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Revista Aproximao 1 semestre de 2010 N 3
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao 1
Revista Aproximao(Revista eletrnica dos estudantes de graduao em Filosofia da UFRJ)
Volume 3 Edio 2010/01
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
A Revista Aproximao uma publicao acadmica eletrnica especializada em Filosofia. Seu objetivo principal veicular o trabalho de pesquisa dos graduandos da UFRJ. Estamos abertos, entretanto, a qualquer proposta cujo principal interesse seja o
da pesquisa filosfica.
Instituto de Filosofia e Cincias Sociais / Universidade Federal do Rio de Janeiro
Expediente Comisso Editorial
Carlos Cardozo Coelho, Diego dos Santos Reis, Fernanda Krauss Campello, Felipe Arajo, Matheus Ramos Mendes, Pedro Clemente Bessa Prado Lippmann, Thatiana
Victoria Santos Machado, Victor Galdino Alves de Souza, Vincius Moraes Rezende de Carvalho.
Conselho Editorial
Carolina de Melo Bomfim Arajo, Celso Martins Azar Filho, Ethel Menezes Rocha, Fernando Jos de Santoro Moreira, Franklin Trein, Guilherme Castelo Branco, Marco Antonio Caron Ruffino, Marcus Reis Pinheiro, Mrio Antnio de Lacerda Guerreiro,
Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa, Pedro Costa Rego, Pedro Duarte de Andrade, Rafael Haddock Lobo, Rafael Mello Barbosa, Ricardo Jardim Andrade, Ulysses Pinheiro,
Wilson John Pessoa Mendona.
Contato: [email protected]
ndice
Editorial ........................................................................................................................... 2A natureza da Forma segundo Plato: Uma leitura a partir do Parmnides ................. 3Da antropologia rousseuasta ......................................................................................... 11O paradoxo ctico e a perspectiva da comunidade ........................................................ 21Uma abordagem do conceito de m-f proposto por Sartre em sua psicanlise existencial ...................................................................................................................... 30A noo de priso metafsica em Huxley e o prisioneiro como visto em Vigiar e punir na obra de Franz Kafka ...................................................................................................37Heidegger e a concepo de Outro em Ser e tempo ................................................56ts autos? Socrtes: O Scrates de Aristfanes em As nuvens ................................77Transcendncia em Heidegger: Sobre racionalidae e fundamento .................................96Descritivismo atualizado e protegido: Uma resposta a Clia Teixeira .........................112Antgona, Media e Clitemnestra: Mulheres poderosas? ............................................ 120
Revista Aproximao 1 semestre de 2010 N 3
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Editorial
Mais uma edio da Revista Aproximao se concretiza. E com orgulho que a comisso editorial traz comunidade acadmica este trabalho, com o orgulho de quem acredita que, dentro das suas limitaes (sempre um re-comeo), este um projeto pelo qual vale a pena nosso empenho: somos uma publicao que reflete a diversidade e a riqueza da pesquisa filosfica hoje, do graduando de hoje, do estudante que desperta para a Filosofia aqui e agora.
E assim surgem os trabalhos, frutos do aprendizado em processo, da construo da experincia de quem como a prpria publicao ainda est testando os caminhos, as possibilidades, os espaos e as movimentaes possveis. H, neste momento de definio das nossas prprias identidades (como pesquisadores, como escritores, como revista), o deslumbramento do novo, o saber-se em constante (des)construo que esperamos jamais perder.
Renovamo-nos mais uma vez novos membros, novas expectativas, novos objetivos porque isto tambm faz parte da experincia de ser graduando. Vemos novos rostos nos corredores do IFCS, que, assim esperamos, se traduzam em novos tons, em novas pesquisas, em novos olhares, em um discurso ou mesmo em uma palavra para estranharmos e acolhermos: sejam muito bem-vindos.
Diante de um mundo to diverso, no poderia ser com outro sentimento que no orgulho que exibimos nossa pequena e especial coleo de novos olhares na Filosofia. E no poderamos ouvir ecoar outras as palavras que no as de Joo Guimares Rosa, a nos ensinar mais uma de suas lies:
Ah, tem uma repetio, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas - e no meio da travessia no vejo! - s estava era entretido na idia dos lugares de sada e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda num ponto muito mais embaixo, bem diverso do que primeiro se pensou. (Guimares Rosa, Grande Serto: Veredas)
Comisso Editorial da Revista Aproximao
Revista Aproximao 1 semestre de 2010 N 3
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A NATUREZA DA FORMA SEGUNDO PLATO: UMA LEITURA A
PARTIR DO PARMNIDES
Carlos Arthur Resende PereiraGraduando em Filosofia da UFSJ
Bolsista do grupo PET-Filosofia da UFSJ
Paulo Henrique Silva CostaGraduando em Filosofia da UFSJ
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo expor uma possvel interpretao do problema levantado nos dilogos da maturidade de Plato, em especial o Parmnides, sobre a natureza da Forma inteligvel e dos modos possveis de participao, nesta, dos entes sensveis. A partir das dificuldades levantadas pelo prprio Plato no referido dilogo, por meio da fala da personagem que d nome obra, busca-se verificar de que modo o problema encaixa-se no itinerrio do pensamento platnico e como o filsofo pode ter solucionado esta aporia.
Palavras-chave: Formas Inteligveis. Ontologia. Participao.
Dos quase trinta dilogos que compem a obra filosfica de Plato, a sua teoria
das Formas ideais inteligveis aparece, de maneira mais clara e sistemtica, naqueles
considerados pela crtica especializada como os da maturidade do autor1. Em grande
parte dessas obras, onde Plato necessita, por meio da personagem Scrates, responder
dificuldade de conciliao entre o devir e a multiplicidade dos entes fsicos e a unidade
e imutabilidade do conhecimento e da linguagem, ele lana mo da teoria das Formas.
Nas demonstraes socrticas, um conjunto de seres ou de aes diversas explicado
pela unidade de uma Forma puramente inteligvel, representada mais das vezes por uma
qualidade que une em um conceito a pluralidade daquilo que a sensibilidade nos
apresenta. Em linhas gerais, concebe-se a Forma ideal descrita por Plato como a
unidade inteligvel de uma diversidade de coisas sensveis, a qual chamamos pelo
mesmo nome. Assim, por exemplo, podemos ler no Fdon que a beleza de um objeto,
bem como a sua grandeza ou pequenez, no se encontra em seus atributos fsicos, mas 1 H grande controvrsia, desde a Antiguidade, quanto cronologia exata das obras de Plato. A mais antiga classificao que se conhece dos dilogos foi estabelecida por Trasilo no primeiro sculo de nossa era, na qual esse autor dividiu a obra de Plato em nove tetralogias; o Parmnides figura na terceira, seguido do Filebo, do Banquete e do Fedro (cf.: TANNERY, s/d, p.18). O presente trabalho, no entanto, pauta-se sobre a viso do comentador Auguste Dis, que em sua anlise da ordem cronolgica dos dilogos classifica o Parmnides entre aqueles da maturidade de Plato, sendo imediatamente anterior ao Teeteto, ao Sofista e ao Poltico, e posterior Repblica e ao Fdon (cf.: DIS, 1950, pp. V-XIII).
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sim no fato de este objeto participar do Belo em si, da Grandeza em si e da
Pequenez em si (PLATO, 1972, 100b 101a). Desse modo, os objetos da percepo
apenas podem ser conhecidos na medida em que participam da Forma em si, como uma
cpia imperfeita dessa que est impressa na matria. As Formas so, portanto, entes
inteligveis, distintos dos entes sensveis. No grego tico, no qual Plato se expressava,
Forma se diz pela palavra edos (aspecto); o aspecto aquilo que se conserva, aquilo
que se mantm em meio mudana e multiplicidade inerentes ao mundo das sensaes.
As Formas se apresentam como aspectos imveis do mundo sensvel e dos entes
sensveis, por isso, Plato sustenta sua epistemologia na apreenso dessas Formas.
Essa concepo das coisas sensveis como participantes das Formas puras
utilizada por Plato na primeira argumentao do Parmnides, onde o jovem Scrates
no v dificuldades em refutar a aporia levantada por Zeno de Eleia. A fim de defender
a tese de seu mestre Parmnides sobre a unidade do ser, Zeno cria uma controvrsia
acerca da aceitao da existncia do mltiplo, que implicaria em aceitar que as coisas
so, ao mesmo tempo, semelhantes em relao s coisas que so semelhantes e
dessemelhantes em relao s coisas que so dessemelhantes o que seria uma
contradio absurda (idem, 2001, 127b e). Scrates objeta que, havendo as Formas em
si da Semelhana e da Dessemelhana pois so elas as causas da semelhana e da
dessemelhana dos objetos sensveis perfeitamente compreensvel e no implica
contradio que as coisas sejam semelhantes e dessemelhantes ao mesmo tempo, uma
vez que podem participar concomitantemente de ambas as Formas. O que seria
assombroso, diz o jovem ateniense, seria que a Semelhana mesma i.e., a Forma da
semelhana fosse, de algum modo, dessemelhante, e que a Dessemelhana mesma a
Forma da dessemelhana fosse, de algum modo, semelhante (ibidem, 129a e). Pode-
se considerar essa exposio inicial de Scrates contra Zeno um esboo necessrio que
o prprio Plato traa no momento inicial do dilogo, como forma de apresentar sua
teoria aos problemas que ela mesma implica.
Todavia, essa demonstrao comea a apresentar um problema mais srio,
exposto pela personagem Parmnides, logo aps a refutao do jovem Scrates teoria
de Zeno:
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Scrates, s muito digno de louvor pelo ardor de teus argumentos. Mas diz-me, s tu prprio quem assim distingue, separando para um lado as formas, e para outro as coisas que nelas participam? E parece-te que h uma semelhana em si, separada da semelhana que temos em ns, e tambm o uno e o mltiplo e todas as coisas de que ouviste Zeno falar agora mesmo? Parece-me disse Scrates. [...] E que tal uma forma de homem separada de ns, e de todos quantos so como ns, uma forma em si de homem e de fogo e de gua? Muitas vezes me tenho encontrado em dificuldades a esse respeito, Parmnides disse ele sem saber se devo dizer o mesmo sobre elas ou no (ibidem, 130b c).
De fato, imaginar que tudo aquilo que nossa vista alcana seja a reproduo de uma
Forma ideal implica pensar que h Formas para tudo aquilo do qual possa haver
conhecimento, mesmo das coisas mais estapafrdias lama, cabelo ou lixo (ibidem,
130d). A essa dificuldade, Scrates silencia.
Pode-se notar, inclusive com certa curiosidade, como o protagonista dos grandes
dilogos platnicos, dessa vez, encontra-se de tal modo enredado por uma dificuldade
imposta contra sua teoria, que este prefere manter-se em silncio. Tal no significa, de
maneira alguma, que a teoria das Formas tenha alcanado seu limite, o ponto de onde
ela no pode ir alm, a objeo irrefutvel. Filiamo-nos, aqui, posio de Auguste
Dis, que escreve em seu comentrio ao Parmnides: As declaraes de Parmnides
so uma resposta de uma clareza incontestvel: quaisquer contradies que elas
pudessem envolver, a aceitao da realidade das Formas condio absoluta do
pensamento (1950, p.42, traduo nossa).
No ocorre nenhuma ruptura no pensamento platnico no que concerne a
aceitao das Formas; o que se faz necessrio pensar um meio atravs do qual se torna
possvel conceber, como objeto do conhecimento, as Formas dos entes sensveis e no
apenas de suas caractersticas. Esse novo desenvolvimento est em ntima associao
com a natureza da Forma inteligvel e seu modo de comunicao com o sensvel.
Na sequncia do dilogo, Parmnides dirigir sua crtica ideia da comunicao
entre as instncias do sensvel e do inteligvel, especialmente no que tange extenso
das Formas (PLATO, 2001, 131a 135b), se esto inteiras em todas as coisas ou
somente em parte; estando inteiras, seriam mltiplas e no mais uma unidade; estando
em parte tal como Scrates optou por asseverar ocorreria, por exemplo, o absurdo de
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um objeto grande ser grande devido a uma parte da Grandeza em si que menor que
o todo, i.e., ser-se-ia grande por uma pequenez (!). Scrates, ento, procura representar
as Formas como pensamentos ou como paradigmas; novamente refutado pelo eleata,
pois se so as Formas pensamentos, so de algo que pensa; logo, ou tudo seria
pensamento e tudo que existe pensa, ou tudo pensamento que no pensa. Se ainda elas
fossem paradigmas, a Forma mesma deve ser semelhante a alguma outra Forma, tal qual
um objeto sensvel que dela participa semelhante a ela, e assim regrediramos ao
infinito; d-se a o contra-argumento do terceiro homem2. Continuando a refutao,
Parmnides afirma que se as Formas fossem por si e em si, no poderamos conhec-las,
uma vez que elas no se encontrariam nas coisas sensveis, mas s em relao a elas
mesmas; desse modo, os deuses, que possuem conhecimento das Formas, no poderiam
comunicar-se com os homens nem gerir os assuntos terrenos. O pice do absurdo era,
assim, atingido.
As imensas dificuldades atravessadas por Scrates nesse trecho da conversa
representam a impossibilidade de se pensar a Forma de cada um dos objetos fsicos
como um ente isolado, uno e imutvel. A sua aceitao, tal como havia sido apresentada
at agora, implica em problemas aparentemente insolveis. Todavia, como j fora dito,
no se trata de um abandono da teoria das Formas; o prprio Parmnides recusa-se,
nesse ponto, a dar o problema por encerrado, mas diz, antes, que quem quer que recuse
as Formas dos entes, ainda no saberia para onde voltar o seu pensamento (ibidem,
135b).
O maior desafio de compreenso do Parmnides, tanto pela sua forma quanto
pela sua significao dentro do pensamento de Plato, est na interpretao dada sua
segunda parte (137c 166c). Parmnides, como vimos acima, apesar da refutao
efetuada contra a teoria das Formas, no pretende abandon-la, uma vez que admite ser
impossvel, sem ela, fazer filosofia. Para isso, ele conduz o jovem Scrates a um novo 2 Aludido por Aristteles na Metafsica A9, 990b 17. Para uma explicao sucinta do argumento, citamos, na ntegra, a nota de rodap de Edson Bini ao texto da sua traduo da Metafsica (Bauru: Edipro, 2006, p. 68, n.74): ... hoi de ton triton anthropon: no possvel saber precisamente a que argumento alude Aristteles, pois mais de um recebe esse nome. Provavelmente o autor refere-se ao seguinte: se x, no mundo sensvel, um ser humano porque ele uma cpia (e, portanto, um segundo ser humano) da Ideia de ser humano no mundo inteligvel, deve haver um terceiro ser humano no qual est fundida a humanidade desses dois.
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modo de argumentao. O mtodo empregado pelo eleata e sua relao com a primeira
parte do dilogo constituem a espinha dorsal do texto e muito provvel que todo o seu
sentido esteja a jazer ali.
Inicialmente, trata-se de tomar como verdadeiras duas hipteses: primeiro que o
uno ou seja, que h a unidade da Forma e segundo, que o uno no . A partir da
admisso de cada uma, devem-se extrair as consequncias lgicas necessrias
decorrentes dessa afirmao. A despeito da ampla literatura que j existe sobre o
assunto3, no transcreveremos toda a densa trama de argumentos traados por Plato
pela boca de Parmnides. Ao invs, optamos por analisar a argumentao de maneira
mais sucinta, sem perder de vista, claro, o seu escopo.
Admitindo-se ambas as hipteses tanto que o uno como que o uno no as
concluses a que chegam Parmnides e Scrates so contraditrias ao mesmo tempo
ele e no , est e no est no tempo, uno e mltiplo, inteiro e em partes, e pode-se e
no se pode conhec-lo. Depois que todas as concluses so extradas das duas
premissas, chega-se declarao de aporia, pois no se pde decidir nem pela existncia
nem pela inexistncia do uno; assim, Plato conclui a narrativa sem responder ao
principal problema do dilogo: a questo da natureza por si e em si da Forma e dos
modos como ela se comunica com as coisas apresentadas na sensibilidade. A concluso
aportica a que chega a narrativa pode levar-nos a considerar o Parmnides um puro
exerccio dialtico preparatrio para as questes a serem tratadas em dilogos
posteriores, tais como o Teeteto, o Sofista e o Poltico. No entanto, tal resoluo no
responderia ao nosso objetivo; faz-se necessrio buscar um ponto desde o qual se possa
compreender a argumentao das hipteses como um importante passo na dissoluo do
problema referente compreenso da Forma e de seu modo de comunicao com o
sensvel. Pode-se perceber que a argumentao de Parmnides, incapaz extrair qualquer
conhecimento do uno em si, possui uma finalidade precisa: demonstrar a necessidade da
3 Dada a amplitude de nosso tema e das anlises j realizadas sobre ele, optamos por no considerar aqui uma imensa parte da literatura filosfica j existente sobre o Parmnides. Aludimos, contudo, queles trabalhos que nortearam nossa investigao: o estudo realizado sobre Parmnides por Auguste Dis, que introduz a edio de Paris: Les Belles-Lettres, 1950, e, em nosso idioma, as introdues escritas por Jos Trindade dos Santos edio portuguesa (cf. Referncias) e por Maura Iglsias e Fernando Rodrigues edio brasileira (So Paulo: Loyola, 2005).
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imbricao das Formas umas nas outras, posto que a unidade nela mesma impensvel
dela no se pode dizer que exista tampouco que no exista. No Sofista (251a ss.)
Plato retoma essa questo, solucionando, ao menos em parte, a aporia do Parmnides,
ao afirmar que h uma comunidade entre as Formas (os gneros supremos). Ao se
afirmar o uno , pressupe-se a Forma de ser, pois o uno um ser; se o uno ser,
idntico a si prprio, e pressupe-se a Forma de identidade; se o uno idntico a si, no
ele mesmo as Formas do ser e da identidade apenas participa delas ento,
pressupe a Forma da alteridade. Ao anunciar que as Formas devem se comunicar umas
com as outras, Plato abandona a ideia to criticada no Parmnides de que elas seriam
unidades inteligveis inteiramente fechadas nelas mesmas se assim fosse, o nico
conhecimento possvel seria o tautolgico, pois no poderamos predicar um sujeito
com uma Forma distinta daquela que ele mesmo do homem s se pode dizer que
homem, no que bom, etc. Uma vez, entretanto, que as Formas se imbricam
mutuamente, ou seja, que h comunicao entre elas, como ficaria a sua comunicao
com os sensveis? De que modo o ente sensvel participa de uma Forma que j participa
de outras?
Em A Repblica (Livro VII, 523b ss.), dilogo pouco anterior ao Parmnides,
Plato distingue as coisas sensveis em dois grupos: aquelas que convidam a alma
reflexo e aquelas que no provocam o mesmo efeito no nosso intelecto. Assim, a
imagem de um dedo, por exemplo, seja ela vista de longe ou de perto, seja ele magro ou
grosso, branco ou preto, sempre nos remeter Forma de dedo, sem poder passar uma
impresso contrria, ou seja, no possvel pensar o que seria o contrrio de qualquer
ente particular dedo se mostra sempre como dedo e no podemos conceber o contrrio
de um dedo. Diferentemente, se pensarmos na grandeza ou na pequenez de um dedo em
relao aos outros, essa ideia pode implicar uma impresso contrria, uma vez que um
mesmo dedo pode ser pequeno em relao a um e grande em relao a outro. Dessa
demonstrao podemos concluir que, um objeto sensvel neste caso, o dedo
simplesmente captado pelos sentidos, no pode suscitar seno a ideia de uma Forma
pura desse objeto ou seja, uma Forma de dedo que absolutamente estril em
termos de conhecimento devido ao fato de que nela no reside nenhuma contradio.
Porm, quando unimos esse objeto que se apresenta sensibilidade Forma de uma
caracterstica qualquer o que fazemos a todo o momento quando predicamos as coisas
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, uma contradio se manifesta na alma, pois o mesmo objeto, se comparado a outro,
pode converter-se em seu contrrio sem, todavia, deixar de participar da Forma de seu
ser particular no nosso caso, da Forma de dedo. O que ocorre que um objeto que
participa da Forma de um ente particular dedo, cadeira, lama, cabelo etc. tambm
participa necessariamente das Formas de qualidade grande, pequeno, belo, bom etc. ,
sendo essas as responsveis por se poder ter algum entendimento das essncias nos
seres sensveis. Desse modo, no poderia existir nenhuma Forma de um ente sensvel se,
antes, essa no participasse das Formas predicativas.
A argumentao exposta na segunda parte do Parmnides parecer vir completar
o raciocnio desenvolvido no Livro VII da Repblica, para afirmar a necessidade da
imbricao das Formas como condio para se poder conceber as Formas de todos os
entes dados pela percepo. Quando nos dilogos de transio e da maturidade, Plato
recorria teoria das Formas, utilizava sempre de qualidades puramente inteligveis para
exemplificar a natureza da essncia. Quando foi necessrio explicar a Forma mesma dos
sensveis, ele procurou pensar, primeiro, como as Formas podem relacionarem-se
consigo mesmas; somente a partir dessa relao os objetos podem possuir sua essncia e
dela dar conhecimento aos homens. O que Plato parece querer dizer com o Parmnides
: no pode haver a Forma do ente sensvel isoladamente, porque no h nenhuma
unidade que esteja isolada plenamente, existindo por si e para si; mas, somente quando a
Forma de algo sensvel participa de outras Formas responsveis pela sua predicao
virtude, bondade, beleza etc. possvel conceb-la como sendo cadeira, casa, animal,
homem, etc. A participao dos entes nas Formas no uma relao estritamente de
unidade, onde cada ente sensvel possui sua Forma, mas cada um deles dotado
tambm de qualidades que remetem Forma de que ele participa. Cada dedo possui em
si, a participao do que e do que no o ente dedo, em sentido de qualidade, ou
substrato, uma vez que a Forma no se predica em um ente sensvel somente, mas
perpassa toda a dimenso do ente. Se concebermos somente a Forma em si de algum
ente, isso seria estril em nvel de conhecimento, pois essa Forma mesma no provoca a
sensao de uma contradio na alma e, portanto, no a desperta para a investigao
acerca das essncias. Como resultado, diz-se que, o objeto material participa da sua
prpria Forma porque participa, obrigatoriamente, das Formas da qual pode ser
predicado.
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Referncias bibliogrficas
ARISTTELES. Metafsica. Traduo, textos adicionais e notas de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2006.
DIS, Auguste. Notice: Le sens et la porte du Parmnide. In: PLATON. Parmnide. Texte tabli et traduit par Auguste Dis. Deuxime dition revue et corrige. Paris: Les Belles-Lettres, 1950, pp. 40-48.
PLATO. A Repblica. Traduo de Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1964.
______. Dilogos (contm Banquete, Fdon, Sofista e Poltico). Tradues de Jos Cavalcante de Souza, Jorge Peleikat e Joo Cruz Costa. So Paulo: Abril Cultural, 1972 (Os Pensadores).
______. Parmnides. Traduo de Maria Jos Figueiredo e introduo de Jos Trindade dos Santos. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
TANNERY, Paul. Plato: Vida, obra, doutrina. In: PLATO. Dilogos (contm Mnon, Banquete e Fedro). Tradues de Jorge Peleikat e notas de Joo Cruz Costa. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, pp.13-54.
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DA ANTROPOLOGIA ROUSSEAUSTA
Bruna Frascolla BloiseGraduanda em Filosofia da UFBA
Bolsista de Iniciao Cientfica do CNPq
Resumo: No primeiro Discurso, Rousseau faz uma crtica s cincias e s artes acusando-as sobretudo de serem inteis; pouco depois, no segundo Discurso, aponta-nos tambm qual o conhecimento mais til e o menos avanado: o do homem. Assim, nossa tarefa no presente artigo investigar qual foi e como foi constitudo tal conhecimento antropolgico, sendo necessrio para tanto investigarmos qual a concepo de cincia e de filosofia tida por Rousseau.
Palavras-chave: Antropologia filosfica. J. J. Rousseau.
Quando nos propomos a abordar a antropologia rousseausta, podemos dividir
em duas as formas de faz-lo: uma versar sobre ela prpria, i. , sobre o que seja e
sobre suas caractersticas; e outra versar sobre os seus conceitos e os conhecimentos
atingidos atravs desta. Faamos o propsito deste texto a primeira abordagem e
empenhemo-nos em determinar certos traos da antropologia de Rousseau.
Antes que partamos para a leitura dos textos mais clebres do filsofo,
interessante percorrer alguns textos menos conhecidos a fim de encontrarmos neles
pensamentos pressupostos no restante do sistema. Um deles A ideia do mtodo na
composio de um livro, obra em que Rousseau estabelece regras para compor um texto
filosfico e um pequeno vocabulrio metodolgico. Leiamo-na no trecho em que
Rousseau escreve sobre as maneiras possveis de conhecimento:
H matrias em que os argumentos mais convincentes se tiram do fundo mesmo do sujeito; taisso as questes fsicas. O conhecimento da natureza das plantas pode bem, p. ex., ser ajudado por aquele do terreno que as produz, dos sucos que as nutrem e de suas virtudes especficas, mas jamais h de se conhecer-lhe bem sua mecnica e as relaes se no se lhe examina nelas mesmas, se no se consideram [...] todas as partes de sua composio. (2003x, 1.244, traduo nossa)
H duas maneiras de conhecer um objeto: uma a que Rousseau chama de nele
mesmo, que conhecer as partes que o compem (no exemplo da planta, o caule, as
folhas, etc.); e a outra que por suas relaes com outros objetos. A melhor maneira
para as questes fsicas a segunda. No entanto,
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Nas investigaes morais, ao contrrio, eu comearei por examinar o pouco que ns conhecemos do esprito humano tomado em si mesmo e considerado como indivduo, eu tirarei hesitando alguns conhecimentos obscuros e incertos; mas abandonando logo esse labirinto, eu me precipitaria em examinar o homem por suas relaes [...]. (ROUSSEAU, 2003x, p. 1244-5,traduo nossa).
Bem sabemos que a filosofia de Rousseau voltada para as questes que chamou de
morais. Temos acima, portanto, prescrita a maneira qual ele se determinou a filosofar
e graas a isso podemos entender o que quer dizer expresso em si mesmo, que
consta em seus textos1; podemos entender que ela significa tomado individual e
independentemente do meio. Assim, podemos apontar desde j um trao na construo
da antropologia: o de examinar o homem nele mesmo, independentemente do meio e
da sociedade.
Outro aspecto que nos cabe examinar para uma boa compreenso de sua
antropologia de maneira que Rousseau lida com a histria. Podemos selecionar dois
fragmentos do Meu Retrato que o mostram desconfiante. Leiamos um deles:
Se mesmo os Prncipes so pintados pelos historiadores com qualquer uniformidade, no , como se pensa, porque eles so em vista fceis de se conhecerem; mas porque o primeiro que os pintou copiado por todos os outros. No h nada na aparncia do filho de Lvio que o assemelhasse ao Tibrio de Tcito; no entanto assim que ns os vemos todos, e gosta-se mais de ver um belo retrato que um retrato semelhante. (p. 1.121 traduo nossa)
Meu Retrato so fragmentos do que seria uma obra autobiogrfica de Rousseau; j por
isto notamos uma vinculao metafrica entre histria e retrato. Neste trecho os
prncipes so pintados no por pintores, mas por historiadores, e estes, tais como
pintores, antes copiam belas imagens do que imagens verdadeiras: no so, portanto,
fidedignos em suas descries de coisas. Passemos ao outro trecho:
Eu vejo que as pessoas que vivem da maneira mais ntima comigo no me conhecem, e que elas atribuem a maior parte de minhas aes, sejam para o bem, sejam para o mal, a todo outro motivo, exceto queles que as produziram. Isto me faz pensar que a maior parte de caracteres e de retratos que achamos nos historiadores no so seno quimeras que, com esprito, o autor torna facilmente verossmeis; e que ele faz relacionar s principais aes de um homem como um pintor ajusta sobre os cinco pontos uma figura imaginria. (p. 1.121, traduo nossa).
Segundo Rousseau, as pessoas o que rodeiam explicam suas aes de qualquer maneira,
menos a exata; e assim podem ser tambm os historiadores. Alm de ser reforada a sua
falta de fidedignidade no que respeita descrio de objetos, vemos aqui que tambm
no so fidedignos na explicao dos fatos. Com os historiadores s podemos contar,
ento, com a afirmao dos fatos e nada mais.
1 Cf. ROUSSEAU, 2003b, p. 122: como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se no se comea por conhec-los em si mesmos? (traduo nossa).
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Nosso prximo passo ser examinar o que Rousseau entende por filsofo,
sobretudo quando nos deparamos com um que hoje classificamos como tal se referir
pejorativamente e em terceira pessoa aos filsofos. Para isso, vejamos como Rousseau
enxerga alguns autores: os pensamentos de Hobbes e de Espinosa so chamados de
devaneios perigosos2; outros filsofos (sendo o primeiro Berkeley, e o ltimo, Hobbes3)
eram descritos assim:
Que contm os escritos dos filsofos mais conhecidos? Quais so as lies desses pretensos amigos da sabedoria? Ao ouvi-los, no os tomaramos por um bando de charlates berrando, cada um dum lado, numa praa pblica: Vinde a mim, sou apenas eu que no engano? Um pretende que no h corpo algum e que tudo existe apenas em representao. O outro, que no h outra substncia que a matria nem outro deus que o mundo. Este avana que no h nem virtudes nem vcios, e que o bem e o mal moral so quimeras. Aquele, que os homens so lobos e podem se devorar com a conscincia tranquila. (2003a, p. 27, traduo nossa).
Embora deprecie a filosofia de Espinosa, Rousseau no se d ao trabalho em momento
algum de sua obra de refut-la; embora chame os autores das teorias mencionadas de
charlates, tambm nunca na sua obra esboou reflexes metafsicas sobre a matria e
os corpos que visassem refutar aqueles que berravam em praa pblica. Alm disso,
avana, ainda dirigindo-se a esses filsofos: grandes filsofos! Que no reserveis
para vossos amigos e para vossas crianas essas lies to proveitosas; recebereis logo
por isso o prmio e ns no temeramos encontrar entre os nossos nenhum de vossos
partidrios. (ROUSSEAU, 2003a, p. 27, traduo nossa) Tais pensamentos no devem
sequer ser pensados pelo seguinte motivo: so danosos.
Vimos j um tipo que Rousseau chama de filsofo, esse tipo intil e nocivo
sociedade, alm de, vale notar, afastado das experincias e clculos de cientistas4.
Vejamos ento mais alguns filsofos, os que Rousseau elogia: Francis Bacon, Newton e
Descartes, os preceptores do gnero humano (cf. 2003a, p. 27). Os filsofos elogiados
formam um grupo bastante heterogneo entre si; temos Bacon, um empirista, e
Descartes, um racionalista; temos pais de fsicas radicalmente distintas: a cartesiana dos
turbilhes e a newtoniana da gravidade. Que poderiam ter ento em comum estes
filsofos? 2 Cf. ROUSSEAU, 2003a, p. 28: Mas, graas aos caracteres tipogrficos e ao uso que fazemos deles, os perigosos devaneios dos Hobbes e dos Espinosas ficaro para sempre (traduo nossa).3 Cf. ROUSSEAU, 2003, p. 1254-5, n.1 (da editora). Quanto aos outros, diz-se que possvel que o segundo seja ou dHolbach ou La Mettrie, e o terceiro, Mandeville ou Saint-Aufin.4 Lembremos que na modernidade os termos filsofo e cientista se confundiam. Cf., p.ex.: Quem olha mais alto se diferencia mais altamente; e o voltar-se ao grande livro da natureza, que o objeto prprio da filosofia, o modo de alar os olhos (GALILEI, 2009, p. 3 traduo nossa).
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Primeiramente, chama ateno o fato de serem nomes mais ligados cincia,
excetuando-se Descartes ao soar mais eminentemente filosfico. No entanto vejamos de
que maneira Rousseau o admira: Menos se sabe, mais cr-se saber. Os peripatticos
duvidavam de alguma coisa? Descartes no construiu o universo com cubos e
turbilhes? (2003a, p. 18, n.1, traduo nossa). Descartes era admirado aqui pela sua
fsica; era-o enquanto o que hoje chamamos de cientista. Por isso vemos ento que, do
nosso vocabulrio contemporneo, aquilo que Rousseau entendia por filsofo abarcava
filsofo e cientista. Ademais, o que tambm se pode afirmar acerca dos filsofos
que suas produes tm que ser teis, pois todo cidado intil pode ser visto como um
homem pernicioso (ROUSSEAU, 2003a, p. 18, traduo nossa).
Todo conhecimento, pois, deve ser til e aquilo que mais correntemente se
chamava de filosofia no era5. Da a necessidade do abandono de uma tradio
filosfica e da constituio de um novo conhecimento para tratar de um assunto
pertinente que vinha sendo maltratado. Por sua vez o mais til, diz ele, e o menos
avanado de todos os conhecimentos me parece ser aquele do homem (ROUSSEAU,
2003b, p. 122, traduo nossa).
Acompanhemos ento Rousseau no desenvolvimento de sua antropologia: Num
primeiro momento (mais precisamente, pouco depois de escrever o primeiro Discurso,
dirigindo-se a um adversrio) ele se prope um procedimento observacional:
Dir-se-ia pelo tom com que ele fala que ele estudou os homens como os peripatticos estudavam a fsica, sem sair de seu gabinete. Quanto a mim, eu fechei meus livros; e depois de ter ouvido falarem os homens, eu os observei agir. (2003a, p. 59, traduo nossa).
Ao equiparar seu adversrio aos peripatticos, Rousseau o acusa de no observar os
fatos, coisa que ele prprio diz fazer. Bem sabemos que Rousseau no pde ir to longe
assim do seu gabinete, no entanto temos aqui explicada a quantidade de notas referentes
s observaes de viajantes e bilogos no segundo Discurso. Uma ruptura tambm
entrevista, afinal a comparao dos seus adversrios com peripatticos no pode deixar
de colocar o prprio Rousseau revolucionrio como um copernicano, ao querer fundar
5 Cf. ROUSSEAU, 2003a, p. 19: se os trabalhos dos mais esclarecidos de nossos sbios e de nossos melhores cidados nos proporcionam to pouca utilidade, dizei-nos o que devemos pensar dessa turba de escritores obscuros e de letrados ociosos (traduo nossa).
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uma cincia observacional do homem. A importncia da observao tambm
crucialmente posta na dcima nota do segundo Discurso, onde se queixa da m
qualidade dos relatos de que dispe e aponta para a necessidade de homens preparados,
como um Montesquieu, um Diderot, viajando pelo mundo com a finalidade de estudar o
homem e instruir seus compatriotas. Ante a atitude to visionria, que podemos fazer
seno perguntar junto a Lvi-Strauss: No a etnologia contempornea, seu programa
e seus mtodos, que ns vemos se desenhar aqui [...]? (1962, p. 241, traduo nossa).
Entretanto h algo anterior etnologia moderna a ser definido: Rousseau, de
fato, fecha seus livros, porm parece ter deixado aberto aquele no qual o adversrio dos
peripatticos que construiu o universo apenas com cubos e turbilhes prope um
mtodo para a boa conduo da razo. Um preceito contido nesse livro jamais
receber coisa alguma por verdadeira que eu no conhea ser evidentemente tal
(DESCARTES, 2001, p. 49, traduo nossa). Proceder conforme isto no entanto no faz
com que se recaia num ceticismo destruidor, mas sim visa a assegurar, e a rejeitar a
terra movedia e a areia, para achar a rocha ou a argila (DESCARTES, 2001, p. 61,
traduo nossa), de modo que entendemos que h uma base slida a ser procurada,
sobre a qual poder ser edificado conhecimento seguro aps uma demolio daquilo que
levava ao erro. Vejamos como faz Rousseau, seguindo este preceito para o
estabelecimento do que seja o homem:
os estabelecimentos humanos parecem, ao primeiro lanar de olhos, fundados sobre montes de areia movedia; no seno ao examin-los de perto, no seno aps tirar a poeira e a areia que permeiam o edifcio, que se apercebe a base inabalvel sobre a qual ele levantado, e que se aprendem a respeitar os fundamentos. (2003b, p. 127, traduo nossa).
Trata-se ento de descobrir uma base slida para esse estabelecimento.
Bases slidas para ns significaro um grau zero6 a ser marcado que
poderemos usar para comparar com os diferentes estgios de sociabilidade do homem,
coisa que ser feita a partir de uma especulao de como teria sido o homem puramente
natural. Para que isto seja feito, traada no homem necessariamente uma distino
entre caractersticas que so naturais e caractersticas que so artificiais, sendo estas
ltimas sempre adquiridas, acidentais. Como bem define Durkheim, o homem natural
de todo simplesmente o homem, abstrao feita de tudo aquilo que ele deve vida
6 Nesta expresso seguimos Starobinski: Deve-se supor, como dizem os linguistas, um grau zero para apreciar as variaes. (1962, p. 88, traduo nossa).
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social, reduzido quilo que ele seria se ele tivesse sempre vivido isolado (1953, p. 116,
traduo nossa).
Vimos j que Rousseau era desconfiante com relao histria apesar de narrar
uma para a humanidade no segundo Discurso e no Ensaio sobre a origem das lnguas;
somando-se isso ao fato de dizer que o estado que se descreve nela no existe mais,
que talvez no tenha existido, que provavelmente no existir jamais (ROUSSEAU,
2003b, p. 123, traduo nossa), somos tentados a chamar essas histrias de no-
histricas, sem qualquer pretenso de veracidade. No entanto, frente a um filsofo que
chama de danosa a inutilidade e que chama o conhecimento do homem de o mais til,
cabe perguntarmos: afinal, para que serve a antropologia feita por ele? Uma resposta
mais fcil pode ser dada pela afirmao dele de que enquanto ns no conhecemos o
homem natural [, que investigado na antropologia], em vo que quereremos
determinar a lei que ele recebeu ou aquela que convm melhor sua constituio
(ROUSSEAU, 2003b, p. 125, traduo nossa), e como o Contrato Social pretende
investigar se na ordem civil possvel haver alguma regra de administrao legtima e
segura, tomando-se os homens tais como eles so e as leis tais como elas podem ser
(ROUSSEAU, 2003b, p. 351, traduo nossa), sendo a base para compreendermos esses
homens o homem natural, ento a antropologia til para a teoria poltica de Rousseau.
Outra resposta, por sua vez, pode ser dada a partir desse trecho:
Para seguir com proveito a histria do gnero humano, para bem julgar a formao de povos e de suas revolues, necessrio remontar aos princpios gerais das paixes dos homens, s causas gerais que os fazem agir. Assim, aplicando esses princpios e essas causas gerais s diversas circunstncias nas quais os povos se encontram, saber-se- a razo daquilo que eles fizeram, e saber-se- mesmo aquilo que eles devem ter feito nas ocasies em que os acontecimentos nos so menos conhecidos que as situaes que os precederam. Sem essas pesquisas, a histria no tem utilidade alguma para ns, e o conhecimento de fatos desprovido daquele de suas causas no serve seno para sobrecarregar a memria, sem instruo para a experincia e sem prazer para a razo. (ROUSSEAU, 2003d, p. 529, traduo nossa).
Rememoremos a Ideia do mtodo e o Meu Retrato: na primeira, vimos a determinao
de Rousseau de comear o estudo do homem nele mesmo, por rduo que seja, pois se
precipitaria se fosse examin-lo por suas relaes. No outro texto, vimos que os
historiadores no descrevem objetos com veracidade nem do explicaes corretas para
os fatos, restando-nos de confivel da parte de seus relatos somente a afirmao de que
tais e tais fatos ocorreram. No trecho acima, do fragmento poltico X, n 1, vemos que
se deve remontar aos princpios gerais das paixes do homem para poder explicar os
acontecimentos aqui podemos dizer, ento, que o exame feito relacional, e no
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tomando as coisas nelas mesmas; este exame, no podendo ser inicial, demanda o
conhecimento dos princpios gerais das aes dos homens, isso que concerne
antropologia. O exame feito no do homem, mas sim dos acontecimentos histricos:
atravs dele saberemos no s as explicaes para as aes afirmadas pelos
historiadores, mas at mesmo preencher as lacunas dos seus relatos, pois com o
conhecimento desses princpios poderemos estimar o que os homens devero ter feito
e esta uma outra utilidade para a antropologia.
Ora, acontecimentos na histria da humanidade costumam ser descritos como,
em grande medida, contingentes, e no previsveis atravs de princpios que os regem;
por isso, vemos que no lidamos aqui com uma perspectiva histrica ordinria. Outro
ponto de difcil explicao nela o fato de Rousseau se dizer observador no que respeita
ao conhecimento do homem, comeando no entanto a descrever uma histria da
humanidade que parte desde o que chama de primeiros tempos, dos quais no h
registros, de modo que ele ter de se manter em seu gabinete mesmo estando disposto a
no ser peripattico. Rousseau reconhece ento nesse momento que no pode
determinar o modo que se deram os acontecimentos que descrever no segundo
Discurso seno por meio de conjecturas; em contrapartida argumenta que, como
essas conjecturas advm de razes, j que so as mais provveis que se pudessem tirar da natureza das coisas e os nicos meios que se pudessem ter para descobrir a verdade, as consequncias que eu quero deduzir das minhas no sero por isso conjecturais, uma vez que, sobre os princpios que venho a estabelecer, no se saberia formar algum outro sistema que fornecesse os mesmos resultados, e do qual eu pudesse tirar as mesmas concluses. (2003b, p. 162, traduo nossa).
Atravs de conjecturas , ento, possvel chegar a consequncias no conjecturais, mas
sim verdadeiras. O argumento de Rousseau para isto pode ser dito de outra maneira: se
dentre os meios que temos para tentar alcanar a verdade s restam as conjecturas, ento
este um meio legtimo. Ademais, seu sistema seria o nico a fornecer o que fornece a
partir de seus princpios; estes, por sua vez, podem decorrer da observao que ele faz
dos homens. O argumento de Rousseau s lcito se aceitarmos, de incio, que
possvel alcanar a verdade, coisa que assinalamos ser necessria de se fazer para que se
possa acompanhar o raciocnio do filsofo.
H pois uma histria imaginada por meio de conjecturas com a qual se
pretendem alar verdades a respeito do homem; porm um empecilho teolgico se ope
possibilidade de veracidade histrica das descries de Rousseau:
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A religio nos ordena a crer que o prprio Deus, tendo tirado os homens do estado de natureza, imediatamente aps a criao, eles so desiguais porque ele quis que o fossem; mas ela no nos impede de formar conjecturas tiradas somente da natureza do homem [...] se ele ficasse abandonado a si mesmo (2003b, p. 133, traduo nossa)
Uma vez que os primeiros tempos j esto descritos na Bblia, descrev-los
diferentemente coisa que Rousseau faz seria contradiz-la; a nica maneira seria
portanto condenar sua histria a no ser verdica. Contudo uma manobra feita no
Ensaio sobre a origem das lnguas: Eu chamo os primeiros tempos aqueles da
disperso dos homens, em qualquer era do gnero humano em que se queira fixar a
poca (ROUSSEAU, 2003c, p. 395, traduo nossa). Esta uma manobra que
distingue primeiros tempos de tempos mais antigos, desvincula histria de
cronologia e consequentemente permite que os tempos bblicos e os descritos por
Rousseau como primeiros sejam ambos historicamente verdicos; afinal os bblicos,
embora tenham acontecido primeiro, no tinham os homens dispersos, no sendo,
portanto, os primeiros tempos. Os primeiros tempos, descritos por Rousseau, poderiam
acontecer mesmo com o homem sendo posto por Deus em sociedade logo aps sua
criao. Vejamos:
Ado falava, No falava; que seja. Ado foi instrudo pelo prprio Deus. Ao se dividirem, as crianas de No abandonaram a agricultura, e a lngua comum pereceu com a primeira sociedade. [...] Dispersos nesse vasto deserto do mundo, os homens recaram na estpida barbrie em que eles se encontrariam se fossem nascidos da terra. (ROUSSEAU, 2003c, p. 398-9, traduo nossa)
Graas a essa preocupao de Rousseau de tornar possveis veridicamente as histrias
que descreve para o homem, vemos que sua inteno era formar uma cincia do homem
que comportasse sua histria, coisa que seria feita atravs de princpios a serem
descobertos, estes atravs da observao dos homens.
Bem sabemos que a afirmao da possibilidade de um fato no implica na
afirmao de um fato; entretanto devemos ressaltar que o fato de a histria da
humanidade narrada por Rousseau ser dita pelo prprio como hipottica no prova que
ela no possa se pretender verdica afinal, podemos dizer que chamar algo de hiptese
significa necessariamente afirmar sua no-veracidade? Ora, isso implicaria numa
identidade entre hiptese e falsidade; transp-la-ia do plano do incerto para o plano do
falso. O que afirmamos aqui no que a hiptese de Rousseau seja verdica pois
assim deixaria de ser hiptese e passaria a fato , mas que se pretende verdica. E que
ela se pretenda tal possvel pela manobra feita no Ensaio sobre a origem das lnguas,
e, sobretudo pela preocupao do autor em faz-la.
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Por fim, vejamos uma objeo, a de que, por ser trabalhosa e contingente a
passagem do estado de natureza ao de sociedade, melhor seria considerarmos o homem
socivel desde sempre; ou que, como expressa Derath, a passagem [...] da vida
puramente instintiva vida racional permanece a parte mais fraca do sistema de
Rousseau (1948, p. 19, traduo nossa). De fato, essa passagem depende de foras
externas. Mas cabe apontar que Rousseau no as deixa em aberto.
Uma passagem que soa misteriosa no Ensaio sobre a origem das lnguas a
seguinte: Aquele que quis que o homem fosse socivel tocou com o dedo o eixo do
globo e o inclinou sobre o eixo do universo (ROUSSEAU, 2003c, p. 401, traduo
nossa). Uma outra passagem do fragmento poltico X, n 1, porm, a elucida:
Se a eclptica se fosse confundida com o equador, talvez jamais houvesse emigrao de algum povo, e cada um, incapaz de suportar um outro clima que no aquele onde nasceu, no sairia jamais dele. Inclinar com o dedo o eixo do mundo ou dizer ao homem: Cobre a terra s socivel, isto seria a mesma coisa para Aquele que no tem necessidade nem de mo para agir nem de voz para falar. (ROUSSEAU, 2003d, p. 531, traduo nossa).
Aquele que quis que o homem fosse socivel Deus. Rousseau explica o
desenvolvimento das faculdades virtuais do homem: elas no foram apenas exgenas;
foram, de certo modo, sobrenaturais. Exgeno que seja, cabe notar que, ao pr a origem
desse desenvolvimento na vontade divina, ele ganha um carter de necessidade. E cabe
apontar ainda outra vez a preocupao que Rousseau com a veracidade histrica de suas
teorias antropolgicas, agora ao torn-las possveis com essa alterao geogrfica.
Referncias bibliogrficas
DERATH, Robert. Le rationalisme de Jean-Jacques Rousseau. Paris: Presses universitaires de France, 1948.
DESCARTES, Ren. Discours de la mthode. Manchecourt: Flammarion, 2000.
DURKHEIM, mile. Montesquieu et Rousseau: prcurseurs de la sociologie. Evreux: Marcel Rivire et Cie., 1953.
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GALILEI, Galileo. Dialogo dei Massimi Sistemi. Itlia: Oscar Mondadori, 2009.
LVI-STRAUSS, Claude. Jean-Jacques Rousseau, fondateur des sciences de lhomme. Em: BAUD-BOVY, Samuel; & al. Jean-Jacques Rousseau. Genebra: ditions de la Baconnire, 1962.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. uvres compltes. Paris: Pliade, 2003.
______. Discours sur les sciences et les arts. In: ______. uvres compltes, vol. III. Paris: Pliade, 2003a.
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______. Fragments Politiques. In: ______. uvres compltes, vol. III. Paris: Pliade, 2003d.
______. Du Contrat Social. In: ______. uvres compltes, vol. III. Paris: Pliade, 2003.
______. Lide de la mthode dans la composition dun livre. In: ______. uvres compltes, vol. II. Paris: Pliade, 2003x.
______. Mon Portrait. In: ______. uvres compltes, vol. II. Paris: Pliade, 2003.
STAROBINSKI, Jean. La pense politique de Jean-Jacques Rousseau. In: BAUD-BOVY, Samuel; & al. Jean-Jacques Rousseau. Genebra: ditions de la Baconnire, 1962.
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O PARADOXO CTICO E A PERSPECTIVA DA COMUNIDADE
Pedro MerlussiGraduando em Filosofia da UFOP
Resumo: O presente artigo tem como objetivo meramente apresentar a interpretao de Kripke relativamente ao paradoxo exposto no pargrafo 201 das Investigaes Filosficas de Wittgenstein. No tenho a pretenso de mudar a interpretao de Kripke, portanto no discutirei se o paradoxo est realmente presente na obra de Wittgenstein.
Palavras-chave: Kripke, Perspectiva da comunidade. Wittgenstein.
Introduo
Em The Rule-Following Considerations, Boghossian afirmou que os ltimos
anos testemunharam um grande interesse por parte dos filsofos analticos nos escritos
do ltimo Wittgenstein. O ressurgimento de tal interesse deve-se em grande parte obra
de Saul Kripke, intitulada Wittgenstein on Rules and Private Language. Nela, Kripke
apresenta sua interpretao das Investigaes Filosficas de Wittgenstein e procura
desenvolver um aparente paradoxo ctico exposto no pargrafo 201. Na concepo do
ctico kripkiano, a linguagem s possui significado quando podemos distinguir entre os
usos corretos e incorretos das palavras e frases. O paradoxo ctico consiste
precisamente em mostrar que no possumos critrios para traar tal distino. Portanto,
seu resultado leva-nos a admitir que a linguagem desprovida de significado. Contudo,
tal resultado absolutamente inaceitvel solucionado quando admitimos o uso pblico
da linguagem. Podemos traar a distino entre usos corretos e incorretos caso
admitamos o falante no como um indivduo isolado, mas como algum que pertence a
uma comunidade. Esta soluo ctica proposta por Kripke tambm ficou conhecida
como a perspectiva da comunidade. Se o paradoxo est realmente presente na obra de
Wittgenstein, assunto que no abordarei no presente artigo. Meu objetivo consiste em
apresentar os principais argumentos a favor do paradoxo e algumas possveis objees
(amide apresentadas pelo prprio Kripke).
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***
Nas Investigaes Filosficas, Wittgenstein escreve: Este era o nosso
paradoxo: nenhuma atividade pode ser determinada por uma regra porque toda
atividade pode ser concilivel com a regra (1958, 201, traduo do autor). Kripke
acredita haver aqui um paradoxo que talvez seja o problema central das Investigaes
Filosficas. E no s isto. O paradoxo deve ser considerado, segundo Kripke, como
uma nova forma de ceticismo filosfico. Ele questiona se a linguagem, mesmo em
nosso uso corrente, possui significado ou se no passa simplesmente de rudos ou
rabiscos sem sentido. Kripke desenvolve seu problema inicialmente em relao a um
exemplo matemtico. No obstante, o paradoxo ctico aplica-se a todos os usos
significativos da linguagem. Antes de elucid-lo, no entanto, preciso esclarecer a
concepo de linguagem pressuposta pelo ctico kripkiano.
A linguagem concebida pelo ctico kripkiano como uma atividade normativa.
O uso das palavras determinado por regras e estas nos permitem distinguir entre o uso
correto e incorreto de um signo. Palavras e frases so como peas de um jogo, usadas
para fazer jogadas em prticas sociais regidas por regras. o caso de expresses como
Ol, Sade, Estou nessa, Raios, etc. Tais expresses so simples dispositivos
convencionais para, respectivamente, cumprimentar, bendizer, comprometer-nos e
protestar. So rudos que fazemos que tm papeis funcionais socialmente definidos; h
ocasies apropriadas e inapropriadas para os usar, e respostas apropriadas (LYCAN,
2008, p. 95, traduo do autor). Compreender o significado de uma expresso apenas
saber quais so as regras apropriadas para utiliz-la em contextos conversacionais,
digamos, apropriados. A ideia fundamental que as regras constituem padres de
correo; sem elas, a linguagem seria desprovida de significado. Qual seria o
significado da expresso sade, caso ela no tivesse um papel funcional definido?
Esta expresso no teria sentido caso no soubssemos as regras que fazem com que ela
tenha significado. Nesta concepo, portanto, palavras e frases s possuem significado
se pudermos distinguir como utiliz-las correta ou incorretamente. Por exemplo, para
que a palavra dor no seja simplesmente um rabisco ou um rudo (desprovido de
significado), preciso determinar como ela deve ser utilizada. Como vimos, so as
regras que cumprem exatamente esta funo.
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No intercmbio lingstico normal, sabemos como utilizar as palavras. Tambm
no surpreendente o fato de estarmos cientes das normas de uso de um signo. Por
exemplo, sabemos muito bem que o smbolo + e a palavra mais referem-se a uma
bem conhecida funo matemtica: a adio. A regra da adio determina como o
smbolo + e a palavra mais devem ser utilizados. Se algum afirma que 2 + 2 = 5,
porque no sabe utilizar a regra corretamente. Segundo a concepo de linguagem
acima descrita, ns determinamos anteriormente como a regra da adio deve ser
utilizada. Claro que no novidade nenhuma que no caso de 2 + 2 = 5 ela foi utilizada
incorretamente.
Mas um ponto crucial para compreendermos esta regra. Como afirmou Kripke,
embora tenhamos resolvido apenas finitas adies, a regra determina a mesma aplicao
para um nmero infinito de adies. Por exemplo, digamos que at hoje eu tenha
resolvido apenas umas trinta e cinco contas utilizando a regra da adio. Se algum
pedisse para eu resolver uma soma que nunca fizera antes, no notaria problema algum.
Apenas aplicaria a regra da adio como sempre fizera antes e, aps conferir minha
resposta, saberia se ela est ou no correta. A regra da adio aplica-se a um nmero
infinito de contas. No importa se a utilizaremos apenas algumas vezes; ela funcionar
para todas as somas possveis.
O paradoxo ctico de Kripke comea a se desenvolver do seguinte modo:
suponha que 68+57 seja uma soma que eu nunca realizara antes. Como j afirmei
anteriormente que realizara apenas umas trinta e cinco somas durante toda a minha
vida, asseguro que 68+57 no uma daquelas que eu realizara. Para falar a verdade,
nunca fiz uma soma cujos nmeros fossem superiores a 57. Nem mesmo somei um
nmero maior que 50. No entanto, como conheo muito bem a regra da adio, no
tenho maiores problemas em somar 68+57. Assim, ao realizar a soma, obtive o
resultado de 125. Conferi minha resposta e estou confiante que ela esteja
absolutamente correta. Como escreveu Kripke, ela correta tanto no sentido aritmtico,
no qual 125 a soma de 68+57, como no sentido metalingstico, no qual mais
+ como determinei a regra desta palavra no passado designou uma funo que,
quando aplicada a nmeros que eu chamei 68 e 57, resulta o valor de 125.
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Mas as coisas no so to simples. Kripke nos convida a supor que um ctico
aparecesse e questionasse minha resposta. Na verdade, diria o ctico, eu devesse
responder 5, ao invs de 125! Claro que riramos e mandaramos este ctico voltar
ao ensino fundamental, l nas aulas de matemtica da primeira srie. Contudo, nosso
desafiante apresenta um problema referente regra da adio. Talvez no passado,
afirma o ctico, eu tenha utilizado a regra da adio para simplesmente designar outra
funo: a quadio. Anteriormente utilizei mais e + para designar uma funo que
na verdade chamei de quais e simbolizei por (+). Ela definida da seguinte
maneira:
x(+)y =x+y, se x, y < 57
x(+)y = 5, se x, y 57.
No poderia ser esta funo que eu determinara no passado? Ela funcionara
perfeitamente porque eu nunca tinha realizado somas com nmeros superiores a 50.
No entanto, agora que h uma soma com 57 e 68, ao fornecer a resposta 125,
estaria interpretando mal minha regra prvia, a quadio. Por mais, dir o ctico, eu
sempre quis dizer quais. Mas por algum motivo insano, interpretei mal minha regra
prvia. Estaria cometendo um erro na suposio de que estaria de acordo com minhas
intenes lingsticas prvias. No cometi um erro matemtico. O que aconteceu foi
simplesmente que interpretei mal a funo quais. Talvez eu tenha esquecido a regra
que determinei antes. Esqueci que, com nmeros 57, o resultado sempre 5. Mas se
no aceito esta hiptese ctica e a julgo falsa, deve haver algum fato sobre meu uso
anterior que possa ser citado para refut-la (KRIPKE, 1982, p. 9, traduo do autor).
Afinal, embora a hiptese seja maluca, no parece ser impossvel a priori (KRIPKE,
1982, p. 9, traduo do autor).
Se eu dissesse sei que 125 a resposta correta porque apliquei a regra como
sempre fiz no passado, o ctico riria de mim. Aquilo que eu sempre fiz no passado est
totalmente de acordo com a regra da quadio. Eu a utilizei corretamente, sem dvida.
Mas quando havia uma soma com nmeros 57 acabei interpretando-a mal. Esqueci que
o resultado deveria ser 5. No passado eu aplicara a regra da quadio perfeitamente,
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dir o ctico. Mas quando somei 68+57, interpretei mal a regra da adio. O ctico
dir que no sabe o porqu de eu a ter esquecido. Como posso ter certeza de que nunca
segui a regra da quadio? Para fornecer uma resposta satisfatria ao ctico, devo
recorrer a algum fato que comprove isto. Sem dvida, pois isto no nos parece uma
contradio lgica: sempre ser logicamente possvel que eu tenha determinado outra
regra. Vale lembrar que a eficcia de minha memria no entra em questo. Poderia
responder sei que 68 + 57 resulta em 125 porque me lembro que determinara a
regra da adio ao invs da quadio? A questo que nunca ser uma impossibilidade
eu poder ter determinado outra regra. Minha memria falha, e eu seguramente posso
estar em enganado em relao ao que julgo lembrar. Por vezes nos esquecemos de ter
dinheiro na carteira e, no momento de pagar a conta, passamos por certo vexame.
Parece ento que recorrer memria no justificativa suficiente para descartar a
hiptese ctica.
Portanto, o paradoxo ctico acaba tomando duas formas. Primeiro, o ctico
pergunta se h algum fato que comprove que eu quis dizer mais, ao invs de quais.
Segundo, ele questiona se eu tenho alguma razo para estar to confiante que agora eu
deva responder 125 ao invs de 5 (KRIPKE, 1982, p. 11, traduo do autor). Vale
lembra que este no um problema de aritmtica (como pergunta Kripke, por que no
responder ao ctico com uma prova matemtica?): trata-se de um problema
metalingstico. A questo diz respeito ao que seguir uma regra. Neste caso, trata-se
de entender: como sei que estava seguindo somente a regra da adio e nunca a da
quadio? Como escreveu Colin McGinn, embora a quadio parea uma forma
engraada de aritmtica, perfeitamente possvel imagin-la. Alm disso, como vimos,
o desafio proposto pelo ctico no impossvel a priori; no podemos refut-lo sem
recorrer a fatos que comprove que a regra da quadio impossvel.
Dissemos anteriormente que o problema no se aplica apenas a este caso da
matemtica. Como escreve Boghossian, a aplicao do problema matemtica no
meramente um artefato do exemplo aritmtico; o problema se aplica a qualquer
conceito (BOGHOSSIAN, 1989, p.509). Outro exemplo, no qual o problema ctico
bvio para qualquer leitor de Goodman (cf. KRIPKE, 1982, p. 20), pode nos ajudar a
entend-lo melhor. Suponha que eu diga ao nosso amigo ctico que um determinado
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objeto verde. O ctico olha com desconfiana e afirma que novamente estou
interpretando mal uma de minhas regras . No passado, dir ele, a regra que eu
determinara para o uso de verde era a seguinte: a palavra verde se aplica a objetos
verdes se estes forem observados at 2008, mas a objetos azuis, se observados a partir
desta data. De acordo com minha regra, o correto seria utilizar a palavra verde para
objetos verdes observados at 2008; mas a partir desta data, o correto seria utilizar a
palavra verde para objetos azuis. Portanto, at 2008, utilizei a palavra verde de
modo correto, dir o ctico. Mas a partir deste ano, comecei a aplicar a palavra verde
de maneira errada. Na verdade, eu deveria utiliz-la para me referir apenas a objetos
azuis. Como estamos em 2009, utilizei a palavra verde de maneira errada. Interpretei
mal minha regra.
O ctico afirma o seguinte: no se trata simplesmente de uma confuso acerca
de objetos verdes e azuis. O que ocorre que a palavra verde possui esta curiosa
regra que eu determinara anteriormente (mas que agora esqueci): ela determina que eu
diga verde para objetos verdes vistos at 2008, mas que, a partir desta data, eu deva
dizer verde para objetos azuis. Como posso refutar o ctico e dizer que ele est
seguramente enganado? Poderei, por exemplo, recorrer minha histria de uso da
palavra verde? No, infelizmente. No poderia refut-lo atravs do uso lingstico
que fiz da palavra verde at hoje. Se algum olhasse para meu passado e visse como
eu utilizava verde, pensaria que minha regra seria outra. A regra poderia ser, por
exemplo, a seguinte: a palavra verde deve ser utilizada para referir-se to somente a
objetos verdes. Mas, como afirma o ctico, minha regra para a palavra verde difere-se
totalmente do uso que fiz at 2008 (o uso tem de mudar quando passa desta data).
Portanto, no basta olhar para o passado e ver como uma pessoa utilizou determinada
palavra. Os casos de uso desta pessoa so finitos. As regras, no entanto, se aplicam a um
nmero indefinido de casos.
Retornemos ento ao problema: como sei que, no passado, sempre quis dizer
mais ao invs de quais? Como sei que verde se aplica apenas a objetos verdes?
Como sei que devo seguir uma regra ao invs de outra? Vimos que a hiptese ctica no
impossvel a priori. Mas h algum fato no qual comprove que eu quis dizer uma coisa
e no outra (por exemplo, que eu quis dizer mais e no quais)? A interpretao que
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Kripke faz de Wittgenstein nega que existam quaisquer fatos. Como uma regra se aplica
a casos infinitos, no pode haver no mundo algo que corresponda a esta regra, pois no
mundo sempre haver casos finitos. No h nada no mundo que corresponda, por
exemplo, palavra mais.
Alm disso, de nada adianta considerar as experincias conscientes que uma
pessoa tem quando utiliza, por exemplo, o smbolo +, pois estas so compatveis com
diversas interpretaes do smbolo. Afirmar que o indivduo teria certa disposio de
utilizar a palavra de uma determinada maneira no futuro tambm no resolve o
problema. Por exemplo, no posso afirmar que teria certa disposio em utilizar a
palavra mais como significando adio no futuro. Afinal, posso ter uma tendncia
a utilizar esta palavra erroneamente. A concluso de Kripke precisa: nenhuma
observao da minha histria de uso lingstico pode comprovar que segui uma regra ao
invs de outra. No h fatos semnticos. Como escreve o filsofo:
O argumento ctico, portanto, continua sem resposta. No pode existir tal coisa que signifique algo por meio de qualquer palavra. Cada nova aplicao que fazemos um tiro no escuro; cada inteno presente poderia ser interpretada de modo que concordasse com qualquer coisa que escolhemos fazer. Ento no pode haver nem concordncia nem contradio. Isso o que Wittgenstein disse no 201. (KRIPKE, 1982, p. 55).
Mas como solucionamos o paradoxo? Kripke faz uma distino entre solues
diretas e solues cticas para problemas cticos. Solues diretas mostram que o
ceticismo simplesmente injustificado; elas refutam o prprio problema ctico
afirmando que ele injustificado ou que no tem sentido. Uma soluo ctica, por outro
lado, reconhece que o problema ctico real e que no h solues diretas para refut-
lo. Por exemplo, quando Hume questiona a ideia de que h um nexo necessrio entre
causa e efeito, oferece uma soluo ctica para seu problema apresentado. Kripke, de
modo anlogo, sugere uma soluo ctica para a ligao normativa entre regras e
aplicaes.
A soluo apresentada por Kripke gerou muitas polmicas acerca das
consideraes de Wittgenstein sobre o que seguir uma regra. Kripke convida-nos a
considerar o falante no como um indivduo isolado, mas como algum que pertence a
uma comunidade de falantes. A ideia a de que no podemos seguir uma regra
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individualmente, pois um indivduo isolado, digamos Robinson Cruso, no teria
critrios para saber se est ou no seguindo uma regra. Se Cruso for considerado
membro de uma comunidade, ento ela poder julgar se Cruso est seguindo
corretamente a regra.
Quando determinei a mim mesmo que seguiria a regra da adio, no teria
critrios como vimos para saber se eu estava seguindo esta regra corretamente.
Afinal, no poderia ter seguido a quadio ao invs da adio? Como Robinson Cruso,
por exemplo, pode saber que a resposta correta para a soma 68+57 125? No
poderia ter sido 5 (caso ele tivesse anteriormente determinado a regra da quadio)?
Se Cruso fizesse parte de uma comunidade, ou convivesse com pelo menos outro
indivduo, digamos Sexta-Feira, poder conferir o resultado daquela soma. Se Cruso
diz 125, Sexta-Feira poder julgar se esta resposta a correta. Portanto, a noo de
acordo fundamental para entendermos como podemos atribuir a algum a
compreenso de uma palavra ou frase, explicando o aspecto normativo da linguagem.
Assim, o significado das palavras no constitudo por fatos sobre os
indivduos. Supe-se, antes, o significado como um modo no qual as aes lingsticas
de uma pessoa se comparam com outras na comunidade lingstica. Conforme o
exemplo de McGinn, o conceito de significado parecido com o conceito de moda.
Estar na moda uma questo relacional. No faz sentido afirmar que um indivduo
isolado possa estar na moda; no h nenhum fato relativo a esta pessoa que faa com
que ela esteja na moda. Estar na moda envolve o indivduo estar em conformidade com
outras que supostamente j esto na moda. A moda essencialmente uma condio
comunal. De maneira anloga, Kripke afirma que um indivduo isolado no pode seguir
uma regra. Tambm no pode ter conceito, pois os conceitos tambm so regras. Por
exemplo, a regra para utilizarmos a adio basicamente fornecer a soma de qualquer
par de nmeros. O mero pensar supe a filiao para com outras pessoas. O prprio
conceito de regra envolve ela ser compartilhada com outros seguidores da mesma regra.
Concluso
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Portanto, se esta perspectiva da comunidade correta, soluciona-se facilmente
um dos problemas de uma suposta linguagem privada (ou seja, que os contedos de
conscincia de um falante so inacessveis a outrem). Como escreve Plnio Junqueira
Smith, uma vez que tal linguagem privada deveria ter regras que regem o uso dos
signos apenas para o falante, e para mais ningum, segue-se que tais regras no existem,
nem poderiam existir, j que toda regra seria necessariamente comunitria ou social
(SMITH, 2006, p. 144). A conseqncia da posio ctica a respeito do significado a
de que a linguagem essencialmente pblica. Portanto, no se pode haver uma
linguagem privada. A linguagem seria ento, nas palavras de Quine, uma arte social.
Referncias bibliogrficas
BOGHOSSIAN, Paul. The Rule-Following Considerations. In: Mind, New Series, Vol. 98, No. 392 (Oct., 1989), pp. 507-549. Published by: Oxford University Press on behalf of the Mind Association.
KRIPKE, Saul. Wittgenstein on Rules and Private Language. Massachusetts: Harvard University Press, 1982.
LYCAN, William. Philosophy of Language: A contemporary Introduction. London and New York: Routledge, 2ed., 2008.
MCGINN, Colin. Wittgenstein on Meaning. Oxford: Basil Blackwell, 1984.
SMITH, Plnio Junqueira. Ceticismo Semntico. In: Enciclopdia de termos Lgico-filosficos. So Paulo: Martins Fontes, 2006.
THORNTON, Tim. Wittgenstein on Language and Thought The Philosophy of Content. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1998.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Oxford: Blackwell, 1958.
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UMA ABORDAGEM DO CONCEITO DA M-F PROPOSTO POR
SARTRE EM SUA PSICANLISE EXISTENCIAL
Christian de Sousa Ribeiro Graduando em Filosofia da UFRJ
Resumo: O presente trabalho consiste em apresentar sucintamente o conceito da m-f, de maneira que alguns dos conceitos bsicos do existencialismo de Sartre possam ser abordados, tais como facticidade, situao, transcendncia, nada, psicanlise existencial e liberdade, bem como a relao que ele mantm com a teoria psicanaltica, com a qual parece ter uma ligao de dupla considerao, pois, por um lado, valoriza enormemente o carter histrico da psicanlise acerca da realidade humana; por outro lado, rejeita categoricamente o inconsciente, por acreditar que Freud teria confundido este com a dimenso obscura da conscincia.
Palavras-chave: Facticidade. Liberdade. M-f. Nada. Psicanlise Existencial.
O homem o ser que pode tomar atitudes negativas com relao a si mesmo.
Tais atitudes opem-se liberdade, pois buscam o em-si, ao passo que ela nada de ser,
que a ausncia de essncia ou a absoluta indeterminao, que caracteriza a realidade
humana. O homem, que liberdade, est condenado a escolher, a todo o momento, uma
dentre as muitas possibilidades desta realidade, de maneira que uma escolha, ainda que
momentaneamente, possa transcend-la.
Este nada de ser e a liberdade so a mesma coisa, ambas caracterizam o homem,
que sendo liberdade, escolhe de forma que sua escolha seja indeterminada, transitria e
indefinida, ou seja, ele no uma determinada funo ou coisa, coma a cadeira
cadeira. Por exemplo, ele no mdico, embora para as pessoas o reconhecerem como
tal, deva atender s exigncias de mdico, mas, sim, representa a funo de mdico, pois
sendo liberdade pode escolher outra funo. A m-f justamente a fixao de uma
escolha em detrimento da liberdade ou de poder escolher, a cada momento, um dentre
os possveis, para os quais somos defrontados.
Para Sartre, a m-f uma tentativa frustrada de negar a liberdade, pois o
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homem s pode neg-la, medida que ele livre. por ser liberdade que o homem
escolhe ser de m-f, pois ele a escolhe como estratgia de fuga da angstia da deciso e
das consequncias desta, ou seja, o homem quer negar, ao ser de m-f, a
responsabilidade, que a condio bsica da liberdade. Esta supe a ideia de
movimento, pois o homem um processo permanente de constituio de si, que
enquanto tal livre para projetar-se, a todo instante, para o futuro, de maneira que, tanto
o presente como a si mesmo possam ser negados. Esta liberdade orientadora desse
projetar-se na medida em que, ao escolher uma dentre um sem nmero de
possibilidades, o sujeito ao mesmo tempo j define o caminho a seguir para a
constituio de si.
A busca inelutvel em ser explica a conduta da m-f, pois o homem tem a
necessidade de atingir a sua essncia, porquanto deseja ser e, por conseguinte, ter a
estabilidade do ser-em-si. Contudo, Sartre nos adverte que isso impossvel, ou seja, ter
a estabilidade do ser-em-si mais a conscincia, que o em-si no possui. Assim, o homem
uma paixo intil, pois o seu desejo fundamental o de ser, o que equivale ao desejo
de ser Deus, pois este , metafisicamente, o ser-em-si-para-si, de maneira que nunca ter
o seu desejo realizado.
Mas o homem liberdade, tambm uma busca inexorvel de si, pois sendo
processo de constituio de si, est constantemente negando, alm de si mesmo, o
presente e o mundo que o cerca, a cada vez que escolhe uma possibilidade, que no
definitiva, mas transitria.
A m-f a tentativa de escapar da liberdade. Essa tentativa caracteriza a fuga
para o em-si. Sartre trata de distinguir a m-f da mentira, pois se convencionou trat-
las como sinnimos. Dessa confuso aparentemente semntica, a conscincia chegou a
ser tratada como algo secundrio ou, pelo menos, viabilizou o aparecimento de uma
instncia igualmente poderosa, o inconsciente.
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A mentira supe aquele que mente, o enganador, e a vtima da mentira, o
enganado. O enganador sabedor daquilo que est escondendo, ele consciente daquilo
que est encoberto, ao passo que o enganado totalmente ignorante do contedo
encoberto. A m-f uma conduta em que a conscincia nega a si mesma, e ao negar-se,
a conscincia deixa de ser nada de ser para ser, o que caracteriza um paradoxo, pois ela
pura indeterminao. No se pode, ao mesmo tempo, conhecer e desconhecer, ou seja,
uma pessoa no pode exercer, concomitantemente, os papis de enganadora e enganada.
Assim, mentir para si mesmo e m-f no so a mesma coisa, pois isso s seria possvel
se a pessoa no fosse conhecedora do aspecto que quer negar de si mesma.
Sartre no admite cindir a conscincia, como a psicanlise o faz ao dividi-la em
inconsciente e consciente. Freud considera a parte obscura da conscincia uma instncia
diferente desta, a saber, o inconsciente. Com efeito, Freud quebra a unidade da
conscincia ao conceber o inconsciente, que, grosso modo, justificaria alguns atos
reprovveis, pois estes teriam uma causa desconhecida, pois o homem seria
influenciado por uma fora oculta, que desconhece totalmente, a fazer tais atos. Da a
necessidade do psicanalista, que a pessoa competente para interpretar aqueles atos,
pois exerce a funo de mediador entre as tendncias inconscientes e a vida consciente.
A teoria psicanaltica fez com que aparecesse a ideia de uma mentira sem
mentiroso, pois o inconsciente possibilitou o aparecimento da dualidade do Id e do Eu,
que cumpriria a funo de outra, a saber, do enganador e do enganado. Assim, a
psicanlise substituiu a noo de m-f pela dualidade do Id e do Eu.
Nesta dualidade o Id tratado como o outro, visto que o homem constitudo de
uma estrutura intersubjetiva, pois como se o Id e o Eu fossem duas conscincias que
se relacionam constantemente.
Sartre considera impossvel chegar parte obscura da conscincia, chamada de
inconsciente por Freud, considerada a origem dos atos reprovveis, apesar dele aceitar
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que a conscincia constituda tambm desta parte. Isto no significa que haja uma
dicotomia, em que, de um lado, teramos a conscincia, e de outro, o inconsciente.
Sartre defende a unidade da conscincia, pois toda conscincia conscincia de
alguma coisa (Husserl). E sendo a intencionalidade caracterstica definidora dela, pois
a conscincia est necessariamente voltada para um objeto, de maneira que quando ela
sofre uma ciso ou concebida uma instncia que se ope a ela, no caso o inconsciente,
a conscincia descaracterizada, por conseguinte, o prprio homem tambm
descaracterizado, visto que ele sempre conscincia de si, ainda que a conscincia
possa ser negada.
A questo fundamental, para Sartre, ao analisar as condutas de m-f : Que h
de ser o homem em seu ser para poder ser de m-f? Segundo Sartre, todas as
estratgias de m-f se baseiam na relao entre ser e no ser, posso ser no modo de no
ser, ou seja, todo o esforo que o homem faz em negar um aspecto considerado nocivo
por ele, um aspecto de si prprio, ele o faz conscientemente, assim como determinada
conduta, considerada reprovvel ou patolgica, realizada de maneira tambm
consciente.
O exemplo da mulher frgida que age de forma a no sentir o prazer sexual, por
mais que ela tente negar o prazer, ela no deixa de senti-lo, no faz isso cinicamente
nem de pleno acordo consigo mesma, mas age para provar a si ser frgida. Assim, ser
frgida a essncia da mulher frgida, e ao determinar a si como frgida, ela deixa de ser
seu prprio jogo de possibilidades, de maneira que no tenha que decidir, a cada
momento, o que ela . Outro exemplo dado por Sartre o do garom, que de m-f,
medida que se satisfaz em ser garom, pois ao determinar sua essncia, a saber, ao fixar
a possibilidade de ser garom, ele deseja negar a responsabilidade de decidir, a cada
instante, uma dentre as muitas possibilidades que o cercam. Assim, o garom refugia-se
em sua prpria condio de ser garom, ao passo que, se ele no fosse de m-f, ou seja,
se ele tomasse uma deciso, sem que quisesse negar a consequente responsabilidade
desta deciso, ele poderia escolher ser outra coisa, como ser diplomata ou jornalista.
Sartre nos adverte, entretanto, que as condies sociais so insuficientes para determinar
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uma conduta de m-f, visto que o homem uma divina ausncia, um nada de ser.
Na m-f h uma identificao entre facticidade e transcendncia, sendo esta um
movimento pelo qual o sujeito ultrapassa a cada momento a sua condio atual, na
direo da realizao impossvel de si mesmo como identidade, e aquela o conjunto de
fatos que constituem a situao, atuando como obstculos ou fatores determinantes em
relao liberdade; o homem nada pode fazer no sentido de modific-los. O amor um
exemplo desta identificao, pois , ao mesmo tempo, um desejo de posse, que
concreto, e um sentimento puro que transcende a paixo. Sartre nos mostra que a
sinceridade tambm uma conduta de m-f, pois medida que seu lema Seja o que
se , e isso significa persistir no ser-em-si, visto que o se busca nela a determinao
do carter, ou seja, ela determina que tal pessoa seja isso ou aquilo, que seja corajosa ou
covarde, por exemplo.
Assim, a m-f caracteriza-se pela identificao entre o fazer-se e o ser, pois o
homem um fazer-se constante, medida que escolhe, a cada momento, um possvel
dentre os muitos que o cercam, mas quando ele determina um ser possvel, deixa de
fazer-se para ser. Por exemplo, no sou triste, mas fao-me triste; no sou covarde, mas
fao-me covarde etc. Mas medida que me determino triste ou covarde, passo a
considerar igualmente o fazer-se e o ser, de maneira a negar o jogo de possibilidades
que o homem. Pois na tentativa de conter a liberdade, o homem deixa de transcender-
se, a fim de fixar um determinado ser, sendo a determinao o resultado deste processo.
A m-f um risco do qual se deve fugir, pois ela no permite que o ser esteja sempre
em questo, transformando esta em um ser-em-si determinado. Para corroborar a
advertncia acerca da m-f, faz-se necessrio citar Sartre (1997, p. 118):
Se a m-f possvel, deve-se a que constitui a ameaa imediata e permanente de todo projeto do ser humano, ao fato de a conscincia esconder em seu ser um permanente risco de m-f. E a origem desse risco que a conscincia, ao mesmo tempo e em seu ser, o que no e no o que .
Para combater a m-f, Sartre prope a psicanlise existencial. Antes de
apresent-la, ele critica a psicanlise emprica, para tal compara as duas psicanlises,
apontando as semelhanas e, sobretudo, as diferenas. Em linhas gerais elas utilizam o
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mtodo psicanaltico, sendo a psicanlise existencial inspirada na teoria psicanaltica
instituda por Freud. Ambas consideram todas as manifestaes objetivamente
discernveis da vida psquica como sustentando relaes de simbolizao a smbolo
com as estruturas fundamentais e globais que constituem propriamente a pessoa
(SARTRE, 1997, p. 696). Isto significa que o mtodo psicanaltico analisa a vida
psquica relacionando as suas relaes simblicas com as estruturas fundamentais que
constituem a pessoa enquanto indivduo. As duas psicanlises rejeitam a existncia de
dados primordiais, como inclinaes hereditrias, carter etc. Pois a psicanlise
existencial nada reconhece antes do surgimento original da liberdade humana; a
psicanlise emprica postula que a afetividade primordial do indivduo uma cera
virgem antes de sua histria (SARTRE, 1997, p. 696 - 97). Aqui aparece uma diferena
fundamental, a saber, a psicanlise existencial parte da liberdade humana, a emprica
tem a histria individual como ponto de partida, sendo esta histria determinada por
fatos traumticos da primeira infncia.
A crtica psicanlise emprica feita por Sartre em relao ao postulado do
inconsciente, que explica de maneira determinante, por que um indivduo escolheu um
caminho, em vez de outro. Este postulado traa, de forma definitiva, a vida de um
indivduo, sem que o mesmo tenha a possibilidade de mudar a prpria histria
futuramente. E a m-f se aproxima do inconsciente, medida que, assim como este, ela
enquanto uma estratgia do sujeito de se livrar do peso de decidir a todo momento sobre
si mesmo, tenta determinar uma subjetividade em detrimento da capacidade do homem
de se reinventar constantemente, decidindo sempre uma dentre as muitas possibilidades
de ser, sem cristaliz-la.
Assim, a psicanlise existencial rejeita o postulado do inconsciente, uma vez que
este cindiu a conscincia. Embora ela tenha uma parte obscura, no significa que esta
seja outra instncia psquica, de maneira que se aceito, sem maiores problemas, o
postulado do inconsciente, disso resulta todo o problema da m-f, visto que a
psicanlise freudiana, em ltima anlise, corrobora com esta. Sartre ainda nos adverte
para o fato de sua psicanlise ainda no ser uma prtica teraputica, embora, segundo
ele mesmo, isto no seja importante.
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As condutas estudadas por esta psicanlise no sero somente os sonhos, os atos falhos, as obsesses e as neuroses, mas tambm e, sobretudo, os pensamentos despertos, os atos realizados e adaptados, o estilo etc. Esta psicanlise ainda no encontrou seu Freud; quando muito, podem-se encontrar seus prenncios em certas biografias particularmente bem sucedidas (...). Mas aqui pouco nos importa que tal psicanlise exista ou no: para ns, o importante que seja possvel. (SARTRE, 1997, p. 703).
Referncias bibliogrficas
BORNHEIM, Gerd Alberto. Sartre: metafsica e existencialismo. So Paulo: Perspectiva, 2007.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada Ensaio de ontologia fenomenolgica; traduo de Paulo Perdigo. Petrpolis, RJ: Vozes, 1997.
SILVA, Franklin Leopoldo e. tica e literatura em Sartre: ensaios introdutrios. So Paulo: Editora UNESP, 2004.
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A NOO DE PRISO METAFSICA DE HUXLEY E O PRISIONEIRO COMO VISTO EM VIGIAR E PUNIR NA OBRA DE
FRANZ KAFKA
Thatiana Victoria dos Santos Machado Ferreira de MoraesGraduanda em Filosofia da UFRJ
I know I'm dead on the surface/ But