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Asad - A construção da religião como uma categoria antropológica Gostaria de examinar as maneiras como a busca teórica por uma essência da religião nos convida a separá-la conceitualmente do domínio do poder. Farei isto ao explorar a definição universalista de religião oferecida por um eminente antropólogo: “Religião como sistema cultural”, de Clifford Geertz. Minha intenção neste capítulo é tentar identificar algumas das alterações históricas envolvidas no processo de produção de nosso conceito de religião como o conceito de uma essência trans-histórica – e o artigo de Geertz servirá apenas como meu ponto de partida. Faz parte do meu argumento básico que as formas, as pré-condições e os efeitos socialmente identificáveis daquilo que era considerado religião durante a época cristã medieval eram muito diferentes dos [efeitos, pré-condições e formas] que são considerados religião na sociedade moderna. Eram diferentes as maneiras pelas quais esse poder criava e atravessava instituições jurídicas; eram diferentes as subjetividades [selves] que ele formava e às quais se reportava; eram diferentes as categorias de conhecimento que ele autorizava e tornava disponível. O meu argumento é que não pode haver uma definição universal de religião, não apenas porque seus elementos constituintes e suas relações são historicamente específicos, mas porque esta definição é ela mesma o produto histórico de processos discursivos. Uma definição universal (i.e., antropológica) é, no entanto, exatamente aquilo que Geertz pretende: uma religião, ele propõe, é (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosos, penetrantes e duradouros ânimos e motivações nos homens através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas

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Asad - A construção da religião como uma categoria antropológica

Gostaria de examinar as maneiras como a busca teórica por uma essência da religião nos convida a

separá-la conceitualmente do domínio do poder. Farei isto ao explorar a definição universalista de

religião oferecida por um eminente antropólogo: “Religião como sistema cultural”, de Clifford Geertz.

Minha intenção neste capítulo é tentar identificar algumas das alterações históricas envolvidas no

processo de produção de nosso conceito de religião como o conceito de uma essência trans-histórica –

e o artigo de Geertz servirá apenas como meu ponto de partida.

Faz parte do meu argumento básico que as formas, as pré-condições e os efeitos socialmente

identificáveis daquilo que era considerado religião durante a época cristã medieval eram muito

diferentes dos [efeitos, pré-condições e formas] que são considerados religião na sociedade moderna.

Eram diferentes as maneiras pelas quais esse poder criava e atravessava instituições jurídicas; eram

diferentes as subjetividades [selves] que ele formava e às quais se reportava; eram diferentes as

categorias de conhecimento que ele autorizava e tornava disponível.

O meu argumento é que não pode haver uma definição universal de religião, não apenas porque seus

elementos constituintes e suas relações são historicamente específicos, mas porque esta definição é ela

mesma o produto histórico de processos discursivos. Uma definição universal (i.e., antropológica) é, no

entanto, exatamente aquilo que Geertz pretende: uma religião, ele propõe, é (1) um sistema de

símbolos que atua para (2) estabelecer poderosos, penetrantes e duradouros ânimos e motivações nos

homens através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas

concepções com tal aura de factualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente

realistas.

A seguir, examino esta definição não apenas com a finalidade de testar suas proposições

interconectadas, mas também para dar substância à alegação em contrário de que uma definição trans-

histórica de religião não é viável.

O conceito de símbolo como uma pista para a essência da religião

Geertz percebe como sua primeira tarefa a definição do conceito de símbolo: “qualquer objeto, ato,

acontecimento, qualidade ou relação que serve como vínculo a uma concepção – a concepção é o

‘significado’ do símbolo”. Mas esta afirmação clara e simples – na qual símbolo (qualquer objeto, etc.) é

diferenciado de, mas conectado à concepção (seu significado) –, é posteriormente suplementada por

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outras que não são inteiramente consistentes com ela, pois o símbolo não é um objeto que serve como

veículo para uma concepção: ele é a própria concepção.

Geertz parece sugerir em algumas ocasiões que, mesmo como uma concepção, um símbolo tem uma

conexão intrínseca com eventos empíricos. Em outras ocasiões, entretanto, ele enfatiza a importância

de se manterem símbolos e objetos empíricos bem separados. Com isso, “símbolo” é, às vezes, um

aspecto da realidade e, em outras, de sua representação.

Porém, o símbolo não é um objeto ou evento que serve como veículo para um significado, mas um

conjunto de relações entre objetos ou eventos agregados singularmente como complexos ou conceitos,

tendo ao mesmo tempo significância intelectual, instrumental e emocional.

Vygotsky já nos mostrara como o desenvolvimento do intelecto infantil depende da internalização da

fala social. Isso significa que a formação daquilo que chamamos, aqui, de “símbolos” (complexos,

conceitos) é condicionada pelas relações sociais com as quais a criança em crescimento se envolve –

pelas atividades sociais que a ele ou a ela são permitidas, encorajadas, ou obrigadas a realizar – nas

quais outros símbolos (fala e movimentos significativos) são cruciais. O que se está argumentando é

que o status autoritativo das representações/discursos é dependente da produção adequada de outras

representações/discursos; ambos estão intrinsecamente, e não apenas temporalmente conectados.

Sistemas de símbolos, afirma Geertz, são também padrões culturais, e constituem “fontes extrínsecas

de informações”. Extrínsecas, porque “estão fora dos limites do organismo do indivíduo e, como tal,

nesse mundo intersubjetivo de compreensões comuns no qual nascem todos os indivíduos”. E são

fontes de informação no sentido de que “eles fornecem um diagrama ou gabarito em termos do qual se

pode dar forma definida a processos externos a eles mesmos”. Portanto, nos é dito que padrões

culturais podem ser pensados como “modelos para a realidade” assim como “modelos da realidade”.

Infelizmente, Geertz rapidamente regressa à sua posição anterior: “padrões culturais têm um aspecto

duplo, intrínseco – eles dão significado, isto é, uma forma conceptual objetiva, à realidade social e

psicológica, modelando-se em conformidade a ela e ao mesmo tempo modelando-a a eles mesmos”.

Essa tendência supostamente dialética em direção ao isomorfismo acaba por tornar difícil o

entendimento de como a mudança social pode vir a acontecer. O problema básico, no entanto, não

está na ideia das imagens espelhadas em si, mas na suposição de que existem dois níveis separados em

interação: o cultural, de um lado (consistindo em símbolos), e o social e psicológico, do outro.

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Ao adotar essa teoria, Geertz se distancia de uma noção de símbolos que são intrínsecos às práticas de

organização e significação, e retorna a uma noção de símbolo como objetos que carregam significados,

externos às condições sociais e aos estados subjetivos [self] (“realidade social e psicológica”).

Ele também afirma que os símbolos religiosos agem “induzindo o crente a um certo conjunto de

disposições (tendências, capacidades, propensões, habilidades, hábitos, compromissos, inclinações)

que emprestam um caráter crônico ao fluxo de sua atividade e à qualidade da sua experiência”. Aqui,

uma vez mais, símbolos são separados de estados mentais.

Além disso, Asad se pergunta quão plausíveis são essas proposições? Podemos, por exemplo, prever

qual seria o conjunto de disposições “distintivas” de um devoto cristão na sociedade industrial

moderna? De modo alternativo, podemos dizer de alguém dotado de um conjunto de disposições

“distintivas” que ele é ou não é cristão? A resposta a ambas as interrogações certamente deve ser não.

A razão, sem dúvida, é que não é apenas a devoção, mas as instituições sociais, políticas e econômicas

em geral, no interior das quais as biografias individuais são vividas, que conferem estabilidade ao fluxo

de atividades de um cristão e à qualidade de sua experiência.

A fórmula de Geertz não é demasiadamente simples para acomodar a força deste simbolismo religioso?

Note-se que aqui não são apenas os símbolos que implantam disposições verdadeiramente cristãs, mas

o poder – que vai das leis (imperial e eclesiástica) e outras sanções (o fogo do inferno, a morte, a

salvação, a boa reputação, a paz) às atividades disciplinares das instituições sociais (família, escola,

cidade, igreja) e dos corpos humanos (jejum, prece, obediência, penitência). Para Agostinho era

bastante claro que o poder, efeito de toda uma rede de práticas motivadas, assume uma forma

religiosa em razão do fim a que se dirige, pois os eventos humanos são instrumentos de Deus. Não foi a

mente que se moveu espontaneamente em direção à verdade religiosa; foi o poder que criou as

condições para que esta verdade fosse experimentada. Os discursos e práticas particulares deveriam

ser sistematicamente excluídos, proibidos, denunciados – tornados, tanto quanto possível,

impensáveis; outros deveriam ser incluídos, permitidos, celebrados e inseridos na narrativa da verdade

sagrada.

Da leitura de símbolos à análise de Práticas

Uma consequência de supor que existe um sistema simbólico separado das práticas é que distinções

importantes são obscurecidas ou, até mesmo, explicitamente negadas. “Não deve causar qualquer

surpresa o fato de que os símbolos ou sistemas de símbolos que induzem e definem as disposições que

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estabelecemos como religiosas e aqueles que colocam essas disposições num arcabouço cósmico são,

na verdade, os mesmos símbolos”.

Mas de fato isto surpreende! Vamos assumir que disposições religiosas dependam crucialmente de

certos símbolos religiosos, que tais símbolos operam de modo integral nas motivações e ânimos

religiosos. Mesmo assim, o processo simbólico através do qual os conceitos de motivações e ânimos

religiosos são inseridos em “um arcabouço cósmico” é certamente uma operação bastante distinta e,

portanto, os signos envolvidos são bastante distintos.

Cristãos cuidadosos admitiriam que, apesar da teologia ter uma função essencial, o discurso teológico

não necessariamente induz disposições religiosas, e que, inversamente, ter disposições religiosas não

necessariamente depende de uma concepção cristalina do arcabouço cósmico por parte do ator

religioso. Discurso envolvido em prática não se confunde com discurso envolvido em falar sobre a

prática. É uma ideia moderna a de que um praticante não sabe como viver religiosamente sem ser

capaz de articular esse saber.

A razão pela qual Geertz mistura os dois tipos de processo discursivo parece resultar de um desejo de

distinguir entre disposições seculares e religiosas. A afirmação citada acima é elaborada do seguinte

modo: “Do contrário, o que poderia significar dizermos que uma disposição particular de temor é

religiosa e não secular, a não ser que ela surge de uma concepção totalmente impregnada de

vitalidade, como a do mana, e não de uma visita ao Grand Canyon? Ou que um caso particular de

ascetismo é exemplo de motivação religiosa, a não ser que ele se propõe a realizar um fim incondicional

como o nirvana, e não um fim condicionado como a redução do peso? Se os símbolos sagrados não

induzissem a disposições nos seres humanos e ao mesmo tempo não formulassem ideias gerais de

ordem, (...) então não existiria a diferenciação empírica da atividade religiosa. Ou da experiência

religiosa”.

O argumento de que uma disposição particular é religiosa em parte porque ela ocupa um lugar

conceitual no interior de um arcabouço cósmico parece plausível, mas apenas porque ela pressupõe

uma questão que deve ser explicitada: como os processos autoritativos representam práticas,

enunciados ou disposições de modo a poderem ser relacionados discursivamente a ideias gerais

(cósmicas) sobre a ordem? Em suma, a questão pertence ao processo autoritativo através do qual a

“religião” é criada. A Igreja medieval sempre foi clara sobre o motivo da necessidade contínua de

distinguir o conhecimento da falsidade, assim como o sagrado do profano, distinções cuja prova

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derradeira eram os discursos autoritativos, os ensinamentos e práticas da Igreja, e não as convicções do

praticante.

A construção da religião no início da Modernidade europeia

O que aparece aos antropólogos de hoje como autoevidente, isto é, que a religião é essencialmente

uma questão de significados simbólicos ligados a ideias de ordem geral (expressos através de ritos e/ou

doutrinas), que ela tem funções/características genéricas, e que ela não deve ser confundida com

nenhuma outra de suas formas históricas ou culturais particulares, é de fato uma visão que tem uma

história cristã especifica. De um conjunto concreto de regras práticas ancoradas em processos

específicos de poder e conhecimento, a religião se tornou abstraída e universalizada.

Neste movimento, o que temos não é um mero aumento da tolerância religiosa e nem certamente

apenas uma nova descoberta científica, mas a modificação de um conceito e uma série de práticas

sociais que é, ela mesma, parte de uma mudança mais ampla na paisagem moderna do poder e do

conhecimento. Essa alteração incluiu um novo tipo de Estado, um novo tipo de ciência e um novo tipo

de sujeito jurídico e moral.

Religião enquanto significado e os significados religiosos

A equação entre dois níveis de discurso (símbolos que induzem disposições e outros que inserem tais

disposições discursivamente em um arcabouço cósmico) não é o único aspecto problemático dessa

parte do argumento de Geertz. Ele também parece assumir, inadvertidamente, o ponto de vista da

teologia. Isto acontece quando Geertz insiste na primazia do significado em detrimento dos processos

através dos quais os significados são construídos.

Quais tipos de afirmação, de significado, devem ser identificados a uma prática de modo que ela seja

qualificada como religião? De acordo com Geertz, é porque todo ser humano tem profunda

necessidade de uma ordem geral de existência que os símbolos religiosos funcionam para satisfazer

essa necessidade.

Conclui-se que os seres humanos têm um pavor profundo da desordem: “Há pelo menos três pontos

nos quais o caos – um tumulto de acontecimentos ao qual faltam não apenas interpretações, mas

interpretabilidade. – ameaça o homem: nos limites de sua capacidade analítica, nos limites de seu

poder de suportar e nos limites de sua introspecção moral”.

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É função dos símbolos religiosos lidar com ameaças à ordem percebidas em cada uma dessas

dimensões (intelectual, física e moral): “O Problema do Significado em cada um dos seus aspectos de

transição (...) é matéria para afirmar, ou pelo menos reconhecer, a inescapabilidade da ignorância, da

dor e da injustiça no plano humano enquanto nega, simultaneamente, que essas irracionalidades sejam

características do mundo como um todo. E é justamente em termos de um simbolismo religioso, um

simbolismo que relaciona a esfera da existência do homem a uma esfera mais ampla dentro da qual se

concebe que ele repouse, que tanto a afirmação como a negação são feitas”.

Notem como o raciocínio agora parece ter mudado suas bases de uma defesa de que a religião deve

afirmar algo específico acerca da natureza da realidade (ainda que obscuro, raso, ou perverso) para

uma sugestão insípida que a religião é, em última instância, uma questão de como cultivar uma atitude

positiva em relação ao problema da desordem, de afirmar simplesmente que, em um ou em outro

sentido, o mundo como um todo é explicável, justificável, suportável. Essa visão modesta da religião é

produto do único espaço legítimo permitido ao cristianismo pela sociedade pós-iluminista, o direito à

crença individual.

A condição humana é cheia de ignorância, dor e injustiça, e os símbolos religiosos são um meio para

encarar essa condição de forma positiva. Uma consequência é que esta visão, a princípio, tomaria

qualquer filosofia que realizasse tal função como religião.

No entanto, Geertz tem muito mais a dizer acerca da fugidia questão do significado religioso: os

símbolos religiosos não apenas formulam concepções sobre uma ordem geral da existência; eles

também investem essas concepções de uma aura de fatualidade. Este, nos dizem, é “o problema da

crença”. A crença religiosa sempre envolve “uma aceitação prévia da autoridade” que transforma a

experiência: “A existência da perplexidade, da dor e do paradoxo moral – do Problema do Significado –

é uma das coisas que impulsionam os homens para a crença em deuses, demônios, espíritos, princípios

totêmicos ou a eficácia espiritual do canibalismo (...), mas essa não é a base onde repousam tais

crenças, e sim seu campo de aplicação mais importante”.

Esta posição parece assumir que crenças religiosas existem de modo independente das condições

mundanas que produzem perplexidade, dor e paradoxo moral, mesmo que a crença seja primariamente

um modo de vir a termos com elas. Mas isto é certamente um erro, tanto a partir da lógica quanto da

história, já que as mudanças no objeto da crença mudam essa crença; e enquanto o mundo muda,

assim o fazem os objetos da crença e as formas específicas de perplexidade e paradoxo moral

pertencentes a este mundo.

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Aquilo em que o cristão acredita hoje sobre Deus, vida após a morte e o universo, não é aquilo em que

ele acreditava há um milênio – tampouco é igual à maneira como ele responde à ignorância, dor e

injustiça hoje e naquele tempo. A valorização medieval da dor como modo de participação no

sofrimento de Cristo contrasta radicalmente com a percepção católica moderna da dor como um mal a

ser combatido e superado, assim como Cristo, aquele que Cura, o fez. A diferença está claramente

conectada à secularização pós-iluminista da sociedade Ocidental e à linguagem moral que esta

sociedade agora autoriza.

O tratamento de Geertz da crença religiosa, que se encontra no âmago de sua concepção de religião, é

um modo cristão privatizado e moderno, na medida em que ele enfatiza a prioridade da crença

enquanto um estado mental ao invés de um corpo de saberes práticos. Para um cristão do século XII,

por exemplo, conhecimento e crença não estavam tão claramente em conflito, ao contrário, a crença

cristã teria de ser construída com base no conhecimento. Penso que não é imprudente argumentar que

“o axioma básico” subjacente ao que Geertz chama de “a perspectiva religiosa” não é o mesmo em

toda parte.

A religião como perspectiva

O vocabulário fenomenológico que Geertz emprega levanta duas questões interessantes: uma se refere

a sua coerência e outra à sua adequação à moderna noção cognitivista de religião.

Assim, dizem-nos que a “perspectiva religiosa” é uma entre muitas outras – a científica, a estética e a

do senso comum. Não seria difícil expressar uma discordância com esse resumo sobre os assuntos de

que tratam o senso comum, a ciência e a estética. Mas meu argumento aqui é que o sabor opcional

exprimido pelo termo perspectiva é certamente enganador quando aplicado igualmente à ciência e à

religião na sociedade moderna: a religião é, de fato, hoje, opcional de um modo que a ciência não é.

Práticas científicas, técnicas, conhecimentos, permeiam e criam as fibras da vida social de um modo que

a religião não mais pode igualar. Nesse sentido, a religião hoje é uma perspectiva (ou uma “atitude”,

como Geertz a chama às vezes), mas a ciência não o é. Veremos em breve as dificuldades em que o

perspectivismo de Geertz o coloca, mas antes disso eu preciso examinar sua análise da mecânica de

manutenção da realidade em funcionamento na religião.

É coerente com os argumentos anteriores sobre as funções dos símbolos religiosos o comentário de

Geertz de que “é no ritual – isto é, no comportamento consagrado – que se origina, de alguma forma,

essa convicção de que as concepções religiosas são verídicas e de que as diretivas religiosas são

corretas”. A longa passagem de onde esta citação foi retirada oscila entre especulações arbitrárias

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sobre o que acontece na consciência daqueles que conduzem cerimônias religiosas e afirmações

infundadas sobre o ritual enquanto inscrição.

Geertz postula a função ocupada pelos rituais na geração de convicção religiosa (“É nesses dramas

plásticos que os homens atingem sua fé, na medida em que a retratam”), mas como ou por que isso

acontece não é explicado em lugar algum.

O que é que garante que os participantes tomem as formas simbólicas de um modo que os conduza à fé

se a linha que separa o religioso e o não religioso não é facilmente traçada? A habilidade e a vontade de

se adotar uma perspectiva religiosa não deveria estar presente antes da performance do ritual? É

precisamente este o motivo do não funcionamento do modelo estímulo-resposta de análise de rituais.

E se este for o caso, o ritual, no sentido da performance sagrada, não pode ser o lugar onde a fé

religiosa é alcançada, mas a maneira como ela é (literalmente) atuada.

Também notei mais de uma vez a preocupação de Geertz em definir os símbolos religiosos de acordo

com critérios cognitivos e universais, para distinguir claramente a perspectiva religiosa das não

religiosas. A separação entre religião e ciência, senso comum, estética, política, e assim por diante,

permite-lhe defendê-la das acusações de irracionalidade. Se a religião tem uma perspectiva específica e

realiza uma função indispensável, ela não compete, em essência, com outras esferas e não pode,

portanto, ser acusada de gerar falsa consciência. No entanto, de certo modo esta defesa é equivocada.

Geertz observa que os símbolos religiosos criam disposições que parecem singularmente realistas. Este

é o ponto de vista do agente relativamente confiante ou de um observador cético?

Perto do fim de seu ensaio, Geertz tenta conectar, ao invés de separar, a perspectiva religiosa com a do

senso comum, e o resultado revela a ambiguidade básica de toda sua abordagem. Ele nos informa que

os indivíduos se encontram em um “movimento de ida e volta entre a perspectiva religiosa e a

perspectiva do senso comum”. Tais perspectivas são tão obviamente diferentes, ele declara, que

apenas “saltos kierkegaardianos” poderiam preencher as lacunas culturais que os separam. Logo, a

seguinte conclusão fenomenológica: “Tendo ‘pulado’ ritualmente (...) para o arcabouço de significados

que as concepções religiosas definem e, quando termina o ritual, voltado novamente para o mundo do

senso comum, um homem se modifica – a menos que, como acontece algumas vezes, a experiência

deixe de ter influência. À medida que o homem muda, muda também o mundo do senso comum, pois

ele é visto agora como uma forma parcial de uma realidade mais ampla que o corrige e o completa”

(ênfase adicionada).

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Este curioso relato acerca de perspectivas alternantes e mundos em mudança gera confusão. Não fica

claro, por exemplo, se o arcabouço religioso e o mundo do senso comum, entre os quais o indivíduo se

move, são independentes do indivíduo ou não. Muito do que Geertz havia dito no início de seu ensaio

implicaria assumir que religião e senso comum são independentes.

A citação acima também faz parecer que o mundo religioso é independente, já que ele é a fonte de uma

experiência específica para aquele que crê e, através dessa experiência, uma fonte de mudança no

mundo do senso comum: não há nenhuma sugestão de que o mundo (ou a perspectiva) religioso(a) é

de algum modo afetado(a) pela experiência no mundo do senso comum. Este último aspecto é

coerente com a abordagem fenomenológica, na qual os símbolos religiosos são sui generis,

demarcando um domínio religioso independente.

Conclusão

A conclusão de Geertz: “O estudo antropológico da religião é, portanto, uma operação em dois

estágios: no primeiro, uma análise do sistema de significados incorporado nos símbolos que formam a

religião propriamente dita e, no segundo o relacionamento desses sistemas aos processos sócio-

estruturais e psicológicos” (ênfase adicionada).

Os dois estágios propostos por Geertz são, eu sugeriria, um. Os símbolos religiosos – sejam eles

pensados em termos de comunicação ou cognição, como guias para a ação ou para expressar emoção –

não podem ser compreendidos independentemente de suas relações históricas com os símbolos não

religiosos ou de suas articulações no interior e sobre a vida social, na qual trabalho e poder são sempre

cruciais. O meu argumento, devo enfatizar, não é apenas que símbolos religiosos estão intimamente

ligados à vida social (e, portanto mudam com ela), ou que eles frequentemente apoiam o poder político

dominante (e, ocasionalmente, se opõem a ele). É que diferentes tipos de prática e discurso são

intrínsecos ao campo em que as representações religiosas (como qualquer representação) adquirem

sua identidade e sua veracidade. Desta afirmação não se conclui que os significados das práticas e

enunciações religiosas devam ser procuradas em fenômenos sociais, mas que sua possibilidade e seu

status autoritativo devem ser explicados enquanto produtos de forças e disciplinas historicamente

específicas.