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RE LI DA CALLIGARIS F. FARIAS LEMOS MAGNO MORIYAMA PAULS SETEMBRO 2013

relida de setembro de 2013

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RELIDA

C A L L I G A R I SF .

F A R I A SL E M O SM A G N O

M O R I Y A M AP A U L S

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4CALLIGARIS, Contardo. Amores Silenciosos. Folha de S. Paulo, 26/06/2008, p. e14.

8F., Néstor. Popeye. Em http://www.nestorf.com/

11FARIAS, Agnaldo. A Arte Não Tem Mandamentos. Folha de S. Paulo, 11/08/2013, Ilustríssima p. 7.

16LEMOS, Carlos Alberto Pereira. Da Taipa ao Concreto. Três Estrelas, 2013, p. 56-60.

22ADIDAS, Magno da. Pablo. Em http://palavrasdemagno.wordpress.com/

26PAULS, Alan. O Direito de Ler Enquanto se Janta Sozinho in Essa História Tá Diferente. Companhia das Letras, 2010, p. 13-31.

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A M O R E S S I L E N C I O S O S C O N T A R D O C A L I G A R I S

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Fazer e receber declarações de amor é quase sempre prazeroso. O mesmo

vale, aliás, para todos os sentimentos: mes-mo quando dizemos a alguém, olho no olho, “Eu te odeio”, o medo da brutalidade de nossas palavras não exclui uma forma selvagem de prazer.

De fato, há um prazer na própria intensi-dade dos sentimentos; por isso, desconfio um pouco das palavras com as quais os manifestamos. Tomando o exemplo do amor, nunca sei se a gente se declara apai-xonado porque, de fato, ama ou, então, diz que está apaixonado pelo prazer de se apaixonar.

Simplificando, há duas grandes categorias

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de expressões: constatativas e performati-vas.

Se digo “Está chovendo”, a frase pode ser verdadeira se estamos num dia

de chuva ou falsa se faz sol; de qualquer forma, mentindo ou não, é uma frase que descreve, constata um fato que não depen-de dela.

Se digo “Eu declaro a guerra”, minha decla-ração será legítima se eu for imperador ou será um capricho da imaginação se eu for simples cidadão; de qualquer forma, capri-cho ou não, é uma frase que não constata, mas produz (ou quer produzir) um fato. Se eu tiver a autoridade necessária, a guerra estará declarada porque eu disse que de-

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clarei a guerra. Minha “performance” dis-cursiva é o próprio acontecimento do qual se trata (a declaração de guerra).

Pois bem, nunca sei se as declarações de amor são constatativas (“Digo que amo porque constato que amo”) ou performa-tivas (“Acabo amando à força de dizer que amo”). E isso se aplica à maioria dos sen-timentos.

Recentemente, uma jovem, por quem tenho estima e carinho, confiava-me

sua dor pela separação que ela estava vi-vendo. Ao escutá-la, eu pensava que ex-pressar seus sentimentos devia ser, para ela, um alívio, mas que, de uma certa for-ma, seria melhor se ela não falasse. Por quê?

Justamente, era como se a falta do namora-do (de quem ela tinha se separado por vá-rias e boas razões), a sensação de perda etc. fossem intensificadas por suas palavras, e talvez mais que intensificadas: produzidas.

É uma experiência comum: externamos nossos sentimentos para vivê-los mais in-tensamente — para encontrar as lágrimas que, sem isso, não jorrariam ou a alegria que talvez, sem isso, fosse menor. Nada contra: sou a favor da intensidade das ex-periências, mesmo das dolorosas. Mas há dois problemas.

O primeiro é que o entusiasmo com o qual expressamos nossos sentimentos pode simplificá-los. Ao declarar meu amor, por exemplo, esqueço conflitos e nuan-ces. No entusiasmo do “te amo”, deixo de lado complementos incômodos (“Te amo, assim como amo outras e outros” ou “Te amo, aqui, agora, só sob este céu”) e ad-versativas que atrapalhariam a declaração com o peso do passado ou a urgência de sonhos nos quais o amor que declaro não se enquadra.

O segundo problema é que nossa verbor-

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ragia amorosa atropela o outro. A com-plexidade de seus sentimentos se perde na simplificação dos nossos, e sua resposta (“Também te amo”), de repente, não vale mais nada (“Eu disse primeiro”).

Por isso, no fundo, meu ideal de relação amorosa é silencioso, contido, pudico.

Para contrabalançar os romances e filmes em que o amor triunfa ao ser

dito e redito, como um performativo que inventa e força o sentimento, sugiro dois extraordinários romances breves, de Ales-sandro Baricco, o escritor italiano que estará na Festa Literária Internacional de Parati, na próxima semana: “Seda” e “Sem Sangue” (ambos Companhia das Letras).

Nos dois, a intensidade do amor se impõe com uma extrema economia de palavras (“Sem Sangue”) ou sem palavra nenhuma (“Seda”). Nos dois, o silêncio permite que o amor vingue -apesar de ele não poder ser dito ou talvez por isso mesmo.

No caso de “Seda”: te amo em silêncio por-que te encontro ao limite extremo de uma viagem ao fim do mundo, indissociavel-mente ligada a um outro, e nem sei falar tua língua.

Você me ama em silêncio porque sou ou-tro: uma aparição efêmera, uma ave mi-grante.

No caso de “Sem Sangue”: te amo, e não há como falar disso porque te dei e te tirei a vida. E você me ama pelas mesmas razões pelas quais poderia e deveria querer me matar (os leitores entenderão).

Nos dois romances, a ausência da fala amorosa acaba sendo um presente que os amantes se fazem reciprocamente, uma forma extrema (e freqüentemente per-dida) de respeito pela complexidade de nossos sentimentos e dos sentimentos do outro que amamos.•

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A história é antiga, para lá de conhe-cida, mas sempre surpreende: em

1857, ao publicar seu romance “Madame Bovary”, Gustave Flaubert e seu editor fo-ram processados pela Sexta Corte Corre-cional do Tribunal do Sena, por ofender a moral e a religião. Durante sua defesa pro-nunciou a sentença provavelmente mais imortal de toda sua obra: “Emma Bovary c'est moi”.

A astuciosa confusão que Flaubert estabe-leceu entre ele mesmo e sua personagem serviu para que se pensasse sobre a confu-são entre leitores e personagens.

O tema é vasto, fértil, encantador. Vargas Llosa inicia seu ensaio “A Orgia Perpétua” (1957), sobre Flaubert e “Madame Bova-ry” dizendo que o grande drama de sua vida é a vida e morte de Emma Bovary. Com isso, assenta mais uma pedra no mo-numento em homenagem à genialidade de Flaubert, a mesma com que achata as mentes obtusas dos inúmeros críticos que não o compreenderam.

O Nobel peruano não foi o primeiro e não será o último a se impor a ingente tarefa de demonstrar aos seus contemporâneos, mesmo os mais ardentemente reacioná-rios, o valor de uma obra que agride os câ-nones, os valores estabelecidos, a tradição. Pensando bem, há muito tempo Flaubert não precisa de quem o defenda — muito mais problemático mesmo era defendê-lo em 1857. Como se sabe, nunca foi fácil discordar das matérias e visões consensu-ais, até porque podia e pode dar processo, prisão, banimento.

Mario Vargas Llosa é brilhante analisan-do o passado assim como o é em grande parte de sua ficção. Mas,quando se propõe a examinar o presente, comporta-se como um verdadeiro promotor Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena. Sem ti-rar nem pôr. A prova está no seu “A Civi-lização do Espetáculo”.

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A consistente defesa que ele faz da im-portância da cultura contrasta com a indigência de seus comentários sobre a miséria intelectual da cultura contempo-rânea em geral e da produção artística contemporânea em particular. A seu ver, uma decorrência direta do florescimen-to da “sociedade do espetáculo” — o uso chapado da expressão cunhada por Guy Debord, é bem ao gosto de um intelectual anacoreta, que assiste do alto a derrocada do seu velho mundinho, sem perceber as nuances da inteligência que, por exemplo, circulam pelas redes sociais.

O problema de Vargas Llosa é a fé cega no seu repertório, a pretensão

de que sua indiscutivelmente sólida edu-cação seja absoluta. Foi confiando total-mente nela que o autor (como contou em uma palestra em São Paulo) afirmou que, ao passear por toda uma edição da Bienal de Veneza, não viu absolutamente nada de interessante — o que teria catalisado o livro em questão —, concluindo que “o que antes era revolucionário virou moda, passatempo, brincadeira” e que a “frivoli-dade [nas artes plásticas] chegou a níveis alarmantes”

É certo que Mario Vargas Llosa é um grande artista, mas não lhe ocorre que seria no mínimo uma imprudência e no máximo uma burrice fazer um juízo tão peremptório sobre o mundo em que vive?

Vargas Llosa, assim como vários detratores da arte contemporânea, conclui pelo seu desacerto, sua inconsequência, seu vazio. E chega a isso por duas vias: desqualificando obras com comentários tão rasos quanto definitivos e comparando-as à produção do passado: seja ela a moderna, ou a alinhada com a fundação da estética no século xviii, ou mesmo a produção do Renascimento, períodos esses em que a arte ganhou novos estatutos e graus de importância.

Tal atitude é desonesta, por dois motivos:

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primeiro, porque tenta fazer com que uma opinião passe por visada analítica; segundo, porque pretende medir algo por um sistema métrico alheio ao que ele traz consigo, esquecendo-se cinicamente de que isso equivale a julgar a qualidade de uma instalação tendo pinturas como pa-râmetro, ou avaliar um jogo de futebol usando regras do beisebol.

A omissão de fatos históricos é um as-pecto fundamental da argumentação de-senvolvida pelos arautos da morte da arte na contemporaneidade. Admira que não aprendam nada com seus inumeráveis an-tecessores — aqueles que jogaram ovos em Nijinsky e Stravinsky; os que ignoraram Van Gogh, os que processaram Flaubert.

Causam espanto aqueles que saem em de-fesa de uma arte absoluta, esquecendo-se, ou querendo-nos fazer esquecer, de que a arte, na qualidade de produto da história, varia no tempo e no espaço; nada tem de fixa; não teve seus mandamentos trazidos por nenhum Moisés. Parafraseando Bre-cht, a arte [como tudo] é filha do tempo, e não da autoridade.

A história da arte é pródiga em ca-sos de mudança de recepção, em

aclamar obras esquecidas por anos e até séculos, e em colocar no chão produções antes consideradas eternas. Se é fato que Shakespeare foi um caso de sucesso ime-diato, o mesmo não se aplica ao grande Sandro Boticelli, vizinho de Michelangelo na Sistina, que, como escreveu Michael Levey, “passou por séculos de abandono” Mesmo em meados do século xix, a crí-tica de arte era unânime em considerá--lo um pintor de “mulheres rudes de um modo geral destituídas de beleza”.

Se as reputações artísticas sofrem altos e baixos, o mesmo não se pode dizer dos seus conceitos, que, arraigados ao públi-co, sobrevivem duradouramente. O pú-blico, dizia Delacroix, “é um relógio que

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atrasa”. A questão é: quem não é público? Se até mesmo os artistas o são, o que dizer de críticos e das demais autoridades que falam em nome da arte?

O grande desapontamento e irritação por parte de quem, como Vargas Llosa, visita exposições de arte contemporânea, deve--se a sua frustração por não encontrar nem sombra daquilo que já conhecia. Para todos esses caberia lembrar a lição de Rimbaud que, tendo a beleza em seu colo, injuriou-a.

A beleza, assim como alguns dos mais célebres pressupostos e objetivos da pro-dução artística, foi paulatinamente des-pojada de seu estatuto porque possuía a imobilidade — e o tédio — dos entes per-feitos. A partir de Baudelaire, a moderni-dade é associada ao movimento, à trans-formação ininterrupta — o que por certo inclui a produção artística.

O que é arte afinal? Como pretender fixar um conceito que de há muito afirma sua aversão a qualquer camisa de força? Em uma de suas colocações mais inspiradas, Waltercio Caldas afirmou que nunca se perguntava se o que estava fazendo era arte ou não; a pergunta era, a seu ver, im-produtiva.

A arte é contemporânea quando faz notar nossas lacunas, nossa qualidade inacaba-da, revelando, em contrapartida, nossa possibilidade de ampliação como ser.

Vargas Llosa deveria abandonar sua pre-sunção, evitando pontificar sobre aquilo que não se dispõe a entender. Deveria ter em mente que Caravaggio, antes de ser consagrado como gênio, foi considera-do pintor de blasfêmias; que o afresco de Michelangelo na Capela Sistina impres-sionou Delacroix pela exuberância pouco bíblica dos corpos; e que o músico Béla Bártok foi considerado alguém que “saíra em procura da beleza armado de martelo e bastões”.•

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Sempre tivemos vontade de escrever um livro sobre a cidade que os pau-

listanos construíram. São Paulo seria en-carada como um bem cultural de uma sociedade que, ao longo do tempo, sofreu intensas transformações. Seria a nossa ci-dade, então, um artefato de alto interesse cultural que também teria passado por sucessivas alterações formais. Talvez esse livro algum dia saia. Por enquanto, pode-mos ir divagando sobre o assunto, pois a nossa cidade, mais do que nunca, está a merecer a atenção de todos, e serão sem-pre oportunas reflexões sobre o seu des-tino.

No começo, do “saber fazer” da socieda-de mameluca, confinada no isolamento total dos campos de Piratininga, resultou o pequeno aglomerado urbano levantado todo em taipa de pilão. Os recursos da na-tureza eram poucos na hora da definição dos sistemas estruturais a serem adotados pelos construtores. Não havia jazidas de calcário nas proximidades; a cal vinha pe-nosamente em lombo de burro serra aci-ma, proveniente das cai eiras dos jesuítas no Cubatão, tirada da calcinação de blo-cos arrancados dos sambaquis. Pedra para construção também não havia nas proxi-midades. Madeiras de lei existiam em al-guns capões bem longe dos campos e das várzeas alagadiças que rodeavam o burgo. Transporte difícil das toras na região sem estradas. A cidade haveria de ser mesmo de terra socada, de taipa de pilão.

Essa técnica construtiva traz consigo inú-meras limitações. A parede de terra batida é muito suscetível à erosão. Exige largos

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beirais. Determina envasaduras de pe-queno porte, com franco predomínio dos cheios sobre os vazios — daí as pequenas e atarracadas construções ostentando gran-des panos brancos de paredes cegas refle-tindo a luz do sol e guardando em suas entranhas o calor necessário para aquecer as noites sempre frias. Paredes lisas, sem ornatos, porque dos pranchões dos taipais não poderiam surgir relevos ou molduras salientes nos paramentos.

Resultou disso tudo uma arquitetura po-pular singela, despida de atavios e, pode-mos dizer, destituída de qualquer inten-ção plástica. Nas construções da cidade pobre as diferenças eram quantitativas e não qualitativas. O rico morava na casa grande, ou no sobrado, e o pobre habitava a casa humilde de porta e janela. A taipa, porém, era a mesma para todos. Ruas estreitas e planas (as enxurradas deviam ser evitadas). Alinhamentos irregulares. Esquinas de ângulos esconsos. Na cidade toda havia só um cruzamento em ângu-lo reto, a confluência da rua Direita com a rua de São Bento, o chamado “Quatro Cantos”, hoje desaparecido devido à aber-tura da praça do Patriarca. Quando a era do café chegou, a densidade demográfica na exígua colina histórica era muito gran-de.

O dinheiro do café transformou a ci-dade. A nascente indústria trouxe o

operário imigrante. Gente nova no velho burgo de estudantes de Direito. Gente nova que foi se avolumando. Na passa-gem do século, mais de 40% da popula-ção eram de italianos, só de italianos, sem

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contar as outras nacionalidades. Italianos que tomaram conta das construções da ci-dade. Outro “saber fazer” surge definindo as novas obras. Surge a técnica das alve-narias. O tijolo custa, mas vence a taipa persistente do paulista, naquela época, de 350 anos, mas tão vaidoso de sua ances-tralidade como os quatrocentões de ago-ra. A cidade se renova. Agora, as diferen-ças entre as construções são qualitativas. É instaurado o luxo das casas ricas. Surgem os palacetes rodeados de jardins. A recen-te técnica construtiva exige elementos que o meio ambiente não pode fornecer.

É o início das importações sucessivas. Há casos em que literalmente todos os mate-riais de construção são importados. Te-lhas de Marselha, pinho de Riga, cimen-to da Alemanha, perfis e chapas de ferro galvanizados da Bélgica ou de “Flandres”, azulejos, louças sanitárias da Inglaterra e França, e assim por diante. Agora, há a in-tenção plástica. Surgem as preocupações estéticas. A cidade cresce e seu núcleo central se transforma. O ecletismo che-gou.

A partir do início do século têm come-ço as cogitações ligadas à beleza da

própria cidade. Buenos Aires é o modelo próximo, e o pessoal que frequentava Pa-ris nas entressafras do café não escondia sua ponta de inveja vendo a capital argen-tina assumir ares civilizados de cidade eu-ropeia. São Paulo não tinha perspectivas largas, grandes espaços livres para belos visuais. Somente becos, ruas tortuosas e casas feias do tempo da pobreza. Os novos bairros abertos pelos alemães Glette, No-thmann, Burchard, Meyer e outros grin-gos que viam longe foram ocupados por finas residências e colégios caros, mas não comoveram a classe dominante dos políti-cos — especialmente vereadores e prefei-tos. Não passou pela cabeça de ninguém organizar lá pelos lados da “cidade nova”1 a paróquia de Santa Ifigênia, um novo centro administrativo, um novo centro

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comercial, um novo centro bancário, uma nova urbanização desafogada, longe do histórico triângulo do tempo dos bandei-rantes. Muita discussão deve ter havido na escolha do terreno do Teatro Municipal, no outro lado do viaduto do Chá.

A partir de 1910, como era de esperar, surgem os chamados “planos das grandes avenidas”. Várias pessoas representando grupos distintos da classe dominante pro-curam modernizar a cidade imaginando o rasgamento na velha trama urbana de lar-gas vias semelhantes aos boulevards pari-sienses. Entre as ideias lançadas, as mais plausíveis eram as do engenheiro baiano Samuel das Neves, que, afinal, acabou sendo suplantado pelo paisagista fran-cês Joseph Antoine Bouvard, que muito se inspirou nos seus trabalhos. Foi uma decisão política, porque Bouvard nada trouxe de novo ou inédito. Esse desneces-sário comportamento da municipalidade, não aceitando nenhum dos projetos apre-sentados e apelando para uma solução “neutra”, é uma das primeiras posturas autoritárias em relação às intervenções no quadro urbano da cidade.

Em recente artigo2 referimo-nos mes-mo a uma ausência de prática demo-

crática nas decisões executivas visando a reformulações do meio ambiente. Assim, vemos que esse alheamento à opinião da comunidade já vem de longe. Bouvard só não executou foi a grande avenida que Samuel das Neves imaginara ligando a Ponte Grande, o acesso a Santana e toda a zona norte aos barrancos íngremes do Caaguaçu, onde rampas e patamares fa-riam a ligação viária com a nova e ainda pouco habitada avenida Paulista. Seria um grande eixo norte sul, ideia mais tarde retomada por Prestes Maia, que lhe acres-centou os túneis em direção aos Jardins.

A partir dessa época dos “planos das grandes avenidas”, não é difícil a gente perceber aqui e ali a influência solitária

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de uma pessoa, de um pequeno grupo e até mesmo de um artigo de jornal no re-manejamento urbano de São Paulo. Jules Martin, quando imaginou o viaduto do Chá e lutou por ele, estava ratificando o poder de intervenção na cidade por par-ticulares, como os especuladores alemães atrás mencionados, e servindo de exem-plo a tantos outros que lhe sucederam.

São Paulo sempre foi vítima dos trans-portes precários e daí o fato de ter

crescido sobre si mesma num firme e ine-xorável adensamento populacional, e é compreensível o surgimento da figura do especulador imobiliário, um dos grandes responsáveis pela fisionomia da cidade, que sempre construiu o que quis do modo que mais lhe conviesse. Foi o especulador que urbanizou a Várzea do Carmo e cons-truiu centenas de casas populares nos seus flancos; foi o especulador que verticalizou o centro comercial; foi o especulador que sempre pressionou a Câmara de Vereado-res para alterar leis referentes ao uso do solo, desde o tempo do Império. Certa-mente foi a especulação que revogou as posturas pioneiras do Código [de obras] Arthur Saboya referentes aos critérios de insolação de residências, que estavam atrapalhando sobremaneira a dissemina-ção de apartamentos nos exíguos lotes ur-banos da velha cidade.

A especulação é que lentamente forçou a transformação radical da avenida Pau-lista, levando-a de zona estritamente residencial nos anos 1940 a estritamen-te comercial nos dias de hoje. Foram os incorporadores que plasmaram a fisio-nomia da cidade, das grandes avenidas, sem policiamento algum e, inclusive, sem acertarem-se entre si. São Paulo é uma ci-dade ao acaso. São Paulo também sempre foi vítima da burocracia administrativa, alheia às coisas da estética e da opinião pública. Nunca houve a preocupação das belas visuais, das grandes áreas ajardi-nadas. Um dos raros espaços bonitos da

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cidade, o parque Ibirapuera, tem as obras de Oscar Niemeyer aviltadas e a escultura de Brecheret servindo de fundo para reló-gio digital publicitário, o testemunho da insensibilidade oficial. E nem falemos dos estragos proporcionados pelo Metrô, que deveria ser terminantemente proibido de projetar estações fora da terra.

Neste aniversário da cidade, nestes dias de euforia democrática, pare-

mos para fazer um balanço do que so-brou, compreendendo o atual patrimônio ambiental urbano, para exigirmos provi-dências cabíveis — preservacionistas ou reparadoras — dos candidatos a prefeito que aí virão prometendo tudo.

Teremos de eleger alguém que verdadei-ramente ame a cidade, que, além de tratar da periferia desvalida, também cuide dos bens culturais que sobraram do tempo da cidade só de terra socada, da cidade do ecletismo, da cidade de Victor Dubugras, de Samuel das Neves, de Ramos de Aze-vedo, de Prestes Maia. O preservacionis-mo não é uma providência elitista; é uma obrigação social visando à definição de uma identidade cultural. Teremos de ele-ger um prefeito que propicie mecanismos aptos a permitir a audiência popular, atra-vés de colegiado de elementos representa-tivos, em todos os casos em que qualquer uma das secretarias municipais e empre-sas estatais tiver a necessidade de intervir na paisagem urbana. Muitos terão de ser ouvidos antes de qualquer alteração do patrimônio ambiental urbano paulistano, que, por sinal, até hoje ainda não está bem definido. Há ainda o que fazer.•

25/1/1985

1 Referência à expansão da cidade para além do

rio Anhangabaú, que motivou diversos planos de

articulação viária com o núcleo original da cidade

no início do século xx.2 “O patrimônio ambiental e a prática

democrática”. Folha de S.Paulo, 7/12/1984.

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muito ja foi falado em filmes teorias conspiratorias e tudo mais algumas vezes sobre a vinda deles os irmaos de outros planetas em outros casos somos nos que vamo ate eles

o que é sigiloso porem foi descoberto é que ja teve um grupo de humanos em marte

em 1997 uma aeronave tripulada por 4 astronautas norte americanos e um es-cravo da bolivia estava indo busca cocai-na na colombia quando bateu um vento muito forte e subitamente fez ela levanta um voo muito mais alto do que o previs-to cerca de milhares de centenas de qui-lometros e nesse chamado ‘sopro de zeus’ todos foram alçados ate marte

esqueça tudo que voce ja viu sobre o pla-neta vermelho

chegando la era quente pra caralho e por sorte eles eram astronauta entao carre-gavam suas roupas e equipamentos na mochila por questao de segurança e ves-tiram o pobre boliviano sofreu na pele a furia do sol mas felizmente sobreviveu

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PABLO

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aquele pedaço de terra desconhecido era na verdade bastante exotico o chao era sim vermelho arenoso porem esqueça o deserto havia milhares de plantas mar-cianas que sao completamente diferente das nossas e voce jamais vai consegui imagina e tambem havia insetos marcia-nos que sao exatamente como nada na terra e assim era tudo que encontravam

a vida nao era uma mordomia pura po-rem ninguem pode reclama da falta de comida a abundancia de frutas era gran-de e caminhando muito desbravando exercendo seu dom de explorador os astronauta viveram como nomades nos primeros 150 dia

as paisagens eram deslumbrante por to-dos os lado so que em algum momento a falta de qualquer animal de porte desa-nimava os 4 astronauta e o escravo todos avidos pela aventura e por faze contato com o povo local o que era impossivel ja que parecia nao haver povo

o que ninguem sabia era do instinto mar-ciano que fogiam todos do contato hu-mano absolutamente todos fora os inseto e planta sentiam a presença estranha e fi-

MAGNO

DA ADIDAS

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cavam acoados com ela um dia contudo um cachorro fico pra tras e deu um latido

o pavor correu pelos ossos de todos o latido parecia de um cachorro no mini-mo dez vezes maior que um doberman quando viram o bicho se assustaram pois era menor que um pincher

os astronautas examinaram o animal que foi muito agressivo como todo pincher ha de ser e sentiram falta de elementos basicos como lingua e mamilos aquilo que tinham em maos era bestial

no momento em que um dos americano fez cosquinha na barriga do lucifer — o pincher ja tinha ate nome — uma risada profunda e diabolica deu inicio a trans-formaçao do cachorro que cresceu ate ficar dez vezes maior que um doberman

o que se viu em seguida foi um festival de sangue e matança com cabeças sendo devoradas e joelhos estraçalhados nao sobrou nada dos astronauta

o boliviano entretando começo a canta uma cançao absolutamente pavorante logo se descobriu fazer parte de um rito

lucifer espantosamente parecia gosta do que ouvia e se acalmo

o boliviano abaixo dois tom na sua can-toria e subitamente percebeu-se que ele emetia sons de latidos logo uma conversa acontecia entre os dois

rapidamente ficou entendido que a paz seria selada o desfecho todavia mostrou--se ainda mais generoso para pablo — finalmente ele era chamado pelo nome por alguem — ele assumiu o posto de li-der e volto a alcateia montado em lucifer o doberman gigante

pablo vive ate hoje em marte mais feliz do que jamais foi na terra•

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O DE LER

SE JANTAALAN

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DIREITOENQUANTOSOZINHOPAULS

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quando ela choranão sei se é dos olhos para foranão sei do que rieu não sei se ela agora está fora de siou se é o estilo de uma grande damaquando me encara e desata os cabelosnão sei se ela está mesmo aquiquando se joga na minha camaela faz cinemaela faz cinemaela é a talsei que ela pode ser milmas não existe outra igual

quando ela mentenão sei se ela deveras senteo que mente para mimserei eu meramentemais um personagem efêmeroda sua tramaquando vestida de pretodá-me um beijo secoprevejo meu fime a cada vez que o perdãome clamaela faz cinemaela faz cinemaela é demaistalvez nem me queira bemporém faz um bem que ninguémme faz

eu não seise ela sabe o que fezquando fez o meu peitocantar outra vezquando ela juranão sei por que deus ela juraque tem coraçãoe quando o meu coraçãose inflamaela faz cinemaela faz cinemaela é assimnunca será de ninguémporém eu não sei viver seme fim

CHICO BUARQUE

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Ainda estava trêmulo ao estacionar. Ficou com as mãos agarradas ao

volante por um momento, o motor liga-do, os olhos fixos no túnel negro da rua. Depois, por fim, insuflou um pouco mais os pulmões, como se destravasse um me-canismo, e soltou um jorro de ar intermi-nável, tão profundo, que só então caiu em si: era a primeira vez que respirava desde que cruzara a porta do Samurai, feito um bólido de ódio, e fora para a rua. Dirigira todo o trecho que ia do restaurante até a escola como um sonâmbulo. Estava com os nós dos dedos arroxeados. As unhas deixaram-lhe uma série de sorridentes meias luas vermelhas na palma das mãos. Desligou o motor, e com o silêncio as for-mas das coisas voltaram a desenhar-se: as árvores, os carros estacionados no quar-teirão, o alambrado do clube, o futurismo fora de moda do edifício da escola.

Como sempre, todas as possibilidades de ação que não lhe haviam ocorrido antes, quando mais precisava delas, assaltavam--no agora como saldos de final de estação. Choviam-lhe réplicas precisas, ao mes-mo tempo sutis e agressivas, que faziam o maitre do Samurai emudecer e as pes-soas que jantavam no local tomarem seu partido. Transformava-se em máquina de argumentar: máquina minuciosa, im-passível, tão japonesa quanto esse dimi-nuto súdito do império que acabava de humilhá-lo. Argumentava com tanta con-vicção que não precisava ser brutal. Nem sequer se defendia. Simplesmente reunia alegações em defesa de uma causa que ia muito além dele, de seu orgulho atrope-lado, e se tornava universal. E à medida que as desfiava, elegante e frio como um profissional, chegava a dar-se ao luxo de saborear o ensaio que algum dia escreve-ria sobre o assunto. Depois imaginou um fecho de ouro: numa espécie de apoteose triunfal, irrisória, levantava-se da mesa, entornava com calculada imperícia o mo-lho de soja sobre o linho branco, impecá-vel, da toalha, passava diante do maitre e,

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jogando-lhe na cara o livro da discórdia, saía sem pagar, tão arrojado e seguro de si, da justiça de sua causa, que ninguém fazia nada para impedi-lo, e nem ele mes-mo sabia, já na rua, como chegara até ali. Quis refrear-se, mas era mais forte do que ele. Sua imaginação nunca era tão voraz como quando começava a corrigir o pas-sado. E se não conseguia parar era, tam-bém, porque um resto de decência con-tinuava a manter na linha a única coisa que agora lamentava não ter feito: moer de pancada aquele cretino. De modo que quando se despenhou preferiu deixar-se levar por uma versão estilizada de seus piores anseios: dava um passo em dire-ção ao maitre, açoitava- lhe uma das faces com o guardanapo e um segundo depois escolhia sabres para o duelo e o enfiava, ou melhor: plantava o sabre a um milíme-tro da garganta dele e poupava sua vida em troca de uma indenização piedosa: cinquenta anos de comida japonesa grátis.

Poderia ter seguido despenhadeiro abai-xo, cada vez mais fundo, mas o grande portão do colégio se abriu, a massa de fer-ro se espreguiçou rangendo e a partir daí tudo se resolveu numa silenciosa caram-bola óptica: a folha da porta, ao se mover, devolveu o feixe de um dos quartzos da entrada do colégio, que bateu no espelho retrovisor de um carro e dali, direto, foi estampar-se em sua cara como a lanterna de um vigia meio curto de vista. Alguém tinha acabado de sair. Estudou de longe o pouco dessa silhueta que se podia divisar entre as sombras: a mochila pendurada no ombro, os braços cruzados sobre o pei-to, os passos largos e leves como os de um astronauta na Lua. Vinha em sua direção. Viu-a avançar, viu a luz pestanejante de um farol pentear-lhe a cabeça e a reconhe-ceu: era Marcia, a única amiga íntima de Ela que Ela não batizara com um apelido infame.

De modo que Marcia estava indo embora sozinha. Sentiu um baque no peito, como

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se seu coração tivesse atropelado uma corda invisível. Não podia deixar que o vissem ali, então afundou no assento e esperou, imóvel, que Marcia passasse a seu lado, e só despontou a cabeça nova-mente depois de ouvir as castanholas de seus passos — Marcia: a última esperança dos fabricantes de tamancos de madeira — afastando-se. Virou-se, seguiu-a com os olhos enquanto ela atravessava a rua, esperando o instante em que ia se dissipar feito miragem. Mas não: era Marcia, e Ela não estava com ela.

Não se enganara. Fizera bem em des-confiar, em voltar, em ficar montan-

do guarda a trinta metros da escola. Ela mentira para ele. Uma hora e meia antes ele a deixara na porta do colégio e se ofe-recera para ir buscá-la quando a peça ter-minasse. “Não precisa”, disse ela, sorrindo e acariciando-o com toda a gratidão que não havia em sua voz. “Eu vou embora com a Marcia. Hoje vou dormir na casa dela.” Fez-se um silêncio. Ele manteve os olhos cravados nela por alguns segundos, o tempo exato para deixá-la em evidência, o tempo exato de que Ela precisou para segurar uma fivela entre os dentes, jun-tar os cabelos, fazer um rabo de cavalo e prendê-lo com a fivela, tudo isso fazendo de conta que estava sozinha, ou seja, so-zinha diante de um espelho — uma arte que dominava cada vez melhor, princi-palmente na presença dele —, e reunir o butim escolar que, fiel a seu costume de se instalar em qualquer lugar onde ficas-se por mais de cinco minutos, espalhara por todo o carro: os cadernos, os livros, a maçã, um bolo de dinheiro, um folhe-to do Greenpeace sobre a Lei de Florestas em Salta, a calça de ginástica para o dia se-guinte, um telefone cravejado de adesivos, a camisola de algodão com a cara do Gato Félix que ele lhe trouxera de alguma via-gem e que ela continuava usando mesmo depois de meses — ou seja: anos, décadas, séculos — de Félix ter sido despejado por Joe Strummer de seu panteão particular.

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“Tem certeza?”, perguntou-lhe. “Tenho”, disse ela, e lhe deu um desses beijos lân-guidos, frívolos, sem alvo definido, com os quais começara a se despedir dele havia alguns meses, anos, décadas etc. “Não me custa nada”, insistiu ele. “Fico aqui pelo bairro, como alguma coisa por aí e depois passo para apanhar você. A que horas termina a peça?” “Não sei”, disse ela. Mas não o fitava mais. Bastava esse desdém para que se exilasse de imediato em outro mundo, num limbo elementar, remotíssi-mo, onde não havia nada mais importante que amarrar ou desamarrar uma banda-na, enfiar um marcador vermelho num estojo prestes a estourar, meter a mão no bolso, pegar um celular, digitar meia frase sem vogais na velocidade da luz, e com o mesmo polegar que treze anos e meio an-tes, enquanto pressionava com as pontas dos pés as grades do berço, afundava na boca para dormir sem chorar. “Não sabe quanto tempo vai durar a peça?” “Não faço a menor ideia.” “É o Rei que morre, né?”, disse ele, pensativo. “Quanto pode durar: uma hora, uma hora e meia?” Ela olhou de relance para o portão de ferro preto. “Lá está a Marcia. Tchau, papai. Te amo”, disse. E desceu, praticamente se ati-rou para fora do carro, e quando começa-va a subir, correndo, o pequeno barranco que levava ao colégio, ele a chamou e a obrigou a voltar, sacudindo no ar o cache-col escocês que ficara engatado no freio de mão. Sem parar, aproveitando o impul-so, Ela deu meia volta, desceu até a rua, enfiou a cabeça dentro do carro, deixou o cachecol ser enrolado em volta de seu pescoço e o beijou, beijou-o com força, duração, som — tudo o que ele esperava de seus beijos para estremecer de amor e acionar seu instinto de desconfiança — e tomou novamente o rumo da escola com o lastro da mochila quicando em suas cos-tas, gritando como uma possessa o nome de sua amiga, sua cúmplice, sua sórdida sequaz.

Levou alguns minutos para se recom-

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por. Depois, instintivamente, à medida que uma onda de furor ardente o ia en-volvendo, ligou para o número de Petra. Perguntou-se o que ia lhe dizer. Não era uma ligação “de família”: não queria com-partilhar com ela as provas da farsa que acabava de descobrir, como gostavam de fazer com qualquer destreza, gracinha ou façanha mais ou menos precoce de Ela que os surpreendesse sozinhos, sem o ou-tro. Era uma ligação conjugal: queria criti-car isso. Queria lhe mostrar em que escola íntima Ela aprendera a arte de mentir, que professora lhe inculcara esse estilo casual, esse talento para a imprecisão, a distraída falta de ênfase com que disfarçava uma decisão já tomada que ele não aprovaria ... Era um passatempo a que foram se entre-gando aos poucos, primeiro com curiosi-dade, como quando, com Ela recém-nas-cida, competiam para ver de qual dos dois a menina herdara mais traços, depois com uma espécie de raiva, uma sede de justiça rancorosa, quando pretendiam detectar no outro a raiz de qualquer insolência de Ela na qual não aceitassem reconhecer-se.

Não deu em nada, nem mesmo numa dessas vozes gravadas feitas para decep-cionar. Olhou para o telefone, olhou--o com cara feia, jogando a culpa nele, e então lembrou que aquele era o telefone de Petra. Dera-o para ele vinte dias atrás, meia hora antes de ir para o aeroporto. Logo para ele, que odiava celulares. Odia-va seu tamanho, sua versatilidade, seu espírito frenético de renovação. Odiava sua fidelidade quando ninguém precisava deles e sua inutilidade no coração de uma emergência. Odiava-os como odiava tudo aquilo que punha a nu as personalida-des múltiplas c pitorescas de sua inépcia. “Não estou pedindo que goste dele, nem que o ame, nem que o entenda”, disse-lhe Petra. “Use-o para ficar em contato com Ela enquanto eu não estiver aqui. Só isso. Assim viajarei mais tranquila.” Ele aceitou, ainda que sob protesto. E assim que Petra desapareceu no elevador com suas malas

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— quatro imensas, quase estourando ele tão cheias: o mínimo indispensável, disse, para uma excursão de quase três semanas e oito cidades-, ele fechou a porta, avaliou com a mão o peso do telefone enquanto dava uma olhada em volta, como quem procura um esconderijo para uma prova comprometedora, e acabou por arquivá--lo numa gaveta da mesa de cabeceira, en-tre caixas de relaxantes musculares, tubos de agulhas de acupuntura e máscaras para dormir que nunca usava, modesto ostra-cismo no qual o esqueceria durante dois dias e no qual uma hora mais tarde o al-cançaria a mensagem que Petra, como um epílogo de dois meses e meio de pesadelo conjugal, deixava da sala de embarque.

Pensou que seriam necessários mais de vinte dias de paternidade solitária

para convertê-lo à religião da telefonia móvel. Certa noite, voltava de um jantar com amigos e encontrou Ela sentada no saguão do edifício, vestida de festa, tiri-tando de frio. Saíra sem as chaves. Deixa-ra seis mensagens para ele no celular. Ele inventou a verdade e disse que o esque-cera, mas não que o esquecimento fora proposital e o deixava orgulhoso, como confessara a seus amigos. Nessa mesma noite, porém, envergonhado, resgatou-o da gaveta, e estava tentando eliminar os pedidos de socorro que não ouvira por se manter fiel a sua fobia militante quando o assaltou a voz calma e meio anestesiada de Petra - a voz com que costumava dizer as piores coisas-, lançando seu veredicto sem pressa, como se tivesse todo o tempo do mundo: “O problema, querido, é que você só serve para ficar sozinho” -até que uma voz de homem entrava em cena e a obrigava a desligar: “Petra, vamos. Nosso avião está saindo, Petrita”.

Como os S.O.S. de Ela, a mensagem so-breviveu intacta a todas as suas tentativas de apagá-la. Porém, ao contrário daque-las, que ficaram gravadas mas em silêncio, como advertências cuja discrição ele agra-

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deceu, a voz de Petra ressurgia acidental-mente de quando em quando, disparada por alguma das manobras com que ele tentava domar o aparelho, para lembrá--lo de como ele era um misantropo in-curável. Estava longe, atuando em teatros majestosos e decrépitos, brindando com prefeitos e tomando o café da manhã em enormes restaurantes desertos, mas não se movera de seu lado. E ele, que aceitara o telefone por Ela, para não agravar com as fobias dele o efeito da ausência da mãe, em poucos dias, quando viu que noven-ta e nove por cento das ligações que ele não tinha outro remédio senão atender--porque também não sabia como desligar totalmente o aparelho-, e as quais anotava religiosamente, eram de outras atrizes, dramaturgos em ascensão, jornalistas, cosmetólogas, quiropráticos, roteiristas de cinema, agentes, percebeu que sua paixão pela vida solitária era menos dig-na de um anacoreta que de um secretário totalmente terreno, tão abnegado que até se esquecera de combinar um salário com sua chefe.

Não se importou com isso. Ou se impor-tou menos do que ter de procurar uma refutação, um escudo, algo que atenuasse um pouco aquela pressão incômoda que exercia sobre ele o diagnóstico de Petra. Não demorou a encontrar: eram ele e Ela. O estranho casal que formavam, sa-ído de um gênero em que se misturavam a comédia musical, as histórias em qua-drinhos, o cinema mudo e os contos para crianças de alguma civilização extinta. Ela e ele de noite, na cozinha, improvisando jantares opíparos, cheios de acepipes proi-bidos, que serviam em trave as imensas, e deixavam esfriar diante da TV, jogados na cama, ele a seu lado, ela do lado de Petra, enquanto zombavam dos programas trash nos quais o outro era viciado (ele nos do-cudramas policiais, ela nos anúncios sobre elixires emagrecedores ou tônicos para fazer o cabelo crescer) e brigavam pelo controle remoto até que este mergulhava

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de cabeça num prato de mostarda; Ela e ele de manhã, bem cedo, quando iam juntos para a escola e pegavam a avenida Figueroa Alcorta e ele sintonizava o rádio no programa de rock pelo qual ela era fa-nática ( Bon Jovi às quinze para as oito) e pisava no acelerador e ela abria a janela e punha a cabeça para fora e uivava aluci-nadamente; Ela e ele nos fins de semana num cinema, legendando o filme com comentários mordazes e levantando psius dos quatro cantos da sala, ou em casa, cada um na sua, ele lendo, ela baixando músicas, ou classificando velhos cadernos escolares, ou cobrindo com fotos de Sid Vicious as sombras amareladas deixadas por Pokémon, as Meninas Superpodero-sas ou outros ídolos caídos em desgraça, até que, como se respondessem a um sinal audível apenas para eles, os dois deixavam o que estavam fazendo, cruzavam-se em algum ponto da casa e começavam a dan-çar, ou caçoavam dos farrapos caseiros que vestiam, ou ouviam um disco juntos, ou percorriam o jornal em busca de um programa para a noite...

Encontrara a refutação, e mais de uma vez, quando Petra ligava de Santa

Rosa, ou de Tandil, ou de Uspallata, pen-sou em esfregá-la na cara dela. Sempre se arrependia. Não gostava da ideia de meter Ela no meio, menos ainda de embarcar numa sessão de psicodrama de casal à distância. Além do mais, tinha a impres-são de que algo na qualidade da comu-nhão que o unia a Ela era incompatível com qualquer ressentimento, qualquer impulso de reivindicação, e mesmo hostil à simples tentação de comunicá-la a um terceiro. Era evidente, por outro lado, que Petra não tinha nenhuma intenção de fa-lar com ele. Ligava sempre para casa, e co-nhecia bem, porque sofria com ela havia anos, a severa política dele em matéria de disponibilidade telefônica. Jamais aten-dia; deixava que a secretária eletrônica gravasse a mensagem e só horas ou dias depois, dependendo de quem tivesse liga-

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do, retornava a ligação ou a arquivava no único porão íntimo do qual não se sentia culpado. Ou deixava o telefone tocar até ouvir Ela atender. Mas quando Petra liga-va, sempre sabia antes que era ela. Algo na atmosfera da casa, algo em seu silêncio, sua expectativa, sua maneira insatisfeita de estar em ordem, afetavam- se e tre-miam de um modo estranho cada vez que ela ligava. Era como um revoo imóvel. E assim que reconhecia esse desassossego, ele parava de trabalhar, ia ao quarto de Ela, que falava com a mãe deitada de bru-ços no tapete, de costas para a porta, uma perna flexionada, o pé da outra subindo e descendo ao longo do tendão do torno-zelo, e fechava a porta com cuidado para não ouvir, para não interrompê-las.

O que mudara? Ou quem? Por que o idí-lio ficara assim sombrio? Como ele pas-sara do estado de flutuar numa bolha de cumplicidade perfeita, na qual podia adivinhar o pensamento de Ela, com-pletar suas frases e levantar-se da cama para ir comprar-lhe um quilo de sorvete à meia-noite e meia sem protestar, sem se sentir sequer tocado pelos espinhos da escravidão, ao de espreitá-la em seu car-ro como alguém que arma sordidamente uma tocaia noturna? Em que momento havia trocado a compreensão pela des-confiança, a permissividade pelo detector de mentiras? Se ao menos tivesse havido uma primeira vez, uma data, uma cena--chave que pudesse evocar para saber quanto mais ele teria de retroceder a fim de restabelecer a ordem perdida ... Mas o quê? Repassou seu arquivo de alarmes re-centes: alguns episódios lhe faziam sinais mais ou menos ostensivos, como atores amadores em busca do papel que os tor-nará famosos. Matutinos, por exemplo. Começa a clarear. Depois de lutar contra a insônia-um mal que o acompanha toda vez que Petra viaja, como se estivesse in-cluído no pacote da agência de viagens-, patrulha a casa para começar a acordar de fato e termina sua ronda, completamente

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infrutífera, no quarto de Ela, que dorme com o braço direito e a cabeça para fora da cama, suspensos no vazio. Está quase lhe colocando uma coberta-não lhe importa o corpo, que de qualquer modo gostaria de ver um pouco mais vestido, mas não suporta a imagem de desamparo que seu ombro esquerdo oferece nas frias alturas onde reina- quando Ela ressona, sacode a cabeça como se espantasse um mosqui-to e suspira, ou geme, ou murmura uma frase perfeita, articuladíssima, que ele não entende, a tal ponto foi pego de surpresa, mas que o detém no ato e o leva a inclinar--se sobre ela, a deslizar uma orelha no raio de seu hálito (vitamina de banana com leite, batatas fritas de pacote, chiclete de framboesa, pepino) para capturar a próxi-ma, que por fim chega e é esta: “As meias não, por favor. As meias não”. E assim que ele a chama em voz muito baixa, só para libertá-la do pesadelo sem que leve um choque, Ela passa para a meia-língua do sonho, que domina perfeitamente, e cos-pe um parágrafo feito apenas de consoan-tes, enquanto lhe acaricia com o canto da mão um lado do pescoço. Ou vespertinos. O telefone toca. Ela atende. Ele, da escri-vaninha, pensa que talvez seja um pouco tarde para ser uma ligação de Petra. E pensa que Ela não costuma desligar o te-lefone tão rápido. Fiel a seu rito, vai até o quarto dela e a encontra deitada no tapete, como sempre, só que de barriga para cima e um pouco mais perto da porta do que de hábito, tão perto que se esticar uma de suas longas pernas de quero-quero conse-gue empurrar a porta com um pé e, sor-rindo, fechá-la em sua cara. Mas nada lhe parecia suficiente. Nem mesmo os dois marcos hormonais como os primeiros pe-los visíveis (essa seda que parece de bebê em sua axila direita e que o desconcertou num dia em que Ela levantou o braço para apanhar uma boina no cabide) ou a pri-meira menstruação (o sinal de sangue em forma de relógio de areia que descobriu certa manhã no lençol): comemorara-os como alvíssaras compartilhadas, achando

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que se revelavam a ele e a Ela ao mesmo tempo, mas a mancha estava longe de ser a primeira (Petra, de fato, já lhe dera al-guns tipos de absorvente, pelo visto todos inúteis), e já fazia meses que Ela usava o desodorante de seus pais para atenuar, porque não havia maneira de apagá-la, a fragrância áspera de seus suores.

Quis saber as horas; o tremor com que arregaçou o pulôver para ver o

relógio quase o faz chorar. Que charlatão imbecil teve essa ideia de desenhar o tem-po como uma linha reta e os fatos como riscas perpendiculares periódicas, como se a história pudesse ser uma dessas fitas métricas flexíveis que as costureiras usam para tirar medidas de corpos que não ces-sam de mudar, de crescer, de se transfor-mar? Não havia marcos nem fatos. E se havia, dissolviam-se na espuma dos anos, dos dias, dos segundos... A história da se-gunda Ela, essa Ela equívoca, pródiga em fraudes e duplos sentidos, que acabava de tomar posse do corpo da primeira, de-via ser tão sub- reptícia-e suas raízes tão remotas-quanto a do simulacro de Pa-rkinson que agora lhe complicava a tarefa de iluminar o quadrante do relógio para comprovar que eram... que horas? Dez e vinte já?

O hall da escola era um cubo brilhante e vazio. Nenhum movimento: só a projeção da sombra do vigia que desenferrujava as pernas no corredor do lado. Deu para detestar lonesco, que sempre lhe parece-ra um farsante simpático. Irritou-se com aquela meia dúzia de professores que alardeavam seus patéticos estertores vo-cacionais diante das mesmas vítimas que nas horas de aula martirizavam com suas remelas, seu mau hálito, sua prepotência, suas provas-surpresa, suas petulâncias de-magógicas. Desde quando Ela se interes-sava pelo teatro do absurdo? Até onde sa-bia, Ionesco não figurava no programa de estudos deste ano; tampouco na biblioteca de Ela, que conhecia como ninguém, que

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ele mesmo- de uma indolência doentia na hora de ter de mobiliar algo-comprara, pintara e povoara de livros cuidadosa-mente escolhidos, até que um dia, pro-curando um dicionário francês-espanhol autorizado a viajar entre uma biblioteca e outra, topou com dois livros de Roald Dahl que ele não havia comprado, assi-nados e datados na primeira página pela mão trêmula de Ela, e perdeu o fôlego de tanta alegria.

Sexta-feira, dez e meia da noite. Exausta após uma longa semana escolar, era evi-dente que Ela devia estar em casa, sabo-reando as decapitações de O albergue li ou chorando desconsoladamente com um documentário sobre matança de focas, ja-mais assistindo à agonia petulante de um palhaço de coroa e menos ainda longe de Marcia, a amiga, a cúmplice vil, a traidora com a qual se supunha que devia passar toda a peça rindo de piadas ruins. Mas e ele? Cometera um erro fatal, um erro de avarento: aproveitar o tempo. O cálculo se fechava: tinha essa hora e meia morta, o Samurai estava perto, voltaria justo quan-do a peça terminasse. Agora, um gosto rançoso que se arrastava desde as entra-nhas de seu estômago se deteve no um-bral de sua garganta, despontou e voltou a descer como um animalzinho assustado. Polvo, provavelmente. Ou camarão. Esse camarão enorme, extraordinariamente carnudo, que de algum modo havia de-sencadeado o desastre. Empenhara-se em tirar a ponta escamosa do rabo para enfiá--lo inteiro na boca, mas estava com a mão esquerda ocupada no livro, mantendo-o aberto na página que lia, e era improvável que a direita resolvesse o problema por si mesma sem prejudicar a integridade da peça, de modo que somou a esquerda à faina. Assim que se sentiu livre, o livro, como um molusco pudico, deu um salto e quis se fechar novamente; a mão esquer-da deu marcha a ré, tentou impedi-lo e só conseguiu empurrá-lo ainda mais, e o livro terminou caindo no chão pela fresta

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que separava sua mesa da do vizinho.

Um passo de comédia solitária. Só que os restaurantes japoneses são ampli-

ficadores prodigiosos: um sorriso retum-ba como uma gargalhada, uma lágrima é uma tragédia, qualquer meia levemente desbotada parece um trapo. Agachou-se para apanhar o livro, levantou-se enquan-to tomava a primeira decisão sensata do dia, terminar de comer e só depois come-çar a ler, e ao voltar à superfície, onde o niguiri de camarão o esperava com a iro-nia de seu rabo intacto, viu o maitre de pé junto à mesa, os braços bem colados ao corpo, em atitude expectante. “Não é bom ler comendo”, disse-lhe, inclinando- se para corrigir o esquadro móvel em que o percalço deixara a travessa, o prato, a pequena tigela com molho de soja. Ele o tomou como um comentário pedagógico, quase médico, e sorriu. “Imagino”, disse, e voltou a empunhar os palitos. “Mas estou sozinho, e quando estou sozinho gosto de comer lendo. Adoro comer e ler.” Rondou o camarão com a ponta dos palitos e no úl-timo instante, com uma espécie de fruição vingativa, descartou-o e escolheu a peça de pele de salmão. Sustentando- a no ar, abriu o livro com a mão esquerda e pro-curou a página perdida. “Não, não”, disse o maitre, que não se movera de seu lado. “Antes de comer, sim. Depois, também. Durante, não.” Não era fácil domesticar aquelas páginas jovens, cheias de ener-gia, mas não quis se render e respondeu com os olhos cravados no livro: “Eu gosto. Me faz companhia”. “Não”, disse o maitre. “Não é sério ler enquanto se come.” Pági-na 56. Caro Octave, o que me assusta é a violência de suas paixões, principalmen-te todo o caminho secreto que seguem em seu coração. Era por aí, estava perto. Achatou o livro com a palma da mão e levantou os olhos para o maitre, sorrindo novamente. “Nem pensar. São duas coisas que eu levo muito a sério.” O maitre deu um passo à frente, quase colou a virilha no canto da mesa e inclinou-se levemente,

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como se procurasse se fazer entender sem equívocos, mantendo, ao mesmo tempo, certa discrição. “Aqui não é permitido ler.” Sua voz mudara; já não era protocolar, mas grave, severa, ameaçadora. “Como?”, espantou-se ele. O maitre repetiu: “Não é permitido ler enquanto se come”. “Não estou entendendo. É proibido?” “Neste restaurante, sim.” Olhou-o, olhou-o bem, com empenho, pensando que saberia de-tectar em sua boca ou em seus olhos o prelúdio da risada que transformaria todo aquele episódio no que era: uma farsa um pouco psicopática mas bem representada. O maitre nem piscou: parecia petrifica-do. “Como assim, proibido? Como vai me proibir de ler?” “É uma falta de res-peito com a cozinha.” Ele riu, nervoso. A impaciência se instalava rapidamente. “Desculpe”, disse-lhe, “a comida está óti-ma. Cumprimente o cozinheiro por mim. Mas o que tem a ver ler com faltar com o respeito à cozinha?” Houve uma trégua microscópica que ninguém aproveitou. “Aqui não se lê enquanto se come”, decre-tou o maitre, e de repente, de um modo abrupto e brutal, inclinou-se e ameaçou recolher a travessa. Foi apenas uma ame-aça, a sombra ou o esboço de uma ação, como na disputa imaginária ao redor da travessa que se seguiu, porém foi tão ní-tida e realista que a situação lhe pareceu duplamente escandalosa. “Mas o que há com você?”, disse, levantando a voz. “Eu leio. Não grito, não fumo, não fico dando gargalhadas, não desprezo a comida, não incomodo ninguém. Além do mais sou li-vre, e enquanto não incomodar ninguém, quando eu como faço o que me dá na te-lha. Já comi em muitos restaurantes japo-neses, em toda parte do mundo, e nunca me aconteceu nada parecido.” “Aqui é as-sim”, disse o maître. “Aqui os clientes não leem. No Japão, se um filho lê enquanto come, o pai lhe dá um sopapo.” “Não es-tamos no Japão”, disse ele, mordendo as palavras, “e você não é meu pai. Estamos em Buenos Aires, você é o maître de um restaurante e eu sou um cliente ... ” “Aaah-

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hh!”, rugiu o maitre, dando por encerrada a discussão, e retrocedeu alguns passos, postando-se junto à pequena janela que dava para a cozinha, de braços cruzados, como um guardião. Foi um momento único, uma dessas conjunturas raríssimas em que a decisão mais espetacular, mais teatral, mais pomposa, talvez seja a mais justa e, talvez, a única. Não foi essa que tomou. Permaneceu no lugar, meio tonto de espanto e de raiva, fitando o maitre nos olhos, nos pedaços de pedra opaca que ti-nha incrustados nas órbitas dos olhos. E com os últimos resquícios de dignidade equivocada que lhe restavam decidiu-se pelo pior: que tudo seguisse normalmen-te, mas em alta velocidade, como se as coi-sas rápidas fossem, de algum modo, invi-síveis. Então limpou a travessa em menos de sete minutos, curvando-se um pouco mais sobre a cada bocado, com o livro ao lado, aberto em qualquer página, fingindo ler frases que mal enxergava.

Cruzou o céu um avião que começava a descer. Petra estaria a bordo? De re-

pente sentiu que precisava dela. Precisava de tudo o que nela lhe era difícil de su-portar: sua impassibilidade, o desembara-ço com que profetizava o que na verdade queria que acontecesse, a influência que exercia sobre ele, não importa o que fizes-se. Também precisava de ar, de modo que desceu do carro e se deixou afagar pelo frescor da noite. Quando abriu os olhos viu gente saindo da escola. Pensou distin-guir casacos compridos, roupa escura, um par de chapéus, saltos altos: pais de alu-nos, membros da cooperativa escolar, ou-tros professores. Onde estava Ela? Onde estava o canalha com acne, voz em falsete e priapismo galopante que a beijara du-rante toda a peça? Onde estavam os cana-lhas menores que tinham se masturbado olhando-os da última fileira de poltronas? Ouviu-se uma risada de mulher, alegre e falsa como uma moeda falsa caindo numa jarra de cristal falso. Ouviram-se estalos agudos, como disparos de uma arma de

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plástico, e os faróis de três carros estacio-nados piscaram na noite, em uníssono. Entrou de novo no carro e se encurralou contra a porta do passageiro, de onde dominava melhor a entrada da escola. O grupo de adultos se desfez em dois, três, quatro casais que se dispersaram em di-reções diferentes. Entraram nos carros, os motores rugiram, outro avião - estranha-mente afinado - uniu-se a eles lá do céu. E quando não restou ninguém, só o guarda--noturno que dava voltas junto à porta, fazendo malabarismos com um molho de chaves barulhento, começaram a aparecer os jovens, não mais que meia dúzia, sur-preendentemente mais silenciosos, e mais bem-vestidos, que os adultos.

Polvo. Camarão. O vinagre do arroz. Ti-nha a sensação de levar um aquário intei-ro dentro do peito, uma espécie de colônia ictíica na qual seu coração ia naufragando lentamente, e achou que não fosse resis-tir. De repente se viu morto no carro, a cabeça contra a janela, o peito estampa-do com os espectros de sua bandeja de sushi suculento, examinado bem de perto pelo crápula com acne cujo braço tatua-do continuava maculando, impassível, os ombros de Ela ... Não gostou disso. Não viu Ela, e sim duas garotas que dançavam, com as mãos na cintura uma da outra, um cancã robótico, sem dúvida um dos ana-cronismos risqués com que o professor de química, ou de ginástica, ou de ciências naturais, ou qualquer fracassado que ti-vesse dirigido a peça, decidira revitalizar o legado de Ionesco. Teve medo. Começou a considerar com outros olhos o canalhi-nha com acne. Se para vê-la de novo tinha de vê-la de mãos dadas com ele ... Os ho-mens fumavam, afundavam as mãos nos bolsos, davam pontapés curtos e astutos nas panturrilhas. Ficaram um pouco na porta, indecisos, numa espécie de equi-líbrio precário, até que saíram mais dois, um garoto e uma garota, não abraçados mas pendurados um no outro, que toca-ram o grupo até a rua. Viu-os passar pela

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calçada, a seu lado. As garotas que dan-çavam ouviam música no mesmo fone de ouvido: uma nova raça de siamesas. Os garotos arrastavam os pés ou os levanta-vam demais, lutando com a gravidade de seus tênis-porta-aviões como os escafan-dristas de Verne, certa vez, com seus sapa-tões submarinos. Viu-os se afastando de costas pelo retrovisor. A entrada da escola ficara deserta.

Assim, pensou. Assim-como um pai que olha boquiaberto para a porta

do colégio que engoliu sua filha e nunca mais a devolverá-começam essas histó-rias de capa das revistas de domingo que reconstroem a trama secreta do tráfico de adolescentes e viajam de Buenos Ai-res a Istambul, de Istambul ao Ceilão, do Ceilão a Sófia, seguindo o rastro de um estojo de pó de arroz Hello Kitty, uma camisola de algodão com a cara do Gato Félix, um par de pantufas de veludo •om laço, um diário íntimo composto de lis-tas: “Cinco discos para comprar”, “Cinco sabores de sorvete”, “Cinco garotos que eu beijaria”, “Cinco garotas que eu eletro-cutaria”, “Cinco canções que eu escutaria debaixo d'água” ... Esperou alguns minu-tos, e quando pensou que não veria mais ninguém aparecer no hall, nem naquele momento, nem amanhã, nem nos vinte séculos que viriam, ligou para o número de Ela. Atendeu-o uma canção que ele nunca ouvira.

Quando ela chora Não sei se é dos olhos para fora Não sei do que riEu não sei se ela agoraEstá fora de siOu se é o estilo de uma grande damaQuando me encara e desata os cabelosNão sei se ela está mesmo aquiQuando se joga na minha camaEla faz cinemaEla é a talSei que ela pode ser milMas não existe outra igual

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E depois, quase mordendo outra igual, como se não conseguisse refrear certa impaciência, a voz gravada de Ela vinha a seu encontro: “Oi, é a Ela ... ”. Reconhe-ceu a rouquidão, o tom infantil de quando acabava de acordar e aparecia na cozinha de camisola, ainda de meias, repousan-do a cabeça alvoroçada em seu ombro e, mordendo a primeira cutícula do dia, falava: “Oi, papai. Amo você, papai. Faz um suco de laranja pra mim, papai?”. Des-ligou e voltou a ligar enquanto olhava as horas e uma multidão em pânico aglo-merava-se em seu peito em busca de uma saída. Tinha a boca seca; suava; parecia estar perdendo a sensibilidade nos dedos. A música, outra vez.

Quando ela menteNão sei se ela deveras senteO que mente para mimSerei eu meramenteMais um personagem efêmeroDa sua trama...

Não esperou até o final. Largou o telefo-ne como se lhe queimasse a mão, saiu do carro e dirigiu-se para a escola devagar, tentando se acalmar, ensaiando o tom com que explicaria a situação ao guarda--noturno, sem perder de vista que, desco-nhecido e ainda uniformizado, o guarda--noturno era um aliado potencial, um meio para chegar a Ela, e não o elo menos notável de uma rede de proxenetas que acabara de sequestrar sua filha. Passou os fatos a limpo, a ordem dos fatos, as ho-ras ... E quando a viu, atravessando sozi-nha o cubo claro do hall, tão sozinha e tão inconfundível que o angustiou, teve a impressão de que não era ela, não ela de carne e osso, mas a projeção perfei-ta de seu pensamento, que já a dera por desaparecida. Saía com a cabeça baixa, apressada, e abraçava a mochila contra o peito, como se não tivesse tido tempo de pendurá-la. Ia em direção a ele, absorta na ponta de seus tênis, ainda não o vira. Como gostou de ter outra vez seu nome

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na ponta da língua, saboreá-lo, saber que um segundo depois o pronunciaria e que essa simples emissão de ruído faria vibrar e existir e brilhar a criatura mais bela da Terra ... Ia chamá-la quando viu que mais alguém saía da escola. Um homem care-ca, ou quase careca, vestido com o que pareciam ser calças do século xviii, que apareceu, varreu a rua com os olhos e as-sim que detectou Ela saiu atrás dela a pas-sos rápidos. Alguma coisa pendia de sua mão e ele não fazia barulho ao caminhar. Ele parou, ouviu o homem gritar o nome de Ela e percebeu um sotaque estranho. Ela quis apressar o passo e perdeu algu-ma coisa, um livro, um penal no cami-nho: ameaçou parar a fim de apanhá-lo, mas seguiu em frente, e só aceitou parar quando ouviu seu nome pela segunda vez, mais gritado e mais triste.

Então levantou o rosto com resigna-ção, dando-se por vencida, e topou

com seu pai. Ele sorriu. Não a via bem, mas parecia haver algo borrado em seu rosto, uma espécie de sujeira ou de de-sordem. Aproximou-se, olhou-a me-lhor; tinha os lábios muito vermelhos, como que crestados pelo frio, ou pinta-dos. “Acabei vindo, afinal”, disse ele feliz, desculpando-se. Ela sorriu, deu uns pas-sos frágeis e deixou-se abraçar, quase se sustentar por ele, enquanto o homem das calças, que começara a correr, diminuía rapidamente o passo e chegava até eles. Não fazia barulho porque estava descal-ço; tinha restos de maquiagem no nariz, um suvenir de barba na ponta do quei-xo e a marca de um beijo perto da boca, meio apagada mas ainda fresca. Movia os olhos o tempo todo, como se uma luz os fustigasse. “Você esqueceu isto”, disse, e sua mão enfeitada com joias estendeu a Ela o cachecol escocês. Ela sorriu e o pendurou em volta do pescoço. Depois olhou para o pai: “O Rei, meu professor de português”, disse, apontando para o Rei. E olhando para o Rei e apontando para seu pai, disse: “Meu pai”.•

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EDITORIAL

RELIDOSContardo Caligaris é psicanalista nas-

cido na Itália e radicado no Brasil.

Néstor F. nasceu em Barcelona em 1986 e desenha e grava coisas.

Agnaldo Farias é curador, crítico de arte e, principalmente, professor.

Carlos Lemos é arquiteto historiador e acaba de lançar Da Taipa ao Concreto.

Magno da adidas torce pro nense e se in-teressa por mulheres e entorpecentes.

Alan Pauls é argentino e autor do livro O Passado, adaptado para o cinema

Pedro Moriyama é arquiteto urbanista e tirou as fotos que ilustram essa edição.

Nessa segunda edição, o número 2 foi de-terminante na sua publicação. Começando pelos textos publicados: Calligaris fala da relação a dois citando dois livros para tal; Néstor F. demonstra que em algumas rela-ções apenas dois não é suficiente; Agnaldo Farias fala de um dos dois velhinhos que vêm falando mal da arte contemporânea (o outro é o Ferreira Gullar) e Alan Pauls fala de um dos pares mais difíceis, pai e filha.

Na segunda vez é que as coisas passam real-mente a existir. Quando vamos pela segun-da vez a algum lugar é quando a lembrança da primeira visita passa a existir e, talvez, a própria primeira visita. A repetição de algo significa a sua existência. Inclusive, a RELI-DA existe justamente por conta dessa ideia, pois refazer algo talvez seja quando o faze-mos de fato. Enfim, e por conta disso tudo, só saiu no dia 2 de outubro. Boa (re)leitura.

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