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CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO UNISAL CAMPUS MARIA AUXILIADORA Marcel de Assis Roque Ressonâncias da “Lei de Libras” para a emancipação e a autonomia do Surdo: reflexões a partir da Educação Sociocomunitária Americana 2018

Ressonâncias da “Lei de Libras” para a emancipação e a ...§ão_Marcel-de... · A Língua Brasileira de Sinais (Libras) foi reconhecida pela legislação brasileira por meio

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CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO

UNISAL – CAMPUS MARIA AUXILIADORA

Marcel de Assis Roque

Ressonâncias da “Lei de Libras” para a emancipação e a autonomia do

Surdo: reflexões a partir da Educação Sociocomunitária

Americana

2018

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Marcel de Assis Roque

Ressonâncias da “Lei de Libras” para a emancipação e a autonomia do

Surdo: reflexões a partir da Educação Sociocomunitária

Dissertação apresentada como exigência

parcial para a obtenção do título de

Mestre em Educação à comissão

julgadora do Centro Universitário

Salesiano de São Paulo, sob a orientação

da Professora Doutora Maria Luísa

Amorim Costa Bissoto.

Americana

2018

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MARCEL DE ASSIS ROQUE

RESSONÂNCIAS DA “LEI DE LIBRAS” PARA A EMANCIPAÇÃO E A

AUTONOMIA DO SURDO: REFLEXÕES A PARTIR DA EDUCAÇÃO

SOCIOCOMUNITÁRIA.

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação Stricto Sensu do Centro

Universitário Salesiano de São Paulo,

como parte dos requisitos para a

obtenção do título de Mestre em

Educação – área de concentração:

Educação Sociocomunitária.

Linha de pesquisa:

A intervenção educativa

sociocomunitária: linguagem,

intersubjetividade e práxis.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Luisa

Amorim Costa Bissoto

Dissertação defendida e aprovada em____/____/______, pela comissão julgadora:

__________________________________________

Profa. Dra. Maria Inês Bacellar Monteiro – Membro Externo

Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP

__________________________________________

Prof. Dr. Antônio Carlos Miranda – Membro Interno

Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL

_________________________________________

Profa. Dra. Maria Luisa Amorim Costa Bissoto – Orientadora

Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, que ensinaram à importância da Educação, aos mestres que me

mostraram “as vidas” por trás do conhecimento, aos amigos, que dão suporte nas

escolhas e trazem paz ao coração a Daniel Ramos de Souza, meu esposo, que me

mostrou o poder transformador da convivência...

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RESUMO

Essa pesquisa visa a investigar os reflexos da Lei n° 10.436/02 e Decreto n° 5.626/05,

considerando a compreensão do Sujeito Surdo, inserido no contexto Ouvintista, quanto

ao impacto das mesmas para a sua autonomia e emancipação. Objetiva-se avaliar como

vem se dando a implementação dessa legislação, também conhecida como a “lei de

Libras”, e as ressonâncias da mesma na vida dos Surdos brasileiros, no que tange à

garantia de direitos, à sua participação mais equânime da vida social e ao seu

reconhecimento como cidadão. Avaliam-se, assim, também as concepções e as

representações sociais, que permeiam tais legislações. Buscou-se, em primeira instância,

contextualizar conceitos básicos referentes aos Surdos e suas circunstâncias de vida.

Traçamos, adicionalmente, um panorama histórico da Educação de Surdos,

contemplando aspectos nacionais e internacionais, correlacionando ao tema as filosofias

educacionais e aspectos formadores da cultura surda, como sua identidade e

empoderamento. Abordamos, numa perspectiva histórica, os estudos em linguagem no

campo da surdez, culminando com a consolidação da Língua Brasileira de Sinais

(LIBRAS). O cenário atual da Educação de Surdos e da pedagogia Surda, bem como a

legislação brasileira acerca dos direitos dos Surdos, com ênfase na lei 10.436/02, é

analisado. Metodologicamente, é uma investigação qualitativa, na perspectiva dos

estudos culturais, que teve como referencial teórico central os estudos culturais da

surdez. Os instrumentos de coleta de dados foram: a. pesquisa documental, envolvendo

as legislações acima referidas e documentos curriculares das instituições pesquisadas; b.

grupo focal, com Surdos, para discutir a visão dos mesmos sobre as legislações aqui

analisadas e seus efeitos no cotidiano da cultura surda e c. aplicação de questionários

semiestruturados para professores dos cursos de LIBRAS das instituições pesquisadas.

O intuito desses questionários foi avaliar a posição dos professores de Libras sobre essa

disciplina, suas ementas, metodologias didático-pedagógicas, carga horária, como são

tratadas as concepções de poder, emancipação e autonomia e a relevância da disciplina

nas licenciaturas. A partir desses instrumentos procedemos à triangulação dos dados,

com base na análise crítica do discurso, numa leitura pelo viés da Educação

Sociocomunitária. Como resultados podemos afirmar que a legislação analisada, se por

um lado configura um importante avanço para garantir e assegurar os direitos dos

Surdos, também se mostra falha, ineficaz ou mesmo contraproducente na proposta de

gerar a autonomia e a emancipação da comunidade Surda.

Palavras-chave: Língua de Sinais, Surdez, Emancipação, Autonomia, Legislação,

Educação Sociocomunitária.

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ABSTRACT

This research aims to investigate the reflexes of the Law n. 10.436/02 and Decree n °

5626/05, considering the understanding of the Deaf Subject inserted in the Audism

context. The objective is to evaluate how is the Libras Law being implemented, as well

as its impacts on the life of Deaf brazilians, in reference of rights guarantee, autonomy

and emancipation. Evaluates too the conceptions that permeate such laws. It was sought,

at the first instance, to contextualize basic concepts regarding the Deaf and their

circumstances. We also draw a historical overview of Deaf Education, including

national and international aspects, correlating the educational philosophies and

formative aspects of the deaf culture, such as their identity and empowerment. We

approach, in a historical perspective, the studies in language in the field of deafness,

culminating in the consolidation of the Brazilian Sign Language (LIBRAS). The current

scenario of Deaf Education and Deaf pedagogy, as well as the Brazilian legislation on

the rights of the Deaf, with emphasis on Law 10.436/02, is analyzed. Methodologically,

it is a qualitative investigation, from the perspective of cultural studies that had as

central reference the cultural studies of deafness. The instruments of data collection

were: a. documentary research, involving the above mentioned legislations, and those

curricular, of the researched institutions; B. focus group, with Deaf people, to discuss

their views on the legislation analyzed here and their effects on the daily life of deaf

culture and c. application of semi structured questionnaires for teachers of the LIBRAS

courses of the researched institutions. The purpose of these questionnaires was to

evaluate the position of Libras teachers on this subject, their menus, didactic-

pedagogical methodologies, workload, how concepts of power, emancipation and

autonomy are treated, and the relevance of the discipline in undergraduate courses.

From these instruments we proceed to the triangulation of the data, based on the critical

analysis of the discourse, through a reading based on the Socio communication

Education. As a result, we can affirm that the legislation analyzed, while on the one

hand constituted an important step towards guaranteeing the rights of the Deaf, were

also flawed, ineffective or even counterproductive in the proposal to generate autonomy

and the emancipation of the Deaf community.

Keywords: Sign Language, Deafness, Emancipation, Autonomy, Legislation, Social and

Community Education.

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LISTA DE QUADROS/GRÁFICOS

Quadro 01. Dados demográficos dos participantes do grupo focal ................................ 75 Quadro 02. Perfil dos professores da disciplina de Libras do IF do estado de são paulo

........................................................................................................................................ 83

Gráfico 01. Estratégias utilizadas no ensino de Libras ................................................... 93 Gráfico 02. Ensino de Libras x autonomia e emancipação ............................................ 98 Gráfico 03. Metodologias x realidade sociocultural ....................................................... 99 Gráfico 04. Metodologia e didática/características culturais ........................................ 101

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 8

PARTE 1 - SURDEZ E EDUCAÇÃO DE SURDOS: BREVE ESCOPO HISTÓRICO E

DESDOBRAMENTOS ATUAIS .................................................................................. 17

1.1 Historicidade da educação dos surdos no cenário mundial .................................. 18

1.2 Educação de surdos no brasil................................................................................ 28

1.3 Filosofias educacionais ......................................................................................... 32

1.4 Línguas de sinais e libras ...................................................................................... 35

1.5 Cultura, cultura surda e humor surdo ................................................................... 36

1.5.1 Do empoderamento surdo .................................................................................. 38

1.6 Cenário atual da educação de surdos .................................................................... 41

1.6.1 Reflexões sobre a pedagogia surda .................................................................... 43

PARTE 2 – A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA ATUAL ACERCA DOS DIREITOS

DOS SURDOS ............................................................................................................... 46

2.1 Direitos humanos e dignidade .............................................................................. 46

2.2 Movimentos sociais, políticas e aspectos legais ................................................... 53

PARTE 3 – DO DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA ........................................... 69

3.1. Percurso metodológico ........................................................................................ 69

3.2 Apresentação e análise dos dados referentes aos documentos, questionário e

registros do grupo focal .............................................................................................. 78

3.2.1 Documentos e normativas referentes à disciplina de libras no if ...................... 78

3.2.2 Dos dados dos questionários ............................................................................. 82

3.2.3 Dos dados do grupo focal .................................................................................. 84

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 104

REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 107

ANEXOS ...................................................................................................................... 113

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INTRODUÇÃO

Diferentes concepções sobre a pessoa Surda e sua língua foram já construídas,

histórica e socialmente. Nessas, a compreensão sobre a surdez esteve, frequentemente,

ligada à condição da função fisiológica auditiva e à estigmatização por aquilo que

“falta”: o acesso à comunicação oral. Em decorrência, os indivíduos Surdos foram

considerados como incapazes e inaptos para o convívio social e tudo aquilo a esse

relacionado: trabalho, educação, cultura, lazer etc.

Contemporaneamente, apesar dos avanços nos processos de inclusão social, a

surdez ainda é vista, por muitos, como um distúrbio que impõe um limite intelectual e

social permanente à pessoa Surda, expressando um entendimento atravessado por

concepções preconceituosas, marcadas por vieses clínicos, ou de negação sociocultural

(SKLIAR, 1997).

Numa perspectiva clínica/patológica concebe-se o Surdo enquanto pessoa

deficiente, classificando-o em graus: leve, moderado, severo e profundo. Assim, a

surdez é rotulada como patologia, que afeta algo mais que a audição, percebida como

alterando os próprios processos interativos, comunicativos e cognitivos humanos. A

negação sociocultural do Surdo, ancorada nessa perspectiva, entende-o como aquele

incapaz, ou pouco capaz, de articular-se com a cultura dominante, ouvintista. E, assim,

com poucas condições de participar da vida social, econômica, política...

Numa concepção socioantropológica da Surdez, inversamente, os Surdos são

entendidos como minoria linguística, pertencente a um grupo definido por suas

características próprias, tais como uma língua comum, de natureza viso-espacial, a

Língua de Sinais, e produção e manifestações culturais inerentes, revelando-se na

constituição de identidades e de marcadores culturais, como o senso de humor. Nessa

concepção, o Surdo é considerado um membro real ou potencial de uma comunidade

linguística minoritária, em que a visão desempenha o papel de mediadora interpretativa

do mundo. É por meio dela que tal comunidade constrói seus significados e formas de

compreender e interagir com a realidade.

O olhar cultural e antropológico desmistifica as concepções ligadas à perspectiva

clínica e ao patológico, e reforça a importância dos grupos de Surdos como aqueles

constituídos de forma identitária linguística. As abordagens teóricas que se referem à

surdez como diferença cultural, com base nos Estudos Culturais e pós-estruturalistas,

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têm inspirado pesquisas em educação, em línguas de sinais e na cultura surda,

compondo um novo campo de estudos. No entender de Skliar, constituem:

Um horizonte epistemológico na definição da surdez, no qual ela possa ser

reconhecida como uma questão de diferença política, de experiência visual,

de identidades múltiplas, um território de representações diversas que se

relaciona, mas não se refere, aos discursos sobre a deficiência (SKLIAR,

1998, p.29).

Para Strobel (2008, s/p), existe uma Cultura Surda, que pode ser definida como o

jeito de o sujeito surdo “entender o mundo e de modificá-lo a fim de torná-lo acessível e

habitável, ajustando-os com as suas percepções visuais, que contribuem para a definição

das identidades surdas e das “almas” das comunidades surdas”. Nessa perspectiva, o

ensino da língua de sinais deve levar em conta não só as particularidades linguísticas e

gramaticais da Libras, como também os aspectos culturais da comunidade surda usuária

dessa língua.

A língua é um sistema complexo com regras e elementos entrelaçados, mas é

também a expressão social de determinado grupo, de determinada compreensão do

mundo. De acordo com Quadros e Karnopp (2004, p.56), a língua de sinais,

diferentemente das línguas orais, é uma língua de modalidade viso-espacial. A

construção da estrutura das línguas de sinais é estabelecida pela visão e pela utilização

do espaço delimitado na orbitalidade do corpo.

A Língua Brasileira de Sinais (Libras) foi reconhecida pela legislação brasileira

por meio da Lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002, que a estabelece como meio legal de

comunicação e expressão das comunidades surdas brasileiras. Posteriormente, em

dezembro de 2005, entra em vigor o Decreto nº 5.626, que regulamenta a lei 10.436 e

define um conjunto de orientações relacionadas ao “uso e difusão” da Libras, sendo uma

das medidas estabelecidas, a determinação de que a Libras deva ser incluída como

disciplina obrigatória nas grades curriculares dos cursos de fonoaudiologia e

licenciaturas de todo o país.

Em conformidade com tal lei, os alunos das licenciaturas e de fonoaudiologia,

mas também de outros cursos, como aqueles das Engenharias, em caráter optativo,

passaram a ter em sua formação conhecimentos introdutórios sobre a língua de sinais e

as especificidades dos surdos e sua cultura. Consideramos que a principal vantagem da

obrigatoriedade do ensino desta disciplina está, além do aprendizado inicial da língua

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em questão, na possibilidade de suscitar importantes discussões a respeito de um grupo

específico de estudantes, os Surdos. E “marcar um espaço para a sensibilização e

necessidade de um trabalho diferenciado com pessoas surdas, dando lugar para que esta

diferença seja visível, notada, legitimada”, conforme aponta Sá (2009, p. 3).

Acrescenta-se, ainda, que esta seja uma oportunidade de empoderamento1 da

Comunidade Surda, visto que muitos surdos têm assumido as vagas de professores de

Libras nas escolas da educação básica e ensino superior de todo o país. Contudo, como

será aqui argumentado, é arriscado – ou até mesmo ingênuo- considerar que basta

apenas uma disciplina, com carga horária limitada, para contemplar as necessidades

específicas de conhecimento acerca das questões da educação de surdos. Ou da quebra

de paradigmas em relação a quem é o surdo e o papel que esse ocupa (e pode ocupar) na

sociedade. A formação do professor, suas atribuições e o papel desempenhado pela

legislação, precisam ser problematizados, não se aceitando a visão que parece vigorar, a

questão da educação dos surdos estaria resolvida com a “Lei de Libras” e

regulamentações posteriores a essa.

A repercussão do decreto 5.626/05 pôde ser observada, primeiramente, na

abertura de concursos para a cadeira de Libras nos institutos federais e nas

universidades públicas, bem como na contratação de docentes pelas instituições

privadas, e na produção de material Ead. O Ministério da Educação já incluiu como

critérios de avaliação e aprovação dos cursos superiores (Licenciaturas e

Fonoaudiologia) a inserção da disciplina de Libras na grade curricular, decorrido o

prazo de implementação proposto neste mesmo decreto.

A atuação do professor de Libras nos Institutos Federais, tópico também

abordado ao longo desta dissertação, bem como as pesquisas na área da legislação da

“Lei de Libras”, são relativamente novas, visto que o reconhecimento da Libras data de

2002. A própria ementa e a carga horária são muito distintas de um curso para outro, e

como dado encontrado nessa pesquisa, dependem muito mais das escolhas individuais

do professor, e dos arranjos institucionais dos cursos, do que de conhecimentos

baseados em pesquisas. Mesmo as metodologias e a didática de ensino, bem como o

estudo sobre elas, ainda estão pouco consolidados (GESSER, 2010). E nem existem

orientações normativas, na legislação, acerca de como deve ser ministrada essa

1 O tema do empoderamento Surdo será discutido adiante, argumentando-se que se fundamenta em alguns

componentes: o exercício de ação social; a consciência política; o “direito a voz”; o reconhecimento de si

mesmo, e de ser reconhecido - e à sua comunidade- como competente, e fazer uso do poder (BRETON,

1994).

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disciplina. Entendemos, acompanhando a perspectiva socioantropológica de

compreensão da Surdez, que o perfil do professor de Libras deve contemplar as

questões culturais e linguísticas da surdez, e, principalmente, deve estar além do

conhecimento restrito ao escopo teórico, e do limitar-se a tratar a Libras como um

“conjunto de sinais”. A experiência com a língua como forma de ação social e de

exercício de poder no mundo, componentes do empoderamento, a preocupação com a

ética em relação à diversidade cultural e com a alteridade do Surdo, que impulsionam a

consciência política, a “voz” e o sentido de auto-eficácia, devem estar inerentes a essa

formação e, consequentemente, à atuação docente.

Considerando o acima exposto, o problema da nossa investigação pode ser assim

colocado: a referida legislação, que regula o ensino de Libras, abrange a complexidade

envolvida não só no ensino da Libras, mas na própria problemática da surdez?

Lembramos que a legislação, enquanto forma de efetivar uma política pública, deve

voltar-se a responder a problematizações emersas da sociedade. Nesse sentido, a “lei de

Libras” veio ao encontro de antigas reivindicações dos Surdos. Contudo, quais

reivindicações? Entendidas sob quais perspectivas? E, sendo que a comunidade Surda

não vive em um vácuo social, como a sociedade Ouvintista vem respondendo a isso?

Após 15 anos da sua vigência, quais são os resultados alcançados, ou, ao menos,

aqueles antevistos, por essa legislação, considerando-se a questão da Cultura Surda, em

seus princípios de autonomia e empoderamento? O objetivo geral da investigação

consiste, assim, em analisar se a Lei 10.436/02 vem contribuindo para uma questão

crucial: a garantia de direitos, a emancipação e a autonomia do Surdo, dentro de uma

concepção de surdez afastada do modelo médico-normativo (deficiente) e aproximando-

se da sua concepção como minoria cultural. E, visto que o cerne da legislação é garantir

a Libras como língua oficial do Surdo, por esse meio pretendendo-se alcançar a questão

dos direitos dos Surdos, a investigação objetiva também avaliar como vem se

estruturando e efetivando a disciplina de Libras nas Licenciaturas.

Os objetivos específicos foram: a) verificar as concepções subjacentes à

disciplina de Libras no ensino superior do Instituto Federal, analisando se essas

contemplam os aspectos didáticos, metodológicos, linguísticos e culturais do ensino da

língua, como preconizado na “Lei de Libras”, e como isso vem sendo feito; b) discutir a

essencialidade de se considerar os aspectos culturais da comunidade Surda no ensino da

Libras, e como isso vem sendo contemplado no âmbito dos Institutos Federais e c.)

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conhecer as percepções da comunidade Surda sobre a “Lei de Libras” e como os efeitos

dessa vêm sendo sentidos nessa comunidade.

A partir da experiência profissional do pesquisador, e do seu papel de militância

no campo da Surdez, afirmamos aqui que para os discentes (e mesmo para alguns

docentes) da disciplina de Libras, apenas a existência e a prática dessa disciplina é

satisfatória quer para educarem os Surdos, quer para “normalizá-los”, no sentido de

torná-los aptos para aprender e apropriarem-se dos códigos da cultura vigente, de matriz

Ouvintista. A hipótese da pesquisa é a de que a exigência da disciplina de Libras, apesar

do contexto legal que a sustenta, não se mostra suficiente para efetivar o

reconhecimento social da cultura surda em sua profundidade. Acreditamos, contudo,

que a disciplina Libras pode deixar de ser vista como uma imposição das leis brasileiras

para ser reconhecida como, de fato, relevante para autonomia e o empoderamento do

Surdo ou, em outras palavras, para o reconhecimento social pleno da língua de sinais, e,

assim, de tudo o que uma língua representa em termos de produção de sentidos, cultura,

ação política e social, formas de expressão. Enfim, da construção da autonomia e

emancipação de uma comunidade e seus sujeitos. E, então, de igual valor à Língua

Portuguesa.

Segundo Caleffe e Moreira (2006) “toda pesquisa começa com uma dúvida, uma

inquietação ou um problema e é sustentada por alguns pressupostos básicos”. Nossa

inquietação partiu dos aspectos potencialmente transformadores na condição social e

educacional dos Surdos, que poderiam advir do reconhecimento legal da Língua

Brasileira de Sinais, mas que, em nosso entender, relutam em manifestarem-se.

Metodologicamente, e de forma convergente aos objetivos propostos, lançamos mão da

pesquisa qualitativa. Nesse tipo de pesquisa é possível explorar características dos

indivíduos, cenários e processos, que não podem facilmente serem descritos

numericamente. Assim, as informações coletadas se baseiam frequentemente em

recursos verbais, artefatos, documentos, registros visuais, dentre outros, por meio da sua

observação e descrição (CALEFFE; MOREIRA, 2006). No âmbito de uma investigação

qualitativa, e condizente com essa, o viés empregado é aquele dos estudos culturais, em

especial aqueles relacionados aos estudos culturais da surdez. Conforme Denzin e

Lincoln (2008, p. 250), os estudos culturais questionam as múltiplas expressões da

produção cultural como forma de fazer sentido da realidade, entendendo tais produções,

ao invés de hierarquizadas, “devem ser analisadas em relação a outras dinâmicas

culturais e estruturas sociais e históricas”. E essa análise é central à discussão aqui

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proposta, pois só é possível discutir o empoderamento social da Cultura Surda em

referência àquela ouvintista.

Coerentemente a esses pressupostos, fizemos uso de instrumentos de coleta de

dados que envolveram relações diretas com os indivíduos investigados, a saber: a.

questionário semiestruturado; b. encontros de grupo focal e c. a análise e coleta de

informações de documentos e dispositivos legais nacionais, que norteiam as práticas

referentes à Libras, tanto no cenário nacional como naquele mais específico do Instituto

Federal de São Paulo (doravante, IFSP) em seus campi, investigando como e se os

aspectos didáticos metodológicos das aulas, tais como recursos empregados, métodos de

ensino, métodos de avaliação, referencial teórico e a concepção de Surdo e de surdez

aparecem nesses documentos. E se coadunam-se com a Lei de Libras, entendida numa

proposição emancipatória do Surdo.

O questionário semiestruturado, que foi enviado para professores de Libras dos

campi do IFSP, não solicitou a identificação dos respondentes, mas apenas dados

demográficos: idade, tempo de atuação como professores de Libras, formação, tempo

que trabalha no instituto. Os dados dos questionários foram registrados em formulários

eletrônicos no Google Docs. e serão eliminados decorridos 5 anos da finalização da

pesquisa.

As perguntas foram elaboradas pelo pesquisador, e encontram-se em anexo. O

questionário foi disponibilizado para os participantes via e-mail e ficou aberto para as

respostas no período de 10/04/17 a 25/04/17. Dos 18 professores de Libras que existem

nos campi do IFSP, 15 retornaram as respostas.

O Grupo focal foi realizado em 2 etapas, com surdos com idade de 20 a 30 anos,

visando identificar como percebem as ressonâncias da Lei de Libras, naquilo que se

refere à inclusão educacional e reconhecimento social. Pela faixa etária, considerou-se

que estes participantes já passaram por um sistema educacional no qual a lei de Libras

vigora. O Grupo Focal, pela sua própria característica como meio de coleta de dados, e

pelas especificidades da surdez, foi filmado, sendo que não se fará uso público das

imagens e nem haverá identificação dos sujeitos, por qualquer forma. As questões

levantadas no Grupo focal concentraram-se no modo em como percebem a valorização

social da Cultura Surda, inclusive a partir da Lei de Libras, se conhecem tal lei, o que

pensam sobre a mesma, e se seus efeitos foram percebidos no âmbito

educacional/social. Os Surdos selecionados residem nas cidades do Vale do Aço, Minas

Gerais, especificamente nas cidades: Coronel Fabriciano, Ipatinga e Timóteo e estão

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vinculados à associação em defesa dos Surdos. Esclarecemos que foram convidados a

participar da pesquisa e informados que a participação era livre e consentida, conforme

consta no termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).

A opção da escolha da instituição para o grupo focal se deu pelo vínculo pré-

existente entre o pesquisador e a membresia da Asipa - Associação de Surdos de

Ipatinga – MG. Embora os Surdos investigados residam e se agrupem em outro estado,

partimos do pressuposto que embora o IFSP esteja especificamente em São Paulo, com

seus diversos campi, o alcance das práticas e a legislação se estendem no âmbito

federal, de modo que os dados possam ser analisados em consonância.

A devolutiva da pesquisa, que encerra o ciclo da investigação, será feita através

de palestra do pesquisador na associação de Surdos participante, de capacitação no IFSP

e da própria divulgação do trabalho em eventos acadêmicos e publicações.

A pesquisa se justifica por sua relevância em propor uma avaliação de uma base

legal, que gerou uma obrigatoriedade na estrutura curricular de vários cursos de

graduação. Além de expectativas na comunidade Surda, quanto ao encaminhamento de

antigas reivindicações. Dentre outras contribuições, a legislação aqui analisada

reconheceu direitos dos Surdos e acenou com a valorização da Cultura Surda. Por

estruturar um estudo que observe como vem se dando o cumprimento da “Lei de

Libras”, as didáticas e metodologias que vem sendo empregadas no ensino da Língua

Brasileira de Sinais, e considerando a presença da perspectiva cultural e de

empoderamento da comunidade surda e os impactos do ensino na conscientização da

sociedade em relação ao reconhecimento do Surdo como minoria linguística,

acreditamos ser possível compreender a repercussão que a referida legislação vem

tendo. Por ser um campo recente, pesquisas sobre os estudos culturais da Surdez ainda

são escassas, e investigações sobre normativas legais e políticas públicas, além daquelas

que discutam as diferentes formas de ensino da Libras para alunos ouvintes do ensino

superior, e as tensões, conflitos e impactos disso na relação da Cultura Surda com a

cultura ouvinte, são essenciais. Mostra-se relevante, também no âmbito dos IF’s,

compreender como essa disciplina vem sendo estruturada e praticada, levantando alguns

indicadores que permitam, posteriormente, realizar sua avaliação.

Outro ponto de destaque desta pesquisa está em trazer contribuições e reflexões

para os professores que atuam na disciplina de Libras no ensino superior e sobre as

melhores formas de ensino da língua para atingirem – e irem além- dos objetivos da

legislação, que sustenta tal ensino. Traz contribuições também para os formuladores dos

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currículos dos cursos superiores sobre a melhor forma – no sentido de contribuir para

um maior diálogo entre as culturas surda e ouvintista- de inserir a Libras na formação de

seus alunos.

Acredita-se que a pesquisa em questão trará contribuições para o

reconhecimento da Língua de Sinais como aquela que representa e é utilizada por uma

comunidade cultural, e que é essa concepção que precisa vigorar no ensino de Libras, e

não aquela que pensa a Libras como a instrumentalidade suficiente para a compreensão

e a “comunicação” na surdez. É ainda bastante presente o discurso de que os surdos não

possuem uma cultura, e que nem mesmo se reconheça que são capazes de constituir

uma cultura surda, pois são sujeitos com deficiência. Bem como é ainda presente o

discurso de que os surdos precisam ser reabilitados ou curados, adotando-se critérios de

normalização impostos pela sociedade. O reconhecimento da diferença linguística e

cultural dos surdos ainda é um desafio tanto nos espaços acadêmicos quanto na

sociedade (PERLIN; STROBEL, 2008).

A primeira parte do trabalho abordou a educação dos Surdos no contexto

nacional e mundial, englobando os aspectos e características da surdez e a evolução

histórica da concepção do sujeito Surdo. Inicialmente, os Surdos foram estigmatizados e

privados de seus direitos básicos, sendo considerados pessoas incapazes, inaptas e

deficientes. Tecemos a cronologia de estudos e descobertas educacionais em prol do

reconhecimento dos Surdos. Relacionado à temática, encontram-se as filosofias

educacionais, contendo as metodologias de ensino empregadas, assim como o contexto

histórico e social no qual se inserem. São descritos os conceitos de cultura Surda e

humor Surdo, entendendo-se o humor como um traço cultural preponderante (YUE et.

al, 2016), assim como as Línguas de Sinais utilizadas por estas comunidades. Finaliza-

se este tópico com a conceituação de empoderamento do indivíduo Surdo.

Na segunda parte é traçada uma cronologia das leis e avanços em direitos

educacionais, sociais e humanos em relação à Surdez, que culminaram na Lei de Libras,

lei 10.436/02. Ao abordá-la, explanam-se os aspectos da sua criação, público alvo e

objetivos.

Na terceira parte é apresentada a triangulação dos dados obtidos pelo grupo focal

com os Surdos, questionários aplicados com professores de Libras e a análise da

legislação. São investigadas as escolhas didáticas e metodológicas de professores de

Libras, que atuam no ensino superior nos IF’s, considerando o lugar que os aspectos

culturais e gramaticais da língua ocupam nesse ensino, bem como as relações de poder

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aí inseridas. A partir desta triangulação, à luz dos pressupostos dos estudos culturais da

surdez, e da educação sociocomunitária, que têm por fundamento a organização dos

sujeitos e suas comunidades para o enfrentamento de problemáticas reconhecidas por

eles como excludentes, são analisadas as repercussões da referida lei na vida e

desenvolvimento no reconhecimento dos Surdos e sua cultura.

Como resultados, esperamos compreender criticamente como a legislação vem

(ou não) legitimando os Surdos e sua língua na sociedade, de que modo as práticas

desenvolvidas no âmbito educacional têm contribuído para o reconhecimento social da

Língua de Sinais e a equidade dos alunos Surdos no acesso à educação federal.

Acreditamos que, a partir dessas análises, serão produzidos conhecimentos que

colaborarão para a autonomia e o empoderamento dos Surdos.

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PARTE 1 - SURDEZ E EDUCAÇÃO DE SURDOS: BREVE ESCOPO

HISTÓRICO E DESDOBRAMENTOS ATUAIS

Antes de iniciar a discussão aqui proposta, faz-se necessário esclarecer e

diferenciar alguns termos que serão utilizados no decorrer da dissertação.

Primeiramente, julga-se necessário diferenciar os termos “surdo”, com “s”

minúsculo, e a terminologia “Surdo” com “S” maiúsculo. O primeiro termo, surdo,

refere-se à pessoa com surdez, àquele que não é ouvinte. O segundo termo, com a grafia

Surdo, é utilizado para referir-se ao aspecto cultural e linguístico do grupo de pessoas

Surdas. Sendo assim, os autores e pesquisadores que utilizam o termo Surdo, referem-se

aqueles indivíduos que assumem sua identidade Surda, e que possivelmente são fluentes

e utilizam a Língua Brasileira de Sinais, Libras (BARROS; HORA, 2009). O termo

refere-se também aos Surdos politizados, em busca de seus direitos no meio social.

O termo surdo-mudo, vigente décadas atrás, mas ainda hoje empregado na

linguagem senso-comum, foi colocado em desuso em virtude da falta de sustentação

científica, em relação a essa nomenclatura. Outro termo considerado inadequado, no

âmbito dos estudos da surdez, é o termo deficiente auditivo. Essa terminologia é

proveniente de uma visão clínica patológica que classifica as perdas auditivas em leve,

moderada, severa e profunda. A palavra deficiente evidencia a não eficiência, que não

seria aplicada aos Surdos, que, salienta-se, são pessoas capazes e certamente eficientes.

Neste trabalho, utiliza-se a concepção socioantropológica do Surdo como indivíduo

social, participante de uma comunidade, portanto a expressão, deficiente auditivo se

mostra inapropriada.

Uma diferenciação importante consiste em definir as terminologias “povos

Surdos” e “comunidades Surdas”. Entende-se por povos Surdos o grupo de indivíduos

Surdos, que possuem seus costumes, histórias e tradições, e que constroem sua

concepção de mundo através da visão. A comunidade Surda, por sua vez, é aquele

grupo social que não é composto apenas pelos Surdos, uma vez que engloba famílias,

intérpretes, professores e grupo escolar, amigos e quaisquer outros que participem e

estejam imersos na cultura Surda (STROBEL, 2009).

Outros termos utilizados na dissertação que merecem diferenciação conceitual

são: garantia de direitos, emancipação e autonomia. A garantia de direitos se dá a partir

da articulação e integração das instâncias públicas e sociedade, visando a promover e

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defender a efetivação dos direitos dos indivíduos. A Constituição Federal de 1988 traz

os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, incluindo os direitos

individuais, coletivos e sociais. Garantir direitos, em todas as instâncias, é prezar pela

dignidade do indivíduo. Por emancipação, entende-se o ato de tornar-se livre,

independente; é romper qualquer ciclo de dependência (de alguém ou determinado

grupo), tomando-se acesso a todos os atos da vida civil. O conceito de autonomia refere-

se à capacidade do indivíduo de se governar e sustentar por si próprio, livre de qualquer

interferência externa. A autonomia determina a liberdade individual de efetivar suas

próprias escolhas, gerindo satisfatoriamente a própria vida (NOVAES, 2010).

Traçar o histórico cronológico de como se deu a educação de Surdos, no Brasil e

no mundo, se mostra relevante para entender a evolução da concepção de surdez e os

aspectos educacionais atrelados a essas transformações, que culminaram nas leis que

visam a garantir os direitos dos Surdos.

Ao se tratar do histórico da Educação dos Surdos, é imprescindível abordar as

filosofias educacionais, com suas concepções de ser humano, do que é ser normal, e do

que é educar, e as distintas metodologias associadas a essas, naquilo que se refere à

Surdez: o oralismo, a comunicação total e o bilinguismo. Esses temas serão

apresentados a seguir.

1.1 HISTORICIDADE DA EDUCAÇÃO DOS SURDOS NO CENÁRIO

MUNDIAL

Por meio do estudo da história de educação dos Surdos pode-se conhecer as

comunidades Surdas e compreender as suas realizações linguísticas, educacionais,

sociais, políticas e culturais e, como resultado, entender os acontecimentos e

transformações pelas quais as comunidades Surdas passaram, nos contextos nacional e

mundial.

Os surdos, como outros indivíduos com perfis sensoriais diferenciados, como os

cegos, ou com diferentes modos de aprender e se relacionar com a realidade, como os

deficientes intelectuais, têm sido historicamente descreditados como geradores de valor

social. No caso dos surdos, tal desvalorização tem sido explicada por aquele que é

considerado o fator indispensável para a comunicação humana: a oralidade

(SANTANA; BERGAMO, 2005). Há registros históricos de que os surdos foram

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culturalmente dominados pelos ouvintes, uma vez que os primeiros eram excluídos de

praticamente qualquer convívio social. Segundo Strobel (2008, p. 42):

A presença do povo surdo é tão antiga quanto a humanidade. Sempre

existiram surdos. O que acontece, porém, é que nos diferentes momentos

históricos nem sempre eles foram respeitados em suas diferenças ou mesmo

reconhecidos como seres humanos.

Não é fácil determinar precisamente o momento específico em que o ser humano

pré-histórico começou a desenvolver seus processos de comunicação, sendo capaz de

trocar, registrar e difundir informações de forma efetiva. Considera-se a denominada

Era dos Símbolos e Sinais, cerca de 90 mil anos atrás, como a primeira etapa

significativa do desenvolvimento da capacidade humana de se comunicar. Os

homínideos desse período não falavam. Utilizavam gestos, sons e outros sinais

padronizados, que eram mutualmente entendidos, que configuravam um modo de

comunicação. Essa era inicial foi sucedida pela Era da Fala, iniciada há cerca de 40 mil

anos atrás. A fala possibilitou produzir/transmitir mensagens mais complexas. Data-se

também aqui o início, percebido pelos cientistas, das manifestações artísticas, como as

pinturas rupestres, entendidas como tentativas de armazenar/registrar informações

importantes ou significativas. Por fim, tem-se a Era da Escrita, em que o ser humano

criou as representações pictóricas para simular os sons. A partir de então, cada

sociedade se organizou para criar seu conjunto próprio de escrita.

Da mesma maneira se faz difícil precisar na História o surgimento dos

primeiros Surdos, pois, como pode ser depreendido do acima exposto, a “detecção” da

surdez necessitou de um desenvolvimento cultural, de valorização da fala como

instrumento primordial para a comunicação humana e sua relação com o meio. A

escassez de registros, assim como as poucas investigações sobre o assunto levam a

informações imprecisas e inconsistentes sobre quando os Surdos começaram a ser

identificados na história da evolução humana.

Nas escrituras bíblicas, enquanto registro histórico, encontramos referências a

surdos em várias passagens. A primeira referência encontra-se no livro do Êxodo

(Capítulo 4, versículo 11), no Velho Testamento, remetendo os surdos como criação do

próprio Deus, considerando a doutrina monoteísta católica. No Novo Testamento, os

surdos aparecem nas cenas em que Jesus opera milagres, sendo alguns surdos “curados”

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e libertos de sua “incapacidade”. No livro de Marcos, Novo Testamento, capítulo 7,

versículos do 31 ao 35, tem-se a passagem de cura de um Surdo:

(Mc, 7, 31-35) Ele (Jesus), deixou a região de Tiro e voltou para o mar da

Galiléia, passando por Sidom e pelo distrito das dez cidades. Algumas

pessoas trouxeram um homem que não podia ouvir nem falar e pediram a

Jesus que impusesse as mãos sobre ele. Jesus toco nos ouvidos do homem e

passou-lhe um pouco de saliva na língua. Então orou, suspirou

profundamente e ordenou: “Efatá! – Abra-se!” E assim aconteceu. O homem

ouvia e falava perfeitamente!

No Egito Antigo, 1.500 anos a.C., encontram-se registros de tratamentos

médicos e encantamentos/poções para tratar a surdez: óleo de oliva, urina de cabra, ovos

e asas de morcegos eram introduzidos nos ouvidos "daqueles que não podiam ouvir

bem". Uma das principais contribuições sobre o tema na Antiguidade Clássica baseia-se

na concepção de Aristóteles (384-322 a.C), acerca da estrutura do pensamento e do ser

político. A voz é a condição primordial para a linguagem, e a linguagem é o meio pelo

qual o homem realiza-se como animal político, sujeito de direitos e deveres. De acordo

com o filósofo, a linguagem permite ao ser humano elaborar as noções de bem e mal, de

justo e injusto e tantos outros julgamentos essenciais para a manutenção do Estado e da

sociedade. A fala é o suporte para a finalidade política do humano:

É na Política que vai ser explicada a natureza da linguagem. O animal político

liga-se necessariamente à faculdade humana de falar, pois sem linguagem não

haveria sociedade política. (...) A natureza não faz nada em vão e, dentre os

animais, o homem é o único que ela dotou de linguagem. Sem dúvida a voz é

uma indicação de prazer ou de dor, e também se encontra nos outros animais;

o lógos, porém, tem por fim dizer o que é conveniente ou inconveniente e,

consequentemente, o que é justo ou injusto (NEVES, 1981, p. 58).

Por conseguinte, os surdos eram tidos como incapazes de alcançar tal finalidade

política, uma vez que, por não falarem, eram então tidos como sub-humanos, seres não

educáveis e incapazes de produzir qualquer atividade intelectual. A partir dessa

concepção arcaica e reducionista da surdez exerceram-se diversos tipos de violência,

simbólica ou física, contra os indivíduos Surdos. A reclusão e a segregação foram

constantes na vida dos Surdos, que tiveram seus direitos sociais negados historicamente.

Na Roma Antiga, priorizava-se a boa oratória, a língua oral no cotidiano da vida

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pública. O falar era de extrema importância para a formação de um cidadão.

Consequentemente, aos surdos era reservado um pequeno espaço de participação no

meio social. Em resumo, estar privado da experiência da oralidade se configurava um

grande empecilho para qualquer tipo de aprendizado e para concretizar-se o status de

cidadão (NAKAGAWA, 2012).

Considerando ainda a Antiguidade Clássica, tem-se que os abandonos e

sacrifícios dos deficientes, dentre eles os surdos, eram práticas cometidas não tão

raramente. Era presente o sentimento de rejeição contra esse “outro indomesticável”, ou

pouco “confiável”. Na Grécia antiga, a surdez era vista como deformação em função de

castigo divino e deveria ser punida com a morte. Em Esparta, a execução ou abandono

se davam pelo caráter improdutivo dos surdos. Para Berthier (1984, p.165) citado por

Strobel (2009):

[...] inicia a história na antigüidade, relatando as conhecidas atrocidades

realizadas contra os surdos pelos espartanos, que condenavam a criança a

sofrer a mesma morte reservada ao retardado ou ao deformado: “A infortunada

criança era prontamente asfixiada ou tinha sua garganta cortada ou era lançada

de um precipício para dentro das ondas”. Era uma traição poupar uma criatura

de quem a nação nada poderia esperar (BERTHIER, 1984, p.165).

Na Idade Média, séculos V a XV, novos cenários surgiram para os indivíduos

surdos, ainda que o contexto de marginalização fosse constante. A Igreja católica,

dominante na época, considerava os indivíduos surdos incapazes de receber os

sacramentos, em razão da impossibilidade da fala, o que não permitia a confissão dos

pecados. Os surdos eram proibidos de comungar e havia também decretos que

impossibilitavam o casamento entre duas pessoas surdas (MAURÍCIO, 2010).

A exclusão continuou constante no meio social, envolvendo a resistência dos

que não compreendiam os surdos, incluindo as próprias famílias dos mesmos. Aos

surdos eram negados os direitos assegurados aos outros cidadãos, como receber

heranças e votar.

Se por um lado predominava o contexto de marginalização e exclusão, por

outro, as contribuições do monge beneditino Pedro Ponce de León (1520-1584) e do

médico Girolamo Cardano (1501-1576) foram marcantes para a mudança na

compreensão e educação dos surdos no início da Idade Moderna. O espanhol Pedro

Ponce de León recebeu créditos como o primeiro professor de surdos, tendo

consolidado um trabalho de ensino eficaz. Estabeleceu sua escola no mosteiro de São

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Salvador, na cidade de Onã, onde eram acolhidos vários surdos, oriundos de aristocratas

da elite espanhola, preocupados com a exclusão das crianças no meio social (REILY,

2007). O trabalho de Ponce de León consistiu em ajudar crianças surdas a aprender

como escrever a língua, através de gestos simples com um alfabeto bimanual, ou seja,

sendo utilizadas ambas as mãos. A metodologia incluía a representação manual das

letras do alfabeto, sua escrita e oralização. Embora não tenha desenvolvido nenhum tipo

de língua de sinais, Ponce de León desenvolveu um alfabeto simplificado que permitia

ao surdo soletrar toda a palavra, letra por letra, nos moldes daquilo que conhecemos

hoje como datilologia (REILY, 2007). A proposta de Ponce de Leon foi reconhecida

nacionalmente e foi considerada de grande importância para a época em questão. Até

então os surdos eram vistos como não educáveis, não existindo nenhuma metodologia

de ensino aplicável a eles.

A perspectiva de Ponce de León foi corroborada pelo médico cientista italiano

Girolamo Cardano: reconhecia a habilidade do surdo para a razão, partindo do princípio

que a surdez não é empecilho para a aprendizagem, pensamento lógico e raciocínio. A

proposta de Cardano se deu a partir do convívio com seu filho surdo e de seus estudos

anatômicos sobre o sistema auditivo humano. Embora também não tenha desenvolvido

qualquer tipo de língua de sinais, a proposta de Girolamo trouxe uma perspectiva

promissora para a inclusão educacional e social de surdos (SOUZA, 2014).

Essas contribuições iniciais aqui destacadas cooperaram consideravelmente para

a mudança de paradigma da não educabilidade dos surdos. Aos poucos, rompia-se com

os postulados filosóficos e religiosos da condição não humana dos surdos. Essas

propostas se configuram como marcos no que tange ao ensino e aprendizado dos surdos,

seja pelas mudanças epistemológicas ou metodologias criadas.

Ainda na Espanha, o padre Juan Pablo Bonet (1573-1633) lançou o primeiro

livro sobre educação dos surdos, contendo um alfabeto manual, que também fora usado

por Ponce de León em sua escola. Considera-se a primeira demonstração literária com

um tipo de alfabeto em língua de sinais. Bonet utilizava em sua proposta de ensino a

leitura, o alfabeto manual, a gramática e manipulava a estrutura fonoarticulatória para

ensinar a pronúncia das palavras (GOLDFELD, 2002). Bonet é considerado o precursor

do Oralismo.

Em 1644 é publicado o primeiro livro em inglês sobre língua de sinais pelo

médico John Bulwer (1614-1684), na Inglaterra. Em “Chirologia e Natural Language of

the Hand”, Bulwer preconizou a utilização do alfabeto manual e leitura labial. Em obras

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posteriores, o autor afirmou que se podem expressar com a língua de sinais os mesmos

conceitos existentes na língua oral (STROBEL, 2009).

No século XVIII, a educação de Surdos na Europa foi influenciada pelas

transformações sociopolíticas e culturais que se desdobravam no continente. O

Iluminismo, iniciado primeiramente na França, consistiu em um esforço de valorizar a

razão, tendo como finalidade o progresso e liberdade de pensar. No plano educacional,

defendeu-se o direito a uma educação de qualidade a todas as pessoas, com ensino laico,

gratuito e centrado na emancipação e autonomia (ZENI, 2010). Nesse contexto de

inquietação surgem educadores como Samuel Heinicke (1729-1790) e Charles-Michel

de L’Epée (1712-1789).

Charles-Michel L’Epée nasceu em Versalhes e inicialmente estudou para se

tornar padre católico. Contudo, foi designado abade e dedicou sua atenção para obras de

caridade para os pobres. Teve contato com duas irmãs surdas que conversavam entre si

e decidiu, então, dedicar-se à “salvação dos surdos”. Em 1750, fundou um abrigo para

surdos em Paris, onde treinou professores e educadores.

L’Epée apoiava-se no sistema gestual para o ensino de várias disciplinas:

álgebra, geografia, latim, artes e ofícios, e revolucionou a educação dos Surdos com

métodos visuais eficazes, pois considerava que ao surdo deveria ser ensinado pela visão

aquilo que a outras pessoas é ensinado pela audição. Consequentemente, defendeu a não

oralização dos surdos, focando-se no aprendizado de sinais. Foi considerado o grande

responsável pelo desenvolvimento da Língua Francesa de Sinais. O “Institution

Nationale des Sourds-Muets à Paris”, criado por ele, hoje é conhecido como Instituto

Nacional de Jovens Surdos de Paris, e continua sendo uma das mais famosas escolas de

Surdos na Europa. Os métodos utilizados por L’Epée foram amplamente divulgados,

assim como as metodologias utilizadas em sua instituição (NAKAGAWA, 2012).

Seguindo um caminho inverso à L’Epée, o alemão Samuel Heinicke inaugurou

as bases da filosofia oralista. Para Heinicke, a língua de sinais não era adequada, então,

prezava pela ortopedia da fala e articulação dos fonemas, seguindo o modelo de

aprendizado de ouvintes (SOUZA, 2014). Heinicke inaugurou a primeira escola oral

para surdos em 1778, em Leipzig.

No cenário norte-americano surge a figura Thomas Hopkins Gallaudet (1787-

1851). Predicador e formado em Direito, Gallaudet teve contato com uma menina surda,

Alice, em 1814, e desde então passou a se dedicar à educação de surdos. Na ocasião,

Gallaudet reparou que a pequena Alice permanecia isolada e rejeitada pelas outras

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crianças. Ao aproximar-se dela, tentou estabelecer comunicação por meio de gestos e da

escrita. Em seguida, Gallaudet visitou a Europa a fim de pesquisar os métodos de ensino

para surdos. Na Inglaterra, lhe foi negado acesso aos métodos de trabalho, o que o levou

a migrar para a França. Foi aí que Gallaudet teve contato como o sacerdote Roch-

Ambroise Sicard, que era influenciado pela concepção de L’Epée. Em 1817, Gallaudet

retorna aos Estados Unidos trazendo um auxiliar de Sicard, Laurent Clerk, e juntos

fundam a primeira escola para Surdos nos Estados Unidos, a “American School of the

Deaf”. O sucesso do trabalho desenvolvido levou à abertura de várias outras

instituições, contando com vários professores Surdos e outros ouvintes, fluentes em

língua de sinais (STROBEL, 2009). É considerado o precursor na ASL, American Sign

Language, e a instituição inaugurada por ele é conhecida atualmente como Gallaudet

University (Universidade Gallaudet).

Os séculos XVIII e XIX foram marcados por uma gama de agitações, rupturas e

revolução na vida dos Surdos, o que abriu campo para novas possibilidades e

surgimento de outras demandas. Com o crescimento econômico das grandes cidades

europeias, aos poucos as línguas de sinais passaram a existir na comunicação entre os

grupos, fortalecendo as comunidades surdas urbanas. As escolas para Surdos se

espalharam para outros países da Europa e também para os Estados Unidos,

influenciadas tanto pela proposta gestualista de L’Epée como pelo oralismo de

Heinicke. Coelho e colaboradores (2004), traçam o panorama mundial nesse período de

expansão e descobertas na educação dos Surdos:

Em meados do séc. XIX havia mais de cento e cinquenta escolas na Europa e

vinte e seis nos Estados Unidos que usavam a língua gestual. A educação de

surdos estava em seu período de ouro. Os surdos tinham acesso à educação

através da sua língua materna. Na Europa e na América cada vez mais alunos

surdos completavam a educação básica. Foram lançados então os cursos

secundários para surdos em Hartfort, Nova Iorque e Paris. Os alunos surdos

tiveram pela primeira vez a possibilidade de continuarem os seus estudos,

tornando-se muito deles professores de surdos. Em meados do século

dezenove, metade dos professores nas escolas americanas e francesas eram

surdos (hoje são uma raridade) (COELHO; CABRAL; GOMES, 2004, p.168).

Nesse período histórico, acirrou-se o conflito entre as abordagens oralistas e

gestualistas. Parte dos educadores defendia o uso de sinais como a metodologia

adequada para o ensino e aprendizado de Surdos, enquanto outra parte se apoiava nas

propostas oralistas, em que o aprendizado da fala se torna o principal objetivo do ato

pedagógico (NAKAGAWA, 2012). Essas diferentes concepções de abordagens de

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ensino não configuravam apenas uma divergência de ensino, mas também concepções

divergentes da surdez, dos Surdos e de suas possibilidades de tomarem lugar no

cotidiano da sociedade.

Aproveitando o campo de discussão, é realizado o Congresso da Sociedade

Pedagógica em Veneza, Itália, em 1872. Diante das discussões e propostas, optou-se

pela concepção/metodologia oralista para educar os sujeitos surdos. Considerou-se que,

nos mesmos modos da lógica aristotélica, a fala seria a condição essencial para o

desenvolvimento cognitivo e construção do pensamento. Cabia, então, desenvolver a

fala dos surdos por meio da leitura dos lábios e técnicas de oralização (CARVALHO,

2010). Salienta-se que a maioria dos Surdos pendia para as abordagens gestualistas,

enquanto que os ouvintes defendiam o oralismo.

As abordagens gestualistas defendiam o uso da língua de sinais na instrução do

indivíduo Surdo, sendo esta a língua primeira que auxiliaria nos afazeres escolares e na

interação social. Por outro lado, defendia-se, com as práticas oralistas, o aprendizado da

fala e, obviamente, a não utilização de sinais. Os embates e discussões entre as duas

abordagens desdobraram-se em novas concepções, que radicalmente alterariam a vida

de muitos indivíduos Surdos. Além de se determinar a erradicação das línguas de sinais,

proibia-se ao mesmo tempo profissionais Surdos no ambiente educacional. Nesse

contexto, o Congresso de Milão foi o marco histórico para consolidar tais

transformações.

O Congresso de Milão, Itália, realizado entre 06 e 11 de setembro de 1880, foi

uma conferência internacional de educadores de Surdos. Após dias de discussão,

concluiu-se que os pressupostos oralistas seriam os preferíveis para as escolas e demais

instituições para Surdos. As práticas gestuais ou bimodais (utilizando as duas

abordagens) foram duramente rejeitadas, ficando o oralismo puro apontado como a

melhor abordagem para a educação de surdos (NAKAGAWA, 2012).

As resoluções ali propostas, oito no total, acenavam para a superioridade da

língua oral. Entre as proposições, destacava-se também a separação das crianças já

educadas com bases gestualistas daquelas recém-admitidas nas escolas. Baalbaki e

Caldas (2011, p.1892) trazem os enunciados das oito propostas votadas na Conferência:

1. O uso da língua falada, no ensino e educação dos surdos, deve

preferir-se à língua gestual; 2. O uso da língua gestual em simultâneo

com a língua oral, no ensino de surdos, afeta a fala, a leitura labial e a

clareza dos conceitos, pelo que a língua articulada pura deve ser

preferida; 3. Os governos devem tomar medidas para que todos os

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surdos recebam educação; 4. O método mais apropriado para os

surdos se apropriarem da fala é o método intuitivo (primeiro a fala

depois a escrita); a gramática deve ser ensinada através de exemplos

práticos, com a maior clareza possível; devem ser facultados aos

surdos livros com palavras e formas de linguagem conhecidas pelo

surdo; 5. Os educadores de surdos, do método oralista, devem aplicar-

se na elaboração de obras específicas desta matéria; 6. Os surdos,

depois de terminado o seu ensino oralista, não esqueceram o

conhecimento adquirido, devendo, por isso, usar a língua oral na

conversação com pessoas falantes, já que a fala se desenvolve com a

prática; 7. A idade mais favorável para admitir uma criança surda na

escola é entre os 8-10 anos; 8. Com o objetivo de se implementar,

com urgência, o método oralista, deviam ser reunidas as crianças

surdas recém-admitidas nas escolas, onde deveriam ser instruídas

através da fala; essas mesmas crianças deveriam estar separadas das

crianças mais avançadas, que já haviam recebido educação gestual, a

fim de que não fossem contaminadas; os alunos antigos também

deveriam ser ensinados segundo este novo sistema oral.

Skylar (2005) cita três pressupostos que justificam o ideal oralista: filosóficos,

religiosos e políticos. Pela perspectiva filosófica, as linguagens gestuais demonstravam

caráter primitivo, uma vez que só por meio da palavra falada o ser humano ascendia ao

pensamento e à razão, tal como formulara Aristóteles. Do ponto de vista religioso,

tinha-se ainda que o surdo não oralizado fosse impedido de ter acesso à palavra de

Deus, uma vez que não podia confessar-se nem professar a doutrina. Sob a ótica

política, considerava-se a língua o principal meio de formação de identidade,

indispensável para o fortalecimento e formação das nações e Estados.

Depois de oficializadas, as propostas do Congresso de Milão foram colocadas

em prática. Grande parte das instituições de ensino existentes se transformaram em

espaços de reabilitação, de ensino da oralização. Professores Surdos foram afastados e

em várias escolas europeias aboliu-se o uso da língua de sinais como metodologia

(NAKAGAWA, 2012).

O oralismo objetiva incluir o surdo na comunidade ouvinte, porém, de acordo

com Sacks, (1990, p. 22) o “Oralismo e a supressão do sinal resultaram numa

deterioração dramática das conquistas educacionais das crianças surdas e no grau de

instrução do surdo em geral”. Evidencia-se que alguns surdos desenvolvem fala

socialmente insatisfatória, acarretando atraso no desenvolvimento geral, englobando a

aprendizagem, leitura e escrita (LACERDA, 1988). Ao impor o meio oral, pode-se

diminuir a sociabilidade e criar obstáculos para a inclusão.

Durante boa parte do século XX, predominou o oralismo nas instituições de

ensino, de diversos países no mundo. Professores surdos perderam os empregos e as

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línguas de sinais foram entrando em desuso. As línguas de sinais eram utilizadas de

forma quase que “ilegal”, fora das instituições de ensino.

A educação especial, em termos globais, sempre foi marcada pela segregação e

exclusão. Aquele considerado “inapto” a aprender tem sido tradicionalmente ignorado e

evitado socialmente. Na medida em que se passa a pensar esse outro como alguém

dotado de capacidades, mudam-se as formas de se pensar a educação e os próprios

conceitos de incapacidade começam a ser questionados (SANTOS, 2000).

A repressão do idioma natural de um povo é a forma mais eficaz de destruir sua

cultura e os próprios indivíduos dessa comunidade. Quando determinada população

geográfica é colonizada por outra, por exemplo, a língua do colonizador dominador é

imposta enquanto a língua do dominado vem a ser proibida. O Congresso de Milão e o

oralismo puro deixaram um rasgo cultural para a Comunidade Surda e por quase um

século pouco se avançou na Educação de Surdos. Alguns Surdos continuavam a utilizar

os sinais em ambientes não escolares, mas sem visibilidade histórica social.

A Declaração de Salamanca (1994) trouxe novas perspectivas para a educação

inclusiva, considerando os obstáculos à aprendizagem como necessidades educacionais

especiais. No que tange aos Surdos, é orientado que tenham acesso à educação na língua

de sinais de seu país. Tal documento foi elaborado na Conferência Mundial sobre

Educação Especial, na Espanha, com o objetivo de se traçar diretrizes e normativas para

reformular as políticas e sistemas educacionais, preconizando a inclusão educacional e

social. De acordo com texto da UNESCO (1994, p. 15):

Proporcionou uma oportunidade única de colocação da educação especial

dentro da estrutura de “educação para todos” firmada em 1990 (...) Ela

promoveu uma plataforma que afirma o princípio e a discussão da prática de

garantia de inclusão das crianças com necessidades educacionais especiais

nestas iniciativas e a tomada de seus lugares de direito numa sociedade de

aprendizagem.

Diante disso, abriram-se novas perspectivas diante da inclusão, compreendendo

os direitos educacionais dos indivíduos Surdos. Abaixo continuaremos discutindo os

porquês disso.

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1.2 EDUCAÇÃO DE SURDOS NO BRASIL

Tal como no cenário global, a história dos Surdos no Brasil é marcada por

dificuldades, exclusão e superação dessas adversidades.

O primeiro registro histórico sobre educação de Surdos no país se deu em 1855,

Segundo Império, com a chegada do educador francês Hernest Huet. Surdo, tinha vasta

experiência no trabalho com Surdos, tendo sido diretor do Instituto de Surdos de Paris.

Por meio da inciativa de Dom Pedro II de trazê-lo, deram-se os primeiros passos na

educação de Surdos no país.

A grande contribuição de Huet foi colaborar para a criação do Imperial Instituto

dos Surdos Mudos, em 26 de setembro de 1857 - data que veio a ser comemorado o Dia

Nacional do Surdo. Através de Huet a língua de sinais se expandiu no cenário nacional

(CARVALHO, 2010). Mais tarde, o Instituto criado por Huet receberia a denominação

Instituto Nacional de Educação de Surdos, INES. Durante alguns anos, o INES

permaneceu sendo a única escola para Surdos do país e até hoje é considerada como

referência nacional em educação nesse campo.

Entre os vários alunos que passaram pelo Instituto, um deles se destacou por seu

notório desempenho acadêmico: o Surdo Flausino José da Costa Gama. Inicialmente

aluno do Instituto, após concluir o curso despontou como professor. Flausino foi o

primeiro surdo brasileiro a desenvolver um dicionário de Libras, a obra “Iconographia

dos Signaes dos Surdos-Mudos”, publicada em 1875. A obra continha estampas

ilustradas com as imagens referentes aos sinais para referentes ao léxico gramatical

(SOFIATO; REILY, 2011).

Seguindo a tendência adotada após o Congresso de Milão, o oralismo se tornou a

metodologia predominante em educação de Surdos também no Brasil. Todas as

instituições para Surdos desenvolviam o trabalho educativo com os alunos no ensino

primário, para posteriormente encaminhá-los para as escolas regulares e integrá-los

junto aos ouvintes. Objetivava-se com essa integração forçada desenvolver a fala dos

Surdos pela oralização. De acordo com Silva (1998, p.13):

A educação de surdos ocorreu em ambientes especiais, separados de crianças

ouvintes, pelo menos para o ensino básico. Apenas eram encaminhadas para a

escola comum aquelas crianças que se mostrassem aptas a acompanhar rede

regular de ensino, isto é, que tivessem adquirido uma fala boa e inteligível e

tivessem também uma boa leitura labial, além de já estarem alfabetizadas... A

esses surdos não era permitido usar qualquer gesto além dos naturais, com a

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justificativa de que esses acabavam por inibir a iniciativa, ou o desejo, da

criança pela fala.

Desde o final do século XX, até meados da década de 1960, o oralismo foi

predominante no que tange à educação de Surdos no país. O próprio INES adotou o

oralismo como método oficial em 1911. Devido à crença de que os Surdos deveriam se

apropriar da fala para serem alfabetizados e integrados aos ouvintes, a língua de sinais

foi pouco utilizada nas instituições e, como consequência, muitos alunos não se

adaptaram a essa imposição do oralismo.

A formação dos profissionais especialistas que atuariam com Surdos tem, nesse

período histórico, a preocupação com a surdez enquanto incapacidade, buscando superá-

la ou, até mesmo, “curá-la”. Em 1969, a professora Álpia Couto-Lenzi cria a cartilha

“Posso Falar”, que utiliza o método oral puro. A cartilha foi muito utilizada nas escolas

orais e auditivas do estado do Espírito Santo, contudo pesquisas posteriores

questionaram o sucesso “absoluto” da abordagem (VIEIRA-MACHADO, 2010).

Contrariando a proposta oralista, em 1969 foi feita uma primeira tentativa de

registrar a Língua de Sinais falada no Brasil por meio da publicação de Eugênio Oates,

um missionário americano. O dicionário de sinais publicado por ele teve grande

aceitação dos surdos (BRITO, 1993).

O Ministério da Educação, em 1979, assume a obrigatoriedade do oralismo

como proposta de ensino no Brasil, tendo como justificativa que, deste modo, o

educando seria preparado para participar efetivamente da vida em sociedade (ALBRES,

2005)

No cenário internacional, começa-se a repensar a utilização das línguas de sinais,

pareadas ou não com a língua oral. No Brasil, o conceito de Comunicação Total chega

em 1975. O termo foi usado inicialmente pela professora Ivete Vasconcelos, que

trabalhara anteriormente na Universidade Gallaudet. Com essa nova metodologia,

permite-se ao surdo escolher qual recurso será escolhido para a comunicação. Contudo,

além de oferecer as diferentes formas de se comunicar, deve-se atentar para a eficiência,

as consequências e as posições ideológicas defendidas com as formas de comunicação.

Diversas críticas surgiram, então, com relação à comunicação total.

Na década de 1980, o oralismo passou a ser bastante criticado, uma vez que

muitos surdos não lograram sucesso na aprendizagem da linguagem oral. Observa-se

que o oralismo restringe as possibilidades de desenvolvimento do sujeito, pois utiliza-se

exclusivamente a produção da fala em detrimento de outros aspectos linguísticos,

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tornando a linguagem artificial. Ainda na década de 1980, surge no país o conceito de

bilinguismo, decorrente dos estudos da professora linguista Lucinda Ferreira Brito,

sobre a Língua Brasileira de Sinais. Essa filosofia recupera o direito da pessoa surda de

ser ensinada na Língua de Sinais, sendo respeitados seus aspectos sociais e culturais

(MESERLIAN; VITALIANO, 2009).

Britto inicia seus estudos linguísticos sobre língua de sinais na tribo indígena

Urubu-Kaapor na floresta amazônica. Na pesquisa documentada, Brito legitimou a

língua de sinais utilizada pelos índios, pois se configurava um meio de comunicação

eficaz. A partir de então, Brito começa a estudar a Língua de Sinais no meio urbano,

denominando-a Língua de Sinais dos Centros Urbanos Brasileiros - LSCB. Mais tarde,

surgiria a denominação Libras, criada pela própria comunidade Surda. A partir desta

data, diversos estudos linguísticos sobre a Libras são efetuados sobre orientação da

linguista, e a problemática da surdez passa a ser constante em temas para dissertações

acadêmicas (QUADROS, 2012).

No cenário mundial, a Declaração de Salamanca (1994), que redirecionou as

ações para as políticas em educação inclusiva, traria reflexos também para a educação

de Surdos no Brasil, apesar de não ser uma legislação restrita aos Surdos. Evidenciou-se

a urgente necessidade de políticas públicas e educacionais, que viessem a atender a

todos de maneira equânime (SANTOS, 2000).

No Brasil, historicamente, os surdos vivenciaram a segregação de forma

impositiva quando foram destinados às APAES (Associação de Pais e Amigos dos

Excepcionais). As APAES foram idealizadas para atender pessoas com deficiências

intelectuais, mas, uma vez que não existiam instituições específicas para o atendimento

de Surdos difundidas pelo país, passaram a atender também a esse público.

Inicialmente, as APAES receberam tanto surdos quanto cegos, mas o “movimento

apaiano” ficou comprometido por essa demanda inesperada, impossibilitando a

excelência no atendimento de público tão amplo e diverso.

Posteriormente, tivemos o movimento de integração, em que as escolas

regulares de referência recebiam os alunos surdos em salas separadas e esses interagiam

com outros colegas ouvintes, nos períodos fora da sala de aula. Com o advento da

inclusão, os Surdos foram “incluídos” nas escolas próximas às suas casas na mesma sala

dos alunos ouvintes.

Uma crítica pertinente à inclusão é o despreparo dos profissionais da educação

regular ao lidar com o aluno Surdo dentro do contexto da escola. Para que a inclusão

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ocorra, de fato, é necessário conhecer e se inteirar da comunidade Surda, em especial de

sua cultura. Um benefício da inclusão é que os alunos ouvintes têm contato real com o

Surdo e com a Libras, assim como os professores. Isso ampliou significativamente o

número de pessoas interessadas pelo sujeito Surdo e deu mais visibilidade para a Libras

e a sua difusão. Atualmente, os Surdos defendem a escola bilíngue, por acreditarem que

esse espaço é mais adequado às suas especificidades.

Nacionalmente, a Libras foi oficializada através da Lei n.º 10.436/2002,

enquanto língua dos surdos brasileiros. O Decreto de 2005 veio a regularizar a lei,

consolidou a difusão e o uso da Libras no Sistema Educacional Federal, estadual,

municipal e privado, possibilitando desenvolvimento de políticas de inclusão de pessoas

Surdas, em todos os níveis educacionais. A Lei Brasileira de Inclusão, promulgada em

2015, vem colaborando para a inclusão social e educacional de todos aqueles com perfis

diferenciados de aprendizagem ou para se relacionarem socialmente.

Consequentemente, os currículos dos diversos sistemas de ensino sofreram

modificações para atender às novas legislações.

Como orientação mais recente, o MEC apresenta o Programa Nacional de

Educação de Surdos (MEC, 2002), que assume a abordagem bilíngue para a educação

de Surdos. Entre os objetivos do Programa, estão a capacitação de professores e

instrutores Surdos para administrarem cursos em Libras e o investimento na formação

de tradutores e intérpretes em Língua de Sinais e Língua Portuguesa. Para a realização

da proposta, o MEC passou a criar em cada estado um Centro de Capacitação de

Profissionais da Educação e de Atendimento às Pessoas com Surdez (CAS), para

socializar as informações e executar os cursos de formação propostos.

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1.3 FILOSOFIAS EDUCACIONAIS

Acompanhando os acontecimentos históricos e a evolução cultural e política na

educação dos surdos, têm-se três filosofias educacionais que buscaram incluir os Surdos

nas instituições de ensino e convívio social: o oralismo, a comunicação total ou

bimodalismo e o bilinguismo. Entender as três propostas e seus contextos históricos se

faz relevante para entender as discussões até contemporaneamente existentes.

Como já abordado na seção anterior, após o Congresso de Milão, em 1880,

adotou-se o oralismo como a filosofia vigente. Isso significa que a voz deveria ser o

único meio de comunicação entre os surdos, esgotando-se as possibilidades de

utilização de qualquer língua de sinais. Importante frisar que indivíduos Surdos não

participaram da Conferência, sendo a decisão tomada por ouvintes. De acordo com

Soares (1999, p.115), o oralismo nada mais é do que o “processo educacional pelo qual

se pretende capacitar o surdo na compreensão e na produção da linguagem oral e que

parte do princípio de que o indivíduo surdo, mesmo não possuindo o nível de audição

para receber os sons da fala, pode se constituir como interlocutor por meio da

linguagem oral”. Os surdos ficaram sujeitos às práticas oralistas por um grande

intervalo de tempo. As técnicas utilizadas eram o treinamento auditivo,

desenvolvimento da fala e leitura labial.

Acarretando retrocessos na educação dos Surdos, na medida em que considerava

a surdez como deficiência passível de ser minimizada ou curada, o oralismo recebeu

duras críticas. Nunca chegou a se configurar como um método efetivo na educação dos

surdos, pois 80% destes não obtêm sucesso na aprendizagem do oralismo. A

metodologia pode ser exaustiva e custosa para os Surdos, e não gerou resultantes que

auxiliassem na vida diária. Não se questionam aqui os da abordagem, que talvez

existam para indivíduos específicos, mas entende-se que a educação dos Surdos deva

ser desenvolvida a partir das suas escolhas e opções, decorrentes das especificidades,

dos desejos, perspectivas e circunstancialidades do indivíduo, e não como imposição

ideológica (GOLDFELD, 2002).

A comunicação total, ou bimodalismo, que se deu em meados da década de

1960, em virtude do fracasso do oralismo puro, originou-se a partir das pesquisas

constantes sobre como melhor efetivar a inclusão social e educacional dos surdos. De

acordo com Denton (1980) apud Freeman, Carbin e Boese (1999, p. 171):

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A Comunicação Total inclui todo o espectro dos modos lingüísticos: gestos

criados pelas crianças, língua de sinais, fala, leitura oro-facial, alfabeto

manual, leitura e escrita. A Comunicação Total incorpora o desenvolvimento

de quaisquer restos de audição para a melhoria das habilidades de fala ou de

leitura oro-facial, através de uso constante, por um longo período de tempo, de

aparelhos auditivos individuais e/ou sistemas de alta fidelidade para

amplificação em grupo.

Tal filosofia preocupa-se com os processos comunicativos entre surdos-surdos e

surdos-ouvintes. A aprendizagem da língua oral assume importância, mas se dá a partir

da estimulação dos aspectos cognitivos, emocionais e sociais da criança surda. Os

recursos espaço-visuais atuam como facilitadores da comunicação. Ressalta-se também

que, a partir da proposta da comunicação total, o Surdo é visto de maneira diferente das

características preconizadas pelo oralismo: somente o aprendizado da língua oral não é

o suficiente para o desenvolvimento pleno da criança surda (PERLIN; STROBEL,

2008).

No Brasil, a comunicação total foi implantada oficialmente no INES em 1975, e

apresentou aspectos positivos e negativos. Como negativos, destacam-se a

desvalorização das línguas de sinais e a primazia da língua portuguesa frente a elas.

Como positivos, considera-se a mudança inicial de paradigmas perpetuados pelo

oralismo.

Paralelo ao desenvolvimento das propostas da comunicação total,

impulsionaram-se os estudos sobre línguas de sinais, o que fez surgirem novas

alternativas educacionais. Estrutura-se, então, o bilinguismo, proposta em que a língua

de sinais é considerada a primeira língua do Surdo, e a partir dela passa-se para o ensino

da segunda língua, que é a língua oficial do país, tanto na modalidade escrita ou oral. De

acordo com Goldfeld (1998, p.38):

O Bilinguismo tem como pressuposto básico que o surdo deve ser Bilíngue, ou

seja deve adquirir como língua materna a língua de sinais, que é considerada a

língua natural dos surdos e, como Segunda língua, a língua oficial de seu país

[...] os autores ligados ao Bilinguismo percebem o surdo de forma bastante

diferente dos autores oralistas e da Comunicação Total. Para os bilinguistas, o

surdo não precisa almejar uma vida semelhante ao ouvinte, podendo assumir

sua surdez.

O bilinguismo se contrapõe à comunicação total, pois preconiza um espaço

efetivo da língua de sinais na proposta educacional. As crianças surdas são colocadas

em contato primeiramente com pessoas fluentes em línguas de sinais, sejam os pais,

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professores ou outros (PERLIN; STROBEL, 2008). Essa perspectiva não consiste

apenas na aquisição de duas línguas, mas em uma mudança nas posturas filosóficas,

culturais, sociais e educacionais, empoderando e dando importância à língua que o

Surdo já possui, dando valor ao que ele sente e como vê o mundo.

A partir dessa proposta, afirma-se que o Surdo é capaz de aprender,

compreender e interagir por meio da língua de sinais, fortalecendo a identidade e a

cultura Surda. Do mesmo modo, o ouvinte que tenha aprendido língua de sinais,

também será pertencente a essa comunidade, desde que dela compartilhe.

O bilinguismo pode ser utilizado para representar o uso de duas ou mais línguas,

daí os modelos bilíngues individual e social. No modelo bilíngue individual,

determinada pessoa pode adquirir uma segunda língua, desde que demonstre o desejo

para tal. Cita-se, por exemplo, países com mais de uma língua oficial, como o Canadá.

No bilinguismo social, toda uma comunidade deverá aprender outra língua

obrigatoriamente, como no caso dos Surdos, que devem prioritariamente aprender a

língua de sinais para organizar, estruturar seus aspectos cognitivos para depois aprender

a língua oficial do país. No Brasil existem duas línguas oficiais, que são o Português e a

Libras. Há uma exigência crescente de que o Surdo deva dominar o português escrito,

mas pouco se investe ainda em profissionais bilíngues para garantir esse direito.

Discutem-se também as razões dessa obrigatoriedade, pois o reconhecimento da cultura

surda como minoria linguística não deveria presumir senões.

No processo histórico da Educação dos Surdos percebe-se a evolução das

filosofias educacionais, buscando sempre aperfeiçoar as metodologias existentes, mas

ainda tratando a questão do Surdo e da Surdez como uma que se resolverá pelo

aprimoramento de técnicas. Nesse sentido, cabe também uma reflexão sobre a

imposição do ensino da Libras nas licenciaturas, pois tangencia, novamente, o

encaminhamento da Surdez por uma via de especificidade técnica. Daí os riscos, para o

reconhecimento do Surdo como minoria linguística-cultural, de reduzirem-se toda a

complexidade de uma língua, e sua cultura, a tecnicismos idiomáticos. E, em nosso

entender, essa reflexão ainda tem sido pouco encaminhada, ou seja, facilmente

encontram-se elogios e destaque para a “Lei de Libras”, sendo que a reflexão crítica

sobre essa ainda é escassa.

Realizar tal análise é essencial na contemporaneidade, quando se buscam construir

práticas pedagógicas cada vez mais reflexivas, a fim de que se preze por um modelo

cultural adequado, que valorize a língua de sinais e a cultura Surda, acima de tudo.

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1.4 LÍNGUAS DE SINAIS E LIBRAS

Têm-se como Línguas de Sinais as línguas naturais das comunidades Surdas,

entendendo-se como língua o substrato social e cultural da linguagem, que é

compartilhada pelos indivíduos de determinada comunidade. Para Souza (2014), a

língua é “o meio de ligação entre o pensamento e ação, ou seja, a língua põe em prática

o que foi pensado cognitivamente”.

As línguas de sinais são denominadas línguas de modalidade gestual-visual, ou

visual-espacial, pois a informação linguística é recebida pelos olhos e produzida pelas

mãos e expressão corporal. Todos os seres humanos nascem com a aptidão para

desenvolver seus mecanismos de linguagem específicos da comunidade, seja pela

modalidade da língua oral-auditiva (usada por ouvintes) ou pelas línguas visuais-

espaciais. Cada uma dessas modalidades possui suas características próprias, como

semântica, fonologia, morfologia e sintaxe.

Do mesmo modo que as línguas orais-auditivas não são iguais e variam entre as

comunidades e espaço-lugar, as línguas de sinais seguem o mesmo padrão. A sigla

LIBRAS é o termo que se refere à Língua Brasileira de Sinais. É uma língua visual-

espacial articulada por meio das mãos, expressões faciais e corporais (MEC, 2014). A

informação linguística é recebida pelos olhos e reproduzidas pelos mecanismos

corporais.

A Libras é reconhecida como língua, oficialmente, por possuir todos os níveis de

complexidade das línguas orais-auditivas. Para Goldfeld (2002), as línguas de sinais

“contém os mesmos princípios subjacentes de construção que são das línguas orais, no

sentido de léxico, isto é, um conjunto de símbolos convencionais”. Em se tratando do

status Linguístico, não existe língua superior ou língua inferior, assim como critérios de

maior ou menor importância. Mesmo as línguas orais sendo amplamente mais usadas

que as línguas de Sinais, ambas estão no mesmo patamar quanto à sua importância na

comunicação.

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1.5 CULTURA, CULTURA SURDA E HUMOR SURDO

Os elementos culturais se organizam por meio da mediação simbólica, que

possibilita a vida em comum. A cultura constitui-se e é constituída e expressa, dentre

outras formas, pela linguagem, por produções artísticas, costumes, etc. A partir da

cultura, os grupos estabelecem juízos de valores, uma ordenação social, códigos

próprios e formas de organização. De acordo com Santana e Bergamo (2005, p.576):

Quando se pensa em cultura, o conceito recorrente é de um conjunto de

práticas simbólicas de um determinado grupo: língua, artes (literatura, música,

dança teatro etc.), religião, sentimentos, idéias, modos de agir e de vestir. [...]

por cultura, entende-se os esquemas perceptivos e interpretativos segundo os

quais um grupo produz o discurso de sua relação com o mundo e com o

conhecimento, ou qualquer outra proposição equivalente; a língua e a cultura

são duas produções paralelas e, além disso, a língua é um “recurso” na

produção da cultura, embora não seja o único. [...] a língua é, neste sentido, um

instrumento que serve à linguagem para criar, simbolizar e fazer circular

sentido, é um processo permanente de interação social.

Assim sendo, o termo cultura refere-se a um conjunto de práticas simbólicas de

um determinado grupo: língua, artes, religião, sentimentos, ideias, modos de agir e de

vestir. Diante dessa interpretação, tem-se a linguagem como o principal recurso na

produção da cultura, uma vez que, por meio desta, se cria, simboliza e se faz circular

sentidos na interação social.

Santana e Bergamo (2005, p.581) ressaltam que “a cultura surda, além da língua,

é composta de literatura específica, sua própria história ao longo do tempo, história de

contos de fadas, fábulas, romances, peças de teatro, anedotas, jogos de mímica”.

Conceder às Línguas de Sinais o status de Língua não acomete apenas

repercussões linguísticas e cognitivas, mas também gera importantes impactos sociais.

Como foi explanado anteriormente, os Surdos foram historicamente estigmatizados e

considerados de pouco, ou nenhum, valor social, ao passo que os ouvintes eram

considerados superiores, atingindo sua plenitude enquanto pessoas de direitos. O

conceito de anormalidade estava atrelado à ausência de linguagem e suas

representações, tais como a comunicação, pensamento e aprendizagem. Legitimando-se

a Língua de Sinais reconhece-se o direito do Surdo se tornar um Sujeito de Linguagem,

questionando-se assim o padrão de normalidade outrora imposto (SANTANA;

BERGAMO, 2005).

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Uma das grandes dificuldades em se estudar e analisar o conceito de cultura está

na complexidade das manifestações que a representariam, sendo tais manifestações

inseparáveis da subjetividade dos sujeitos, pois esses se constituem na e pela cultura.

Assim sendo, as pessoas tendem a considerar suas ações justificadas por seu próprio

estilo de vida, o que pode ocasionar ações de exclusão, conflitos sociais e disputas por

poder quando determinado grupo considera seu estilo de vida melhor, ou “mais certo”,

e, portanto, o mais adequado exemplo a ser seguido. Esse pensamento pode ser usado

para segregar e oprimir aqueles grupos sociais considerados “menores” (LADD, 2002).

Essa ideia se torna relevante ao analisar a Cultura Surda, que foi historicamente

subjugada e suprimida em diversas culturas, em várias partes do mundo, e em diversos

períodos históricos, em detrimento da supremacia da cultura do ouvinte.

Um elemento importante, e essencial, dentro da cultura Surda é o denominado

Humor Surdo. Considera-se humor como aquela característica ou atributo daquilo que é

engraçado ou jocoso, comicidade, e também a capacidade de perceber ou expressar tal

comicidade. Bienvenu (2002, p.22) pondera que:

Humor está próximo de uma necessidade. Como ar, água ou fogo, nós

precisamos do humor para sobreviver à nossa existência diária. Sem ele, a vida

seria intolerável às vezes. Um exemplo de como o humor é usado para

equilibrar nossas vidas pode ser visto na indústria de entretenimento. Diretores

de filmes têm estudado minuciosamente a necessidade de misturar medo e

humor nos filmes. 2

O humor tem sua especificidade cultural, ou seja, grupos de culturas diferentes

riem de situações diferenciadas. Assim como é para os ouvintes, as piadas próprias das

comunidades Surdas sempre contam uma história ou narrativa, e tem um final

inesperado (SILVEIRA, 2015). Uma pessoa ouvinte pode ouvir uma piada ou história

engraçada e rir dela, ao passo que a mesma piada, traduzida para Língua de Sinais, pode

não ter o mesmo efeito nos Surdos. Bouchauveau (2002) cita como exemplo piadas com

sons de animais: enquanto o público ouvinte acharia graça, os Surdos afirmariam se

tratar apenas de um conto interessante, porém, desprovido de graça.

Diferente dos ouvintes, o humor Surdo está extremamente ligado ao campo

visual e gestual. Bienvenu (2002) argumenta que comumente pode-se encontrar Surdos

rindo histericamente em filmes ou cinemas, mesmo que a situação não seja condizente

2 Tradução livre: Humor is almost a necessity. Like air, water or fire, we need humor to survive our daily

existence. Without it, life would be intorelable at times. One example of how humor is used to balance

our lives can be seen in the entertainment industry. Movie directors have closely studied the need to mix

fear and humor in films.

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com o fato. De fato, os Surdos acharão graça considerando as expressões faciais e

corporais dos atores.

O humor se torna específico de determinada cultura tanto pelo fator da

linguagem como pelas experiências vivenciadas pelos sujeitos. A apropriação de

determinado idioma passa, dessa forma, também pelo entendimento do humor aí

vigente. Assim como o domínio do Português (ou outro idioma) é importante para

entender as piadas dos ouvintes, a experiência de ser Surdo e o conhecimento sobre

LIBRAS são essenciais para entender e rir das piadas surdas.

O humor surdo tende a surgir nos locais em que a Cultura Surda predomina,

como por exemplo nas Associações de Surdos e escolas bilíngues. Além da Língua

própria, a Cultura surda tem criado sua própria forma de arte: há exemplos de músicas e

poesias em sinais e também de cinema surdo. O humor surdo tem sido um fator de

ligação e fortalecimento entre gerações de Surdos. A partir do humor Surdo, entende-se

a relevância das línguas de sinais dentro das culturas Surdas. De acordo com Silveira

(2015, p.6)

O estudo do humor e das piadas surdas tem importância para a questão da

valorização das línguas de sinais e da cultura surda, porque mostra a riqueza e

a plasticidade dessas línguas, que não servem apenas para comunicar,

simplesmente, mas para fazer rir, chorar e para fortalecer as comunidades

surdas. E a valorização das línguas de sinais é uma dimensão essencial para o

estabelecimento de políticas linguísticas, como as políticas de educação e

ensino de Libras, no caso do Brasil. Sempre se deve lembrar que, quando se

ensina uma língua, se ensina uma cultura e se valorizam identidades. O humor

surdo não pode ficar fora dos estudos e do ensino das línguas gestuais.

Uma reflexão que levantamos aqui é quão pouco o humor surdo é abordado no

ensino de Libra. Infelizmente, pois pode colaborar em muito para mostrar a riqueza das

línguas de sinais, e do modo Surdo de conceber a realidade. E que também é um motor

para o empoderamento da comunidade Surda.

1.5.1 DO EMPODERAMENTO SURDO

De acordo com Kleba e Wendausen (2009, p.23):

Há dois sentidos de empoderamento mais empregados no Brasil: um se refere

ao processo de mobilizações e práticas que objetivam promover e impulsionar

grupos e comunidades na melhoria de suas condições de vida, aumentando sua

autonomia; e o outro se refere a ações destinadas a promover a integração dos

excluídos, carentes e demandatários de bens elementares à sobrevivência,

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serviços públicos etc. em sistemas geralmente precários, que não contribuem

para organizá-los, pois os atendem individualmente através de projetos e ações

de cunho assistencial.

Acrescenta-se, ainda, que o empoderamento tenha duas características

essenciais: a dimensão psicológica e a dimensão política. No âmbito psicológico, tem-se

o autorreconhecimento, meio pelo qual as pessoas adquirem e desenvolvem o

sentimento de poder, valorização e autoestima. Desenvolvem-se aqui as competências

para enfrentar e superar situações adversas. Por sua vez, a dimensão política implica a

transformação das estruturas sociais, visando a mudanças nas oportunidades e

redistribuição do poder. Objetiva-se que todas as pessoas se apropriem do poder de

decisão de forma democrática.

É por meio do empoderamento que as pessoas abandonam seu status de dependência ou

impotência e se transformam em sujeitos ativos, dotados de autonomia e determinação,

tomando a direção consciente de suas próprias vidas. O uso do termo vem sendo

frequente devido aos movimentos de emancipação de grupos minoritários em prol de

sua cidadania, tais como mulheres, negros, homossexuais e movimentos pelos direitos

de pessoas deficientes.

Perceber-se em um sistema de sociedade opressor e injusto nem sempre é uma

tarefa simples, e muitos Surdos ainda não se reconhecem nesse nível de desigualdade,

pois incorporaram, de certa forma, a ideia de “ser menos”. Historicamente, foram/são

oprimidos por vários grupos ao longo da vida: professores e funcionários das escolas

exclusivamente ouvintes, família ouvinte sem conhecimento de Língua de Sinais, falta

de intérpretes e Surdos em todas as instituições, entre outros (COLEMAN;

JANKOWSKI, 2002).

O empoderamento se mostra um processo importante para os Surdos, que

precisam afirmarem-se socialmente da Língua de Sinais, de sua identidade e cultura,

construindo um sentido de comunidade e criando movimentos surdos. Empoderar-se,

significa, aqui, constituir uma identidade própria, questionando e se impondo diante das

imposições culturais dos ouvintes.

Baquero (2012, p.181) traz um conceito de empoderamento baseado em uma

perspectiva freireana, fundada na percepção crítica sobre a realidade social:

Nessa perspectiva, o empoderamento, como processo e resultado, pode ser

concebido como emergindo de um processo de ação social no qual os

indivíduos tomam posse de suas próprias vidas pela interação com outros

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indivíduos, gerando pensamento crítico em relação à realidade, favorecendo a

construção da capacidade pessoal e social e possibilitando a transformação de

relações sociais de poder. (...) O empoderamento envolve um processo de

conscientização, a passagem de um pensamento ingênuo para uma consciência

crítica. Mas isso não se dá no vazio, numa posição idealista, segundo a qual a

consciência muda dentro de si mesma, através de um jogo de palavras num

seminário. A conscientização é um processo de conhecimento que se dá na

relação dialética homem-mundo, num ato de ação-reflexão, isto é, se dá na

práxis. Conscientizar não significa manipular, conduzir o outro a pensar como

eu penso; conscientizar é “tomar posse do real”, constituindo-se o olhar mais

crítico possível da realidade; envolve um afastamento do real para poder

objetivá-lo nas suas relações.

Como fatores para o empoderamento do Surdo estão o ensino de base de

qualidade, ensino da Línguas de Sinais, políticas públicas em prol da comunidade e os

movimentos Surdos (SILVEIRA, 2015). Importa também o engajamento da sociedade

como um todo para com essa causa, que embora possa parecer pertencer somente aos

surdos, significa, na verdade, um passo na direção de uma sociedade que respeite mais,

que seja mais justa para com aquelas que são consideradas “minorias”.

Diante da necessidade de empoderar os Surdos desde a infância, Coleman e

Jankowski (2002) sugerem o uso de histórias e contos populares. A partir destes contos,

muitas vezes dotados de humor, percebe-se a surdez não como desvantagem ou

empecilho, mas como uma característica pessoal que nada impede o desenvolvimento e

vivência diária das pessoas. Segue um conto selecionado pelos autores:

Um casal recém-casado foi a um motel. Tarde da noite, o marido deixou sua

esposa para buscar um balde de gelo, mas esqueceu de levar as chaves do

quarto consigo e de verificar o número do quarto. Ainda que não conseguisse

lembrar em qual quarto escuro do motel sua noiva estivesse, ele teve uma

ideia. Ele foi até o carro e apertou a buzina, até que todas as luzes do motel se

acenderam, exceto uma. Ele deixou o carro, certo de que sua esposa estaria no

quarto cuja luz permanecia apagada3 (2002, p.34).

O conto, utilizado pela comunidade Surda e carregado de humor, leva a um

fechamento reflexivo: o marido surdo criou seu próprio mecanismo de solucionar o

impasse em que estava preso. Da mesma forma, outras produções levam a outras

situações que têm por cerne a auto-eficácia do Surdo em resolver uma situação

problemática, resultando em ensinamentos/lições morais, contribuindo para o

3 Tradução livre: Deaf Newlyweds checked into a motel. Late at night, the husband left his bride to get a

bucket of ice, but forgot to take the room key and number with him. Although he could not remember

which of the dark motel rooms his bride was in, he had an idea. He went to his car and pressed the car

horn until lights in all of the motel rooms but one were turned on. He left his car, knowing his bride was

in the room that was still dark.

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empoderamento dos Surdos e o desenvolvimento de uma identidade valorizada tanto

para a própria cultura surda como para aquela Ouvintista.

1.6 CENÁRIO ATUAL DA EDUCAÇÃO DE SURDOS

Por muitos séculos os Surdos foram privados de seus direitos básicos e

considerados seres inferiores e incapazes. Questionava-se se os Surdos conseguiriam

aprender ou se relacionar socialmente, e comumente chegavam-se a respostas negativas

para essas indagações. Consequentemente, gerou-se um quadro de exclusão e

marginalização do Surdo. Como fundamentos da negatividade histórica em relação ao

Surdo, somente para citar um dos mais propalados, havia a concepção de que a

inteligência se dava unicamente por meio da comunicação oral. Logo, os Surdos

apresentariam graves comprometimentos cognitivos, tornando difícil seu convívio em

sociedade. Pensar em educação de Surdos é pensar em romper desconhecimentos,

paradigmas e preconceitos como esses, tão culturalmente enraizados.

Tal ruptura age a favor da inclusão, entendida aqui como a eliminação das

barreiras socioculturais e econômicas impostas pela sociedade ao pleno

desenvolvimento do Surdo. Essas barreiras se apresentam em várias dimensões do viver

humano, como aquelas sociais e políticas, e vem sendo objeto de enfrentamento

constante, na sociedade contemporânea. Objetiva-se, assim, garantir os direitos e a

equanimidade, contribuindo para práticas e ações cada vez mais socialmente justas e

sem preconceitos. Os constantes debates e discussões acerca dos Direitos Humanos

colaboram para tanto, pois pretendem contribuir para a garantia dos direitos daqueles

que têm tido tais direitos suprimidos, dentre eles, os Surdos.

Por meio do decreto n. 5.626, de 22 de dezembro de 2005, torna-se obrigatória a

disciplina de Libras na grade curricular para os cursos de formação de professores, em

diversos níveis de atuação: magistério, licenciaturas, nível médio e superior, tanto em

escolas públicas ou privadas. Da mesma forma, o decreto dispõe sobre a obrigatoriedade

da presença de tradutores e intérpretes em Libras nas salas de aula de ensino básico e

superior, a fim de viabilizar a comunicação dos alunos Surdos.

Subjacente a isso deve estar uma outra concepção de professor, que se em

moldes anteriores era tido como detentor do saber, repassando esse conhecimento para

os alunos, atualmente é cada vez mais entendido como um mediador na construção

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conjunta (social) do conhecimento. Para isso, tanto professores como tradutores e

intérpretes devem constituir os saberes conjuntamente com os Surdos, de forma a

respeitar suas especificidades e discutir possíveis entendimentos e concepções. O

profissional intérprete de Libras é a pessoa ouvinte, que vai transmitir uma mensagem

transformando-a para a língua usada pelos Surdos; esse profissional configura-se como

canal comunicativo entre o aluno Surdo, professor, alunos ouvintes e toda equipe

escolar. Em sala de aula, o intérprete é o tradutor entre pessoas que compartilham

diferentes línguas e culturas. A partir desse trabalho, viabiliza-se que o aluno Surdo

tenha acesso ao conteúdo didático, questione e tire dúvidas, tendo participação ativa nos

espaços escolares.

Quanto à sua postura, o intérprete deve ter consciência de que ele não é o

professor e deve se limitar à sua função comunicativa. Segundo o código de ética

profissional, o intérprete deve ser imparcial em sua tradução e mais categórico e

metódico, mesmo reconhecendo que tal neutralidade seja questionável, pois cada

profissional tem uma cosmovisão, que interfere na sua interpretação. Pode-se

acrescentar que o intérprete, conhecedor da cultura Surda, deve orientar a escola quanto

à melhor maneira de se tratar o aluno Surdo, prezando o desenvolvimento pleno do

mesmo. Segundo Gesueli (2006), as crianças Surdas têm facilidade natural de

desenvolver-se na Língua de Sinais, tal como a criança ouvinte constrói sua

comunicação por meio da fala.

Ainda nos dias atuais é possível encontrar surdos que desconhecem sua história

e cultura, ou aqueles que, mesmo na idade adulta, não são fluentes na língua de sinais.

Há surdos colocados em posição de deficiência e incapacidade, desconhecedores de sua

cultura e dos avanços políticos e educacionais vigentes.

Embora os movimentos pela efetivação de uma educação bilíngue para os

Surdos venham ganhando força no Brasil, pois é seu direito legal, e é entendida como

aquela que mais favorece o processo de uma educação que colabore para o

empoderamento do Surdo, a evolução dessa concepção ainda é lenta4. Prevalecendo o

sistema monolingual, em que o Surdo é incluído em turmas com ouvintes, com a

presença do profissional intérprete para mediar a comunicação. Nem sempre, contudo,

existe o profissional intérprete nos ambientes educacionais. Quando há, sua presença só

se garante depois de certa dificuldade, inclusive pela dificuldade de se encontrarem

4 Ver a discussão travada por Vieira (2011).

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pessoas habilitadas e com formação adequada.

Percebe-se, então, que a simples presença do Intérprete – como consta da

legislação- não garante o bilinguismo, nem a inclusão- ideia que parece ter penetrado

profundamente no senso-comum, de que basta a presença do intérprete e, assim, da

Libras, para tornar a educação bilíngue, “solucionando” a questão da educação/inclusão

do Surdo. Contudo, visto que a escola, seus atores e demais profissionais da instituição

escolar, não partilham do mesmo canal de comunicação desse Surdo, nem parecem

interessados na sua cultura, ou naquilo que podem contribuir para a interpretação da

realidade, há pouco avanço na constituição de uma educação de qualidade para o Surdo.

Uma que favoreça sua autonomia e empoderamento. A concepção de que o ensino do

Surdo deve ficar a cargo do intérprete, e não do professor da sala, ainda vigora

predominantemente nas escolas brasileiras. É preciso ter consciência que o ensino do

aluno Surdo é responsabilidade do Professor e não do intérprete. E, como ocorre com

todo o ensino, é de responsabilidade também do entorno sociocultural dos sujeitos.

Assim, entende-se que o acesso desse aluno à biblioteca, à cantina, à quadra e demais

espaços escolares e culturais, existentes em uma comunidade, é compromisso

educacional de todos.

1.6.1 REFLEXÕES SOBRE A PEDAGOGIA SURDA

Oficialmente, a sociedade brasileira reconheceu legalmente o direito de acesso

ao bilinguismo pelos indivíduos Surdos pelo Decreto Federal n. 5626/2005. Esse

decreto, que regulamenta a Lei de Libras, define o significado e diretrizes do

bilinguismo como proposta de ensino e responsabiliza o Poder Público pelo

cumprimento das políticas públicas em prol dos Surdos (SILVA; FERNANDES;

NASCIMENTO, 2005). Tal reconhecimento implica em ações efetivas para que a

língua e saberes da comunidade Surda sejam valorizados, expandidos e apropriados pelo

meio social.

A proposta bilíngue passa pela alfabetização do Surdo em Português, mas a

alfabetização em uma segunda língua. E essa é uma tarefa árdua para o professor

ouvinte, assim como para os alunos Surdos, pois tratam-se de culturas diferentes e,

assim, pode haver um estranhamento perante o complexo linguístico da língua um do

outro. Para atuar de maneira eficaz nesse processo, apenas o conhecimento em Libras é

insuficiente. É também imprescindível que se conheça a cultura Surda, por meio da

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participação e vivência na comunidade Surda, processo que demanda paciência e

aceitação para que se concretize. Somente dessa maneira chegaremos mais próximos a

uma educação bilíngue, que respeite e empodere o Surdo.

O termo Pedagogia Surda foi traduzido de “Pedagogia da Diferença”, criado

pela pesquisadora surda Gládis Perlin, em 2002, na UDESC - Universidade do Estado

de Santa Catarina. Saindo das modalidades tradicionais, que utilizam o conceito de

“normalidade”, utiliza-se aqui a ideia de “diferença”, pois a essa é inerente aquela de

identidade (STROBEL; PERLIN, 2008).

A modalidade da diferença se fundamenta da diferenciação/distinção cultural. A

identidade, língua, projeto educacional, comunidade e cultural Surda se tornam o foco e

são entendidos a partir da diferença, do seu reconhecimento social e político. O Surdo é

reconhecido como sujeito completo, e não como ser faltante. Nessa perspectiva, não há

mais sujeição àquilo que é do ouvinte, pois o Surdo é colocado em contato com a

concepção de diferenciação cultural, enquanto se apropria da base cultural a qual

pertencente. De acordo com Silva (2000, p. 58):

O outro cultural é sempre um problema, pois coloca permanentemente em

cheque nossa própria identidade. A questão da Identidade, da diferença e do

outro é um problema social e ao mesmo tempo é um problema pedagógico e

curricular. É um problema social porque o encontro com o outro, com o

estranho, com o diferente, é inevitável.

Este procedimento educacional vai ao encontro da necessidade do sujeito surdo

em posicionar-se frente às diferenças culturais existentes entre a cultura surda e aquela

ouvintista. Aqui, não é mais o ouvinte que regula o surdo, mas o próprio sujeito Surdo

que se posiciona diante das diferenças culturais e suas peculiaridades. A pedagogia

surda possibilita que o Surdo construa sua identidade, a partir do encontro com seus

pares (KALATAI, 2012).

A escola, diante dessa perspectiva, deve adotar uma série de medidas, tais como

utilizar metodologias diferentes e novas práticas (materiais, métodos de avaliação,

intérpretes, fortalecer os meios visuais e etc.). Sobretudo, é preciso que se aprenda a

colocar em prática o diálogo intercultural. A introdução da língua de sinais no currículo

de algumas escolas para surdos, a partir da década de 1990, demonstrou o começo de

respeito para com a cultura Surda.

A presença de professores Surdos também é imprescindível, uma vez que, por

meio deles, o aluno surdo pode trocar conhecimentos de forma natural, levando em

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conta que ambos têm a mesma identidade. O professor, além de uma figura de

liderança, pode representar para o aluno uma nova perspectiva sobre o seu próprio

futuro. O professor Surdo se faz ainda mais importante quando, em sua casa, o aluno

Surdo não mantém uma comunicação adequada com a família, em virtude das barreiras

da língua (LACERDA, 2006).

A inclusão escolar é questionada por muitos Surdos devido ao fato de estes

permanecerem sob os cuidados de professores ouvintes, sendo que, muitos deles, não

possuem o domínio sobre a Língua de Sinais. Surge então um processo de exclusão no

que tange à participação e autonomia do aluno Surdo em sala de aula. No Brasil,

existem inúmeras escolas que utilizam o bilinguismo, mas poucas instituições trabalham

com a perspectiva cultural, valorizando a cultura Surda tal como propõe a Pedagogia em

questão.

Dentro da proposta da pedagogia Surda é que ganha força a chamada escola

bilíngue. É uma forma inovadora, mais assertiva, para a educação de Surdos, uma vez

que se trata da valorização da língua de sinais e da cultura Surda. Nesse tipo de

instituição, todos os professores teriam domínio sobre Libras: toda a instrução é

planejada e ministrada em duas línguas, de forma simultânea ou consecutiva. Nesse

contexto, os alunos mantêm a primeira língua, Libras, e aprendem a segunda por meio

de um processo natural, em virtude da interação com os outros e do uso da língua nas

matérias curriculares (CAMPELLO; REZENDE, 2014).

No atual contexto da educação de Surdos no Brasil, são exemplos bem-

sucedidos de escolas bilíngues: o Instituto Federal de Santa Catarina, no campus

Palhoça, e a Escola Bilíngue Libras e Português escrito de Taguatinga no Distrito

Federal. Todo ensino é ministrado nas duas línguas em salas mistas (alunos Surdos e

ouvintes). A equipe pedagógica e demais profissionais (Porteiro, cantineiro, auxiliar de

serviços gerais e etc.) das instituições são fluentes em Libras, o planejamento é pensado

respeitando as especificidades de ambas as línguas e os materiais didáticos são

adaptados, inclusive o site institucional. Percebe-se, a partir desses exemplos concretos,

a viabilidade e conquistas de escolas bilíngues no país.

Adiante voltaremos a esse tema, quando tratarmos da análise da “lei de Libras”.

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PARTE 2 – A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA ATUAL ACERCA DOS DIREITOS

DOS SURDOS

2.1 DIREITOS HUMANOS E DIGNIDADE

Para discutirmos o que se tem de legislação atual, em se tratando da surdez e

suas especificidades, é necessário reconhecer os pressupostos legais e o contexto social

que impulsionaram os movimentos em prol do reconhecimento do surdo como sujeito.

Perpassando os conceitos de escolarização, no que diz respeito, principalmente, ao

acesso e permanência dos alunos surdos no cenário educacional. Isso é importante

porque o respeito à identidade e ao reconhecimento do Surdo como sujeito de direitos se

manifesta fortemente na forma como seu direito à Educação é efetivado.

Analisando atentamente os aspectos históricos da Educação Brasileira, é

possível perceber que os esforços e recursos empenhados no campo educacional

privilegiaram grupos dominantes, econômica e politicamente. Goergen (1985) esclarece

que embora a educação da população em geral tenha ganhado força com o passar dos

séculos, o pressuposto elitista ainda vigora na educação brasileira. O caráter excludente

dessa educação também se manifesta no desafio que ainda hoje representa a educação

inclusiva no Brasil.

No que tange à Educação Especial, campo no qual os surdos seguem situados

atualmente, não somente os aspectos políticos e sociais delimitavam o acesso à

educação, mas também à própria concepção de ser Surdo e o que se espera de

normalidade na sociedade (PERLIN, 2008). Se os Surdos, antes rejeitados, e mesmo

assassinados por sua condição, acabaram conquistando, posteriormente, o direito à vida

e, mais recentemente, à uma vida digna, é preciso continuar a luta pela garantia dos

direitos já reconhecidos, bem como pela sua ampliação.

O deslocamento da exclusão absoluta para uma velada, que ainda ocorre, mais

próxima da concepção do Surdo como “deficiente”, naquilo que se considera padrão de

normalidade, mostrou-se uma contínua marca delimitadora na concepção da identidade

social do surdo, que foi começando a ser rompida à medida que os primeiros educadores

de Surdos lançaram a possibilidade de ensiná-los, levando em conta suas

especificidades cognitivas. Tais especificidades finalmente passaram a se tornar

relevantes para as teorias de aprendizagem.

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Embora novas luzes tenham sido assim trazidas às discussões sobre

possibilidades de educar e ensinar aos Surdos, é preciso reconhecer que os mecanismos

sociais de exclusão tomam, historicamente, novas máscaras. A educação dos surdos, de

modo geral, frequentemente desconsidera o que pensa esse sujeito acerca de si mesmo e

ao que lhe é oferecido como educação. Em outras palavras, as metodologias de ensino,

que antes delimitavam possibilidades de ser e de aprender do surdo, tornam-se

ferramentas de controle e de subjetivação, seguindo uma ótica ainda ouvintista, numa

busca constante pela normalização (SKLIAR, 1997). Os argumentos que historicamente

fundamentavam as discussões de escolarização de surdos se pautavam no princípio de

que nada adiantava ensiná-los a ler, escrever e se expressar naturalmente em sinais, se

os ouvintes não pudessem entendê-los do modo posto como natural, ou seja, pela fala.

Januzzi (2017, p.47) afirma ainda:

Enquanto era possível e conveniente, os deficientes eram segregados da

sociedade, ao passo que mais tarde, a “defesa da educação dos anormais foi

feita em virtude da economia dos cofres públicos e dos bolsos dos

particulares, pois assim se evitariam os manicômios, asilos e penitenciárias,

tendo em vista que essas pessoas poderiam ser incorporadas ao trabalho.

Mover os surdos para os espaços de escolarização regulares poderia, assim,

assegurar sua integração social, além de colaborar para torná-los indivíduos produtivos

economicamente, e, assim, também, geradores de valor moral. Ao mesmo tempo,

investigar sua aprendizagem não parecia importante, pois o modelo ouvinte dominante

reforçava a crença de que seria suficiente o ensino preconizado para os ouvintes, para

que se parecessem com os ouvintes, adequando-se para a utilidade social e econômica

de subalternidade a qual se destinavam os surdos. Porém, paradoxalmente, os

insucessos nas práticas de ensino dos surdos foram, em grande parte, os próprios

germinadores de novas discussões que puderam, de fato, assegurar-lhes uma

aprendizagem mais satisfatória. O que também foi garantindo aos Surdos mais espaços

de inclusão e direitos de cidadania.

A Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, institui, em seu artigo 1º

“[...] que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos,

dotados de razão e de consciência e devem agir uns para com os outros em espírito de

fraternidade” (UNESCO, 1990). Tal afirmação abre pressupostos para uma

escolarização sem distinções, servindo de referência nos fóruns e espaços de discussões

sobre o ensino de pessoas com necessidades específicas e demais grupos minoritários,

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antes lançados à margem da educação. O próprio movimento de políticas de inclusão

ganha força a partir da publicação da Declaração de Jontien, elaborada no âmbito da

Conferência Mundial de Educação para Todos, ocorrida no início da década de 1990, na

Tailândia. Este documento institui a Educação como um direito de todos, sendo

assinado por diversos países, dentre eles Brasil. Como propostas, trazia ainda que os

seus objetivos e metas seriam alcançados por meio do comprometimento dos governos e

da cooperação mútua entre os países acordantes.

Historicamente, é na Declaração de Jontien que os deficientes têm documentado

pela primeira vez o direito pleno à educação, no artigo 3º: “As necessidades básicas

portadoras de deficiência requerem atenção especial. É preciso tomar medidas que

garantam a igualdade de acesso à Educação aos portadores de todo e qualquer tipo de

deficiência como parte integrante do sistema educativo.” (DECLARAÇÃO MUNDIAL

DE EDUCAÇÃO PARA TODOS, 1990, p.5).

Desta forma, a educação como direito de todos passa a ser inelutavelmente uma

responsabilidade do Estado, iniciando um novo período de discussão, visibilidade e

aceitação da diversidade. Anos mais tarde, as discussões e experiências oriundas desta

Declaração convergiram no fortalecimento de novos políticas e práticas inclusivas e, em

1994, na Espanha, é publicada a Declaração de Salamanca, que reiterava os

pressupostos defendidos em Jontien e estendia as atribuições governamentais,

instituindo que:

O princípio fundamental desta Linha de Ação é de que as escolas devem

acolher todas as crianças, independentemente de suas condições físicas,

intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas ou outras. Devem acolher

crianças com deficiência e crianças bem dotadas; crianças que vivem nas ruas

e que trabalham; crianças de populações distantes e nômades, crianças de

minorias linguísticas, étnicas ou culturais e crianças de outros grupos ou

zonas desfavorecidas ou marginalizadas (DECLARAÇÃO DE

SALAMANCA, 1994, p.17).

É importante ressaltar que o termo “minorias linguísticas” aparece no novo

documento como referência direta às pessoas surdas, num contexto em que as Línguas

de Sinais já eram reconhecidas em diversos países como meio de comunicação,

expressão e também de instrução das comunidades surdas, a partir dos estudos

linguísticos de Willian Stokoe, em 1960. Além disso, o fato de aparecer no plural

“línguas de sinais”, reforça o reconhecimento destas como língua e, portanto, não

universal, mas diversa em cada país e suas comunidades. Ao mesmo tempo entende-se

como minorias aqueles grupos que estão à margem da sociedade em seu padrão

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normativo. E, assim, estão menos empoderados. De acordo com a Organização das

Nações Unidas (2008, p.12), pressupõe-se que:

Quase todos os Estados têm um ou mais grupos minoritários nos seus

territórios, caracterizados por uma identidade étnica, linguística ou

religiosa própria e diferente da identidade da maioria da população.

As relações harmoniosas no seio das minorias e entre as minorias e a

população maioritária, assim como o respeito pela identidade de cada

grupo, constituem bens valiosos para a diversidade multiétnica e

multicultural da sociedade mundial. A satisfação das aspirações dos

grupos nacionais, étnicos, religiosos e linguísticos, e a garantia dos

direitos das pessoas pertencentes a minorias, constituem um

reconhecimento da dignidade e igualdade de todos os indivíduos,

fomentam um desenvolvimento participado e contribuem assim para

aliviar tensões entre grupos e indivíduos. Estes são fatores

determinantes para a estabilidade e a paz.

Assim sendo, tem-se como grupos que compõem as minorias pessoas

desempregadas, moradores de ruas, negros, prostitutas, portadores de doenças

sexualmente transmissíveis, homoafetivos e deficientes (NOVAES, 2010). Atualmente,

os direitos das minorias se integram aos direitos universais em nível internacional e

encontram-se estabelecidos em disposições que visam à proteção e à promoção das

minorias, bem como de suas culturas e tradições, garantindo a preservação de sua

identidade. Tais direitos incluem: o direito à educação na sua língua, o direito ao uso da

língua própria em público e nos serviços governamentais, o uso de nomes e apelidos

nessa língua, o direito a manter o direito à participação política, entre outros. É por meio

da garantia de direitos que se assegura a dignidade de todos os cidadãos, incluindo as

minorias. Para Andrade (2016, p. 03), a dignidade:

Constitui um valor universal, não obstante as diversidades sócio-culturais dos

povos. A despeito de todas as suas diferenças físicas, intelectuais,

psicológicas, as pessoas são detentoras de igual dignidade. Embora diferentes

em sua individualidade, apresentam, pela sua humana condição, as mesmas

necessidades e faculdades vitais.

É com a promulgação de políticas públicas e ações afirmativas que o Estado visa

a atender às necessidades dos grupos/minorias tidos em situação de desigualdade

perante o meio social, com a finalidade de assegurar os direitos essenciais, e, por

conseguinte, a dignidade de cada um. A efetivação da dignidade humana, por sua vez,

se dá pelo reconhecimento e vivência dos Direitos Humanos. Sobre o conceito de

Direitos Humanos, Casado Filho (2012, p.16) esclarece “[...] são um conjunto de

direitos, positivados ou não, cuja finalidade é assegurar o respeito à dignidade da pessoa

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humana, por meio da limitação do arbítrio estatal e do estabelecimento da igualdade nos

pontos de partida dos indivíduos, em um dado momento histórico”. É importante

considerar que os Direitos Humanos possuem caráter de historicidade, ou seja, os

valores garantidos em uma determinada época, comunidade e local se transformam ao

longo do tempo.

De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948,

(UNESCO, 1990), fica evidenciado que os direitos humanos estão pautados no critério

da Universalidade: os direitos são válidos e legítimos para todos os indivíduos. Assim

sendo, ninguém poderá valer-se de preceitos, tais como raça, sexo, cor, língua religião,

opinião política ou de qualquer outra ordem, para se abster de ou violar qualquer direito

fundamental.

Lidar com as diferenças de modo harmonioso constitui um dos maiores desafios

da Educação Inclusiva, isso porque, além das especificidades dos sujeitos, surgem as

barreiras atitudinais, que reforçam uma exclusão camuflada ou mesmo declarada. Em se

tratando dos surdos, o estigma da incapacidade se torna evidente nos insucessos

escolares, nas práticas clínico-terapêuticas que sustentam o modo de compreender os

processos cognitivos dos surdos, que subvertem a reflexão sobre a metodologia de

ensino, limitam as possibilidades de aprender e de ser, tornam a surdez um fardo,

problema a ser consertado, minando os esforços de repensar a própria prática. Ou a

identidade do Surdo por outros vieses.

Nas relações sociais cotidianas os apelidos de “mudinho”, surdo-mudo”, dentre

outros, antecedem os discursos; a fala e a tonalidade incomum dos surdos oralizados são

frequentemente razão de chacotas. Da mesma forma, as produções escritas, por vezes

incompreensíveis pela mescla entre letras e palavras da Língua Portuguesa, organizadas

de modo semelhante à sintaxe da Língua de Sinais, suscitam julgamentos quanto à

qualidade da alfabetização. Ou mesmo das capacidades cognitivas do Surdo,

prejudicando a expressão das suas ideias e truncando a compreensão das mesmas pelas

pessoas. O que lhe “retira” credibilidade social, reforçando o ciclo do preconceito e da

exclusão: “mesmo indo à escola não aprendem”. Observamos que isso também revela o

lado amargo da educação inclusiva quando é feita sem a qualidade e a seriedade

esperada: a exposição e a vulnerabilização dos sujeitos, acentuando a marginalização.

Em relação aos surdos, discute-se o porquê de a escrita se mostrar tão desviante do

comum aos usuários da língua, valendo-se do argumento de uma aprendizagem

deficitária, cujo déficit estaria focado somente no aluno, desconsiderando-se, por

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exemplo, que os supostos erros contidos nas produções escritas de surdos revelam

elementos de uma língua outra, o pidgin5 (BERNARDINO, 2000). Situação causada

também pela ausência de uma metodologia específica, no caso, o português escrito

como segunda língua, o que permitiria dominar melhor a escrita. Do mesmo modo,

importa também o acesso a tal aprendizagem no período escolar correto e, de modo

satisfatório, também à língua de sinais.

Ainda nesse sentido, a própria Língua de Sinais, ora pela falta de

instrução/conhecimento, ora como prática discriminatória e, em alguns casos, por ambas

as razões, é diminuída a gestos, mímicas ou pantomimas. O que pode acontecer mesmo

nos cursos da graduação de licenciatura, na disciplina de Libras. Os sinais podem ser

tidos com conotações cômicas, obscenas, motivo de piadas em diversos espaços, enfim,

como “brincadeira”, ou como se o fato de alguém ser usuário dessa língua publicamente

pareça errado e vergonhoso. O que pode acarretar na repressão do seu uso, mesmo em

espaços escolares, com não surdos presentes, numa crítica velada a quem não domina a

língua. Uma exemplificação disso ocorreu ainda nesse ano de 2017, com uma aluna

surda, estudante em um curso de licenciatura, que ao ir para o campo do estágio foi

impedida, pela direção da escola onde o estágio seria realizado, de ser acompanhada por

sua intérprete, sob a justificativa de que a sinalização da intérprete “atrapalharia a aula,

tirando a concentração dos alunos”.

Parte disso pode ser compreendido pelo histórico da Língua de Sinais no Brasil.

A legislação que reconhece a Libras e a institui como língua natural das comunidades

surdas brasileiras, embora não mais tão recente, ainda engatinha, na sua prática. O

reconhecimento social que se pretende a partir da lei segue em marcha lenta,

principalmente pela falta de apoio e incentivo do uso do idioma nos espaços acadêmicos

e à resistência à sua difusão nesses espaços e na cultura mais estendida, fora desses

espaços. Contribui ainda, para esse atraso, a pouca disposição em se acolher o Surdo, de

fato, como minoria linguística, e não como deficiente. Tais práticas desafiam o que se

institui na declaração de Salamanca e enraízam-se de modo a mascarar o preconceito,

que ainda é latente e patente, em se tratando da educação de surdos.

É preciso considerar que a legislação, por si só, avança pouco na aceitação social

no que tange aos surdos. Isso ocorre, de certa maneira, pelo fato de a inclusão, as

5 Pidgin ou pídgin, também conhecido como língua de contato é a nomenclatura dada a qualquer língua

que é criada, normalmente de forma espontânea, de uma combinação de outras línguas, e serve de meio

de comunicação entre os falantes de idiomas diferentes.

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adaptações e as demandas socioeducacionais se configurarem por força de lei, isto é,

não ocorrem de modo natural e voluntário, mas pela imposição legal. A realidade

brasileira parece orientar que se faça o que é previsto na lei, em vez de ocorrer um

direcionamento social, movido pelas razões e concepções das instituições, dos

estudantes e suas famílias, dos grupos e movimentos sociais surdos e ouvintistas, a

partir de discussões envolvendo esses atores e suas demandas. Que são contínuas e

dinâmicas. Além disso, nas grades de formação das licenciaturas, como será adiante

argumentado, a Libras, embora obrigatória no currículo, raramente recebe a devida

importância ou incentivo para que o seu estudo seja aprofundado. O que reforça as

barreiras e o desenvolvimento natural de práticas bilíngues e, consequentemente,

ocasiona que se alimentem os pré-conceitos acerca dos surdos e da língua de sinais.

É de se julgar estranho, no entanto, que com os avanços nas tecnologias e acesso

à informação, em pleno século XXI, dependamos de legislações e políticas afirmativas

com vistas a “humanizar” o surdo e instaurar sua dignidade, como previsto nas

declarações já citadas. As práticas contraditórias e negativas a respeito dos – e em

relação aos - surdos, embora pareçam por vezes superficiais e irrelevantes, refletem a

posição que o mesmo ocupa na esfera social e redefinem seu modo de ser.

Influenciando direta e unilateralmente sua identidade, por meio de uma ótica do ouvinte,

dominante, e atentando contra a dignidade de direito do surdo, do direito de ser surdo e

de ser reconhecido como diferente. Rocha (2001) nos narra que o próprio conceito de

dignidade tem sua origem na filosofia, ganhando juridicidade positiva e impositiva no

combate às práticas nazifascistas após a Segunda Guerra Mundial, em meados do século

XX. Em suas palavras:

Contra todas as formas de degradação humana emergiu como imposição do

Direito justo o princípio da dignidade humana. A degradação encontra

sempre novas formas de se manifestar; o Direito há de formular,

paralelamente, novas formas de concretizar, assegurando que a Justiça não se

compadeça do aviltamento do homem ou da desumanização da convivência (ROCHA, 2001, p.07).

No Brasil, signatário da Declaração dos Direitos Humanos, as desigualdades

sociais corroboram as manifestações de degradação em massa dos grupos minoritários.

Sendo assim, mesmo que a legislação traga a prerrogativa do respeito mútuo, a prática

social torna o texto da lei difícil de concretizar. Ou seja, as relações de dominação

dificultam sua concretização, e, paradoxalmente, é também no âmbito dessas relações

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de poder que as legislações são geradas. Como esperar, assim, que assegurem, de fato,

direitos? Nesse sentido, parece ser mais fácil que se tenha um modelo padronizado de

surdo, que facilite seu enquadramento na concepção dominante de “normalidade e

anormalidade” e, daí a interação com este, do que ceder à possibilidade da diferença e

reformular a maneira do se relacionar, educar e considerar o sujeito surdo.

É óbvio que a simples normatização de um princípio universal de dignidade não

resolve a questão no complexo de relações humanas da história atual. Contudo,

reconhecê-lo e trazê-lo para o contexto é o ponto de partida na elaboração de leis e

políticas públicas em prol dos sujeitos surdos. Com a consciência, no entanto, de que

não se pode esperar que inovações legais, por si, resolvam a desigualdade social.

Mesmo porque a premissa da lógica de se ter que esclarecer o direito à igualdade de

tratamento e o princípio de dignidade dos surdos revela a contramão de práticas que

desumanizam o surdo nas relações cotidianas. Afinal, “toda forma de aviltamento ou

degradação do ser humano é injusta. Toda injustiça é indigna e, sendo assim,

desumana” (ROCHA, 2001, p. 12).

2.2 MOVIMENTOS SOCIAIS, POLÍTICAS E ASPECTOS LEGAIS

Conforme analisamos, o processo histórico evidencia um modo de entender o

surdo em desdobramentos de avanços e regressões. Em síntese, Sá (2009, p. 03) afirma

que:

A história contada pelos não-surdos, é mais ou menos assim: primeiramente

os surdos foram “descobertos” pelos ouvintes, depois eles foram isolados da

sociedade para serem “educados” e afinal conseguirem ser como os ouvintes;

quando não mais se pôde isolá-los, porque eles começaram a formar grupos

que se fortaleciam, tentou-se dispersá-los, para que não criassem guetos.

Embora não se possa afirmar que esse ciclo de progressos e retrocessos seja

positivo para a história dos surdos, é justamente no cerne da repressão e das práticas de

governo que afloram as atitudes de contraconduta. Isto é, numa perspectiva

foucaultiana, é nesse ínterim que surgem possibilidades de ressignificar o sujeito a partir

do seu modo de agir, o que provoca tensões nas relações e modifica o modo de governar

a si e ao outro (VIEIRA-MACHADO, 2015). É nesse contexto que a própria

comunidade surda- a quem interessa principalmente o direito ao pertencimento social-

deve ganhar força e mobilizar grupos de defesa da Libras e da cultura surda, junto dos e

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com os ouvintes. Mobilização integrada por surdos, familiares, CODAS6 e tradutores,

intérpretes e demais profissionais que atuam na área da surdez e simpatizantes da causa

Surda.

O que se tem atualmente como legislação e fundamentação para educação de

surdos é, na esteira dessas mobilizações, também fruto dos movimentos de resistência

nas associações de surdos, associações de tradutores e intérpretes e movimentos de

defesa da Língua de Sinais. A partir dos estudos de Stokoe (1960) e seus

desdobramentos no “descobrimento” de uma comunidade que compartilha não somente

uma língua, mas características culturais pontuais, a educação de surdos passa a ser

percebida numa outra conjuntura, que foi modificando lentamente as suas perspectivas

na educação formal. Como ocorreu, a partir de 1961, com a primeira Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional, que mencionava especificamente em seus artigos 88 e 89

o direito à educação dos excepcionais.

Um pouco mais tarde, em 1967, começam a circular novos avanços, discutindo a

educação de surdos e, finalmente, a Constituição de 1988 define que o direito à

educação formal não somente é responsabilidade do Estado, como este também precisa

assegurar o direito à diferença cultural. Embora isso ainda não se refira à cultura surda

mais especificamente, já há uma abertura para o reconhecimento da diversidade

cultural. Observe-se o teor do texto legal:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e

acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a

difusão das manifestações culturais. § 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas

e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo

civilizatório nacional. § 2º - a lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta

significação para os diferentes seguimentos étnicos nacionais. (BRASIL,

1988)

A cultura passa agora a ser fundamento da educação, o que permite novas

prerrogativas de reconhecimento das comunidades surdas e sua língua visual,

avançando para discussões atreladas ao que se pode oferecer como educação para

assegurar e empoderar a comunidade surda. O que pode ser percebido já na LDB de

1996, que começa a dialogar diretamente com a chamada Educação Inclusiva e, acerca

das escolas de surdos, dispondo no artigo 26-B que “[...] será concedida às pessoas

6 CODAS – Children Of Deaf Adults (Crianças de pais Surdos). O termo é utilizado para se referir aos

filhos ouvintes de pais Surdos.

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surdas, em todas as etapas e modalidades da educação básica, nas redes públicas e

privadas de ensino, a oferta da Língua Brasileira de Sinais – Libras, na condição de

língua nativa das pessoas surdas” (BRASIL, 1996).

É interessante notar que o reconhecimento da língua de sinais não somente como

língua, mas característica das comunidades surdas, precede a legislação de 2002, o que

reforça a contribuição de estudos e políticas de manutenção cultural dos movimentos

surdos na busca por tal reconhecimento, que se tornou oficial no dia 24 de abril de

2002, por meio da lei 10.436. A lei que oficializa a Língua Brasileira de Sinais se revela

como marco histórico oriundo de lutas e manifestações, que tomavam força há décadas.

Objetivou e definiu, nos artigos 1º a 4º, o caráter sistemático da Libras, seus usuários

principais, obrigatoriedade e responsabilidade do poder público na sua difusão e

atendimento adequado nos setores públicos, além de novamente relacioná-la à

educação:

Art. 1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua

Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados. Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a

forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza

visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema

linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de

pessoas surdas do Brasil. Art. 2

o Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e empresas

concessionárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o

uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais - Libras como meio de

comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do

Brasil. Art. 3

o As instituições públicas e empresas concessionárias de serviços

públicos de assistência à saúde devem garantir atendimento e tratamento

adequado aos portadores de deficiência auditiva, de acordo com as normas

legais em vigor. Art. 4

o O sistema educacional federal e os sistemas educacionais estaduais,

municipais e do Distrito Federal devem garantir a inclusão nos cursos de

formação de Educação Especial, de Fonoaudiologia e de Magistério, em seus

níveis médio e superior, do ensino da Língua Brasileira de Sinais - Libras,

como parte integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs,

conforme legislação vigente. Parágrafo único – A Língua Brasileira de Sinais – Libras não poderá

substituir a modalidade escrita da Língua Portuguesa (BRASIL, 2002).

A relação entre a língua de sinais e a educação adquire uma relação mais

proximal no artigo 4º, a partir das discussões já postas de que, como meio de

preservação cultural e formação dos sujeitos surdos, a garantia do acesso à Libras se

prova essencial, e, dessa forma, seria necessário que tal complexidade idiomática fosse

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discutida principalmente na formação de novos professores, profissionais da educação

especial e fonoaudiólogos.

De modo controverso, contudo, o reconhecimento da língua de sinais por meio

dessa legislação não a estabelece de modo prioritário como o modo exclusivo de

comunicação da comunidade surda. Inclusive, fica perceptível que se estabelece uma

relação de disputa (ou mesmo de subordinação) entre a Libras e a Língua Portuguesa no

parágrafo único do artigo 4º, ao instituir-se que “a Libras não poderá substituir a

modalidade escrita da Língua Portuguesa”. O que, como será adiante discutido, acaba

por ser um forte limitador do direito dos surdos a oportunidades educacionais e

profissionais, pois diversos concursos importantes, tais como o Exame Nacional do

Ensino Médio (ENEM, principalmente no tópico Redação), exigem do candidato surdo

o mesmo domínio do Português do que aquele dos candidatos ouvintes. É a proficiência

no idioma que é considerada na correção das provas. Numa contradição – poderia

mesmo ser dito, no desrespeito à diversidade cultural, à especificidade da Libras como

primeira língua e às condições de alfabetização do Surdo no sistema escolar brasileiro.

A ideia parece ser a de que, instituída a obrigatoriedade do intérprete, do tradutor, ou do

professor especializado nas disciplinas escolares com domínio de Libras, do ensino de

Libras nas licenciaturas, e do reconhecimento da Libras como língua, estão dadas as

condições para que o surdo adquira a proficiência necessária no Português escrito. O

que ignora os conflitos, tensões, frustrações, dentre outros adjetivos, que vem

caracterizando, no cotidiano escolar e extra-escolar, o aprendizado da Língua

Portuguesa pelos surdos. Para não dizer da negação do modo Surdo de construir seu

conhecimento, com base no processamento de informações viso-espaciais, e de ter que

“traduzir” os conhecimentos assim produzidos numa forma verbal de linguagem. São

outros registros, outra interpretação de mundo, seriamente desconsideradas.

À época da legislação que oficializou a Libras, os movimentos em prol das

escolas bilíngues para surdos se cristalizavam, e a busca pelo reconhecimento da língua

precedeu à busca por práticas educacionais bilíngues. Por dizer que se estabelece uma

disputa entre línguas no parágrafo único supracitado, pretende-se analisar o que se pode

abstrair do texto legal na prática real das escolas e na acessibilidade pública. Ou seja,

temos uma língua majoritária dos ouvintes, a Língua Portuguesa, e uma língua outra, a

Libras, agora reconhecida oficial e legalmente, porém natural de um grupo minoritário.

Tal situação tensiona discussões históricas sobre as relações de poder estabelecidas

entre a cultura surda e aquela ouvintista e influencia diretamente o processo de ensino

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aprendizagem, além de todo o processo de desenvolvimento psicossocial do surdo. Ao

contrário dos ouvintes, que optam ao longo de sua formação por adicionarem ao

currículo uma língua adicional, os surdos brasileiros nascem fadados a serem bilíngues

para se adequarem a um sistema educacional moldado para ouvintes, e serem

reconhecidos socialmente nos padrões de normalidade, o que representa uma forma

mascarada de ouvintismo (LINS; SOUZA; NASCIMENTO, 2016).

As tensões ficam ainda mais evidentes entre as duas línguas se considerarmos os

pressupostos de acessibilidade e as propostas de avaliação e registro escrito. Embora os

sistemas de escrita para língua de sinais venham ganhando força nas últimas décadas,

especialmente o Sign Writing, proposto por Valerie Sutton7, tais sistemas ainda são

pouco difundidos e restritos, na maioria dos casos, ao contexto acadêmico do ensino

superior. Dessa forma, as formas de registro correntes mais comuns ao longo da

educação de surdos permanecem sendo a língua portuguesa, ancorada no fato legal de

que esssa não poderá ser substituída por nenhuma outra língua.

Isso também ocorre em diversos outros países, cujas línguas de sinais foram

reconhecidas, porém, naqueles casos, é comum que as línguas orais e de sinais

coexistam, considerando o acesso a ambos os sistemas nos períodos de aquisição de

linguagem próprios ao desenvolvimento cognitivo. Se tomarmos os Estados Unidos

como parâmetro de comparação, o reconhecimento legal da Língua Americana de

Sinais, doravante ASL, percorreu o caminho oposto ao do Brasil, isto é, adquiriu peso

social a partir dos estudos linguísticos e culturais de pesquisadores surdos e ouvintes

como Carol Padden, Paddy Ladd, Harlan Lane, Oliver Sacks, Klima e Beluggi e,

posteriormente, foram incorporados aos parâmetros educacionais e de acessibilidade. É

preciso considerar, no entanto, que existem, mesmo que de modo deficitário nesses

países, políticas de promoção e acesso a ambas as línguas, bem como o foco no ensino

da língua oral observando os critérios e metodologia de segunda língua ou mesmo de

língua estrangeira, realidade que pode ser observada nos currículos de formação

superior de universidades americanas, que ofertam tanto o Inglês quanto a ASL na

classificação de línguas estrangeiras.

No Brasil, em contrapartida, a legislação de 2002, embora lance a

obrigatoriedade de utilização da língua Portuguesa escrita, não discorre – e nem dispõe-

sobre o acesso a essa língua, no processo de escolarização e desenvolvimento do surdo.

7 A dinamarquesa Valerie inicialmente criou um sistema que registrava os movimentos de dança;

posteriormente a técnica foi aplicada para registar a língua de sinais.

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Além disso, Lacerda (2006) observa, que em estudos por ela realizados, que a disciplina

Língua Portuguesa como segunda língua (ou língua estrangeira) foi excluída das grades

de formação de profissionais da Letras ou, em alguns casos, é sutilmente discutida de

modo concomitante com outros tópicos, o que gera um déficit em profissionais que de

fato compreendam o que seria ensinar o português escrito com metodologia de segunda

língua ou língua adicional. Como fruto disso, o número de surdos incapazes de ler ou

escrever mesmo sentenças simples, na Língua Portuguesa, ainda é considerável, com o

agravante de que, como se trata da língua escrita oficial também dos surdos, esses

sujeitos se veem forçados, ao concorrer em concursos públicos e ao longo de sua

formação educacional e profissional, a mostrar domínio dela, a despeito do seu nível de

proficiência, como já acima referido.

Avançando um pouco mais em termos de legislação, é proposto, em 2004, um

projeto de lei visando alterar a lei 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases da

educação nacional, que de certa forma complementa a lei de 2002 no que tange à oferta

da Libras, não restringido sua difusão ao ensino superior, mas também se fazendo

presente nas demais etapas da educação. Conforme o texto legal:

Art. 1 – A lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida

do seguinte art. 26-B: Art. 26-B – Será garantida às pessoas surdas, em todas as etapas e

modalidades da educação básica, nas redes públicas e privadas de ensino, a

oferta da Língua Brasileira de Sinais – Libras, na condição de língua nativa

das pessoas surdas (BRASIL, 2005)

A proposta de alteração numa lei que rege a educação e especificamente aborda

a questão da surdez alavanca as discussões sobre a difusão da Libras, contudo as

problematizações oriundas do que nela se propõe ultrapassam as discussões sobre oferta

e demanda do ensino da Libras, adentrando o campo da formação específica e da

certificação, disposições gerais sobre o tempo de adequação das instituições de ensino e

sistematização dos trabalhos dos tradutores intérpretes do par linguístico Libras-Língua

Portuguesa, Instrutores de Libras e Professores de Libras.

É a partir dessas discussões e problematizações que, em 22 de dezembro de

2005, é publicado o Decreto 5.626. Este decreto visava a intensificar as afirmações da

lei 10.436/02 e regulamentá-la, motivando a presença de tradutores intérpretes nos

espaços educacionais e dispondo sobre a formação e a certificação de profissionais

surdos e ouvintes para atuarem principalmente no campo educacional. Estabeleceu-se

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um marco histórico-legal para os movimentos surdos, impulsionando inclusive a

abertura inédita de cursos superiores na área de Letras específicos para a Língua de

Sinais, tanto na Licenciatura quanto no Bacharelado. O que pode ser visto na prática a

partir de 2008, com a abertura do curso de Letras – Libras pela Universidade Federal de

Santa Catarina (QUADROS, 2012). É importante ressaltar que, embora a presença de

intérpretes nos espaços educacionais seja regulamentada por esse decreto, sua atuação

precede legalmente a LDB/96 e o próprio decreto, estando prevista pela lei 10.098/02,

que entre outras disposições garante acessibilidade aos surdos no que se refere à

presença dos intérpretes nos meios acadêmicos, sociais e midiáticos, mais

especificamente no artigo 18, também regulamentado por este decreto. Curiosamente, o

cargo de tradutor intérprete somente passa a existir oficialmente quase uma década

depois da lei de acessibilidade e um ano depois de iniciada a primeira turma de

bacharéis em Letras-Libras, por meio da lei 12.319/09. Considerando tanto a lei de

acessibilidade, quanto o decreto acima referido, a presença dos tradutores intérpretes

configura uma ação prática de eliminação de barreiras e, consequentemente, a promoção

do que já era previsto na Declaração de Direitos Humanos: o acesso à informação, à

comunicação, à preservação e à difusão cultural, ao reconhecimento, ao esporte, entre

outras atividades essencialmente humanas e sem distinção de raça, especificidades

culturais, credo, cor, gênero ou orientação sexual.

Para que se possa, enfim, definir o público a que se destinam as disposições do

decreto, sua abrangência e a legislação específica para educação de surdos, faz-se

necessário entender prioritariamente o conceito de pessoa surda e os modos de

classificação contemplados legalmente, o que ocorre nos artigos 1ª e 2º do decreto:

Art. 1o Este Decreto regulamenta a Lei n

o 10.436, de 24 de abril de 2002, e o

art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000.

Art. 2o Para os fins deste Decreto, considera-se pessoa surda aquela que, por

ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de

experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da

Língua Brasileira de Sinais - Libras. Parágrafo único. Considera-se deficiência auditiva a perda bilateral, parcial

ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas

freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz.

A análise de classificação de surdez neste decreto não somente considera as

questões biológicas de aferição de capacidade auditiva como também incorpora os

aspectos culturais e especificidades na relação humana e na expressão natural, de

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essência visual, da comunicação Surda. Os resultados e quantitativos de decibéis são

atualmente utilizados na promoção de políticas afirmativas, além de possibilidades

cirúrgicas e uso de aparelhos de amplificação sonora, bem como para a acessibilidade,

mediante solicitação no caso de processos seletivos, concursos etc. Contudo, se por um

lado parece compreensível o estabelecimento destes padrões, argumentando-se que

“garantem” legalmente o reconhecimento do surdo, por outro, reafirma-se a surdez

como deficiência. Seria mesmo necessária tal delimitação para a garantia de direitos?

Ou tal “necessidade” já não se configura, ela própria, como cerceamento ao direito, por

exemplo, de não ser considerado deficiente e, sim, minoria cultural? Parece-nos que

haja, aqui, outro dos paradoxos que evidenciam como a legislação brasileira se mostra

ambígua no entendimento do Surdo, o que também se repete na compreensão não só da

deficiência em geral, mas de outros grupos marginalizados.

A discussão sobre a inserção da Libras ao longo da educação básica e também

superior fica mais clara e objetiva no parágrafo 3º, que discorre:

Art. 3o A Libras deve ser inserida como disciplina curricular

obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do

magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de

Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do

sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do

Distrito Federal e dos Municípios. § 1

o Todos os cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do

conhecimento, o curso normal de nível médio, o curso normal

superior, o curso de Pedagogia e o curso de Educação Especial são

considerados cursos de formação de professores e profissionais da

educação para o exercício do magistério. § 2

o A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa

nos demais cursos de educação superior e na educação profissional, a

partir de um ano da publicação deste Decreto.

Para que se tenham resultados no mínimo consideráveis na educação de surdos é

primordial que os profissionais nela envolvidos tenham formação para a compreensão, o

uso e a difusão da Libras e tudo o que ela representa para a cultura surda. Nesse sentido,

o artigo 3º aparece como aporte definitivo ao inserir a Libras como disciplina

obrigatória em todos os cursos de licenciatura. Se, ao longo do processo educacional, os

alunos surdos estarão expostos aos conteúdos da diversidade curricular e seus

desdobramentos, restringir a formação em Libras a pedagogos, profissionais de Letras e

fonoaudiólogos constituiria uma grave falta, pois a relação professor-aluno-

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aprendizagem acabaria comprometida nas demais disciplinas, ou pesadamente colocada

sob os intérpretes/tradutores.

De acordo com a legislação, nos cursos de formação superior em licenciatura, a

disciplina Libras aparece com carga horária de 40 a 80 horas, e é durante as aulas que se

deveria discutir, sistematicamente, a metodologia de ensino para surdos, a relação

surdo-ouvinte, a cultura Surda, a historicidade da educação dos surdos, além da

promoção da comunicação em sinais. Obviamente, a carga horária se torna insuficiente

para tratar de tantas demandas, uma vez que já é exígua mesmo para a aquisição efetiva

da língua, ainda que só esse fosse o conteúdo das aulas. Há de se pensar, então, em

desdobramentos da disciplina Libras e a formação complementar em nível de extensão,

por exemplo. Dificilmente, porém, essas discussões se abrem nas instituições, ficando a

questão do ensino do surdo considerada “resolvida” pela oferta da disciplina de Libras.

Outro aspecto relevante é o fato da Libras aparecer, ainda como consequência da

legislação, pela primeira vez com disciplina optativa em demais cursos que não são das

licenciaturas. Tal realidade traz implicações sociais diversas, abrindo o leque de

possibilidades comunicativas, de pesquisa e de acessibilidade, não somente quanto à

formação de profissionais diversos com conhecimento da Libras, das especificidades da

cultura surda, como também na ocupação desses espaços por surdos.

Em se tratando da formação de professores e instrutores de Libras, os artigos 4º,

5º e 6º discorrem:

Art. 4

o A formação de docentes para o ensino de Libras nas séries finais do

ensino fundamental, no ensino médio e na educação superior deve ser

realizada em nível superior, em curso de graduação de licenciatura plena em

Letras: Libras ou em Letras: Libras/Língua Portuguesa como segunda língua. Parágrafo único. As pessoas surdas terão prioridade nos cursos de

formação previstos no caput. Art. 5

o A formação de docentes para o ensino de Libras na educação

infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental deve ser realizada em curso

de Pedagogia ou curso normal superior, em que Libras e Língua Portuguesa

escrita tenham constituído línguas de instrução, viabilizando a formação

bilíngüe. § 1

o Admite-se como formação mínima de docentes para o ensino de

Libras na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, a

formação ofertada em nível médio na modalidade normal, que viabilizar a

formação bilíngüe, referida no caput. § 2

o As pessoas surdas terão prioridade nos cursos de formação

previstos no caput. Art. 6

o A formação de instrutor de Libras, em nível médio, deve ser

realizada por meio de: I - cursos de educação profissional;

II - cursos de formação continuada promovidos por instituições de

ensino superior; e

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III - cursos de formação continuada promovidos por instituições

credenciadas por secretarias de educação. § 1

o A formação do instrutor de Libras pode ser realizada também por

organizações da sociedade civil representativa da comunidade surda, desde

que o certificado seja convalidado por pelo menos uma das instituições

referidas nos incisos II e III. § 2

o As pessoas surdas terão prioridade nos cursos de formação

previstos no caput.

Esses artigos, essencialmente, lançam a possibilidade de organização e abertura

de cursos de graduação da área de Libras, o que viria a ocorrer 3 anos depois da

promulgação da referida legislação, com as turmas de licenciatura e bacharelado na

Universidade Federal de Santa Catarina, como já relatado e, logo em seguida, em polos

de educação a distância espalhados pelo Brasil. Há ainda distinções entre diferentes

cargos e funções, como o professor de Libras (nível superior), professor de Libras para

disciplinas específicas, como História, formação superior para os anos iniciais e, por

fim, o instrutor de Libras (nível médio). A disposição que privilegia não somente

professores, mas instrutores surdos, e os prioriza no acesso à qualificação profissional

para trabalhar com os cargos e funções previstos na legislação, representa uma retomada

histórica da relevância dos surdos nos espaços educacionais. Possibilita, ainda, um

leque de novas opções, abordagens e metodologias no trabalho com a Libras e a cultura

surda, além do reconhecimento da relação identitária existente entre os pares surdos. É

preciso lembrar que em momentos históricos, antes da instituição do Oralismo Puro

como método exclusivo de ensino, professores surdos cresciam em número em diversos

países e os resultados eram positivos no desenvolvimento de alunos e novos professores

surdos. Nesse sentido, no Brasil, a ocupação desses cargos por surdos representa

medidas de ressignificação e conquista, impulsionados pelos movimentos de resistência

da comunidade surda.

Nos artigos 7º a 14º, vemos a regulamentação do tempo da instituição da

disciplina Libras nas grades de curso de formação, critérios de promoção e difusão de

cursos de formação em nível superior e de Pós-Graduação pelas instituições de ensino,

bem como uma certificação específica para atuação como tradutores intérpretes e

professores, uma vez que os cursos de Letras-Libras ainda estavam se projetando. Sobre

essa certificação, precisamos atentar para o artigo 8º que dispõe:

Art. 8

o O exame de proficiência em Libras, referido no art. 7

o, deve avaliar a

fluência no uso, o conhecimento e a competência para o ensino dessa língua.

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§ 1o O exame de proficiência em Libras deve ser promovido,

anualmente, pelo Ministério da Educação e instituições de educação superior

por ele credenciadas para essa finalidade. § 2

o A certificação de proficiência em Libras habilitará o instrutor ou o

professor para a função docente. § 3

o O exame de proficiência em Libras deve ser realizado por banca

examinadora de amplo conhecimento em Libras, constituída por docentes

surdos e lingüistas de instituições de educação superior.

O Exame Nacional de Proficiência em Libras, doravante Prolibras, é então

instituído como certificação necessária para atuação em nível médio e superior, tanto

para o ensino quanto para a tradução da Libras. Isso se deve ao fato de que se fazia

necessário filtrar os profissionais de fato aptos a ocuparem tais cargos, propostos no

decreto e, uma vez que os cursos de licenciatura e bacharelado ainda não existiam na

prática, era necessário um período para que se formassem profissionais específicos

nessas áreas. Sendo assim, o exame de proficiência surge como um modelo “provisório”

de seleção e avaliação de profissionais para atender à demanda educacional. Provisório

é aqui empregado na ausência de um termo que se aproxime do sentido de espera. A

certificação não expira por tempo decorrido, mas deixaria de ser aplicada em um

período de dez anos, partindo da hipótese de que, neste tempo, já haveria profissionais

suficientes para atender à demanda com formação específica. Isso não ocorreu, contudo,

seja em termos da expectativa de que a certificação colaborasse para a ampliação do

número de profissionais, quer na periodicidade na aplicação dos exames, que em função

de questões políticas e orçamentárias, não cumpriu a proposta de aplicação anual. Até

2017, apenas 7, das 10 edições previstas inicialmente, haviam sido aplicadas.

Ocorreram cinco, sequencialmente, de 2006 a 2010. Após interrupção, o exame foi

retomado somente em 2013, sob o nome de Sexto Prolibras e, por fim, em 2015,

aplicou-se o Sétimo Prolibras. Além disso o exame sofreu alterações em termos de

organização e também no formato e certificação. As cinco primeiras edições ocorreram

sob responsabilidade da Universidade Federal de Santa Catarina, ao passo que as duas

últimas foram realizadas sob responsabilidade do Instituto Nacional de Educação de

Surdos, em parceria com aquela universidade. No que diz respeito ao formato, nas

últimas edições o exame contava com 25 questões objetivas na primeira etapa e não 10,

como na primeira edição. Adicionalmente, o modelo de certificação por nível de

atuação, nível médio e nível superior, deixa de existir. O certificado passa a ser único,

sem distinção de nível.

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A presença de um exame nacional de proficiência, por sua vez, demarca uma

regulamentação mais precisa para atuação desses profissionais a partir de um espelho do

que se propõe em outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, os exames de

avaliação de desempenho precisam ser validados anualmente, como é o caso do RID –

Register of Interpreter for the Deaf. A proposta inicial pretendia que o exame de

proficiência tivesse esse caráter de avaliação contínua, para assegurar qualidade na

prestação de serviços e observância dos critérios éticos, embora isso não tenha ocorrido.

A aprovação no Prolibras tem gerado certificação definitiva, por assim dizer.

O exame ainda representa, entretanto, um importante instrumento regulador,

sendo exigência em concursos públicos e mesmo para atuação em caráter de designação

temporária, em escolas de diversos estados brasileiros. A partir da oitava edição, de

2009, o exame passou também por uma reformulação, aumentando-se o número de

questões e sistematizando-se a avaliação de modo a considerar referências teóricas da

educação de surdos e a análise da fluência. Além disso, a divisão entre certificação em

nível superior e ensino médio são mescladas numa habilitação única, cabível para

ambos os níveis, e isso ocorre pelo fato de atualmente os cursos de Letras Libras, tanto

em Licenciatura quanto no Bacharelado, serem mais distribuídos e institucionalizados, o

que dispensaria a nomenclatura de um certificado específico para nível superior.

Sabe-se que, embora seja um instrumento regulador para os profissionais da

área, a certificação não avalia de modo a abranger todos os contextos em que os

profissionais de Libras estarão inseridos, o que forçará eventualmente a criação de

novos mecanismos de avaliação e certificação de profissionais, em áreas específicas de

atuação.

No que diz respeito à Língua Portuguesa, é possível perceber no decreto uma

adição substancial em relação ao que se propunha na lei 10.436/02:

Art. 13. O ensino da modalidade escrita da Língua Portuguesa, como

segunda língua para pessoas surdas, deve ser incluído como disciplina

curricular nos cursos de formação de professores para a educação infantil e

para os anos iniciais do ensino fundamental, de nível médio e superior, bem

como nos cursos de licenciatura em Letras com habilitação em Língua

Portuguesa. Parágrafo único. O tema sobre a modalidade escrita da língua

portuguesa para surdos deve ser incluído como conteúdo nos cursos de

Fonoaudiologia.

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No artigo 13, é mencionado pela primeira vez a oferta do ensino de Língua

Portuguesa escrita como segunda língua para pessoas surdas, como disciplina em cursos

de formação para professores em nível médio e superior. Tal premissa ainda não ocorre

atualmente, mesmo nos cursos de formação em Licenciatura Letras-Português, o que

provoca tensionamentos e problematizações, por falta de formação e informação sobre o

que seria de fato ensinar o Português como segunda língua.

Lins e Cols (2016) afirmam que a disciplina Língua Portuguesa como segunda

língua fazia parte do currículo comum na formação superior em Letras, aparecendo

também como disciplina optativa em diversos outros cursos de formação em nível

superior, até meados da década de 1980. Posteriormente, foi sendo suprimida e, na

atualidade, são raros os casos em que é ofertada e, quando o é, está restrita aos cursos de

bacharelado em tradução ou linguística. Pensando nisso, a menção à oferta da

disciplina, a partir de 2005, tendo como público alvo os alunos surdos, nos provoca

reflexões a respeito do modo como a língua escrita vem sendo utilizada na educação de

Surdos.

Embora as propostas atuais tensionem para práticas bilíngues, a ambiguidade da

proposta do uso da Língua Portuguesa, na lei 10.436, e a complementação pelo

parágrafo 13 do decreto 5.626, permitem diferentes concepções do ensinar pelo viés

linguístico. Ainda sobre práticas bilíngues, Xavier (2014) discute que existem diferentes

modelos do que acredita ser um ensino bilíngue no campo educacional, dentre eles a

proposta de escola bilíngue na perspectiva da educação especial, dentro dos ideais de

inclusão, do acesso à educação e à proposta da educação bilíngue na perspectiva

linguística, com a criação de escolas que tenham a língua de sinais como língua de

instrução.

Historicamente, vimos que a educação de surdos tem sido alocada nas

perspectivas da Educação Inclusiva e, atualmente, observamos um fluxo que vai ao

encontro desse modelo e da defesa de uma escola de/para surdos, em que as

especificidades linguísticas e culturais dos surdos tenham prioridade nos métodos de

ensino. Nesse modelo de educação, a proposta do parágrafo 13 do decreto representa

uma importante mudança na aquisição da língua portuguesa, que seria trabalhada na

modalidade escrita e a partir da língua de sinais.

Mesmo com as atuais propostas e o reconhecimento da Língua Brasileira de

Sinais, é nítido que a Língua Portuguesa, nos documentos legais, permanece de modo

imperativo como meio de instrução, padrão de comunicação e exigência curricular. E,

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embora sua atuação seja prevista na legislação, o número de professores capacitados

para ensinar o Português como segunda língua escrita é irrisório. O que se reflete,

somando-se a outros fatores, no baixo domínio do Português escrito pelos surdos, que

ainda assim se veem forçados a produzir, manter registros e serem avaliados pelos

textos por eles escritos em Português, numa lógica da oralidade e, inclusive, aprendendo

o Português escrito por meio de metodologias pautadas na oralidade. São frequentes os

relatos de surdos acerca de insucessos em avaliações sistemáticas e concursos de

redação. O artigo 14 discorre sobre os meios de avaliação, propondo no parágrafo VI

“adotar mecanismos de avaliação coerentes com aprendizado de segunda língua, na

correção das provas escritas, valorizando o aspecto semântico e reconhecendo a

singularidade lingüística manifestada no aspecto formal da Língua Portuguesa”.

Tais “mecanismos coerentes” pressupõem, contudo, conhecer as especificidades

da língua de sinais e o processo de aprendizagem do Português escrito pelos surdos.

Faz-se necessário discutir, primeiramente, as razões da obrigatoriedade do ensino e da

aprendizagem do Português escrito e, também, de mecanismos que avaliem, a partir da

língua de sinais e seus reflexos nas produções do português escrito, o que se constituem

como “erros” dos usuários de uma segunda língua e não simplesmente considerar tais

erros como comuns de ortografia e sintaxe, não os diferenciando daqueles de mesmo

tipo cometidos por falantes nativos do Português. A ausência de formação específica

por parte dos professores para o ensino do português escrito, e dos avaliadores, dentre

outros fatores, constantemente impõem aos surdos avaliações negativas e reprovações.

O Artigo 14 menciona ainda alternativas para o registro e avaliação:

VII - desenvolver e adotar mecanismos alternativos para a avaliação de

conhecimentos expressos em Libras, desde que devidamente registrados em

vídeo ou em outros meios eletrônicos e tecnológicos; VIII - disponibilizar equipamentos, acesso às novas tecnologias de

informação e comunicação, bem como recursos didáticos para apoiar a

educação de alunos surdos ou com deficiência auditiva.

No entanto, o argumento corriqueiro se baseia na incompreensão do que se é

registrado em língua de sinais e na dependência de tradutores e intérpretes, nem sempre

encontrados e, muitas vezes, não qualificados. Existe ainda a falta de recursos

tecnológicos acessíveis para registro e armazenamento da comunicação dos surdos.

Em se tratando de concursos públicos, o número de materiais e provas em Libras

tem alçado grandes avanços, parte deles impulsionados pelos diversos métodos de

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educação a distância que vem ganhando força no Brasil e consolidando-os como formas

alternativas de aprendizagem, alinhadas ao currículo e às possibilidades inéditas de

avaliação por meio de diferentes sistemas, como vídeos, fóruns e webconferências.

Nos artigos 18 a 21, trata-se da formação dos profissionais tradutores-

intérpretes, prevista para ser oferecida por meio de curso superior em Letras Libras ou

por curso técnico ou de extensão, prevendo ainda um exame de proficiência em

tradução e ensino da Libras a ser aplicado ao longo de um período de 10 anos, tempo

que se deduzia ser aceitável para que houvesse profissionais suficientes qualificados,

nos critérios de formação, para assumir as demandas nacionais. No entanto, decorridos

12 anos após a publicação do decreto, é sabido que os cursos de Letras Libras, tanto na

licenciatura quanto no bacharelado, além de serem em pequeno número5, ainda estão

restritos aos polos próximos às grandes capitais, o que dificulta o acesso a eles. Da

mesma forma, cursos técnicos e de extensão também não são oferecidos amplamente.

Os artigos 22 a 25 focam nos direitos à educação e saúde das pessoas surdas,

reforçando o que já vinha sendo previsto na lei da acessibilidade e especificando

questões relativas às escolas e classes bilíngues, à formação de professores, à oferta da

Libras e Língua Portuguesa como segunda língua nas instituições de ensino, bem como

ao atendimento nos espaços de saúde, à acessibilidade pela língua de sinais, à

capacitação de servidores para atendimento em Libras e ao acesso a especificidades

clínicas e de apoio a saúde. Os avanços nessas áreas, como nas demais acima expostas,

foram bastante tênues. Estudo realizado por Pires e Almeida (2016), indica que o

atendimento aos Surdos, no campo da saúde, está comprometido pela ausência ou

bloqueio na comunicação, a necessidade de intermediação de um acompanhante e o

despreparo dos profissionais em especificidades relacionadas à surdez. O estudo é

concluído com a sugestão de que a Libras seja disciplina obrigatória em todos os cursos

da área da saúde. Por fim, nos artigos 26 a 31, é reiterada a função do poder público no

apoio e manutenção da acessibilidade por meio do ensino e difusão da Libras e sua

tradução e interpretação no âmbito federal e regulação nos padrões de atendimento aos

surdos nos diversos espaços públicos.

De modo geral, tanto a lei 10.436 quanto o decreto 5.626, rompem com a visão

tradicional da educação de surdos e sua presença na sociedade e tendem a provocar

mudanças, contudo os pressupostos legais ainda precisam ser discutidos, aprimorados e

efetivados, considerando não somente os aspectos linguísticos, mas as especificidades

culturais da comunidade surda. Há a necessidade da ampliação da formação específica,

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da consolidação e reconhecimento social da Libras, de rever-se a obrigatoriedade do

aprendizado do português escrito, da qualificação do ensino do português escrito como

segunda língua, e de que as avaliações da escrita do surdo, ao fazer uso do português

escrito, sejam coerentes com o que se propõe para educação de surdos, numa

perspectiva bilíngue.

Continuaremos a discutir essas questões a seguir, agora com a apresentação do

desenvolvimento da pesquisa e da análise dos dados, contando com a voz da

comunidade Surda.

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PARTE 3 – DO DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

3.1. PERCURSO METODOLÓGICO

Pensar a pesquisa em educação implica no reconhecimento da complexidade

epistemológica própria ao campo das ciências humanas. Nesse sentido, partimos do

princípio que nenhuma pesquisa se origina em um espaço vazio de valores, mas, sim,

em um determinado contexto social, interconectado por relações, saberes e juízos de um

dado momento histórico e cujas concepções se (des)assemelham, se conflitam, se

contradizem, ou se coadunam, de alguma forma; forma essa que é o objeto de estudo

das ciências humanas (MOREIRA; CALEFFE, 2008, p. 41).

É fato que as pesquisas se originam a partir de alguma inquietação ou dúvida do

sujeito pesquisador, ou dos participantes de certo evento ou momento histórico,

tensionados como problematização, cuja investigação, ou tentativas de respostas ou de

interpretações, tomam por base pressupostos teóricos que irão embasar as discussões e

argumentações. Para que tais discussões correspondam ao status de conhecimento

científico precisam passar por um processo de sistematização, de maneira a assegurar-

lhes, o mais possível, credibilidade e validade. Desse modo, é necessário que haja um

planejamento, em que as etapas sejam delineadas, visto que a pesquisa apresenta uma

gama de tipologias e métodos empregados na coleta e análise dos dados. Cabe ao

pesquisador o cuidado de resistir à tentação de não tornar a pesquisa uma tentativa de

investigar o mundo em sua totalidade, delimitando as questões até chegar à forma do

problema a ser investigado. O que constitui imenso desafio, pois o ato de investigar em

si propicia novas questões, assim, definir um problema em meio a um emaranhado de

informações demanda esforço na organização do fazer-científico, que envolve também

experiência e intuição.

De maneira coerente com os objetivos propostos à investigação, à natureza da

problemática aqui tratada, optamos por realizar uma pesquisa qualitativa, do tipo

descritiva. Para Gil (1994) as pesquisas descritivas objetivam primordialmente a

descrição das características de determinada população ou fenômeno ou

estabelecimento de relações entre variáveis. A investigação qualitativa se mostra

adequada por envolver métodos de coleta de dados que exploram características dos

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sujeitos – e dos processos nos quais estão envolvidos- que dificilmente poderiam ser

numéricas ou estatisticamente descritos. Para isso a coleta de dados envolve

constantemente contato e o diálogo com os sujeitos participantes, a observação do

cotidiano, o registro em diários de campo ou áudio e vídeo, o estudo de ferramentas,

artefatos e outras produções culturais, dentre outros. Mas também pode valer-se de

questionários estruturados e semiestruturados, com questões que permitam identificar as

concepções e reflexões dos participantes acerca do tema que se pretende pesquisar. À

coleta dos dados, na pesquisa qualitativa, está imbricada na sua análise, que, na pesquisa

em tela teve como marcos teóricos os estudos culturais da Surdez, já explanados

anteriormente, e a Educação Sociocomunitária.

As duas dimensões da Educação, a social e comunitária, são utilizadas com

referência a um processo de formação coletivo, compartilhado, que busque o bem

comum, favorecendo a organização de grupos e comunidades. Visa, principalmente,

atender aos interesses e necessidades dos grupos sociais minoritários dentro de suas

localidades e territórios. A partir da educação sociocomunitária, os sujeitos e grupos

podem descortinar formas de reagir contra os modelos culturais, políticos e ideológicos

impostos por outros indivíduos e grupos, que mantêm condições sociais favorecedoras

de dominação e exclusão social. A educação sociocomunitária deve resultar na mudança

social, promovendo o engajamento das pessoas. Entende-se por mudança social,

qualquer alteração ou modificação das formas de vida de determinada sociedade, que

rompa com modelos de opressão. Incluem-se aqui as mudanças no ambiente,

instituições, comportamentos e relações sociais (BONELLI; LANDA, 2013).

Paulo Freire considerou a educação como um instrumento primordial para a

transformação social. Através da educação, embora não somente por meio dela, haveria

maior participação das pessoas nos processos de democratização política e social,

fazendo frente a contextos de opressão e dominação (DAUD, 2012).

Acompanhando esse pensamento, a educação sociocomunitária constitui-se

como uma forma de colaborar para que determinada comunidade, de forma intencional,

busque mudar algo na sua circunstancialidade, por meio de processos educativos.

Intencional, neste contexto, significa que é da própria comunidade que advém a

problematização e as inquietação quanto ao que precisa ser transformado. Nessa visão, a

comunidade arquiteta e concretiza sua própria autonomia.

Bissoto (2012) pondera que a educação sociocomunitária deve ser vista e

entendida como processo, não como mera especialização da educação. A escuta atenta

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dos grupos, no diálogo com suas ideologias e contradições, é fundamental na educação

sociocomunitária, para se chegar a uma análise crítica da realidade, contribuindo para a

emancipação. Embora entender a educação sociocomunitária acabe por conferir a essa

um caráter genérico, isso também indica que essa se constitui tanto como o reflexo de, e

uma resposta à contínua mudança que existe numa comunidade. Ou seja, aproxima-se

da realidade do mundo que existe “lá fora”, afastando-se do tradicional fechamento do

sistema educacional em si mesmo. Reconhece-se largamente, na contemporaneidade,

que a educação deve ser compreendida para além da escolarização. E entendemos que,

por exemplo, o discurso da aprendizagem ao longo da vida significa principalmente a

difusão dos conhecimentos, em suas várias formas, e o próprio questionamento desses,

como preocupação, responsabilidade e interesse das várias esferas sociais.

Nesse sentido, a comunidade representa o mutável mundo fora dos muros

institucionais, e a educação sociocomunitária seria aquela que favoreceria a evolução

para relações mais abertas, participativas e democráticas entre educadores e seus

contextos de atuação. A qualidade recíproca dessas relações é crucial: educadores

sociocomunitários afirmam trabalhar com pessoas – não para elas. A educação

sociocomunitária deve ser sobre parceria e solidariedade, antes do que sobre

paternalismo ou manipulação. Esses elementos fundamentais na redefinição de papeis já

tradicionais, presentes no ambiente educacional, têm amplas implicações para a

natureza das relações educativas, o contexto da aprendizagem e o potencial para a

redistribuição das oportunidades educacionais (verticalmente, ao longo do tempo de

vida dos sujeitos, e horizontalmente, através da estrutura social).

Reconhece-se, na educação sociocomunitária, que a aprendizagem tem lugar em

múltiplos e variados contextos, ao longo da vida do sujeito. Essa ideia embasa uma

concepção de educação como uma filosofia teórica e prática, comprometida com:

* o desenvolvimento de estratégias para a redistribuição educacional e social, que pode

favorecer a criação de uma sociedade mais justa e equânime;

* promover uma estreita colaboração e coordenação entre instituições educacionais

formais e suas comunidades;

* suportar iniciativas locais no desenvolvimento da comunidade, procurando caminhos

para o empoderamento e para que as pessoas tenham mais controle sobre suas próprias

vidas;

* encorajar o acesso mais aberto e democrático das pessoas aos recursos educacionais e

à educação formal e não formal;

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* redefinir nossas concepções de currículo e de processos de ensino-aprendizagem, de

forma que a educação possa gerar autonomia individual e facilitar a cooperação social

(HARGREAVES, 2011).

Historicamente, a comunidade surda foi segregada e vítima de discriminações,

seja no âmbito familiar e/ou social. A negação de sua própria identidade configura ao

Surdo uma imensa violação de direitos. Importante relembrar que a cultura Surda esteve

subjugada à ideologia ouvintista, ou seja, os Surdos deveriam buscar meios de se

adequar ao mundo dos ouvintes. A educação sociocomunitária se propõe a questionar

esses paradigmas de incapacidade e subordinação, assim, o fortalecimento da identidade

e da cultura Surda é essencial para a retomada da questão da autonomia desses sujeitos.

As inquietações que delimitaram o problema dessa pesquisa situam-se não

somente no período vivenciado pela educação dos Surdos, mas também naquela dos

ouvintes, após a publicação da lei que reconhece a Libras como meio de comunicação e

expressão legal das comunidades Surdas Brasileiras. No decorrer destes 15 anos desde a

publicação da lei, algumas incoerências e tensões se apresentam de modo evidente no

que tange ao uso e reconhecimento da Língua de Sinais e da obrigatoriedade do ensino

da Língua Portuguesa. Dessa forma, o uso da análise documental da referida legislação

foi um dos procedimentos de coleta de dados, selecionado pelo pesquisador

inicialmente. Com esse procedimento procuramos identificar não somente os aspectos

normativos previstos na lei mencionada, mas, principalmente, o não-dito, aquilo que

está oculto no texto legal, bem como os desdobramentos oriundos da Lei de Libras,

como decretos, resoluções e outros dispositivos legais, os quais também

ocultam/revelam a forma do Estado conceber a questão da Educação, do Surdo, da

diversidade cultural, das minorias e do espaço “destinado” a essas na sociedade.

Um exemplo dessa relação de “luz e sombra” está no tempo de implementação

de algumas das medidas do decreto 5.626/05: notamos que tais medidas, como a

inserção da disciplina Libras nas grades dos cursos superiores, ou mesmo as

certificações para instrutores e intérpretes, ou a presença desses em sala de aula e outros

espaços sociais, embora não estivessem planejadas para ter efeito imediato, mas

gradativo, contaram com pouca ação governamental (ou mesmo da sociedade civil) para

que “saíssem” do papel . O Estado instaurou uma obrigatoriedade, mas o “ônus” pelo

cumprimento dessa parece ter ficado somente para as instituições educacionais. Nessa

perspectiva, tendo já expirado o prazo máximo de implementação do previsto na

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legislação, julgamos ser necessário colocar tal legislação sob escrutínio, e saber de que

modo a Lei de Libras, e aquela base legal dessa derivada, têm impactado a educação dos

Surdos, o respeito e a garantia de direitos que merecem como minoria linguística.

Feita a investigação sobre a legislação, para aprofundar o conhecimento sobre

como a Lei de Libras vem se efetivando no cotidiano escolar, selecionamos um outro

instrumento de coleta de dados: um questionário semiestruturado enviado a 18

professores dos campi do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), por meio do sistema

Google Docs. A escolha desses professores se deu porque o pesquisador é também

professor de Libras em um campus de um Instituto Federal, estando familiarizado com a

proposta para o ensino de Libras nessa rede educacional. Consideramos ser mais

producente, em termos de coletar e discutir os dados, realizar a análise da efetivação da

Lei de Libras em uma rede educacional na qual já houvesse certa uniformidade de

procedimentos nessa área, o que acontece nos Institutos Federais.

O questionário semiestruturado, bastante utilizado em pesquisas em educação

especial e inclusiva, é caracterizado por um conjunto de indagações prévias – mas que

permitem espaço para as colocações dos participantes-, direcionado por um objetivo

específico por parte do pesquisador, distanciando-se, nesse aspecto de uma simples

conversa informal. Em Moreira e Caleffe (2008, p.169) encontramos que os

instrumentos de natureza semiestruturada são baseados em perguntas pré-estabelecidas,

construídas de forma a que o pesquisador favoreça ao participante uma interação mais

subjetiva com as respostas.

Com base nos dados coletados a partir do questionário aplicado foi possível

identificar informações como perfil, condição auditiva, área de conhecimento e

metodologia empregada e formas de atuação, dos professores de Libras do IFSP.

Consideramos essenciais tais informações relevantes para uma melhor compreensão das

concepções e dinâmicas atribuídas à questão Surdez X linguagem, cultura e direitos,

uma vez que a presença desses profissionais nos Institutos Federais é também um

desdobramento da legislação de 2002 e do decreto de 2015, no que diz respeito à oferta

da disciplina nos cursos de licenciatura de modo obrigatório e à responsabilização das

instituições educacionais no ensino e difusão da Língua de Sinais. Como forma de mais

bem analisar os dados resultantes desse questionário fizemos sua contraposição também

com os Projetos Político-Pedagógicos dos cursos em que a disciplina de Libras aparece.

Em seguida, na perspectiva de analisarmos as concepções dos Surdos em relação

à referida legislação, organizamos um terceiro instrumento de coleta de dados: a

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realização de um grupo focal envolvendo sujeitos Surdos e o pesquisador. Gondim

(2003, p.154) define o grupo focal como “uma técnica de pesquisa que coleta dados por

meio das interações grupais ao se discutir um tópico especial sugerido pelo pesquisador.

Como técnica, ocupa uma posição intermediária entre a observação participante e as

entrevistas em profundidade”. Sendo o pesquisador usuário proficiente da Língua de

Sinais Brasileira, não houve necessidade de as conversas serem mediadas por um

tradutor intérprete, de modo que as informações puderam ser obtidas pela interação

direta e sem quaisquer interferências passíveis numa mediação tradutória.

É preciso salientar que o locus do grupo focal se deu em uma cidade do interior

de Minas Gerais, especificamente na Associação de Surdos de Ipatinga (Asipa), nos dias

15/04/17 e 22/04/17. Isso poderia a princípio gerar certa estranheza, visto que não existe

ligação entre o IFSP e a Asipa, havendo ainda a questão da não coincidência geográfica.

A princípio a intenção era realizar o grupo focal com surdos do estado de São Paulo,

contudo, por questões de logística o pesquisador direcionou-se para uma Comunidade

Surda do interior de Minas, com a qual já tinha tido contato profissional anterior, o que

facilitou o acesso à associação e o envolvimento dos participantes. Não consideramos

que essa diferença de locus na coleta de dados possa ser um fator dissociado no âmbito

desta pesquisa, isto porque a legislação da qual partimos é federal, assim como o

Instituto. O fato de haver dois locus para a pesquisa delimitou dois campos diferentes

de informações, que estão relacionadas, sendo elas: a) perfil, atuação e concepções dos

professores de Libras e b. desdobramentos dos impactos da legislação na Comunidade

Surda, conforme por essa percebidos.

Como critérios para organização do grupo focal: foram convidados Surdos na

faixa etária de 20 a 30 anos, usuários fluentes da Língua de Sinais e com escolarização a

partir do Ensino Médio. A respeito da faixa etária, a opção pela coleta de dados a partir

de Surdos adultos se mostra pertinente pelo recorte histórico no qual se baseia a

pesquisa. Estes indivíduos vivenciaram ainda na etapa básica de escolarização os

reflexos da legislação e das novas políticas de inclusão, bem com questões de

acessibilidade na educação superior e no mercado de trabalho. A fluência na língua tem

relevância por considerarmos os aspectos legais, que incubem as instituições de ensino

no uso e difusão da língua de sinais, o que evidencia modos diferentes de aquisição de

linguagem por esses sujeitos e que podem ser analisados a partir do que se propôs na

educação para Surdos no que tange à aquisição tanto da Libras quanto da Língua

Portuguesa escrita fundamentando-se nos dispositivos legais.

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Sem desconsiderar as subjetividades e as inter-relações que permearam os

participantes envolvidos nessa pesquisa, optamos por identificar os Surdos pelas letras:

A, B, C, D, E, F, G, K, L, M, P e R ao passo que o pesquisador será identificado nos

trechos transcritos como “moderador”. Dados demográficos dos participantes estão

expostos no quadro abaixo:

Quadro 01. Dados demográficos dos participantes do grupo focal

Participante Gênero Idade Profissão Escolaridade Fluência

Libras

A Feminino 27 Pedagoga Superior Completo Sim

B Feminino 25 Secretária Ensino Médio Sim

C Feminino 25 Secretária Ensino Médio Sim

D Masculino 29 Motorista Superior Incompleto Sim

E Masculino 24 Estudante Ensino Médio Sim

F Masculino 28 Não tem Ensino Médio Sim

G Feminino 28 Secretária Superior Incompleto Sim

K Feminino 27 Pedagoga Superior Completo Sim

L Masculino 20 Feirante Ensino Médio Sim

M Masculino 22 Repositor Ensino Médio Sim

P Feminino 30 Estudante Superior Completo Sim

R Masculino 20 Mecânico de moto Ensino Médio

Incompleto

Sim

Fonte: Arquivo pessoal do pesquisador (2017)

No grupo focal, os sujeitos foram dispostos numa sala, de modo circular,

também em respeito à questão da visualidade da Libras, de modo que todos pudessem

se ver sem a interferência de obstáculo visual. A proposta foi a de que as indagações

mobilizadoras e as discussões não ocorressem de modo engessado, mas com liberdade

na produção de discursos, que poderiam ser refutados ou complementados pelos

indivíduos participantes. Mesmo porque muitos deles apresentam estreitas relações

pessoais, tendo sido colegas de sala no período escolar, assíduos nas reuniões e eventos

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da associação ou mesmo colegas de trabalho. Assim, as experiências compartilhadas no

grupo focal em grande parte constituíam também relatos de vivências que se produziram

na coletividade. Fortalecidos pelo sentimento de união de um grupo minoritário, que

divide sentimentos similares e aspectos de cultura e identidade em comum, construída

pelos atravessamentos da condição auditiva e da língua de sinais.

Todas essas características podem ser investigadas por um viés antropológico. A

definição clássica conceitua a Antropologia como o estudo do ser humano. Contudo, a

Antropologia é uma ciência formada a partir de diversas origens, estudos e

fundamentações documentados em uma linearidade de evolução de ideias chegando às

conclusões atuais. Seus estudos enfocam a comunicação humana, sua interação, como o

ser humano se alimenta, compõe seus trajes, atua e responde aos contextos culturais.

Aborda a cosmovisão – a visão completa – de segmentos étnicos. De acordo com

Kottak (2012), a antropologia estuda a diversidade humana em seu determinado tempo e

espaço; toda a condição humana, englobando seu passado, presente e futuro. Isso

compreende os aspectos biológicos, sociais, de linguagem e culturais. Assim sendo,

acrescenta-se que a Antropologia seria o estudo do ser humano buscando um enfoque

geral, que integre os aspectos culturais e biológicos, no presente e no passado,

focalizando as relações entre o ser humano e o meio, entre o ser humano e a cultura e

entre os seres humanos entre si (LIDÓRIO, 2009). Consideramos que a análise aqui

proposta contempla esses pressupostos, complementando os fundamentos dos estudos

culturais, base teórica empregada na investigação.

Em relação à associação onde foi desenvolvido o grupo focal. Historicamente, a

Asipa, locus do grupo focal, constitui um espaço “seguro” do modo Surdo de se

relacionar. O fato de sempre ter sido um local livre para que pudessem construir

relações e se comunicarem na língua de sinais, sem o risco da repressão ouvintista,

fortalece o caráter identitário do grupo e possibilita conhecer a trajetória dos Surdos

diante das mudanças que ocorreram nas políticas públicas das duas últimas décadas.

Além disso, as associações de Surdos por todo o país mantêm uma relação próxima,

integradas por meios de eventos, seminários, campeonatos de esportes e movimentos

políticos, dentro os quais a legislação que reconhece a Libras se configura em uma das

conquistas desses movimentos associativos. Daí a importância da investigação pelo viés

antropológico e dos estudos culturais, de modo que se possa identificar as questões

culturais, identitárias e inter-relacionais como propulsores da construção de modos de

viver e se constituir. As interações do grupo focal foram registradas em vídeo, forma

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privilegiada para captar as interações provenientes de uma língua viso-espacial. Mas,

também, por partimos do conceito de que a cultura se revela nas interações sociais,

sendo necessário encontrar formas de registro para as sutilezas aí existentes (SILVA,

2010).

Realizar a transcrição dados obtidos através da filmagem mostrou-se como um

grande desafio, em função da complexidade dos diversos tipos de interações envolvidas

no grupo focal. Sobre o processo de transcrição de dados Marcuschi (1991) afirma:

Não existe a melhor transcrição. Todas são mais ou menos boas. O essencial

é que o analista saiba quais são os seus objetivos e não deixe de assinalar o

que lhe convém. De um modo geral, a transcrição deve ser limpa e legível,

sem sobrecarga de símbolos complicados (MARCUSCHI, 1991, p. 9).

E, realizar a transcrição de uma língua cuja modalidade é a espaço-visual por si

só tem sido um desafio para diversos pesquisadores (QUADROS; 2004; SILVA, 2010).

Neste trabalho, pelo fato do pesquisador ser um tradutor e intérprete de Língua de

Sinais, certificado por meio de exame de proficiência, optou-se por uma transcrição

traduzida diretamente para a Língua Portuguesa, respeitando as questões éticas e de

fidelidade dos discursos produzidos ao longo das interações no grupo focal.

A partir da análise dos dispositivos legais, do Projeto Pedagógico dos Cursos, de

algumas ementas da disciplina Libras e da transcrição das narrativas oriundas do grupo

focal, passamos a discutir como essas questões têm influenciado a produção e

organização da disciplina Libras nos cursos de graduação no Instituto Federal de São

Paulo e os desdobramentos dessas ações para a Comunidade Surda.

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3.2 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS REFERENTES AOS

DOCUMENTOS, QUESTIONÁRIO E REGISTROS DO GRUPO FOCAL

3.2.1 Documentos e normativas referentes à disciplina de Libras no IF

Em relação propriamente à Lei de Libras, consideramos que a análise feita na

segunda parte da presente dissertação indica os avanços, os problemas e os desafios

postos por essa ao campo de lutas por uma educação emancipatória do Surdo. Nessa

parte, continuamos essa discussão, trazendo, os documentos que normatizam a

disciplina de Libras no IF, em especial nos campi de São Paulo.

A história da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica

começou em 1909, com a criação de 19 escolas de aprendizes, que mais tarde, dariam

origem aos Centros Federais de Educação Profissional e Tecnológica, CEFETs. Tal

como na sua criação, essa rede federal de ensino ainda hoje se destaca pela

acessibilidade, uma vez que todas pessoas podem adentrar ao ensino sem distinções.

Presentes em todos os estados brasileiros, os Institutos Federais qualificam e formam

profissionais de diversas áreas. Atualmente, a rede de ensino federal de ensino vem

sendo expandida, com a criação de novos campus e contratação de novos profissionais

para suprir a demanda de ensino.

O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, IFSP, é um

tipo de autarquia de ensino a nível federal. No estado de São Paulo, estão distribuídas

37 Câmpus possuindo aproximadamente 40.000 alunos matriculados, distribuídos em

cursos técnicos, superiores, pós graduações dentre outros. Além dos cursos presenciais,

o IFSP oferta cursos na modalidade a distância desde 2012. Em 1909, foi fundada a

Escola de Aprendizes Artífices; durante sua história, recebeu, também, os nomes de

Escola Técnica Federal de São Paulo e Centro Federal de Educação Tecnológica de São

Paulo. A transformação em Instituto, se deu em dezembro de 2008. A partir de então

adquiriu status de universidade. Destinam-se 50% das vagas para os cursos técnicos e,

no mínimo, 20% das vagas para os cursos de licenciatura. Complementarmente,

continua oferecendo cursos de formação inicial e continuada, tecnologias, engenharias e

pós-graduação. Tem como missão “consolidar uma práxis educativa que contribua para

inserção social, a formação integradora e produção do conhecimento”.

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O IFSP é, atualmente, reconhecido pela sociedade paulista por sua autonomia e

excelência no ensino público gratuito de qualidade.

O Campus pesquisado foi fundado em 01/02/2010 como Campus avançado, em

ato oficial realizado em Brasília, conduzido pelo então Presidente da República, Luiz

Inácio Lula da Silva. As atividades se iniciaram no segundo semestre do ano de

inauguração, ofertando os cursos técnicos concomitantes ou subsequentes em

Manutenção e Suporte de Informática e Química. Em 2012 o Instituto começou a

disponibilizar cursos técnicos integrados ao ensino médio nas áreas de Informática e

Química. O Primeiro curso superior iniciou no primeiro semestre de 2013, sendo este o

Tecnólogo em Análise e Desenvolvimento de Sistemas. Em maio de 2013, o Campus

pesquisado teve sua condição promovida de Campus Avançado para Campus Pleno

(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, Instituto Federal de São Paulo, 2014).

Atualmente, o referido Campus conta com uma equipe formada por 39 Técnico-

Administrativos em Educação, 66 Professores e cerca de 600 alunos matriculados. De

acordo com o Decreto 5.626/2005, e com o PPC (projeto pedagógico) do curso de

licenciatura em Química do Instituto pesquisado, prevê-se que a disciplina Língua

Brasileira de Sinais deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória, como o é

nos cursos Licenciatura. E tem caráter optativo, nos demais cursos de educação

superior. Para além da questão legal vigente, o Instituto oferta também cursos de libras

abertos a toda comunidade interessada.

Na ementa da disciplina de LIBRAS, são apresentados elementos básicos da

Língua. Objetiva-se caracterizar a Língua Brasileira de Sinais como língua da

modalidade espaço visual, a partir de sua gramática e discurso. Entre o conteúdo das

aulas, explana-se sobre história da educação dos Surdos, a Língua de Sinais na educação

e seus aspectos gramaticais e discursivos. Busca-se o ensino/aprendizagem introdutório

da LIBRAS.

Dentre os campi do IF, 18 das 36 unidades contam com docentes efetivos

habilitados para lecionar a Língua Brasileira de Sinais em licenciaturas diversas, sendo

o pesquisador integrante desse grupo, atuando diretamente no curso de Licenciatura em

Química.

A experiência de fazer parte do cotidiano do instituto contribui para uma

percepção mais aguçada atrelada as relações cotidianas com alunos e demais servidores,

além disso a presença de professores no quadro efetivo colabora positivamente com a

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legislação, que estabelece por meio do decreto 5.626/05 a obrigatoriedade da disciplina

Libras nos cursos de licenciatura. Essa permanência no quadro efetivo impacta

diretamente na organização dos cursos e nas possibilidades de uso e difusão da língua

de sinais nesses espaços.

Retomando a questão da uniformidade do ementário nos campi, em

determinados documentos verificamos que os Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPC)

seguem o mesmo modelo, alterando apenas as informações específicas dos cursos.

Dessa forma, a Libras aparece tanto nos projetos de licenciatura quanto no bacharelado,

respectivamente como obrigatória e optativa, conforme se evidencia no tópico 7.6 do

PPC do curso de licenciatura:

De acordo com o Decreto 5.626/2005, a disciplina Língua Brasileira de

Sinais deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória, nos cursos

Licenciatura, e optativa, nos demais cursos de educação superior. Assim, na

estrutura curricular deste curso, visualiza-se a inserção da disciplina Língua

Brasileira de Sinais, conforme determinação legal. (p.36)

Aqui observa-se o cumprimento do que propõe a legislação. Porém, para além

das diferentes modalidades de curso, os campi disponibilizam continuamente cursos de

formação continuada e extensão de Libras, uma vez que também se ofertam cursos de

nível médio/técnico. Dessa forma percebe-se o impacto da legislação no IF no que tange

à Libras, uma vez que as ações extrapolam a oferta da disciplina no curso superior,

atendendo mais amplamente aquilo demandado pela legislação, integrando alunos de

todos os cursos e também membros da comunidade local.

Do ponto de vista crítico, embora as ações caminhem para uma difusão natural

da língua de sinais nesses espaços, alguns pontos do PPC nos levam a refletir sobre a

ideia que se tem da Libras, sua aplicação e seu devido reconhecimento, não somente

legal, mas social. Ao apresentar os elementos relacionados ao curso, a parte que trata da

Libras aparece não somente nas ementas da grade curricular, mas também em uma

seção própria (7.6). O mesmo acontece com outros conteúdos, também incluídos nas

grades diversas por meio de dispositivos legais, como no caso da: a) Educação

Ambiental, pela lei nº9.795/1999 e b) Educação das Relações Étnico-Raciais e História

da Cultura Afro-Brasileira e Indígena, pela resolução CNE/CP.

Curiosamente, emprega-se um esforço em justificar o porquê da inclusão da

Libras, ao invés de apenas mantê-la como parte do curso e o mesmo acontece com

relação aos outros dois conteúdos acima mencionados. Ora, se existe uma lei que torna

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obrigatórios tais conteúdos, não haveria necessidade de tratar sobre elas em seções

distintas do PPC, uma vez que isso não acontece com outras disciplinas obrigatórias. Ao

mesmo tempo em que se considera esclarecer as adições, que destoam de certo modo

dos conteúdos específicos das licenciaturas, o PPC as desnaturaliza ao torná-las

elementos adicionais e não componentes comuns. O que nos leva a entender que a

questão da obrigatoriedade legal ainda é um fator de convencimento “imperativo” e não

tão advindo de uma conscientização social e/ou acadêmica.

O contato com alunos Surdos nos campi, por meio dos cursos de extensão ou

matriculados em cursos comuns, pode tornar possível essa naturalização pelas relações

cotidianas. Nesse quesito, a participação das comunidades locais nos cursos de extensão

contribui para que o instituto se torne esse espaço de fortalecimento da língua e das

relações culturais para que a Libras se torne, de fato, uma das línguas da instituição.

Para Larrosa (2017, p.35), isso se faz necessário, pois “uma vez que a língua da escola é

uma língua que não é (ainda) falada pelos estudantes (em graus variáveis), é

responsabilidade da escola – por amor à próxima geração – ensinar ou fazê-los aprender

a língua da escola”.

Pensar a escola como espaço de encontro e de relações com a língua e seus

sujeitos nos remete aos diversos depoimentos na visita à Asipa, onde os Surdos se

referem às escolas bilíngues como zona de conforto, pois que a língua de sinais circula e

é possível se relacionar tanto com ouvintes quanto com seus pares surdos. Mais adiante

será possível aprofundarmos essa discussão a partir das falas dos sujeitos presentes no

grupo focal.

Em se tratando das ementas da disciplina Libras, existe também uniformidade

entre os campi, sendo algumas distinções relativas à metodologia de ensino e/ou a

bibliografia básica recomendada. No que diz respeito às ementas da disciplina Libras,

algumas descrições destoam da proposta de naturalização da língua de sinais, das

questões relacionadas aos aspectos culturais da comunidade surda e, principalmente, da

valorização da Libras como conteúdo acadêmico. Em todos os campi, a disciplina é

oferecida com carga horária de 40 horas, variando de acordo com os cursos em relação

ao período de oferta, que se resumem ao 5º ou 6º semestre dos cursos de Licenciatura. O

período de oferta, por si só implica em restrições no âmbito da pesquisa e apropriação

das discussões teóricas no campo da surdez. Isso porque nessas etapas dos cursos os

trabalhos de conclusão de curso (TCC) já estão processo de encaminhamento para as

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orientações finais e defesa, assim esses dificilmente abordam língua de sinais, a despeito

do curso.

Outra questão nos chamou atenção de modo preocupante. Ao analisarmos as

descrições da ementa e do objetivo, encontramos respectivamente: a) serão introduzidos

elementos básicos da Língua Brasileira de Sinais. Também serão trabalhados materiais

alternativos para o ensino de ciências e educação ambiental e b) caracterizar a Libras

como língua, a partir do conhecimento de seus aspectos gramaticais e discursivos.

Desenvolver mecanismos para a criação de materiais para a educação científica e

ambiental.

Os elementos a e b, acima, não somente destoam absolutamente do que é

proposto na bibliografia básica e na complementar dos cursos de Libras nos diferentes

campi do IF, que trazem exclusivamente autores pesquisadores da educação de surdos e

da língua de sinais, como descaracterizam a proposta de ensino de uma língua. Embora

a interdisciplinaridade – posta pela “educação científica e ambiental”- deva ser uma

base na construção do curriculum, e especialmente importante no caso daquelas

licenciaturas em que esses temas são essenciais, como é o caso da Química, é preciso

considerar que já há uma parte da carga horária destinada à produção de materiais de

outros conteúdos, os quais também são orientados por dispositivos legais conforme

discutimos anteriormente (educação ambiental, por exemplo). A obrigatoriedade de

contemplar tais conteúdos penaliza as discussões e o ensino da Libras, que já tem carga

horária insuficiente para os estudos da língua de sinais de modo satisfatório.

A leitura da ementa sugere, implicitamente, um valor menor para a disciplina em

questão, desconsiderando a complexidade linguística e as teorias educacionais

essenciais na formação de professores, que irão atuar eventualmente com alunos surdos.

Nas demais disciplinas as questões voltadas para meio ambiente e relações étnico-

sociais não aparecem nas ementas, o que reforça a ideia de que tanto a Libras como as

demais disciplinas, institucionalizadas pelas leis mais recentes, se classificam em um

subgrupo curricular.

3.2.2 Dos dados dos questionários

Responderam ao questionário encaminhado, 15 dos 18 professores do IF. Na

chamada ao questionário, que foi feita via e-mail, explicaram-se as razões da pesquisa, e

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as considerações éticas quanto ao anonimato, não obrigatoriedade na participação, uso

dos dados estritamente para as finalidades dessa pesquisa.

A seguir, se apresenta um quadro com o perfil demográfico dos respondentes,

que foram identificados pela letra P e um número distribuído, de modo crescente, mas

aleatoriamente distribuído:

Quadro 02. Perfil dos professores da disciplina de Libras do IF do estado de São Paulo

Participante Gênero Idade Tempo de atuação no

IF

Titulação

P1 Masculino 37 5 anos Mestre

P2 Feminino 40 3 anos Mestre

P3 Feminino 42 4 anos Mestre

P4 Feminino 40 5 anos Mestre

P5 Masculino 39 2 anos Mestre

P6 Masculino 36 4 anos Especialista

P7 Masculino 44 9 anos Doutorando

P8 Masculino 40 6 anos Mestre

P9 Feminino 39 5 anos Mestrando

P10 Feminino 41 7 anos Mestre

P11 Feminino 43 6 anos Mestre

P12 Feminino 45 6 anos Mestre

P13 Feminino 38 7 anos Mestre

P14 Feminino 39 8 anos Mestre

P15 Feminino 40 3 anos Especialista

Fonte: Arquivo pessoal do autor (2017)

De maneira geral, pode-se afirmar que os professores do IF participantes na

pesquisa atuam na instituição há no mínimo 3 e no máximo 9 anos, o que sinaliza que

todos já contemplaram os requisitos propostos pelo período probatório e se configuram

como servidores estáveis. Quanto à formação, apenas 3 apresentam titulação de

especialista, sendo um atualmente aluno de um programa de mestrado e 12 detêm o

título de mestre, e há um aluno de doutorado. Consideramos a formação um fator

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relevante para as discussões referentes ao ensino da Libras, pois há ênfase no perfil de

um professor pesquisador, de atualização dos conhecimentos, o que tem impacto

diretamente nas práticas de ensino. O fato dos entrevistados situarem-se na faixa etária

de 36 a 45 indica também que já têm vivenciado diferentes concepções históricas e

metodológicas tanto à educação, como referentes à língua de sinais e à educação de

surdos.

Os gráficos com as respostas aos questionários, bem como uma análise mais

detalhada dessas, encontra-se mais abaixo, juntamente com a análise dos dados do

grupo focal.

3.2.3 Dos dados do grupo focal

Para fins de análise, as informações coletadas pelas transcrições do grupo focal

foram divididas em categorias (que foram denominadas como Blocos), direcionadas

para os seguintes tópicos de investigação, isso é temas sobre os quais a Lei de Libras

poderia ter causado impacto: a) período e condições de aquisição da Libras; b) relação

com a língua portuguesa/aprendizado da língua portuguesa; c) metodologias de ensino e

acessibilidade no período de escolarização; d) inserção e relações no mercado de

trabalho; e) conhecimento acerca dos dispositivos legais, de garantia de direitos aos

Surdos; f) aspectos culturais e identitários e g) relação com instituições representantes

da comunidade Surda.

Bloco A - Período e aquisição da Libras

Os estudos linguísticos, a partir do que propõe Stokoe, revelam que a aquisição

das línguas de sinais segue restrições e períodos específicos, assim como ocorre nas

línguas orais (QUADROS; PIZZIO, 2011). Etapas sequenciais perpassam desde o

balbucio até as produções lógicas sintáticas naturais, vinculadas às questões da

visualidade das línguas de sinais. Em se tratando das crianças Surdas no Brasil, na

maioria das vezes o contato com a Libras no período adequado de aquisição de

linguagem não acontece, isso porque, estatisticamente, a maioria dos Surdos têm pais

ouvintes8, que por razões diversas, mas geralmente fundamentadas nos paradigmas

8 De acordo com Silva e Bastos (2013), mais de 90% das crianças surdas têm pais ouvintes.

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médico-clínicos, têm pouco interesse- ou nenhum- em aprender tal língua. Negando

também às crianças esse direito. Esse processo tardio de aquisição da língua natural

provoca efeitos diversos nos Surdos, pois o contato com a Libras, na maioria dos casos,

ocorre primeiro ao chegar à escola e estar em contato com outros Surdos.

As políticas de educação bilíngue vêm ganhando cada vez mais espaços de

discussão, sendo previstas escolas bilíngues inclusive no Plano Nacional de Educação

vigente, que determina diretrizes, metas e estratégias para a política educacional dos

próximos dez anos. Contudo, predominam, atualmente, as escolas baseadas no sistema

inclusivo, em que o aluno Surdo permanece na sala regular junto aos ouvintes, sendo

que a mediação linguística ocorre por meio do tradutor e do intérprete. Alguns fatores

podem dificultar essa relação, visto que alguns Surdos sequer ainda dominam a língua

de sinais, o que direciona o trabalho do intérprete para uma tarefa de ensino do idioma e

não especificamente de interpretação. No grupo focal foi possível perceber contextos

diversos de aquisição da Libras pelos Surdos entrevistados, fator curioso considerando

que o raio geográfico de moradia dos participantes é reduzido. De acordo com a fala dos

entrevistados:

[...] Eu aprendi com 18 anos, a primeira pessoa que me ensinou foi o

Riguel9, porque no passado as pessoas falavam e eu não entendia nada, ficava

apenas na leitura labial. Riguel foi me visitar na escola JK, no primeiro ano,

onde eu estudava sem intérprete, ele me viu, foi me conhecer e conversar

comigo. Fez “oi” em Libras, eu olhei e pensei: O que isso? Não o conhecia,

ele me explicou isso é Libras é a Sua Língua, você é Surda, fiquei

sensibilizada e fui brigar com minha mãe, ela não havia me contado nada,

minha mãe me explicou que foi uma exigência da fonoaudióloga, a fono

proibiu contato com a Libras, pois se eu aprendesse Libras eu pararia de falar

e eu continuei sendo oralizada (SURDA P, Asipa, 15/04/2017).

[...] Comecei com 3 anos na escola, depois fui para o Barnabé

10 com 7 anos,

mas eu já sabia Libras. Aprendi com o professor e os Surdos da sala. Tive

acesso a fono, mas não gostei, optei pela Libras, assim me sentia feliz.

Entendo que Libras é minha L1 e o português minha L2, eu respeito isso [...]

(SURDA C. Asipa, 15/04/2017).

Comecei aprender Libras com 5 anos na Apae através de uma fonoaudióloga,

que posteriormente tentou introduzir o português e a leitura labial, mas eu

não compreendia. Dos 5 aos 7 fui acompanhada por ela, depois fui a uma

escola inclusiva onde não havia comunicação, eu não aprendi nada (SURDA

K, Asipa, 15/04/2017).

9 Instrutor Surdo contratado pela secretaria estadual de educação de Ipatinga para atuar nas escolas e nos

cursos de Libras e formação de servidores. 10

Escola Municipal Maria Rodrigues Barnabé, localizada na cidade de Ipatinga, no bairro Iguaçu sendo

considerada localmente, polo de educação de surdos.

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[...] Aprendi Libras com 12 anos, antes eu estudava em escola inclusiva com

ouvintes através da leitura labial. Vim para o Barnabé com 12 anos e aprendi

Libras em contato com os Surdos (SURDA A, Asipa, 15/04/2017).

[...] Com 16 anos tive meu primeiro contato com Libras na escola Barnabé,

onde os Surdos estudavam. Os vi sinalizando rápido e não entendi nada, eles

começaram a me ensinar sinais e um ano depois eu dominava Libras, hoje

posso afirmar que gosto mais de Libras (SURDA E, Asipa, 15/04/2017).

[...] Quando criança estuda em escola de ouvintes com gestos e leitura labial

e frequentava a fono às vezes. Com 13 anos fui para o Barnabé e comecei

aprender palavras e sinais (SURDO D, Asipa, 15/04/2017).

[... ] Estudei até os 9 anos na APAE, com a obrigatoriedade da oralização e

exaustivas idas à fono, minha mãe e meu pai não sabiam nada de Libras e eu

pacientemente tentava organizar as palavras, sofri muito com isso, era

extremamente cansativo (SURDA G, Asipa, 15/04/2017).

Considerando esses relatos iniciais, verificamos que não existe nesse grupo focal

uma consonância em relação à idade de aquisição da Libras, mesmo que diversos deles

tenham frequentado a mesma escola, que é mencionada de modo recorrente. Em apenas

3 dos casos a aquisição da Libras se deu próxima ao período crítico ideal (QUADROS,

2011). Em nenhum dos casos houve aquisição da língua de sinais no contexto de casa,

sempre fora, através do profissional fonoaudiólogo ou na escola. Entendemos que

apesar das legislações anteriores à Lei de Libras, e mesmo após essa, a perspectiva

clínico-terapêutica de compreensão da educação do Surdo ainda se constitui como

hegemônica. No sentido de que embora a Lei de Libras tenha oficializado e dado

reconhecimento à língua da Comunidade Surda, esse reconhecimento e outras

reivindicações convergentes já vem historicamente se apresentando e poderiam ter

sensibilizado/conscientizado profissionais e professores quanto à importância da Libras

para a aquisição da linguagem. A conduta da fonoaudióloga que proibiu a participante

P de ter contato com a Libras, sob pena de não poder/querer mais ser “oralizada”,

remonta ao Congresso de Milão, fins do século XIX!

Por outro lado, após o diagnóstico da surdez é comum que os pais se informem

no campo da saúde, buscando formas de “normalizar” o filho diante do “desvio” físico

identificado. O reconhecimento da surdez como diferença linguística e cultural passa

distante dos discursos comuns no campo da saúde, assim esses Surdos são naturalmente

direcionados a terapias de reabilitação auditiva, uso de aparelhos de amplificação

sonora, implantes cocleares e tecnologias que o aproximem do padrão ouvinte. Assim, o

contato inicial com a língua de sinais e outros pares surdos provoca reações de surpresa,

ao abrir novas possibilidades de interação e comunicação. O conforto gerado pela

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aprendizagem orientada em padrões visuais impulsiona a aquisição da Libras de modo

natural:

[...]não entendia a leitura labial e nessa escola inclusiva não havia intérprete

em sala. Com 15 anos fui para o Barnabé, fiquei maravilhada e a professora

Waine, que era Surda, me ensinava em Libras, foi muito melhor (SURDA G,

Asipa, 15/04/2017).

[...] Não tinha intérprete, sempre estudei com ouvintes e fazia leitura labial,

depois conheci a escola Barnabé pela primeira vez e vi que todos eram

Surdos e fiquei maravilhada, só depois de muito tempo, no primeiro ano do

Ensino Médio tive intérprete (SURDA E, Asipa, 15/04/2017).

- Como era aprender por leitura labial? (MODERADOR, Asipa 2017)

[...] Era péssimo, era a morte, muito ruim, tudo cortado. Em Libras é muito

melhor. (SURDA E, Asipa, 15/04\2017).

[...] Por muitos anos não entendia nada, não aprendia nada, eu fazia muita

bagunça, jogava bola de papel, ficava brincando, imitava os ouvintes.

(SURDA P, Asipa, 15/04/2017).

Os depoimentos revelam a inacessibilidade aos conhecimentos trabalhados na

escola ao longo da educação sem o acesso à Libras. E também confirma a falácia de um

dos mitos presentes na educação do Surdo - que todo surdo faz leitura labial e que para

ensinar o surdo bastaria pronunciar bem as palavras, olhando para ele.

A questão visual, pouco presente na metodologia focada em ouvintes – e,

quando presente, é organizada de forma dependente da complementação da fala para

compreensão do conteúdo (observar as aulas em slides, por exemplo, ou com desenhos

e gráficos na lousa)- e de cunho de reabilitação, que se mostraram a base para o ensino

dos surdos participantes da pesquisa, parece extinguir o interesse desses alunos quanto

ao conteúdo escolar. O que nos permite inferir que a própria instituição escolar se

desvia do papel de formar para a cidadania crítica e participativa e caminha na direção

de uniformizar relações de comportamento para um convívio minimamente social. Estes

mesmos conhecimentos, que não são devidamente apropriados pelos surdos, dadas as

limitações didático-pedagógicas e de paradigmas educacionais, posteriormente reforçam

a ideia dos Surdos serem incapazes intelectualmente, uma vez que lhes faltaria “base”

para desenvolver hipóteses e aprendizados mais complexos. Porém, o que vemos é um

desrespeito às especificidades de aprendizagem de uma minoria linguística, o que

influencia em toda formação da pessoa. Em relação a isso, pensando-se a questão da

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aquisição da linguagem e, por meio dessa, daquela dos conhecimentos, Magnani (2007,

p. 09), assim se coloca:

Pode-se considerar que a questão da surdez traz para o campo da reflexão e

pesquisa antropológicas um tema e um conjunto de atores sociais -

habitualmente tratados na área das ciências da saúde sob o foco da patologia,

anormalidade, deficiência. - que podem ser encarados numa outra

perspectiva: a partir do ponto de vista das diferenças que se estabelecem no

interior do próprio universo dos surdos (que não é homogêneo) e também

problematizar o uso nativo da expressão mundo dos ouvintes, (o "outro" dos

surdos) também postulado como um bloco homogêneo. Em suma, como já

foi afirmado, em vez de encará-los sob o prisma da falta, cabe assumi-los da

perspectiva da marca.

Ou seja, persevera-se, na esfera educacional e mesmo familiar e social, na

concepção do Surdo como aquele em falta, e pouco se percebe, na fala dos sujeitos, a

possibilidade de a língua de sinais constituir-se, para os Ouvintes, numa marca

identitária positiva da Surdez, no sentido de significar uma forma de produção e

expressão cultural, meio de interpretar, agir e internalizar a realidade, e de

estabelecerem um sentido de agência e de eficácia pessoal e coletiva. A marca é dada

pelo avesso- a negatividade. Entendemos que se a questão educacional escolar do

Surdo, principalmente após a legislação, tivesse se mostrado mais aberta à

comunidade, e contribuindo para o fortalecimento dos vínculos entre os próprios

Surdos e as Comunidades Surdas, numa perspectiva de empoderamento, como propõe

a educação sociocomunitária, a concepção da marca como positividade teria tido mais

condições de florescer. Mas para tanto, como nos adverte Boyd (1977), é necessário

que a Educação Sociocomunitária impulsione a criação de alternativas à educação

escolar tal como a conhecemos hoje, pois, na ausência de um pensamento contra

hegemônico em relação aos propósitos e práticas educacionais, em especial daqueles

direcionados para as minorias, nenhuma legislação será capaz de garantir, por si, os

direitos de cidadania desses grupos.

Bloco B - Relação com a Língua Portuguesa

É comum, ao analisarmos os discursos oriundos dos movimentos surdos em prol

de uma educação bilíngue, o discurso que qualifica a Libras como língua natural ou

materna (L1) e, consequentemente, a Língua Portuguesa como língua adicional ou

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paterna (L2). Sacks (1989) já nos aponta, por meio das suas reflexões e observações, as

questões que se constituem como barreira na aquisição dessa segunda língua.

Parece lógico que para adquirir uma língua adicional os surdos precisem antes

de uma língua natural, contudo, se o canal que possibilita a aquisição da Língua

Portuguesa pelos ouvintes é a audição, parece ainda mais lógico que os sujeitos surdos

não a adquiram pelo mesmo processo. Ainda assim, o período de aquisição de

linguagem não pausa e à medida em que a língua não é assimilada pelas disparidades

dos canais sensoriais de entrada de informação, ocorre a aquisição de algo misto,

orientado por gestos e memorizações fonéticas cruas e que muitas vezes não são

relacionadas ao seu conteúdo real, constituindo-se em meras repetições. No contexto de

filho surdo com pais ouvintes surgem ainda gestos combinados específicos

(idiossincrasias) que possibilitam intervenções rudimentares entre os familiares e o

surdo.

Nesse contexto a afirmação de que o surdo chega à escola “sem língua”

precisaria ser repensada, pois existe todo um processo de vivências idiomáticas que

possibilitou determinadas formas de comunicação em seu percurso de vida, e que

embora não se constitua especificamente na Língua Portuguesa formal estabelece

relações com essa, e alavancadas pela perspectiva visual no contato com a Libras.

Ocorre que as barreiras que se levantam durante a privação do acesso à língua de

sinais no período de desenvolvimento da linguagem principalmente, priva o surdo do

acesso a informações básicas cotidianas, ao pleno entendimento do jogo social e das

formas de funcionamento do mundo, que normalmente são expostas tanto pela fala

quanto pela escrita, ou mesmo por gestos, mas derivados de uma cultura ouvinte. O que

provoca lacunas de aprendizagem e atrasos no desenvolvimento do processo cognitivo e

da ideia do que é e do como ser pertencente ao meio em que se vive. Podemos dizer que

o “desempoderamento” do Surdo inicia-se aí. O ensino da Língua Portuguesa pautado

em metodologias focadas naqueles que já estão naturalmente em contato com ela, ou

seja, os ouvintes, torna essa língua escrita, que é baseada num sistema fonético, um

objeto estranho e alheio à relação do surdo com a sociedade e, por vezes, é apontada

como razão da desinformação do Surdo naquilo que diz respeito à sua realidade.

Acompanhemos as falas emersas do grupo focal:

[...] a leitura labial eu perdia muitas palavras e informações, não conhecia

todas as palavras, o significado das palavras e das coisas [...] Fiquei na fono,

fazia as atividades, os treinamentos, mas não conseguia falar bem, falava

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muito errado. Parei de fazer porque achei muito difícil, não entendia as

palavras. O professor ensinava as palavras e eu não conseguia; tinha muitas

dúvidas (SURDA P, Asipa, 22/04, 2017).

Ainda assim, mediante as dificuldades em adquirir a Língua Portuguesa pelos

métodos empregados, alguns surdos se sobressaem, seja pelo grau de surdez ou mesmo

por questões aquisitivas que lhes possibilitasse a continuidades dos exercícios com

fonoaudiólogos. Esses poucos casos de sucesso na oralização passam ainda a ideia de

melhor desenvolvimento pela proximidade com o modo ouvinte de se relacionar, o que

faz que surdos que falam oralmente em Português sejam mais valorizados no que tange,

por exemplo, ao mercado de trabalho. No contexto acadêmico o não domínio da Língua

Portuguesa se constitui em um barreira que, por vez, impede o surdo de avançar:

[...] Me lembra o primeiro ENEM que fiz. Eram quatorze Surdos na sala, e o

Marcel de intérprete. Os Surdos foram até bem na prova, mas não foram bem

na redação, pois a redação é muito difícil tendo que pensar em LIBRAS e

traduzir para o português escrito (SURDA D, Asipa, 22/04, 2017).

Ainda assim, existe uma consciência quanto à finalidade prática de

aprendizagem da Língua Portuguesa, como expressa pela observação de P. à fala de D.:

[...] Aprender o português realmente deve ser importante porque, por

exemplo, as provas, os concursos, na escola, tudo é em português, não é em

Libras. Então é importante aprender para fazer concursos, provas, e trabalhar,

como por exemplo, mandar e-mails (SURDA P, Asipa, 22/04, 2017).

Na fala de P. podemos inferir a expressão da dominação de uma minoria cultural

pelo viés da linguagem. Afinal, aprender o Português serviria como forma de escapar da

subordinação, representada por oportunidades mais valorizadas de emprego, de

ascensão social, de estudos, etc. Magnani (2007, p. 18), nos auxilia na compreensão

antropológica dessa fala:

Para tanto a questão da cidade é crucial, em termos estratégicos. Os graus de

uso, a formas de mobilidade, a multiplicidade de pontos de encontro, as

oportunidades de trabalho, estudo, etc. oferecidas pelas diversas escalas

urbanas é que vão determinar um maior ou menor campo de trocas,

permitindo construir, fortalecer e exibir marcas de identidades que se

legitimam na medida em que são assumidas pelos "de dentro" e exibidas para

"os de fora". É preciso, pois, identificar os pedaços, os circuitos, os trajetos,

que constituem diversas modulações ou gradações do espaço público onde se

pode perceber a construção de múltiplas identidades - em contraste com o

confinamento do espaço privado, que dificilmente consegue fazer a

passagem do estigma, negativo, para a marca de pertencimento, positiva.

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Quais espaços sociais são apropriados pelos Surdos e como a educação tem

colaborado para a ampliação desses espaços? Em quais sentidos a legislação aqui

analisada tem contribuído para isso? Entendemos que as possibilidades atualmente

existentes para que os Surdos construam múltiplas identidades ainda são bastante

reduzidas, e que a Lei de Libras, em que pese suas intenções, pouco peso parece estar

assumindo, nesses 15 anos da sua promulgação, para tanto.

Bloco C - Metodologia e acessibilidade no período de escolarização

Ao longo dos depoimentos e discussões do grupo focal foi possível depreender

que os métodos de escolarização, com raras exceções, ocorreram de forma diferente

para os participantes, havendo, em síntese, o acesso tardio à Libras, realizado ao

ingressarem na escola regular. As narrativas confluem para os sentimentos de

desconforto, de desprezo e de isolamento, também agravados pela comunicação restrita

a gestos e mímicas ou resquícios da oralidade. As participantes A. e P. iniciaram assim

a discussão desse tema mobilizador:

[...] parece que o professor despreza o indivíduo Surdo e que é só ter

intérprete e pronto (SURDA A, Asipa, 22/04/2017).

[...] a comunicação com os amigos ouvintes era mais por gesto e em

“apontamentos11

” (SURDA P, Asipa, 22/04/ 2017).

E a participante E. concordando:

[...] Eu tive muita dificuldade, pois era obrigada a oralizar. Fazia algumas

mímicas e assim foi por anos. Quando os ouvintes me convidam para sair eu

penso várias vezes antes de aceitar (SURDA E, Asipa, 22/04/ 2017).

Em contrapartida, quando narram sobre a entrada na escola bilíngue, em que a

Libras é a língua de instrução e existem outros pares surdos, os discursos adquirem um

viés completamente diferente:

[...] Mas é muito melhor a bilíngue. Realmente antes eu, o Surdo D, a Surda

C e o Surdo F estudávamos e era ótimo tudo bilíngue, tudo ministrado em

Libras (SURDA G, Asipa, 22/04/ 2017).

11

A interação de surdos com ouvintes não usuários da língua de sinais (grande maioria) demanda um

esforço excessivo dos surdos que se valem de gestos, apontamentos, sons e mímicas o que limita a

comunicação a elementos básicos impedindo diálogos mais complexos.

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[...] sala apenas com Surdos, aulas ministradas diretamente em Libras,

normal (SURDA C, Asipa, 22/04/ 2017).

[...] Eu não tive intérprete, tive ajuda de amigos ouvintes. Não entendia as

aulas e não tinha intérprete. Depois tive contato com Surdos e minha família

descobriu o Barnabé, lá as aulas eram ministradas em Libras e eu fiquei

muito feliz [...] porque com a Libras eu entendo tudo, ficou mais claro, né,

em Libras eu desenvolvi melhor (SURDA P, Asipa, 22/04/ 2017).

[...] Precisa voltar para o bilíngue, era ótimo, pelo menos no ensino

fundamental, para aprender base do conteúdo de Português, matemática todas

as matérias, consolidam e internalizam melhor (SURDA K, Asipa, 22/04/

2017).

Para além das questões linguísticas e de uma metodologia de ensino que se valha

da Libras, é possível identificar uma referência com seus pares, promotora de uma

identificação identitária, que permite uma ligação mais próxima e que extingue a ideia

de isolamento do modelo anterior, vigente na escola regular, que busca acomodar-se ao

ensino do Surdo:

[...] visualizei os Surdos sinalizando, fiquei admirado, foi a primeira vez que

vi as mãos “falando”, continuei no Barnabé, conheci todos, internalizei a

língua e me experienciei enquanto Surdo (SURDA G, Asipa 24/02/2017).

[...] quando os Surdos chamam, eu aceito na hora, amo ter esse contato, essa

interação. Com os ouvintes precisa ser mais paciente para se comunicar, não

é preconceito com ouvinte não, mas é diferente, gosto de ouvintes também,

mas gosto mais dos Surdos (SURDA A, Asipa, 22/04/2017).

Essas relações são essenciais no processo de escolarização dos Surdos, uma

forma de se ver no outro e sair da zona escura de bocas “que se mexem sem fazer

sentido”. A possibilidade de entender o mundo na perspectiva visual se expressando por

meio da Libras e principalmente sendo compreendido pelo outro. Numa relação com as

respostas obtidas nos questionários aplicados, 81,3% dos professores de Libras apontam

que consideram a forma como a pessoa Surda percebe o mundo no ensino da Libras e da

gramática. Isso impacta na acessibilidade comunicacional do Surdo no período de

aquisição de sua L1 – Libras, como corroborado pelos enunciados dos participantes do

grupo focal.

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Gráfico 01. Estratégias utilizadas no ensino de Libras

Fonte: Arquivo pessoal do pesquisador (2017)

Contudo, resta saber como esse “levar em conta ocorre”. Filtrado pela cultura

Ouvintista? Como a “forma de ver e perceber o mundo” é conhecida, avaliada? Se,

conforme nos colocam Quadros e Shimiedt (2006), o surdo percebe o mundo de forma

diferenciada daquela dos ouvintes, consideramos que os professores devem propor-se

um esforço significativo para buscar compreender a forma Surda de perceber o mundo.

Compreendemos que a necessidade desse conhecimento é tida como importante para os

professores, mas sua efetivação ainda é objeto de discussão e de averiguação. Inclusive

deveria ser alvo de debate e de trabalho didático nos cursos de Libras na graduação.

Mas, pelos estudos por nós realizados, quer na legislação, quer nos Projetos Político-

Pedagógicos e mesmo nas respostas aos questionários e nos enunciados do grupo focal,

isso não vem ocorrendo de maneira sistemática e com o peso valorativo que deveria ter.

Almeida (2015, p. 79) afirma que as concepções em relação ao modo Surdo de

compreender a realidade devem considerar que:

a) a integração entre surdo e ouvinte mascara preconceitos em relação à

surdez; b) a concepção de surdez é multifacetada; c) o aprendizado da Libras

possibilitou sua afirmação enquanto ser diferente, com necessidades distintas

e d) o papel do outro surdo é fundamental na construção de uma identidade.

Em suma, tratam da necessidade de “compreender o surdo a partir de

construções histórico-sociais, simbólicas e culturais, para além de uma

dimen- são fisiológica” (NÓBREGA, 2012, p. 671).

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Bloco D - Inserção e relações no mercado de trabalho

As mesmas barreiras que se instauram no processo educacional, incidem nas

relações de trabalho dos Surdos, às barreiras comunicativas e as dificuldades inerentes

de uma formação básica desfalcada os direcionam na maioria dos casos para empregos

braçais ou subempregos. Embora exista incentivo para contratação de pessoas com

deficiência, bem como a obrigatoriedade legal em observância a lei de cotas em

empresas (aquelas com mais de 100 empregados devem destinar entre 2-5% das vagas

para pessoas com deficiência), é necessário um preparo e uma adequação mínima de

comportamentos para que os Surdos consigam ocupar essas vagas. E, depois, há ainda a

questão dos interesses pessoais, que geralmente não escamoteados às pessoas com

deficiência, que parecem ter que aceitar o “emprego que aparece”. Nesse sentido, ao

surdo acabam sendo destinados cursos de formação e trabalhos como “marcenaria,

serigrafia e informática”, sob a alegação de que os “surdos são por natureza atenciosos,

pois não se distraem com o barulho e a conversa” (KLEIN, 1995, p. 13). Dados do

Ministério do Trabalho (2017), parecem confirmar essa tendência: enquadrados como

“pessoas com deficiência”, os Surdos são a segunda categoria de “deficientes” com

maior empregabilidade, estando em 2017, trabalhando com carteira assinada, 6898

surdos, e sendo as ocupações exercidas majoritariamente: alimentador de linhas de

produção industrial, assistente administrativo, repositor de mercadoria, almoxarife,

serviços de limpeza e conservação de áreas públicas e operador de máquinas em geral.

Há também engenheiros (39), advogados (55), engenheiros agrônomos (72) e cirurgiões

dentistas (21). Apesar desses números parecerem indicar avanços, o que representam no

universo das Comunidades Surdas? E observamos a contundência dessa

empregabilidade: os Surdos devem aceitar, de certa forma submeterem-se, a serem

pessoas com deficiência. Esse é o preço pelo “direito” ao emprego. Nas afirmações do

grupo focal podemos perceber que os discursos ressoam os dados do Ministério do

Trabalho quanto às ocupações mais comumente encontradas pelos surdos, bem como as

dificuldades com a (re)colocação profissional:

[...] Eu trabalhava no Fórum, que tinha uma parceria com a FENEIS. Tinha

dezoito anos, não era fácil, tinha muitas dúvidas. Estava ansiosa querendo

trabalhar e aprender. Aí a FENEIS levou meu currículo e fui chamada. Gostei

muito: observava os ouvintes, cumpria os horários e fazia tudo certo. Fiquei

lá por seis anos e meio. Por conta da crise, fui demitida e atualmente estou

sem trabalhar há cerca de um ano (SURDO E, 22/04 2017).

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[...] Eu não trabalhava, era casada. Quando me separei, tive muitas

dificuldades por causa dos filhos, e comecei a trabalhar numa empresa de

talheres. Fiquei lá por nove anos. O trabalho não era bom; ficávamos no sol,

no calor. Sai de lá e tem um ano e meio que estou desempregada. Já mandei

currículos e nenhuma resposta até então (SURDA K, Asipa, 22/04 2017).

[...] Trabalhava num escritório como secretária. Na verdade, era assistente de

escritório. Trabalhava normal, conseguia me comunicar bem e aprendi tudo

muito rápido. Gostava da empresa. Sempre trabalhei e continuei trabalhando.

Depois mudei para outro trabalho, também como secretária. Atualmente

estou desempregada (SURDA F, Asipa, 22/04 2017)

[...] Trabalhei no supermercado, na reposição de mercadorias. Fiquei lá por

oito anos e saí. Depois, trabalhei em uma loja, também na reposição. Fui

demitido após um ano. Depois trabalhei na faculdade. Nesse período

emagreci muito trabalhando; o trabalho era difícil e o salário baixo. Fiquei

por um ano e pedi para sair. Atualmente trabalho numa vidraçaria. Fiz o

curso, aprendi, sei instalar box, janelas, e sigo esta profissão. Não tenho

carteira assinada. (SURDA K, Asipa, 22/04 2017).

É importante destacar que embora as empresas realizem essas contratações, as

questões de acessibilidade ainda estão aquém do esperado: elas não contam, por

exemplo, com tradutores e intérpretes que possam mediar as instruções e orientações

coletivas, assim a comunicação permanece restrita à leitura labial, mímicas e registros

em papel, muitas vezes tornando-se incompreensíveis para esses surdos. A socialização

no ambiente profissional também fica comprometida, não sendo incomum que o

funcionário surdo faça suas refeições sozinho, ou fique isolado nos momentos de folga.

O problema da comunicação emerge também em situações de crise, ou de reuniões, e

demandam posicionamento do Surdo para ser respeitado:

[...] No meu trabalho, na primeira reunião, criei coragem para chamar meu

chefe em particular e conversar. Preciso entender claramente o que foi dito,

mas nessa forma de reunião não consigo assimilar nada. Pedi que ele falasse

comigo em particular e não com todos. Quando ele falava diretamente para

mim, tudo ficava claro e conseguia entender. O Surdo precisa ter coragem.

Se o Surdo fica tímido em um canto, não vai aprender nada. Deve ter

coragem de dizer que não entendeu e pedir para repetir, anotar em um papel.

Ficar com vergonha só porque é Surdo não leva a nada. Todos na empresa

perceberam que eu tinha o desejo de aprender e me aprimorar. O chefe acatou

minha sugestão e a me ensinar em particular. As vezes, o chefe pode pensar

que o Surdo é preguiçoso, que não quer aprender ou desenvolver na empresa,

que não entende nada. Se o Surdo não pergunta, não aprende nada. É preciso

ter coragem (SURDA P, Asipa, 22/04/2017).

[...] Em minha opinião, cada empresa precisa fazer curso de Libras para

conseguir se comunicar. Não é sempre que o intérprete tem disponibilidade

de ir até a empresa. É melhor que a empresa tenha o curso de Libras e tenha

pessoas que dominam a língua dentro da empresa mesmo (SURDA G, Asipa

22/04/ 2017).

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[...] Durante nove anos de trabalho, eu não tinha intérprete nas reuniões.

Trabalhava junto de outra Surda. Não entendíamos as falas. Perguntei a uma

ouvinte, que tentava me explicar. Eu explicava em Língua de Sinais para

minha amiga surda (SURDA B, Asipa, 22/04/ 2017).

A manifestação de P. retoma a questão do empoderamento. Ela se refere à

coragem que o Surdo deve ter, mas, essa “coragem” é aprendida, e deve sê-lo nas

situações e vivências que favoreçam ao Surdo empoderamento. Deveria ocorrer na

educação, e em outros espaços de convivência partilhado pelo Surdo, ao longo do seu

processo de desenvolvimento. Retomando o conceito de educação sociocomunitária,

Anyanwu (2002, p. 84), se refere a essa como aquela pautada no:

[...] processo no qual a aprendizagem é usada para a melhoria nas condições

de vida dos indivíduos, de sua comunidade e globalmente”, sendo

caracterizada pelo envolvimento integrado de pessoas de todas as idades; o

uso de pesquisas e recursos de aprendizagem comunitária para a mudança

social, e o reconhecimento de que as pessoas podem aprender através das

outras pessoas, e umas com as outras, para criar um mundo melhor.

Argumentamos que a educação dos Surdos, constituindo-se como bilíngue, deve

considerar esses pressupostos, pois há que se animar o sentido de comunidade da

cultura Surda, promovendo um movimento de maior envolvimento com a cultura

Ouvintista. É nesse ponto que, em nosso entender, a legislação aqui problematizada

deve(ria) ter se condensado, pois caminho para a construção do empoderamento, a partir

do qual outras conquistas podem ser alcançadas.

Bloco E - Conhecimento acerca dos dispositivos legais

De modo geral, o lugar que os Surdos hoje ocupam socialmente foi alcançado

tanto pelos movimentos surdos, que reivindicaram conscientização e respeito, como por

imposições legais. Exemplo disso é o reconhecimento da Libras, que apesar dos estudos

linguísticos e da pressão das Comunidades Surdas, só ganhou mais força a partir da

legislação, bem como a organização do processo educacional dos surdos e os

parâmetros de acessibilidade. E mesmo tais avanços ainda nos parecem tênues, frente a

anulação que ainda há das subjetividades Surdas. Os movimentos Surdos têm se

apropriado dos dispositivos legais para reivindicar tanto o uso e a difusão da Língua de

Sinais como o acesso à escolas bilíngues e a acessibilidade por meio de tradutores e

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intérpretes de Libras. Por movimentos Surdos mencionamos as associações e

organizações representativas, contudo percebemos que há um desconhecimento dos

direitos e de questões politicas envolvendo tais direitos, principalmente por parte dos

Surdos que não tem tanto acesso ou participação nas associações, organizações e

movimentos Surdos. Um exemplo está no (des)conhecimento sobre as motivações e

origens da legislação aqui analisada, o que pode ser diretamente ligado ao processo de

formação dos surdos, cuja história não é formalmente discutida no espaço escolar. No

grupo focal:

- Quem criou a lei de Libras? (MODERADOR, Asipa, 22/04/2017)

[...] Acho que foi depois dos movimentos e protestos dos Surdos em

Brasília12

. (SURDA E, Asipa 2017)

- Os Surdos participaram da criação da Lei? (MODERADOR, Asipa, 22/04/2017)

[...] Acho que foi um Surdo de Belo Horizonte quem fez a proposta.

(SURDA G, Asipa 22/04/2017)

Os demais surdos não se expressaram sobre a lei de reconhecimento da Libras, embora

fossem cientes de sua existência, compactuaram com as opiniões e relatos dos demais:

[...] A lei foi boa sim, eu lembro mudou muito na escola para nós

surdos como a G e F já disseram. (SURDA C, Asipa 24/02/2017)

[...] Eu lembro de ver os surdos explicando que agora os ouvintes

acreditam que a Libras é língua porque tem lei e que iria ter

intérpretes e cursos para aprender isso é muito bom porque antes não

tinha e as vezes intérprete era só fraco em Libras, com a lei tem curso

pra formar (SURDO J, Asipa 24/02/2017)

[...] É verdade o que J disse, antes sem lei intérprete era qualquer

pessoa e as vezes sabia nada de Libras, agora melhorou muitos

empregos precisam de formação e certificado pra provar que é

interprete direito. (SURDA, K, 24/02/2017)

12

A lei 10.436/02 foi acompanhada de perto pelos movimentos surdos em Brasília, tomou forma a partir

do projeto de lei nº 131, de 13 de junho 1996, que havia sido aprovado 3 semanas antes. Contudo, da

participação dos movimentos surdos para a promulgação da lei, à difusão dessa informação e daquela da

importância da pressão política exercida por essa participação, junto aos surdos que não estão tão

próximos a esses movimentos, parece haver uma distância grande...

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O conhecimento acerca de sua própria história é essencial na constituição da

Comunidade Surda, ocorre que essas informações normalmente circulam com poucos

registros, e sem uma reflexão profunda do percurso histórico que possibilitou

atualmente a comunicação em língua de sinais. Quando perguntados sobre o assunto,

surdos mais velhos compartilham histórias em que fica evidente os resquícios do

período do Oralismo Puro, em que a língua foi duramente proibida. De certo modo, a

existência de leis que preconizam uma relação de equidade social entre surdos e

ouvintes parecem conquistas cujas bases se desconhece, é como se a legislação tivesse

surgido a partir de meros relatos, ou de experiências negativas de exclusão. Ou da

“bondade” dos governantes e legisladores. Mas pouco como resultado de luta de uma

minoria, em busca de reconhecimento.

No questionário proposto aos professores verificou-se que mais da metade dos

professores entendem que a Lei de Libras é insuficiente para preparar os Surdos para

autonomia e emancipação e que a metade acredita que a legislação é insuficiente para

mudar a realidade sociocultural do Surdo. Mas para se cobrar a implementação da Lei

antes precisa-se conhecer a lei. E, nesse sentido, questionamos a fragilidade com que

parece que a referida legislação como vem sendo trabalhada, tanto com os alunos das

licenciaturas como com os próprios Surdos, sem um olhar mais profundo sobre seus

pressupostos históricos, por exemplo, como desvendar o que está não dito na lei? Como

perceber que direitos estão excluídos, ou que práticas de dominação se fazem presentes?

Gráfico 02. Ensino de Libras x autonomia e emancipação

Fonte: Arquivo pessoal do autor (2017)

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Gráfico 03. Metodologias x Realidade Sociocultural

Fonte: Arquivo pessoal do autor (2017)

Azevedo (2007, p. 09) nos coloca uma chave de leitura para buscar compreender

a afirmação dos 31% de professores que considera que a Lei de Libras vem provendo

transformações na realidade sociocultural dos surdos. No entender do autor, a ação

hiper-regulamentadora do Estado, que tem no Estado brasileiro um exemplo,

materializada na existência massiva de leis, que pretensamente deveriam solucionar ou

equacionar problemáticas sociais, “menospreza a acção dos actores sociais locais”, ou

as valoriza conforme tais ações se dirigem a cumprir as leis. O que desmobiliza a

regulação local, sociocomunitária, que favoreceria uma concepção crítica da legislação,

enfrentando a concepção de que essa é neutra.

Bloco F - Aspectos culturais e identitários

As Comunidades Surdas se constituem por compartilharem de aspectos comuns

visuais, que por meio da língua brasileira de sinais, potencialmente se transformam em

marcadores culturais e identitários. Dentro dessas comunidades é possível encontrar

sujeitos que, numa modalidade visual de produzir cultura, o fazem por variadas formas

e que também se posicionam de formas socialmente diferentes em relação à realidade, à

surdez, etc. Assim, não se pode pautar os discursos no campo da Surdez sobre apenas

um tipo de Surdo, pressupondo que esse é um público homogêneo, como bem o

afirmam os estudos culturais da Surdez. Mesmo porque há surdos oralizados, surdos

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com implantes cocleares, que se comunicam fazendo uso de vários recursos de

linguagem, dentre outros. Dessa forma, uma forte possibilidade de marcação primária se

dá por meio da Libras, sendo outras marcas construídas a partir da interação do Surdo

com seus contextos de vida. Sobre as questões culturais e identitárias, os enunciados do

grupo focal foram:

[...] O Surdo é teatral, aponta as coisas, por isso a piada fica

engraçada. Ele não precisa usar palavras feias para a piada ter graça.

Cultura Surda são expressões faciais e o senso de humor [..]

Identidade Surda é quando o Surdo tem orgulho de ser Surdo

(SURDA P, Asipa, 22/04/2017).

Com base nesse depoimento, P. evidencia que a perspectiva que permeia as

relações nas comunidades surdas, no seu entender, é a da diferença (SKLIAR, 1997). O

modo de ser Surdo, não se considerando incapaz ou inferiorizado, mas se identificando

pelo modo de expressar, nos efeitos do humor e no orgulho da condição.

[...] É muito melhor bate papo em Libras com Surdos, não tem

problema, o ouvinte pensa que somos deficientes e não sabem que a

gente fala de tudo eles só não entendem. (SURDA K, Asipa

24/02/2017)

[...] Surdo tem cultura e língua, não podem proibir a gente como no

passado, hoje somos mais fortes e a lei garante só precisa os ouvintes

começarem a respeitar a lei. (SURDA N, Asipa 24/02/2017)

A maioria dos professores (75%) que respondeu ao questionário afirma valorizar

as características culturais das Línguas de Sinais, incorporando-as na metodologia e

didática, e 100% dizem ter contato com a Comunidade Surda.

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Gráfico 04. Metodologia e didática/ Características culturais

Fonte: Arquivo pessoal do autor (2017)

Pensar as questões metodológicas apropriadas para trabalhar o ensino da Libras

implica em buscar referências nos Estudos Surdos, estabelecer pontes entre teoria e

prática construindo um método que possibilite a aprendizagem dos mecanismos básicos

da língua e conhecimento teórico suficiente para descontruir os estigmas lançados sobre

os surdos. Embora todos os entrevistados mantenham contato com membros da

Comunidade Surda, um quarto (¼ ) responde que incorporam os estudos culturais à

prática de ensino da Libras e os demais respondem aplicar quando possível. Faz-se

necessário aprofundar essas discussões e identificar quais fatores tornam (im)possível

trabalhar com os estudos culturais, na visão desses professores.

Bloco G - Relação com instituições representantes da comunidade Surda.

Naturalmente, para além dessas comunidades instituídas e dos movimentos em

busca da conquista e manutenção de direitos dos Surdos, faz necessária a organização

de entidades representativas, que irão assumir a função política, de orientação e

demandas da comunidade Surda. Dentre elas, destacamos a Feneis:

A FENEIS é uma instituição não-governamental, filantrópica, sem fins

lucrativos, com caráter educacional, assistencial e sociocultural. São setenta e

sete entidades filiadas espalhadas pelo Brasil (em junho/2001), três

escritórios regionais (Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre), além da

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matriz no Rio de Janeiro (sede própria), e perspectiva de abertura de mais

dois escritórios regionais: Teófilo Otoni/MG e Brasília/DF (RAMOS, 2009,

p5).

- Vocês se sentem representados pela FENEIS? Qual o grau de contato com a

FENEIS? (MODERADOR, ASIPA, 22/04/2017).

A Feneis é para auxiliar em coisas, como por exemplos, festas das

associações, campeonatos, organiza palestras. Nos lugares onde não há

Feneis, os Surdos têm que se organizar em Associações para que a Feneis

possa atuar. Não há como ela atuar se não houver associações. Os surdos têm

que se mobilizar junto à prefeitura para juntos criar a Associação de Surdos.

Sem Associação nada é possível. No nosso município, a FENEIS é parceira

da Associação. Entendeu? (SURDA G, Asipa, 22/04/2017).

- Existe comunicação entre essa Associação e a FENEIS? (MODERADOR,

Asipa, 22/04/2017)

[...] Sim, há comunicação. As demandas são apontadas à Associação, e

posteriormente repassadas à Feneis. (SURDA G, Asipa, 22/04/2017).

[...] Temos eventos em que a Feneis oferece capacitação, cursos e seminários.

(SURDA C, Asipa 22/04/2017)

[...] Também tem o apoio da Feneis pra emprego, por exemplo eu trabalho no

fórum e a mediação para os surdos é feita pela federação que avalia e orienta

nas contratações (SURDA L, Asipa 22/04/2017)

Como instituição representativa, fica visível a participação da Feneis não

somente nas discussões e movimentos em prol da legislação e políticas afirmativas,

como também nas questões de trabalho e formação dos Surdos. Essa participação se

constitui numa importante ferramenta de orientação dos diversos órgãos e entidades

para que possam se adequar aos pressupostos legais vigentes.

Embora a educação de Surdos tenha se originado e persista na perspectiva da

educação inclusiva, é possível depreender, com base nos depoimentos e com o apoio da

legislação, que a questão da surdez, por si só se desvincula desse campo – ao menos

enquanto deficiência, que é o sentido mais comum atribuído à escola inclusiva. Quando

passamos a entendê-la como diferença orientamo-nos para a constituição de uma língua

e cultura com identidades próprias, e não uma patologia.

Por esse viés, a surdez não prejudica a capacitação, formação e educação dos

surdos e, sim, a ausência de políticas que lhes assegurem o direito a uma educação em

sua língua natural e à acessibilidade por meio de tradução e interpretação da língua de

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sinais. Para isso os dispositivos legais atuam como norteadores, ao voltarem-se para o

reconhecimento da língua, cultura e identidade dos Surdos, o que justifica os relatos

positivos pós-legislação coletados no grupo focal, em especial à educação bilíngue. E

mesmo por parte dos professores pesquisados. Reconhece-se o valor da garantia legal de

pensar-se um espaço de estudo e convivência não mais permeado pelo assistencialismo

e pela medicação, pela anulação da subjetividade, mas pelo reconhecimento dos pares

linguísticos e do acesso à informação naturalmente, por meio da Libras. Contudo, longe

está a legislação de encaminhar a exclusão social e educacional do Surdo, o que também

não foi criticado pelos Surdos do grupo focal. A questão da obrigatoriedade de aprender

o Português escrito e do ensino do Português ser feito como se o Português fosse a

língua mãe dos Surdos, é um exemplo forte da dissonância que existe entre o texto da

lei e sua vigência no cotidiano.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar os aspectos legais e seus impactos na educação de Surdos constituiu-se

como problema desafiador dessa pesquisa. Após a análise dos dados, consideramos ser

possível afirmar que a legislação estudada, se por um lado configurou um importante

avanço para garantir e assegurar os direitos dos Surdos, ao reconhecer a Libras como

meio legal de comunicação e expressão e orientar inicialmente quanto à formação dos

profissionais que irão atuar no campo da surdez, também vem se mostrando falha,

ineficaz ou mesmo contraproducente na proposta de gerar a autonomia e a emancipação

da Comunidade Surda.

É preciso considerar que as leis e decretos são dispositivos deliberativos e

instituem normas a serem cumpridas a vistas de penalidades, caso não o sejam. Mas,

sem necessariamente orientar quanto à organização, recursos e demandas na prática,

como transpor o abismo entre o contexto “abstrato” da lei e a vida “concreta” ?

Argumentamos que em sociedades caracterizadas pela exclusão social, como o é a

brasileira, a legislação, sem ser acompanhada por tudo aquilo que se requer para que

seja efetivada, pode conformar-se como mais um instrumento de opressão e dominação.

Acaba-se voltando a responsabilidade (ou o ônus) pela execução da legislação à

população, sem criar-se, necessariamente, uma conscientização que leve a sociedade a

refletir sobre os direitos, por exemplo, das minorias.

Dito isso, ocorre o reconhecimento da Libras como meio de comunicação e

expressão, mas não a institui como uma das línguas oficiais do país, tampouco a define

como língua no corpo do texto, senão pelo nome que origina a sigla LIBRAS. Ao

mesmo tempo, a mesma lei que reconhece a Libras institui que a Língua Portuguesa não

deverá em nenhuma hipótese substituí-la. Em outras palavras cria-se uma diferença

hierárquica entre a língua oral e a de sinais, na qual esta última passa a ser vista como

meio de obtenção da primeira e não em suas potencialidades na constituição dos sujeitos

Surdos.

Em se tratando da formação de professores, especialmente no IFSP, onde os

dados foram coletados, observamos o título mínimo de especialização na área conforme

orienta a legislação, no entanto a mesma legislação orienta para que professores surdos

tenham prioridade por meio de ações afirmativas nos editais. Contudo, curiosamente, a

maioria dos professores de Libras efetivos no instituto são ouvintes. O fato de os editais

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dos concursos não terem sido traduzidos para Libras, as provas e a bibliografia serem

exclusivamente em Língua Portuguesa e a educação de surdos se revelar ainda precária,

mesmo em níveis básicos, são fatores que certamente contribuíram para essa estatística.

Após quinze anos de promulgação da lei de Libras não há, ainda, a formação de quadros

de professores Surdos.

Ainda sob o viés da legislação, a análise dos documentos institucionais como

PPP e PPC, e ementas, parecem denunciar o cumprimento de uma obrigação legal,

embora algumas ações desenvolvidas se estendam para além do que é exigido na lei.

Porém, a ideia que fica é aquela da institucionalização da Libras como conteúdo

dissociado da grade comum dos cursos, como um acessório, ancorado apenas na

exigência legal.

Tendo ainda a análise dos documentos institucionais sob escopo, entende-se que

a carga horária destinada à disciplina é um fator que limita as discussões e o trabalho

que poderia ser feito, o que pode direcionar para uma perspectiva estritamente teórica,

tendo foco em metodologias específicas para Surdos, ou na prática com o foco na

interação em língua de sinais, ou um misto de ambos. Os estudos culturais sobre a

Surdez/Surdos, embora reconhecidos como importantes pelos docentes, acabam por

restringirem-se ao “quando possível”. De modo que tanto a metodologia quanto a

relação Surdo-ouvinte no contexto escolar estão sob o risco de ocorrer de modo raso,

em função do tempo limitado e que ainda é destinado a discussões sobre outros

conteúdos, como meio ambiente e relações ético-raciais.

É preciso ter em mente na elaboração desses documentos e ementas que por se

tratar de uma língua com mecanismos específicos, e tão complexa quanto as línguas

orais, a interação em Libras demanda muito mais tempo do que normalmente aquele

dedicado a uma disciplina comum do eixo das licenciaturas e bacharelados.

Os depoimentos dos Surdos, por sua vez, refletem os pontos positivos abarcados

na lei de Libras. A ideia de reconhecimento da Libras oficialmente, as mudanças

ocasionadas por profissionais mais qualificados e a possibilidade de salas bilíngues,

revelaram possibilidades de ser surdo e expressar-se com seus pares sem serem

instigados a se parecerem, copiarem ou tornarem-se ouvintes.

Esses dados nos permitem realizar inferências acerca da eficácia dos

dispositivos legais no que diz respeito ao ingresso de Surdos tanto como alunos quanto

como profissionais da Educação em nível básico, técnico, tecnológico e superior,

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apontando alguns aspectos que favoreceram, de fato, as discussões no campo da surdez

e outros que ainda carecem serem revistos na perspectiva de uma educação bilíngue.

Os depoimentos dos Surdos nos levam a conceber a prática de metodologias

bilíngues como fato propulsor no reconhecimento social da língua de sinais, no avanço

da aprendizagem pelos surdos e na própria constituição do sujeito no contato com seus

pares. Sendo um grupo de minoria linguística, pensar uma educação bilíngue nos remete

diretamente à perspectiva teórica da Educação Sociocomunitária, por possibilitar

equalizar a educação do Surdo articulada com a comunidade, inclusive a ouvinte. E por

favorecer que se fortaleça a educação da sociedade, incluindo a comunidade Surda, para

a discussão política da diferença. Sem a qual a justiça social não se efetivará, por

melhor que sejam os textos legais.

Essa pesquisa não vislumbra encerrar aqui as discussões sobre os impactos da

Lei de Libras para a questão da Surdez, mas se constitui num ponto de partida para

revisitar os aparatos legais, com base naquilo que foi consolidado nos últimos 15 anos.

Faz-se necessário, contudo, desmistificar a concepção, que parece atrelada à Lei de

Libras, que a obrigatoriedade de uma disciplina na grade curricular resolve a

complexidade – e as tensões- da educação dos surdos no Brasil. Sem isso, corremos o

risco dessa legislação contribuir para a dominação do Surdo, ao invés de contribuir para

sua emancipação. Dessa forma, discutir acerca dos caminhos possíveis para lidar com os

impactos e desafios existentes no entrecruzamento da educação e da Surdez, e,

principalmente o lugar do Surdo num cenário de legislação criada e aprovada em uma

perspectiva ouvintista.

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ANEXOS

Questionário da pesquisa:

1. Como você distribui a carga horária na disciplina de Libras?

2. O que o Ensino de Libras deve abranger?

3. Qual a sua formação?

4. Percebe relações de poder estabelecidas entre Libras e Língua Portuguesa?

5. As estratégias utilizadas no ensino de Libras e gramática levam em conta a

forma como a pessoa surda vê e percebe o mundo?

6. Qual a relevância da disciplina de Libras nos cursos de Licenciatura?

7. A sua metodologia e didática incorporam características culturais das línguas de

Sinais

8. Você acredita que o ensino de Libras está preparando os Surdos para a

autonomia e emancipação?

9. Existe interação em Libras entre os alunos?

10. As Metodologias desenvolvidas após a legislação estão conseguindo mudar a

realidade sociocultural dos Surdos?

11. Você tem contato com a Comunidade Surda?

12. Você é Surdo ou ouvinte?

Questionário Demográfico:

1. Qual o seu nome?

2. Em que gênero se identifica?

3. Qual sua idade?

4. Qual o tempo de atuação no Instituto Federal de São Paulo?

5. Qual sua maior titulação?

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