, convertendo-a numa agência de assistência social, destinada a atenuar as contradi-ções da sociedade capitalista (Saviani, 1997, p.115, itálicos nossos).

É forçoso abrirmos um parêntese para evi-denciar que a tendência apontada por Saviani – de que a escola destinada às camadas populares pode estar negligenciando sua função social de transmitir o conhecimento sistematizado e se de-dicando apenas a atenuar os problemas gerados pelo capitalismo – parece estar se concretizando de maneira acelerada. Enquanto os setores domi-nantes e o Estado têm insistido em afirmar que o acesso à escola pública de ensino fundamental foi universalizado no país (ou seja, que finalmente as camadas populares estão tendo acesso ao saber escolar), até mesmo avaliações realizadas por ór-gãos governamentais revelam que os alunos têm concluído o primeiro ciclo do ensino fundamen-tal (até a 4ª série) sem terem assimilado conheci-mentos elementares, como o domínio da leitura, da escrita e das operações matemáticas básicas.

Conforme o Relatório 2003 do Sistema Nacio-nal de Avaliação da Educação Básica (SAEB)1, a

1 Disponível em: <http://www.inep.gov.br/down-load/saeb/2004/resultados/BRASIL.pdf>. Acesso em: 20 jan. de 2008.

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aferição de desempenho em leitura, realizada com os estudantes da 4ª série do ensino fundamental, é elaborada com base numa escala de desempenho entre 0 a 375 pontos2, sendo que o patamar su-perior a 200 pontos de proficiência é considerado próximo ao adequado: “pois nesse ponto os alunos consolidaram habilidades de leitura e caminham para um desenvolvimento que lhes possibilitarão seguir em seus estudos com bom aproveitamento”. No entanto, os dados revelam (Tabela 1) que nos últimos anos esse índice jamais foi alcançado e, o que é mais preocupante, a média de 2005, mesmo sendo superior às de 1999, 2001 e 2003, sofreu

2 Esta escala, bem como a que se refere à escala de matemática, não estão presentes no SAEB 2005. In-dagado pelo jornal “O Globo” sobre qual a pontuação mínima empregada pelo SEAB 2005 para determinar a proficiência em leitura, escrita e matemática, o atual Ministro de Educação, Fernando Haddad, esquivou-se, dizendo: “O MEC sabe, mas eu não vou te dizer hoje”. Deste modo, tomaremos como base de análise as escalas de 2003. Disponível em: <http://www.oglobo.globo.com/educacao/mat/2007/02/07/294487599.asp.>. Acesso em: 20 jan. de 2008.

um decréscimo em torno de 9% em relação à mé-dia obtida em 1995.

Em Matemática, na 4ª série, a escala é mensura-da de 0 a 425 pontos, considerando-se 200 pontos como uma média satisfatória para esse nível de es-colarização, uma vez que:

O desenvolvimento de algumas habilidades, como efetuar as quatro operações aritméticas, é importante para a resolução e aplicação de pro-blemas de média e alta complexidade. Se o estu-dante não dominar esse pré-requisito, estará pros-seguindo em sua trajetória escolar com déficits que comprometem ainda mais o seu aprendizado. Além disso, saber somar, dividir, multiplicar e subtrair é essencial no próprio cotidiano da vida moderna para, por exemplo, pagar uma conta ou calcular os juros de uma prestação (SAEB, 2003, p.8, itá-licos nossos).

Contudo, a exemplo do que ocorre em Língua Portuguesa, em Matemática o patamar mínimo também não vem sendo alcançado; além disso, as médias de 2005, mesmo sendo superiores às dos anos de 1999, 2001 e 2003, sofreram uma queda de aproximadamente 5% em relação a 1995 e 1997.

Tabela 1 – Médias de proficiência obtidas por estudantes de 4ª série do ensino fundamental em língua portuguesa e matemática no SAEB entre os anos de 1995 e 20053

1995 1997 1999 2001 2003 2005

Português 188 186 171 165 169 172

Matemática 191 191 181 176 177 182

Fonte: INEP, 2005

Gráfico 1 – Médias de proficiência obtidas pelos alunos de 4ª série do ensino fundamental em língua portuguesa e matemática no SAEB nos anos de 1995 e 2005

3 Disponível em: <http://www.inep.gov.br/download/saeb/2005/SAEB1995_2005.pdf>. Acesso em: 20 jan. de 2008.

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Fonte: INEP, 2005.

O período ilustrado pelo Gráfico 1, que marca a queda de rendimento dos estudantes de 4ª série, coincide com a implantação da reforma neoliberal implantada pelos dois governos de Fernando Hen-rique Cardoso. É também nesse período que foi implantada no Estado de São Paulo uma reforma educacional denominada “Escola de Cara Nova” (1996), que adotou medidas como: progressão con-tinuada, avaliação externa, salas ambientes e peda-gogia de projetos, além da flexibilização do ensino médio e inserção de professores coordenadores pe-dagógicos em todas as escolas da rede estadual etc. Essa reforma fora “formatada sob a influência da ideologia neoliberal e financiada pelo Banco Mun-dial” (Fernandes, 2004, p.100).

Duarte (2006, p. 6) chamou de “pedagogias do aprender a aprender” ao conjunto formado pelo construtivismo, pela Nova Escola, pela pedagogia das competências, pela pedagogia do professor re-flexivo, pela pedagogia dos projetos e pelo multicul-turalismo – todos constituindo parte do “modismo pedagógico” no Brasil. Este autor aponta quatro ca-racterísticas centrais do lema aprender a aprender: primeira “são mais desejáveis as aprendizagens que o indivíduo realiza por si mesmo, nas quais está au-sente a transmissão, por outros indivíduos, de co-nhecimentos e experiências” (2008, p.7). Destaca, ainda, que nessa perspectiva o aprender sozinho proporcionaria o aumento da autonomia do estu-dante, enquanto a transmissão de conhecimentos por outros indivíduos não apenas seria improdutiva para o desenvolvimento da autonomia, mas se tor-naria um obstáculo a esta. Esta premissa é refutada:

Não discordo da afirmação de que a educação escolar deva desenvolver no indivíduo a autonomia

intelectual, a liberdade de pensamento e de expres-são, a capacidade e a iniciativa de buscar por si mesmo novos conhecimentos. Mas o que estou aqui procurando analisar é outra coisa: trata-se do fato de que as pedagogias do “aprender a aprender” esta-belecem uma hierarquia valorativa, na qual apren-der sozinho situa-se em um nível mais elevado de aprendizagem que o resultante da transmissão de conhecimentos por alguém. Ao contrário deste princípio valorativo, entendo ser possível postular uma educação que fomente a autonomia intelectual e moral por meio da transmissão das formas mais elevadas e desenvolvidas do conhecimento social-mente existente (Duarte, 2008, p. 8).

A segunda característica está profundamente relacionada à primeira: seria mais importante para o estudante apoderar-se do método científico para a elaboração, descoberta e construção de conheci-mentos, do que adquirir o conhecimento já pro-duzido socialmente. A terceira característica aponta para a concepção de educação como algo funcional: “a atividade do aluno, para ser verdadeiramente educativa, deve ser impulsionada e dirigida pelos interesses e necessidades da própria criança (...), é preciso que a educação esteja inserida de maneira funcional na atividade da criança” (Duarte, 2008, p.9-10). Por fim, a quarta característica diz respeito à concepção de educação como um processo adap-tativo, ou seja, como um processo destinado a ajus-tar os indivíduos à realidade existente, ou seja, à sociedade capitalista; o aprender a aprender seria, portanto:

(...) uma arma na competição por postos de trabalho, na luta contra o desemprego. O aprender a aprender aparece assim na sua forma mais crua,

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mostrando seu verdadeiro núcleo fundamental: trata-se de um lema que sintetiza uma concepção educacional voltada para a formação, nos indiví-duos, da disposição para uma constante e infati-gável adaptação à sociedade regida pelo capital. O caráter adaptativo dessa pedagogia está bem evi-dente. Trata-se de preparar os indivíduos, forman-do neles as competências necessárias à condição de desempregado, deficiente, mãe solteira etc. Aos educadores caberia conhecer a realidade social não para fazer a crítica a essa realidade e constituir uma educação comprometida com as lutas por uma transformação social radical, mas sim para saber melhor quais competências a realidade social está exigindo dos indivíduos (DUARTE, 2008, p. 11- 12, itálicos nossos).

Consequentemente, evidencia-se que, embora as pedagogias do aprender a aprender tenham sido apresentadas como algo progressista, inovador, na verdade elas são mecanismos conservadores: não valorizam o conhecimento produzido socialmente, tampouco a função social da escola e do professor como agentes que atuam na transmissão deste co-nhecimento, ou seja:

O indivíduo humano se faz humano aproprian-do-se da humanidade produzida historicamente. O indivíduo se humaniza reproduzindo as caracterís-ticas historicamente produzidas do gênero humano. Nesse sentido, reconhecer a historicidade do ser hu-mano significa, em se tratando do trabalho educati-vo, valorizar a transmissão da experiência históri-co–social, valorizar a transmissão do conhecimento socialmente existente (Duarte, 1996, p.35).

A incorporação das pedagogias do aprender a aprender no ensino público brasileiro está relacio-nada com a defesa dos interesses capitalistas de negar à grande parcela da população o conheci-mento necessário para ampliar a possibilidade de sua emancipação, para a construção de uma nova sociedade. Exames desenvolvidos por órgãos in-ternacionais também indicam a baixa qualidade do ensino brasileiro. Os resultados4 do Programa Internacional de Avaliação por Aluno (PISA)5 de 2006, divulgados pelo Ministério da Educação (MEC), mostram que o Brasil – como nos exames de 2000 e 2003 – obteve médias muito inferiores à média total dos demais países avaliados em lei-tura, ciências e matemática, e ficou atrás, inclusi-ve, de países de mais pobres, como Macau, Chile, Jordânia etc. Como mostra a Tabela 2, em 2006 a média brasileira de desempenho dos estudantes em Ciências foi 18% menor que a média total dos países avaliados, em leitura foi 14% menor e em matemática 22%.

4 Disponível em: <http://www.inep.gov.br/interna-cional/pisa/Novo/oquee.htm.>. Acesso em: 20 jan. de 2008.

5 O PISA consiste numa aferição de desempenho trienal, de conhecimentos e competências, aplica-da a estudantes com idade aproximada de 15 anos. Em 2006 participaram do PISA 57 países: os 30 que eram membros da Organização para a Coo-peração e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e outros 27 convidados (entre os quais o Brasil), abrangendo mais de 400.000 estudantes.

Tabela 2 – Comparação entre o desempenho médio em ciências, leitura e matemática de estudantes brasileiros e dos demais países em 2006

2000 2003 2006Média total dos demais

países em 2006

Ciências 375 390 390 461

Leitura 396 403 393 446

Matemática 334 356 370 454

Fonte: INEP, 2006

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O Estado de São Paulo, que detém cerca de 30% do PIB nacional – e talvez tenha sido a unidade fe-derativa brasileira que mais se empenhou na im-plantação de medidas neoliberais –, obteve médias muito modestas no PISA (com desempenho infe-rior a Estados mais pobres, como Paraíba e Sergi-pe), ficando abaixo da média nacional em ciências e leitura, e apenas igualando-a em matemática.

Diante desse quadro, parece estar se constituindo no país um discurso conservador que responsabili-za unicamente os docentes pelo fracasso escolar dos alunos. Entretanto, parece mais provável que o baixo desempenho dos estudantes do ensino fundamental em aspectos básicos como leitura e escrita se deva, em grande parte, ao impacto das medidas neolibe-rais – concretizadas pelas pedagogias do aprender a aprender – no interior da escola, isto é, na sala de aula. Portanto, a situação em tela seria decorrente da própria política educacional adotada no Brasil, que, ao que tudo indica, tem realmente desvalorizado a es-cola pública como instituição socializadora do saber elaborado, buscando assim convertê-la, como aponta Saviani (1997), numa agência de assistência social.

É importante esclarecer que temos consciência de que as políticas neoliberais procuram disseminar a ideia de uma suposta superioridade qualitativa do

setor privado sobre o público, e que exames gover-namentais como os que utilizamos aqui são muitas vezes usados para corroborar esta tese. Entretanto, nossa intenção, ao abordar os exames citados, foi apenas evidenciar que há iniciativas governamen-tais que revelam que o ensino oferecido pelo Estado às camadas populares é de baixa qualidade, o que remete a outra discussão: que existem no país dois tipos distintos de escolas – uma dedicada aos po-bres e outra dedicada aos ricos.

Enfim, vê-se que o conceito de educação defen-dido por Saviani (1997) se mostra comprometido com os interesses humanos, estando concatenado com dois aspectos importantes para a transformação social: primeiro, os interesses imediatos das camadas populares, que poderão obter por meio da escola o conhecimento necessário para compreender e inter-pretar a realidade, e também para atender às exigên-cias do mundo do trabalho; segundo, a socialização dos bens de produção, movimento necessário, como afirma Duarte (2008; 2006; 1993), para a superação do capitalismo. Aliás, tal formulação coloca em relevo a necessidade de universalizar o acesso ao conheci-mento sistematizado, o que implica a luta por uma escola efetiva, empenhada em transmitir/socializar o saber necessário para a formação do gênero humano.

ReferênciasANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Centralidade sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do tra-balho. São Paulo: Ed. Unicamp, 1998.

BAHRO, R. A alternativa para uma crítica do socialismo realmente existente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

DUARTE, N. Sociedade do conhecimento ou sociedade das ilusões? Coleção Polêmicas do Nosso Tempo. Campinas: Autores Associados, 2008.

_____. A pesquisa e a formação de intelectuais críticos na Pós-Graduação em Educação. Florianópolis: Perspectiva, v.24, n.1, p.89-110, jan/jun. 2006.

_____. A individualidade para-si (contribuição a uma teoria histórico-social da formação do indivíduo). Coleção Educação Contemporânea. Campinas, SP: Autores Associados, 1993.

Tabela 3 – Médias do Estado de São Paulo no PISA/2006 em comparação com as médias nacionais em ciências, leitura e matemática

Médias de São Paulo Médias Nacionais

Ciências 385 390

Leitura 392 393

Matemática 370 370

Fonte: INEP, 2006

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Adriano Moreira é pedagogo, professor e vice-diretor de Educação Básica com mestrado em Educação Escolar pela FCLAr/UNESP. E-mail: <[email protected]>.

Recebido para avaliação em outubro de 2010. Aprovado para publicação em março de 2011.

FERNANDES, M.J.S. Problematizando o trabalho do professor coordenador pedagógico nas escolas públicas estaduais paulistas. Dissertação (Mestrado em Educação Escolar) – Faculdade de Ciências e Letras, Uni-versidade Estadual Paulista, Araraquara, 2004.

MARX, K. Manuscritos Econômicos Filosóficos. Coleção Obra-prima de cada autor. São Paulo: Martin Claret, 2001.

MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.

_____. Marx: a teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 6ª Edição. Coleção Polemicas do Nosso Tempo. Campinas: Editora Autores Associados, 1997.

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ResumoCom a implantação da Televisão Digital, cada vez mais os equipamentos se modernizam para atender

às demandas pela democratização da informação que deve chegar a todas as residências brasileiras. Abre-se, assim, um espaço para a discussão sobre as diversas direções que pode tomar a usabilidade aplicada à interatividade do ISDB-Tb (Sistema Brasileiro de Televisão Digital). O presente trabalho aborda, além das questões ligadas ao conceito de usabilidade, os temas relacionados com o ciclo de vida das tecnolo-gias – tempo de existência e obsolescência –, trabalha a definição da interatividade na Televisão Digital à medida que ela é responsável pelo surgimento de um novo contingente de interagentes que abrange tanto os usuários de computadores e aparelhos portáteis quanto os simples telespectadores passivos. É possível concluir, portanto, que a Interação Humano-TV Digital (IHTVD) compreende a sinergia entre os três ac-tantes da televisão digital: o telespectador coletivo ou não; a interface apresentada; e o emissor, que pode ser representado por um serviço de Inteligência Artificial (IA).

Palavras-chave: Televisão Digital – Interação Humano –TV Digital – Usabilidade.

AbstractWith the development of Digital TV, the equipments are becoming more and more modernized in order to popular-

ize the information that soon might reach all Brazilian families. That way, we open a space for discussion about the many directions that the usability applied on ISDB-Tb interactivity (Brazilian System of Digital Television) can take. This paper approaches the questions connected to the concept of usability and also the subjects related to the life cycle of some technologies (existence time, obsolescence) Also talks with the definition of interactivity

Interação humano-TV digital (IHTVD) e interatividade*

BIZELLI, José LuisSOUZA, Maicon Ferreira de

* Versão atualizada de trabalho apresentado na VI Conferência Brasileira de Mídia Cidadã - I Conferência Sul-Americana de Mídia Cidadã, 2010, Pato Branco. Mídia Cidadã, 2010: SOUZA, M. F., GRANDO, R. K., SCHIMMELPFENG, L. E., AMARAL, S. F. A Interação Humano-Televisão Digital (IHTVD) no Sistema Brasil-eiro. Disponível em: <http://www.unicentro.br/redemc/2010/Artigos/A%20Intera%E7%E3o%20Humano-Televis%E3o%20Digital.pdf>.

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on Digital Television since it is responsible for the emergence of a new contingent of interacting people which goes from the computer and portable equipments users to the passive TV viewers. It’s possible to conclude that the Human-Digital TV Interaction (HDTVI) comprehends the synergy between three actants on Digital TV: the col-lective (or not) TV viewer; the interface and the issuer who can be represented by an Artificial Intelligence (AI) service.

Keywords: Digital Television – Interaction Human-Digital TV – Usability.

A Televisão Digital aberta brasileira é um avanço tecnológico significativo cada vez mais presente no cotidiano da população brasileira, tanto pelo seu con-teúdo, como pelo modelo de negócios que apresenta. Pesquisas indicam que 92% das residências brasilei-ras possuem aparelhos de televisão e, de acordo com decreto presidencial, até 2016 todos esses aparelhos deverão estar adaptados para receber o sinal digital.

A implantação da TV digital tem sua maior de-fesa alicerçada na possibilidade de permitir um meio democrático para dar acesso à informação – e formação – a todos os 189 milhões de brasileiros, independentemente de sua classe, perfil ou gênero, consolidando a comunicação de massa no país.

Conforme Bentes (1998), temos dois perfis de brasileiros: um, constituído pelos que sofrem por falta de informação, tendo apenas contato oral e au-diovisual por meio da mídia; e outro, caracterizado pela população mais favorecida econômica e cultu-ralmente, que passa pelo processo inverso: sofre por excesso de informações, com “impossibilidade de decodificar e assimilar a quantidade de dados que recebe” (Bentes, 1998, p. 2).

Os dados de tecnologia, informação e inclusão divulgados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 2008, apresentam níveis assustadores de desuso de computadores pelos brasileiros. Tomando o com-putador como a ferramenta símbolo das Tecnolo-gias de Informação e Comunicação (TIC), é possível perceber o quão distante estamos da sociedade do conhecimento: cerca de 54% dos brasileiros nunca utilizaram um computador; 67% nunca navegaram na internet; e muitos sequer sabem manusear um telefone celular.

Esses dados expressam claramente a necessida-de de uma reflexão mais profunda sobre o alcance e a eficácia da inserção dos brasileiros nas novas TIC a partir da consolidação da TV digital aberta. Mes-mo que a TVDI chegue, em 2016, à casa de cada cidadão, quais as reais chances de que a convergên-cia tecnológica multimeios – computador, celular e TV – venha a se concretizar?

Em um cenário futuro, com o desenvolvimento natural das habilidades de uso intuitivo do compu-tador, da Televisão Digital e de outras TIC, não é possível pensar que as deficiências da informação estarão solucionadas. Assim, é prudente concordar com a afirmação de que, “tratando-se de um novo conceito de interatividade, os telespectadores terão muita dificuldade ao operar quaisquer aplicativos de forma satisfatória” (Brackmann, 2009, p. 23).

A dificuldade de manuseio afasta usuários de computadores, aparelhos de CDs ou DVDs, ou de quaisquer aparelhos tecnológicos, isto é, “se algo for difícil de usar, eu não o uso tanto” (Krug, 2006, p. 5). Essas condições de facilidade no manuseio constituem o foco de muitas pesquisas. Por con-cordar com essa linha de raciocínio, este artigo se deterá nas várias possibilidades de abordar a usabi-lidade na interatividade do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (ISDB-Tb).

Ciclo de vida, temporalidade e aprendizagem

A tecnologia potencializa nossas habilidades, além de acelerar processos e tarefas. A Televisão Di-gital, como qualquer outra tecnologia, possui um ciclo de vida, e neste contexto é possível estabelecer diferentes relações dos consumidores no tempo com esse ciclo de vida, conforme expresso na Figura 1.

A maturação de uma tecnologia passa por al-terações no perfil de usuário, o que, por sua vez, imprime ao produto uma constante modificação (Figura 1): no início do processo, entusiastas e visionários guiam as expectativas sobre o desem-penho e o avanço tecnológico da novidade; numa segunda etapa, surgem os novos pragmáticos que discutem com conservadores e céticos que querem cada vez mais soluções, convergências e rentabili-dade, conforme Figuras 2 e 3:

Em uma associação simbólica entre as Figu-ras 1, 2 e 3, constata-se que, num primeiro mo-mento, os interessados com grande conhecimento sobre a área apresentam as novidades da tecnolo-

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gia a pessoas que acompanham a evolução como expectadores leigos, porém empolgados com as possibilidades e oportunidades. Num segundo momento, após o chamado abismo (Norma ISO 9241-11, 2010), eles se dividem em dois grupos: de um lado, os adeptos da inovação, que procu-ram se especializar na área específica da inova-ção, adquirindo e produzindo conhecimento; e, de outro lado, os conservadores e influentes no mercado, avaliando os riscos da mudança preten-dida. Os sistemas e tecnologias contemporâneos estão voltados para atendimento das necessidades dos usuários (sistemas antropocêntricos). Duran-te o processo de maturação de uma tecnologia, há sempre a necessidade de pensar em quem está ou estará fazendo uso dela, e como toda tecnolo-gia surge para modificar uma prática anterior, sempre causará um impacto e mudanças de com-porta-mento resultando em novas aprendizagens.

Figura 1: Ciclo de vida da tecnologia

Fonte: Pedro Campos Apud Norman, 2010, p.3

Figura 2: Curva de Interesse por produtos

Fonte: Pedro Campos Apud Norman, 2010. p.3

Figura 3: Curva de aprendizagem dos usuários no sis-tema

Fonte: Labituil – UFSC Apud Nielsen 1993, p.8

Os sistemas e tecnologias sempre estão vol-tadas para o atendimento das necessidades dos usuários no universo antropocêntrico. Durante o processo de maturação de uma nova tecnologia, há sempre necessidade de pensar em quem está ou estará fazendo seu uso, projetando um cami-nho entre a prática anterior e os impactos e mudanças de comportamento resultantes das novas aprendi-zagens produzidas.

Quando se pensa a convivência do usuário com a Interatividade do SBTVD, é necessário analisar sua interface através do controle remoto, que deve oferecer opções de abordagem sim-ples, fácil e com alta taxa de auto-aprendizagem. Essas condições são fundamentais para manter a satisfação do usuário, mesmo quando eles têm deficiência de formação.

Engenharia da usabilidadeA engenharia da usabilidade é a etapa do pro-

jeto que visa a criar um produto com usabilidade, atuando concomitantemente com o modelo de co-municações e com o algoritmo aplicado. Portanto, está diretamente ligada ao produto, deve ser com-preendida pelo usuário, seja ele leigo ou não, e ob-jetiva a criação de um ambiente de interface de uso confortável, eficiente e eficaz.

Em seu laboratório de produção na Universi-dade de Michigan, David E. Kieras explica que o modelo mais funcional de usabilidade na prototi-pação de interface é o Model-Based Evalution, que consiste em identificar problemas de aprendizado ou de desempenho comparando o desempenho do produto com sua especificação.

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A engenharia da usabilidade precisa estar intrin-secamente estruturada no processo de planejamento de uma interface para a Televisão Digital, seguindo algumas diretrizes e metodologia de testes. Qualquer falha nessa etapa do processo poderá gerar um custo adicional posterior ao lançamento do produto para estabelecer o recall. A Figura 4 apresenta um flu-xograma de engenharia de usabilidade baseada em avaliação de benchmark. Talvez o maior problema da falha no processo de especificação da interface esteja relacionado com a aceitabilidade do produto, o que causa problemas de relacionamento com o usuário.

Os conceitos de usabilidade são bastante diver-sos. Como estamos trabalhando em um ambiente caracterizado pela convergência de multimeios, assumimos uma determinada posição conceitual, a saber:

Espera-se uma verdadeira transformação do atual conceito de TV a partir da convergência in-tensa com a Internet avançada (fixa e móvel) e o desenvolvimento de meios eletrônicos interativos minimamente invasivos – dispositivos portáteis, interfaces naturais, microsensores e atuadores (Zu-ffo, 2010, p. 6).

Revista Faac – Ano I, Vol. 1, mar-set. 2011 64

processo de especificação da interface esteja relacionado com a aceitabilidade do produto, o que

causa problemas de relacionamento com o usuário.

Figura 4: Modelo de Processo de Engenharia

Fonte: David E. Kieras. Universidade de Michigan, 2010, p.4.

Os conceitos de usabilidade são bastante diversos. Como estamos trabalhando em um

ambiente caracterizado pela convergência de multimeios, assumimos uma determinada posição

conceitual, a saber:

Espera-se uma verdadeira transformação do atual conceito de TV a partir da convergência intensa com a Internet avançada (fixa e móvel) e o desenvolvimen-to de meios eletrônicos interativos minimamente invasivos – dispositivos portá-teis, interfaces naturais, microsensores e atuadores (Zuffo, 2010, p. 6).

Nesse sentido, é preciso considerar que os conceitos de usabilidade aplicados à televisão

analógica sofreram transformações, em decorrência da convergência para os multimeios. O Qua-

dro 1 apresenta alguns conceitos relativos à usabilidade.

Fonte: David E. Kieras. Universidade de Michigan, 2010, p.4

Figura 4: Modelo de Processo de Engenharia

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Nesse sentido, é preciso considerar que os conceitos de usabilidade aplicados à televisão analógica sofreram transformações, em decor-

rência da convergência para os multimeios. O Quadro 1 apresenta alguns conceitos relativos à usabilidade.

Jakob Nielsen (1993)Jakob Nielsen (1993) – considerado um dos

precursores e expoentes dos estudos sobre usabili-dade mundial –, que começou a estudar o assunto na década de 1990, concluiu que a principal reco-mendação para a construção de interfaces é o de-senvolvimento através da utilização de elementos simples, sem rebuscamento, sem uso de tecnologias avançadas ou formatações e gráficos que possam dificultar ou enriquecer excessivamente a interface, sobretudo quando ela é direcionada a um público com pouca experiência.

Nielsen vê a simplicidade e a objetividade como tarefas centrais a serem atingidas pelo de-signer durante a produção de todos os elementos do projeto. A economia de informação e de ele-mentos é fundamental para o site ser funcional: se a interface pode funcionar sem um elemento, elimine-o. O acesso ao site de Nielsen [http://www.useit.com] permite verificar um trabalho de cria-ção predominantemente baseado na linguagem

HTML, formato declarativo que possui potencia-lidades limitadas, não permitindo comportamen-tos avançados do ambiente web. Nota-se também a ausência de imagens.

Uma possível reflexão sobre essas concepções (Nielsen, 1993) que gravitavam em um ambien-te de baixa velocidade de transmissão leva-nos a considerar que hoje, com o desenvolvimento das tecnologias de rede, a recomendação de não usar elementos lúdicos perdeu sua utilidade, permi-tindo a criação de interfaces mais atrativas tanto pelo conteúdo quanto pela forma. Uma base para essa reflexão é a pesquisa realizada por Hosbond (2005), que aponta para a relevância de design e de interface em projetos competitivos.

Google TV

Em maio de 2010, a Corporação Google-I/O (responsável pelo site http://www.google.com.br) anunciou o lançamento da Google TV, IPTV que,

Quadro 1 – Conceitos de Usabilidade

Autor/Referência Ano Conceito

POKORNY 1986

A usabilidade refere-se à capacidade de um produto de ser compreendido, aprendido, utilizado e ser atrativo para o utilizador, em condições específi-

cas de utilização.

ISSO/IEC 9126 1991

A engenharia de software define usabilidade como uma etapa na qual se prepara o produto para atingir usos específicos com efetividade, eficiência e

satisfação em um determinado contexto de uso.

NIELSEN 1993Indica que usabilidade e utilidade se trabalham concomitantemente para

compor a noção de qualidade em uso.

NIELSEN 1993

Define usabilidade como uma medida da qualidade da experiência do usuário ao interagir com alguma coisa, que pode ser um site na internet, um aplicativo de software tradicional, ou qualquer outro dispositivo que

o usuário possa operar e usar de alguma forma.

SCAPIN apud WAISMAN (2006) 1993

Considera que a usabilidade está diretamente ligada ao diálogo na interface e é a capacidade do software em permitir que o usuário alcance suas metas

de interação com o sistema.

THE HISER GROUP 1997A propriedade de habilitar o usuário a realizar a tarefa que está preparada

para realizar sem a tecnologia atrapalhando-o.

QUICO E DAMÁSIO 2004A usabilidade preocupa-se especialmente com seu utilizador final, as suas

características e as suas necessidades.

THAIS WAISMAN 2006A usabilidade visa à minimização do gap entre a máquina e a percepção do

usuário.

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segundo Rishi Chandra, “promete revolucionar o futuro da televisão”. Chandra afirma que a popu-lação norte-americana dedica aproximadamente 5 horas de seu dia assistindo televisão, e gasta aproxi-madamente US$ 70 bilhões em propaganda.

A ideia da Google é reunir os melhores atributos da web com os melhores da televisão, criando uma nova plataforma de vídeo em tela grande e com alta qualidade. Em outras palavras, o objetivo desse projeto é combinar a boa usabilidade da televisão analógica com os melhores conteúdos da internet.

A Google TV [http://www.google/tv/develope/#designing-for-tv] disponibiliza orientações para de-

senvolvedores de interface IPTV Google:

Entenda que o conteúdo é o fundamental

Faça os usuários chegarem ao conteúdo o •mais rápido e fácil possível.Não interrompa enquanto os usuários estejam •assistindo TV. Invés disso, faça com que a ex-periência de assistir seja boa. Respeite o contexto da sala de estar.•Pense sobre o que os usuários vão e não vão •querer fazer enquanto estão vendo TV com seus amigos e família.Lembre-se que a TV é social.•Considere quantos grupos podem usar seu •site ou suas aplicações.Ofereça formas de uso individual para usar seu •site ou aplicativos em contextos sociais.Aprenda sobre os prós e contras do áudio e •da tela.A tela da TV é maior e as cores aparecem •diferentes.Textos devem ser lidos à distância. •Som agora é um elemento de interface viável.•Torne tudo fácil.•Ofereça escolhas simples e faça as ações ser-•em óbvias e fáceis de selecionar.Proporcione uma navegação que possa ser fá-•cil para um controle remoto.

Normas padronizadas relativas a interfaces

A International Organization for Standardization (ISO) é o padrão internacional definido para se produ-zir objetos seguindo uma padronização de qualidade. A entidade que atua como organizadora de métodos e padrões no Brasil é a ABNT/NBR. Muitas normas em uso são derivadas ou complementares de outras.

ISO 9126 – Qualidade de produto e software

Norma publicada em 1998, que determina itens que devem ser planejados durante o processo de desenvolvimento de produto. Conforme Martinho (2008) “qualidade é o grau no qual um conjunto de características inerentes satisfaz aos requisitos”, o que pode ser traduzido pelo esquema da figura 5.

Figura 5: Esquema de qualidade Total de gestão continua

Revista Faac – Ano I, Vol. 1, mar-set. 2011 68

ISO 9126 – Qualidade de produto e software

Norma publicada em 1998, que determina itens que devem ser planejados durante o pro-

cesso de desenvolvimento de produto. Conforme Martinho (2008) “qualidade é o grau no qual

um conjunto de características inerentes satisfaz aos requisitos”, o que pode ser traduzido pelo

esquema da figura 5.

Figura 5: Esquema de qualidade Total de gestão continua

Fonte: Fabio Martinho, 2008, p.1.

Organiza-se, assim, um método de qualidade contínua e total na gestão do produto, base-

ado nos três pilares: foco no consumidor, processo de melhoria e lado humano da qualidade. O

foco no consumidor e no processo de melhoria deve possibilitar a manutenção do o contato com

o consumidor, objetivando descobrir as dificuldades e eventuais necessidades de melhoria no

produto, e o lado humano da qualidade visa interpretar as dificuldades dos usuários e, assim, pro-

ver documentação e adaptações de uso.

Conforme a Figura 6, a qualidade interna e externa está dividida em seis áreas: funcionabi-

lidade, rentabilidade, usabilidade, eficiência, manutenibilidade e portabilidade.

Figura 6: Características de qualidade

Fonte: Fabio Martinho, 2008, p.1.

Organiza-se, assim, um método de qualidade contínua e total na gestão do produto, baseado nos três pilares: foco no consumidor, processo de melhoria e lado humano da qualidade. O foco no consumidor e no processo de melhoria deve possi-bilitar a manutenção do o contato com o consumi-dor, objetivando descobrir as dificuldades e even-tuais necessidades de melhoria no produto, e o lado humano da qualidade visa interpretar as dificulda-des dos usuários e, assim, prover documentação e adaptações de uso.

Conforme a Figura 6, a qualidade interna e ex-terna está dividida em seis áreas: funcionabilidade, rentabilidade, usabilidade, eficiência, manutenibi-lidade e portabilidade.

ISO 13407 – Processo de design de siste-mas interativos centrado em humanos

Esta norma prevê orientações sobre como al-cançar a qualidade durante todo o ciclo de vida do sistema em softwares centrados no humano. In-terpreta o design como uma atividade do usuário multidisciplinar que contempla fatores humanos e ergonomias do conhecimento, juntamente com técnicas que objetivam a melhora da eficiência e da produtividade. Entende que melhorar as con-dições de manuseio do programa e neutralizar possíveis efeitos negativos do produto podem au-mentar o desempenho.

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revistafaac, Bauru, v. 1, n. 1, p. 59-67, abr./set. 2011.BIZELLI, José Luis; SOUZA, Maicon Ferreira de. Interação humano-tv digital (ihtvd) e interatividade.

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Figura 6: Características de qualidade

Fonte: Chris Bunney, 2010, p.1

A ISO 13407 explicita quatro focos das ati-•vidades antropocêntricas:Entender e especificar o contexto de uso.•Especificar os pré-requisitos do usuário e •da organização.Produzir soluções de design.•Comparar o design com os requisitos.•

A norma descrita na ISO 13407 preconiza avaliação a cada etapa completa do desenvolvi-mento da interatividade, sendo que o processo de análise/concepção/testes deve ser periodica-mente replicado para identificar oportunidades e ameaças do projeto. Garante-se, assim, que cada etapa concluída seja testada, atendendo ao objeto principal do processo de design de siste-mas interativos.

ISO/NBR 9241 – Ergonomia de programas de computadores para o trabalho em es-critórios

A ISO 9241 pode ser entendida como comple-mentar à ISO 9126, mais especificamente da subdi-visão chamada usability, que trata a usabilidade re-lativa ao conjunto de: compreensão, aprendizagem, operabilidade, atratividade, tendência de observân-

cia. Forma-se um tripé compreendendo a efetivida-de, a eficiência e a satisfação com que usuários es-pecíficos atingem objetivos especiais em ambientes particulares (Waisman, 2006, p. 45-75).

A abordagem adotada nessa padronização traz benefícios:

A base estrutural apresentada pode servir •como base para identificar aspectos de us-abilidade e de componentes do contexto que devem ser considerados no momento do desenvolvimento do projeto ou na própria avaliação de usabilidade de um produto.Desempenho de eficácia e eficiência e a •satisfação dos usuários são capazes de ser-em usados para medir o grau de usabili-dade do projeto, mesmo em um contexto particular.Os indicadores de performance e satisfação •dos usuários podem fornecer uma base para a comparação de diferentes produtos, mesmo se contiverem diferentes características técni-cas, mas usados no mesmo contexto.A usabilidade aplicada e devidamente docu-•mentada pode ser verificada e seus indicado-res reavaliados.

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ConclusãoSabe-se que a Televisão Digital, como qualquer

tecnologia, tem uma expectativa de ciclo de vida determinado por diversos fatores ligados ao seu próprio uso, fatores sociais e ambientais. No cená-rio dicotômico em que, por um lado, alguns auto-res tratam a interatividade da TV Digital como um aplicativo proveniente da computação ou web, e, por outro, diferentes pesquisadores a tratam como um novo paradigma a ser explorado, faz-se necessá-rio conceituar a interação humano-Televisão Digital (IHTVD). Assim, a IHTVD é derivada da Interação humano-computador?

No contexto da semiótica, o estudo multidisci-plinar das relações de embreagem1 e debreagem2 (Pietroforte, 2004) indica que, entre os agentes hu-manos ou não, temos envolvidos os três actantes da Televisão Digital, a saber: o telespectador coletivo ou não; a interface apresentada; e o emissor que pode ser representado por um serviço de Inteligên-cia Artificial (IA), resultando em melhor compreen-são da conceituação de IHTVD.

O telespectador deve ser abordado conforme seu perfil digital e, consequentemente, de acor-do com o seu nível sociocultural. Cada faixa etá-ria apresenta diferentes aspirações e diferentes

1 Fiorin (2002, p. 43-47) apud Marcelo Freire define esse conceito como “o efeito de retorno à enunciação”, produzido pela neutralização das cat-egorias de pessoa e/ou espaço e/ou tempo, assim como pela denegação da instância do enunciado”. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/pa-pers/regionais/nordeste2007/resumos/R0679-1.pdf>. Acesso em 03 fev 2011.

2 Segundo Greimas e Courtès (1979, p 9) apud Marcelo Freire, “Debreagem consiste, pois, num primeiro momento, em disjungir do sujeito, do es-paço e do tempo da enunciação e em projetar um não-eu, não-aqui e um não-agora.” Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/regionais/nor-deste2007/resumos/R0679-1.pdf>. Acesso em 03 fev. 2011.

abordagens sobre qual uso e que conteúdo deve ser abordado na interatividade coletiva e na inte-ratividade particular por meio de portáteis. Uma grande dificuldade e desafio da TV interativa é aprender usar e trabalhar com ela. Só se poderá obter eficácia e utilidade na interatividade quando se trabalhar de forma personalizada, que é a mes-ma tendência da globalização 3.0, que estabelece a globalização de indivíduos, conforme descrita por Friedman (2005).

Ainda não temos um padrão norteador regu-lamentado para o desenvolvimento de interfaces de interatividade, apenas algumas indicações de criação. A única obrigação que temos de seguir é pensar conforme o perfil do telespectador e os atri-butos genéricos de usabilidade, tais como: aprendi-zagem, eficiência, eficácia, lembrança, baixa taxa de erros, satisfação, visualização, feedback, restrições, mapeamento lógico de uso, affordances, clareza de interface, tempo de espera, pertinência e compati-bilidade do conteúdo interativo, acessibilidade ao controle remoto e operabilidade.

As produtoras e emissoras de conteúdo precisam estar preparadas para essa nova forma de trabalhar com foco no telespectador. Afinal, a mudança do analógico para o digital não representa simples-mente uma melhora no sinal ou a alta definição, é a possibilidade de ir além do modelo de televisão implantado desde 1950. O sistema digital abriria a possibilidade de criação de uma grande diversidade de canais abertos, cabo e IPTV, aumentando assim a concorrência.

A interatividade na Televisão Digital deve atrair tanto os usuários de computadores e aparelhos portáteis quanto os simples telespectadores pas-sivos, criando um novo contingente de usuários interativos, ou interagentes. Portanto, a IHTVD é a sinergia entre os três actantes da televisão digital. Esse conceito abrange aplicações interativas que utilizam os portáteis como ferramenta de parti-cularização da interatividade coletiva apresentada por um aparelho comum.

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José Luis Bizelli é Professor do Programa de Pós-Graduação em Televisão Digital da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (FAAC/UNESP). E-mail: <[email protected]>.

Maicon Ferreira de Souza é publicitário, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Televisão Digital da FAAC/UNESP. E-mail: <[email protected]>.

Recebido para avaliação em agosto de 2010. Aprovado para publicação em fevereiro de 2011.

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ResumoEste artigo é resultado de uma pesquisa e intervenção realizada em uma sala de aula com alunos da 7ª série de

uma escola pública de São Paulo (2007-2009). Esses jovens, amantes do ritmo e da poesia, são descendentes de famílias afro-brasileiras e indígenas Pankararu, oriundas do sertão de Pernambuco, que se alojaram em São Paulo. Observou-se que, apesar de sua história ser conhecida, essa comunidade não se revelou integrada à cultura escolar, e a tendência do corpo discente parecia ser a de negar a herança afro-indígena nordestina. Nesse sentido, o objetivo do trabalho foi investigar e propiciar, pela via poético-musical dos jovens, formas de interlocução com esse passado recente. Assim, a partir de uma pesquisa “etnográfica” rumo ao sertão nordestino, deparamo-nos com as mais ricas produções de poesia popular, as quais forneceram material para algumas intervenções em sala de aula. O trabalho em classe, que contou com a participação de alunos e professores, realizou-se em torno das manifestações do “Cor-del, RAP e Repente”. Tal processo de mistura cultural, convertido em algo próprio, foi uma maneira dos grupos so-ciais discriminados pela sociedade brasileira responderem às exigências de subjetivação e afirmação étnico-social.

Palavras-chave: Linguagem – Culturas Juvenis – Criação Poética – Preconceito étnico-social.

AbstractThis article is the result of a research and intervention for seventh grade students in a classroom at a public school in Sao

Paulo (2007-2009). These rhythm and poetry young lovers descend from Afro-Brazilian and Pankararu indian families who came from the countryside of Pernambuco and settled down in Sao Paulo. We observed that though this community’s history is known, this wasn’t proven integrated to the school culture – the tendency of which seemed to deny the students are Northeastern Afro-Indian descendent. Therefore, the objective of this study was not only to investigate but also to provide the students with ways to dialogue with their recent past by means of their poetic-musical manners. In order to do so we employed an “ethnographic” research in a region in Northeastern Brazil where we found out a very rich popular poetry production to supply us with material for some intervention in class. This task about cultural hybridity, counted on students’ and teachers’ participation, was about “Cordel, RAP and Repente”. We understood that mixing up different styles of poetic production to turn them into their own production was a way for these social groups disregarded by society to answer to demands of subjectifica-tion and ethno-social affirmation.

Keywords: Language – Youth Cultures – Poetic Creation – Ethno-social prejudice.

Culturas juvenis em uma escola pública de São Paulo

FERREIRA, Maíra S.

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O presente artigo tem o objetivo de apresentar um trabalho de campo realizado com jovens alu-nos da 7ª série de uma escola pública de São Paulo (2007-2009). Antes, contudo, é necessário intro-duzir algumas conceituações e reflexões que sus-tentaram a elaboração metodológica criada com os jovens a cada entrada em sala de aula. Também é importante salientar que entendemos essa pesqui-sa e intervenção como um método que envolve, como condição necessária para o enfrentamento das desigualdades, o comprometimento com a bus-ca de alternativas adequadas às diferentes realida-des sociais. Para tanto, conforme El-Khatib e Bra-gatto (2005), assumimos o papel de propositores de ações baseadas na mudança de paradigmas, no abandono de antigas concepções discriminatórias e preconceituosas, na construção coletiva de ações inovadoras por meio das quais acreditamos ser pos-sível produzir rupturas nos discursos e práticas co-muns e, desse modo, mobilizar novos referenciais.

Nesse sentido, para ilustrar o ponto de partida, é importante explicitar o que entendemos por cul-turas juvenis. Concordamos com a formulação de Velho (2006), segundo a qual a juventude perten-ce a uma “categoria complexa e heterogênea” que compõe diferentes “modos de construção social da realidade” sempre a partir de seu ethos, “estilos de vida” e “visões de mundo”.

Pais (2003) apresenta duas leituras possíveis das culturas juvenis. Uma, baseada na ideia de um desenvolvimento prescritivo que vai da infância à idade adulta, que concebe a adolescência e suas peculiaridades como ritos de passagem que se re-petem nesta fase da vida. E outra, que avança, ao atentar para as expressividades juvenis cotidianas, que trata de uma nova sensibilidade e expressivida-de que não é comparável à do adolescente de qual-quer outra geração. Conforme esse autor, os jovens do século 21 conferem às suas expressões artísti-cas, atividades e concepções de mundo conotações “disrruptivas” em relação ao controle e à ordem.

Logo, extravagância, aventura, risco e expe-rimentalismo são categorias importantes para a compreensão das sensibilidades juvenis inseridas em um contexto de estruturas sociais inconstan-tes, descontínuas e fluidas. Assim, é importante notar que esses aspectos têm feito emergir nos jovens uma forte identificação com movimentos inovadores permeados por valores como auten-ticidade, mobilidade, elasticidade e flexibilidade. Conforme Pais (2003), o desenho desse contexto social, cujo “futuro desfuturizado” está governado

pelo princípio da incerteza, aparece, por exem-plo, no destino incerto a que estão sujeitos os alu-nos de escolas públicas brasileiras, que estão mais preocupadas em atender as exigências da buro-cracia do que as necessidades de formação juvenil na periferia das metrópoles.

Se nas décadas anteriores à ditadura a partici-pação juvenil se dava pela filiação a partidos po-líticos e, depois, pela formação de associações de bairro, a partir dos anos 90 o movimento juvenil ganhou outro fôlego, ao promover uma “virada cultural e criativa” com tendências a recusar a ordem institucional global. Esse novo momento político, de abandono dos partidos e das estru-turas institucionais do Estado, deixa de ser reco-nhecido como movimento social – partidário ou ideológico – e passa a ser concebido como parte das culturas juvenis reveladoras de constantes invenções e deslocamentos dos modos de viver vigentes na sociedade.

Schilling (2005) destaca a importância de per-ceber as ambiguidades das tensões – resistência/conformismo, contestação/reprodução – nas práti-cas juvenis, afirmando que podem estar em lugares inusitados, apresentando-se de formas parciais e fragmentadas, e que, nem por isso, devem ser con-sideradas como não portadoras de crítica e de po-tencial de transformação:

São lutas transversais, que percorrem diversos países, em diálogos imprevistos, constituindo redes de lutas específicas; seus objetivos são os efeitos de poder enquanto tal, conformando-se como lu-tas imediatas (anárquicas) sem um telos, como nas lutas do século XIX ou até a metade do século XX. São lutas, desta forma, que criticam tanto uma ideia de evolução ou destino histórico como seu encaixe em um plano ou projeto societário maior (Schilling, 2005, p. 2).

A autora prossegue afirmando que “na moder-nidade entendia-se a resistência como uma acu-mulação de forças contra a exploração que se sub-jetivava através de uma tomada de consciência” (Schilling, 2005, p. 8), enquanto que, na pós-modernidade, a resistência se dá com a difusão de comportamentos resistentes e singulares que, quando acumulada, se faz de maneira intensiva pela circulação, mobilidade e pela alteração dos lugares de poder. Finalmente, se há diferenças en-tre juventudes a cada geração, conforme cada mo-mento histórico e político, há também algumas funções sociais da adolescência e da juventude

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que reaparecem a cada vez. Uma delas é a capaci-dade de renovar a história, ao captá-la e expressá-la de diferentes maneiras.

Da mesma forma, há também a presença do mundo interno do adolescente, cujos modos va-riados de expressão dependem de cada contexto e emergem a cada geração com novas configura-ções. Por exemplo, as novas posturas e concep-ções juvenis parecem apontar para necessidades psíquicas próprias do adolescente contemporâ-neo. Segundo Jeammet e Corcos (2005), dadas as relações tênues que separam os valores e costu-mes entre as gerações, o jovem vive de modo mais ameaçador o paradoxo da adolescência: para se diferenciar do adulto, precisa se distanciar dele, e para se construir e ter autonomia, necessita con-cluir suas identificações com esse mesmo adulto do qual precisa se separar. O adolescente o faz por meio da transgressão, seja pela via criativa – no caso, produção poética e musical de contestação –, seja pela via da atuação – presente na autodes-truição ou em ações que envolvem a transgressão da ordem instituída.

Assim, a capacidade da juventude de captar a incoerência entre a prática cotidiana e o discurso social, esforçando-se pela superação de uma or-dem hegemônica, autoritária e preconceituosa, expressou-se, na escola pesquisada, pela denúncia transgressora dos jovens frente às incoerências e resistências do mundo adulto. Sustentar um olhar atento para o potencial crítico das mensagens pre-sentes nas culturas juvenis – dirigidas não apenas ao mundo adulto, concebido abstratamente, mas ao que este representa em termos de avanço e/ou retrocesso no campo civilizatório – foi um dos nos-sos desafios. Em síntese, “é importante desvendar as sensibilidades performativas das culturas juve-nis, em vez de nos aprisionarmos a modelos pres-critivos com os quais os jovens já não se identifi-cam” (Pais, 2006, p. 13).

Nessa mesma direção, Herschmann (2005) aponta que, para uma melhor compreensão dos desdobramentos políticos dessas expressões cul-turais, é preciso observar a “maneira de viver” desses jovens – os “produtos culturais, gostos, opções de entretenimento, dança, roupas, que têm como princípio a estética do pegue e mistu-re”, isto é:

O estilo de vida e as práticas sociais dos grupos revelam um tipo de consumo e de produção que os desterritorializa e reterritorializa. A partir do funk

e do hip hop esses jovens elaboram valores, senti-dos, identidades e afirmam localismos, ao mesmo tempo em que se integram em um mundo cada vez mais globalizado. Ao construir seu mundo a partir do improviso, da montagem de elementos provenientes também de uma cultura transnacio-nalizada, em cima daquilo que está em evidência naquele momento, esses jovens, se não ressituam sua comunidade, amigos e a si mesmos no mundo, pelo menos denunciam a condição de excluídos da estrutura social (Herschmann, 2005, p. 214).

As negociações e tensões, a afirmação das di-ferenças e os hibridismos parecem garantir visibi-lidade, vitalidade e algum poder de reivindicação a esses jovens. Em nossas intervenções em classe junto aos alunos, coube também ter a sensibili-dade para identificar qual(is) das culturas juvenis expressaria mais e melhor as suas críticas sociais e pessoais. Nesse sentido, a rima se apresentou como porta-voz das denúncias, expressões pessoais e coletivas, (re)posicionamentos, clamores, gritos, diálogos, crônicas e narrativas de histórias, muitas delas induzidas ao esquecimento pelos meios de comunicação e pelo poder público. Assim, a poe-sia escrita e/ou cantada, em suas “mesclas” com o ritmo do rap1, foi a forma escolhida pelos jovens alunos de nossa pesquisa para expressar a violên-cia e o abandono a que estão relegados os jovens pobres de nosso país.

Neste sentido, assim como ocorreu nos Estados Unidos da América, é importante observar que, no Brasil, o momento da expansão de uma escola pú-blica de baixa qualidade condiz com a entrada do movimento hip hop no país (Souza, 2008). E, aliado a esse sucateamento da escola – pseudo-democrati-zação do ensino brasileiro –, ocorreu um processo de massificação cultural que, paradoxalmente, tor-nou acessível aos jovens uma tecnologia eletrônica de alta qualidade que, por sua vez, possibilitou a expansão, apropriação e recombinação musical fei-ta pelo hip hop. Desse modo, observou-se que foi a cultura hip hop um dos primeiros movimentos a denunciar a violência que se abatia sobre os jovens da periferia das grandes cidades brasileiras:

As recentes pesquisas quantitativas produzidas nos últimos anos por instituições como a Fundação

1 RAP: Rhythm and Poetry (Ritmo e Poesia), um dos elementos do movimento hip hop. Cultura juve-nil com variados recursos técnicos, dentre eles o recorte e colagem.

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SEADE e o IBGE revelaram que a violência embora não contemplada pela pesquisa acadêmica perma-neceu como um aspecto fundamental da condição juvenil. Os números confirmam que a juventu-de tem sido o segmento social mais atingido pe-las mortes violentas. Essa questão, agora admitida como um problema social de extrema gravidade, foi anteriormente apreendida no plano do sensível pelos jovens filiados ao movimento hip hop. Ainda no início dos anos 90, mesmo não dispondo de da-dos objetivos, os rappers produziram as primeiras narrativas sobre as situações dramáticas que pre-senciavam nos bairros periféricos. Antecipando-se aos dados oficiais, descreveram um quadro preo-cupante de perdas de vidas humanas entre a ju-ventude pobre que classificaram como holocausto urbano. Sabemos agora que essa expressão não era um mero exagero de retórica, mas expressão de um sentimento íntimo sobre a cruel realidade que se configurava (Silva, 2007, p. 1).

Pode-se depreender, ainda, que a globalização e a pós-industrialização tanto tornaram as grandes metrópoles e periferias mundiais mais semelhantes entre si, quanto aproximaram a juventude em um único movimento juvenil grande e complexo – o hip hop. Ou seja, as juventudes provenientes de comunidades da diáspora africana, deportadas e escravizadas em diferentes locais do mundo, como a afro-americana e a afro-brasileira, encontraram nessa cultura juvenil formas de recriar suas respec-tivas tradições musicais, usando em seu proveito as formas de “reprodutibilidade técnica” da arte, de modo a traduzir na poesia do rap, nos grafites, nas discotecagens (recorte e colagem) e na dança do break, as angústias e a revolta vivenciadas em seus guetos e favelas.

Finalmente, foi a partir da percepção de que essa cultura juvenil parecia se equilibrar no limiar da ex-clusão e da exigência de integração social, que nos propusemos a construir, in loco e coletivamente, a metodologia deste trabalho, cujo objetivo consistiu em dilatar as vozes, ouvir as novas sintonias que recuperavam e reeditavam histórias de seus ante-passados, atentando para as sonoridades inquietas, criativas e ávidas por autonomia, de modo a ouvir os novos timbres não escutados e, até então, não es-cutáveis para nós, pesquisadores, entre outros que foram nos surpreendendo a cada encontro.

Experimentações da pesquisaA partir do interesse pela poesia dos jovens de

uma classe de trinta alunos da 7ª série, organizamos

um grupo de estudos com os professores da escola, com o objetivo de estudar e discutir o tema fortemen-te denunciado pelos alunos – o preconceito étnico-social –, assim como as maneiras pelas quais podería-mos estabelecer um diálogo com os desdobramentos do passado escravocrata brasileiro que, por sua vez, proliferou nas bases do preconceito e da discrimi-nação étnico-social de nosso país e está presente na história da comunidade em questão. Esses estudos resultaram em algumas intervenções realizadas com uma classe da 7ª série de uma escola pública de São Paulo entre os anos de 2007 e 2009. Durante dois anos trabalhamos semanalmente com jovens amantes do ritmo e da poesia, descendentes de famílias afro-brasileiras e indígenas Pankararu, oriundas do sertão de Pernambuco que se alojaram em São Paulo. Con-siderando a história do aldeamento forçado do “Brejo dos Padres” no sertão nordestino – de onde as famí-lias dos alunos migraram –, optamos por estudar as culturas nordestinas que, assim como o rap, também utilizam o improviso, a poesia e as rimas.

É importante salientar que, apesar do conheci-mento sobre sua história, esta não se revelou integra-da à cultura escolar, cuja tendência parecia ser a de negar a herança afro-indígena nordestina por parte do corpo discente. Nesse sentido, o objetivo do tra-balho foi investigar e propiciar, pela via poético-mu-sical dos jovens, formas de interlocução com esse passado recente. Assim, a partir de uma pesquisa “etnográfica” rumo ao sertão nordestino, deparamo-nos com as mais ricas produções de poesia popular, que nos forneceu o material para algumas interven-ções em sala de aula. Alguns motivos sustentaram a escolha desse percurso, pela via poética e cultural, para retomar um passado marcado por diásporas e aldeamentos e re-significar um presente permeado por experiências de preconceito e discriminação. Foram eles: a idade dos alunos, adolescentes de 13 e 14 anos; a forma como esses jovens apresentaram a própria problemática do preconceito e da discri-minação que foi, principalmente, pela reprodução das letras de rap do grupo MC Racionais e, princi-palmente, pelo fato de não realizarem apropriações de suas próprias histórias de vida.

Apesar dos jovens aparentemente não se afirma-rem e não se identificarem com os elementos nor-destinos, indígenas e afro-brasileiros, fortemente presentes na história de seu passado recente, a bus-ca pelo rap e pelo hip hop expressava, sem que eles percebessem, toda uma história de diásporas, alde-amentos e hibridismos. De outra forma, sustenta-mos a hipótese de que, como não lhes era possível

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afirmar suas identidades étnicas e sociais naquele ambiente escolar, foi fundamental identificarem-se com essas culturas e, por meio delas, expressar seus sofrimentos em sala de aula.

A linguagem cindida dos alunos2, que parecia oscilar entre a admissão e a negação das relações de seu pertencimento às comunidades nordesti-nas chamou a atenção para a possibilidade de uma atividade em grupo que potencializasse a criação poética e a afirmação étnico-social desses jovens descendentes de nordestinos no interior da própria escola. Um dos professores do grupo de estudos sa-lientou que essa linguagem dúbia para se referir às suas origens poderia representar uma estratégia de “sobrevivência étnica” que, por mais contraditória que pudesse parecer, era comum entre grupos mi-noritários como estratégia de enfrentamento da não aceitação, ou mesmo da discriminação, por parte do grupo de pares ou da própria escola.

Assim, ao admitirmos que os jovens estavam in-seridos na conservadora metrópole paulistana e em uma escola que não os reconhecia e/ou sequer con-siderava a existência de uma cultura afro-indígena, reconhecemos que uma parte de tais dificuldades devia-se à discriminação efetivamente exercida so-bre eles, tanto por parte de alunos e professores, como aquela expressa no currículo escolar e em seu conteúdo. Também entendemos que a organi-zação escolar, o quadro de horários, a distribuição das matérias, a concepção de homem e de mundo expressa nos livros didáticos, assim como a preca-rização do trabalho do professor, sua sobrecarga burocrática, o consequente e reforçado silencia-mento político e seu distanciamento das atividades intelectuais, apontavam para uma ideia de que o abismo entre a escola e o aluno, denunciado pe-los próprios jovens, não se referia apenas a uma diferença de gerações ou aos tempos modernos e pós-modernos, mas principalmente à constituição de um país escravocrata que se constituiu de forma discriminatória e preconceituosa e, por isso mes-

2 Alguns exemplos: “Não conheço a cultura afro-brasileira, mas sei que eles foram escravos e ainda sofrem”. “Gosto de rap, funk e pagode (...), não conheço a cultura afro-brasileira”. “Não conheço a cultura afro (...), no orkut sou afro-brasileira”. E ainda: “Eu conheço os Pankararu mais ou menos. Meu pai, minha mãe são Pankararu. O que eu sei sobre eles é que eles vieram de Pernambuco e lá eles comiam com a mão. Eu adoro a dança deles”. “Não conheço nada, mas gostaria de conhecer, porque sou um deles, mas eu sei que eles usam tranças”.

mo, talvez não tenha se preocupado em oferecer uma educação pública de qualidade.

A compreensão de todas essas circunstâncias nos levou a pensar quão complexos são os fatores responsáveis pelas dificuldades desses alunos em se auto-identificarem do ponto de vista étnico-social, demonstrando serem bastante hesitantes, quando não ambivalentes, a esse respeito. Portanto, para promover rupturas no modo ambivalente de lidar com esse passado recente, elaboramos um plano de intervenção cujo objetivo seria propiciar um desloca-mento gerador de ligações e/ou “acasalamentos” entre “São Paulo e Nordeste”; “Metrópole e Sertão”; “Pre-sente e Passado”. Consideramos então que esse vai-e-vem no tempo, nas culturas e nas regiões brasileiras poderia (re)estabelecer um elo rompido na história política e familiar desses jovens, de modo a propiciar elementos para as discussões sobre o preconceito e a discriminação tão denunciados pelos alunos. Ou seja, ao percorrer as culturas populares tradicionais e as juvenis, populares e internacionais, pretendíamos refletir sobre a história e a experiência social acumu-lada dessa comunidade emblemática “afro-indígena paulistana, descendentes de sertanejos nordestinos”, e com isso avaliar as possibilidades de um exercício de afirmação étnico-social desse passado (re)negado no ambiente escolar e social dos jovens.

Desse modo, a partir do entendimento de que o termo hibridismo cultural expressa todo um movi-mento humano e, portanto, criativo, de atualizar e renovar as experiências sociais, procuramos desen-volver um olhar sobre as culturas populares (cordel e repente) não como “fósseis intocáveis”, mas no sentido do DJ Lins: “a ideia era criar condições para que elas pudessem dialogar com o mundo contem-porâneo, fertilizando-se no processo e assim voltan-do à vida” (Lins, 2003 apud Vargas, 2007, p. 64). Esse processo de mistura cultural, que a converte em algo próprio, é um modo encontrado pelos gru-pos sociais discriminados pela sociedade brasileira para responderem às exigências de subjetivação e afirmação étnico-social.

Assim, levados pelo interesse pelas culturas nor-destinas, indígenas e afro-brasileiras com base na oralidade, nosso grupo de estudos recorreu às pes-quisas de Cascudo (2006) para salientar os pilares de sustentação e preservação da cultura oral. Dentre eles, destacamos: a característica do anonimato, a preservação do patrimônio cultural pela via da ora-lidade, a manutenção e movimentação pela tradição e a transmissão de geração a geração. Logo, enten-demos que sua perpetuação se deve à capacidade

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mnemônica e à criatividade de cada um que orga-niza a informação a seu modo, ou seja: “na tradi-ção popular a primeira fase do processo difusivo é a despersonalização dos temas, impossibilitando uma identificação histórica” (Cascudo, 2006, p. 193).

Nessa direção, a história das principais ma-nifestações orais do sertão nordestino – como o folheto de cordel e os repentes da cantoria de vio-la e do coco de embolada – demonstrou que a presença da cultura oral está nas diluições, nos deslocamentos, nas condensações e semi-esque-cimentos da memória individual e social, e que existem duas fontes contínuas que mantêm esta manifestação poético-literária. Uma, exclusiva-mente oral, perpetuada pelos contos, rodas, dan-ças cantadas, jogos, cantigas, repentes, anedotas, lendas, adivinhações etc. E outra, por meio da reimpressão de folhetos, no caso do Nordeste, do folheto da literatura de cordel: “com ou sem fixação tipográfica”, essa literatura pertence à oralidade, pois ela “foi feita para o canto, para a declamação, para a leitura em voz alta”. Mais: tal literatura será “depressa absorvida nas águas da improvisação popular, assimilada na poética dos desafios...” (Cascudo, 2006, p. 21-22).

Tendo em vista que esses estudos estavam rela-cionados com a forte presença do passado nordes-tino-sertanejo dos jovens alunos da escola, amantes da rima, a primeira delimitação do trabalho com os alunos versou sobre as culturas “Cordel, Rap e Repente”. Referenciados pelo objetivo mencionado acima, refletimos sobre o cronograma de atividades com os alunos e no passo a passo do trabalho. Ou seja, partindo da constatação de que a regularidade é a peça fundamental para a construção e preser-vação da tradição oral, definimos as atividades em classe, de modo a estimular a produção poética dos jovens nas mais variadas métricas – do folheto de cordel aos repentes da cantoria de viola. Essa regu-laridade consistiu nas repetições de métricas fixas que oferecem marcas e pistas – tanto para quem improvisa quanto para quem ouve – sobre o cami-nho que a composição seguirá.

Após a apresentação das regras da métrica, rima e oração de uma dada expressão artística, líamos os primeiros versos e os alunos respondiam recrian-do a rima final sem nenhuma consulta prévia. O importante não era adivinhar a palavra escolhida pelo cordelista, mas dar a sua própria versão en-contrando a palavra “adequada”3 e contar sua pró-

3 Ou seja, improvisar e criar mantendo a métrica, a

pria história sem deixar de lado as regras da forma poética em questão. Essa atividade foi a base para trabalharmos a rima e o improviso em classe. Por conseguinte, também foi o exercício que levou os alunos a escreverem seus próprios versos, criarem suas próprias rimas e se afirmarem etnicamente. Em suma, os jovens responderam ao desafio de construir poesia “de repente” e por associação-livre, embora pautada pela regularidade da métrica, com muita perspicácia e criatividade.

Criações poéticas e afirmação étnico-social

Ressaltada a importância da regra da oralidade e da forma poética (métrica) de manifestações cultu-rais – como o repente (cantoria de viola e coco de embolada), a literatura de cordel e o rap –, demos início ao trabalho com os alunos sobre as possibili-dades de rimar, metrificar, construir versos, cordéis e elaborar poesias livres. Os alunos se apropriaram do espaço de modo a potencializar e propiciar a criação poética em sala de aula.

Assim, considerando os princípios excludentes que historicamente têm prevalecido na constituição da sociedade brasileira, pautada pela discriminação e humilhação de contingentes de migrantes das regiões Norte e Nordeste e de etnias não brancas, passaremos ao relato de nossas intervenções, com o intuito de apontar para a forma como essa travessia simbólica, ou rito de passagem, tem ocorrido para esses jovens pobres cuja trajetória familiar traz as marcas da migração nordestina para a região Su-deste, o que resulta numa mistura singular entre sertanejos, indígenas e afro-brasileiros.

Iniciamos as intervenções com uma conversa sobre o “Sarau do Cooperifa”. Em grupo, desven-damos as palavras sarau, cooperativa e periferia. Apresentamos a “Agenda Cultural da Periferia”, editada todo mês pela Organização Não Governa-mental “Ação Educativa”, e apresentamos algumas das muitas iniciativas de “literatura periférica” que estavam ocorrendo em São Paulo. Rapidamente, o tema da discriminação tomou a cena. Uma aluna exclamou:

– “As pessoas dizem que na periferia só tem la-drão”.

– “Ladrão rima com discriminação!”, desafia-mos os alunos.

rima e a oração de todos os versos.

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– “Que rima com cidadão!”, respondeu outro aluno.

– “E ainda com escravidão!”, rimamos novamente.

Ressaltamos que tais saraus mostravam como havia, na periferia, muitos artistas, cultura e experi-ências acumuladas. A conversa se estendeu e forne-ceu o mote para a construção coletiva do primeiro cordel da classe, que será apresentado a seguir. O cordel, intitulado “Batalha ou Desafio”, fala sobre a primeira intervenção em sala de aula e foi escrito e lido seguindo a métrica e o ritmo da sextilha – sete sílabas por verso e seis linhas/versos por estrofe na rima XAXAXA. Assim, no decorrer da leitura, os alunos logo se apropriaram da atividade e passaram a completar todas as últimas rimas da sexta linha, recriando as histórias ao seu modo. Ei-lo:

“Ao sair da classe, pensamos XVamos fazer um cordel AResumir nossa conversa XDe maneira bem fiel APros alunos do Alcântara XAcompanharem no papel A A história começou XQuando um dia fomos contar ADo sarau do Cooperifa XOnde vão para rimar AOs rapazes “hip hopers” XQue são bons para cantar! A Começou o intervalo XA turma toda dispersou AA Mayane inteligente XLogo se interessou ACom a amiga Tati XCorreu e o livro buscou A A colega Andressa XEntusiasmada nos contou: A- ‘Sou filha de nordestinos, XIsso sim é o que sou!’ AE desafio, eu sei o que é! XEla logo explicou... A ‘É como uma Batalha4: XUma frase um soltava A

4 Batalha é um “desafio”, uma disputa de improvi-sos presente em todos os elementos do hip hop: grafite, rimas, break etc.

E outro desafiando, XUma melhor denunciava. AImportante era encontrar XA palavra que rimava!’ AEscolhemos até um mote XDizia ele: que é mentira AQue lá na periferia XSó aparece quem atira APois decidimos que a rima XEssa sim que nos inspira A

Depois veio a idéia XQue também não é verdade AQue lá na periferia XSó tem é a maldade AAfinal estamos aqui XBuscando a felicidade! A

E que quem nasce por lá XLogo cedo é ladrão AA colega então falou: X‘Ei, aqui tem é cidadão!’ AE a outra respondeu: X‘ABAIXO A DISCRIMINAÇÃO!’ A O cordel que é o do passado XDo presente também é AE na rima com o rap XÉ que temos muita fé AOs dois são é brasileiros XAssim como o café A

Jefferson muito curioso XVirou e perguntou: A- ‘O que é o tal do MC?’ XTati, no livro pesquisou! A‘Mestre de Cerimônias’, XFoi o que ela encontrou! A

Esse foi nosso cordel XFeito todo em sextilha APara a 7a. série A XQue conosco compartilha AConhecimento e alegria XNos deixando bem na pilha”. A

Quando acabamos, fomos à lousa explicar, ago-ra mais detalhadamente, o que é uma sextilha, ou seja, o tripé da métrica, rima e oração. A professora de literatura brasileira salientou a diferença entre as sílabas poéticas e as sílabas gramaticais, e assim, junto aos alunos, observamos estrofe por estrofe

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do cordel recém escrito, procurando analisar quais versos continham o número correto de sete sílabas e quais podiam ser melhorados.

Para explicar o que é uma rima, fomos ao texto para os alunos diferenciarem as rimas dos versos ór-fãos de cada estrofe do cordel. Essa separação possi-bilitou deduzir a fórmula da sextilha: X A X A X A, sendo “X” para os versos sem rima (versos órfãos) e “A” para os versos que apresentam a rima. Pergunta-mos então o que era a oração de um texto. Concluí-mos, ludicamente, que “oração rimava com redação”, ou seja, a oração dava sentido ao texto: uma estrutura com começo, meio e fim. Um aluno resumiu: “um cordel sem pé ou cabeça é um cordel sem oração”.

Então, lemos uma estrofe e sem ler a última pa-lavra deixamos que eles respondessem, assim como já havíamos feito. Entre os que responderam, ti-vemos três palavras diferentes. Perguntamos qual das palavras acertava a rima e a métrica. Eles res-ponderam que todas. Perguntamos qual mantinha o sentido, a oração da estrofe. E eles responderam que apenas uma das respostas mantinha a oração, ou seja, uma dentre as três respostas cumpria todas as regras da sextilha: rima, métrica (sete sílabas) e oração (texto com coerência). Assim, chegamos à regra da sextilha no cordel.

Em seguida, fizemos uma rodada em que cada aluno leu uma frase, ou seja, um verso. Foi um momento importante para que pudéssemos perce-ber a resistência de alguns alunos em participar, e atribuímos tal aversão à sua dificuldade de leitura; identificamos quatro jovens que realmente liam e escreviam pouco ou nada.

Aqui cabem duas observações. A primeira se refere à importância da palavra falada como consti-tuinte de laços sociais e, particularmente, do canto falado que é indissociável do próprio ato de falar, e que se encontra fortemente presente na cultura juvenil do rap e em todas as demais manifestações de base oral. Podemos até afirmar que isto unificou as relações desse grupo de intervenção. A outra ob-servação é o fato de que, apesar de vivermos numa sociedade marcada profundamente pela palavra es-crita, as atuais escolas públicas brasileiras não ga-rantem essa aprendizagem. No limite, a rima e o canto falado (rap, repente, embolada) invertem a dominância frequentemente encontrada na escola, que tende a sobrepor a escrita à oralidade.

Béthune (1999) afirma, a propósito do rap, que esse estilo musical inaugura um novo conceito de cultura letrada e escrita, pois aponta para as inú-meras possibilidades de enriquecimento a partir

da linguagem oral. Para esse autor, trata-se de um conceito que caminha no sentido inverso do que propõe a escolaridade formal. Essa inversão na rela-ção de subordinação da linguagem oral em relação à escrita remete ao “transbordamento verbal” dos jovens alunos rappers, que parecem partir de uma liberdade intelectual muito favorável às formas de elaboração oral e associativa do pensamento. Uma liberdade que “contamina” a escrita e a consciência, e que apresenta outras possibilidades de enriqueci-mento da linguagem.

A espontaneidade no improviso, a forma lúdi-ca de lidar com os ritmos e com as possibilidades para criar, rimar e até inventar palavras, tanto das culturas populares tradicionais quanto das culturas populares internacionais como o rap, compõem o amplo espectro de produção estética em que a ora-lidade prevalece sobre a escrita. Afinal, ao ouvir um rap de improviso constata-se que:

Não se poderá jamais traduzir completamente a fala para a escrita, porque certos usos e modos da fala, ligados às ocorrências performáticas de enun-ciados em situação, não são reiteráveis, isto é, são irredutíveis às práticas discursivas da língua escrita (Souza, 2008, p. 90).

Daí, mais uma vez, decorre a importância de uma cultura juvenil como o rap, que, baseado na oralidade, retoma e salienta a irredutibilidade da oralidade à lógica da escrita. A partir do entendi-mento de que “a escola, como hoje a televisão, foi instituição que disciplinou o silêncio e a alienação da palavra” (Souza, 2008, p. 87), a entrada dessa cultura juvenil na escola pode retomar a capacida-de da fala e da cultura oral.

A capacidade de tomar a palavra é exigência democrática essencial; todavia, o ensino da língua falada na escola também (in)existe, tanto quan-to o ensino do Português, da leitura e da escrita. Observamos que os jovens alunos, apesar de não apresentarem dificuldades de comunicação nas si-tuações da vida cotidiana, revelam que, ao invés da escola, parece ser o hip hop a “instituição” que os está chamando para colocarem suas competências linguísticas a serviço das atividades escolares e, por extensão, da fala pública (Souza, 2008). Nessa mesma trilha, procuramos, em nossas intervenções em classe, sublinhar a importância de aprender a dominar a palavra nas situações em que a lingua-gem não serve somente para agir ou manifestar um desejo, mas também para expor uma opinião, ex-

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plicar, argumentar e se afirmar/impor (como sujeito psíquico e político).

A atividade subsequente foi realizada em peque-nos grupos: a classe se dividiu em cinco grupos que ensaiaram e apresentaram um jogral com o cordel. Os professores presentes procuraram se espalhar, ficando cada um com um grupo. Os jovens, ao trei-narem a leitura, observaram que, devido à forma do cordel, havia versos complicados de serem lidos, devido ao ritmo e à métrica e, quanto ao conteúdo, muitos grupos disseram que havia estrofes das quais gostaram mais. A partir dessas observações, abrimos o debate para toda a classe. Com muito custo e com o auxílio dos educadores, os alunos foram se expon-do: “vencer o medo e se autorizar ao uso da palavra na cena pública é problema sobre o qual a psicaná-lise tem muito a dizer: é também questão social e problema da escola” (Souza, 2008, p. 95).

Mas em tudo que os jovens disseram havia um consenso: a identificação com a experiência do pre-conceito e da discriminação a que estavam sujeitos e a recusa a aceitar tal situação. Os alunos comen-taram alguns versos:

“Sou filha de nordestinos, isso sim é o que –sou”.“Eu sou nordestina, mas todos riem quando –eu digo isso”. “Ei, aqui tem é cidadão (...). ABAIXO A –DISCRIMINAÇÃO!”. “Gostamos dos versos da discriminação –porque vivemos isso”.

Outra aluna contou a seguinte passagem vivida pela classe:

“Um dia fomos ao teatro. Fizemos bagunça, –mas todo mundo que estava lá estava zo-ando, não era só a gente, só que um moço pegou o microfone só para falar várias da periferia, falou super mau, nós ficamos bem quietinhos ouvindo o cara”. Disse isso en-colhendo o corpo.

Chamou-nos a atenção o paradoxo presente nas falas dos alunos. Pontuamos para a classe que, apesar da humilhação e até paralisação diante da fala do “moço” com o microfone no teatro, naque-le momento eles estavam na classe, denunciando essa violência. A denúncia desses jovens sobre suas experiências de preconceito e discriminação pres-supõe suportar o mal-estar de ter que se susten-tar com o domínio da palavra, ou seja, sustentar a

própria crítica, afrontar a palavra alheia e afirmar o direito de falar e de ser ouvido perante pessoas em posição “superior” na escala hierárquica da de-sigualdade social. Vale destacar que esse exercício da fala pública:

Pressupõe reconhecer e desatar as armadilhas do poder, velhas artimanhas que os grupos dominantes desenvolveram com rara perfeição no Brasil – a capa-cidade da fala ser o espetáculo de redução do outro ao silêncio. Enfrentar a sedução da palavra douta, as reticências que fazem supor um saber, a mordaci-dade, o subestimar da inteligência, a deslegitimação do locutor, o hábito de não chamá-lo pelo nome ou nomeá-lo erradamente etc. Consiste em aprender a denunciar as astúcias que distorcem a palavra, proi-bir o uso deslocado de correções e de informações secundárias, resistir à adulação, à cooptação, ao iso-lamento etc. Enfim, as formas tradicionais de exercí-cio do poder: que cala ou transforma a fala alheia em mera ecolalia (Souza, 2008, p. 95).

Conforme esta autora, partindo de toda essa exi-gência e audácia da palavra – que vai do domínio das paixões até a adequação ao contexto, a capacidade de dirigir-se ao outro, de levar em conta a presença do outro, de escutar e controlar a entonação –, deve-mos lembrar que a ideia de praticar uma democracia escolar na preparação para a cidadania civil esbarra, assim, na falta de domínio da fala e da escuta públi-ca por parte de professores e alunos. Nessa linha, “a tarefa da escola pública, política e psicanaliticamente esclarecida é propiciar, a cada sujeito, a construção do próprio discurso” (Souza, 2008, 97).

Não sabemos se os demais jovens que estavam no teatro também viviam em comunidades-favelas ou não. Contudo, a fala da aluna parecia dizer de um lugar que já esperava e decifrava algumas men-sagens instituídas que, de fato, estavam implícitas no olhar, na entonação, no gesto e no direciona-mento ao jovem que mora nesses locais. Refletimos em grupo sobre os potenciais da fala e da escuta quando não se encontram tão impregnados por estereótipos. Bracco (2006) salienta que, para um trabalho com jovens vivendo em situações-limite, como as de abandono e pobreza, é preciso ter um tipo especial de escuta:

Uma escuta informada e fundamentada em questões como humilhação, exclusão e privação que tem como objetivo romper um discurso que se ins-taurou e contribuiu significativamente no processo de subjetivação destas pessoas. A humilhação pode ser entendida como uma modalidade de angústia re-

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lacionada ao impacto traumático da desigualdade de classes (Bracco, 2006, p. 70).

“Romper com um discurso que se instaurou” foi o que tentamos propiciar para a classe através do depoimento da aluna. A fala “nós ficamos bem quie-tinhos ouvindo o cara” e o gesto corporal de enco-lhimento carregam uma formação psíquica e social marcada pelo abandono e a humilhação, a saber:

A humilhação é uma modalidade de angústia que se dispara a partir do enigma da desigualdade de classes. Angústia que os pobres conhecem bem e que, entre eles, inscreve-se no núcleo de sua sub-missão. Os pobres sofrem frequentemente o impac-to dos maus-tratos. Psicologicamente, sofrem con-tinuamente o impacto de uma mensagem estranha, misteriosa: “vocês são inferiores”. E, o que é profun-damente grave: a mensagem passa a ser esperada, mesmo nas circunstâncias em que, para nós outros, observadores externos, não pareceria razoável espe-rá-las. Para os pobres, a humilhação ou é uma reali-dade em ato ou é frequentemente sentida como uma realidade iminente, sempre a espreitar-lhes, onde quer que estejam, com quem quer que estejam. O sentimento de não possuírem direitos, de parecerem desprezíveis e repugnantes, torna-se-lhes compul-sivo: movem-se e falam, quando falam, como seres que ninguém vê (Gonçalves Fº, 1995, p. 167).

Numa das intervenções em classe, um grupo de meninos que não queria se apresentar elegeu o alu-no que menos sabia ler para ir até a frente da sala e se apresentar. Como já sabíamos de sua dificulda-de, fomos com o aluno à frente da sala e fizemos o jogral com ele. O aluno apresentou sérias dificulda-des para ler. No início, alguns colegas começaram a fazer chacotas; contudo, o jogral não parou. Em voz baixa líamos a parte do aluno para que em voz alta ele pudesse repetir. No fim, a atividade se re-velou importante, recebendo, inclusive, o reconhe-cimento da classe. Apesar da leitura ter sido lenta, o aluno se mostrou tão interessado que a classe pa-rou, ouviu e, no final, aplaudiu.

Acolher esse aluno foi importante, pois ele re-presentava (e denunciava) uma dificuldade que era da classe inteira, e um problema político que é de todas as escolas públicas brasileiras, salvo raras ex-ceções. Desse modo, pudemos compreender que acolher os problemas escolares, refletidos nas difi-culdades dos alunos, sem um julgamento moral e discriminatório, pode fortalecer o grupo e possibili-tar um contato maior com as problemáticas vividas coletivamente. Ou seja, no esforço de contribuir

para o processo de subjetivação dessas pessoas, é preciso encontrar os sentidos latentes para o que observamos no manifesto quanto, conforme salien-tou Bracco (2006), sendo também fundamental atentarmos para as questões políticas e históricas que, de modo inconsciente, estruturaram suas for-mas de manifestação.

Nesse sentido, para encontrarmos outros signifi-cados junto aos jovens, não podíamos restringir a psi-canálise ao mundo intrapsíquico. Era necessário olhar para fora e considerar quais elementos da cultura escravocrata brasileira estavam sendo tomados pelos jovens como algo único e exclusivamente deles. Sobre tal dilema, deve-se considerar a seguinte hipótese:

A problemática adolescente, com alta incidência de comportamentos do tipo acting out (ou seja, atu-ação do mundo psíquico no mundo exterior ou no próprio corpo, sem capacidade de elaboração inte-rior), talvez estivesse relacionada com o fato de o adolescente, no caso do Brasil, se deparar com um tecido social esgarçado em seus fundamentos, uma vez que as dimensões regressiva e autoritária da tra-dição colonial-escravocrata brasileira encontrava-se ainda presente no País (Amaral, 2005, p. 86).

Nessa direção, atentamos para as dimensões so-cioculturais e suas contribuições (ou não) na cons-trução/desconstrução da identidade em formação desses jovens brasileiros de baixa renda.

Foi possível observar também que, apesar de alguns grupos de jovens meninas explorarem forte-mente o tema do preconceito, parecia haver maior facilidade para lidar e se colocar diante dos temas do preconceito, da humilhação e da discriminação social, sem tocar na dimensão étnica propriamen-te dita. Talvez o que esses alunos ainda não pude-ram apreender é que, como afirma Bento (2002), “a pobreza tem cor”. Ou seja, a história brasileira tem uma trajetória marcada pela exclusão étnica das pe-les “braiadas”5, ou seja, as peles de cor não-brancas:

Evitar focalizar o branco é evitar discutir as diferentes dimensões do privilégio. Mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da brancura, o que não é pouca coisa. Assim, tentar diluir o debate sobre raça analisan-do apenas a classe social é uma saída de emergên-

5 Pele “braiada” é um termo usado entre os povos do sertão nordestino para se referirem às suas pe-les misturadas. Esse termo foi ouvido pela primeira vez pela pesquisadora em uma visita aos povos Ka-lankó, aldeia indígena do Alto Sertão Alagoano.

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cia permanentemente utilizada, embora todos os mapas que comparem a situação de trabalhadores negros e brancos, nos últimos vintes anos, expli-citem que entre os explorados, entre os pobres, os negros encontram um déficit muito maior em to-das as dimensões da vida, na saúde, na educação, no trabalho (Bento, 2002, p. 27).

Muitas alunas “não eram” nem se assumiam como afro-brasileiras, mas se apresentavam bastan-te identificadas com o universo cultural e estético afro: tranças nos cabelos, roupas no estilo hip ho-pper etc. Tal comportamento pode ser explicado: “esse vestir-se hip hoper, enquanto um modo de enunciação do outro, é marcadamente étnico e de circulação do significante ‘pertencer’ que não é ver-bal e veicula uma memória transgeracional e brasi-leira” (Bairrão, 2005, p. 7). Contudo, não se pode negar que existe certo estranhamento em relação às posturas aparentemente contraditórias dos jovens que cantam e ouvem rap. Em função da ambigui-dade presente em suas letras e até no modo de se vestirem, como expressou o preconceito da profes-sora, ora associam os rappers a “bandidos”, ora a “narradores” e “porta vozes” de uma situação social de injustiça. É verdade que no hip hop há muito confronto e competição, além de uma intensa luta por status, prestígio e reconhecimento. Muitas des-sas características, porém, dizem respeito mais à re-sistência política presente no movimento e à inser-ção social em um mundo que discrimina e segrega os jovens pobres e “de cor”.

Assim, apesar do leque variado de possibili-dades de investigação e interpretação da proble-mática, foi interessante observar que muitos alu-nos que diziam preferir outros estilos musicais que não o rap – como o pagode, por exemplo –, usavam indumentárias no estilo hip-hoper: calças largas, agasalhos com capuz, bombetas etc. Reve-lavam, com isso, um desejo de “parecer com eles”. Esses jovens diziam se identificar com o estilo como forma de demonstrar um pertencimento social e como necessidade de denunciar e resistir à opressão cotidianamente experimentada. Tella (2000) concluiu que ouvir a rima de um rap já é vivido, pelo jovem, como um gesto de discordân-cia social, ou seja:

Por mais diverso e por vezes incoerente que seja o hip hop, procuramos dar voz a todos os aspectos desse universo. (...) por enquanto queremos mostrar que, mais que um modismo, que um jeito esquisito de se vestir e de falar, mais que apenas um estilo de

música, o hip hop, com um alcance global e já mas-sivo, é uma nação que congrega excluídos do mundo inteiro (Casseano et al., 2001, p. 20).

Outro grupo, agora de meninos, elaborou uma poesia e apresentou-a para a classe. Foi a primeira vez que pudemos observar o exercício dos jovens ao se afirmarem étnica e socialmente através da palavra, da rima e da poesia de improviso. Segue um trecho de uma das poesias dos alunos, que demonstra uma ação dupla presente nas expressões juvenis, ou seja, criação poética e afirmação étnico-social:

“Sou AfroSou BrasileiroSou negro do coraçãoJá me senti mais forteCom a minha cor e o meu irmão

Eu sou um negro brasileiroCom muito orgulhoDe coração.

Eu sou Brasileiro e sou negroEu sou um Afro Brasileiro, um negroEm mil oitocentos e oitenta e noveFoi a libertação dos negros

Acabou a escravização!!!Acabou o trabalho escravo!!!” Por isso, Agora vai o improvisoSou AfroSou BrasileiroSou negro do coraçãoHoje me sinto mais forteCom a minha cor e o meu irmão”.

Chama a atenção a mudança subjetiva envolvida nesse pequeno deslocamento entre os versos “já me senti mais forte” para “já me sinto mais forte”. Com-preendemos tanto a importância de se tratar de ques-tões políticas relativas ao preconceito e à afirmação étnico-social em um espaço coletivo, quanto o valor que tem uma leitura, exposição e expressão em voz alta para os colegas da classe, “os irmãos”. A experi-ência compartilhada do sofrimento e da discrimina-ção pode oferecer uma sustentação fundamental para a construção/afirmação de suas identidades e reali-zação de seus sonhos de liberdade, respeito e digni-dade como cidadãos. Nessa direção, a poesia, a rima

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e o improviso alertam para um possível exercício de afirmação étnico-social que se apresenta simultanea-mente como resistência à dominação, apropriação da cultura, inserção social e territorialidade – tornando seus, pelo menos, o espaço da sala de aula.

Para finalizar, o trabalho com os jovens na es-cola alertou para o fato de que o rap, atrelado à busca pela formação pessoal e cultural, contém um potencial transgressor importante que deve ser in-terpretado. Afinal, se considerarmos que o acesso à cultura era restrito para as populações étnicas e so-cialmente discriminadas, podemos sustentar que a poética do rap, assim como as manifestações nasci-das nos cativeiros, são práticas que, por si mesmas, corresponderiam a atos fora da lei.

A apropriação das obras de arte já elaboradas, a expressão política nas vias públicas, a recombinação cultural – global e local, atual e ancestral – e a rein-venção dos recursos artísticos, todos direcionados ao enfrentamento da dominação, parecem permitir a al-guns desses sujeitos a elaboração de uma “arte de vi-ver fora da lei”. Vale salientar que o termo “fora da lei”, empregado por Béthune (1999) para se referir à esté-tica inaugurada pelo hip hop, apresenta uma ambi-guidade importante: expressa tanto a arte de viver de sujeitos que foram juridicamente relegados à margem dos direitos sociais, quanto a inversão da situação so-cial desses sujeitos que elaboraram um estilo artístico que transgride as leis e propicia suas próprias formas de inclusão e pertencimento social. Quanto ao termo “arte de viver”, adotado pelo mesmo autor, além de apontar para um modo de ser, um estilo de viver dos jovens contemporâneos, também sugere novas leitu-ras das metrópoles, fundamentadas numa crítica da própria realidade em que estão inseridos.

Assim, se no campo político é sabido que o rap (por si só) não conquistará a efetiva inclu-são étnico-social de seus protagonistas, no cam-po subjetivo,reconhecemos que a “arte de viver fora da lei” e a “arte de se incluir na sociedade” fazem emergir o sentimento de coletividade e a experiência de pertencimento dos jovens pobres das metrópoles, cujas vivências têm sido invaria-velmente permeadas por preconceitos e discrimi-nações. Nesse sentido, poderíamos afirmar que existe um deslocamento presente na “passagem ao ato” destes jovens à “passagem à rima, ao im-proviso e à crônica”.

Por outro lado, partindo da compreensão de que adolescer é um momento de investidura numa posi-ção de adulto, e que este segue parâmetros culturais e inconscientes, é possível sustentar que a valoriza-

ção e a recriação de culturas, práticas e crenças “dos antigos” já consiste numa forma de auto-afirmação e contestação étnico-social. Ou seja, nesse jogo dos jovens de negar e imitar o adulto, de apropriar-se de uma tradição oral e recombiná-la com as novas tecnologias de comunicação e informação – que resultaram na cultura juvenil do rap, por exemplo – está presente o movimento de um sujeito que se afirma, tanto no plano psíquico quanto no plano étnico-social. A travessia simbólica, ou o rito de passagem da infância para a vida adulta, da exclu-são para uma possível “inclusão social”6, parece acontecer por meio da criação poética.

Em suma, se é preciso suceder aos pais e generi-camente às gerações anteriores, habilitando-se, por sua vez, a ser sucedido pelas seguintes, isto deve ser feito mantendo-se uma diferença, um “desvão” que permita a convivência com semelhantes de outras gerações. Nesse sentido, esses jovens estão de fato dando continuidade a uma história de hibridismos culturais em meio ao enfrentamento de diásporas e aldeamentos, ou seja, produzindo uma espécie de filiação histórica socialmente reprimida e recalcada:

Um tanto paradoxalmente, remanescem traços, memórias, significantes, que circulam socialmente e são os pontos de apoio para a configuração hu-mana das novas gerações, mas sempre trajados pela morte. Concomitantemente, o adolescente depara-se com um encontro marcado e inevitável com o mais arcaico e antigo, mas também é sua missão, além de perpetuá-lo, rejuvenescê-lo, recriar a tradi-ção (Bairrão, 2005, p. 7).

Assim, entendemos que a afirmação étnica e so-cial desses jovens moradores dessa região brasilei-ra apresenta um importante recurso cultural para estruturar relações de pertença e elaborar e re-sig-nificar sua constituição psíquica e social. Ou seja, parece ser por meio da filiação poética, musical e oral, que se constrói um trajeto possível para essas populações periféricas e híbridas se recriarem, se re-animarem e, desse modo, encantarem o mundo com seus cantos (falados) e protestos cantados. Os cantos de rap dos jovens, na escola e nas comuni-dades, indicam a formação de um novo tipo de co-letivo cujos vínculos interculturais se estabelecem em um cenário urbano hostil, tecnologicamente sofisticado e multiétnico.

6 Ao menos no plano simbólico: uma inclusão so-cial ao viver a experiência de pertencimento a um coletivo, a uma história.

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Maíra S. Ferreira é psicóloga, psicanalista e mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (FE/USP). E-mail: <[email protected]>.

Recebido para avaliação em setembro de 2010. Aprovado para publicação em janeiro de 2011.

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Jornalismo participativo, subjetividade e práticas discursivas*

MÉDOLA, Ana Silvia Lopes DaviGRZESIUK, Mariana Dourado

ResumoEste artigo propõe uma análise da linguagem do jornalismo participativo – aquele em que pessoas sem

formação jornalística participam do processo produtivo noticioso –, comparando um texto publicado no site colaborativo de notícias Brasil Wiki com um texto sobre o mesmo assunto, produzido por profissionais da redação da Folha Online. Considerando que o cidadão não passa pela formação acadêmica do jornalis-mo, não tem vínculos com a empresa de comunicação, não possui orientação alguma de produção, exceto a própria vontade de se expressar, nem sofre constrangimentos organizacionais e financeiros, procura-se evidenciar aspectos da postura discursiva diferente daquela do jornalista profissional, ao possuir diferentes motivações, objetivos e relações com os fatos.

Palavras-chave: Linguagem – Subjetividade – Jornalismo participativo – Brasil Wiki.

AbstractThis paper proposes an analysis of the language of citizen journalism - in which people with no journalistic

training take part of the news production process - through a comparison of a text published in the collaborative news website Brasil Wiki with a text of the same subject produced by professionals of the Folha Online. Whereas the citizen does not have an academic training in journalism, has no links with the communication company, has no guidance for production other than his own will to express, nor suffer financial and organizational constraints, we seek to highlight different aspects of participative discourse from a professional journalist, with different motiva-tions, objectives and relations with the facts.

Keywords: Language – Subjectivity – Participative journalism – Brazil Wiki.

* Versão revista de trabalho originalmente publicado como: DOURADO, M. e MÉDOLA, A.S. L.D. A subje-tividade do discurso: uma análise lingüística do jornalismo cidadão. In: MARÇOLLLA, R. e OLIVEIRA, R.R. Estudos de Mídia Regional Paulista. São Paulo: Arte & Ciência, 2010.

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A linguagem do jornalismo participativo – mo-dalidade na qual as pessoas sem formação jornalís-tica participam ativamente da produção de conteú-dos noticiosos –, com algumas diferenças, também pode ser identificada em práticas de produção e conteúdos denominadas como jornalismo cola-borativo, cidadão, grassroot ou open source. Num primeiro olhar, tais produções sugerem a predomi-nância de posturas geralmente mais opinativas e com maior subjetividade – características que po-dem ser apontadas e analisadas pelas marcas enun-ciativas dos discursos correspondentes.

Uma vez que o cidadão comum não passa pela formação acadêmica do jornalismo, não tem vín-culos com a empresa de comunicação, não possui orientação alguma de produção que não a própria vontade de se expressar e não sofre constrangimen-tos organizacionais e financeiros, ele possuirá uma postura discursiva diferente daquela do jornalista profissional. Parte-se do pressuposto de que suas motivações, objetivos e relações com os fatos serão diferentes, e seus textos terão características mais opinativas e dotados de maior subjetividade – o que poderá ser apontado e analisado a partir das marcas linguísticas textuais. Por isso é importante estudar essas diferenças, à medida que a participa-ção e a interatividade são cada vez mais valorizadas na comunicação atual e têm potencial para trazer mudanças para a prática do jornalismo.

A partir de conceitos sobre enunciação desenvol-vidos no escopo teórico da semiótica discursiva, em diálogo com autores da análise do discurso como Benveniste (1988, 1989), Cervoni (1989), Baccega (1998), Charaudeau (2006), Gomes (2000) e Ker-brat-Orecchioni (1980), este artigo estabelece uma comparação entre um texto publicado no site cola-borativo de notícias Brasil Wiki1 e outra abordagem do mesmo assunto, divulgada na Folha Online2. Antes, contudo, será realizada uma breve revisão da literatura teórica sobre o jornalismo participativo e suas características, além de uma descrição sucinta da proposta do site Brasil Wiki.

O jornalismo participativoInteratividade é a característica aclamada como

um dos principais avanços dos processos comunica-

1 A respeito desse site, ver: <http://www.brasilwiki.com.br>.

2 A respeito desse portal, ver: <http://www.folha.uol.com.br>.

tivos atuais. Desenvolvida em níveis variados (des-de operações puramente reativas em meio a opções dadas à participação ativa nos conteúdos), ela gera níveis de reciprocidade da comunicação, criando efeitos de sentido de intervenção do receptor na construção das mensagens.

O surgimento de diversas tecnologias favoreceu a ampliação da interatividade, ao facilitar o processo de geração de conteúdo, como as câmeras fotográficas cada vez menores e mais simples, além dos telefones celulares. E foi por meio da Internet que a prática se tornou mais comum. Interativa por excelência, a web disponibiliza ferramentas de produção e distribuição de informações por parte de qualquer indivíduo. As pessoas tornam-se capazes de atuar como emissoras de informações, o que passa a ser utilizado na atividade jornalística, propondo que qualquer indivíduo pode produzir e publicar “matérias”. Baseadas numa estru-tura horizontal e plural, as pessoas ganham papel ativo no recolhimento, análise, escrita e divulgação de infor-mações – funções que antes eram restritas aos meios de comunicação (Rodrigues, 2006). Ou seja:

O jornalismo deixou de ter mão única para ser um processo em que estão desaparecendo as barrei-ras entre produtores e consumidores de informação – e no qual o jornalista perdeu a exclusividade do manejo e da transmissão de notícias. [...] A idéia cen-tral é a de que a elaboração da notícia está se tornan-do um processo contínuo, colaborativo e interativo. Este processo tem como características principais a transparência e a participação (Castilho, 2004, s/p).

Devido a essa participação, é possível acessar imagens que dificilmente são feitas pela mídia tra-dicional, uma vez que é impossível prever todos os acontecimentos ou estar com uma equipe de repor-tagem de plantão em todas as esquinas. O acréscimo se dá também com a inclusão de novos e diferentes pontos de vista. “[...] o público acrescenta conteúdo, opina ou mesmo apresenta novas versões da infor-mação inicial. Isso gera um espaço de troca e diversi-dade” (Brambilla, 2006, p. 7). Esta diversidade pode apontar para um potencial mais descentralizado da rede e a possibilidade de equilibrar a circulação da informação frente ao poder das mídias tradicionais (Vilches, 2006). Embora ainda esteja longe de um acesso realmente democrático e igualitário, o públi-co começa a usar ferramentas comunicativas para in-fluenciar a esfera de produção das informações, in-terferir nos conteúdos e nas grades de programação, proporcionar o surgimento de novas linguagens e novas práticas comunicativas. Com a Internet, as mí-

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dias deixam de ser apenas instrumentos de empresas privadas, para se tornar ferramentas de visibilidade e estímulo do debate público (Almeida, 1998).

Entre as principais motivações para a participa-ção do público na mídia – além das curiosidades, tragédias e acontecimentos de grande repercus-são –, encontra-se a insatisfação com o conteúdo apresentado na mídia tradicional, quando a esta falta aprofundamento, ou quando o cidadão se ir-rita com imprecisões e erros (Primo; Träsel, 2006). Gillmor (2004) afirma que a prática do jornalismo participativo se deve à necessidade que a audiên-cia sente de maior transparência na comunicação: “[...] o público demanda por mais transparência no nosso campo de atuação, e está fazendo algumas reportagens por si mesmo quando nós falhamos em correspondê-lo de modo satisfatório”3 (Gillmor, 2004, p. 61). Assim, os indivíduos são motivados a expor suas opiniões, temas diferentes e novos enfo-ques – representando, assim, a oportunidade para o público se expressar sobre o que lhe interessa e tentar preencher as lacunas da mídia tradicional.

Entretanto, Brambilla (2006) reforça a necessida-de da existência do jornalista como profissional me-diador e autoridade que dá credibilidade aos assun-tos debatidos pelo público. Para esta autora, a edição é necessária à credibilidade e não anula o conceito da intervenção do público nas notícias, que participa ativamente em diversas escolhas. Dessa forma, só o crivo profissional é capaz de elevar a informação ao status de notícia, avaliando a credibilidade e a veraci-dade dos dados divulgados e organizando-os hierar-quicamente no interior do produto jornalístico. Esta mesma opinião é partilhada por Rodrigues (2006, p. 63): “qualquer um pode publicar, mas a necessidade de um mediador ainda existe”. Nessa reconfiguração, o jornalista teria como principal função organizar as idéias e dar a elas um formato que facilite a fruição por parte da recepção. Assim:

Desmistificaria o jornalista como um propaga-dor de pontos de vistas soberanos, instituindo-o como alguém que consolida uma informação que vem do público, a que se acrescenta a importância que o jornalista assume no estímulo à discussão pú-blica (Brambilla, 2006, p. 53).

Exemplo desse tipo de produção jornalística é o site Brasil Wiki, um dos objetos de análise neste artigo.

3 No original: “[…] the public is demanding more transparency in our own field, and is doing some reporting of its own when we fail to respond in satisfying ways”.

O site Brasil WikiLançado na web em novembro de 2006, Brasil

Wiki é um site colaborativo, no qual o internauta pode publicar textos, fotos ou vídeos. Tendo como slogan “Você é o repórter”, nasceu de uma parceria entre os jornalistas Eduardo Mattos e José Apareci-do Miguel. O empreendimento foi inovador no país e, em um ano, mais de 60 mil usuários já acessavam o site, cujo objetivo é abrir espaço para que todos publiquem informações, criticando a forma unidi-recional da imprensa tradicional.

Para ser publicado, o material passa por uma edição de jornalistas profissionais que revisam to-dos os conteúdos. As matérias que são enviadas entram no link Pendentes – e já podem ser lidas pelos internautas –, no qual os editores as acessam, editam o material quando consideram necessário e conferem a ele um destaque maior ou menor no portal. Por meio desse trabalho, são verificadas a possibilidade de plágios, a veracidade das informa-ções e a correção ortográfica. Os jornalistas respon-sáveis também organizam a página inicial, distri-buindo os conteúdos entre dez editorias temáticas e destacando as matérias mais importantes por meio de chamadas. O site recebe em média quinze ma-térias por dia, a maioria com conteúdo literário e sobre o cotidiano, nesta ordem.

Para ser um wiki-repórter (como são chamados os colaboradores) e enviar materiais, é necessário fazer um cadastro com informações simples como nome, profissão, data de nascimento, cidade e e-mail. É preciso também concordar com os termos de uso4, que determina a não divulgação de con-teúdos criminosos, exemplificados como material racista, homofóbico, pedofilia, apoio ao tráfico de armas, incitação à violência, intolerância reli-giosa, incentivo à prostituição infantil, apologia ao tráfico e ao uso de drogas, ou com intuito di-famatório ou calunioso. Nesse mesmo documen-to, num texto publicado na abertura do site, os editores concordam em preservar a diversidade do conteúdo, propondo ampliar a oferta de in-formação sem que o estilo discursivo ou as opini-ões autorais sejam modificadas durante a edição.

A notícia e os pontos de vistaToda notícia jornalística é manifestada por um

texto, no sentido semiótico do termo, que pode ser

4 Disponível no link Política de Privacidade: <http://www.brasilwiki.com.br/sobre.php?id_info=3>.

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definido como uma enunciação enunciada (Grei-mas, Courtés, 2008), sendo a enunciação caracteri-zada por Benveniste (1989) como o ato de colocar a língua em funcionamento. Assim, o discurso, resul-tante do ato de produzir um enunciado, é determi-nado pelas estratégias enunciativas com as quais o enunciador mobiliza a linguagem. Todo enunciado, então, emana de um fazer discursivo voltado para a geração de conteúdo. Nessa ação de se propor sujei-to organizador de um discurso aparecem as marcas de subjetividade que identificam determinadas rela-ções entre enunciador (eu) e enunciatário (tu) numa estrutura de diálogo inerente à enunciação enquanto termo complexo que engloba a relação eu/tu como projeções de pressuposição lógica.

Toda linguagem é então parcial, pois não emana de si só como algo certo e objetivo, mas é um objeto construído socialmente por indivíduos e, portanto, como construção, é carregada de subjetividade, que é a marca do posicionamento do sujeito enunciador (Greimas, Courtés, 2008), determinado por suas posturas ideológicas, culturais e sociais. O discurso é então influenciado diretamente pelo enunciador, pelos valores que ele projeta no texto, pelo contexto em que está inserido, pela imagem que tem de seu público como simulacro e pelos contratos que dese-ja estabelecer com o destinador da comunicação.

Na perspectiva teórica da análise do discur-so com a qual procuramos dialogar, Fairclough (1995) propõe um método crítico para a análise do discurso que reconhece as relações sociais por trás da linguagem – seja ela escrita, falada, acom-panhada de imagens ou de comunicação não ver-bal. Para esse autor, o discurso é visto como uma prática social, uma ação situada num contexto de relações históricas e sociais que constrói e é cons-truído pelo discurso, atuando para estabelecer ou reproduzir identidades, relações sociais, conheci-mentos e crenças. Nesta mesma direção, Cervoni, (1989, p. 18), afirma que “é preciso levar em conta as condições de produção dos enunciados, tanto para o estudo da significação das frases, quanto para o sentido dos enunciados”. Mais do que isso, a análise da construção de sentidos deve considerar que o discurso não é o referente do real, mas ob-jeto que cria referentes reais internos a ele mesmo. Isto acontece porque “o princípio de um sentido construído é não-dissociar a forma e o conteúdo e, consequentemente, compreender que toda esco-lha de formulação retroage sobre o referente des-locando suas significações” (Dahlet, 1994, p. 111), ou seja, o sentido é construído no próprio ato da

enunciação, e as escolhas da forma determinarão o conteúdo.

Portanto, a subjetividade que é apreendida do conteúdo manifestado terá efeitos variados na pró-pria estrutura textual, ou seja, a linguagem carregará marcas e formas de organização que denunciarão a subjetividade (Benveniste, 1988). Isto acontece por-que o ato de usar a linguagem pressupõe uma série de escolhas variáveis e operações de determinação, que indicam as relações que o enunciador possui em relação àquilo que transmite e àquele com quem ele fala. Desde a escolha das grandezas semióticas até a ordenação e organização, o enunciador marca sua posição e seus pontos de vista no discurso por meio de projeções discursivas com marcas de tem-po, pessoa, espaço, isotopias temáticas e figurativas, bem como valores.

As construções discursivas revelam como o sujeito enunciador se posiciona perante o assunto (se afirma, nega ou duvida), e perante o enunciatário (se questio-na, apela ou ordena), imprimindo uma intencionali-dade no sentido de direcionar a mensagem. Por meio da análise dos procedimentos de discursivização é possível evidenciar o caráter afetivo e os juízos de va-lor presentes no texto, que carrega significados deter-minados, construídos social e culturalmente. A partir disso, é possível entender a oposição subjetividade/objetividade não como uma dicotomia, mas como gradação, isto é, a subjetividade do discurso nunca será nula, mas variável quanto à intensidade.

A afirmação de um discurso permanentemen-te subjetivo (em grau maior ou menor) contraria a legitimação da prática jornalística, que reivindi-ca para si um discurso isento, objetivo e imparcial. Para se fazer crível e repassar informações como reflexos verdadeiros do real, o jornalismo se inti-tula como relato fiel dos fatos, como se a mediação (que interfere no significado) não existisse. Baccega (1998) alerta justamente para essa mediação, mos-trando que, enquanto atividade que parte de indiví-duos (ou empresas de comunicação) que possuem determinados pontos de vista e interesses, refletidos nas representações dos fatos, o jornalismo não pode ser entendido como representação fiel da realidade, mas como produto socialmente determinado, como acontece com qualquer discurso.

Os processos de seleção, inserção e ordena-ção dos acontecimentos tornam a notícia parcial, responsável por leituras de mundo e produtora de sentido e memória, ao interpretar os aconteci-mentos no interior de um determinado processo histórico (Mariani, 1999). Ignorar a não neutra-

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lidade leva a recepção a acreditar acriticamente no discurso midiático, conduzindo a práticas de manipulação ou imposições de sentido, naturali-zação e institucionalização de significados (Ma-riani, 1999), além de outros efeitos de sentido, como demonstra Fowler (1991), por exemplo. Este autor discute a condução e a manutenção de estereótipos pejorativos, por parte da mídia, que acabam contribuindo para uma categorização ideológica responsável por estimular práticas so-ciais de discriminação (Fowler, 1991).

Entretanto, os efeitos da subjetividade não são intenções de um único responsável, mas de um con-junto de profissionais: produtores, repórteres e edi-tores. Para Charreudau (2006), a notícia é, antes de tudo, produto de uma complexa “máquina de infor-mar”, ou seja, passa por diversos filtros construtores de sentido, recebendo a influência de múltiplos ato-res, cada qual submetido a regras e restrições, proce-dimentos e condições de realização. Na abordagem semiótica, o conjunto dos atores da enunciação forja o simulacro do destinador da comunicação.

Nessa máquina, a cultura profissional desen-volveu características de um discurso e estratégias enunciativas próprios que tentam amenizar ou mascarar a subjetividade que denunciaria posicio-namentos ideológicos de jornalistas e de veículos de comunicação. Mesmo incapazes de apagar todas as marcas linguísticas que os caracterizam como lo-cutários construtores de sentido, os profissionais de comunicação, em sua busca por manter a falácia da imparcialidade, utilizam determinadas expressões e construções para tentar reduzir a intensidade da subjetividade. Entre as estratégias utilizadas para isso, Gomes (2000) aponta: o uso de citações como fontes e testemunhos que remetem a responsabili-dade das informações a terceiros; as tentativas de excluir a relação com o alocutário, para apagar o diálogo e impossibilitar a contestação das informa-ções, que devem ser consideradas verdadeiras; as tentativas de ausentar o próprio locutor, como se os fatos fossem relatados por si mesmos, sem nenhu-ma intervenção pessoal; e o uso da terceira pessoa, para impor a impessoalidade como forma de dis-tanciamento e imparcialidade de valores.

Estes não são procedimentos interiorizados por aqueles que praticam o jornalismo participativo. Al-guns podem até conhecê-los e tentar reproduzi-los, mas em geral eles não compartilham, por vários moti-vos, o mesmo posicionamento profissional. Primeiro, por não terem necessariamente a formação jornalísti-ca e não estarem sujeitos à necessidade de reafirmar

a atividade enquanto instituição legitimada pela ima-gem de imparcialidade. Segundo, por não serem de-pendentes de nenhum veículo de comunicação que os confine a determinadas regras que supostamente garantam a pretensa neutralidade. Vale ressaltar:

A desvinculação do cidadão-repórter a uma es-trutura empresarial pode ser um ponto positivo no que toca ao alcance da liberdade individual, uma vez que não deve obediência, tampouco está subor-dinado a chefes que condicionarão o seu sustento (Brambilla, 2006, p. 169-170).

Não afirmamos que o “cidadão-repórter” não possa estar sujeito a pressões sociais. Entretanto, ao contrário do repórter, ele fala por si mesmo e não por uma empresa jornalística que tolhe seu trabalho intensa e diretamente. Falamos de maior liberdade individual para expor justamente os pontos de vista de forma aberta e natural, e não ocultá-los.

Brambilla (2006) destaca isto como uma espon-taneidade que contribui para a flexibilidade do tra-balho final, tanto no conteúdo como na linguagem, possibilitando ao cidadão a liberdade de fugir das características jornalísticas apontadas por Gomes (2000). A mesma ideia pode ser demonstrada quan-do se afirma que o jornalismo participativo facilita “a experimentação de novos formatos de textos, não necessariamente presos aos esquemas tradicionais da pirâmide invertida”, pois nesses termos “não há necessidade de submissão aos controles através de regras e padrões de produção de textos da grande imprensa” (Peruzzo, 2003). Abre-se espaço para um texto mais livre, menos preso a processos editoriais da “máquina de informar” (Charraudeau, 2006).

O cidadão geralmente participa e envia materiais sobre assuntos que aprecia, com os quais tem afini-dade ou se sente atraído, decidindo não só o assunto, mas sob que forma ou enfoque irá abordá-lo. Escreve sobre temas que conhece, sobre os quais possui algu-ma experiência ou que estão presentes no seu dia-a-dia. Nessas produções, muitos dos interagentes são experts no assunto e escrevem por prazer e diversão. Dessa forma, a pauta vai depender unicamente de seu interesse pessoal. “[...] os interagentes que produzem conteúdo para sites de notícia o fazem de modo vo-luntário, de acordo com a própria vontade e disponi-bilidade” (Brambilla, 2006, p. 75). Assim, geralmente ocorre um envolvimento passional com os temas, o que leva o cidadão a participar da comunicação, pois “boa parte das pessoas comuns ainda assume uma atitude emocional ao participar da produção de noti-cias” (Castilho, 2004, s/p.).

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Todas essas condições apresentadas por Bram-billa (2006), Castilho (2004) e Peruzzo (2003) re-presentam um contexto de produção diferente, que pode ser contrastado com a postura profissional e analisado pela identificação das estratégias enuncia-tivas utilizadas. Observaremos, então, algumas das marcas que demonstram essa diferença de postura e a característica de cada situação.

Nessa análise, vamos comparar dois textos sobre um mesmo assunto: a chamada “Virada Cultural de São Paulo (SP)” em 2009. O evento é promovido anualmente pelo governo estadual e promove sho-ws e atividades culturais gratuitos para a população durante vinte e quatro horas em algumas cidades do Estado. Naquele ano, as atrações na capital come-çaram no final da tarde do sábado (02/05/2009) e terminaram no final da tarde do domingo seguinte. Um dos textos da análise foi produzido por um jor-nalista da redação da Folha Online e publicado no dia 03/05/09; o outro, publicado no mesmo dia, é de autoria de um cidadão denominado “Ventania”, que participa do site colaborativo de notícias Brasil Wiki. Neste, o autor conta como foi sua experiência du-rante o evento. Para uma comparação mais próxima, escolhemos um texto da mídia produzido no último dia da Virada Cultural, que também apresenta uma visão geral do que aconteceu durante os shows.

O texto profissionalVejamos inicialmente trechos da matéria publi-

cada pela Folha Online:

Virada Cultural levou 4 milhões de pessoas ao centro, diz Kassab

Da Folha OnlineO prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM),

disse neste domingo que a Virada Cultural deste ano levou pelo menos 4 milhões de pessoas ao centro da cidade. O cálculo foi feito pelo prefeito por volta do meio-dia e o número oficial deve sair somente após a última atração, às 18h. Porém, a estimativa já é igual ao público que compareceu em toda a edi-ção do ano passado. “Evidente que nós precisamos aguardar o fim do dia porque tem mais eventos. Mas nós já podemos afirmar que não teremos menos de 4 milhões de pessoas”, afirmou o prefeito.

Segundo Kassab, os organizadores da Virada Cultural pensam em realizar as atrações em locais mais afastados do centro porque o público de um evento “emendou” com o de outro. “Ficou um mar de gente”, afirmou ao lembrar das imagens aéreas gravadas pela prefeitura ontem à noite.

O prefeito afirmou que o número de “incidentes” registrados foram compatíveis ao público e nenhu-ma ocorrência “grave” foi registrada. Porém, admitiu que o fechamento da estação República do metrô foi um problema para as pessoas que participaram das atrações. Mas o fechamento foi “totalmente compre-ensível” pela necessidade das obras de ampliação.

Sujeira

Questionado sobre o excesso de lixo e a reduzida equipe de limpeza nas ruas de São Paulo, o prefeito afirmou que o problema “está sendo solucionado”. “São esses aspectos que, a cada Virada, nós melho-ramos. Tudo será fruto de avaliação, seremos muito detalhistas com esses aspectos, porque o que a gente quer é que, a cada ano, seja uma Virada melhor”, disse Kassab. O prefeito nega que haja problemas na limpeza das ruas. “O lixo está sendo recolhido, nós temos essas informações”, disse à reportagem.

A Virada Cultural deste ano se encerra às 18h com o show da cantora Maria Rita no palco da ave-nida São João. Veja a programação da Virada Cultu-ral deste domingo.5

O título do texto apresenta dois aspectos impor-tantes do discurso jornalístico tradicional: o uso de números e a referência a citações. Os termos numéri-cos evitam imprecisões e buscam apresentar uma no-ção mais exata de qual foi a dimensão do evento, com o objetivo de surtir um efeito de “real”. Assim, é me-lhor dizer que “4 milhões de pessoas compareceram” do que “muita gente compareceu”, pois as grandezas de muito e pouco são relativas. Para alguns, quatro milhões pode ser muito, mas pode ser pouco, se a ex-pectativa era de 40 milhões, por exemplo.

Outra característica marcante em todo o texto é a presença de citações, que Gomes (2000) evidencia pelo uso de shifters de escuta ou testimoniais, ou seja, verbos ou expressões que mencionam o ato do infor-mador, do enunciante referido, das fontes e do teste-munho. Temos no exemplo: “diz”, “disse”, “afirmou”, “segundo Kassab” e “admitiu”.

O texto analisado usa como única fonte o prefei-to de São Paulo, Gilberto Kassab – prática incomum no jornalismo, que costuma buscar várias fontes para analisar o evento sob diversos pontos de vista, ouvin-do todos os envolvidos de forma igualitária. Entretan-to, a prática é mais recorrente no jornalismo online,

5 Matéria extraída do site Folha Online: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u559879.shtml>.

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no qual a notícia é instantânea, precisa ir ao ar rapida-mente, e depois pode ser complementada por outras matérias e outros pontos de vista, formando uma rede informativa noticiosa por meio dos links.

O uso das citações serve para exemplificar por meio de relatos ou para transmitir a informação sob o ponto de vista de quem viu, de quem presenciou, partindo do pressuposto de que quanto mais próxi-ma a pessoa estava do acontecimento, mais real e fiel é o seu relato. Assim, não é o jornalista quem conta o que aconteceu, pois ele não estava necessariamente no momento do acontecimento, mas quem fala é a própria testemunha. Isso permite depreender um ca-ráter de autoridade das afirmações, que ganha maior intensidade quando as fontes são autoridades ou pes-soas consideradas importantes na sociedade. Assim, na matéria analisada, não é qualquer transeunte que afirma que “a Virada Cultural deste ano levou pelo menos 4 milhões de pessoas ao centro da cidade”, mas o prefeito da cidade, uma figura de poder. Respeitado pelo cargo que possui, suas informações são mais crí-veis do que se fossem afirmações feitas pelo próprio jornalista, que não teria como inferir intuitivamente o número de pessoas presentes sem ser impreciso, ao contrário do prefeito, que, devido à sua posição, deve ter acesso a algum tipo de estimativa e é autorizado a repassar os números formalmente. Ainda assim, a matéria coloca a informação do prefeito em dúvida, ao afirmar em seguida que a contagem oficial ainda não foi finalizada.

Além de dar autoridade às afirmações, o discurso citado também serve para eximir a responsabilidade do enunciador sobre as informações fornecidas por terceiros, criando para o jornal um efeito de impar-cialidade. O profissional da comunicação deixa claro que o discurso não é dele, e sim da fonte enunciadora. Portanto, o responsável pelo posicionamento discur-sivo repassado é exclusivamente a fonte. Assim, mui-tas vezes o jornalista usa aspas para evidenciar essa transferência de responsabilidade quando não quer se comprometer com os termos usados pela fonte, dei-xando evidente a subjetividade de todo o discurso.

No caso de “emendou” e “ficou um mar de gente”, as expressões podem ser consideradas muito parti-culares ou informais, e as aspas responsabilizam o prefeito pela analogia. Já ao salientar as palavras “in-cidentes” e “grave” no discurso de Kassab, o jornal coloca as expressões em dúvida, evidenciando sua indeterminação e questionando os parâmetros de definição utilizados pelo prefeito sobre o que é um incidente e o que é grave. Dessa maneira, é na con-cepção de Kassab que os incidentes ocorridos foram

de pequena repercussão e gravidade, mas pode ter sido diferente sob o ponto de vista de outras pesso-as – especialmente os envolvidos, por exemplo. E de forma ainda mais irônica, as expressões “totalmente compreensível” e “está sendo solucionado” são desta-cadas para evidenciar a fidelidade à fala do prefeito, deixando implícito que a responsabilidade da infor-mação é de Kassab e que o jornalista não concorda necessariamente ou pode comprovar. Sendo assim, deixa entender que essa informação pode não ser ver-dadeira e coloca em dúvida a fala de Kassab. Se essas informações tivessem sido repassadas pelo discurso indireto, sem aspas, elas não trariam esse efeito de dúvida que leva o profissional ao ato de salientar que as palavras foram emitidas pela fonte.

Assim, o repórter também utiliza o recurso das aspas para transmitir a ideia de que está repassando as informações de um discurso de outro, exatamente como foram ditas, de maneira fiel, sem que o con-teúdo sofra qualquer influência manipuladora ou de censura. Podemos observar no texto a presença de ci-tações de frases inteiras nos parágrafos segundo, sexto e sétimo, além dos exemplos apresentados acima.

Em nenhum momento da reportagem aparece explícita a presença discursiva da pessoa do jorna-lista enquanto um eu que fala, utilizando a terceira pessoa para manter a ideia de imparcialidade e dis-tanciamento, como aponta Gomes (2000). Essa in-determinação do sujeito que enuncia é reforçada pela assinatura “Da Folha Online”, remetendo a respon-sabilidade a um grupo que trabalha em uma reda-ção empresarial e não a um indivíduo profissional. Mesmo sendo possível depreender posicionamentos ideológicos, especialmente uma postura modal que coloca em dúvida as afirmações de Kassab, o texto per se, como discurso dado pelo jornalista, não deixa explícitas as opiniões nem as posturas valorativas, fa-zendo disso um dispositivo de isenção para reforçar o efeito de imparcialidade.

O texto não apresenta termos axiológicos com conotações fortes e estáveis, como define Kerbrat-Orecchioni (1980). Entre os poucos adjetivos estão “excesso” (referindo-se a “lixo”) e “reduzida” (para se referir a “equipe de limpeza”). Estes, embora im-precisos na dimensão quantitativa, são passíveis de verificação e não possuem necessariamente valores apreciativos negativos, indicando apenas indireta-mente uma possível falha na organização (ideia re-forçada pela negação de Kassab mais adiante), o que pode ser deduzido como opinião do jornal, mas não são marcados de forma explícita e, principalmente, admitidos como tal.

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O texto participativoVirada Cultural ou virada para beber?

Ventania, São Paulo (SP)

Minha primeira ida à Virada Cultural, em São Paulo. Por volta de 19h00 de sábado cheguei ao palco principal do evento na avenida São João, já me surpre-endendo com o número de pessoas que circulavam por aquele trecho da cidade. Tentar chegar perto do palco foi impossível, tanto pelo número de pessoas, como pelo número de ambulantes que vendiam, na sua grande maioria, bebidas. Não era possível andar dois metros sem trombar com uma caixa de isopor na cabeça ou nos pés.

Não foi isso que me impediu de, após me insta-lar pertinho do telão, deliciar-me com o perfeito ca-samento da Orquestra Sinfônica de São Paulo com o tecladista da banda de rock, Deep Purple, Jon Lord. A ponto de fechar os olhos e querer que o momento fosse eternizado.

Um evento como esse transforma a cidade. Dá vida a um centro sempre deserto à noite e nos finais de semana. Seria uma grande sacada transformar estes eventos, em números menores, mais freqüentes para restaurar o glamour do centro da cidade.Passei por vá-rias apresentações: rock na

Praça da República, balé no Vale do Anhangabaú, DJs da Praça de São Bento, e pela magnífica apresenta-ção do Canto das Sirenes, na Praça do Patriarca. Tudo muito bem organizado pela Prefeitura de São Paulo.

E ao ver toda essa grandiosa montagem sinto tristeza por perceber que nosso povo não está prepa-rado para um evento como esse. Foi degradante ver adolescentes caídos, desmaiados por excesso de be-bida. Quanto mais alta a hora da noite, mais e mais bebidas circulavam e mais pessoas caídas pelas ruas. Adolescentes mal educados gritavam nos ouvidos de passantes. Andavam com garrafas de vodka, vinhos, cachaças, que passavam de boca em boca.

Esta é uma triste realidade da Virada Cultural. Uma virada para beber. Uma virada onde se permite que ambulantes tomem conta de todo espaço e levem das mais variadas bebidas ao público. Sem nenhum controle de como isto é obtido e repassado. Uma vira-da que fará com que a cada ano as famílias deixem de ir com seus filhos à cidade por medo e dêem lugar aos bêbados e vândalos.6

O posicionamento discursivo do enunciador do

6 Matéria extraída do site Brasil Wiki: <http://www.brasilwiki.com.br/noticia.php?id_noticia=10510>.

texto publicado no site Brasil Wiki é notadamente diverso do posicionamento profissional jornalístico que percebemos no texto anterior. Considerando a existência de níveis de subjetividade apontados por Kerbrat-Orecchioni (1980), podemos afirmar que o texto participativo é apresentado de forma muito mais subjetiva que o profissional, sem negar esta característica no último.

A primeira e mais evidente diferença é o uso da primeira pessoa. Embora tendo a identidade real encoberta pela característica do meio em que se ins-creve (a Internet) – quem é “Ventania”? –, o enun-ciador do discurso é claramente definido como um eu concreto. A actorialização (eu – deduzido pela conjugação dos verbos: “me surpreendo”, “me im-pediu”), temporalização (“sábado”, “19h00”, tempo verbal no passado: “fui”, “cheguei”, “foi”) e espa-cialização (“Virada Cultural”, “São Paulo”, “aveni-da São João”) marcam o enunciador claramente no discurso, estabelecendo interpelação com o público que o lê, sem preocupação de ocultar esse posicio-namento discursivo ou a relação “eu-tu” que deter-mina e evidencia a subjetividade discursiva.

Com a subjetividade explicitamente marcada, iden-tificaremos o texto participativo voltado para o gênero opinativo como predominância, ao contrário do tex-to jornalístico profissional noticioso, voltado para um gênero predominantemente informativo. No exemplo participativo, a postura opinativa já se evidencia no tí-tulo. A pergunta feita pelo autor pressupõe que o texto ofereça uma resposta, que será uma tomada de posição indubitavelmente ideológica ou de opinião.

A atitude fortemente ativa e posicionada do eu que fala também é assegurada na medida em que o autor não utiliza nenhuma citação para se apoiar e usá-la como embasamento ou reforço. Todas as asserções e questionamentos de conteúdo são feitos pelo próprio enunciador a partir do que ele viu, experimentou e sentiu. No primeiro texto, é Kassab quem informa ao jornalista todas as informações sobre o número de pessoas, quando sairá o resul-tado da contagem oficial, a não ocorrência de inci-dentes e as medidas quanto ao problema da sujeira. No segundo texto é o próprio enunciador quem diz que muita gente esteve presente, que mal se podia caminhar na multidão, que os shows foram bons e que havia jovens bêbados, o que marca outra dife-rença importante entre os dois textos.

Enquanto o jornalista profissional se coloca como mediador da realidade, ele não tem autonomia para fazer inferências, necessitando sempre do apoio das citações. Já o repórter cidadão possui essa indepen-

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dência, baseada em sua posição de autoridade como testemunha que vivenciou o processo. Mesmo sendo um ser humano que vivencia o que narra, o jorna-lista algumas vezes não tem força discursiva para se posicionar como sujeito dentro do padrão discursivo que foi construído para a sua profissão.

A legitimidade que conferirá credibilidade ao conteúdo participativo será instaurada não pela afirmação de objetividade discursiva, mas pelo caráter testemunhal que emana do texto enquan-to relato de alguém que viveu a situação ou este-ve próximo do evento. Assim, não é objetivo do enunciador cidadão ser porta-voz da realidade, como reivindica o jornalismo: sua motivação é mostrar seu ponto de vista e, a partir disto, o nar-rador fará asserções, organizará os argumentos e fará apelos para persuadir o leitor. Ao contrário do jornalista profissional, o cidadão “não assume compromisso em ser isento” (Brambilla, 2006, p. 90) e escreve a notícia sob o ponto de vista que acha conveniente. Ele fala de experiências pró-prias, do cotidiano e da realidade dele, dos fatos de que participou ou foi testemunha, dos assun-tos de que gosta, pelos quais sente afinidade ou tem alguma ligação passional.

Em vez de números, o autor descreve uma série de situações para dar ideia da quantidade de pessoas presentes e a falta de espaço, dizendo que foi sur-preendido pelo número e que não conseguiu che-gar perto do palco ou esbarrava em outras pessoas e vendedores. Também é possível identificar um tom mais coloquial em expressões como “grande sacada”, “trombar”, “pertinho do telão” e “tomem conta”. Ao contrário do texto profissional, que explicita e resu-me o objetivo da matéria logo no primeiro parágrafo, descrevendo como foi o evento em termos numéricos, o texto participativo é construído sob outra estrutura de organização argumentativa, e é só no decorrer e no final do texto que o autor marca a mensagem em si, de que o evento, apesar de ter apresentado bons shows, serviu para jovens se embriagarem.

“Ventania” também não hesita quanto ao uso de termos axiológicos que determinarão uma valora-ção positiva das apresentações culturais e negativa dos adolescentes presentes. Verifica-se o uso de ter-mos como “deliciar”, “perfeito casamento”, “magní-fica apresentação”, “bem organizados” e “grandiosa montagem” para o evento e os shows; e “tristeza”, “degradante” e “mal educados” para os adolescen-tes. Palavras e expressões que por si não são nega-tivas também recebem juízo de valor conforme a colocação na frase, como quando, ao afirmar que

os jovens gritavam para os transeuntes, o autor in-sinua que essa atitude não é uma atitude normal, correta ou adequada, carregando o enunciado com uma valoração depreciativa e mostrando que é con-trário à conduta dos jovens.

Pela construção enunciativa, o wiki-repórter es-tabelece suas opiniões e suas relações com o evento e os demais participantes, fazendo várias asserções e usando outras marcas modais, como em “é uma triste realidade”, quando o autor não concorda com a ati-tude dos adolescentes e determina como causa disto a falta de controle na venda de bebidas pelos vende-dores ambulantes. Já com a modalização “seria uma grande sacada”, ele usa uma possibilidade no tempo futuro para defender a realização o evento, desejan-do que apresentações culturais semelhantes fossem realizadas com mais frequência na cidade, porém em menores proporções. Por fim, a indicação modal pelo uso do tempo futuro em “fará” marca um apelo do autor por meio da projeção negativa de uma possi-bilidade em que as famílias deixem de ir a eventos como a Virada Cultural porque sentem medo de bê-bados e vândalos – sendo este apelo outra asserção de valor, demonstrando o posicionamento patriarcal do enunciador, que considera um determinado padrão familiar como o correto para as relações sociais.

Considerações finaisNão é possível determinar generalizações a par-

tir de um único exemplo, mas esta análise apontou várias características já sugeridas por autores que estudam o fenômeno do jornalismo participativo – uso intenso da primeira pessoa, predominância do gênero opinativo e exposição explícita do posicio-namento ideológico.

Procede, portanto, a afirmação de Kerbrat-Orec-chioni (1980), de que a subjetividade está presente em todo e qualquer discurso, e é uma característica gradual. É a partir desta observação que podemos afirmar que o jornalismo tradicional, ao tentar eli-minar elementos do sujeito discursivo, possui um grau menor de subjetividade, quando comparado ao jornalismo participativo. Enquanto neste último os autores se responsabilizam pelas asserções de conteúdo, os jornalistas profissionais só afirmam as citações, responsabilizando as fontes pelo seu con-teúdo, e deixando o posicionamento do discurso noticioso implicitamente oculto por trás das esco-lhas das citações e suas formas de apresentação. Ao contrário do participativo, o texto jornalístico profissional realiza uma série de ações que tentam

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minimizar o caráter subjetivo do discurso.Assim, o que se evidencia nessa análise, elaborada por meio da constatação de marcas discursivas dis-

tintas, é a existência de posicionamentos diferentes, determinados por diferentes contextos de produção entre profissionais e amadores. Enquanto o jornalista busca criar um efeito de verdade e tem sua autono-mia assertiva limitada e condicionada às citações, os cidadãos querem abrir espaço para a manifestação pessoal, o pluralismo e a divulgação de opiniões. Para Rodrigues (2006), essa prática representa o regresso da subjetividade autoral que a profissionalização e a industrialização da atividade tinham apagado em fa-vor da objetividade e da pretensa imparcialidade. Assim, a parcialidade do posicionamento não é temida, e o conteúdo é legitimado pelo caráter testemunhal. Com isso, volta a liberdade para o humor, a polêmica, as sátiras, a poesia – motores do início da imprensa.

Lançar-se contra a imparcialidade pode parecer significar, num primeiro momento, perda de qualidade. Entre-tanto, a opinião também traz informação e, dessa forma, “através da publicação de inúmeras opiniões que se chega a um nível de pluralidade que poderá conduzir, num grande conjunto de informações, aos outros valores como a aproximação com a verdade” (Rocha apud Brambilla, 2006, p. 180). Se no jornalismo tradicional o repórter busca incluir diversas fontes numa mesma matéria, como forma de garantir a pluralidade (e portanto buscar a impar-cialidade), no jornalismo participativo isto acontece por meio de abertura para que todos os envolvidos possam também publicar suas matérias e seus respectivos posicionamentos.

Cada um dos dois tipos de texto possui uma postura discursiva própria e procura se legitimar como produtor de conteúdos, e ambos trazem contribuições importantes. A busca do jornalista pela objetividade é desejável (ainda que impossível de ser obtida), porque possibilita um grau menor de imparcialidade – algo muito importante na atividade de informar o grande público e subsidiar sua formação ideológica. Ao mesmo tempo, promover a divulgação da palavra do cidadão significa estimular seu posicionamento crítico e dar voz à sua opinião que, mesmo sendo mais parcial, tem validade testemunhal, incluindo novos pontos de vista, novos ângulos e novas abordagens. Entendendo e diferenciando o posicionamento dos dois gêneros, é possível con-cluir que o texto profissional jornalístico e o texto participativo possuem funções diferentes e podem coexistir, combinando-se no espaço público da informação.

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Ana Silvia Lopes Davi Médola é professora adjunta do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicaçãoda Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Es-tadual Paulista (FAAC/UNESP). E-mail: <[email protected]>.

Mariana Dourado Grzesiuk é jornalista, mestranda em Comunicação na FAAC/UNESP e bolsista da FAPESP. E-mail: <[email protected]>.

Recebido para avaliação em outubro de 2010. Aprovado para publicação em fevereiro de 2011.

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A reabilitação de conjuntos habitacionais na cidade de São Paulo*

OTERO, Estevam Vanale MARTINS, Maria Lúcia Refinetti

ResumoO artigo investiga ações voltadas para a reabilitação de conjuntos habitacionais de interesse social na

cidade de São Paulo e traça um paralelo entre a experiência paulistana e as intervenções voltadas à rea-bilitação dos conjuntos habitacionais edificados na França durante o pós-guerra, onde essa questão acu-mula décadas de experiência, permitindo avaliar seus resultados a partir de suas trajetórias de sucessos e fracassos. A base de análise é o conjunto de ações voltadas à reabilitação de conjuntos habitacionais da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (COHAB-SP), mais especificamente aquelas estru-turadas no programa “Viver Melhor”, que teve como objetivo melhorar a qualidade de vida das popula-ções residentes, sendo a primeira ação da Companhia especificamente estruturada com essa finalidade. Partiu-se da identificação das principais características da produção dos grandes conjuntos da COHAB-SP ,que resultaram em problemas que condicionam vastos contingentes populacionais a um cotidiano de segregação e exclusão, reforçando padrões já presentes na estruturação do espaço metropolitano. A avaliação das políticas de reabilitação é desenvolvida na forma de questionamento quanto à capacidade dessas ações intervirem nessa realidade urbana.

Palavras-Chave: Conjuntos Habitacionais – Política Urbana – Requalificação.

AbstractThe paper investigates the actions to the rehabilitation of social housing in the city of São Paulo and compares that

experience with the policies to the rehabilitation of social housing in France, where that issue accumulates decades of expe-rience, providing the evaluation of their results, with successes and failures. The analytical basis is the set of actions aimed at rehabilitation of social housing of COHAB-SP - Metropolitan Housing Company of São Paulo, more specifically those structured in the “Viver Melhor” with the aim of improving the quality of life to the residents, the first action of the Company specifically structured for this purpose. With the identification of the main features of the production of the social hous-

* O presente artigo é versão revista do paper apresentado ao III Congresso Internacional na Recuperação, Ma-nutenção e Restauração de Edifícios, realizado em 12-14/05/2010 no Rio de Janeiro, originado de pesquisa de mestrado (Otero, 2009) sob orientação de Maria Lúcia Refinetti Martins.

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ing of COHAB-SP, which resulted in problems that conditioned large groups of population to a routine of segregation and exclusion, reinforcing patterns already present on the structuring of the metropolitan area. The evaluation of the policies of rehabilitation is developed searching to identify the possibilities to the transformation of the urban reality.

Keywords: Social Housing – Urban Policy – Requalification.

O processo de desenvolvimento urbano brasileiro legou a nossas cidades duas realidades urbanas bastan-te distintas, porém complementares e coerentes com o processo histórico de formação de nossa sociedade: de um lado, áreas habitadas pelas camadas de alta renda, com alta qualidade urbanística e ambiental, servidas pelos equipamentos e amenidades públicos ou priva-dos (integradas ao circuito imobiliário capitalista); de outro, extensas áreas habitadas pelas camadas popu-lares, carentes de equipamentos e serviços públicos, infra-estrutura urbana, postos de trabalho e consumo e áreas de lazer, entre outros (quase sempre à margem do mercado imobiliário capitalista).

Nesse processo, o Estado brasileiro desempe-nhou, de forma direta e indireta, um papel determi-nante que resultou na configuração atual de nossas cidades. Especialmente após 1964, com a criação do Banco Nacional da Habitação (BNH), o Estado nacional passou a ser um agente importante na pro-dução do espaço urbano. A despeito das políticas habitacionais voltadas para camadas populares ja-mais terem se aproximado das reais dimensões do problema, elas apresentaram resultados quantitati-vamente bastante significativos, sobretudo na sua realização por meio da produção de grandes con-juntos habitacionais.

Essa forma urbana, que passou a ser implantada em larga escala na periferia paulistana em meados dos anos 1970 – época em que esta forma era se-veramente questionada e abandonada na Europa, onde fora formulada –, resultou na formação de ter-ritórios marcados pela desigualdade, alienação e se-gregação urbanas. Tal como na Europa, os grandes conjuntos habitacionais edificados em São Paulo demandam amplas ações de requalificação voltadas à melhoria da qualidade de vida dessas populações, ações estas que ainda são bastante incipientes.

A produção dos grandes con-juntos no pós-guerra europeu: degradação e requalificação

A questão da habitação para classes trabalhado-ras mobilizou grande parte do debate arquitetônico e urbanístico desde o século 19, atingindo seu ápi-

ce no início do século 20, quando foram delinea-das as linhas gerais do que veio a ser denominado Movimento Moderno em Arquitetura, e que defi-niu as bases sobre as quais se estruturou a cidade moderna, com seu dogmatismo quanto à separação das funções da cidade: habitar, circular, trabalhar e divertir-se (nas horas livres).

Das pretensões originais de edificar um mundo novo, o “Neue Welt”, do Movimento Moderno, a partir do enfrentamento das contradições urbanas e sociais por meio da Arquitetura, passou-se, logo após o término da Segunda Grande Guerra, a um momento em que as utopias libertárias deram lu-gar à instrumentalização dos preceitos modernos para a reconstrução do pós-guerra, fundamentais para a reorganização da produção e do consumo, especialmente num contexto de formação de um mercado capitalista de consumo de massa. Coube ao Estado assumir o desafio da produção habitacio-nal em massa, devido à constatação de que o setor privado, regido apenas pelas leis do mercado, não tinha condições de atender a essa demanda, pois sua capacidade produtiva estava desarticulada em função da II Guerra Mundial (Farah, 1990).

Na esteira da transposição da racionalidade da in-dústria à produção do espaço urbano, esse dogmatis-mo, implantado sob o Estado de bem-estar estruturado na Europa, acabou por reduzir a questão da moradia à multiplicação de unidades habitacionais, ao enfrentar a questão do déficit habitacional por meio da produ-ção de milhares de unidades, em espaços que não se tornavam (e nem se tornariam) cidade. O trabalhador obteve sua moradia, mas perdeu a cidade.

Na França, a promoção dos grandes conjuntos teve início entre 1954 e 1955, mas só ganhou força a partir de 1958, com a criação das Zonas de Ur-banização Prioritária (Zones à Urbaniser en Priorité – ZUP), destinadas à construção de moradias so-ciais que tivessem, no mínimo, 500 unidades (Slo-miansky, 2002). Entre 1958 e 1964 foram criadas 155 ZUPs, totalizando uma área de 17.000 ha, as quais apresentavam um potencial de edificação de aproximadamente 655 mil unidades habitacionais. Desse total, apenas 2.800 ha encontravam-se ocu-padas de alguma forma, em 120 ZUPs, em 1964,

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havendo 33.200 moradias construídas e 57.400 em construção, o que denota a dificuldade de opera-cionalizar essas zonas (Blos, 1999).

O esforço francês de produção habitacional re-sultou num dos mais significativos e emblemáticos processos de industrialização da construção civil do mundo, ao articular um grande parque indus-trial privado que era capitaneado pelo Estado. A ampliação da escala dos empreendimentos habita-cionais permitiu a redução dos custos das unida-des, devido ao aumento da produtividade, pois a industrialização da construção permitia reduzir o custo representado pela mão de obra no custo final da habitação. Entretanto, a multiplicação de tor-res e lâminas de concreto e aço, que reproduziam uma morfologia pobre e rígida, levou à formação de vastas cidades-dormitório vinculadas precariamen-te aos demais usos e funções da cidade, demons-trando que a simples “repetição de blocos sempre iguais, que a somatória linear de mesmas unidades (...) não são suficientes para formar espaços ur-banos com escala e dimensões humanas” (Bruna, 1972, p. 31-2).

A urgência da produção em massa teve resul-tados urbanísticos desastrosos. Especialmente na França, esse tipo de atuação, sob a forma de produ-ção dos grands ensembles, marcou indelevelmente a paisagem suburbana de grandes cidades, sobretudo Paris. A rejeição desse modelo se acentuou um pou-co mais tarde, possivelmente devido ao “contraste entre uma das mais ricas culturas do mundo – ao longo das margens do Sena – e a experiência de reduzir o assentamento urbano a um dormitório de concreto proporcionado pelo Estado” (Castells, 1983, p.121). Apesar disso, ao longo das primei-ras décadas, os grandes conjuntos possibilitaram o atendimento adequado das necessidades habitacio-nais da classe trabalhadora. Num cenário econômi-co favorável, os grands ensembles permitiram aos operários franceses uma moradia digna (como em nenhum momento histórico anterior) e um hori-zonte em que se delineava a perspectiva de ascensão social. Os grandes conjuntos franceses acabaram funcionando como um “trampolim” para aquelas populações que, em virtude de melhorias socioeco-nômicas, acabavam abandonando os conjuntos.

Em 1973 o Estado nacional francês reagiu às crí-ticas crescentes contra essa forma urbana, proibin-do a construção de grandes conjuntos (Fourcaut, 2002). É forçoso observar que nessa essa época o esforço de reconstrução já havia sido concluído, do que se depreende que esses conjuntos só fo-

ram abandonados quando a demanda habitacional já havia sido equacionada, especialmente quando comparada com as condições habitacionais vividas pela classe trabalhadora até a primeira metade do século 20.

As condições de segregação e alienação urbanas – presentes nesses territórios desde sua implanta-ção – acirraram-se sobremaneira a partir da crise econômica instalada com os choques do petróleo na década de 1970, a qual foi seguida pela substi-tuição progressiva das populações dos conjuntos de residentes de origem francesa por imigrantes (prin-cipalmente do norte da África). Às dificuldades inerentes aos problemas espaciais veio se somar a concentração da população socialmente mais frágil do país. No início dos anos 80, a sobreposição de problemas espaciais com mazelas sociais levou fi-nalmente à explosão de ondas de protesto e violên-cia, tendo os grandes conjuntos como palco (Bour-dieu, 2007). Nesse momento os perímetros dos conjuntos apresentavam um quadro de segregação social das famílias residentes (a maioria de origem estrangeira) que era muito grave, com grande por-centagem de moradores jovens e um alto grau de degradação dessas áreas, o que resultou num in-tenso preconceito dos demais setores da cidade em relação a esses locais (Harburger, 1987).

Como resposta a esses conflitos latentes foram elaborados diagnósticos que buscavam as origens dos problemas e suas possibilidades de superação. As críticas inicialmente direcionaram-se para os as-pectos formais dos conjuntos e as condições físi-cas, tanto em sua relação com o restante da cidade quanto à oferta de equipamentos e infra-estrutura.

Desde os primeiros anos da década de 1980 inúmeros programas e ações foram desenvolvidos com o intuito de melhorar a qualidade de vida nos conjuntos periféricos franceses, evoluindo de ações pontuais e restritas aos seus limites até atingir o ní-vel de grandes políticas nacionais de intervenção em escala regional, que passaram a enfocar a di-nâmica urbana como um todo e a necessidade de atuar sobre a relação entre os grandes conjuntos habitacionais e as cidades que os abrigam. Alguns conjuntos receberam intervenções praticamente de todos os programas que foram se sucedendo ao lon-go de quase três décadas (Blos, 1999). Ainda assim, continuam a apresentar um cenário de degradação ambiental e conflito social, como é o caso da mu-nicipalidade de Clichy-sous-Bois, que, a despeito de figurar nos programas de investimento e reabi-litação para os grands ensembles desde o início dos

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anos 80, foi palco de recente explosão de violência na periferia metropolitana de Paris em 2005.

A grande questão subjacente é que nenhum des-ses programas – por mais amplos e complexos que fossem seus desenhos de operação – enfrentou os mecanismos que (re)produziam as condições de se-gregação espacial e exclusão social. Aliás, estes pro-gramas foram implantados no momento em que as políticas de desregulamentação e liberalização eco-nômica mais avançaram, um momento em que os direitos sociais eram mais solapados. Contraditoria-mente, procurou-se responder a problemas sociais e econômicos estruturais por meio de políticas pon-tuais e superficiais (Bourdieu, 2007, p.215).

A produção dos grandes conjun-tos em São Paulo

Ao longo do século 20, o Brasil passou por ver-tiginosos processos de urbanização e industrializa-ção, o que gerou uma demanda de investimentos na produção de novas habitações e de infra-estrutura urbana. Contudo, a universalização do direito à ci-dade e à moradia digna, assim como o acesso às redes de serviços urbanos, jamais figurou entre as prioridades de ação do Estado brasileiro.

Uma política nacional de habitação popular, para além de ações descoordenadas e pontuais, só se concretizaria efetivamente com a criação, em 1964, do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e do Banco Nacional da Habitação (BNH), incor-porando grande parte das formulações e propostas desenvolvidas ao longo dos anos anteriores.

Se o SFH/BNH, por um lado, tinha entre seus ob-jetivos manifestos a melhoria das condições de mora-dia das camadas populares, também previa, por outro lado, o incentivo à indústria da construção civil e à geração de empregos. Entre 1964 e 1986, período em que atuou, o SFH/BNH foi agente importante na dina-mização e modernização do mercado da construção civil, sendo identificado por alguns autores como um dos principais responsáveis pela “estruturação e con-solidação de um mercado imobiliário urbano capitalis-ta” (Maricato, 1996, p. 44) no Brasil. O SFH/BNH foi fundamental na dinamização da promoção imobiliá-ria e na verticalização das cidades brasileiras, na diver-sificação da indústria de materiais de construção e na consolidação das grandes construtoras, além de cons-tituir ferramenta importante econômica para a geração de empregos para mão de obra não especializada.

O BNH chegou a ser, a partir de 1969, o segun-do maior banco do país em magnitude de recursos,

ao administrar fundos provenientes da poupança compulsória dos trabalhadores, o Fundo de Ga-rantia do Tempo de Serviço (FGTS), e da reserva voluntária, o Sistema Brasileiro de Poupança e Em-préstimo (SBPE). Apesar da grandeza dos recursos envolvidos na operação do SFH/BNH, responsáveis pelo financiamento de cerca de 25% de todo o in-cremento imobiliário residencial no período 1964-1986, este foi um período em que a carência ha-bitacional, representada pelo aumento no número de moradias em favelas e loteamentos precários, cresceu dramaticamente, uma vez que apenas 20% desse incremento é representado pelo atendimento aos segmentos de baixa renda (Chaffun, 1997, p. 26). Sua atuação esteve muito distante de enfrentar a magnitude dos problemas relativos à carência ha-bitacional das camadas populares. Sua constituição sob uma lógica eminentemente empresarial, que não comportava soluções subsidiadas, excluía os segmentos de mais baixa renda do acesso aos finan-ciamentos. Em 1986, descapitalizado, com dívidas gigantescas, o BNH foi extinto.

Ao longo do período de existência do BNH, em que se verificou a atuação estatal mais efetiva na questão da moradia popular, em nenhum momento o real atendimento às demandas habitacionais das camadas de baixa renda efetivou-se como políti-ca de Estado destinada a universalizar o direito à moradia, ficando relegado à retórica dos discursos oficiais. O Estado procurou evitar qualquer tipo de ação que pudesse impactar no aumento dos custos de reprodução da força de trabalho, o que acabou restringindo o acesso da classe trabalhadora ao mer-cado habitacional capitalista (para o que necessita-ria de aumentos salariais significativos ou amplas políticas de subsídio governamental). Em função disso, para os interesses das “classes dominantes in-dustriais”, a “‘melhor’ política habitacional, no con-texto do subdesenvolvimento brasileiro, era a da ‘não-política habitacional’” (Ferreira, 2007, p. 45).

Ainda assim, o período de atuação do BNH foi quantitativamente o mais expressivo na promoção pública de unidades habitacionais. O atendimento voltado ao chamado “mercado popular”, focando as camadas de um a três salários mínimos e posterior-mente estendida até cinco salários mínimos, esteve a cargo das Companhias de Habitação (COHABs). Uma primeira geração de programas voltados a esse segmento tinha por princípio a produção em massa de unidades, especificamente sob a forma-conjunto habitacional, calcada na experiência europeia de re-construção durante o pós-guerra.

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Foto 1 - Vista dos conjuntos Santa Etelvina IVA e III-A, Cidade Tiradentes

Foto: Estevam Otero, 2008

Figura 1 - Localização dos conjuntos da COHAB-SP na Cidade de São Paulo sobre base SEMPLA/PMSP com a popu-lação residente por distrito e a concentração de empregos formais (Otero, 2009, p. 149)

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A produção sob a forma de grandes conjuntos to-mou impulso definitivo a partir de 1975, facilitada inclusive por uma legislação de zoneamento na cida-de de São Paulo que passou a admitir, em zona rural, a implantação de conjuntos habitacionais de iniciati-va do poder público, e exclusivamente esse tipo de ocupação urbana. Essa produção ocorreu em meio à distensão do regime autoritário, e se apresentou com uma progressiva perda qualitativa ao longo dos anos em relação àquelas primeiras intervenções desenvol-vidas pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) e pelo Departamento de Habitação Popular (DHP) do Distrito Federal (Rio de Janeiro), em escala e padrões até então desconhecidos no país. Os gran-des blocos que nessa época já marcavam o cenário da banlieue parisiense – e lá sofriam forte questio-namento –, passaram a ser produzidos na periferia paulistana, com resultados ainda piores.

Surgiram os “grandes conjuntos”, inaugurados com a implantação de Itaquera I a partir de 1977, na Zona Leste de São Paulo. Marcados por uma crescen-te precariedade, os grandes conjuntos implantados pela COHAB-SP na periferia da metrópole paulistana foram se sucedendo: José Bonifácio (1979 a 1990), Cidade Tiradentes (1973 a 1998), Sapopemba (1982 a 1983), Educandário (1983 a 1988) e Adventista (1986 a 1992) representaram grandes intervenções com projetos e recursos públicos, e que consegui-ram levar ao limite a alienação urbana e a segrega-ção socioespacial de vastos contingentes populacio-nais, chegando a representar, como no extremo da Zona Leste de São Paulo, proporção importante da população residente. No distrito Artur Alvim, onde se encontra implantado o complexo Itaquera I, as unidades em conjuntos da COHAB-SP representam 39,43% do total de 31.713 moradias ali existentes. No distrito José Bonifácio, os conjuntos da Com-panhia respondem por 74,73% do total de 28.925 residências. Em Cidade Tiradentes essa proporção atinge 85,03% dos 49.840 domicílios existentes no distrito (Censo IBGE/2000; COHAB-SP).

É evidente que a realidade socioeconômica bra-sileira, por ser tão diversa da francesa, apresenta características distintas quanto à gravidade das condições habitacionais e urbanas na comparação entre a periferia e a banlieue. O Estado de bem-estar social europeu promoveu uma política uni-versalista e integradora em relação à promoção ha-bitacional às classes trabalhadoras. Lá, a crise que se abateu sobre os subúrbios é fruto de uma gama complexa de fatores, possuindo uma considerável carga étnica e cultural.

Aqui jamais vimos uma política urbana inte-gradora e universal: as próprias características do BNH e sua lógica financeira conferiram ao sistema um traço excludente, que não atingia justamente os setores mais necessitados de sua atuação. Ainda as-sim, a promoção dos grandes conjuntos represen-tou uma produção significativa de unidades, bem como a constituição de vastos territórios onde se sobrepunham carências e problemas sociais, eco-nômicos e urbanísticos, comumente agravados pe-las próprias características dessa promoção.

Constata-se a baixa qualidade resultante dessa produção, na qual as premissas projetuais equivo-cadas e já superadas na matriz em que foram conce-bidas sobrepuseram-se as condições de segregação e exclusão, típicas de nossa formação social. O re-sultado pode ser verificado nos espaços resultantes dessa política, nos quais uma forma urbana proje-tada originalmente como extensão da racionalidade da indústria ao espaço de moradia do trabalhador passou a se configurar como um exílio econômico e social dentro da metrópole.

A busca por terras de menor custo –muitas ve-zes com características rurais –, extremamente afas-tadas da centralidade metropolitana; a elaboração de projetos que enfocavam a questão dos custos unitários sem se preocupar com a constituição de espaços urbanos qualificados; a péssima qualidade de execução; a carência de equipamentos, serviços e infra-estrutura urbana – tudo isso impactou nega-tivamente os conjuntos da Companhia.

A degradação presente nos grandes conjuntos da COHAB-SP tem origem tanto em problemas internos aos seus perímetros (carências de equi-pamentos e serviços públicos, rigidez e monofun-cionalidade tipológica e morfológica, assim como problemas de ordem construtiva), quanto naqueles decorrentes da relação dos conjuntos com a cidade (dificuldades de acessibilidade e mobilidade, dis-tância aos postos de trabalho e pontos de consumo e segregação socioespacial de seus moradores).

Reabilitação de conjuntos habi-tacionais em São Paulo

A constatação de que os conjuntos da COHAB-SP comportavam inúmeras carências, constituindo uma dívida não saldada da Companhia com seus mutuários, ocorreu há mais de duas décadas. Nes-se meio tempo, foram tomadas algumas iniciativas, com o intuito de reverter o quadro de precarieda-de e baixa qualidade de vida nesses espaços. En-

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tretanto, apenas a partir de 2001 tais iniciativas se traduziram no primeiro conjunto de ações organi-zado e articulado com o objetivo de reabilitar esses perímetros: o Programa Viver Melhor. Essa política não nasceu plenamente estruturada, mas foi sendo incrementada ao longo desse processo.

Para analisar e avaliar os resultados do progra-ma, tomou-se como chave os princípios definidos por Blos (1999: 459-460), que avalia a reabilitação dos grandes conjuntos na Europa a partir da capaci-dade dessas propostas de enfrentar três questões es-truturais e complementares, tanto internamente aos mesmos como em sua relação com a cidade conso-lidada: 1) a integração física: representada pela rup-tura do isolamento e insulamento tão característicos dessa forma urbana, envolvendo melhorias internas nos perímetros dos conjuntos e em sua relação com a cidade como um todo, relacionadas à qualificação urbanística interna e às condições de acessibilida-de e mobilidade; 2) a integração funcional: enten-dida como a descaracterização dessas áreas como cidades-dormitório, monofuncionais, de modo a produzir uma diversificação de usos e atividades que impliquem numa maior complexidade urbana, resultando em novas possibilidades de apropriação e numa nova dinâmica econômica, integrando-os ao circuito econômico da cidade à sua volta; e 3) e a integração social: representada pelo conjunto de medidas de qualificação social da população ali residente, rompendo com a condição de exclusão socioeconômica a que estes moradores se veem sub-metidos, enfrentando a dimensão social dos proble-mas que atingem essas áreas de forma global.

O Viver Melhor propunha uma série de ações integradas e de enfoque amplo, muitas vezes im-plantadas sob a forma de parcerias com outros ór-gãos públicos e/ou entidades civis, com o objetivo de promover a “inserção urbana”, a “melhoria da qualidade de vida” e a “inclusão dos moradores dos Conjuntos Habitacionais da Cohab SP e entornos” (Almeida & Franco, 2004, p.1).

Entre os objetivos específicos do programa, po-diam ser elencados os seguintes: destinação das áreas livres e otimização do uso dos núcleos comerciais e centros comunitários; ampliação do universo de fa-mílias atendidas, estimulando programas e projetos de entidades e associações, conforme a necessidade local; fomento ou participação em ações que imple-mentem equipamentos para a geração de renda, la-zer, cultura, educação, saúde, esporte e assistência social; incentivo ou cooperação em ações do plane-jamento urbano e ambiental; ações de regularização

de áreas e conjuntos habitacionais; e iniciativas que contribuam para regularização da situação contratu-al dos moradores (Almeida & Franco, 2004).

A Companhia reconhecia as carências sociais e ambientais presentes em seus conjuntos habitacio-nais, representadas pela inexistência ou baixa qua-lidade dos equipamentos e serviços públicos nesses espaços. Como decorrência desse reconhecimento buscou-se equipar os conjuntos que apresentavam as maiores carências, procurando, assim, dimi-nuir as desigualdades espaciais da infra-estrutura dos conjuntos em relação à cidade consolidada. A partir dessa constatação, a Diretoria de Patrimô-nio levantou os imóveis vazios de propriedade da Companhia (caracterizados como Área Institucio-nal ou como Área Reservada para COHAB) – e que apresentassem viabilidade para a implantação de equipamentos – e passou a oferecê-los aos diversos órgãos e secretarias municipais em busca de inte-ressados em implantá-los. Essa oferta de áreas des-pertou grande (e inesperado) interesse dos órgãos da Prefeitura. O Programa Viver Melhor foi estru-turado após essa primeira experiência, tendo como pontos de partida que: 1) a COHAB tinha inúmeros prédios sem destinação dentro dos conjuntos; 2) os conjuntos apresentavam grave déficit de equi-pamentos e serviços públicos; e 3) diversos órgãos do poder público e, eventualmente, associações da sociedade civil, tinham grande interesse em áreas para a implantação de equipamentos e projetos.

A partir disso, o programa começou a ser de-senhado e estruturado internamente na Diretoria de Patrimônio da Companhia. Estabeleceu-se uma Coordenação Técnica – cargo ocupado entre 2001 e 2002 pela arquiteta Margareth Uemura, e depois, até 2004, pelo arquiteto André Franco –, cuja fun-ção primordial era a articulação entre a Companhia e os órgãos e instituições parceiros, definindo e via-bilizando a ocupação das áreas da COHAB-SP. As demandas por ações nos conjuntos eram definidas em função do que se identificava como “passivos” presentes nos mesmos, decorrentes de sua concep-ção, projeto e implantação, entre outros. Mesmo nos conjuntos já regularizados – nos quais, portan-to, a COHAB-SP não teria quaisquer obrigações – percebia-se esse “passivo” a ser enfrentado.

Para estabelecer as prioridades de intervenção necessárias aos conjuntos a Companhia elaborou uma avaliação das condições presentes em cada um deles. As demandas de uso e ocupação das áreas eram estabelecidas pela equipe social da COHAB-SP, que realizava um diagnóstico dos equipamentos

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presentes no conjunto e em seu entorno. Dessa for-ma, os usos a serem implantados nos conjuntos habi-tacionais eram definidos originalmente pela COHAB em função da demanda por ela verificada. A partir da constatação dessas carências – em equipamentos de saúde, educação, cultura etc. –, a Companhia busca-va o órgão ou instituição responsável por esse atendi-mento, ofertando a área para a instalação do equipa-mento demandado, identificando o possível parceiro com interesse e/ou possibilidade em implantá-lo.

O programa teve início com a execução de um projeto-piloto no conjunto Santa Etelvina IIIA, esco-lhido por apresentar “indicadores socioeconômicos críticos”, e cujo objetivo era a “reversão do quadro de abandono e exclusão social” (Almeida & Franco, 2004, p. 8) dessa área. Cidade Tiradentes carregava, ainda, um grande simbolismo, pelo fato de consti-tuir o maior complexo de conjuntos realizado pela COHAB-SP.

O Viver Melhor possibilitou a viabilização de ou-tros programas da administração municipal, ao dis-ponibilizar alguns dos elementos fundamentais para a realização de políticas públicas: áreas urbanizadas sem custo para a Prefeitura e um diagnóstico prévio da demanda. Segundo a arquiteta Margareth Uemura, tanto os primeiros Telecentros quanto os primeiros Centros Educacionais Unificados (CEUs) da cidade de São Paulo foram implantados dentro de conjuntos habitacionais, em edificações ou terrenos viabilizados pelo programa. Isto também é verdade em relação ao Hospital de Cidade Tiradentes, igualmente viabiliza-do numa área da Companhia. Foram implantados 23 Telecentros pelo Viver Melhor, em 17 conjuntos habitacionais. Além desses, diversos equipamentos e serviços foram implantados sob a forma de parcerias entre a COHAB-SP e órgãos e secretarias do poder público.

Diversos centros comunitários e centros comer-ciais da Companhia, que se encontravam ociosos ou subutilizados, foram aproveitados pelo programa. Os projetos de reforma e adaptação eram realizados pelos arquitetos da COHAB-SP e as obras executadas pelos próprios funcionários responsáveis pela manutenção dos conjuntos. O Viver Melhor constituía, dessa for-ma, um programa de baixíssimo custo, pois permitia a implantação de equipamentos a partir da cessão de áreas que já faziam parte do patrimônio da COHAB-SP. Mesmo nos imóveis edificados, as intervenções consistiam em adaptações de baixo custo, podendo ser realizadas, muitas vezes, pelas equipes de manu-tenção da própria Companhia. Comportava, ainda, subprogramas voltados à melhoria geral da qualidade

de vida dos mutuários, desde a renegociação de dí-vidas das moradias e das unidades comerciais até a edificação de novas unidades, passando pela regula-rização documental dos conjuntos.

Se, por um lado, o programa possibilitou me-lhorias principalmente físicas nesses perímetros, por outro, o enfrentamento das questões envolvendo a integração funcional e social dos conjuntos à cida-de consolidada permaneceu sem resposta pelo Viver Melhor, de modo que a desintegração e o isolamen-to dessas áreas em relação à dinâmica econômica e social de São Paulo continuaram inalterados. Devido às características da produção dos grandes conjun-tos e a complexidade de seus problemas, verifica-se que estes extrapolam seus limites físicos, estabele-cendo relações com seu entorno imediato e com a cidade consolidada. Nessa limitação se assenta uma das fragilidades do Viver Melhor, uma vez que o mesmo esteve restrito às propriedades da COHAB-SP, portanto, aos perímetros dos conjuntos. Uma das razões de sua rápida e barata viabilização – o extenso patrimônio fundiário sem uso da Companhia – con-verteu-se numa de suas limitações. Dessa forma, o enfrentamento das questões envolvendo acessibili-dade urbana e a integração econômica e social desse território e dessa população, por exemplo, ficaram alijadas do escopo do programa. Mesmo questões inscritas no perímetro dos conjuntos, caso dos pro-blemas decorrentes da monofuncionalidade, rigidez formal e irregularidades na ocupação das áreas con-dominiais, comuns nos conjuntos objeto das ações do programa, não foram atendidas entre os objetivos do Viver Melhor. Isso não quer dizer que esses pon-tos não preocupassem seus gestores; entretanto, não foram encontradas possíveis respostas no âmbito das possibilidades abertas pelo programa.

Outro problema considerável diz respeito ao seu próprio desenho institucional. Como foi observado pela arquiteta Renata Milanesi, técnica da COHAB-SP, o programa jamais foi formalizado nem como estrutura executiva nem como programa oficial do-tado de recursos. À exigüidade da equipe somou-se a inexistência de uma dotação orçamentária que per-mitisse sustentar as ações do programa para além de parcerias localizadas, impedindo que a Companhia realizasse intervenções de maior monta na requalifi-cação física de determinadas áreas.

ConclusõesSinteticamente, o Viver Melhor pode ser descrito

como um grande esforço de articulação de ações de

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órgãos distintos, secretarias e entidades, coordenado pela COHAB-SP, com o fim de equipar os grandes conjuntos implantados pela municipalidade, por meio da utilização de seu estoque de terras e edifi-cações públicas sem uso. O Viver Melhor conseguiu produzir melhorias relativamente importantes na escala dos bairros, enfrentando a desigualdade de equipamentos e infra-estrutura entre essas áreas e a cidade consolidada. Entretanto, não foi capaz – e nem se propôs, é importante frisar – de oferecer respostas além dessa escala local: o programa, de um lado, não interferiu na questão da relação dos conjuntos com o restante da cidade e sua dinâmica, assim como não avançou nas questões diretamente relacionadas à monofuncionalidade e rigidez mor-fológica e tipológica ali encontradas. E, se por um lado, as ações de implantação de equipamentos, serviços e infra-estrutura acabaram por diminuir as desigualdades entre os grandes conjuntos e a cidade consolidada, não chegaram a alterar a lógica segre-gacionista refletida nesses espaços. A partir do Viver Melhor abriu-se a perspectiva de que, com a im-plantação de equipamentos e a disponibilização de serviços públicos, seriam melhoradas a qualidade ambiental e a qualidade de vida nesses conjuntos.

Contudo, segundo Altemir Almeida, ex-diretor de Patrimônio da COHAB-SP, as expectativas em relação aos resultados eram modestas: não se tinha a pretensão de romper com as condições de segre-gação das áreas, mas, sim, melhorar as condições de vida dessa população. Segundo avaliação de Al-meida, para que se tivesse essa abrangência ou essa perspectiva de impactar decisivamente a questão da segregação urbana, seria necessário um programa mais amplo, possivelmente articulado a partir de uma ação intersecretarial, coordenada a partir do Gabinete do Prefeito, constituindo-se, verdadeira-mente, numa política de governo, uma vez que as questões suscitadas por esse enfrentamento trans-cendem o âmbito e o alcance da atuação de um ór-gão como a COHAB.

Aí possivelmente reside o grande problema, ao se esperar do Viver Melhor a redução da segregação socioespacial dos moradores dos grandes conjuntos habitacionais de São Paulo. Dessa maneira, parece que o programa atingia seus objetivos ao mesmo tempo em que encontrava seus limites, demons-trando que para esse enfrentamento é necessária uma formulação mais abrangente. Este fato é ain-da mais revelador quando se analisa a situação do complexo Cidade Tiradentes, onde a sobreposição de problemas de diversas escalas e características

impede sua resolução por meio de ações de caráter tão pontual, sem abranger a relação do complexo com a cidade. Se é indiscutível que impactou favo-ravelmente a qualidade de vida dos moradores de Cidade Tiradentes – ainda que isto se deva, funda-mentalmente, ao fato de se partir de um patamar reconhecidamente baixo na oferta de serviços pú-blicos –, o Viver Melhor ainda é um passo pequeno na reabilitação do complexo em direção ao pleno direito de seus habitantes à cidade.

É importante destacar que a reabilitação dos pe-rímetros dos grandes conjuntos habitacionais deve passar pela sua integração – física, funcional e social – à dinâmica urbana metropolitana, transcendendo seus limites. Mesmo internamente aos conjuntos, é fundamental enfrentar as irregularidades no uso e ocupação do solo, reflexo da incompatibilidade entre o projetado e o vivido nesses espaços. A ex-cessiva rigidez e a pobreza morfológica ali presen-tes devem ser alvos de propostas de requalificação que cheguem ao nível da edificação – o que poderia levar a um elevado grau de melhoria urbanística.

Essas observações críticas não diminuem a importância e a relevância do Viver Melhor como política pública de redução das desigualdades so-cioespaciais nos conjuntos, enfocando especifica-mente a questão do subequipamento de áreas pa-radoxalmente planejadas, projetadas e executadas pelo poder público. Na verdade, ele representou um primeiro passo rumo à garantia plena do acesso à cidade aos residentes em conjuntos da COHAB-SP, caminho este que deve ser complementado com outras ações que objetivem a completa integração dessas áreas à cidade consolidada.

Evidentemente, mesmo uma política ampla e integrada, enfocando a reabilitação dos conjuntos em todas as suas dimensões, teria limitações ao enfrentar a segregação socioespacial e a alienação urbanas. Por atuar eminentemente na esfera do consumo do espaço, essas ações interferem pouco nos elementos que agem na produção dessa reali-dade, impactando marginalmente as condições de segregação. A experiência francesa de reabilitação dos grandes conjuntos expressa isso muito clara-mente, onde décadas de vultosos investimentos e projetos competentes não foram capazes de alterar a realidade de segregação desses territórios, ainda que a qualidade de vida (representada por um grau bastante significativo de equipamentos e serviços urbanos) tenha se ampliado.

A partir de 2005, com a mudança de comando na administração municipal, o Viver Melhor teve

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suas operações interrompidas, a despeito do pro-grama jamais ter passado por uma avaliação pelo próprio poder público quanto a seus sucessos, percalços ou fracassos. O tema da reabilitação dos grandes conjuntos habitacionais de São Paulo dei-xou de ser pensado em termos de política pública,

como debate em torno de seus objetivos, alcance, abrangência ou resultados, voltando a ser uma de-manda difusa acerca de um “passivo” a ser enfren-tado num futuro que não tem perspectiva de ser alcançado a médio prazo.

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Maria Lúcia Refinetti Martins é professora associada do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquit-etura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), onde também é pesquisadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LABHAB). E-mail: <[email protected]>.

Estevam Vanale Otero é arquiteto e urbanista, mestre pela FAU/USP, pesquisador do LABHAB/FAUUSP e pro-fessor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da ASSER-Rio Claro. E-Mail: <[email protected]>.

Recebido para avaliação em outubro de 2010.Aprovado para publicção em fevereiro de 2011.

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Resenhas

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Compromisso acadêmico-político para discutir a escola, sua reconfiguração,

seus atores e seus determinantes

Resenha: ABRAMOWICZ, Anete; ARROYO, Miguel. A reconfiguração da Escola – entre a negação e a afirmação de direitos. Campinas: Papirus, 2009. 160 p. Coleção Papirus Educação. ISBN: 8530808967.

AGUILAR, Luis Enrique

Resenhar o livro organizado por Anete Abra-movicz e Miguel Arroyo é um privilégio sem igual, e por isso afirmo que devemos ler este conjunto organizado de perspectivas que buscam decifrar o fracasso escolar de crianças.

O caráter atemporal do fracasso escolar faz com que a escolha desta temática pelos autores e organi-zadores seja extremamente oportuna, pois exibe uma preocupação genuína de analisar e intervir que é tam-bém atemporal. Essa preocupação mostra, tanto na escolha das apresentações dos autores como na pró-pria estrutura do livro, o compromisso acadêmico-político indispensável para se discutir a escola, sua reconfiguração, seus atores e seus determinantes.

Por que as crianças não apreendem? A resposta que o livro apresenta percorre o espaço das análi-ses, bem como as intervenções, pois a presença per-manente do fracasso escolar exige, cada vez mais, respostas e soluções urgentes.

A arquitetura do livro nos coloca inicialmente frente a uma visão da Construção social do fracas-so escolar (Bernard Charlot) que articula o discurso social e as mediações da mídia para compreender o processo de construção na relação entre alunos, es-cola, qualidade e saber. É valiosa a noção de processo histórico na análise do fracasso escolar, bem como seu contraponto com o êxito, assim como também são valiosas as releituras sociológicas, didáticas e pedagógicas, especialmente as que remetem à Apro-priação de saberes. As políticas, ações e desempenho

escolar (Bernardete Gatti) reúnem as preocupações educacionais brasileiras numa visão do fracasso es-colar a partir dos efeitos das políticas de avaliação dos sistemas nacional, estadual e municipal.

Parece inegável reconhecer que os efeitos da divulgação das informações sobre desempenho es-colar tiveram e têm um impacto que a cada ano cresce em importância individual e institucional, decorrendo disto que na extensa geografia brasilei-ra comecem a se contar experiências municipais e estaduais de sucesso na tentativa de compreender, propor e implantar soluções a esta problemática. Já a Escola sul-africana entre a aprovação para to-dos e seleção da elite (Claude Carpentier) conduz a reflexão para a transcendência do significado da luta pela desigualdade herdada do apartheid no contexto da transição política da primeira metade dos anos 90. A contribuição deste texto nos leva à compreensão das contradições da avaliação (certifi-cate), seletividade e exclusão do sistema educacio-nal sul-africano e fundamentalmente da realidade das desigualdades e assimetrias regionais (provin-ciais), que são não apenas desigualdades educacio-nais, mas também, e especialmente, desigualdades sociais e raciais acumuladas ao longo da história e que se refletem em resultados igualmente decep-cionantes, quando analisados sob o ponto de vista comparativo no contexto geral.

Para analisar a importância significativa dos “es-paços virtuais de aprendizagem profissional da do-

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cência (como estratégia superadora do fracasso es-colar) e suas contribuições para as aprendizagens de alunos da educação básica” (Aline M. de M.R. Reali e Maria da Graça N. Mizukami), deve ser reconhe-cido o valor significativo como desenvolvimento essencialmente profissional. Ainda neste texto, as preocupações com a aprendizagem dos alunos se vinculam à aprendizagem dos professores, e ambas se entrecruzam com inúmeros repertórios de polí-ticas de capacitação docente em redes educacionais que aglutinam e raramente integram docentes com experiências docentes de extremas diversidades e trajetórias. Nas comunidades de docentes talvez esteja um recurso inovador e superador das cos-tumeiras ondas de qualificação de docentes como estratégia única.

Encerram esta arquitetura, que busca compre-ender o fracasso escolar e sua pluri-determinação, dois textos fundamentais. No primeiro, a abor-dagem sobre o “Fracasso escolar na sociedade de controle”, (Anete Abramovicz, Tatiane Cosentino Rodrigues e Ana Cristina Juvenal da Cruz), mais uma década após a publicação do reconhecido li-vro Para além do fracasso escolar. A abordagem permite que o leitor afiance todo um panorama desenhado pelos caminhos da desigualdade social e cultural, sem desvincular a relação direta que se evidencia entre origem social e performance. Parece importante observar que a cronologia da atualida-de do debate sobre fracasso escolar irá progressiva-mente assumindo a sintonia das mudanças políti-cas e ideológicas no país, e isto explica também a

relevância que assumiria o fracasso escolar tanto do ponto de vista estatístico, avaliativo, profissio-nal, individual, institucional e fundamentalmente racial. Essa reflexão de percurso temporal mostra novos vetores de análise que se (re)configurariam durante os últimos 20 anos.

Outro texto desenvolve uma reflexão profun-da como resposta à pergunta instigante quanto ao presente (e especialmente o futuro ameaçado) do “direito à educação em contextos de segregação e resistência social e escolar” (Miguel Arroyo). Este texto possui a peculiaridade da denúncia, e alerta o leitor, ao convidá-lo (também) a fazer o percurso que escolas, professores e alunos fazem a partir dos anos 90 nas redes municipais e estaduais do Brasil. Isto, do ponto de vista cronológico, exibe com niti-dez os contornos da relação entre políticas e efeitos diretos sobre percursos de segregação educacional. A urgência do autor em politizar a reprovação, olhar a repolitização dos mecanismos de avaliação e analisar as avaliações e seus efeitos como Políti-cas de Estado é legítima e chama a atenção para a avaliação dos ainda não civilizados, bem como para a importância de (re)significar politicamente a avaliação-segregação.

Finalmente, este sólido conjunto de reflexões deixa uma mensagem: repolitizar impõe deter por um instante o incessante ritmo dos mecanismos classificatórios, ranqueadores e comparativos de instituições e pessoas. É fundamental nos determos para nos enxergarmos como um exercício de afir-mação de direitos.

Luis Enrique Aguilar é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: <[email protected]>.

Recebido para avaliação em outubro de 2010. Aprovado para publicação em dezembro de 2010.

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A “Era Lula” e a “Grande Imprensa”: crônica de uma relação viciada

Resenha: PEREIRA, Merval. O Lulismo no Poder. Rio de Janeiro: Record, 2010. 784 p. ISBN: 8501088978.

LATTMAN-WELTMAN, Fernando

É fácil perceber que o jornalismo brasileiro pas-sa por uma profunda transição – senão uma autên-tica crise de identidade. Basta um olhar um pouco mais acurado sobre a produção atual de nossa mí-dia, ou então uma maior atenção ao conteúdo de determinadas manifestações públicas de represen-tantes do setor.

Nessa crise, ou transição, alguns veículos e jor-nalistas têm se destacado, não só, ou não exatamen-te, por sua qualidade ou talento – que em muitos casos felizes é fácil ser constatado –, mas sim pelo papel de certo modo paradigmático que vem de-sempenhando no sentido de redefinir os contornos da atividade em meio à turbulência da mudança.

Estes parecem ser os casos, justamente, do jor-nal carioca O Globo, e mais particularmente de seu principal comentarista político atual, o jornalista Merval Pereira.

Maior veículo da chamada grande imprensa es-crita no Rio – a imprensa “formadora de opinião”, como se costuma dizer –, O Globo vem enfrentan-do os desafios, impostos pela revolução tecnológica às chamadas mídias tradicionais, com criatividade e visíveis investimentos em qualidade de texto e análise, seguindo e reafirmando tendências mais amplas, tanto no espaço quanto no tempo, de rea-linhamento da mídia jornal no conjunto dos meios de comunicação.

Contudo, em relação mais especificamente à co-bertura jornalística da política, esse movimento em

direção à análise e à interpretação vem evoluindo ao sabor das mudanças conjunturais do tema em ques-tão, na medida em que, como sabemos há já algum tempo, a mídia está longe de se constituir apenas em mero espectador ou analista distante dos acon-tecimentos. Ou seja: esse processo de redefinição do lugar próprio à imprensa escrita na economia polí-tica geral da comunicação de massas, no contexto específico de mudança de poder operada no Estado brasileiro há quase uma década, parece tornar ain-da mais visíveis – ou sensíveis – as interconexões e implicações mútuas entre a mídia como instituição política e as demais organizações dessa esfera na moderna democracia, igualmente de massas.

Na liderança efetiva da linha editorial de O Globo – e não apenas dele, mas também de outros veículos do grupo de comunicação a que este jor-nal pertence –, Merval Pereira vem marcando sua atuação como comentarista com um engajamen-to constante e consistente no que parece ser um projeto político claro ou, melhor ainda, civiliza-tório. Um projeto coerente e duradouro, embasa-do num diálogo franco e aberto com a academia e demais setores pensantes da sociedade brasileira, mas nem por isso totalmente desprovido, talvez, de certas contradições. Digo civilizatório porque a crônica de Merval não se trata absolutamente de um caso de adoção de simples perspectiva políti-co-partidária, mais ou menos conjuntural, e sim de uma ampla construção ideológica relativa à to-

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talidade da dimensão pública da vida brasileira na democracia contemporânea.

O leitor interessado pode agora ter acesso, in totum, a essa produção, graças à publicação, pela Editora Record, do Rio de Janeiro, em mais de 770 páginas, das crônicas de Merval Pereira, desde a eleição de 2002, até a última, deste ano, sob o título O Lulismo no Poder.

Dividida primordialmente por temáticas – “do petismo ao lulismo”, “o aparelhamento do estado”, “José Dirceu e o mensalão” etc. –, cada uma orga-nizada cronologicamente, a obra é provavelmente o melhor acesso ao padrão de imaginação jornalística predominante em nosso país, quanto aos principais significados atribuídos por importantes setores de nossas elites à atual experiência petista (ou lulista, como prefere Merval) no poder.

Nesse sentido, é importante destacar, em primeiro lugar, as dimensões especificamente discursivas da crônica jornalística como gênero literário. Merval Pereira se insere numa longa e célebre tradição de jornalismo político brasilei-ro, cuja transformação, na pena do jornalista, pode guardar significados históricos mais am-plos, além das características de estilo e projeto que distinguem o autor de seus antecessores (e contemporâneos). Num momento em que se tor-na comum, entre os cronistas, certa competição a qualquer custo pela primazia do histrionismo jornalístico – algo como o direito a ocupar a cá-tedra “Paulo Francis” (há tempos vaga) do pole-mismo midiático nacional –, o texto de Merval destaca-se pela sobriedade com que aborda até mesmo o mais burlesco evento das nossas con-junturas, sem abrir mão, no entanto, de posicio-nar-se claramente na arena política e moral assim mobilizada (ou mobilizável).

Compartilhando do mesmo engajamento que hoje marca, digamos, a mainstream do nosso colu-nismo – mas não incorrendo nos deslizes de estilo e eventual perda do senso de ridículo que frequen-temente acometem seus colegas mais afoitos –, o cronista político dos veículos da família Marinho mantém-se numa espécie de difícil equidistância: entre a busca pelo equilíbrio e a imparcialidade partidária – característica de alguns dos melhores momentos de nossa crônica, nas penas, por exem-plo, de um Castellinho ou de um Villas-Boas –, e a afirmação clara de uma posição normativa, com a qual pretende exercer uma crítica suposta e etica-mente superior aos atores efetivos do grande drama (ou comédia) da política nacional.

É justamente essa presunção que leva nosso autor a incorrer sistematicamente naquilo que considero seu maior equívoco – equívoco compreensível e per-feitamente perdoável, pois a crônica jornalística tem qualidades e limitações específicas –, mas que não pode deixar de cobrar seu preço político inexorável, como ilustrado claramente no título escolhido para sua coletânea: o de conferir ao que chama de “lulis-mo” (ou seja, ao conjunto da experiência política do exercício do poder pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010)), uma consistência e um sen-tido histórico unívocos. Ao tratar todos os eventos e contramarchas de um governo, de uma adminis-tração – um longo, complexo e multifacetado gover-no, no heterogêneo e extraordinariamente dinâmico Brasil de hoje –, como algo tão facilmente rotulável, Merval não somente corre o risco de reduzir uma rea-lidade complexa a um conceito vago (risco comum e, de certo modo inevitável, numa atividade intelectual tão rápida e tensa como é o jornalismo profissional contemporâneo). Mas também corre o risco especi-ficamente político de tomar como unidimensional e coerente o que é múltiplo e contraditório, como monolítico o que é fraturado, como ideológico o que é muito mais pragmático, como culturalmente con-sistente o que é híbrido e sincrético, como bom, ou mau – à maneira maniqueísta – o que não é neces-sariamente nem uma coisa nem outra, como estan-do, enfim, pronto e fechado aquilo que na verdade encontra-se aberto e em processo. E isto sobretudo quando se trata de um governo não findo (e que pode perdurar por longo tempo, sob nova direção).

Porém, deixando de lado esses riscos, que ne-nhum historiador ou cientista político mais pruden-tes correriam – o que, portanto, deve contar a favor da coragem do jornalista –, a leitura de O Lulismo no Poder é mais do que recomendável a todo aquele que se interessa pela história brasileira recente, pela política, pelo jornalismo e, mais especificamente, pelo jornalismo político. Nesse sentido, de um pon-to de vista jornalístico rigorosamente técnico, o vo-lume é indispensável a quem deseja recapitular, com riqueza de detalhes, todas as principais conjunturas políticas da chamada Era Lula. Independentemen-te do gosto ou inclinação partidária do leitor, está tudo ali: a epopéia do Bolsa Família, os calvários de José Dirceu e Antônio Palocci, e as polêmicas envol-vendo a política externa do governo petista, entre outros enredos. Seria interessante pensar, inclusive, no caso de novas edições e na inclusão de índices temático e onomástico na obra. Isto seria muito útil para pesquisadores atuais e historiadores futuros.

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revistafaac, Bauru, v. 1, n. 1, abr./set. 2011.LATTMAN-WELTMAN, Fernando. A “Era Lula” e a “ Grande Imprensa”: crônica de uma relação viciada.

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No cômputo final, contudo, para além de Mer-val, suas qualidades e idiossincrasias, o que desfila perante o leitor é o relato exemplar e inquestioná-vel da construção de uma narrativa específica que procura dar conta das expectativas, frustrações e perplexidades acometidas a uma parcela estratégi-ca da sociedade brasileira de inícios do século 21 – que, correndo eu também os riscos da simplifi-cação, chamaria de intelligentzia da nossa grande classe média “formadora de opinião” – diante da experiência inédita de tomada do poder, por vias institucionais democráticas, por um grupo de out-siders históricos, tendo à frente seu líder carismáti-co e surpreendente.

A longa, consistente e exaustiva crônica de construção de uma relação viciada entre, de um lado, uma administração que levou ao comando da nação, ou muito próximo dele, um conjunto de atores e grupos que, em certos casos, nem sequer acreditavam ser possível fazê-lo, por meio das clás-sicas e amaldiçoadas instituições liberais – e que, por isso mesmo, muitas vezes se recusavam (e às vezes ainda se recusam) a assumir todas as conse-qüências dos jogos competitivos e plurais da de-mocracia –, e, de outro, veículos de comunicação e interlocução de grupos acostumados ao poder, uns e outros ciosos de suas prerrogativas e de seus supostos modelos de superioridade ética e institu-cional, desconfiando de tudo que pareça reverberar ecos passados de mobilização popular que sequer ameacem transbordar as margens do que se consi-dera adequado ou seguro, em matéria de participa-ção ou representação política.

Aqui talvez possa ser visto melhor o preço polí-tico a ser pago pela reiteração da crença na existên-cia de algo que possa ser chamado de “lulismo”: o de reduzir o outro a um rótulo mais ou menos pe-jorativo, levando-o naturalmente a reagir de modo igual ou pretensamente monolítico a tal crítica – ou ataque –, e a se portar como um oponente consis-tente e igualmente sistemático: um autêntico “ismo”

em ação e reação. Assim, a profecia do cronista (e, eventualmente, de sua legião) se auto-cumpre em seu engajamento consciente e consistente diante do adversário de sua escolha e eleição: o “lulismo” sur-ge como força ou projeto político poderoso e pra-ticamente imbatível (pelo menos na arena eleito-ral). Movimento político efetivamente consistente, como o denunciara o autor, embora talvez nunca tão efetivamente consistente quanto no enfrenta-mento dos oponentes e na busca e conquista de mais um mandato.

Finalmente, deve ser mencionado o modo como a crítica sóbria, porém engajada, de Merval Pereira aponta, talvez por sua consistência, para a inau-guração de nova identidade jornalística de nossa imprensa e nossa mídia: aquela em que nossos veí-culos passam, quem sabe, a assumir desembaraça-damente uma posição ideológica – ou até mesmo político-partidária – nas arenas comunicacionais nacionais.

Não seria propriamente uma inovação histórica local, especialmente quando comparada com cultu-ras jornalísticas de outras sociedades.

Entretanto, existem dois riscos que devem ser bem pesados e pensados por nossos jornalistas, se essa for sua escolha futura. O primeiro é o pos-sível impacto de tal decisão na credibilidade dos nossos veículos, formados há quase meio século em outra tradição (de pretensões objetivistas e imparciais). Não creio que seja totalmente impos-sível conciliar os dois registros. Mas certamente será preciso repensar e repactuar os contratos de leitura hoje estabelecidos entre muitos setores importantes do público.

O segundo, porém, é incontornável. Trata-se do risco comum aos partidos na competição democrá-tica: o de disputar, perder e ter de se conformar com o resultado.

Seja como for, justiça seja feita, poucos jornalis-tas brasileiros parecem estar mais preparados para esse desafio do que Merval Pereira.

Fernando Lattman-Weltman é professor e pesquisador da Escola de Ciências Sociais e História do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). E-mail: <[email protected]>.

Recebido para avaliação em outubro de 2010. Aprovado para publicação em dezembro de 2010.

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