REVISTA DA EJUD/2 - no. 2

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Escola da Magistratura do Tribunal Regional do Trabalho da 2 Regio 2007 DIREO DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 2 REGIOPresidente

Desembargador Antonio Jos Teixeira de Carvalho Desembargador DelvioBuffulin Desembargadora Wilma Nogueira de Arajo Vaz da Silva Desembargador Decio Sebastio DaidoneCorregedor Regional Vice-Presidente Judicial Vice-Presidente Administrativo

DIREO DA ESCOLA DA MAGISTRATURADesembargador Antonio Jos Teixeira de Carvalho Desembargadora Lizete Belido Barreto Rocha Juiz Carlos Roberto Husek Juiz Salvador Franco de Lima Laurino Juza Patrcia Therezinha de ToledoCoordenadores Diretor

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REVISTA DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 2 REGIO

Revista da Escola da Magistratura do Tribunal Regional do Trabalho da 2 Regio n 2 (set.2007) - So Paulo - Semestral - Revista oficial do TRT da 2 Regio So Paulo -

Frum Trabalhista Ruy Barbosa Av. Marqus de So Vicente, 235 10 andar Torre A So Paulo SP 01139-001 Fone (11) 3525-9221 E-mail: [email protected]

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Palavra do Desembargador Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 2 Regio para a revista da EMATRAQuem atua no Tribunal Regional do Trabalho da 2. Regio e conhece a nossa realidade sabe que esta Corte responde pela mais significativa parcela dos nmeros apresentados pela Justia do Trabalho no Brasil. Alm de enorme a quantidade de feitos apreciados, tambm so extremamente variadas as atividades empresariais de onde advm os conflitos a ns submetidos. Por estes motivos, so muito eclticos os cursos e palestras desenvolvidos pela Coordenao da Escola da Magistratura desta Corte, visando o aprimoramento de juzes e servidores. Da mesma forma, os temas aqui discutidos adquirem importncia para outros Regionais medida que apontam para discusses de vanguarda, temas que ainda despontam nas lides obreiras e que sugerem a jurisprudncia que se formar. Logo, grata a minha satisfao ao apresentar a Revista da Escola da Magistratura contendo as realizaes desta gesto. certeza de sua importncia para os operadores do Direito, soma-se nossa gratido aos coordenadores da Escola da Magistratura do Tribunal Regional do Trabalho da 2. Regio: a Desembargadora Lizete Belido Barreto Rocha e os juzes Carlos Roberto Husek, Salvador Franco de Lima Laurino e Patrcia Therezinha de Toledo.

Antonio Jos Teixeira de CarvalhoDesembargador Presidente do Tribunal

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AGRADECIMENTOS

Em seu segundo nmero, a Revista da Escola da Magistratura do Tribunal Regional do Trabalho da 2 Regio rene artigos de Magistrados, Professores, Membros do Ministrio Pblico, Advogados e tantos outros doutrinadores que enriqueceram o debate jurdico em nossas atividades do ano de 2007. Amplia-se, desse modo, o acesso s atividades da Escola, cumprindo-se um dos maiores objetivos da instituio, que a divulgao do trabalho cientfico e do pensamento acadmico em prol do aprimoramento dos juzes e de todos os cultores do Direito. Mais uma vez, os nossos agradecimentos so dirigidos a cada um daqueles que, alm das palestras proferidas, honraram-nos com artigos vinculados aos temas de suas participaes nas atividades do ano de 2007.

Desembargadora Lizete Belido Barreto RochaCoordenadora da Escola da Magistratura do Tribunal Regional do Trabalho da 2 Regio

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SUMRIONeoconstitucionalismo e Constitucionalizao do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil) BARROSO, Lus Roberto .................................................................................. 11 Reconhecimento de Vnculo Empregatcio e Obrigaes Previdencirias BRAMANTE, Ivani Contini .............................................................................. 53 Execuo Fiscal Trabalhista: Princpio da Congruncia e Acordos aps o Trnsito em Julgado da Sentena CARAVACA, Albert .................................................................................. 61 Execuo das Contribuies Previdencirias na Justia do Trabalho Execuo de Contribuio Previdenciria de Deciso Declaratria. Prescrio e Decadncia CASTELO, Jorge Pinheiro Castelo e Nelson Albino Neto ........................... 73 Reforma Processual e o Cumprimento da Sentena no Processo do Trabalho: Citao do A Devedor, Multa de 10% e Novas Formas de Expropriao CHAVES, Luciano Athayde ................................................................................ 105 A Arrecadao da Contribuio Previdenciria na Justia do Trabalho Levada em Considerao para o Clculo de Benefcios Devidos ao Trabalhador? Situao Atual e Propostas de Aprimoramento CHAVES, Rodrigo F. M. .................................................................................. 127 O Recolhimento das Contribuies Previdencirias na Justia do Trabalho e a Relao Jurdica Previdenciria CORREIA, rica Paula Barcha ........................................................................... 137 Construo do Processo Constitucional-objetivo DIMOULIS, Dimitri e Soraya Regina Gasparetto Lunardi ............................ 147 O Direito Fundamental No Discriminao DUBUGRAS, Regina Maria Vasconcelos .......................................................... 165 Pluralismo Jurdico e Regulao (oito tendncias do direito contemporneo) FARIA, Jos Eduardo .................................................................................. 179

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Breves Notas sobre a Interpretao das Decises Judiciais MALLET, Estvo .................................................................................. 191 Contribuies Previdencirias na Justia do Trabalho OLIVA, Claudio Cesar Grizi ............................................................................... 211 Item I da Smula 368 do TST Ponderaes acerca de seus Impasses e Potenciais Solues OLIVEIRA, Fabrcio Lopes ................................................................................. 219 Atualidades sobre a Indenizao por Dano Moral Decorrente do Acidente do Trabalho OLIVEIRA, Sebastio Geraldo de ...................................................................... 237 A Eficcia do Direito Fundamental Segurana Jurdica: Dignidade da Pessoa Humana, Direitos Fundamentais e Proibio de Retrocesso Social no Direito Constitucional Brasileiro SARLET, Ingo Wolfgang .................................................................................. 271 Enunciados Aprovados na 1 Jornada de Direito Material e Processual na Justia do Trabalho Braslia, 23/11/2007 .................................................................................. 311 NDICE REMISSIVO DAS EMENTAS ............................................................ 327

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Lus Roberto Barroso

Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ. Mestre em Direito pela Yale Law School e Doutor livre-docente pela UERJ. Este trabalho foi escrito, em sua maior parte, durante minha estada na Universidade de San Francisco (USFCA). Sou grato a Jack Garvey pelo convite e por ter tornado a vida mais fcil durante minha estada por l. Sou igualmente grato a Nelson Diz, Ana Paula de Barcellos e Cludio Pereira de Souza Neto por haverem lido os originais e formulado crticas e sugestes valiosas, bem como a Eduardo Mendona, Teresa Melo e Danielle Lins pela ajuda inestimvel na pesquisa e na reviso do texto.

NEOCONSTITUCIONALISMO E CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)Sumrio: Introduo. Parte I. Neoconstitucionalismo e transformaes do direito constitucional contemporneo. I. Marco histrico. II. Marco filosfico. III. Marco terico. 1. A fora normativa da Constituio. 2. A expanso da jurisdio constitucional. 3. A nova interpretao constitucional. Parte II. A constitucionalizao do Direito. I. Generalidades. II. Origem e evoluo do fenmeno. III. A constitucionalizao do Direito no Brasil. 1. O direito infraconstitucional na Constituio. 2. A constitucionalizao do direito infraconstitucional. 3. Constitucionalizao do Direito e seus mecanismos de atuao prtica. IV. Alguns aspectos da constitucionalizao do Direito. 1. Direito civil. 2. Direito administrativo. 3. Direito penal. V. Constitucionalizao e judicializao das relaes sociais. Concluso

INTRODUO Chega de ao. Queremos promessas. Annimo Assim protestava o grafite, ainda em tinta fresca, inscrito no muro de uma cidade, no corao do mundo ocidental. A espirituosa inverso da lgica natural d conta de uma das marcas dessa gerao: a velocidade da transformao, a profuso de idias, a multiplicao das novidades. Vivemos a perplexidade e a angstia da

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acelerao da vida. Os tempos no andam propcios para doutrinas, mas para mensagens de consumo rpido. Para jingles, e no para sinfonias. O Direito vive uma grave crise existencial. No consegue entregar os dois produtos que fizeram sua reputao ao longo dos sculos. De fato, a injustia passeia pelas ruas com passos firmes3 e a insegurana a caracterstica da nossa era4. Na aflio dessa hora, imerso nos acontecimentos, no pode o intrprete beneficiar-se do distanciamento crtico em relao ao fenmeno que lhe cabe analisar. Ao contrrio, precisa operar em meio fumaa e espuma. Talvez esta seja uma boa explicao para o recurso recorrente aos prefixos ps e neo: ps-modernidade, pspositivismo, neoliberalismo, neoconstitucionalismo. Sabe-se que veio depois e que tem a pretenso de ser novo. Mas ainda no se sabe bem o que . Tudo ainda incerto. Pode ser avano. Pode ser uma volta ao passado. Pode ser apenas um movimento circular, uma dessas guinadas de 360 graus. O artigo que se segue procura estudar as causas e os efeitos das transformaes ocorridas no direito constitucional contemporneo, lanando sobre elas uma viso positiva e construtiva. Procura-se oferecer consolo e esperana. Algum dir que parece um texto de auto-ajuda. No adianta: ningum escapa do seu prprio tempo. Parte I N EOCONSTITUCIONALISMOCONTEMPORNEO

E TRANSFORMAES DO DIREITO CONSTITUCIONAL

Nos trs tpicos que se seguem, empreende-se o esforo de reconstituir, de maneira objetiva, a trajetria percorrida pelo direito constitucional nas ltimas dcadas, na Europa e no Brasil, levando em conta trs marcos fundamentais: o histrico, o terico e o filosfico. Neles esto contidas as idias e as mudanas de paradigma que mobilizaram a doutrina e a jurisprudncia nesse perodo, criando uma nova percepo da Constituio e de seu papel na interpretao jurdica em geral. I. Marco histrico O marco histrico do novo direito constitucional, na Europa continental, foi o constitucionalismo do ps-guerra, especialmente na Alemanha e na Itlia. No Brasil, foi a Constituio de 1988 e o processo de redemocratizao que ela ajudou a protagonizar. A seguir, breve exposio sobre cada um desses processos. A reconstitucionalizao da Europa, imediatamente aps a 2a. Grande Guerra e ao longo da segunda metade do sculo XX, redefiniu o lugar da Constituio3 4

Bertold Brecht, Elogio da dialtica. In: Antologia potica, 1977. John Kenneth Galbraith, A era da incerteza, 1984.

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e a influncia do direito constitucional sobre as instituies contemporneas. A aproximao das idias de constitucionalismo e de democracia produziu uma nova forma de organizao poltica, que atende por nomes diversos: Estado democrtico de direito, Estado constitucional de direito, Estado constitucional democrtico. Seria mau investimento de tempo e energia especular sobre sutilezas semnticas na matria. A principal referncia no desenvolvimento do novo direito constitucional a Lei Fundamental de Bonn (Constituio alem5), de 1949, e, especialmente, a criao do Tribunal Constitucional Federal, instalado em 1951. A partir da teve incio uma fecunda produo terica e jurisprudencial, responsvel pela ascenso cientfica do direito constitucional no mbito dos pases de tradio romano-germnica. A segunda referncia de destaque a da Constituio da Itlia, de 1947, e a subseqente instalao da Corte Constitucional, em 1956. Ao longo da dcada de 70, a redemocratizao e a reconstitucionalizao de Portugal (1976) e da Espanha (1978) agregaram valor e volume ao debate sobre o novo direito constitucional. No caso brasileiro, o renascimento do direito constitucional se deu, igualmente, no ambiente de reconstitucionalizao do pas, por ocasio da discusso prvia, convocao, elaborao e promulgao da Constituio de 1988. Sem embargo de vicissitudes de maior ou menor gravidade no seu texto, e da compulso com que tem sido emendada ao longo dos anos, a Constituio foi capaz de promover, de maneira bem sucedida, a travessia do Estado brasileiro de um regime autoritrio, intolerante e, por vezes, violento para um Estado democrtico de direito. Mais que isso: a Carta de 1988 tem propiciado o mais longo perodo de estabilidade institucional da histria republicana do pas. E no foram tempos banais. Ao longo da sua vigncia, destituiu-se por impeachment um Presidente da Repblica, houve um grave escndalo envolvendo a Comisso de Oramento da Cmara dos Deputados, foram afastados Senadores importantes no esquema de poder da Repblica, foi eleito um Presidente de oposio e do Partido dos Trabalhadores, surgiram denncias estridentes envolvendo esquemas de financiamento eleitoral e de vantagens para parlamentares, em meio a outros episdios. Em nenhum desses eventos houve a cogitao de qualquer soluo que no fosse o respeito legalidade constitucional. Nessa matria, percorremos em pouco tempo todos os ciclos do atraso6. Sob a Constituio de 1988, o direito constitucional no Brasil passou da desimportncia ao apogeu em menos de uma gerao. Uma Constituio no s tcnica. Tem de haver, por trs dela, a capacidade de simbolizar conquistas e de mobilizarA Constituio alem, promulgada em 1949, tem a designao originria de Lei Fundamental, que sublinhava seu carter provisrio, concebida que foi para uma fase de transio. A Constituio definitiva s deveria ser ratificada depois que o pas recuperasse a unidade. Em 31 de agosto de 1990 foi assinado o Tratado de Unificao, que regulou a adeso da Repblica Democrtica Alem (RDA) Repblica Federal da Alemanha (RFA). Aps a unificao no foi promulgada nova Constituio. Desde o dia 3 de outubro de 1990 a Lei Fundamental vigora em toda a Alemanha. 6 V. Luis Roberto Barroso, Doze anos da Constituio brasileira de 1988: uma breve e acidentada histria de sucesso. In: Temas de direito constitucional, t. I, 2002.5

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o imaginrio das pessoas para novos avanos. O surgimento de um sentimento constitucional no Pas algo que merece ser celebrado. Trata-se de um sentimento ainda tmido, mas real e sincero, de maior respeito pela Lei Maior, a despeito da volubilidade de seu texto. um grande progresso. Superamos a crnica indiferena que, historicamente, se manteve em relao Constituio. E, para os que sabem, a indiferena, no o dio, o contrrio do amor. II. Marco filosfico O marco filosfico do novo direito constitucional o ps-positivismo. O debate acerca de sua caracterizao situa-se na confluncia das duas grandes correntes de pensamento que oferecem paradigmas opostos para o Direito: o jusnaturalismo e o positivismo. Opostos, mas, por vezes, singularmente complementares. A quadra atual assinalada pela superao ou, talvez, sublimao dos modelos puros por um conjunto difuso e abrangente de idias, agrupadas sob o rtulo genrico de pspositivismo7. O jusnaturalismo moderno, desenvolvido a partir do sculo XVI, aproximou a lei da razo e transformou-se na filosofia natural do Direito. Fundado na crena em princpios de justia universalmente vlidos, foi o combustvel das revolues liberais e chegou ao apogeu com as Constituies escritas e as codificaes. Considerado metafsico e anti-cientfico, o direito natural foi empurrado para a margem da histria pela ascenso do positivismo jurdico, no final do sculo XIX. Em busca de objetividade cientfica, o positivismo equiparou o Direito lei, afastou-o da filosofia e de discusses como legitimidade e justia e dominou o pensamento jurdico da primeira metade do sculo XX. Sua decadncia emblematicamente associada derrota do fascismo na Itlia e do nazismo na Alemanha, regimes que promoveram a barbrie sob a proteo da legalidade. Ao fim da 2a. Guerra, a tica e os valores comeam a retornar ao Direito8. A superao histrica do jusnaturalismo e o fracasso poltico do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexes acerca do Direito, sua funo social e sua interpretao. O ps-positivismo busca ir alm da legalidade estrita, mas no despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafsicas. A interpretao e aplicao do ordenamento jurdicoAutores pioneiros nesse debate foram: John Rawls, A theory of justice, 1980; Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1977; Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1993. V. Albert Calsamiglia, Postpositivismo, Doxa 21:209, 1998, p. 209: En un cierto sentido la teora jurdica actual se pude denominar postpositivista precisamente porque muchas de las enseanzas del positivismo han sido aceptadas y hoy todos en un cierto sentido somos positivistas. (...) Denominar postpositivistas a las teoras contemporneas que ponen el acento en los problemas de la indeterminacin del derecho y las relaciones entre el derecho, la moral y la poltica. 8 Para um estudo mais aprofundado do tema, com referncias bibliogrficas, v. Lus Roberto Barroso, Fundamentos tericos e filosficos do novo direito constitucional brasileiro. In: Temas de direito constitucional, t. III.7

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ho de ser inspiradas por uma teoria de justia, mas no podem comportar voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de idias ricas e heterogneas que procuram abrigo neste paradigma em construo incluem-se a atribuio de normatividade aos princpios e a definio de suas relaes com valores e regras; a reabilitao da razo prtica e da argumentao jurdica; a formao de uma nova hermenutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximao entre o Direito e a filosofia9. III. Marco terico No plano terico, trs grandes transformaes subverteram o conhecimento convencional relativamente aplicao do direito constitucional: a) o reconhecimento de fora normativa Constituio; b) a expanso da jurisdio constitucional; c) o desenvolvimento de uma nova dogmtica da interpretao constitucional. A seguir, a anlise sucinta de cada uma delas. 1. A fora normativa da Constituio Uma das grandes mudanas de paradigma ocorridas ao longo do sculo XX foi a atribuio norma constitucional do status de norma jurdica. Superou-se, assim, o modelo que vigorou na Europa at meados do sculo passado, no qual a Constituio era vista como um documento essencialmente poltico, um convite atuao dos Poderes Pblicos. A concretizao de suas propostas ficava invariavelmente condicionada liberdade de conformao do legislador ou discricionariedade do administrador. Ao Judicirio no se reconhecia qualquer papel relevante na realizao do contedo da Constituio. Com a reconstitucionalizao que sobreveio 2a. Guerra Mundial, este quadro comeou a ser alterado. Inicialmente na Alemanha10 e, com maior retardo, na Itlia11. E, bem mais frente, em Portugal12 e na Espanha13. Atualmente, passou a serV. Ricardo Lobo Torres, Tratado de direito constitucional, financeiro e tributrio: Valores e princpios constitucionais tributrios, 2005, p. 41: De uns trinta anos para c assiste-se ao retorno aos valores como caminho para a superao dos positivismos. A partir do que se convencionou chamar de virada kantiana (kantische Wende), isto , a volta influncia da filosofia de Kant, deu-se a reaproximao entre tica e direito, com a fundamentao moral dos direitos humanos e com a busca da justia fundada no imperativo categrico. O livro A Theory of Justice de John Rawls, publicado em 1971, constitui a certido do renascimento dessas idias. 10 Trabalho seminal nessa matria o de Konrad Hesse, La fuerza normativa de la Constitucin. In: Escritos de derecho constitucional, 1983. O texto, no original alemo, correspondente sua aula inaugural na ctedra da Universidade de Freiburg, de 1959. H uma verso em lngua portuguesa: A fora normativa da Constituio, 1991, trad. Gilmar Ferreira Mendes. 11 V. Ricardo Guastini, La constitucionalizacin del ordenamiento jurdico. In: Miguel Carbonnel, Neoconstitucionalismo(s), 2003.9

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premissa do estudo da Constituio o reconhecimento de sua fora normativa, do carter vinculativo e obrigatrio de suas disposies. Vale dizer: as normas constitucionais so dotadas de imperatividade, que atributo de todas as normas jurdicas, e sua inobservncia h de deflagrar os mecanismos prprios de coao, de cumprimento forado. A propsito, cabe registrar que o desenvolvimento doutrinrio e jurisprudencial na matria no eliminou as tenses inevitveis que se formam entre as pretenses de normatividade do constituinte, de um lado, e, de outro lado, as circunstncias da realidade ftica e as eventuais resistncias do status quo. O debate acerca da fora normativa da Constituio s chegou ao Brasil, de maneira consistente, ao longo da dcada de 80, tendo enfrentado as resistncias previsveis14. Alm das complexidades inerentes concretizao de qualquer ordem jurdica, padecia o pas de patologias crnicas, ligadas ao autoritarismo e insinceridade constitucional. No surpresa, portanto, que as Constituies tivessem sido, at ento, repositrios de promessas vagas e de exortaes ao legislador infraconstitucional, sem aplicabilidade direta e imediata. Coube Constituio de 1988, bem como doutrina e jurisprudncia que se produziram a partir de sua promulgao, o mrito elevado de romper com a posio mais retrgrada. 2. A expanso da jurisdio constitucional Antes de 1945, vigorava na maior parte da Europa um modelo de supremacia do Poder Legislativo, na linha da doutrina inglesa de soberania do Parlamento e da concepo francesa da lei como expresso da vontade geral. A partir do final da dcada de 40, todavia, a onda constitucional trouxe no apenas novas constituies, mas tambm um novo modelo, inspirado pela experincia americana: o da supremacia da Constituio. A frmula envolvia a constitucionalizao dos direitos fundamentais, que ficavam imunizados em relao ao processo poltico majoritrio: sua proteo passava a caber ao Judicirio. Inmeros pases europeus vieram a adotar um modelo prprio de controle de constitucionalidade, associado criao de tribunais constitucionais.V. J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituio, 1991, p. 43 e ss.. Sobre a questo em perspectiva geral e sobre o caso especfico espanhol, vejam-se, respectivamente, dois trabalhos preciosos de Eduardo Garca de Enterra: La Constitucin como norma y el Tribunal Constitucional, 1991; e La constitucin espaola de 1978 como pacto social y como norma jurdica, 2003. 14 Lus Roberto Barroso, A efetividade das normas constitucionais: por que no uma Constituio para valer?. In: Anais do Congresso Nacional de Procuradores de Estado, 1986; e tb. A fora normativa da Constituio: Elementos para a efetividade das normas constitucionais, 1987, tese de livre-docncia apresentada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, publicada sob o ttulo O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 1990 (data da 1a. edio). Na dcada de 60, em outro contexto e movido por preocupaes distintas, Jos Afonso da Silva escreveu sua clebre tese Aplicabilidade das normas constitucionais, 1968.12 13

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Assim se passou, inicialmente, na Alemanha (1951) e na Itlia (1956), como assinalado. A partir da, o modelo de tribunais constitucionais se irradiou por toda a Europa continental. A tendncia prosseguiu com Chipre (1960) e Turquia (1961). No fluxo da democratizao ocorrida na dcada de 70, foram institudos tribunais constitucionais na Grcia (1975), na Espanha (1978) e em Portugal (1982). E tambm na Blgica (1984). Nos ltimos anos do sculo XX, foram criadas cortes constitucionais em pases do leste europeu, como Polnia (1986), Hungria (1990), Rssia (1991), Repblica Tcheca (1992), Romnia (1992), Repblica Eslovaca (1992) e Eslovnia (1993). O mesmo se passou em pases africanos, como Arglia (1989), frica do Sul (1996) e Moambique (2003). Atualmente na Europa, alm do Reino Unido, somente a Holanda e Luxemburgo ainda mantm o padro de supremacia parlamentar, sem adoo de qualquer modalidade de judicial review. O caso francs ser objeto de meno parte. No Brasil, o controle de constitucionalidade existe, em molde incidental, desde a primeira Constituio republicana, de 1891. A denominada ao genrica (ou, atualmente, ao direta), destinada ao controle por via principal abstrato e concentrado , foi introduzida pela Emenda Constitucional n 16, de 1965. Nada obstante, a jurisdio constitucional expandiu-se, verdadeiramente, a partir da Constituio de 1988. A causa determinante foi a ampliao do direito de propositura15. A ela somouse a criao de novos mecanismos de controle concentrado, como a ao declaratria de constitucionalidade16 e a regulamentao da argio de descumprimento de preceito fundamental17. No sistema constitucional brasileiro, o Supremo Tribunal Federal pode exercer o controle de constitucionalidade (i) em aes de sua competncia originria (CF, art. 102, I), (ii) por via de recurso extraordinrio (CF, art. 102, III) e (iii) em processos objetivos, nos quais se veiculam as aes diretas18. De 1988 at abril de 2005 j haviam sido ajuizadas 3.469 aes diretas de inconstitucionalidade (ADIn), 9 aes15 Desde a sua criao at a configurao que lhe foi dada pela Constituio de 1969, o direito de propositura da representao de inconstitucionalidade era monoplio do Procurador-Geral da Repblica. A Constituio de 1988 rompeu com esta hegemonia, prevendo um expressivo elenco de legitimados ativos no seu art. 103. 16 Introduzida pela Emenda Constitucional n 3, de 1993. V, ainda, Lei n 9.868, de 10.11.1999. 17 V. Lei n 9.882, de 3.12.99. Antes da lei, prevalecia o entendimento de que o mecanismo no era aplicvel. 18 As aes diretas no direito constitucional brasileiro so a ao direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, a), a ao declaratria de constitucionalidade (arts. 102, I, a, e 103, 4) e a ao direta de inconstitucionalidade por omisso (art. 103, 2). H, ainda, duas hipteses especiais de controle concentrado: a argio de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, 1) e a ao direta interventiva (art. 36, III). Sobre o tema do controle de constitucionalidade no direito brasileiro, v. dentre muitos: Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, 1990; Clmerson Merlin Clve, A fiscalizao abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro, 2000; Ronaldo Poletti, Controle da constitucionalidade das leis, 2001; Lnio Luiz Streck, Jurisdio constitucional e hermenutica, 2002; Zeno Velloso, Controle jurisdicional de constitucionalidade, 2003; e Lus Roberto Barroso, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, 2004.

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declaratrias de constitucionalidade e 69 argies de descumprimento de preceito fundamental. Para conter o nmero implausvel de recursos extraordinrios interpostos para o Supremo Tribunal Federal, a Emenda Constitucional n 45, que procedeu a diversas modificaes na disciplina do Poder Judicirio, criou a figura da repercusso geral da questo constitucional discutida, como requisito de admissibilidade do recurso19. 3. A nova interpretao constitucional A interpretao constitucional uma modalidade de interpretao jurdica. Tal circunstncia uma decorrncia natural da fora normativa da Constituio, isto , do reconhecimento de que as normas constitucionais so normas jurdicas, compartilhando de seus atributos. Porque assim , aplicam-se interpretao constitucional os elementos tradicionais de interpretao do Direito, de longa data definidos como o gramatical, o histrico, o sistemtico e o teleolgico. Cabe anotar, neste passo, para adiante voltar-se ao tema, que os critrios tradicionais de soluo de eventuais conflitos normativos so o hierrquico (lei superior prevalece sobre a inferior), o temporal (lei posterior prevalece sobre a anterior) e o especial (lei especial prevalece sobre a geral). Sem prejuzo do que se vem de afirmar, o fato que as especificidades das normas constitucionais (v. supra) levaram a doutrina e a jurisprudncia, j de muitos anos, a desenvolver ou sistematizar um elenco prprio de princpios aplicveis interpretao constitucional. Tais princpios, de natureza instrumental, e no material, so pressupostos lgicos, metodolgicos ou finalsticos da aplicao das normas constitucionais. So eles, na ordenao que se afigura mais adequada para as circunstncias brasileiras: o da supremacia da Constituio, o da presuno de constitucionalidade das normas e atos do Poder Pblico, o da interpretao conforme a Constituio, o da unidade, o da razoabilidade e o da efetividade20. Antes de prosseguir, cumpre fazer uma advertncia: a interpretao jurdica tradicional no est derrotada ou superada como um todo. Pelo contrrio, no seu mbito que continua a ser resolvida boa parte das questes jurdicas, provavelmente a maioria delas. Sucede, todavia, que os operadores jurdicos e os tericos do Direito se deram conta, nos ltimos tempos, de uma situao de carncia: as categorias tradicionais da interpretao jurdica no so inteiramente ajustadas para a soluo de um conjunto de problemas ligados realizao da vontade constitucional. A partir da deflagrou-se o processo de elaborao doutrinria de novos conceitos eA EC n 45/2004 introduziu o 3 do art. 102, com a seguinte dico: 3. No recurso extraordinrio o recorrente dever demonstrar a repercusso geral das questes constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admisso do recurso, somente podendo recus-lo pela manifestao de dois teros de seus membros. 20 V. Lus Roberto Barroso, Interpretao e aplicao da Constituio, 2003.19

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categorias, agrupados sob a denominao de nova interpretao constitucional, que se utiliza de um arsenal terico diversificado, em um verdadeiro sincretismo metodolgico21. Procede-se, a seguir, a uma breve comparao entre os dois modelos. A interpretao jurdica tradicional desenvolveu-se sobre duas grandes premissas: (i) quanto ao papel da norma, cabe a ela oferecer, no seu relato abstrato, a soluo para os problemas jurdicos; (ii) quanto ao papel do juiz, cabe a ele identificar, no ordenamento jurdico, a norma aplicvel ao problema a ser resolvido, revelando a soluo nela contida. Vale dizer: a resposta para os problemas est integralmente no sistema jurdico e o intrprete desempenha uma funo tcnica de conhecimento, de formulao de juzos de fato. No modelo convencional, as normas so percebidas como regras, enunciados descritivos de condutas a serem seguidas, aplicveis mediante subsuno22. Com o avano do direito constitucional, as premissas ideolgicas sobre as quais se erigiu o sistema de interpretao tradicional deixaram de ser integralmente satisfatrias. Assim: (i) quanto ao papel da norma, verificou-se que a soluo dos problemas jurdicos nem sempre se encontra no relato abstrato do texto normativo. Muitas vezes s possvel produzir a resposta constitucionalmente adequada luz do problema, dos fatos relevantes, analisados topicamente; (ii) quanto ao papel do juiz, j no lhe caber apenas uma funo de conhecimento tcnico, voltado para revelar a soluo contida no enunciado normativo. O intrprete torna-se co-participante do processo de criao do Direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer valoraes de sentido para as clusulas abertas e ao realizar escolhas entre solues possveis. Estas transformaes noticiadas acima, tanto em relao norma quanto ao intrprete, so ilustradas de maneira eloqente pelas diferentes categorias com as quais trabalha a nova interpretao. Dentre elas incluem-se as clusulas gerais, os princpios, as colises de normas constitucionais, a ponderao e a argumentao. Abaixo uma breve nota sobre cada uma delas. As denominadas clusulas gerais ou conceitos jurdicos indeterminados contm termos ou expresses de textura aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um incio de significao a ser complementado pelo intrprete, levando em conta asNo caso brasileiro, como no de outros pases de constitucionalizao recente, doutrina e jurisprudncia ainda se encontram em fase de elaborao e amadurecimento, fato que potencializa a importncia das referncias estrangeiras. Esta uma circunstncia histrica com a qual precisamos lidar, evitando dois extremos indesejveis: a subservincia intelectual, que implica na importao acrtica de frmulas alheias e, pior que tudo, a incapacidade de reflexo prpria; e a soberba intelectual, pela qual se rejeita aquilo que no se tem. Nesse ambiente, no possvel utilizar modelos puros, concebidos alhures, e se esforar para viver a vida dos outros. O sincretismo desde que consciente e coerente resulta sendo inevitvel e desejvel. Em viso aparentemente diversa, v. Virglio Afonso da Silva, Intepretao constitucional e sincretismo metodolgico. In: Virglio Afonso da Silva (org.), Interpretao constitucional, 2005. 22 Identificada a norma aplicvel, procede-se ao enquadramento do fato no relato da regra jurdica, pronunciando-se a concluso. Um raciocnio, portanto, de natureza silogstica, no qual a norma a premissa maior, o fato relevante a premissa menor e a concluso a sentena.21

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circunstncias do caso concreto. A norma em abstrato no contm integralmente os elementos de sua aplicao. Ao lidar com locues como ordem pblica, interesse social e boa f, dentre outras, o intrprete precisa fazer a valorao de fatores objetivos e subjetivos presentes na realidade ftica, de modo a definir o sentido e o alcance da norma. Como a soluo no se encontra integralmente no enunciado normativo, sua funo no poder limitar-se revelao do que l se contm; ele ter de ir alm, integrando o comando normativo com a sua prpria avaliao23. O reconhecimento de normatividade aos princpios e sua distino qualitativa em relao s regras um dos smbolos do ps-positivismo (v. supra). Princpios no so, como as regras, comandos imediatamente descritivos de condutas especficas, mas sim normas que consagram determinados valores ou indicam fins pblicos a serem realizados por diferentes meios. A definio do contedo de clusulas como dignidade da pessoa humana, razoabilidade, solidariedade e eficincia tambm transfere para o intrprete uma dose importante de discricionariedade. Como se percebe claramente, a menor densidade jurdica de tais normas impede que delas se extraia, no seu relato abstrato, a soluo completa das questes sobre as quais incidem. Tambm aqui, portanto, impe-se a atuao do intrprete na definio concreta de seu sentido e alcance24. A existncia de colises de normas constitucionais, tanto as de princpios como as de direitos fundamentais25, passou a ser percebida como um fenmeno natural at porque inevitvel no constitucionalismo contemporneo. As Constituies modernas so documentos dialticos, que consagram bens jurdicos que se contrapem. H choques potenciais entre a promoo do desenvolvimento e a proteo ambiental, entre a livre-iniciativa e a proteo do consumidor. No plano dos direitos fundamentais, a liberdade religiosa de um indivduo pode conflitar-se com a de outro, o direito de23 As clusulas gerais no so uma categoria nova no Direito de longa data elas integram a tcnica legislativa nem so privativas do direito constitucional podem ser encontradas no direito civil, no direito administrativo e em outros domnios. No obstante, elas so um bom exemplo de como o intrprete co-participante do processo de criao do Direito. Um exemplo real, amplamente divulgado pela imprensa: quando da morte da cantora Cssia Eller, disputaram a posse e guarda do seu filho, poca com cinco anos, o av materno e a companheira da artista. O critrio fornecido pela Constituio e pela legislao ao juiz era o de atender ao melhor interesse do menor. Sem o exame dos elementos do caso concreto e sua adequada valorao, no era possvel sequer iniciar a soluo do problema. 24 Tome-se, como exemplo, o princpio da dignidade da pessoa humana e veja-se a divergncia quanto sua interpretao, manifestada por dois juristas da nova gerao, criados no mesmo ambiente acadmico. Ana Paula de Barcellos situa o mnimo existencial no mbito da dignidade humana e dele extrai os direitos educao fundamental, sade bsica, assistncia no caso de necessidade e ao acesso justia (A eficcia jurdica dos princpios constitucionais: O princpio da dignidade da pessoa humana, 2002, p. 305). Dessa posio diverge Daniel Sarmento, por entender inadequada a escolha de algumas prestaes sociais, com excluso de outras que, a seu ver, so igualmente direitos fundamentais, como o direito sade curativa (Direitos fundamentais e relaes privadas, 2004, p. 114). 25 Note-se que h direitos fundamentais que assumem a forma de princpios (liberdade, igualdade) e outros a de regras (irretroatividade da lei penal, anterioridade tributria). Ademais, h princpios que no so direitos fundamentais (livre-iniciativa).

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privacidade e a liberdade de expresso vivem em tenso contnua, a liberdade de reunio de alguns pode interferir com o direito de ir e vir dos demais26. Quando duas normas de igual hierarquia colidem em abstrato, intuitivo que no possam fornecer, pelo seu relato, a soluo do problema. Nestes casos, a atuao do intrprete criar o Direito aplicvel ao caso concreto. A existncia de colises de normas constitucionais leva necessidade de ponderao27. A subsuno, por bvio, no capaz de resolver o problema, por no ser possvel enquadrar o mesmo fato em normas antagnicas. Tampouco podem ser teis os critrios tradicionais de soluo de conflitos normativos hierrquico, cronolgico e da especializao quando a coliso se d entre disposies da Constituio originria. Neste cenrio, a ponderao de normas, bens ou valores (v. infra) a tcnica a ser utilizada pelo intrprete, por via da qual ele (i) far concesses recprocas, procurando preservar o mximo possvel de cada um dos interesses em disputa ou, no limite, (ii) proceder escolha do direito que ir prevalecer, em concreto, por realizar mais adequadamente a vontade constitucional. Conceito-chave na matria o princpio instrumental da razoabilidade. Chega-se, por fim, argumentao28, razo prtica, ao controle da racionalidade das decises proferidas, mediante ponderao, nos casos difceis, que so aqueles que comportam mais de uma soluo possvel e razovel. As decises que envolvem a atividade criativa do juiz potencializam o dever de fundamentao, por no estarem inteiramente legitimadas pela lgica da separao de Poderes por esta ltima, o juiz limita-se a aplicar, no caso concreto, a deciso abstrata tomada pelo legislador. Para assegurar a legitimidade e a racionalidade de sua interpretao nessas situaes, o intrprete dever, em meio a outras consideraes: (i) reconduzi-la sempre ao sistema jurdico, a uma norma constitucional ou legal que lhe sirva de fundamento a legitimidade de uma deciso judicial decorre de sua vinculao a uma deliberao majoritria, seja do constituinte ou do legislador; (ii) utilizar-se de um fundamento jurdico que possa ser generalizado aos casos equiparveis, que tenha pretenso de universalidade: decises judiciais no devem ser casusticas; (iii) levar em conta asSobre o tema das restries aos direitos fundamentais, v. Jane Reis Gonalves Pereira, Direitos fundamentais e interpretao constitucional: Uma contribuio ao estudo das restries aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princpios, 2004, tese de doutoramento apresentada ao programa de Ps-graduao em Direito Pblico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ. 27 Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997; Robert Alexy: Teoria de los derechos fundamentales, 1997, Daniel Sarmento, A ponderao de interesses na Constituio Federal, 2000. 28 Sobre o tema, v. Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da argumentao: A nova retrica, 1996 (1a. edio do original Trait de largumentation: La nouvelle rhtorique, 1958); Robert Alexy, Teoria de la argumentacin jurdica, 1989 (1a. edio do original Theorie der juristischen Argumentation, 1978); Manuel Atienza, As razes do direito. Teorias da argumentao jurdica, 2002; Margarida Maria Lacombe Camargo, Hermenutica e argumentao, 2003; Antnio Carlos Cavalcanti Maia, Notas sobre direito, argumentao e democracia. In: Margarida Maria Lacombe Camargo (org.), 1988-1998: uma dcada de Constituio, 1999.26

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conseqncias prticas que sua deciso produzir no mundo dos fatos29. Em suma: o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepo aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformaes ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio s quais podem ser assinalados, (i) como marco histrico, a formao do Estado constitucional de direito, cuja consolidao se deu ao longo das dcadas finais do sculo XX; (ii) como marco filosfico, o pspositivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximao entre Direito e tica; e (iii) como marco terico, o conjunto de mudanas que incluem a fora normativa da Constituio, a expanso da jurisdio constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmtica da interpretao constitucional. Desse conjunto de fenmenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalizao do Direito. Parte II A CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO I. Generalidades A locuo constitucionalizao do Direito de uso relativamente recente na terminologia jurdica e, alm disso, comporta mltiplos sentidos. Por ela se poderia pretender caracterizar, por exemplo, qualquer ordenamento jurdico no qual vigorasse uma Constituio dotada de supremacia. Como este um trao comum de grande nmero de sistemas jurdicos contemporneos, faltaria especificidade expresso. No , portanto, nesse sentido que est aqui empregada. Poderia ela servir para identificar, ademais, o fato de a Constituio formal incorporar em seu texto inmeros temas afetos aos ramos infraconstitucionais do Direito. Trata-se de fenmeno iniciado, de certa forma, com a Constituio portuguesa de 1976, continuado pela Constituio espanhola de 1978 e levado ao extremo pela Constituio brasileira de 1988. Embora esta seja uma situao dotada de caractersticas prprias, no dela, tampouco, que se estar cuidando30. A idia de constitucionalizao do Direito aqui explorada est associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo contedo material e axiolgico se irradia, com fora normativa, por todo o sistema jurdico31. Os valores, os fins pblicos29 Sobre o tema, v. Ana Paula de Barcellos, Ponderao, racionalidade e atividade judicial, 2005. V. tb. Neil Maccormick, Legal reasoning and legal theory, 1978. 30 Embora no se possa negar que a presena, na Constituio, de normas cujo contedo pertence a outros ramos do Direito (civil, administrativo, penal) influencie a interpretao do direito infraconstitucional correspondente. Votar-se- ao ponto mais frente. 31 Alguns autores tm utilizado os termos impregnar e impregnao, que em portugus, no entanto, podem assumir uma conotao depreciativa. V. Louis Favoreu notvel divulgador do direito constitucional na Frana, falecido em 2004 , La constitutionnalization du droit. In: Bertrand Mathieu e Michel Verpeaux, La constitutionnalisation des branches du droit, 1998, p. 191: Quer-se designar

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e os comportamentos contemplados nos princpios e regras da Constituio passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Como intuitivo, a constitucionalizao repercute sobre a atuao dos trs Poderes, inclusive e notadamente nas suas relaes com os particulares. Porm, mais original ainda: repercute, tambm, nas relaes entre particulares. Veja-se como este processo, combinado com outras noes tradicionais, interfere com as esferas acima referidas. Relativamente ao Legislativo, a constitucionalizao (i) limita sua discricionariedade ou liberdade de conformao na elaborao das leis em geral e (ii) impe-lhe determinados deveres de atuao para realizao de direitos e programas constitucionais. No tocante Administrao Pblica, alm de igualmente (i) limitar-lhe a discricionariedade e (ii) impor a ela deveres de atuao, ainda (iii) fornece fundamento de validade para a prtica de atos de aplicao direta e imediata da Constituio, independentemente da interposio do legislador ordinrio. Quanto ao Poder Judicirio, (i) serve de parmetro para o controle de constitucionalidade por ele desempenhado (incidental e por ao direta), bem como (ii) condiciona a interpretao de todas as normas do sistema. Por fim, para os particulares, estabelece limitaes sua autonomia da vontade, em domnios como a liberdade de contratar ou o uso da propriedade privada, subordinando-a a valores constitucionais e ao respeito a direitos fundamentais. II. Origem e evoluo do fenmeno O estudo que se vem empreendendo at aqui relata a evoluo do direito constitucional na Europa e no Brasil ao longo das ltimas dcadas. Este processo, que passa pelos marcos histricos, filosficos e tericos acima expostos, conduz ao momento atual, cujo trao distintivo a constitucionalizao do Direito. A aproximao entre constitucionalismo e democracia, a fora normativa da Constituio e a difuso da jurisdio constitucional foram ritos de passagem para o modelo atual32. O leitor atentoaqui, principalmente, a constitucionalizao dos direitos e liberdades, que conduz a uma impregnao dos diferentes ramos do direito, ao mesmo tempo que levam sua transformao. E, tambm, Ricardo Guastini, La constitucionalizacin del ordenamiento jurdico: El caso italiano. In: Miguel Carbonnel, Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 49: Por constitucionalizacin del ordenamiento jurdico propongo entender um proceso de transformacin de um ordenamiento al trmino del qual el ordenamiento en cuestin resulta totalmente impregnado por las normas constitucionales. Un ordenamiento jurdico constitucionalizado se caracteriza por una Constitucin extremamente invasora, entrometida (pervasiva, invadente), capaz de condicionar tanto la legislacin como la jurisprudencia y el estilo doctrinal, la accin de los actores polticos, as como las relaciones sociales. 32 Alguns autores procuraram elaborar um catlogo de condies para a constitucionalizao do Direito. o caso de Ricardo Guastini, La constitucionalizacin del ordenamiento jurdico: El caso italiano. In: Miguel Carbonnel, Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 50 e ss., que inclui entre elas: (i) uma Constituio rgida; (ii) a garantia jurisdicional da Constituio; (iii) a fora vinculante da Constituio; (iv) a sobreinterpretao da Constituio (sua interpretao extensiva, com o reconhecimento de normas implcitas); (v) a aplicao direta das normas constitucionais; (vi) a interpretao das leis conforme a Constituio; (vii) a influncia da Constituio sobre as relaes polticas.

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j ter se dado conta, no entanto, de que a seqncia histrica percorrida e as referncias doutrinrias destacadas no so vlidas para trs experincias constitucionais marcantes: as do Reino Unido, dos Estados Unidos e da Frana. O caso francs ser analisado um pouco mais frente. Um breve comentrio pertinente sobre os outros dois. No tocante ao Reino Unido, os conceitos no se aplicam. Embora tenha sido o Estado precursor do modelo liberal, com limitao do poder absoluto e afirmao do rule of the law, falta-lhe uma Constituio escrita e rgida, que um dos pressupostos, como o nome sugere, da constitucionalizao do Direito. Poder-se-ia argumentar, certo, que h entre os britnicos uma Constituio histrica e que ela , inclusive, mais rgida que boa parte das Cartas escritas do mundo. Ou reconhecer o fato de que o Parlamento ingls adotou, em 1998, o Human Rights Act, incorporando ao direito interno a Conveno Europia de Direitos Humanos33. Mas mesmo que se concedesse a esses argumentos, no seria possvel superar um outro: a inexistncia do controle de constitucionalidade e, mais propriamente, de uma jurisdio constitucional no sistema ingls 34 . No modelo britnico vigora a supremacia do Parlamento, e no da Constituio. J quanto aos Estados Unidos, a situao exatamente oposta. Bero do constitucionalismo escrito e do controle de constitucionalidade, a Constituio americana a mesma desde 1787 teve, desde a primeira hora, o carter de documento jurdico, passvel de aplicao direta e imediata pelo Judicirio. De fato, a normatividade ampla e a judicializao das questes constitucionais tm base doutrinria em O Federalista e precedente jurisprudencial firmado desde 1803, quando do julgamento do caso Marbury v. Madison pela Suprema Corte. Por esta razo, a interpretao de todo o direito posto luz da Constituio caracterstica histrica da experincia americana, e no singularidade contempornea35. O grande debate doutrinrio nosA nova lei somente entrou em vigor em 2000. A propsito, e em desenvolvimento de certo modo surpreendente, deve ser registrada a aprovao do Constitutional Reform Act, de 2005, que previu a criao de uma Suprema Corte (In: www.opsi.gov.uk/ acts/acts2005/20050004.htm, visitado em 8 ago. 2005). Assinale-se a curiosidade de, no existindo uma Constituio escrita, ter sido aprovado, no obstante, um ato que a reforma. 35 Veja-se, a este propsito, exemplificativamente, a jurisprudncia que se produziu em matria de direito processual penal, pela submisso do common law dos Estados aos princpios constitucionais. Em Mapp v. Ohio, 367 U.S. 643, 1961, considerou-se ilegtima a busca e apreenso feita sem mandado, como exigido pela 4a. Emenda. Em Gideon v. Wainwright, 372 U.S. 335, 1963, entendeu-se que a 6a. emenda assegurava a todos os acusados em processo criminal o direito a um advogado. Em Miranda v. Arizona, 384 U.S. 436, 1966, imps-se autoridade policial, na abordagem de um suspeito, que comunique a ele que a) tem o direito de permanecer calado; b) tudo que disser poder e ser usado contra ele; c) tem direito a consultar-se com um advogado antes de depor e que este poder estar presente ao interrogatrio; d) caso no tenha condies financeiras para ter um advogado, um poder ser-lhe designado. V. Kermit L. Hall, The Oxford guide to United States Supreme Court decisions, 1999; Paul C. Bartholomew e Joseph F. Menez, Summaries of leading cases on the Constitution, 1980; Duane Lockard e Walter F. Murphy, Basic cases in constitutional law, 1992. Para uma anlise objetiva e informativa sobre este e outros aspectos, em lngua portuguesa, v. Jos Alfredo de Oliveira33 34

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Estados Unidos acerca da legitimidade e dos limites da atuao do Judicirio na aplicao de valores substantivos e no reconhecimento de direitos fundamentais que no se encontrem expressos na Constituio (v. infra). H razovel consenso de que o marco inicial do processo de constitucionalizao do Direito foi estabelecido na Alemanha. Ali, sob o regime da Lei Fundamental de 1949 e consagrando desenvolvimentos doutrinrios que j vinham de mais longe, o Tribunal Constitucional Federal assentou que os direitos fundamentais, alm de sua dimenso subjetiva de proteo de situaes individuais, desempenham uma outra funo: a de instituir uma ordem objetiva de valores36. O sistema jurdico deve proteger determinados direitos e valores, no apenas pelo eventual proveito que possam trazer a uma ou a algumas pessoas, mas pelo interesse geral da sociedade na sua satisfao. Tais normas constitucionais condicionam a interpretao de todos os ramos do Direito, pblico ou privado, e vinculam os Poderes estatais. O primeiro grande precedente na matria foi o caso Lth37, julgado em 15 de janeiro de 195838.Baracho Jnior, Interpretao dos direitos fundamentais na Suprema Corte dos EUA e no Supremo Tribunal Federal. In: Jos Adrcio Leite Sampaio, Jurisdio constitucional e direitos fundamentais, 2003. 36 Sobre a questo da dimenso objetiva dos direitos fundamentais na literatura em lngua portuguesa, v. Jos Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituio portuguesa de 1976, 2001, p. 149, Gilmar Ferreira Mendes, Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, 1998, p. 214, e Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relaes privadas, 2004, p. 371. 37 Os fatos subjacentes eram os seguintes. Erich Lth, presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo, incitava ao boicote de um filme dirigido por Veit Harlan, cineasta que havia sido ligado ao regime nazista no passado. A produtora e a distribuidora do filme obtiveram, na jurisdio ordinria, deciso determinando a cessao de tal conduta, por consider-la em violao do 826 do Cdigo Civil (BGB) (Quem, de forma atentatria aos bons costumes, infligir dano a outrem, est obrigado a reparar os danos causados). O Tribunal Constitucional Federal reformou a deciso, em nome do direito fundamental liberdade de expresso, que deveria pautar a intepretao do Cdigo Civil. 38 BverfGE 7, 198. Traduo livre e editada da verso da deciso publicada em Jrgen Schwabe, Cincuenta aos de jurisprudencia del Tribunal Constitucional Federal alemn, 2003, p. 132-37: Os direitos fundamentais so antes de tudo direitos de defesa do cidado contra o Estado; sem embargo, nas disposies de direitos fundamentais da Lei Fundamental se incorpora tambm uma ordem objetiva de valores, que como deciso constitucional fundamental vlida para todas as esferas do direito. (...) Esse sistema de valores que encontra seu ponto central no seio da comunidade social, no livre desenvolvimento da personalidade e na dignidade da pessoa humana... oferece direo e impulso para o legislativo, a administrao e o judicirio, projetando-se, tambm, sobre o direito civil. Nenhuma disposio de direito civil pode estar em contradio com ele, devendo todas ser interpretadas de acordo com seu esprito. (...) A expresso de uma opinio, que contm um chamado para um boicote, no viola necessariamente os bons costumes, no sentido do 826 do Cdigo Civil. Pode estar justificada constitucionalmente pela liberdade de opinio, ponderadas todas as circunstncias do caso. Esta deciso comentada por inmeros autores nacionais, dentre os quais: Gilmar Ferreira Mendes, Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, 1998, p. 220-2, onde descreve brevemente outros dois casos: Blinkfer e Wallraff; Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relaes privadas, 2004, p. 141 e ss.; Jane Reis Gonalves Pereira, Direitos fundamentais e interpretao constitucional: Uma contribuio ao estudo das restries aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princpios, p. 416 e ss.; e Wilson Steinmetz, A vinculao dos particulares a direitos fundamentais, 2004, p. 105 e ss..

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A partir da, baseando-se no catlogo de direitos fundamentais da Constituio alem, o Tribunal Constitucional promoveu uma verdadeira revoluo de idias 39, especialmente no direito civil. De fato, ao longo dos anos subseqentes, a Corte invalidou dispositivos do BGB, imps a interpretao de suas normas de acordo com a Constituio e determinou a elaborao de novas leis. Assim, por exemplo, para atender ao princpio da igualdade entre homens e mulheres, foram introduzidas mudanas legislativas em matria de regime matrimonial, direitos dos ex-cnjuges aps o divrcio, poder familiar, nome de famlia e direito internacional privado. De igual sorte, o princpio da igualdade entre os filhos legtimos e naturais provocou reformas no direito de filiao40. De parte isso, foram proferidos julgamentos interessantes em temas como unies homossexuais (homoafetivas)41 e direito dos contratos42. Na Itlia, a Constituio entrou em vigor em 1 de janeiro de 1948. O processo de constitucionalizao do Direito, todavia, iniciou-se apenas na dcada de 60, consumando-se nos anos 70. Relembre-se que a Corte Constitucional italiana somente veio a se instalar em 1956. Antes disso, o controle de constitucionalidade foi exercido, por fora da disposio constitucional transitria VII, pela jurisdio ordinria, que no lhe deu vitalidade. Pelo contrrio, remonta a esse perodo a formulao, pela Corte de Cassao, da distino entre normas preceptivas, de carter vinculante e aplicveis pelos tribunais, e normas de princpio ou programticas, dirigidas apenas ao legislador e no aplicveis diretamente pelo Judicirio. Assim, pelos nove primeiros39 Sabine Corneloup, Table ronde: Le cas de lAlemagne. In: Michel Verpeaux, Code civil e constitution(s), 2005, p. 85. 40 Sabine Corneloup, Table ronde: Le cas de lAlemagne. In: Michel Verpeaux, Code civil e constitution(s), 2005, p. 87-8, com identificao de cada uma das leis. A jurisprudncia referida na seqncia do pargrafo foi localizada a partir de referncias contidas nesse texto. 41 Em um primeiro momento, em nome do princpio da igualdade, uma lei de 16 de fevereiro de 2001 disciplinou as unies homossexuais, pondo fim discriminao existente. Em um segundo momento, esta lei foi objeto de argio de inconstitucionalidade, sob o fundamento de que afrontaria o art. 6, I da Lei Fundamental, pelo qual o casamento e a famlia so colocados sob proteo particular do Estado, ao legitimar um outro tipo de instituio de direito de famlia, paralelo ao casamento heterossexual. A Corte no acolheu o argumento, assentando que a nova lei nem impedia o casamento tradicional nem conferia unio homossexual qualquer privilgio em relao unio convencional (1 BvF 1/01, de 17 jul. 2002, com votos dissidentes dos juzes Papier e Hass, v. stio www.bverfg.de, visitado em 4 ago. 2005). 42 Um contrato de fiana prestada pela filha, em favor do pai, tendo por objeto quantia muitas vezes superior sua capacidade financeira foi considerado nulo por ser contrrio moral (BverfGE t. 89, p. 214, apud Sabine Corneloup, Table ronde: Le cas de lAlemagne. In: Michel Verpeaux, Code civil e constitution(s), 2005, p. 90); um pacto nupcial no qual a mulher, grvida, renunciou a alimentos em nome prprio e em nome da criana foi considerado nulo, por no poder prevalecer a liberdade contratual quando h dominao de uma parte sobre a outra (1 BvR 12/92, de 6 fev 2001, unnime, v. stio www.bverfg.de, visitado em 4 ago. 2005); um pacto sucessrio que impunha ao filho mais velho do imperador Guilherme II o dever de se casar com uma mulher que preenchesse determinadas condies ali impostas foi considerado nulo por violar a liberdade de casamento (1 BvR 2248/01, de 22 mar 2004, unnime, v. stio www.bverfg.de visitado em 4 ago. 2005).

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anos de vigncia, a Constituio e os direitos fundamentais nela previstos no repercutiram sobre a aplicao do direito ordinrio43. Somente com a instalao da Corte Constitucional e, alis, desde a sua primeira deciso as normas constitucionais de direitos fundamentais passaram a ser diretamente aplicveis, sem intermediao do legislador. A Corte desenvolveu um conjunto de tcnicas de deciso44, tendo enfrentado, durante os primeiros anos de sua atuao, a arraigada resistncia das instncias ordinrias e, especialmente, da Corte de Cassao, dando lugar a uma disputa referida, em certa poca, como guerra das cortes45. A exemplo do ocorrido na Alemanha, a influncia da constitucionalizao do Direito e da prpria Corte Constitucional se manifestou em decises de inconstitucionalidade, em convocaes atuao do legislador e na reinterpretao das normas infraconstitucionais em vigor. De 1956 a 2003, a Corte Constitucional proferiu 349 decises em questes constitucionais envolvendo o Cdigo Civil, das quais 54 declararam a inconstitucionalidade de dispositivos seus, em decises da seguinte natureza: 8 de invalidao, 12 interpretativas e 34 aditivas46 (sobre as caractersticas de cada uma delas, v. nota ao pargrafo anterior). Foram proferidos julgados em temas que incluram adultrio47, uso do nome do marido48 e direitos sucessrios de filhos ilegtimos49, em43 Sobre o tema, v. Vezio Crisafulli, La Costituzione e le sue disposizione di principio, 1952; Jos Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1968; Ricardo Guastini, La constitucionalizacin del ordenamiento jurdico: El caso italiano. In: Miguel Carbonnel, Neoconstitucionalismo(s), 2003; e Therry Di Manno, Code Civil e Constituion en Italie. In: Michel Verpeaux (org.), Code Civil e Constitution(s), 2005. 44 Alm das decises declaratrias de inconstitucionalidade, a Corte utiliza diferentes tcnicas, que incluem: 1) decises interpretativas, que correspondem interpretao conforme a Constituio, podendo ser (a) com recusa da argio de inconstitucionalidade, mas afirmao da interpretao compatvel ou (b) com aceitao da argio de inconstitucionalidade, com declarao de inconstitucionalidade da interpretao que vinha sendo praticada pela jurisdio ordinria, em ambos os casos permanecendo em vigor a disposio atacada; 2) decises manipuladoras, nas quais se d a aceitao da argio de inconstitucionalidade e, alm da declarao de invalidade do dispositivo, a Corte vai alm, proferindo (a) sentena aditiva, estendendo a norma situao nela no contemplada, quando a omisso importar em violao ao princpio da igualdade; e b) sentena substitutiva, pela qual a Corte no apenas declara a inconstitucionalidade de determinada norma, como tambm introduz no sistema, mediante declarao prpria, uma norma nova. Sobre o tema, v. Ricardo Guastini, La constitucionalizacin del ordenamiento jurdico: El caso italiano. In: Miguel Carbonnel, Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 63-7. 45 Thierry Di Manno, Table ronde: Le cas de lItalie. In: Michel Verpeaux, Code civil e constitution(s), 2005, p. 107. 46 Thierry Di Manno, Table ronde: Le cas de lItalie. In: Michel Verpeaux, Code civil e constitution(s), 2005, p. 103. 47 Sentena 127/1968, j. 16 dez 1968, Rel. Bonifcio, v. stio www.cortecostituzionale.it, visitado em 4 ago. 2005. A Corte invalidou o artigo do Cdigo Civil (art. 151, 2) que tratava de maneira diferente o adultrio do marido e o da mulher. O da mulher sempre seria causa para separao, ao passo que o do homem somente em caso de injria grave mulher. 48 Sentena 128/1970, j. 24 jun 1970, Rel. Mortati, v. stio www.cortecostituzionale.it, visitado em 4 ago. 2005. A Corte proferiu sentena aditiva para permitir mulher retirar o nome do marido aps a separao

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meio a outros. No plano legislativo, sob influncia da Corte Constitucional, foram aprovadas, ao longo dos anos, modificaes profundas no direito de famlia, inclusive em relao ao divrcio, no direito adoo e no direito do trabalho. Estas alteraes, levadas a efeito por leis especiais, provocaram a denominada descodificao do direito civil50. Na Frana, o processo de constitucionalizao do Direito teve incio muito mais tarde e ainda vive uma fase de afirmao. A Constituio de 1958, como se sabe, no previu o controle de constitucionalidade, quer no modelo europeu, quer no americano, tendo optado por uma frmula diferenciada: a do controle prvio, exercido pelo Conselho Constitucional em relao a algumas leis, antes de entrarem em vigor51. De modo que no h no sistema francs, a rigor tcnico, uma verdadeira jurisdio constitucional. No obstante, alguns avanos significativos e constantes vm ocorrendo, a comear pela deciso de 16 de julho de 197152. A ela seguiu-se a Reforma de 29 de(ocorrida por culpa do marido), o que no era previsto pelo art. 156 do Cdigo Civil. 49 Sentena 55/1979, j. 15 jun 1979, Rel. Amadei, v. stio www.cortecostituzionale.it, visitado em 4 ago. 2005. A Corte declarou a inconstitucionalidade do art. 565 do Cdigo Civil, na parte em que exclua do benefcio da sucesso legtima os filhos naturais reconhecidos. 50 N. Irti, Let della decodificzione, 1989. V., tb., Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 5. 51 Na sua concepo original, o Conselho Constitucional destinava-se, sobretudo, a preservar as competncias de um Executivo forte contra as invases do Parlamento. Suas funes principais eram trs: a) o controle dos regimentos de cada uma das cmaras (Assemblia Nacional e Senado), para impedir que se investissem de poderes que a Constituio no lhes atribui, como ocorrido na III e na IV Repblicas; b) o papel de justia eleitoral, relativamene s eleies presidenciais, parlamentares e aos referendos; c) a delimitao do domnio da lei, velando pela adequada repartio entre as competncias legislativas e regulamentares. Esta ltima funo se exercia em trs situaes: a do art. 41, relacionada invaso pela lei parlamentar de competncia prpria do governo; a do art. 61, alnea 2, que permitia ao primeiro-ministro provocar o controle acerca da inconstitucionalidade de uma lei, aps sua aprovao, mas antes de sua promulgao; e a do art. 37, alnea 2, relativamente modificabilidade, por via de decreto, de leis que possussem carter regulamentar. Com a reforma constitucional de 1974, o controle de constitucionalidade das leis passou a ser a atividade principal do Conselho, aproximando-o de uma corte constitucional. V. Louis Favoreu, La place du Conseil Constitutionnel dans la Constitution de 1958. In: www.conseil-constitutionnel.fr, visitado em 26 jul. 2005; Franois Luchaire, Le Conseil Constitutionnel, 3 vs., 1997; John Bell, French constitutional law, 1992. 52 Objetivamente, a deciso n 71-44 DC, de 16.07.71 (In: www.conseil-constitutionnel.fr/decision/ 1971/7144dc.htm, visitado em 26 jul. 2005), considerou que a exigncia de autorizao prvia, administrativa ou judicial, para a constituio de uma associao violava a liberdade de associao. Sua importncia, todavia, foi o reconhecimento de que os direitos fundamentais previstos na Declarao de Direitos do Homem e do Cidado, de 1789, e no prembulo da Constituio de 1946, incorporavamse Constituio de 1958, por fora de referncia constante do prembulo desta, figurando, portanto, como parmetro para o controle de constitucionalidade das leis. Esta deciso reforou o prestgio do Conselho Constitucional, que passou a desempenhar o papel de protetor dos direitos e liberdades fundamentais. Alm disso, consagrou o valor positivo e constitucional do prembulo da Constituio e firmou a idia de bloco de constitucionalidade. Essa expresso significa que a Constituio no se limita s normas que integram ou se extraem do seu texto, mas inclui outros textos normativos, que no caso eram a Declarao de Direitos do Homem e do Cidado, de 1789, e o Prembulo da Constituio de 1946, bem como os princpios fundamentais das leis da Repblica, aos quais o referido prembulo fazia referncia. Sobre a importncia dessa deciso, v. Lo Hamon, Contrle de constitutionnalit et

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outubro de 1974, ampliando a legitimidade para suscitar-se a atuao do Conselho Constitucional53. Aos poucos, comeam a ser incorporados ao debate constitucional francs temas como a impregnao da ordem jurdica pela Constituio, o reconhecimento de fora normativa s normas constitucionais e o uso da tcnica da interpretao conforme a Constituio54. Tal processo de constitucionalizao do Direito, cabe advertir, enfrenta a vigorosa resistncia da doutrina mais tradicional, que nele v ameaas diversas, bem como a usurpao dos poderes do Conselho de Estado e da Corte de Cassao55. III. A constitucionalizao do Direito no Brasil 1. O direito infraconstitucional na Constituio A Carta de 1988, como j consignado, tem a virtude suprema de simbolizar a travessia democrtica brasileira e de ter contribudo decisivamente para a consolidao do mais longo perodo de estabilidade poltica da histria do pas. No pouco. Mas no se trata, por suposto, da Constituio da nossa maturidade institucional. a Constituio das nossas circunstncias. Por vcio e por virtude, seu texto finalprotection des droits individuels, Dalloz, 1974, p. 83-90; G. Haimbowgh, Was it Frances Marbury v. Madison?, Ohio State Law Journal 35:910, 1974; J.E.Beardsley, The Constitutional council and Constitutional liberties in France, American Journal of Comparative Law, 1972, p. 431-52. Para um comentrio detalhado da deciso, v. L. Favoreu e L. Philip, Les grandes dcisions du Conseil Constitutionnel, 2003. Especificamente sobre bloco de constitucionalidade, v. Michel de Villiers, Dictionaire du droit constitutionnel, 2001; e Olivier Duhamel e Yves Mny, Dictionnaire constituionnel, 1992. 53 A partir da, o direito de provocar a atuao do Conselho Constitucional, que antes recaa apenas sobre o Presidente da Repblica, o Primeiro-Ministro, o Presidente da Assemblia Nacional e o Presidente do Senado estendeu-se, tambm, a sessenta Deputados ou sessenta Senadores. O controle de constitucionalidade tornou-se um importante instrumento de atuao da oposio parlamentar. Entre 1959 e 1974, foram proferidas apenas 9 (nove) decises acerca de leis ordinrias (por iniciativa do Primeiro-Ministro e do Presidente do Senado) e 20 (vinte) acerca de leis orgnicas (pronunciamento obrigatrio). De 1974 at 1998 houve 328 provocaes (saisine) ao Conselho Constitucional. Os dados constam de Louis Favoreu, La place du Conseil Constitutionnel dans la Constitution de 1958. In: www.conseil-constitutionnel.fr, visitado em 26 jul.2005. 54 V. Louis Favoreu, La constitutionnalisation du droit. In: Bertrand Mathieu e Michel Verpeaux, La constitutionnalisation des branches du droit, 1998, p. 190-2. 55 Veja-se a discusso do tema em Guillaume Drago, Bastien Franois e Nicolas Molfessis (org.), La lgitimit de la jurisprudence du Conseil Constitutionnel, 1999. Na concluso do livro, que documenta o Colquio de Rennes, de setembro de 1996, Franois Terr, ao apresentar o que corresponderia concluso do evento, formulou crtica spera ascenso da influncia do Conselho Constitucional: Les perptuelles incantations que suscitent ltat de droit, la soumission de ltat des juges, sous linfluence conjuge du kelsnisme, de la mauvaise conscience de lAllemagne Fdrale et de lamericanisme plantaire sont lassantes. Des contrepoids simposent. Puisque le Conseil constituionnel est une juridiction, puisque la rgle du double degr de juridiction e le droit dappel sont devenus paroles devangile, il est naturel et urgent de faciliter le recours au referendum afin de permettre plus facilement au peuple souverain de mettre, l cs chant, un terme aux errances du Conseil constitutionnel (p. 409).

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expressa uma heterognea mistura de interesses legtimos de trabalhadores, classes econmicas e categorias funcionais, cumulados com paternalismos, reservas de mercado e privilgios corporativos. A euforia constituinte saudvel e inevitvel aps tantos anos de excluso da sociedade civil levaram a uma Carta que, mais do que analtica, prolixa e corporativa56. Quanto ao ponto aqui relevante, bem de ver que todos os principais ramos do direito infraconstitucional tiveram aspectos seus, de maior ou menor relevncia, tratados na Constituio. A catalogao dessas previses vai dos princpios gerais s regras midas, levando o leitor do espanto ao fastio. Assim se passa com o direito administrativo, civil, penal, do trabalho, processual civil e penal, financeiro e oramentrio, tributrio, internacional e mais alm. H, igualmente, um ttulo dedicado ordem econmica, no qual se incluem normas sobre poltica urbana, agrcola e sistema financeiro. E outro dedicado ordem social, dividido em numerosos captulos e sees, que vo da sade at os ndios. Embora o fenmeno da constitucionalizao do Direito, como aqui analisado, no se confunda com a presena de normas de direito infraconstitucional na Constituio, h um natural espao de superposio entre os dois temas. Com efeito, na medida em que princpios e regras especficos de uma disciplina ascendem Constituio, sua interao com as demais normas daquele subsistema muda de qualidade e passa a ter um carter subordinante. Trata-se da constitucionalizao das fontes do Direito naquela matria. Tal circunstncia, nem sempre desejvel57, interfere com os limites de atuao do legislador ordinrio e com a leitura constitucional a ser empreendida pelo Judicirio em relao ao tema que foi constitucionalizado. 2. A constitucionalizao do direito infraconstitucional Nos Estados de democratizao mais tardia, como Portugal, Espanha e, sobretudo, o Brasil, a constitucionalizao do Direito um processo mais recente, embora muito intenso. Verificou-se, entre ns, o mesmo movimento translativo ocorrido inicialmente na Alemanha e em seguida na Itlia: a passagem da Constituio para o centro do sistema jurdico. A partir de 1988, e mais notadamente nos ltimos cinco ou dez anos, a Constituio passou a desfrutar j no apenas da supremacia formal que sempre teve, mas tambm de uma supremacia material, axiolgica, potencializada pela abertura do sistema jurdico e pela normatividade de seus princpios. Com grande mpeto, exibindo fora normativa sem precedente, a Constituio ingressou na paisagem jurdica do pas e no discurso dos operadores jurdicos.Sobre o tema, v. Lus Roberto Barroso, Doze anos da Constituio brasileira de 1988. In: Temas de direito constitucional, t. I, 2002. 57 Tanto a doutrina como a jurisprudncia, no plano do direito penal, tm condenado, por exemplo, a constitucionalizao da figura dos crimes hediondos (art. 5, XLIII). V., por todos, Joo Jos Leal, Crimes hediondos A Lei 8.072 como expresso do direito penal da severidade, 2003.56

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Do centro do sistema jurdico foi deslocado o velho Cdigo Civil. Vejase que o direito civil desempenhou no Brasil como alhures o papel de um direito geral, que precedeu muitas reas de especializao, e que conferia certa unidade dogmtica ao ordenamento. A prpria teoria geral do direito era estudada dentro do direito civil, e s mais recentemente adquiriu autonomia didtica. No caso brasileiro, deve-se registrar, o Cdigo Civil j vinha perdendo influncia no mbito do prprio direito privado. que, ao longo do tempo, na medida em que o Cdigo envelhecia, inmeras leis especficas foram editadas, passando a formar microssistemas autnomos em relao a ele, em temas como alimentos, filiao, divrcio, locao, consumidor, criana e adolescente, sociedades empresariais. A exemplo do que se passou na Itlia, tambm entre ns deu-se a descodificao do direito civil58, fenmeno que no foi afetado substancialmente pela promulgao de um novo Cdigo Civil em 2002, com vigncia a partir de 200359. Nesse ambiente, a Constituio passa a ser no apenas um sistema em si com a sua ordem, unidade e harmonia mas tambm um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este fenmeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurdica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituio, de modo a realizar os valores nela consagrados. Como antes j assinalado, a constitucionalizao do direito infraconstitucional no tem como sua principal marca a incluso na Lei Maior de normas prprias de outros domnios, mas, sobretudo, a reinterpretao de seus institutos sob uma tica constitucional60. luz de tais premissas, toda interpretao jurdica tambmSobre o caso italiano, v. Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 6: O Cdigo Civil certamente perdeu a centralidade de outrora. O papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilsticos quanto naqueles de relevncia publicista, desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional. Sobre o caso brasileiro, vejam-se, dentre outros: Maria Celina B. M. Tepedino, A caminho de um direito civil constitucional, Revista de Direito Civil 65:21; e Gustavo Tepedino, O Cdigo Civil, os chamados microssistemas e a Constituio: Premissas para uma reforma legislativa. In: Gustavo Tepedino (org.), Problemas de direito civil-constitucional, 2001. 59 O novo Cdigo Civil, com incio de vigncia em 2003, foi duramente criticado por setores importantes da doutrina civilista. Gustavo Tepedino referiu-se a ele como retrgrado e demaggico acrescentando: Do Presidente da Repblica, espera-se o veto; do Judicirio que tempere o desastre(Revista trimestral de dirieto civil 7, 2001, Editorial). Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, consideraram inconstitucional o projeto de Cdigo Civil, em parecer publicado sob o ttulo Um projeto de Cdigo Civil na contramo da Constituio, Revista trimestral de direito civil 4:243, 2000, por no traduzir a supremacia da dignidade humana sobre os aspectos patrimoniais e por violar o princpio da vedao do retrocesso. Em sentido contrrio, v. Judith Martins Costa, O direito privado como um sistema em construo. In: www.jus.com.br, visitado em 4 ago. 2005; e Miguel Reale, Viso geral do novo Cdigo Civil. In: www.jus.com.br, visitado em 4 ago. 2005 e O novo Cdigo Civil e seus crticos. In: www.jus.com.br, visitado em 4 ago. 2005. 60 J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituio, 1991, p. 45: A principal manifestao da preeminncia normativa da Constituio consiste em que toda a ordem jurdica deve ser lida luz dela e passada pelo seu crivo. V. tambm, Paulo Ricardo Schier, Filtragem constitucional, 1999.58

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interpretao constitucional. Qualquer operao de realizao do direito envolve a aplicao direta ou indireta da Lei Maior. Aplica-se a Constituio: a) Diretamente, quando uma pretenso se fundar em uma norma do prprio texto constitucional. Por exemplo: o pedido de reconhecimento de uma imunidade tributria (CF, art. 150, VI) ou o pedido de nulidade de uma prova obtida por meio ilcito (CF, art. 5, LVI); b) Indiretamente, quando uma pretenso se fundar em uma norma infraconstitucional, por duas razes: (i) antes de aplicar a norma, o intrprete dever verificar se ela compatvel com a Constituio, porque se no for, no dever faz-la incidir. Esta operao est sempre presente no raciocnio do operador do Direito, ainda que no seja por ele explicitada; (ii) ao aplicar a norma, o intrprete dever orientar seu sentido e alcance realizao dos fins constitucionais. Em suma: a Constituio figura hoje no centro do sistema jurdico, de onde irradia sua fora normativa, dotada de supremacia formal e material. Funciona, assim, no apenas como parmetro de validade para a ordem infraconstitucional, mas tambm como vetor de interpretao de todas as normas do sistema. 3. A constitucionalizao do Direito e seus mecanismos de atuao prtica A constitucionalizao do Direito, como j antecipado, repercute sobre os diferentes Poderes estatais. Ao legislador e ao administrador, impe deveres negativos e positivos de atuao, para que observem os limites e promovam os fins ditados pela Constituio. A constitucionalizao, no entanto, obra precpua da jurisdio constitucional, que no Brasil pode ser exercida, difusamente, por juzes e tribunais, e concentradamente pelo Supremo Tribunal Federal, quando o paradigma for a Constituio Federal. Esta realizao concreta da supremacia formal e axiolgica da Constituio envolve diferentes tcnicas e possibilidades interpretativas, que incluem: a) o reconhecimento da revogao das normas infraconstitucionais anteriores Constituio (ou emenda constitucional), quando com ela incompatveis; b) a declarao de inconstitucionalidade de normas infraconstitucionais posteriores Constituio, quando com ela incompatveis; c) a declarao da inconstitucionalidade por omisso, com a conseqente convocao atuao do legislador61;Isso quando no prefira o Supremo Tribunal produzir uma deciso integrativa, a exemplo da sentena aditiva do direito italiano. Esta atuao envolve a sempre controvertida questo da atuao como legislador positivo (v. infra).61

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d) a interpretao conforme a Constituio, que pode significar: (i) a leitura da norma infraconstitucional da forma que melhor realize o sentido e o alcance dos valores e fins constitucionais a ela subjacentes; (ii) a declarao de inconstitucionalidade parcial sem reduo do texto, que consiste na excluso de uma determinada interpretao possvel da norma geralmente a mais bvia e a afirmao de uma interpretao alternativa, compatvel com a Constituio62. Aprofunde-se um pouco mais o argumento, especialmente em relao interpretao conforme a Constituio. O controle de constitucionalidade uma modalidade de interpretao e aplicao da Constituio. Independentemente de outras especulaes, h consenso de que cabe ao Judicirio pronunciar a invalidade dos enunciados normativos incompatveis com o texto constitucional, paralisando-lhes a eficcia. De outra parte, na linha do conhecimento convencional, a ele no caberia inovar na ordem jurdica, criando comando at ento inexistente. Em outras palavras: o Judicirio estaria autorizado a invalidar um ato do Legislativo, mas no a substitu-lo por um ato de vontade prpria63. Pois bem. As modernas tcnicas de interpretao constitucional como o caso da interpretao conforme a Constituio continuam vinculadas a esse pressuposto, ao qual agregam um elemento inexorvel. A interpretao jurdica dificilmente unvoca, seja porque um mesmo enunciado, ao incidir sobre diferentes circunstncias de fato, pode produzir normas diversas64, seja porque, mesmo em tese,62 Relativamente a esta segunda possibilidade, v. Lus Roberto Barroso, Interpretao e aplicao da Constituio, 2004, p. 189. 63 Nesse sentido, v. STF, DJU 15 abr. 1988, Rp 1.417-DF, Rel. Min. Moreira Alves: Ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, o STF em sua funo de Corte Constitucional atua como legislador negativo, mas no tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurdica diversa da instituda pelo Poder Legislativo. Passa-se ao largo, nesta instncia, da discusso mais minuciosa do tema, que abriga inmeras complexidades, inclusive e notadamente em razo do reconhecimento de que juzes e tribunais, em mltiplas situaes, desempenham uma atividade de co-participao na criao da norma. 64 A doutrina mais moderna tem traado uma distino entre enunciado normativo e norma, baseada na premissa de que no h interpretao em abstrato. Enunciado normativo o texto, o relato contido no dispositivo constitucional ou legal. Norma, por sua vez, o produto da aplicao do enunciado a uma determinada situao, isto , a concretizao do enunciado. De um mesmo enunciado possvel extrair diversas normas. Por exemplo: do enunciado do art. 5, LXIII da Constituio o preso tem direito de permanecer calado extraem-se normas diversas, inclusive as que asseguram o direito no auto-incriminao ao interrogado em geral (STF, DJU 14 dez. 2001, HC 80.949, Rel. Min. Seplveda Pertence) e at ao depoente em CPI (STF, DJU 16 fev. 2001, HC 79.812, Rel. Min. Celso de Mello) . Sobre o tema, v. Karl Larenz, Metodologia da cincia do direito, 1969, p. 270 e ss.; Friedrich Mller, Mtodos de trabalho do direito constitucional, Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Edio especial comemorativa dos 50 anos da Lei Fundamental da Repblica Federal da Alemanha, 1999, p. 45 e ss.; Riccardo Guastini, Distinguendo. Studi di teoria e metateoria del diritto, 1996, p. 82-3; e Humberto vila, Teoria dos princpios, 2003, p. 13.

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um enunciado pode admitir vrias interpretaes, em razo da polissemia de seus termos. A interpretao conforme a Constituio, portanto, pode envolver (i) uma singela determinao de sentido da norma, (ii) sua no incidncia a uma determinada situao de fato ou (iii) a excluso, por inconstitucional, de uma das normas que podem ser extradas do texto. Em qualquer dos casos, no h declarao de inconstitucionalidade do enunciado normativo, permanecendo a norma no ordenamento. Por esse mecanismo se reconciliam o princpio da supremacia da Constituio e o princpio da presuno de constitucionalidade. Naturalmente, o limite de tal interpretao est nas possibilidades semnticas do texto normativo65. IV Alguns aspectos da constitucionalizao do Direito . 1. Direito civil66 As relaes entre o direito constitucional e o direito civil atravessaram, nos ltimos dois sculos, trs fases distintas, que vo da indiferena convivncia intensa. O marco inicial dessa trajetria a Revoluo Francesa, que deu a cada um deles o seu objeto de trabalho: ao direito constitucional, uma Constituio escrita, promulgada em 1791; ao direito civil, o Cdigo Civil napolenico, de 1804. Apesar da contemporaneidade dos dois documentos, direito constitucional e direito civil no se integravam nem se comunicavam entre si. Veja-se cada uma das etapas desse processo de aproximao lenta e progressiva:

Na jurisprudncia do Tribunal Constitucional Federal alemo: Ao juiz no permitido mediante interpretao conforme a Constituio dar um significado diferente a uma lei cujo teor e sentido resulta evidente (1 BvL 149/52-33, 11 jun. 1958); na do Supremo Tribunal Federal brasileiro: se a nica interpretao possvel para compatibilizar a norma com a Constituio contrariar o sentido inequvoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, no se pode aplicar o princpio da interpretao conforme a Constituio, que implicaria, em verdade, criao de norma jurdica, o que privativo do legislador positivo (STF, DJU 15 abr. 1988, Rp 1.417-7/DF, Rel. Min. Moreira Alves). 66 Pietro Perlingieri, Perfis de direito civil, 1997; Maria Celina Bodin de Moraes: A caminho de um direito civil constitucional, Revista de Direito Civil 65:23, 1993; A constitucionalizao do direito civil, Revista de Direito Comparado Luso-brasileiro 17:76, 1999; Danos pessoa humana: Uma leitura civil-constitucional dos danos morais, 2003; Conceito de dignidade humana: Substrato axiolgico e contedo normativo. In: Ingo Wolfgang Sarlet, Constituio, direitos fundamentais e direito privado, 2003; Gustavo Tepedino: Temas de direito civil, 2004; Problemas de direito civil constitucional (coord.), 2000; O direito civil e a legalidade constitucional. In: Revista Del Rey Jurdica 13:23, 2004; Luiz Edson Fachin: Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporneo (coord.), 1998; Teoria crtica do direito civil, 2000; Helosa Helena Barboza, Perspectivas do direito civil brasileiro para o prximo sculo, Revista da Faculdade de Direito, UERJ, 1998-99; Teresa Negreiros: Fundamentos para uma interpretao constitucional do princpio da boa-f, 1998; Teoria do contrato: Novos paradigmas, 2002; Judith Martins Costa (org.), A reconstruo do direito privado, 2002; Paulo Luiz Neto Lobo, Constitucionalizao do direito civil, Revista de Direito Comparado Luso-brasileiro 17:56, 1999; Renan Lotufo, Direito civil constitucional, cad. 3, 2002; Michel Verpeaux (org.), Code Civil et Constitution(s), 2005.65

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1 . fase: Mundos apartados No incio do constitucionalismo moderno, na Europa, a Constituio era vista como uma Carta Poltica, que servia de referncia para as relaes entre o Estado e o cidado, ao passo que o Cdigo Civil era o documento jurdico que regia as relaes entre particulares, freqentemente mencionado como a Constituio do direito privado. Nessa etapa histrica, o papel da Constituio era limitado, funcionando como uma convocao atuao dos Poderes Pblicos, e sua concretizao dependia, como regra geral, da intermediao do legislador. Destituda de fora normativa prpria, no desfrutava de aplicabilidade direta e imediata. J o direito civil era herdeiro da tradio milenar do direito romano. O Cdigo napolenico realizava adequadamente o ideal burgus de proteo da propriedade e da liberdade de contratar, dando segurana jurdica aos protagonistas do novo regime liberal: o contratante e o proprietrio. Esse modelo inicial de incomunicabilidade foi sendo progressivamente superado.a

2a. fase: Publicizao do direito privado O Cdigo napolenico e os modelos que ele inspirou inclusive o brasileiro baseavam-se na liberdade individual, na igualdade formal entre as pessoas e na garantia absoluta do direito de propriedade. Ao longo do sculo XX, com o advento do Estado social e a percepo crtica da desigualdade material entre os indivduos, o direito civil comea a superar o individualismo exacerbado, deixando de ser o reino soberano da autonomia da vontade. Em nome da solidariedade social e da funo social de instituies como a propriedade e o contrato, o Estado comea a interferir nas relaes entre particulares, mediante a introduo de normas de ordem pblica. Tais normas se destinam, sobretudo, proteo do lado mais fraco da relao jurdica, como o consumidor, o locatrio, o empregado. a fase do dirigismo contratual, que consolida a publicizao do direito privado67. 3a. fase: Constitucionalizao do direito civil Ontem os Cdigos; hoje as Constituies. A revanche da Grcia contra Roma68. A fase atual marcada pela passagem da Constituio para o centro do sistema jurdico, de onde passa a atuar como o filtro axiolgico pelo qual se deve ler o direito civil. H regras especficas na Constituio, impondo o fim da supremacia do marido no casamento, a plena igualdade entre os filhos, a funo social da propriedade. ESobre o tema, v. Orlando Gomes, Introduo ao direito civil, 1999, p. 26; e Caio Mrio da Silva Pereira, Instituies de direito civil, v. I, 2004, p. 18. 68 A primeira parte da frase (Ontem os Cdigos; hoje as Constituies) foi pronunciada por Paulo Bonavides, ao receber a medalha Teixeira de Freitas, no Instituto dos Advogados Brasileiros, em 1998. O complemento foi feito por Eros Roberto Grau, ao receber a mesma medalha, em 2003, em discurso publicado em avulso pelo IAB: Ontem, os cdigos; hoje, as Constituies. A revanche da Grcia sobre Roma, tal como se deu, em outro plano, na evoluo do direi