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WWW.RETRATODOBRASIL.COM.BR | R$ 9,50 | N O 63 | OUTUBRO DE 2012 retrato doBRASIL CIÊNCIA NOVO LIVRO DE R. DAWKINS É LEITURA INSTIGANTE PARA ADOLESCENTES E ADULTOS MÚSICA O SAMBA DE TERREIRO RESSURGE COM JOVENS QUE VALORIZAM OS ANTIGOS MESTRES

Retratos do brasil revista 20121001, rb outubro

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WWW.RETRATODOBRASIL.COM.BR | R$ 9,50 | NO 63 | OUTUBRO DE 2012

retrato doBRASIL

CIÊNCIA NOVO LIVRO DE R. DAWKINS É LEITURA INSTIGANTE PARA ADOLESCENTES E ADULTOS

MÚSICA O SAMBA DE TERREIRO RESSURGE COM JOVENS QUE VALORIZAM OS ANTIGOS MESTRES

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DIRETOR EDITORIALRaimundo Rodrigues Pereira

DIRETOR DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS Sérgio Miranda

EXPEDIENTESUPERVISÃO EDITORIALRaimundo Rodrigues Pereira

EDIÇÃOArmando Sartori

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REDAÇÃOLia Imanishi • Sônia Mesquita • Tânia Caliari • Téia Magalhães

EDIÇÃO DE ARTEPedro Ivo Sartori

REVISÃOSilvio Lourenço [OK Linguística]

COLABORARAM NESTA EDIÇÃOAmarildo • André Carvalho • Flávio de Carvalho Serpa • Laerte Silvino • Luiz Marcos Gomes • Tomás Chiaverini • Venício Artur de Lima

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DISTRIBUIÇÃO EM BANCASGlobal Press

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retrato doBRASIL

30 A MAIOR GREVEO funcionalismo federal cruzou os braços na maior onda de greves desde que o PT assumiu o poder[Thiago Domenici]

32 PROBLEMAS AMAZÔNICOSCanteiros do tipo plataforma serão a solução para as constantes paralisações na construção de hidrelétricas?[Sônia Mesquita]

34 APOIO GERALSob aplausos do PSDB e da grande mídia, a presidente Dilma anunciou o Programa de Investimento em Logística[Téia Magalhães]

38 PARA TODOSO samba de terreiro ressurge: ao lado das antigas criações, os jovens sambistas mostram suas composições[André Carvalho]

42 MAGIA DA CIÊNCIAAlém de matar a curiosidade de pré-adolescentes, novo livro de Richard Dawkins é boa leitura para adultos[Flávio de Carvalho Serpa]

44 POLARIZAÇÃO CRESCENTELivro de Marcio Pochmann destaca crescimento dos trabalhadores da base da pirâmide e de quem vive do capital[Luiz Marcos Gomes]

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5 Ponto de Vista UM JULGAMENTO DE EXCEÇÃOO STF está criando regras de ocasião para julgar a Ação Penal 470, do chamado escândalo do mensalão

8 O HERÓI DO MENSALÃOA “historinha” armada pelo ministro Joaquim Barbosa rebaixou o nível do debate a respeito do grande escândalo político[Raimundo Rodrigues Pereira]

12 UMA HISTÓRIA EXEMPLARA condenação de Henrique Pizzolato pelo STF pode ter sido uma decisão errada, em todos os casos[Lia Imanishi e Raimundo Rodrigues Pereira]

22 HÁ REMÉDIO CONTRA O CAIXA DOIS?Um dos principais temas da reforma política é, sem dúvida, a prática de recebimento clandestino de dinheiro[Tânia Caliari]

26 A CAMINHO DA DITADURAA Abert foi fundada para a derrubada de vetos de João Goulart ao CBT. Depois, ela ajudaria a golpear o presidente[Venício Artur de Lima]

28 ALARME FALSO?Diante dos dados, não se justificam as declarações de suposta “escalada de violência” em São Paulo no 1º semestre deste ano[Tomás Chiaverini]

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Um julgamento de exceçãoNa Ação Penal 470, do chamado mensalão, o STF, pressionado pela grande mídia, negou direitos básicos à defesa e, assim, criou regras de ocasião para interpretar o direito penal brasileiro

Ponto de Vista

Em mEados dE setembro, caminhan-do-se para o segundo mês de apre-ciação, pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), do mérito da Ação Penal 470 (AP 470), que julga os envolvidos no chamado mensalão, confirmam-se as previsões pessimistas feitas no início desse processo, quando uma petição da maioria dos advogados dos acusados alertou para a possibili-dade de ser feito um “julgamento de exceção”. Na ocasião, os defensores dos réus já tinham sido derrotados em sua pretensão de desmembrar a ação penal, enviando para os tribunais inferiores os acusados sem foro privilegiado. No julgamento de um caso muito parecido, o dito mensalão tucano, que envolve políticos do PSDB de Minas Gerais, o STF tinha desmembrado o processo. Por que não fazê-lo no caso do mensalão pe-tista, diziam os advogados? O segundo protesto foi contra mais uma medida excepcional: o fatiamento das decisões dos ministros. Isso ocorreu em função do encaminhamento do primeiro voto

do julgamento, o do relator Joaquim Barbosa. Ele começou pela análise de crimes que teriam sido cometidos no uso de recursos públicos, um dos sete blocos em que subdividiu seu voto, e anunciou que, depois, passaria a palavra para os demais ministros votarem sobre o mesmo assunto.

Houve, então, certo tumulto no tribunal. O revisor do voto de Barbosa, Ricardo Lewandowski, disse que o en-caminhamento contrariava o regimento do STF e ameaçou renunciar. O ministro Marco Aurélio de Mello condenou a pro-posta de Barbosa. O presidente do STF, Ayres Britto, iniciou uma contagem de votos para decidir a forma de votação, mas não a concluiu e acabou decidindo que cada um votaria como quisesse, o que, como alguns ministros argumen-taram imediatamente, causaria uma confusão tremenda. O julgamento foi suspenso depois do voto de Barbosa, feito da forma fatiada, como escolhera, e recomeçou na sessão seguinte, após um acordo entre os ministros. Lewandowski

tinha, então, recuado: reorganizou seu voto e votou, como Barbosa, também na forma fatiada.

Na primeira derrota, os defensores queriam garantir aos réus o direito, expresso na Constituição brasileira, da dupla jurisdição: poder apelar da sentença a um tribunal mais alto. No julgamento pelo STF, corte acima de todas, esse direito praticamente não existe. E é preciso destacar que somente dois dos réus têm de ser julgados pelo STF, porque são deputados e têm foro privilegiado; 36 dos 38 não o têm. Os defensores dos réus foram derrotados sob o argumento de que se tratava de um processo único, no qual todos os acu-sados têm ligação com o grande crime que teria sido cometido, o da compra de votos por um “núcleo político” do PT e do qual faria parte José Dirceu, então chefe da Casa Civil do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No caso do fatiamento, ao argumentarem que o processo é um todo e seria mais justo ouvir o voto integral de cada

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Calandra, presidente da Associação dos Magistrados do Brasil: “Nunca vi presidente de tribunal votar duas vezes para condenar alguém”

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ministro, os advogados dos acusados foram derrotados sob o argumento da conveniência: dividir o julgamento em partes facilitaria a compreensão das decisões.

Afinal, pode-se perguntar: é um grande e único crime que obriga enfiar 38 pessoas num mesmo saco, mesmo desrespeitando direitos claros da gran-de maioria deles? Ou se trata de criar sete fatias de crimes que devem ser puxados de uma cartola de modo pla-nejado, para criar um clima que ajude a condenar os petistas a qualquer preço, como mostramos nesta edição, em “O herói do mensalão”. O artigo descreve as gestões do ministro Barbosa, que atua mais como promotor do que como juiz nesse caso, empenhado praticamen-te numa campanha de opinião pública para vender a tese do mensalão.

A maioria do STF parece disposta a ultrapassar limites. Segundo depoi-mentos de vários de seus ministros, a corte não sabe o que fará no caso de um empate de votos. Com a aposentadoria de Cezar Peluso, logo após o encerra-mento da primeira fatia da discussão, permaneceram dez ministros. Eles estariam discutindo o que acontecerá se houver uma decisão com cinco de um lado e cinco de outro: o presidente da corte, Ayres Britto, votará ou não pelo desempate? É uma duvida desca-bida. In dubio pro reo, lembrou Nelson Calandra, presidente da Associação dos Magistrados do Brasil, referindo-se a um dos pilares do direito penal, o princípio da presunção da inocência, segundo o qual, em caso de dúvida, o acusado deve ser considerado inocente. “Nunca vi presidente de tribunal votar duas vezes para condenar alguém”, disse Calandra.

A palavra de ordem que prevalece no STF no julgamento do mensalão petista parece ser: flexibilizar o direito penal. “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamen-te nos elementos informativos colhidos na investigação”, diz o Código Penal brasileiro no artigo 155. Isso significa dizer, no caso: os juízes não podem ba-sear suas decisões principalmente nos indícios colhidos pelas investigações do Congresso Nacional e nas duas dezenas de inquéritos da Polícia Federal (PF) feitos a partir da denúncia do mensalão, quando o deputado Roberto Jefferson

declarou que o PT estava pagando uma mesada a parlamentares e assim corrompendo o Congresso. A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios, por exemplo, comandou investigações. Do seu trabalho resulta-ram cassações de mandatos e renúncias de parlamentares e na sua conclusão ela encaminhou o pedido de indiciamento criminal de dezenas de pessoas.

A CPMI não condenou criminalmente ninguém. Os depoimentos que ouviu, as perícias que promoveu, as acusações que fez são indícios que podem ser usa-dos na AP 470, é óbvio. Mas as provas essenciais, diz a lei brasileira, são produ-zidas judicialmente, são as que estão nos autos do processo. O valor determinante para um julgamento é o das provas apre-sentadas diante de um juiz, num ato no qual o contraditório, a participação da

parte contrária, é indispensável, para que seja garantido outro princípio do processo penal: o do amplo direito de defesa. Sob o argumento de que estão julgando um crime dos poderosos, com ampla capacidade de manipulação e ocultação de provas de suas atividades “tenebrosas”, para usar a expressão de um deles, os ministros que formam a atual maioria, empenhada em conde-nar os mensaleiros, estão invertendo o princípio: relativizam a importância das provas produzidas em juízo e ampliam o peso dos indícios e contextos que sacam aqui e ali da fase do inquérito policial ou das investigações da CPMI.

Vejam-se, por exemplo, os votos dos ministros Luiz Fux e Rosa Weber na con-denação do deputado João Paulo Cunha por crime de peculato. A ministra deu

Ao negar àmaioria dosréus a duplajurisdição,

“o STF pode servisto como um

órgão que vestiua toga para matar,não para julgar”

um exemplo curioso: “Tem-se admitido, em matéria de prova, uma certa elastici-dade na prova acusatória, valorizando-se o depoimento das vítimas. É como nos casos de estupro. Nos delitos de poder não pode ser diferente”. A ministra parece estar muito impressionada com os comentaristas dos grandes jornais conservadores, que querem a conde-nação dos petistas a qualquer preço, e confunde seus clamores com indícios para condenar o “poderoso” Cunha, um ex-metalúrgico – como Lula –, que foi presidente da Câmara dos Deputados.

Cunha foi condenado, entre outros, pelo crime de peculato por 9 votos a 2. Rosa e Fux, por exemplo, votaram pela condenação, a despeito de a acusação não ter conseguido provar ter ele co-metido qualquer delito numa licitação usada para condená-lo, pela qual uma das agências do publicitário Marcos Valério ganhou concorrência para gerir 10 milhões de reais a serem usados para promover as atividades da Câmara. Quando, em 1994, julgou o ex-presidente Fernando Collor de Mello por crime de peculato – o de ter recebido de presente de seu tesoureiro de campanha, Paulo César (PC) Farias, um automóvel Fiat –, o STF decidiu em sentido oposto. Absol-veu Collor de Mello porque a acusação não conseguiu provar a existência de um ato de ofício, uma decisão formal por meio da qual ele, como funcionário público, teria favorecido PC Farias em troca do Fiat recebido. Rosa e Fux con-denaram Cunha porque não aceitaram sua explicação para ter recebido 50 mil reais de Valério. Cunha disse nos autos – e apresentou provas – que os 50 mil reais foram gastos com uma pesquisa eleitoral e que pediu o dinheiro a Delúbio Soares, tesoureiro do PT, num esquema de caixa dois cujo intermediário foi Va-lério. Rosa e Fux sabiam que havia um ato de ofício – a abertura do processo de licitação pela Câmara para a contra-tação da agência de Valério – assinado por Cunha. Mas esse ato de ofício, está provado nos autos, foi perfeitamente legal. Rosa e Fux passaram a dizer então que não é necessária a existência de um ato de ofício para provar um crime de peculato. Pode-se dizer que:

1. tinham diante de si um crime de caixa dois confessado;

2. mas precisavam de um crime maior, o do mensalão, inventado por Jefferson;

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3. por isso, flexibilizaram a tese do ato de ofício necessário;

4. e, ao fazê-lo, esqueceram outro princípio: o de que, no direito penal brasileiro, cabe ao Ministério Público provar a acusação que faz.

Desprezaram os depoimentos dos outros réus, Soares e Valério, os quais dizem serem os 50 mil reais enviados a Cunha dinheiro de caixa dois das cam-panhas petistas. A tese do mensalão foi criada pela acusação; a do caixa dois, pela defesa. Rosa e Fux não tiveram a dúvida que, por recomendação dos princípios do direito penal, favorece o réu: ficaram com as explicações que favorecem a tese de Jefferson. Votou em sentido contrário, pela absolvição de Cunha, acompanhando o revisor Lewan-dowski, o ministro Dias Toffoli. Ele disse bem: Cunha não tinha que provar ser inocente, podia até ter ficado calado. “A acusação é quem tem de fazer a prova. A defesa não tem que provar sua versão. Essa é uma das maiores garantias que a humanidade alcançou. Estou rebatendo [a acusação contra Cunha não apenas] em relação ao fato concreto, mas como premissa constitucional que esta corte deve seguir.”

Roberto Gurgel, o procurador-geral da República, que cumpre o papel de acusador no processo, considerou que essa flexibilização caiu como o queijo sobre o seu prato de macarrão. Disse, após a condenação de Cunha, que o julgamento estava sendo encaminhado muito favoravelmente à sua acusação e que a aceitação de provas mais tênues para acusados de menor poder, como Cunha, mostrava a tendência da corte suprema de aceitar provas mais tênues ainda no caso da sua proposta de con-denação de Dirceu, apontado por ele e pela grande mídia conservadora como o comandante do mensalão. Como se sabe, nos autos, além dos depoimentos dos réus Jefferson e Emerson Palmieri, do PTB – que podem ser levados em conta apenas como indícios, porque dos réus não é cobrado o juramento de dizer a verdade –, Gurgel não tem mais nenhu-ma testemunha ou prova documental ou pericial contra Dirceu.

Em debate promovido pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, realizado em meados do mês passado em São Paulo, o jornalista e escritor Fernando Morais disse que o STF tem em seu passivo histórico dois

casos graves de condenação política. Um, de março de 1936, quando negou pedido de habeas corpus para a mili-tante comunista alemã Olga Benário, de origem judaica, grávida de uma filha de seu companheiro, o líder comunista brasileiro Luiz Carlos Prestes. Os dois estavam presos no Brasil e o governo de Adolf Hitler pediu a extradição de Olga ao governo comandado por Getúlio Vargas. A defesa de Olga solicitou ha-beas corpus ao STF por dois motivos: a extradição colocaria sua vida em risco, pois os campos de concentração nazis-tas eram conhecidos pelo tratamento cruel dispensado aos detidos, especial-mente se fossem comunistas ou judeus, e ainda colocaria sob o poder de um governo estrangeiro a filha de um bra-sileiro. O STF negou o pedido. Olga foi deportada e morta num dos campos de extermínio de Hitler (Anita Leocádia, sua filha, sobreviveu e hoje, com 75 anos, é professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro; uma mulher com o mesmo nome está sendo julgada na AP 470).

A outra decisão foi a que legalizou, digamos assim, o golpe militar que der-rubou João Goulart da Presidência da República em 1964. A direita golpista levou ao STF um pedido para declarar vaga a Presidência sob o argumento de que Goulart abandonara o País. O

presidente, no entanto, estava no Rio Grande do Sul, sem qualquer sombra de dúvida. Tinha sido lá que, anos antes, fora organizada a resistência, afinal vitoriosa, para garantir sua posse em 1961, quando o então presidente, Jânio Quadros, renunciou e ele, como vice, teve seu mandato contestado pelos militares. O STF aceitou o argumento da direita e deu posse ao sucessor consti-tucional, Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara, que governou como preposto dos golpistas por 15 dias.

Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia da Universidade de São Paulo (USP), reconhece, como Retrato do Brasil, em artigo publicado pelo diá-rio Valor Econômico, que “o Supremo, pressionado por uma mídia sobretudo oposicionista, negou direitos básicos à defesa”. Ao negar à grande maioria dos réus a dupla jurisdição, diz ele, “ao chegar à mesquinhez de proibir a defesa de usar o power point que facilitaria a exposição de seus argumentos, o STF pode ser visto como um órgão que vestiu a toga para matar, não para julgar”. Ele conclui, com razão: “A imagem da corte está em risco. Ninguém é legalmente culpado até ser condenado em processo justo [...] O Supremo não mostrou essa cautela”. Nós acrescentamos: e o que é pior, pode estar criando precedente para uma fieira de outros abusos.

Olga: em 1936, o STF permitiu que ela, grávida, fosse extraditada para a Alemanha nazista

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NÃO HÁ A menor dúvida de que o PT, que se dizia o grande partido da ética na política, paga hoje o preço de, ao chegar à Presidência da República, em 2003, ter mergulhado fundo no pântano dos fi nanciamentos clandestinos das cam-panhas eleitorais. A avaliação de que o chamado mensalão é “o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção da história do Brasil” é outra coisa. Está nas alegações fi nais apresentadas ao Supremo

Tribunal Federal (STF) pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Do mesmo gênero foi a avaliação de Antonio Fernando de Souza, que o antecedeu no cargo e encaminhou, em 2006, a denúncia que resultou na Ação Penal 470 (AP 470), agora em julgamento na suprema corte de Justiça do País.

Pode-se dizer também que essa avalia-ção que supervaloriza os erros cometidos pelo PT é da oposição ao governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e já está formulada nas conclusões da

principal das comissões parlamentares de inquérito que investigaram o caso

a partir de julho de 2005, após a denúncia espetacular de Roberto Jefferson. Mas, com certeza, a pessoa que transformou esse conteúdo numa peça com apa-rência de justiça para ser vendida à opinião pública foi o ministro Joaquim Barbosa, que cuida do mensalão desde que o caso

chegou ao STF, em 2006, com o pedido feito pelo procurador-

geral Souza para que fosse aberto um inquérito na corte, visto que diversas pessoas acusadas tinham o chamado foro privilegiado.

Como o ministro Barbosa armou para o público sua “historinha” e, com ela, rebaixou o nível do debate que deveria ter sido feito sobre o grande escândalo político

por Raimundo Rodrigues Pereira ilustração Amarildo

Política 1

O HERÓI DOMENSALÃO

Para lembrar:Na Justiça brasileira, pessoas com foro

privilegiado – deputados como João Paulo Cunha, José Dirceu, Roberto Jefferson e outros, denunciados por Souza na época – só podem ser processadas e julgadas pelo STF, ao contrário das pessoas comuns, jul-gadas na chamada primeira instância, com direito a recorrer a uma alçada superior.

Uma etapa inicial do processo judicial é o inquérito, cujas investigações são feitas pela polícia. Ele é dirigido por um promotor, um advogado do Ministério Público. Decisões suas que afetem os di-reitos constitucionais dos acusados, como, por exemplo, uma busca em sua residência, devem ser aprovadas por um juiz a quem o inquérito precisa ser comunicado. No caso de nossa história, em função do foro privilegiado, o inquérito, de número 2.245, foi comunicado ao STF, o promotor foi o procurador-geral da República, e o juiz, o ministro Barbosa.

Após o inquérito policial, o procura-dor verifi ca se há indícios sufi cientes para mover uma ação penal destinada a julgar os acusados. Em caso positivo, encaminha denúncia ao juiz e este a examina para dizer se a aceita ou não. No caso, Barbosa examinou a denúncia de Souza e a aceitou. A seguir, encaminhou seu voto ao plenário do STF, que o aprovou e abriu a AP 470.

Na ação penal, presidida por um juiz, são preparados os chamados autos do processo, com depoimentos, perícias, documentos, apresentados a ele sob as regras do contraditório, ou seja, as duas partes, acusação e defesa, devem ter amplo acesso às provas produzidas, com o direito de contraditá-las.

Finalmente, concluída a fase de forma-lização dos autos, a ação vai a julgamento; no caso, o da AP 470 começou no início de agosto passado.

Barbosa surgiu como um herói para a grande mídia conservadora do Brasil quando concordou com a denúncia enca-minhada por Souza e, no plenário do STF, em fi ns de agosto de 2007, apresentou um voto de 430 páginas, lidas ao longo de 36 horas em cinco dias, defendendo a justeza de aceitar a denúncia. Seu voto pela abertura da AP 470 foi amplamente aceito.

Até então Barbosa era relativamente estigmatizado. Fora escolhido para ser ministro do STF pelo presidente Lula, logo no começo de seu primeiro mandato, por ser negro, numa espécie de exercício da política de cotas raciais. Isso, de certo modo, foi mal recebido por expoentes da

alegações fi nais apresentadas ao Supremo pelo PT é da oposição ao governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e já está formulada nas conclusões da

principal das comissões parlamentares de inquérito que investigaram o caso

a partir de julho de 2005, após a denúncia espetacular de Roberto Jefferson. Mas, com certeza, a pessoa que transformou esse conteúdo numa peça com apa-rência de justiça para ser vendida à opinião pública foi o ministro Joaquim Barbosa, que cuida do mensalão desde que o caso

chegou ao STF, em 2006, com o pedido feito pelo procurador-

geral Souza para que fosse aberto um inquérito na corte, visto que diversas pessoas acusadas tinham o chamado foro privilegiado.

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mídia mais conservadora que são contra esse critério para preenchimento de parte das vagas públicas em várias instâncias; no caso, o STF.

O seu encaminhamento vitorioso da denúncia contra o mensalão petista, o cha-memos assim, mudou radicalmente essa imagem e lhe valeu elogios estridentes. “O Brasil jamais teve um deplorável escândalo como o mensalão. Como compensação, também jamais teve um ministro como Joaquim Barbosa”, disse Veja em sua edi-ção do início de setembro de 2007, num artigo de capa no qual enumerava suas qualidades de menino pobre que estudou muito e venceu na vida e sua sofisticação, desde falar várias línguas, vestir-se em lo-jas chiques pelo mundo e conhecer com detalhes a vida em Paris, Nova York, Los Angeles e San Francisco.

Mas, essencialmente, Veja elogiava o fato de Barbosa ter se con-vencido da tese apresentada na

denúncia de Souza em 2006, e encampada pela revista desde meados de 2005, de que “uma quadrilha liderada pelo ex-ministro José Dirceu movimentara dezenas de mi-lhões de reais para corromper parlamen-tares em troca de apoio político”. Veja destacava, essencialmente, a sagacidade de Barbosa em transformar a denúncia do procurador-geral numa peça para o convencimento do público. Diz a revis-ta: “Sua obsessão era a forma do voto, a estrutura, a ordem dos capítulos [...] Joaquim Barbosa fez um voto inteligente. Subverteu a ordem da denúncia preparada pelo procurador-geral da República”.

Souza apresentou uma denúncia di-vidida em sete capítulos. No quinto, por exemplo, falava de 50 mil reais recebidos pelo deputado João Paulo Cunha, na época presidente da Câmara dos Deputados, e 326 mil reais recebidos por Henrique Pizzolato, então diretor de Comunicação e Marketing do Banco do Brasil (BB). Eles tinham apresentado essas quantias como sendo dinheiro do caixa dois confessado por Delúbio Soares, tesoureiro do PT, e Marcos Valério, dono de agências de pu-blicidade com serviços prestados ao BB e à Câmara. O procurador-geral dizia que, nos dois casos, o dinheiro era, de fato, suborno.

No terceiro capítulo, Souza apresentava dois tipos de operações da agência DNA com o BB como sendo a fonte de desvio de 2,9 milhões de reais e 73,8 milhões de reais de dinheiro público para as empresas de Valério. Barbosa mudou a ordem da apre-sentação dos supostos crimes: começou sua

“historinha”, como disse na ocasião ao diá-rio O Estado de S. Paulo, pelo capítulo 5, no qual Souza tentava provar a corrupção de Cunha e Pizzolato. Depois foi para o 3, no qual Souza procurava mostrar que o dinhei-ro do esquema Soares–Valério viria, de fato, de desvio de dinheiro público. Deixou por último o capítulo no qual Dirceu é acusado de formar uma quadrilha, articulada com outras duas – uma de publicitários e outra de banqueiros –, para corromper o Con-gresso. Com essa forma, o escândalo ficou mais compreensível, “o capítulo anterior jogava luz sobre o capítulo subsequente”, como disse, na época, Barbosa ao Estadão.

Barbosa reorganizou a denúncia do procurador-geral, mas com um voto unitário. No julgamento, quando, como relator, foi o primeiro a votar, já quase no final de agosto, após os pronunciamentos da acusação, pelo procurador-geral Gurgel, e das defesas, pelos advogados dos 38 réus, ele acabou impondo – com a ajuda do pre-sidente da corte, Ayres Britto – a votação fatiada, para espanto dos ministros Ricardo Lewandowski, revisor da AP 470, e Marco Aurélio de Mello e protestos da maioria dos advogados dos réus.

O fatiamento parece ter sido o grande truque de Barbosa. É uma espécie de técnica como a de comer o pirão a partir das beiradas, onde está mais frio. No caso, começar a julgar a complexíssima tese do mensalão a partir de um ponto que é quase um senso comum: o de que os políticos são corruptos e é grande o desvio de dinheiro público para proveito deles próprios. Certos setores da classe média e da burguesia brasi-leira devem fazer isso até com uma espécie de consciência culpada: deve-se notar que, no mensalão, a acusação tenta provar um desvio de dinheiro público de perto de 100 milhões de reais. Já a Receita Federal está cobrando de centenas de milhares de pes-soas físicas e jurídicas 86 bilhões de reais em “débitos vencidos”. Desse total, 42 bilhões são atribuídos a 317 grandes contribuintes (15 pessoas físicas e 302 jurídicas) – ou seja, um montante que equivale a mais de 420 vezes o dinheiro envolvido no mensalão.

Cunha e Pizzolato foram as vítimas iniciais. Mas a história do ex-diretor do BB é, sem dúvida, a principal. Após a acusa-ção de Barbosa, Pizzolato foi condenado quase unanimemente pelos outros dez ministros por quatro crimes: corrupção passiva, porque teria recebido 326 mil reais para favorecer Valério; lavagem de dinheiro, por ter recebido dinheiro em espécie e ocultado essa movimentação; um “pequeno peculato”, por ter desviado 2,9

milhões de reais por meio dos chamados bônus de volume, isto é, recursos dados pelos veículos de promoção e mídia em função do volume de serviços cobrados do BB, que seriam devidos ao banco, mas foram dados para uma empresa de Valério com a anuência de Pizzolato; e um “grande peculato”, pelo desvio de 73,8 milhões de reais, que também seriam do BB e foram dados para a mesma empresa de Valério, a partir de um fundo de incentivos ao uso de cartões da bandeira Visa.

O que Barbosa fez ao começar pelas “historinhas” de corrupção é o oposto do que se recomenda num debate intelectual sério. Como disse o pensador italiano An-tonio Gramsci, nesse tipo de discussão, na luta de ideias, ao contrário do que se faz na guerra, quando se come o pirão pelas beiradas, procurando destruir o inimigo atacando-o por seus pontos mais fracos, deve-se começar pelo ponto forte, o essencial da argumentação adversária. O propósito na luta de ideias não é destruir o adversário, como se faz com o inimigo na guerra, mas derrotar suas ideias errôneas e, dessa forma, contribuir para elevar o nível popular de consciência e informação.

Barbosa não é nenhum Gramsci. Fez o contrário, procurou contar uma “historinha”. Estavam em debate

duas posições. De um lado, a dos maiores criminalistas do País, que defendem os acusados com a tese do caixa dois. Essa tese foi desenvolvida por Soares e Valério, já em 2005. Eles apresentaram provas e testemu-nhos de terem repassado clandestinamente 55 milhões de reais para pagar dívidas de campanha do PT e partidos associados a ele nas eleições. Disseram que o dinheiro vinha de empréstimos tomados – pelo PT, mas, principalmente, pelas empresas de Valério – nos bancos mineiros Rural e Mercantil de Minas Gerais. De outro lado estava a tese da maioria da CPMI dos Correios, a tese do mensalão. Ela dizia que os 55 milhões de reais admitidos pelos acusados como caixa dois não existiam. Seriam dinheiro público os 76,7 (73,8 + 2,9) milhões de reais da soma do grande e do pequeno peculatos de Pizzolato, desviados do BB para Valério. As quantias teriam sido fraudulentamente camufladas como empréstimos pelo publicitário com ajuda dos banqueiros do Rural. Os 326 mil reais que chegaram a Pizzolato seriam o suborno para ele fazer o desvio. Os ban-queiros do Rural teriam feito a simulação porque estariam interessados num prêmio que Dirceu, chefe da quadrilha política,

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poderia obter do Banco Central para eles: a “bilionária” liquidação do Banco Mercantil de Pernambuco, como diz Gurgel em sua peça acusatória. E Dirceu e sua quadrilha política queriam o dinheiro para comprar o apoio de partidos no Congresso para o governo Lula.

Como juiz, a nosso ver, para encarar o debate de frente, Barbosa deveria ter começado por dar seu veredicto sobre a acusação, isto é, dizer se a tese do mensalão fora ou não provada. Deveria fazer isso examinando a argumentação da defesa, a tese do caixa dois, e fazer isso com todo o empenho, para eliminar qualquer dúvida razoável em favor dos acusados, em res-peito ao princípio in dubio pro reo.

Note-se bem: ninguém pode dizer que os réus são inocentes se o propósito for corrigir os males do

processo eleitoral brasileiro, totalmente cor-rompido pelo dinheiro. Muitos dos acusa-dos são participantes confessos, em maior ou menor grau, de um crime eleitoral: o uso de dinheiro clandestino para financiamento de candidatos e partidos. Ao escrever sobre esse tema, poucos meses depois do ocor-rido (ver no livro As duas teses do mensalão, Editora Manifesto, 2012, o capítulo “O PT no seu labirinto”, escrito em setembro de 2005), já dizíamos, por exemplo, o que está sendo observado agora por alguns analistas: os 4,1 milhões de reais repassados por meio do chamado valerioduto para o PP não podiam ser vistos como verba para paga-mento de despesas de campanhas passadas. A adesão do PP à base do governo Lula foi tardia. Em 2002 esse partido, assim como o PMDB, se coligou com o PSDB no apoio à candidatura de José Serra à Presidência. É outro, no entanto, o caso de PT, PTB, PL e de seus políticos que receberam dinheiro do esquema. Dos 55 milhões distribuídos através do esquema Soares-Valério, a maio-ria foi para o próprio PT: 23,6 milhões de reais – sendo o equivalente a 10 milhões de reais depositado numa conta no exte-rior para Duda Mendonça, que, como se sabe, foi o marqueteiro da campanha de Lula à Presidência e de vários candidatos

do PT a governador nas eleições de 2002. A segunda maior parte – 11,2 milhões de reais – foi para o PL, que estava coligado com o PT desde a formação da chapa presidencial, com Lula encabeçando-a e com o empresário mineiro José Alencar como vice. Mais 4 milhões foram para o PTB, de Roberto Jefferson. No primeiro turno da eleição presidencial de 2002, o PTB formou a chamada aliança trabalhista, com o PDT e o PSB, para apoiar Anthony Garotinho, o candidato à Presidência dessa última agremiação. No segundo, o partido de Jefferson apoiou a candidatura de Lula. Por que o valerioduto não repassou verbas para o PSB pagar suas campanhas de 2002? Por que não deu dinheiro para o PCdoB, outro de seus aliados históricos? Por que PTB, PP e PL são partidos, como se diz, mais fisiológicos, corrompíveis, digamos? É claro que pode ter havido compra de partidos, que candidatos possam ter usado o esquema clandestino Valério-Soares para melhorar suas contas pessoais e que, portanto, a tese do caixa dois não dá conta de todos os detalhes e não ajuda, de forma alguma, diga-se mais, a limpar as estrebarias formadas pelo dinheiro e pelos poderosos que o oferecem para orientar, em função de seus interesses, o processo democrático. Quem, dentre os defensores da tese do caixa dois, pode ter certeza de que os ban-queiros do Rural e do BMG não queriam favores do governo? É claro que queriam.

Mas o problema em discussão não é esse. A tese do caixa dois é a da defesa. Ela não tem, a serem seguidos os princí-pios do direito penal, o ônus da prova. É a acusação que está sendo julgada na AP 470. É a tese do mensalão, encaminhada pelo procurador-geral Gurgel na sua sustentação oral feita em 2 de agosto, na abertura do julgamento da AP 470. E é a forma como o relator Barbosa está levando os seus colegas do STF a julgá-la.

É nossa opinião que, ao não dar um voto unitário inicial à altura das dimensões que o julgamento adquiriu, Barbosa visou, de modo doloso – para usar um termo jurídico –, abrir caminho para a vitória da tese do mensalão. Empenhou-se na defesa

dessa tese, buscando em seu apoio todos os indícios e suposições da fase do inqué-rito e praticamente ignorando as provas e testemunhos produzidos para os autos pela defesa, os quais, pela lei brasileira, deveriam ser os determinantes para a condenação dos acusados. Como disse o experiente so-ciólogo Wanderley Guilherme dos Santos, em entrevista publicada pelo jornal Valor Econômico em 21 de setembro: “Temo que uma condenação dos principais líderes do PT, e do PT como partido, acabe tendo por fundamento não evidências apropriadas, mas o discurso paralelo que vem sendo construído”. O jornal então lhe perguntou se ele achava que os ministros estavam “dizendo, nas entrelinhas do julgamento”, que “o tribunal condenará alguns réus sem fundamentar essas condenações em provas concretas”. Ele respondeu: “É uma espécie de vale-tudo. Esse é meu temor. O que os ministros expuseram até agora é a intimi-dade do caixa dois de campanhas eleitorais e o que esse caixa dois provoca. A questão fundamental é: por que existe o caixa dois? Isso eles se recusam a discutir, como se o que eles estão julgando não fosse algo comum – que pode variar em magnitude, mas que está acontecendo agora, não te-nho a menor dúvida. Como se o que eles estão julgando fosse alguma coisa inédita e peculiar, algum projeto maligno”.

Barbosa adotou o método da “his-torinha” para ganhar o público a partir dos preconceitos existentes

contra a política. E também porque, obser-vada na sua estrutura, a tese do mensalão é muito complexa e frágil. Ela precisa de uma superorganização criminosa. Precisa de três quadrilhas – associação criminosa que envolve, em cada uma, pelo menos quatro pessoas – unidas num mesmo propósito e com divisão de tarefas. As três quadrilhas devem ter uma hierarquia, porque, segundo essa tese, Dirceu, da quadrilha política, é o poderoso chefão e seria o articulador e comandante do grande esquema.

As deformações decorrentes do enca-minhamento dado à AP 470 por Barbosa podem ser vistas com mais precisão em

Para Barbosa, Valério tirou R$ 76,7 milhões do BB na “mão grande”. Ele ignorou as notas em poder da CBMP que comprovam os serviços do publicitário

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alguns absurdos cometidos no tratamento de questões financeiras essenciais. A qua-drilha dos banqueiros teria grande interesse em falsificar os empréstimos da dupla Valério-Soares, de olho, por exemplo, na liquidação “bilionária” do Banco Mercan-til de Pernambuco. Ocorre, no entanto, como disse repetidas vezes o advogado de um dos banqueiros, o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos, que essa liquidação foi “milionária”, ou seja, mil vezes menor. Barbosa mostrou, como prova da falsidade dos empréstimos para o valerioduto, o fato de um sócio de Valério ter recebido em sua conta um depósito de adiantamento de dinheiro do Fundo de Incentivo Visanet e imediatamente ter aplicado o montante no Banco Rural, como se isso fosse uma manobra diversionista. Como se não fosse uma obrigação de toda pessoa sensata, no sistema em que vivemos, aplicar a juros uma bolada que recebe. Como se todos os convênios que o governo federal faz com estados e municípios, por exemplo, não fossem de adiantamento de boa parte de dinheiro e de prestação de contas a posteriori. E nos quais todos os secretários de Fazenda com bom senso mandam aplicar o dinheiro imediatamente.

Mas o dolo principal de Barbosa é quanto aos dois peculatos de Pizzolato. Eles são a viga mestra da tese do mensalão. Esses 76,7 milhões de reais dos supostos dois desvios de dinheiro do BB substituem os 55 milhões de reais que, na tese do men-salão, não existem e teriam sido inventados pelos banqueiros, por Valério e por Soares para sustentar a tese do caixa dois. Em seu voto, ao omitir dezenas de provas e teste-munhos da defesa, Barbosa praticamente diz que Pizzolato, sozinho, comandou a

retirada do dinheiro do BB, como se o banco fosse uma padaria de cujo caixa um dirigente pudesse retirar dinheiro com a mão. As provas da defesa, que Barbosa não apresentou, mostram que essa acusação é absurda. Ele sabia e deveria ter dito que o Fundo de Incentivo Visanet, para o uso dos cartões de bandeira Visa, a partir do qual a empresa DNA, de Valério, recebeu aquele dinheiro, era da Companhia Brasileira de Meios de Pagamento (CBMP), dominada, no essencial, por uma empresa multina-cional, a Visa International Services Asso-ciation, estabelecida em San Francisco, na Califórnia. Sua ampla rede global possibilita a utilização de cartões de sua bandeira, Visa, por meio de 21 mil instituições financeiras em mais de 200 países. Durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso a Visa criou no Brasil a CBMP. O estatuto da CBMP, assinado por todos os seus sócios – Visa (10%), Bradesco (39%), BB (32%) e mais de 20 outros bancos –, estabelece cla-ramente que o dinheiro retirado pela CBMP de cada pagamento feito por meio dos cartões Visa, para promoção dos próprios cartões e através de cada um de seus sócios, lhe pertence. Barbosa sabe disso porque foi ele quem, até o final de 2006, um ano depois de o Fundo de Incentivo Visanet ter sido fechado em função do escândalo do mensalão, tentou fazer valer, sem sucesso, uma decisão do então presidente do STF, Nelson Jobim, que mandava a companhia permitir um exame de sua contabilidade. Era a CBMP, repita-se, comandada pela Visa – não pelo BB e muito menos por Pizzolato –, que ficava com os recibos dos pagamentos feitos pela DNA por conta de serviços de promoção dos cartões emitidos pelo BB com a bandeira Visa. Pelo que Bar-

bosa mostrou ao País pela televisão, o BB não tinha qualquer controle das contas da DNA, que basicamente não teria feito ser-viço algum, apenas carregado a grana para os esquemas fantásticos de Soares-Valério com a quadrilha de banqueiros mineiros. Mas isso é totalmente falso. Nos autos do processo está a avaliação de uma equipe de 20 auditores do BB, feita ao longo de quatro meses, com base nos recibos da CBMP, que provam o que Valério diz até hoje, aparente-mente com razão: que sua empresa realizou todos os serviços de promoção pelos quais recebeu os adiantamentos.

Barbosa sabe também que a Comis-são Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios, que criou a

tese do mensalão, mandou indiciar, pelos desvios que imaginou terem sido feitos no Fundo de Incentivo Visanet durante quatro anos de seu uso pelo BB, cinco pessoas, sendo três do governo FHC e duas da administração petista: Luiz Gushiken e Pi-zzolato. Por que sobrou apenas Pizzolato? O advogado dele, Sávio Lobato, diz que isso ocorreu apenas porque seu cliente era do PT. Pode-se dizer mais: só Pizzolato sobrou porque: 1) ele seria a porta de en-trada para a “historinha” de Barbosa; 2) se Gushiken, ministro de Comunicação Social do governo Lula e superior hierárquico de Pizzolato, fosse incluído, isso atrapalharia. Embora responsável, em última instância, pela publicidade alocada pelo governo Lula, se entrasse na história, Gushiken destruiria a parte da tese que ainda hoje une a massa dos conservadores: a de que o ex-comunista, ex-guerrilheiro e ex-comandante da equipe que elegeu Lula, José Dirceu, é o chefão mais poderoso das três quadrilhas inventadas.

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Henrique Pizzolato foi condenado no STF, de forma quase unânime, por quatro crimes. Pode ter sido uma decisão errada, em todos os casos

por Lia Imanishi e Raimundo Rodrigues Pereira

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política 2

Henrique Pizzolato foi diretor de Comunicação e Marketing do Banco do Brasil (BB) do início do primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva até pouco depois do estouro do mensalão, em agosto de 2005, quando foi afastado como um dos denunciados no escândalo. Em agosto passado, sete anos depois, foi condenado no Supremo Tribunal Federal (STF) por quatro crimes: corrupção passiva, dois peculatos e lavagem de dinheiro. Foram 44 votos; cada um dos 11 ministros votou em cada uma das acusações. Só um voto não foi por sua condenação, o de Marco Aurélio de Mello, que o absolveu do crime de lavagem de dinheiro.

Na história que publicamos a seguir tentaremos provar que todas as quatro condenações são injustas, mesmo a por corrupção, em cuja defesa ele apresentou uma versão, de fato, pouco convincente para 326 mil reais que recebeu do valerioduto, esquema montado pelo então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, e pelo publicitário mineiro Marcos Valério. Nosso argumento nesse caso: ao réu cabe o benefício da dúvida; a acusação, à qual cabe o ônus da prova, não provou que Pizzolato não repassou o dinheiro para o PT do Rio de Janeiro, como ele alega. Diremos mais: a condenação pelos dois peculatos, essencial para “provar” a teoria do mensalão, simplesmente não se sustenta nos fatos.

Henrique Pizzolato tem 60 anos. For-mou-se em arquitetura, com especiali-zação em urbanismo. Estudou também comunicação social durante três anos. Em 1974, ainda universitário, passou em concurso para escriturário do Banco do Brasil (BB), onde, ao longo de 32 anos de carreira, ocupou diversos cargos, até chegar ao topo, em fevereiro de 2003, como diretor de Marketing e Comuni-cação, nomeado pelo recém-empossado presidente do banco, Cássio Casseb. Já conhecia Casseb do conselho da Brasil Telecom, no qual este representava a Telecom Itália e ele, a Previ, o fundo de pensão dos funcionários do BB. Influiu em sua nomeação também, é claro, sua militância no PT, no qual ingressou logo na fundação, ainda estudante universi-

tário. Depois, foi eleito presidente do Sindicato dos Bancários do Rio Grande do Sul e do Paraná, para onde se mudou antes de ir para o Rio de Janeiro, em Copacabana, onde mora até hoje. Foi no movimento sindical que Pizzolato conheceu, por volta de 1985, Luiz Gushiken, então presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo e depois deputado federal pelo PT. Durante cinco meses, ele, Gushiken e Eduardo Jorge, também deputado federal pelo PT, dividiram um apartamento em Bra-sília. Pizzolato os convidou a trocar os quartos de hotel pagos pela Câmara dos Deputados pelo apartamento funcional da Associação Nacional dos Funcioná-rios do BB, da qual era dirigente. Em 2002 seu mandato na Previ terminou

um homem condenAdoTrinta e dois anos de carreira até o topo do Banco do Brasil. E, de repente, Pizzolato se transformou num pária

e veio a campanha de Lula, da qual Gushiken foi, junto com José Dirceu, um dos dirigentes. Pizzolato começou então a trabalhar ativamente para eleger Lula. Como a Previ tem investimentos junto a grandes empresas em diversos setores – hoteleiro, ferroviário, portuá-rio, bancário, mineração, infraestrutura, turismo, lazer e imobiliário –, o partido lhe deu a função de apresentar o plano de governo petista em reuniões com os líderes patronais dos sindicatos, asso-ciações e entidades desses setores, a fim de obter apoio. Lula eleito, Gushiken foi ser ministro da Secretaria de Comu-nicação Social e Assuntos Estratégicos da Presidência da República e superior hierárquico de Pizzolato em relação aos assuntos relativos à publicidade do BB.

Tudo parecia ir muito bem até 3 de agosto de 2005, quando a vida de Pizzolato virou de cabeça para baixo. Em manchetes de jornais, foi acusado de receber R$ 326.660,27 encaminhados a ele pelo empresário Marcos Valério, da agência de publicidade DNA. Valério já era tido como o operador do mensalão, o grande escândalo do início do governo Lula, e a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios, a mais importante de três formadas para investigar o caso, pegava fogo. O di-nheiro fora sacado por um contínuo da Previ, Luiz Eduardo Ferreira da Silva, em uma agência do Banco Rural, no centro do Rio de Janeiro. Levado a de-por na Polícia Federal (PF), o contínuo afirmou que Pizzolato lhe telefonou e pediu que fosse buscar “documentos”

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Pizzolato: a acusação de corrupçãoé a que mais dói. “Fui humilhado,execrado em praça pública. Tudocom insinuações, hipóteses.Não apresentaram uma prova”

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no Banco Rural. Lá chegando, disse no depoimento, foi levado a uma sala interna do banco, onde lhe entregaram dois embrulhos em papel pardo, os quais disse ter levado pessoalmente a Pizzolato, em seu apartamento em Copacabana. Foi a notícia mais quente dos jornais do dia seguinte. As matérias destacavam que, pouco tempo depois do recebimento do dinheiro, Pizzolato comprara um apartamento de 400 mil reais, visto como prova suficiente de sua culpabilidade. Quinze dias depois, Pizzolato depôs na CPMI dos Correios. Seu advogado pediu habeas corpus ao STF para lhe garantir o direito de ficar calado, o que foi negado. Pizzolato disse no depoimento que suas ações no BB tinham sido aprovadas por Gushiken, o que causou sensação ainda maior por-que, àquela altura, a questão do dinheiro que teria recebido de Valério já estava associada a outra denúncia, maior: a de ter desviado 73,8 milhões de reais do BB ilegalmente para as empresas do publi-citário. Pizzolato então estaria dizendo

ter feito isso a mando de Gushiken, um dos maiores dirigentes do governo Lula.

O mensalão não mais iria sair do noticiário dos jornais nos próximos sete anos. Pizzolato disse, em depoimento judicial, depois, que a sua inquirição pelos deputados e senadores na CPMI foi uma tortura, que se sentiu “humilha-do”, “achincalhado”. Hoje vive recluso no apartamento em Copacabana. Não fala com a imprensa. Para Retrato do Brasil, sua única concessão foi enviar pela internet, a 7 de setembro, através de seu advogado, Marthius Sávio Lobato, em Brasília, uma declaração da Receita Federal com a qual buscava provar que, após uma devassa em suas contas, nada fora apurado contra ele. Mas RB teve cerca de oito horas de conversas com Lobato, que estudou na Universidade de Brasília, onde foi aluno de Gilmar Mendes, um dos ministros do STF hoje no julgamento do caso.

Lobato diz que considera seu cliente um injustiçado. Conta que, na primeira vez em que Pizzolato falou para os autos

da Ação Penal 470 (AP 470) – ou seja, em depoimento judicial, tendo ele, como advogado, ao lado, em 14 de fevereiro de 2008 – o juiz da 7ª Vara Federal Criminal, Marcelo Granado, abriu a audiência para toda a imprensa, fato que, diz ele, “não ocorreu em nenhum outro depoimento dos litisconsortes passivos, para utilizar a própria expressão do STF”. Lobato diz que ainda tentou anular o depoimento, mas o ministro Joaquim Barbosa negou o pedido sob o fundamento de que o processo não está sob sigilo.

Depois de aberta a AP 470, Barbosa expediu as chamadas “cartas de ordem” para que os réus fossem ouvidos pela Justiça em seus estados de origem. Em 2008, quando terminou seu depoimen-to no Rio, o juiz Granado concedeu a Pizzolato o direito de, “como pessoa humana”, dizer mais algumas palavras em sua defesa, se quisesse. Pizzolato disse: “Eu queria dizer da minha revolta, da minha insatisfação da forma como eu fui envolvido nesses fatos, porque eu tive a minha carreira profissional

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Valério: Delúbiomandou

R$ 2.676.660,67 para o PT-RJ.R$ 326.660,67via Pizzolato

destruída, tive a minha família exposta, fui humilhado, fui execrado em praça pública, fui julgado, fui satanizado em público [...] tudo a partir de insinuações, não foi apresentado um documento; tudo a partir de hipóteses”.

Lobato disse a RB que Pizzolato tinha saído dessa fossa e se animara com a preparação das alegações finais de sua defesa, entregues ao STF em 30 de agosto do ano passado. Mas a sentença dos ministros do STF o teria arrasado. O crime de corrupção passiva é, talvez, o que mais lhe doa. A acusação é a de que ele embolsou os 326 mil reais repassados por Valério, justamente para facilitar os desvios dos dois crimes de peculato, um de 2,9 milhões de reais e outro de 73,8 milhões de reais. E, para encobrir a corrupção cometeu outro crime, o de “lavagem de dinheiro”, ocultando origem, movimentação e destino dos recursos recebidos de Valério a 15 de janeiro de 2004.

No seu depoimento, Pizzolato disse que naquele dia recebeu uma ligação em seu celular de uma mulher que dizia ser a secretária de Valério, pedindo que fizesse o favor de ir buscar “documentos para o PT” em um “escritório” no cen-tro da cidade. Pelo fato de estar muito ocupado, diz Pizzolato, acertou com a secretária mandar outra pessoa em seu lugar, no dia seguinte, com o compro-misso de entregar os documentos ao representante do PT que iria procurá-lo no mesmo dia. Pizzolato diz que rece-beu uns envelopes do contínuo Silva e os repassou, como combinado, a uma

pessoa do PT que o procurou. Diz que não abriu os envelopes, não quis saber o nome do emissário do partido e nunca mais viu a cara dele.

Lobato nega todos os crimes dos quais Pizzolato é acusado. Diz que Barbosa não analisou as provas apre-sentadas por ele nos autos. No caso da corrupção, diz, Barbosa e os juízes prin-cipalmente especularam sobre a versão

que Pizzolato deu para a encomenda recebida de Valério. A acusação, diz Lobato, primeiro trabalhou muito para provar que Pizzolato teria comprado um apartamento de 400 mil reais, no mês seguinte ao recebimento de dinheiro de Valério, mas fracassou. Pizzolato provou que comprou o apartamento com suas economias, com um cheque do BB e mais 100 mil reais em espécie, resultado

da venda de dólares que comprara – ele mostrou o comprovante de aquisição.

Em depoimento judicial, Valério disse que o diretório do PT do estado do Rio de Janeiro, de acordo com o então tesoureiro do PT, Soares, tinha débitos de campanha de 2002, estava se preparando para as eleições munici-pais de 2004 e foi o que mais recebeu recursos do esquema comandado por Soares. O tesoureiro do PT, então, so-licitou a ele que remetesse um total de R$ 2.676.660,67 ao PT fluminense. As pessoas indicadas para o recebimento foram Manuel Severino, Carlos Ma-nuel e Pizzolato, disse Valério. Os R$ 326.660,67 repassados via Pizzolato seriam parte desse total. Valério disse também que Pizzolato trabalhou na campanha eleitoral de 2002 com Soares, no Rio de Janeiro.

Lobato diz, com razão, que o ônus da prova é da acusação: “Cadê a prova de que Pizzolato pegou esse dinheiro para ele?”. Ao depor na CPMI em 2005, Pizzolato abriu para a Justiça, imediatamente, todos os seus sigilos bancário, fiscal e telefônico. Mostrou que tinha recursos mais que suficientes para comprar o apartamento que a acusação sugeria ter saído de suborno recebido. Em 2005, por exemplo, rece-bia 4 mil reais da Previ, 19 mil reais do BB, 18 mil reais a título de participação no conselho da Embraer e mais 4 mil reais devido à atuação no conselho da Associação Nacional dos Funcionários do BB. Lobato mostra a RB o imposto de renda de Pizzolato que está nos autos. Em 2003, seu patrimônio era de R$ 1.304.725,45. Em 2004, de R$ 1.768.090,23, já incluído o apartamento comprado em fevereiro daquele ano. Seu rendimento bruto anual em 2004 foi de R$ 717.611,46 – aproximadamente 60 mil reais por mês. “A Receita Federal e a Polícia Federal não conseguiram encontrar nenhuma irregularidade nas contas de Pizzolato”, diz Lobato.

Pizzolato tem razão? Ele pode ter omitido fatos e o nome de pessoas em sua versão da história, o que a tornou pouco crível. Mas, aceitando-se a tese do caixa dois, sua versão pode ser verdadei-ra. E ele merece, pelo menos, o beneficio da dúvida, nesse caso. Mais ainda porque os dois crimes de peculato de que é acu-sado, e pelos quais ele teria recebido o suborno, podem ter sido simplesmente inventados para sustentar a tese do men-salão, como relatamos a seguir.

O relator da CPMI dos Correios, Osmar Serraglio, nas alturas: a oposição comemora

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onde eStAvAm oS documentoS?Barbosa disse que o BB não tinha recibos do dinheiro gasto por Valério. Mas sabia que estavam com a CBMP, controlada pela Visa

Visanet é o nome fantasia da Compa-nhia Brasileira de Meios de Pagamento (CBMP), fundada no Brasil em 1995 e que passou a operar mais amplamente a partir de 2001. O capital controlador da CBMP é da Visa International Ser-vice (Visa), que tem 10%; do Bradesco, com 39%; e do BB, 32%. O restante está dividido entre cerca de 20 outros sócios – bancos como Itaú, Santander e BankBoston. Pode-se dizer, porém, que o controle da CBMP sempre foi da Visa, empresa americana do mundo financeiro globalizado criado nas últi-mas décadas. Ela é a possuidora dos direitos dos cartões de crédito e débito da bandeira com seu nome, emitidos em cerca de 200 países.

A partir de 2001 a CBMP começou a operar no Brasil o Fundo de Incentivo Visanet (FIV), “com o objetivo único”, como diz um de seus documentos, “de realizar ações de marketing destinadas a incentivar o uso dos cartões Visa pelos consumidores”. O FIV era formado por uma porcentagem dos negócios com os cartões e a CBMP destinava os recursos assim obtidos a ações de promoção e marketing dos mesmos, a serem comandadas pelos sócios. O dinheiro movimentado pelos cartões da bandeira Visa é monumental: no mundo, passa de 5 trilhões de dólares por ano. No Brasil, é mais de 1 bilhão de reais anualmente, somando-se ape-nas os negócios feitos com os cartões Visa do BB.

A CBMP arrecadou para o FIV cerca de meio bilhão de reais entre 2001 e fins de 2005, quando o fundo foi en-cerrado; na verdade, mudou de nome, devido à má repercussão das histórias divulgadas a respeito dele no mensalão. O BB foi o líder dos negócios com cartões de bandeira Visa nesse período. Sua parte no FIV foi grande e crescente: aproximadamente 150 milhões de reais entre os anos de 2001 e 2004: 60 mi-lhões de reais nos anos 2001–2002 – no governo Fernando Henrique Cardoso, portanto – e 90 milhões de reais nos anos 2003–2004, já no governo Lula, quando Pizzolato era diretor de Comu-nicação e Marketing do BB.

Desde a criação da CBMP, o FIV tinha um regulamento que cada sócio deveria observar para usar os recursos.

participação no FIV, em 2001, o BB decidiu, por questões fiscais, que os recursos do FIV não passariam por seu orçamento. E nunca fez um contrato específico com a CBMP nem com a agência DNA para o uso dos recursos do FIV. Essa situação persistiu até meados de 2004.

A DNA trabalhava com publicidade e promoção para o BB desde 1995. Entre 2001 e 2002 dividia os trabalhos de promoção com uso do dinheiro do FIV com outras agências contratadas para servir o banco. No final de 2002, ainda no governo FHC – destaque-se, para melhor entendimento de nossa história –, o BB decidiu dividir os tra-balhos das suas agências entre as áreas de negócios chamadas de “governo”, “atacado” e “varejo” e escalou a DNA para o varejo, em que se encontravam os serviços para promoção de seus cartões com bandeira Visa.

O ministro Barbosa conhece bem toda essa história. Sabe, por exemplo, que os originais dos recibos dos servi-ços da DNA prestados ao BB eram da CBMP e que a companhia resistiu judi-cialmente por longo tempo a entregar tais recibos, mesmo com o escândalo do mensalão, depois de ter sido de-terminado, a 11 de janeiro de 2006, pelo então presidente do STF, Nelson Jobim, o acesso de peritos do Instituto Nacional de Criminalística “a todos os documentos da empresa no período de 2001 até janeiro de 2006”. Em junho de 2006, quando Barbosa já era, no STF, o ministro encarregado de supervisionar o andamento do inquérito 2.245, rela-tivo ao mensalão, ele recebeu uma

Ele previa a cobertura para atividades de promoção de todo tipo. No seu item III.4, definia as “ferramentas mercadológicas”, a serem usadas. Eram especificadas algumas dezenas dessas ferramentas, como: “publicidade em mídias de massa”, “TV, rádio, revistas, jornais, outdoors, mobiliário urbano, front e back lights, painéis, etc.”; “merchandising, trabalhos de planejamento, criação, layout, editoração, produção, veiculação e comissão de agência de publicidade”; “programas de fidelização ou promoção para portador no ponto de venda, nas agências bancárias, via internet, correio, telefone ou locais de grande fluxo de portadores para estimular venda do plástico; de planejamento e criação, produção de material gráfico, de divulgação e de apoio, contratação de promotores, compra de benefícios, brindes, prêmios, taxas governamentais de aprovação e alvarás”. E por aí afora.

O FIV era administrado por um comitê gestor, formado por um presi-dente, um diretor de Finanças e Admi-nistração e outro de Marketing, todos da Visanet, a quem cabia verificar se os recursos estavam sendo emprega-dos “de acordo com as diretrizes, a estratégia do negócio e as condições do Regulamento”. Os recibos dos gastos da agência de publicidade DNA, de Va-lério, tão citados no mensalão, ficavam com a CBMP, que fazia pagamentos diretamente à agência. Ao definir sua

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Já em 2005 Valério afirmava ter feito os trabalhos pagos pelo Fundo de Incentivos Visanet: na foto, advogados dele entregam o que seriam suas provas à CPMI dos Correios (o relator, Serraglio, à esquerda; ao centro, o presidente, Amir Lando)

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petição do então procurador-geral, Antonio Fernando de Souza, relatando as dificuldades impostas pela CBMP ao acesso dos peritos a sua documentação.

Souza requisitou “busca e apreen-são” na sede da empresa, além da “que-bra do sigilo do fluxo de comunicações e de dados em sistemas de informática e telemática” da CBMP. Barbosa apro-vou os pedidos do procurador-geral e a busca foi feita, mas a empresa apelou ao STF para reconsideração da decisão. A CBMP já havia encerrado as ativida-des do FIV em fins de novembro de 2005, mas uma intensa disputa judicial então já estava em curso. O BB tinha suspendido o contrato com a DNA em função do escândalo do mensalão. Tinha também alterado o modo de relacionar-se com a empresa de Valério já em meados de 2004, para melhorar o controle dos gastos.

Valério ingressou com ações na Justiça para cobrar do BB por serviços feitos e que não teriam sido pagos. Em junho de 2009, já com a AP 470 com dois anos de andamento, Barbosa en-viou ao BB um questionário relativo ao possível descumprimento de contrato com a agência de publicidade “no que diz respeito ao bônus de volume (BV) referente ao período de fevereiro de 2003 a julho de 2005”. A escolha das datas, que coincidem com a entrada e a saída de Pizzolato da Dimac, a diretoria de Marketing e Comunicação do BB, é óbvia: Barbosa já tinha Pizzolato como um alvo. Por que ele fez isso, visto que a auditoria a que teve acesso mostrava claramente: que o FIV tinha sido ope-rado por Pizzolato exatamente como nos anos 2001–2002; que os recursos eram sempre adiantados à DNA e às outras agências, em cerca de 80% do total a ser gasto, antes de as despesas serem feitas; e que fora na época em que Pizzolato era diretor do BB, em meados de 2004, que tinham sido feitas mudanças – aliás, bem-sucedidas – na gestão do FIV, para evitar possíveis abusos? Mais ainda: por que ele aceitou a denúncia e encaminhou a condenação somente de Pizzolato se a CPMI dos Correios tinha pedido o indiciamento de mais quatro pessoas, entre as quais três dirigentes de setores ligados à publicidade e promoção do banco que assinaram com ele as autorizações para os adiantamentos feitos à DNA, de Valério? As respostas serão dadas nas páginas seguintes.

Receitas do FIV utilizadas pelo Banco do Brasil

Adiantamentos às agencias de

publicidade

Gastos com notas fiscais em poder

da CBMP

Gastos sem notas fiscais

R$ milhões R$ milhões % R$ milhões % %

2001 28,83 26,4 91,57 28,76 99,76 0,24

2002 32,03 21,9 68,37 31,99 99,88 0,12

2003 38,43 29,7 77,28 38,28 99,61 0,39

2004 52,01 34,1 65,56 51,45 98,92 1,08

BarBosa não viuOs números da auditoria mostram o que o relatorprovavelmente não quis ver

A tabela acima foi construída a partir da auditoria feita por 20 técnicos do BB por quatro meses, logo após a denúncia do mensalão. Ela mostra que o Fundo de Incenti-vo Visanet (FIV) foi operado pelo BB, entre 2001 e 2004, da mesma forma, tanto nos anos do governo FHC (2001–2002) como nos anos do governo Lula (2003–2004).Diz o relatório da auditoria que as regras para uso do fundo pelo BB tiveram duas fases: uma, de sua criação, em 2001 , até meados de 2004, quando o banco, em função de não ter adotado “definições formais acerca dos direcionamentos estratégicos”, como tipo de “eventos ou ações que poderiam ser patrocinados”, adotou “como referencial básico, o Regulamento de Constituição e Uso do Fun-do” da CBMP, que é sua “legítima proprietária”; e outra, do segundo semestre de 2004 até dezembro de 2005, quando o banco criou uma norma própria para o controle dos recursos do fundo.Os auditores fizeram simulações por amostragem para verificar a porcentagem das ações de incentivo para as quais existiam comprovantes, no banco, de que elas tinham sido de fato realizadas. Procuraram os documentos existentes no próprio banco – notas fiscais, faturas, recibos emitidos pelas agências para pagar os ser-viços e despesas de fornecedores para produzir as ações. Referente ao período 2001–2002, não foram localizados esses documentos. Já com relação aos anos 2003 e 2004, entre as 93 ações encaminhadas à Visanet, nas 33 ações selecionadas como amostra para a análise, para três delas não havia qualquer documento e para 20 havia parte dos documentos. Ou seja: somando-se as ações com falta absoluta de documentos às com falta parcial, estas chegavam a 45% do total de recursos despendidos. Os auditores procuraram então os mesmos documentos na CBMP, que, por estatuto, era a dona dos recursos e a controladora de sua aplicação. A falta de documentação comprobatória foi, então, muito pequena em proporção aos valores dos gastos autorizados, como se vê ma última coluna da tabela.Para condenar Pizzolato, o relator Barbosa não destacou esses dados. Não os viu ou não os quis ver?

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Pelas datas dospedidos se vê,

claramente.O relator e oprocurador

geral queriampegar Pizzolato

o pequeno pILAR do menSALãoÉ a acusação que trata dos bônus de volume. E tem lei do Congresso, contra a qual se insurge o presidente do STF

Os dois peculatos – desvios de 2,9 milhões de reais e 73,8 milhões de reais do BB – que Pizzolato teria cometido a favor da agência DNA, de Valério, formam os pilares de sustentação do mensalão. Se a acusação não consegue provar esses dois desvios, a tese do mensalão desmorona (ver “O herói do mensalão”, nesta edição). O pequeno peculato trata do bônus de volume (BV). O que significa o BV? A acusação é de que a DNA de Valério embolsava inde-vidamente bonificações que seriam do BB, dadas a ela, pelas empresas com as quais contratava serviços para promo-ção dos cartões Visa do BB, em função do volume dessas contratações. No interrogatório judicial de Pizzolato, em 2008, o juiz Granado leu um trecho da denúncia do então procurador-geral que afirmava que as bonificações de volume pagas pelos fornecedores de serviços para a DNA – jornais, TVs, empresas de promoção contratadas pelo publicitário para os trabalhos de estímulo ao uso dos cartões Visa do BB – deveriam ter sido repassadas ao BB pela agência de Valério e não o foram. O próprio Gra-nado informou que esse procedimento era antigo: cinco agências, entre 2000 e 2005, embolsaram esses BVs e não apenas a DNA.

Pizzolato fez, então, primeiro, um esclarecimento. Mostrou que existem dois tipos de bonificação. Uma é o BV, fruto da relação entre a agência de pu-blicidade e o fornecedor de mídia – TVs, rádios, jornais, revistas, etc. “O nome já diz, é uma bonificação em função do volume”, disse Pizzolato. Não se restrin-ge ao volume de publicidade veiculado pela agência por um cliente, como o BB. Todas as agências que prestavam serviços para o banco tinham vários clientes e o BV era dado pelas empresas de mídia às agências pelo volume total de anúncios veiculados. “Isso, doutor, é praticado em todo o mercado, público e privado”, disse Pizzolato a Grana-do. O próprio Tribunal de Contas da União (TCU) confirma isso em uma auditoria a que Granado tinha se refe-rido, acrescentou Pizzolato: “[O TCU] diz que o BV foi praticado no Banco do Brasil de 2000 a 2005, por todas as cinco agências que prestaram serviços ao banco nessa época”. Pizzolato ex-

plicou depois que o BV se distingue de bonificação de espaço, que vem da relação entre o BB e os fornecedores de mídia. “Os fornecedores – jornais, rádios, televisões – costumam oferecer uma bonificação de espaço, de mídia, para que o período de compra seja mais longo. Por exemplo, eu comprei 60 dias de espaço no Valor Econômico. O Valor Econômico me faz uma proposta: se você comprar noventa dias ou seis meses eu te ofereço, como bonificação de mídia, o caderno especial de domingo, porque vou lançar um caderno especial, um encarte. Pode dizer também: eu te dou mais 5% de desconto”. Nesse caso, o banco participa da negociação. E todo

esse tipo de bonificação foi revertido para o BB, disse Pizzolato ao juiz. Nesse caso, não há transação financeira, disse Pizzolato a Granado.

O próprio procurador-geral Souza, na denúncia apresentada ao STF em 2006, citou uma apuração do TCU na qual constava que a DNA teria recebido esses BVs indevidamente desde 2000, num valor de 4,3 milhões de reais. Mas, como Souza já tinha como foco Pizzo-lato, ele destacou que, desse dinheiro, “2,9 milhões se referiam ao período de 31/03/2003 a 14/06/2005, da gestão de Pizzolato na Diretoria de Marketing do Banco do Brasil”. Como já se disse, Barbosa também visava pegar Pizzolato, quando, em 2009, com a AP 470 já em pleno curso, enviou interrogatório à direção do BB da época pedindo infor-mações sobre eventual descumprimento

de contrato por BVs, exatamente no período em que Pizzolato estava no banco. O banco, no entanto, respondeu de modo mais amplo. Disse que existiam no TCU cinco processos sobre BVs que tratavam do BB, envolvendo justamente as cinco grandes agências que prestavam serviços para o banco entre 2000 e 2005: Grottera, Lowe, DNA, D+Brasil e Ogilvy.

O BB mostrou a Barbosa que apresentou recursos contra decisão do TCU que mandava o banco pedir auditoria nas cinco agências, para poder juntar, aos autos do processo naquele tribunal, todas as notas fiscais relativas a serviços de BVs emitidas por essas cinco agências. O BB mostrou que isso não foi aceito por nenhuma delas. Todas informaram que “as notas fiscais relativas a BVs, por dizerem respeito a negociações privadas entre elas e seus fornecedores, nada tinham a ver com seus contratos firmados com o Banco do Brasil” e não estavam contempladas entre os documentos que poderiam ser fiscalizados pelo banco.

As defesas de Pizzolato e Valério mostraram nos autos, com testemunhos importantes – de vários destacados profissionais do meio de comunicação e marketing –, que o Ministério Público tinha feito uma interpretação equivoca-da do BV. Todos afirmaram que o BV não pertence à empresa contratante (no caso, o BB), e sim à agência de publi-cidade. Uma dessas testemunhas foi o diretor-geral da Rede Globo, Octávio Florisbal, que criou o BV no mercado de propaganda e marketing brasileiro. Ele disse que “praticamente todos os veículos impedem que a agência repasse esses volumes ou esses valores para os anunciantes”: “No caso específico da empresa em que eu trabalho, toda vez que nós temos conhecimento de que uma determinada agência está repas-sando a bonificação de volume para um determinado anunciante, nós sus-pendemos esse plano, porque esse não é o objetivo”. Florisbal citou normas do mercado de publicidade, decisões e acordo recente “entre anunciantes, agências e veículos” para comprovar que o BV é “direito da agência e não deve ser repassado aos anunciantes, sejam da iniciativa privada, sejam anunciantes de estatais”.

Barbosa, o relator do julgamento do mensalão, citou diversas vezes, para condenar Pizzolato, os termos do

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contrato entre o BB e a DNA. Leu um dos seus itens, que diz que a agência deveria “envidar esforços para obter as melhores condições nas negociações junto a terceiros e transferir, integral-mente, ao banco, os descontos especiais (além dos normais previstos em tabelas), bonifi cações, reaplicações, prazos espe-ciais de pagamento e outras vantagens”. As bonifi cações citadas no contrato, diz Lobato, são as tais “bonifi cações de mídia” oferecidas pelos fornecedores para estimular vendas por períodos mais longos.

No TCU, ao analisar o caso DNA–BB, a ministra Ana Arraes considerou regular o fato de a agência fi car com o BV. Tomou como base a Lei 12.232, sancionada em 2010, que autoriza isso explicitamente, em dois artigos, um deles referindo-se a contratos encerra-dos antes de a lei entrar em vigor. Ela tomou por base a votação de processos idênticos, fi rmados pelo BB com outras empresas, relatados pelo ministro do TCU Marcos Vinicios Vilaça. Ao funda-mentar essa decisão o ministro afi rmou: “Além de inútil na prática, a quantifi ca-ção de BV é algo impossível de contro-lar, porque o prêmio depende, primeiro, da política de incentivos do ofertante e, segundo, dos investimentos feitos à ordem de outros contratos que a agência possui. Tenho assistido, perplexo, ao Tribunal orientar as entidades públicas a efetuarem auditorias em agências de publicidade para apuração do bônus de

Quanto ao grande peculato, o desvio de 73,8 milhões de reais do BB para Valério, que teria sido feito sob o comando de Pi-zzolato, tanto o relator Joaquim Barbosa como o revisor Ricardo Lewandowski apresentaram em seus votos para os nove colegas do STF um cenário abso-lutamente incrível. Entre 2003 e 2004, no cargo de diretor do BB, Pizzolato teria comandado, sozinho, o desvio daqueles milhões de reais do banco para a agência de publicidade DNA, principalmente

na forma de adiantamentos, sem que se tenha comprovado a realização de qual-quer propaganda ou promoção. Também isoladamente ele teria prorrogado um contrato de publicidade com a DNA, no período de abril a setembro de 2003. E, além disso, sem qualquer processo licitatório, Pizzolato teria dado a conta de publicidade do Banco Popular, lan-çado na época pelo BB, para a mesma agência do operador do mensalão, como se fosse o dono de uma espécie de “casa

O DESVIO NA “CASA DA MÃE JOANA”A se acreditar nas descrições do relator e do revisor da AP 470, Pizzolato teria tirado 73,8 milhões de reais do BB na “mão grande”

volume. Não vejo cabimento nisso”.O fato é que a Lei 12.232/2010,

que dispõe sobre as normas gerais para licitação e contratação de serviços de publicidade pela União, foi editada para regulamentar o que já existia nas relações de fato entre agências e anun-ciantes públicos e privados. O projeto que deu origem à lei é do então depu-tado e hoje ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. É de 2008 e legaliza a retenção, pelas agências, dos BVs nos contratos com as empresas estatais. O projeto aprovado foi o emendado pelos parlamentares Milton Monti (PR–SP) e Claudio Vignati (PT–SC). Vignati diz que a emenda foi pedida pelo setor de publicidade, porque as agências sempre retiveram na prática os BVs. Para sanar

a polêmica que havia, o que era “uso e costume” foi colocado na lei. O minis-tro Ayres Britto, presidente do STF, ao condenar Pizzolato e Valério, saiu-se com uma proposta disparatada: atacou a lei feita pelo Congresso: “Essa lei foi preparada intencionalmente, maquina-damente, para coonestar com os autos desta Ação Penal 470”. Para Britto, a lei “é um atentado descarado ao artigo 5º, inciso 36, da Constituição, que fala do princípio de segurança jurídica, dispo-sitivo que é verdadeira cláusula pétrea”.

O presidente da suprema corte, ago-ra, além de dar sentença, parece querer mandar o Congresso fazer nova lei. E revisar dezenas e dezenas de contratos feitos pelas estatais, que respeitaram os BVs nas últimas décadas.

Ana Arraes, no centro da foto, o ministro Vilaça, à esquerda, e Ayres Britto, à direita: pelo TCU, ela reafirmou as regras e ele considerou que era absurdo ser diferente. Já o presidente do STF se rebelou contra a lei

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Barbosa e Lewandowski ignoraram também a auditoria do BB, já citada, feita por 20 técnicos ao longo de quatro meses. Ela, como vimos, mostra que os recursos usados pelo banco para publicidade dos cartões de bandeira Visa foram geridos por Pizzolato basicamente como o ha-viam sido nos anos 2001–2003. Entre 2001 e 2004, dos cerca de 150 milhões de reais pagos pela CBMP para ações de incentivo ao uso dos cartões de bandeira Visa do BB, tanto no período 2001–2002, quando foram usados 60 milhões de reais, como nos anos 2003 e 2004, quando se usaram 90 milhões de reais, sempre cerca de 80% dos recursos foram antecipados pela CBMP, a pedido do BB, para as agências de publicidade contratadas pelo banco.

As antecipações, mostrou o trabalho dos auditores, tanto as de 2001–2002 como as de 2003–2004, foram repassadas às agências de publicidade contra a apre-sentação de documentos fiscais no valor global das ações. No caso das do período 2001–2002, no documento do BB que pedia as antecipações constava o valor de cada ação. No caso das de 2003–2004, o valor de cada ação era apresentado em 93 ações de incentivos distintas, cada uma de-las “descritas em nota técnica específica”, em documento da Dimac.

O relator também não mencionou o fato de na gestão de Pizzolato terem sido introduzidas melhorias no controle dos gastos nem citou um fato que obviamente deveria ser de seu amplo conhecimento, por constar de um documento encami-nhado a ele pelo defensor de Valério, Mar-celo Leonardo. O documento mostra que, em 17 de janeiro de 2006, o então gerente executivo de atendimento e controle do BB, Rogério Souza de Oliveira, informou à DNA que havia um saldo negativo de pouco mais de 2 milhões de reais de des-pesas realizadas até 14 de dezembro de 2004, sobre o qual era necessário que a agência prestasse contas. No documento, Leonardo contra-argumentou dizendo que os gastos efetuados em ações de incentivo de interesse do BB–Visanet em 2005 foram de 12,9 milhões de reais e que, portanto, existe uma diferença, não da DNA para o BB, mas do BB para a DNA.

Leonardo disse ainda que a maior parte dos recursos repassados pela Vi-sanet, em torno de 66%, foi empregada no pagamento de veiculação junto às maiores empresas de mídia do País. Ele apresentou uma relação de pagamentos feitos pela agência, com o número das

Barbosa inventou quedepoimentos

de amigosnão valem. Deonde ele tirou

essa regra?

da mãe Joana” gigante e pudesse decidir tudo sozinho.

No caso das quatro notas técnicas de liberação de recursos para a DNA apresentadas por Barbosa para incrimi-nar Pizzolato, o comitê de marketing da Visanet examinou todas as suas ações e as aprovou. Essas notas técnicas são planos de trabalho elaborados pelos gerentes exe-cutivos das áreas de varejo e publicidade do banco que recebem o “de acordo” dos diretores dessas áreas. No caso das notas apontadas como ilegais, em todas elas Pizzolato apenas deu o seu “de acordo” em conjunto com os demais diretores. Além disso, apesar de Barbosa descon-siderar o fato, todas tinham, no mínimo, a assinatura dos dois gerentes executivos dos comitês de marketing do BB – Cláudio de Castro Vasconcelos e Douglas Macedo – e dos dois diretores das áreas de varejo e marketing – respectivamente, Fernando Barbosa de Oliveira e Pizzolato.

Como o dinheiro do fundo Visanet é considerado privado, conforme as inter-pretações tanto do BB como da Visanet, em seu voto para incriminar Pizzolato, Barbosa disse que não importava se os recursos eram públicos ou privados, mas, sim, que Pizzolato tinha a posse deles e os desviou em benefício da DNA e em prejuízo dos cofres públicos. E deu o exemplo do peculato do carcereiro, que trabalha em uma cadeia pública, mas rouba os pertences dos presos, que são privados.

“Mas e se o dinheiro estivesse na con-ta corrente do preso?”, diz o advogado Lobato. “O carcereiro conseguiria tocar no dinheiro? Não, o dinheiro só sairia de lá se o próprio preso, ou seu representante legal, o retirasse. É o que acontece no caso do Pizzolato. O dinheiro não estava no BB e só quem podia tirá-lo do fundo Visanet eram os representantes legais do BB junto ao fundo. Pizzolato não tinha essa representação; logo, não tinha a posse do dinheiro”, disse Lobato.

Barbosa insistiu em dizer que Pizzo-lato autorizava sozinho os adiantamentos de recursos para a DNA, desconsideran-do todos os depoimentos em juízo de dirigentes do BB que trabalhavam com ele e que testemunharam em sua defesa. Vas-concelos, funcionário do BB por 25 anos, que trabalhou na Dimac, reconheceu sua assinatura em algumas notas e esclareceu: “No Banco do Brasil não existem deci-sões individualizadas. Todas as decisões são por comitê. Então, a primeira decisão é da divisão, depois vai para a gerência

executiva, para a diretoria e, dependendo do valor, pode subir ao Conselho Diretor do banco. Rapidamente, pelo que eu vi, essa nota foi submetida ao Conselho Di-retor do Banco do Brasil, pelo valor do dispêndio. Ela foi primeiro aprovada no comitê da Diretoria de Marketing, depois no Comitê de Comunicação, de que fazem parte outros diretores da empresa, e, por fim, no Conselho Diretor do banco. Na diretoria de Marketing, quatro pessoas; no Comitê de Comunicação, se não me engano, são nove diretores; no Conselho Diretor do banco tenho a impressão de que são o presidente e mais sete vice-presidentes”.

“Em algum caso era possível a Henrique Pizzolato assinar e autorizar sozinho qualquer verba de publicidade e propaganda, seja verba do Banco do Brasil, seja da Visanet?”, quis saber Lo-bato. Vasconcelos respondeu: “Como

eu disse anteriormente, as decisões são todas colegiadas. Nem o presidente do banco toma decisões isoladas”. Esse re-gime colegiado foi instituído no BB em 1995, quando o banco foi reestruturado, durante o governo FHC.

Vasconcelos confirmou ainda “o sucesso das campanhas publicitárias desenvolvidas pela DNA, que coloca-ram o Banco do Brasil na liderança do faturamento de cartões de crédito entre os bancos associados à Visanet”. Um indício de que a publicidade foi realizada e, como disse Vasconcelos, com sucesso, está no aumento do volume de negó-cios dos cartões emitidos pelo BB com bandeira Visa. Esse volume cresceu em média 35% no período de 2001 a 2004, enquanto o mercado teve aumento de 29% no mesmo período.

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Não ter contrato da DNA

com a Visanet também foi

decisão de 2001. Não foi ideiade Pizzolato

SOBROU APENAS PIZZOLATOCinco foram indiciados pela CPMI. Gushiken saiu, porque já havia um chefe da quadrilha política. E saíram os três do governo FHC. Porque atrapalhavam a tese do mensalão petista

FERNANDO BARBOSA OLIVEIRA

Diretor de Varejo do BB

CLÁUDIO VASCONCELOS

Gerente executivo no BB

DOUGLAS MACEDOGerente executivo no BB

INDICIADO PELA

CPMI DOS CORREIOS

DENUNCIADO PELAPGR

CONDENADO POR

BARBOSA

HENRIQUEPIZZOLATO

Diretor de Comunicaçãoe Marketing do BB

LUIZ GUSHIKENministro da secretaria

de Comunicação Social eAssuntos Estratégicos

do governo Lula

notas fi scais emitidas para fornecedores, os valores e as comissões devidas à DNA, em que os maiores valores são pagos às emissoras de TV Globo, Record, SBT e Bandeirantes, além de várias agências de publicidade subcontratadas, como a D+, a Meta 29, a Ogilvy e a Markplan, além de casas de show, da BBTur – Viagens e Turismo e outras empresas.

A denúncia diz ainda que, embora o BB tenha contratado três agências para cuidar da publicidade, apenas a DNA foi benefi ciada com antecipações de recursos.

Isso é falso, diz Lobato. Em 2001–2002 foram feitas antecipações para todas as empresas de publicidade do BB que prestavam serviços de promoção dos cartões Visa. No segundo semestre de 2002, ainda sob o governo FHC, a direção do banco reestruturou os negócios de publicidade em três pilares: para o varejo, responsável pelos negócios da pessoa física; para o atacado, com os negócios de pessoas jurídicas; e para o governo, que trata de negócios com prefeituras, câmaras municipais, assembleias estaduais, estados e órgãos públicos. Decidiu-se que cada uma das três grandes agências publicitá-rias que à época prestavam serviços para o BB fi caria com um desses pilares: a Lowe, com a área de governo; a Grottera, com o atacado; e a DNA, que já prestava serviços ao banco havia quase dez anos, fi caria com o varejo, no qual estava o trabalho de promoção dos cartões de bandeira Visa.

O ministro Barbosa considerou grave, fi nalmente, o fato de não existir contrato entre a Visanet e a DNA. O Instituto Nacional de Criminalística pediu à Visa-net esse contrato, em 2006. A empresa respondeu que ele não existia, porque os recursos para as ações planejadas pelo

BB para promover os cartões Visa eram pagos por ela diretamente aos respectivos fornecedores contratados, cotados e ne-gociados pelo próprio BB. Se a Visanet não tinha contrato formal com a DNA, embora se benefi ciasse com a publicidade de venda desses cartões pelo BB, tampou-co o BB tinha contrato com a Visanet. Um parecer do departamento jurídico do banco, de agosto de 2004, que se encontra nos autos da AP 470, explica que o fundo de incentivos da Visanet não foi criado,

em 2001 , por um convênio entre o BB e a Visanet, mas, sim, feito por “uma decla-ração unilateral de vontade” da empresa de cartões, que se dispôs a pagar as ações de incentivo ao uso dos cartões, desde que elas atendessem às condições previstas em seu regulamento. O parecer diz ainda que a forma escolhida pelo BB, de não fazer passar os recursos pelo orçamento do banco, era a melhor do ponto de vista tributário e não criava problemas com

a Receita Federal. Em suma, não havia contrato entre DNA e BB para serviços de promoção dos cartões Visa porque isso implicaria desvantagens fi scais para o BB. E isso não foi uma ideia de Pizzolato, mas do departamento jurídico do BB.

Por último, o relator Barbosa não considerou relevante que só Pizzolato, dos quatros signatários das notas técnicas que formalizariam o suposto desvio de 73,8 milhões de reais do BB para Valério, foi denunciado pelos dois procuradores-gerais, Souza e Gurgel. Como o desvio não foi provado, pela argumentação que acaba de ser exposta, isso não seria um problema maior. O problema é que a ar-gumentação exposta neste artigo consta dos autos, mas não foi usada por Barbo-sa. Talvez porque ele, na maior parte do tempo, estivesse tomado por uma “fúria acusatória”, como disseram os jornalistas Marcelo Coelho e Janio de Freitas, em artigos publicados pelo diário Folha de S.Paulo, e Tereza Cruvinel, do Correio Braziliense. Ou talvez porque, como disse o sociólogo Wanderley Guilherme dos Santos, “o ministro Joaquim Barbosa, em uma de suas inovações, declarou, fora dos autos, que iria desconsiderar vários depoimentos dados em relação ao PT e a alguns dos acusados porque haviam sido emitidos por amigos, colegas de Parlamento, mas considerou outros depoimentos. A lei não diz isso, não há fundamento disso em lei. Um ministro diz que vai desconsiderar depoimentos porque são de pessoas conhecidas como amigas dos réus, mas pinça outros, e ninguém na Corte considera isso uma aberração? Parece-me que o julgamento terminará por ser um julgamento de exceção”.

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