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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA Programa de Pós-Graduação em História
Mestrado em História
“AS FORÇAS SECRETAS DA REVOLUÇÃO”: anti-semitismo verde-oliva na Bahia (1933-1937)
David Costa Rehem
Feira de Santana 2011
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA Programa de Pós-Graduação em História
Mestrado em História
“AS FORÇAS SECRETAS DA REVOLUÇÃO”: anti-semitismo verde-oliva na Bahia (1933-1937)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Feira de Santana para obtenção do título de Mestre. Orientador: Profº Dr. Iraneidson Costa
David Costa Rehem
Feira de Santana 2011
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Ficha Catalográfica: Biblioteca Central Julieta Carteado - UEFS
Rehem, David Costa
R271f “As forças secretas da revolução”: anti-semitismo verde-oliva na Bahia (1933-1937) / David Costa Rehem. – Feira de Santana, 2011.
161 f.: il.
Orientador: Iraneidson Santos Costa
Dissertação (Mestrado em História)– Universidade Estadual de Feira de
Santana, Departamento de Ciências Humanas e Filosofia, Programa de Pós-
Graduação em História, 2011.
1. História da Bahia. 2. Anti-semitismo. 3. Ação integralista brasileira. 4. Intelectuais. 5. Imprensa – Bahia. I. Costa, Iraneidson Santos. II. Universidade Estadual de Feira de Santana. III. Departamento de Ciências Humanas e Filosofia. IV. Título.
CDU: 981(814.2)
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“AS FORÇAS SECRETAS DA REVOLUÇÃO”: anti-semitismo verde-oliva na Bahia (1933-1937)
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
David Costa Rehem
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Professor Doutor Orientador Iraneidson Costa
_____________________________________________
Professor Doutor Muniz Ferreira
_____________________________________________
Professor Doutor Gilberto Calil
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Se você falar mentiras sobre a gente, falamos a verdade sobre você.
(Mentiras por Enquanto, Plebe Rude)
Dedico a minha mamãezinha, Maria José, minha sobrinha, Maria Luíza, meu pai, Miguel, minha irmã, Bárbara e minha companheira, Flaviane.
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Agradecimentos
“Em volta dessa mesa velhos e moças lembrando o que já foi Em volta dessa mesa existem outras, falando tão e igual
Em volta dessas mesas existe a rua, vivendo o seu normal Em volta dessa rua uma cidade, sonhando seus metais”
(Conversando no Bar, Milton Nascimento)
Sempre se dedica a dissertação a algumas pessoas. Normalmente familiares e
um número bem restrito de pessoas. Dedico destacadamente a poucas
pessoas, mas considero esse agradecimento como uma parte dessa
dedicatória, já que a formalidade da escrita não me permitiria colocar tantos
nomes.
Primeiramente gostaria de homenagear uma pessoa, com a qual não tenho
mais contato, mas que foi fundamental para a minha escolha de ser historiador,
numa época em que as pessoas me dissuadiam de sê-lo e diziam que, por ter
afinidades com a área de humanas eu deveria fazer Direito. Essa pessoa é
homônima de minha mãe, Maria José, chamada por nós de Gal, e foi minha
professora de História da 5.ª a 8.ª série no Centro Educacional Sophia Costa
Pinto. A confiança que ela tinha em mim me fez decidir o que queria ser
quando crescer, diante das diversas “opções” que uma criança e um
adolescente acham ter.
Dando continuidade, agradeço a meus irmãos, Bárbara e Júnior, e aos meus
pais, Maria José e Miguel, por sempre terem confiado em mim e terem me
dado a liberdade que é necessária para os difíceis caminhos dos estudos e
pesquisas de História.
Agradeço aos meus colegas de graduação e movimento estudantil e aos
amigos e amigas que de lá surgiram, como Giselle, Carlinha, Denise, Daniel
Caribé, Simão e outros tantos. De lá surgiram dois amigos e interlocutores dos
meus primeiros passos nos caminhos da pesquisa: Aruã Lima e Muniz Ferreira.
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Não teria seguido o caminho da academia se não fosse o incentivo de Taíse
Chates e Igor Gomes. Igor, além de ter me incentivado a fazer o mestrado na
UEFS, me ajudou a ver que a academia pode valer a pena, quando me
apresentou o Laboratório de História e Memória das Esquerdas e das Lutas
Sociais – LABELU, no qual ingressei e que teve um papel importante na minha
chegada (e não passagem, porque pretendo ficar!) à UEFS. Além das
saudáveis relações acadêmicas, lá fiz diversas amigas e amigos que pretendo
levar por toda a vida. Por isso mesmo agradeço a todas/os as/os labelistas (ou
como é mais comum no Laboratório, labelúdicas/os) que deixaram “mais fácil”
estar na universidade e escrever, já que sozinho seria mais difícil. De certa
forma, essa dissertação foi escrita por diversas mãos e cérebros, em sua
maioria membros do Laboratório. Foram leitoras e leitores assíduos de meus
escritos, artigos e dissertação, Manuela, Darliton, Luciane, Chintamani, Diego,
Hugo (com seus “dossiês”), Coelho, Aruã, Rafael... Sintam-se co-autores, não
se responsabilizando pelos erros, mas sim pelos acertos desta dissertação.
No tirocínio com o professor Eurelino Coelho pude vivenciar o seu modo
admirável de ser professor e trocar experiências que, com certeza, levarei
como exemplo profissional e pessoal. Nas disciplinas, além do próprio Coelho,
agradeço às contribuições de Iran, meu orientador e leitor minucioso de
qualquer texto que tenha em mãos, e Lucilene Reginaldo, aos ricos bate-papos
em sala de aula.
Agradeço aos diversos amigos e amigas que fiz em Feira de Santana, já que
sem eles não seria tão prazeroso minha estadia nessa cidade que aprendi a
admirar, respeitar e desejar. Pelas “restrições acadêmicas”, citar o nome de
todos e todas não é possível, mas não posso deixar de nomear alguns, como
Mayara Pláscido, Ione Celeste, Silvana França, Charlene Brito, Marcos
Roberto. Lembro ainda dos Quilombolas e Ousados/as, com os quais pude
conversar, divergir, concordar e debater sobre a vida e atualidades...
Agradeço aos trabalhadores da Biblioteca Pública do Estado da Bahia (BPEB),
em especial o pessoal da recepção e do setor de periódicos raros; do Arquivo
Edgard Leuenroth (AEL), da UNICAMP, em especial ao camarada Mário e as
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intermináveis conversas sobre o dia-a-dia, política e dicas de pesquisa e a
simpatia e atenção dada por Silvia. Às trabalhadoras e trabalhadores da UEFS,
em especial da Biblioteca Julieta Carteado e do módulo VII, de todas as áreas.
Àqueles que fazem o mestrado funcionar: Julival, Andrei, Coelho e, em
especial, à professora Elizete Silva, exemplo de professora, pesquisadora e
pessoa, que coloca o coração em tudo que faz.
Aos amigos de Campinas que me receberam de braços abertos: Léo, Danilo
(Magrão), Tati, Iuri, Ricardo Festi, Fernanda...
Aos meus colegas e amigos da Secretaria de Educação do Município de
Salvador, em especial Ladjane (Lad), Daniela e Manuel Calazans por me
ajudarem nessa jornada. Às minhas novas colegas e amigas da
Superintendência de Políticas para Mulheres, do município de Salvador, em
especial Bárbara Suzane, pela confiança pessoal e profissional e Eliane Boa
Morte, dentre outras coisas, pela sensibilidade em compreender o momento de
escrita e correção desta dissertação.
A minha banca de qualificação, composta pelos professores Iraneidson Costa,
Muniz Ferreira e Zacarias Sena Júnior. Vocês transformaram o “terror da
qualificação” em um bate-papo onde ouvi avaliações e dicas importantíssimas
para o meu trabalho.
Também gostaria de agradecer a Denise Silva, amiga que se tornou minha
professora de francês, que me ajudou e corrigiu as traduções necessárias
nesse texto, do francês para o português e vice-versa. A ajuda dada foi de
extrema importância, já que estava no apagar das luzes da correção desta
dissertação e o meu pedido de socorro foi logo respondido.
Agradecimento especial à minha companheira, Flaviane Ribeiro, que conheci
na UEFS, minha principal interlocutora nessa dissertação e com quem tenho
construído uma relação de respeito e admiração!
Agradeço a CAPES que me financiou por 2 (dois) anos.
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RESUMO:
Esta dissertação tem como objeto de estudo a construção do anti-semitismo em terras baianas na década de 1930. Nesses anos a perseguição aos judeus tomou proporções e repercussões nunca vistas na História da humanidade. Como um fenômeno político-social de escala mundial, repercutiu no Brasil. No Brasil houve, entre seus representantes, uma burguesia xenófoba e a Ação Integralista Brasileira (AIB), esta última, uma organização de massas, de cunho fascista e teve entre seus integrantes, como Gustavo Barroso e Brasilino de Carvalho, propagandistas do anti-semitismo a brasileira que contaram com o apoio da própria Ação. O principal veículo de disseminação desse anti-semitismo aqui na Bahia, eram os jornais de circulação estadual que continham em suas páginas notícias e artigos de membros da AIB e simpatizantes do regime nazi-fascista da Alemanha. O objetivo dessa dissertação é analisar essa elaboração anti-semita na Bahia e suas possíveis repercussões. Palavras-chave: Anti-semitismo, Ação Integralista Brasileira, Intelectuais, Imprensa, Bahia (1933-1937).
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RESUMÉ:
Cette thèse vise à étudier la construction de l'antisémitisme dans les terres de Bahia dans les années 1930. Dans ces années, la persécution des Juifs a pris des proportions sans précédent et des répercussions dans l'histoire de l'humanité. De quelle manière un phénomène socio-politique à travers le monde a resonné au Brésil. Au Brésil avait parmi ses représentants une bourgeoisie xénophobe et l’Action Intégraliste Brésilienne (Ação Integralista Brasileira - AIB), celui-ci, une organisation de masse marqué par le fascisme et avait parmi ses membres, comme Gustavo Barroso et Brasilino de Carvalho, les propagandistes de l'antisémitisme à la brésilienne qui avait l'appui de leur propre organisation. Le principal vecteur de diffusion de l'antisémitisme dans l'état de Bahia étaient les journaux de la région qui contenaient dans ses pages des nouvelles et des articles des membres de l’AIB et des sympathisants de l'Allemagne nazie-fasciste. L'objectif de cette thèse est d'analyser cette préparation antisémite dans l’état de Bahia et de ses possibles répercussions. Mots-clés: Anti-sémitisme, Action Intrégaliste Brésilienne, intellectuels, Médias, Bahia - 1933-1937.
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Abreviaturas: Ação Integralista Brasileira – AIB Aliança Liberal - AL Aliança Nacional Libertadora – ANL Arquivo Edgard Leuenroth – AEL Diário de Notícias - DN Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP Idishe Kultur Farband (Associação Cultural Judaica) – IKUF III Internacional ou Internacional Comunista – KOMINTERN Lei de Segurança Nacional – LSN Organização das Nações Unidas – ONU Organizzazione per la Vigilanza e la Repressione dell’Antifascismo (Organização para Vigilância e Repressão ao Antifascismo) – OVRA Partido Comunista do Brasil – PCB Secretaria Nacional de Imprensa da AIB – SNI/AIB Secretaria Nacional de Propaganda da AIB – SNP/AIB Socorro Vermelho Judaico - BRAZCOR União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - URSS
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Sumário Apresentação ................................................................................................... 13 Capítulo I – REFLEXÕES SOBRE O ANTI-SEMITISMO (ou A difícil tarefa de analisar a complexidade da perseguição aos judeus) ............................... 18
1.1. Os Judeus e a Questão da Raça .............................................................. 21 1.2. Questões Contemporâneas Sobre Raça e a Questão Judaica ................ 29 1.3. Anti-semitismo “Por Dentro” e “Por Fora” ................................................. 38 Capítulo II - XENOFOBIA, IMIGRAÇÃO E RAÇA NO BRASIL DOS ANOS 1930 ................................................................................................................. 48
2.1. 1930: Uma Década de Transformações ................................................... 49 2.2. Os Indesejáveis ........................................................................................ 53 2.3. As restritas possibilidades na análise dos dados sobre a imigração de judeus .............................................................................................................. 68 CAPÍTULO III - FASCISMO E ANTI-SEMITISMO. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E O DISCURSO ANTI-SEMITA NAS PÁGINAS DE O IMPARCIAL E DO DIÁRIO DE NOTÍCIAS .......................................................................... 74
3.1. Sobre o fascismo ...................................................................................... 74 3.1.1. Fascismos e anti-semitismos ................................................................. 94 3.2. O anti-semitismo na imprensa baiana ...................................................... 97 CAPÍTULO IV – GUSTAVO BARROSO, INTELECTUAIS INTEGRALISTAS BAIANOS E A QUESTÃO JUDAICA ............................................................ 111
4.1. Literatura e Propaganda ......................................................................... 114 4.2. Gustavo Barroso, Os Banqueiros e Os Sábios de Sião ......................... 116 4.3. Brasilino de Carvalho e o Anti-semitismo de Hitler ..................................124 4.3.1 A Barra de Ferro e a Browning ............................................................. 127 4.3.2 Debate entre Integralistas ..................................................................... 136 CONCLUSÕES PROVISÓRIAS .................................................................... 142
Fontes ............................................................................................................ 146 Referências Bibliográficas ............................................................................. 147 Anexo Fotográfico 1. Jornais recebidos e bibliografia sugerida. In: A Offenssiva, 14 dezembro de 1935 2. O comunismo e sua obra mundial (na foto, ministro soviético Litivinov), In: DN, 17 de dezembro de 1935.
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3. Nota do Partido Nazista convocando o grupo local (Bahia) para reunião, na quarta-feira, 30 de janeiro, às 20:30, no Boliche da Associação Alemã Germânia. In: DN, 29 de janeiro de 1935. 4. Caricatura do líder integralista Hebert Fortes. In: DN, 29 de julho de 1935 5. Gustavo Barroso discursa aos baianos (matéria: O integralismo em marcha). In: O Imparcial, 30 de novembro de 1933 6. O ideal racista na Allemanha de Hitler. In: O Imparcial, 12 de janeiro de 1934. 7. BRAZCOR, perigoso foco de agentes extremistas. In: O Imparcial, 1.º de dezembro de 1935 8. O judeu que insultou o Brasil! In: O Imparcial, 10 de setembro de 1935. 9. As forças secretas da revolução (Coluna Integralismo). In: Diário de Notícias, 11 de fevereiro de 1935 10. Sob o jugo a grande finança internacional (capa). In: A Offensiva, 12 de julho de 1934 11. A mentira da Liberal Democracia (charge). In A Offensiva, 08 de junho de 1935 12. Congresso Integralista da Bahia. In: A Offensiva, 07 de dezembro de 1935 (matéria de capa)
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APRESENTAÇÃO
“Como pode? Esses judeus são aqueles mesmo que mataram Jesus há dois
mil anos atrás...”; “Hitler fez pouco, devia ter matado todos os judeus...”; “Esse
ladrões da arrecadação para os desabrigados de Santa Catarina devem ser
judeus...”; “Não chame ele de judeu, assim você ofende o rapaz...” - essas e
outras frases foram ouvidas por mim ou por amigos meus que relataram o que
escutaram de outros sobre fatos acontecidos recentemente. A primeira delas
eu escutei aos 12 anos, em 1992, numa aula de Religião, na escola primária, a
última, quando cursava a graduação, no início da década que se findou, de um
passageiro no ônibus, ao ser chamado de judeu por um amigo da faculdade...
Mas, por que cito essas frases? O que elas têm a ver com o meu objeto de
estudo? Em primeiro lugar porque justifica o estudo que faço sobre o anti-
semitismo no Brasil. Com elas, demonstro que o anti-semitismo está presente e
é necessário pesquisar momentos em que esteve em maior evidência, como
nos anos de 1930 e 1940, na Era Vargas. Em segundo lugar porque é comum
dizer que não existe racismo no Brasil, ainda mais quando se trata dos judeus,
uma comunidade tão pequena. Como poderiam os judeus serem vítimas de
preconceito racial no Brasil, se nem mesmo se sustenta, hoje, a ideia de raça
com respaldo científico?
É em cima dessas reflexões que pretendo discutir sobre o que seria esse tal
anti-semitismo. Ele existiu no Brasil? Trata-se de uma racialização ou apenas
um preconceito religioso? Como ele se manifestou aqui e em outros locais?
Quais relações existem entre o anti-semitismo brasileiro e as diversas
elaborações anti-semita estrangeiras?
Quando em 2003 fui procurar o professor Muniz Ferreira, no início da minha
graduação na Universidade Federal da Bahia, tinha como interesse pesquisar o
anti-semitismo no discurso da esquerda. O combate ao Estado sionista de
Israel muitas vezes é confundido como “um problema dos judeus”. Nisso fui
15
orientado por Muniz a iniciar minhas pesquisas a partir de um período no qual o
anti-semitismo era muito mais aberto, mais presente nos discursos, tanto
políticos quanto jornalísticos. O primeiro contato com o tema se deu com a
leitura do livro Anti-semitismo na Era Vargas, de Maria Luiza Tucci Carneiro.
Nessa leitura, encontrei noções básicas da discussão sobre anti-semitismo e
sobre sua manifestação no Brasil durante o governo de Getúlio Vargas.
O segundo passo foi ir aos jornais. O primeiro contato com essas fontes se deu
a partir do período em que fui bolsista do professor Carlos Zacarias Sena
Júnior, em 2004. Pesquisei o jornal A Tarde, na década de 1930 e 1940, para
sua tese de doutoramento. Nesse jornal tive contato com o discurso político da
época, familiarizei-me com a conjuntura baiana da época e com a presença
esporádica do anti-semitismo em suas páginas. Mas outros jornais cumpririam
um papel chave na disseminação do anti-semitismo baiano. Eram os jornais O
Diário de Notícias e O Imparcial.
O primeiro era dirigido pelo germanófilo Altarmirando Requião. O segundo
estava ligado aos autonomistas1 e ainda na primeira metade da década de
1930 passou a ter entre seus diretores o integralista Victor Hugo Aranha. Esses
jornais passaram, então, a ser o principal foco da minha pesquisa. Além deles,
encontrei nos Arquivos Edgard Leuenroth, da UNICAMP, a imprensa
integralista. Especificamente a revista Anauê! e o jornal A Offensiva, ambos em
microfilme e o último também em papel.
A análise do discurso anti-semita nessas fontes me permitiu perceber que fazia
parte de alguns setores da sociedade brasileira a sua disseminação. A Ação
Integralista Brasileira (AIB) foi a organização que mais elaborou sobre o
assunto e mesmo nos jornais baianos, que não faziam parte de sua imprensa
oficial, a maioria dos textos encontrados são de autoria dessa organização ou
de seus membros.
1 A Concentração Autonomista foi uma organização que reuniu diversos oposicionistas ao
governo do interventor Juracy Magalhães e tinha, entre seus integrantes, seguidores de políticos baianos ligados à Velha República, como os irmãos Mangabeira (Otávio e João), J. J. Seabra e família Calmon (em destaque Pedro e Miguel Calmon). Sobre os autonomistas ver bibliografia apontada no capítulo II sobre a interventoria de Juracy Magalhães no estado da Bahia.
16
Diante disso a pesquisa passou a ser orientada pelo discurso integralista sobre
os judeus e seus ecos na Bahia.
O primeiro capítulo é dedicado a fazer uma reflexão sobre o que seria anti-
semitismo, estimulado pela idéia de que não houve anti-semitismo na Bahia, a
partir de alguns judeus da época e alguns autores. A partir disso considerei
relevante trazer o debate para a dissertação, constituindo, então, um capítulo
de aspecto mais teórico. A crítica que usualmente se faz a esse formato é que,
em alguns casos, o capítulo teórico se coloca de forma deslocada em relação
ao conjunto do trabalho. Não é esse o meu objetivo. Nele pretendo “aparar as
arestas” sobre o tema, normalmente visto como uma discussão no campo da
cultura e desprovida do conceito da luta de classes. Além disso, tento fugir de
um certo empiricismo, onde os aspectos teóricos são deixados de lado nas
produções historiográficas, quando, na verdade, é uma ferramenta essencial
para o ofício do historiador.
No segundo capítulo apresento uma rápida análise de conjuntura, localizando o
objeto dessa dissertação no período do governo Vargas. Para isso, além das
fontes jornalísticas e das leis sobre imigração ou relacionadas, me utilizo de
uma bibliografia que se refere ao período. Tento, portanto, traçar de que forma
a conjuntura sócio-política foi favorável à disseminação de idéias autoritárias de
direita, tendo como uma de suas características a xenofobia. Além disso, o
posicionamento oscilante do governo Vargas em relação a regimes tidos como
democráticos (como o dos Estados Unidos) e fascistas (como os da Itália e
Alemanha) significou uma tomada de posição dúbia em relação aos judeus: ao
tempo em que dizia que a questão dos judeus não era um problema para o
Brasil, evitavam a inserção destes no país, com restrições a sua imigração.
Inicio o terceiro capítulo com uma discussão sobre fascismo. A ideia de fazê-la
surgiu da necessidade de uma melhor definição da Ação Integralista Brasileira.
Seria a AIB uma organização que copiava o fascismo europeu? Seria um
fascismo à brasileira? Ou seria uma outra forma de manifestação político-
ideológica? Na primeira parte da discussão utilizo as impressões e formulações
17
sobre o fascismo de autores marxistas que vivenciaram a década de 1930 e,
portanto, viram o desenvolvimento e a ascensão do fascismo. Feita essa
discussão, passo a analisar o discurso do anti-semitismo na imprensa baiana.
Utilizo como fonte os jornais O Imparcial e o Diário de Notícias. Apresento os
textos de origem integralista, mas não só. Faço uma análise de como esses
jornais, independente ou não da doutrina do sigma2, almejavam disseminar o
anti-semitismo em terras baianas.
No último capítulo discuto as elaborações semitas dos intelectuais integralistas
da Bahia a partir dos escritos do principal teórico do anti-semitismo da AIB,
Gustavo Barroso. Como toda a atividade intelectual integralista estava voltada
para uma ação prática, defendo que essas elaborações chegavam a toda
organização e deveriam repercutir em suas práticas, como indicam algumas
notícias sobre as atividades da AIB por todo estado e, no caso das notícias do
jornal oficial da AIB, A Offensiva, por todo o Brasil.
Por último, gostaria de ressaltar algumas escolhas para a escrita desta
dissertação. A primeira delas é o termo anti-semitismo. A escolha dessa grafia,
e não a que está de acordo com as novas regras gramaticais – Antissemitismo
-, foi por achar que ela é mais disseminada e porque garante o destaque ao
prefixo anti. Mantive essa escolha para outras palavras de mesmos prefixo,
como anti-capitalismo, anti-comunismo e outros. O uso da palavra raça em
itálico, do mesmo modo, foi pela opção de destacar a inexistência da mesma
que foi (e muitas vezes ainda é) utilizada de forma errônea para definir
diferentes povos. Por último, apenas utilizo o sic quando são palavras
perceptivelmente grafadas de forma incorreta por erro de digitação ou de
concordância e ortográficos, já que optei por manter a grafia de fontes e
bibliografia de acordo com o original.
Anti-semitismo e integralismo. Eis dois temas que compõem esse trabalho. São
temas aparentemente distantes, mas de repercussões atuais. As
2 O sigma era o símbolo da Ação Integralista Brasileira e foi adotada, segundo o seu principal
líder, Plínio Salgado, porque: “O sigma que adoptamos nos uniformes dos “camisas-verdes” e na bandeira do Integralismo (Sigma), indica em mathematica o symbolo do calculo integral.” (SALGADO, 1933)
18
manifestações de extrema-direita crescem no país. As ocorrências dessas
manifestações têm sido registradas cada vez mais pela imprensa. Grupos
neonazistas e mesmo organizações de cunho integralista têm surgido e se
colocado nas ruas. Em cidades como São Paulo e no sul do país essas
ocorrências são maiores ainda, mas não só. Quando escrevi esse projeto, no
ano de 2008, havia encontrado no centro de Salvador, panfletos integralistas
conclamando a população contra o “comunismo de Lula e da América Latina”.
A repercussão ainda se limita a um número muito pequeno de pessoas, mas
nunca é tarde para relembrar o que esses movimentos significaram na História
contemporânea. Aliado a esse discurso, uma revista de ampla circulação
nacional, a Veja, vem criminalizando os movimentos sociais e defende a
criação de uma lei anti-terror no país, com o argumento de que provavelmente
existam (em que pese a revista confirmar a existência) diversas células
terrorista de fundamentalistas islâmicos, mas o objetivo são outros, como a
própria revista diz:
O principal motivo para isso é a falta de uma legislação
antiterror. É por tal motivo que a PF, quando prende um
desses ativistas, se vê obrigada a enquadrá-la em crimes de
menor gravidade – e, consequentemente, não consegue
mantê-lo na cadeia. A resistência do governo brasileiro em
aprovar uma lei contra o terrorismo tem um componente
ideológico. Se ela fizesse parte do Código Penal, integrantes
de “movimentos sociais” que promovem atos de vandalismo
em nome de suas causas retrógradas poderiam ser
processados e condenados rapidamente.3
Sempre alerta!
3 Grifos meus. Revista Veja, Edição 2.211, ano 44, n.º 14, 06 de abril de 2011.
19
CAPÍTULO I
REFLEXÕES SOBRE O ANTI-SEMITISMO
(ou A difícil tarefa de analisar a complexidade da perseguição aos judeus)
Nada de triste existe Que não se esqueça
Alguém insiste E fala ao coração
Tudo de triste existe E não se esquece
Alguém insiste E fere no coração
(Conversando no Bar, Milton Nascimento)
Inicio essa dissertação com uma reflexão teórica que se justifica por estar
diretamente ligada a uma das problemáticas dessa pesquisa que é a afirmação
de manifestações não violentas, ou seja, físicas, do anti-semitismo na Bahia.
Essas afirmações são corroboradas por dois judeus brasileiros que iniciaram
suas vivências políticas na Era Vargas, Boris Tabacoff e Jacob Gorender4,
além de Esther Largman, em seu livro Judeu nos Trópicos. Gorender diz que
“(...) havia uma preocupação muito grande entre os judeus com o crescimento
do anti-semitismo.”5, ou seja, mesmo não havendo uma concretização de
agressões físicas por parte dos anti-semitas na Bahia, havia um medo da
comunidade judaica de que o mesmo chegasse. Dessa memória depreende-se
a importância de refletir sobre quais maneiras ele se manifestava, já que
quando se fala de anti-semitismo nos remetemos quase de imediato a duas
situações em que houve manifestações violentas e de perseguição, agressão e
assassinato de judeus: à Inquisição católica e ao Holocausto nazista.
A racialização dos judeus no anti-semitismo moderno é uma característica
importante e merece algumas reflexões. Principalmente por estar
4 Ambos comunistas, a época, sendo que o primeiro foi expulso do Partido Comunista em
1953, e posteriormente viria abandonar o comunismo, se tornando presidente da FIESP. Para saber mais sobre a vida de Boris Tabacoff ver: TABACOFF, Boris. Achados & Perdidos. São Paulo. Editora HUCITEC, 2005
5 Entrevista ao PROJETO MEMÓRIA DO MOVIMENTO ESTUDANTIL. Que pode ser encontrado no site: www.mme.org.br/services/.../FileDownload.EZTSvc.asp? Acessado em: 23 de dezembro de 2009.
20
pretensamente embasado em métodos científicos de análise, sendo esse um
dos diferenciais do anti-semitismo, ou anti-judaísmo, pré-moderno.6
Juntamente com a noção de racialização é importante refletir algumas
questões que dizem respeito ao próprio judeu e sua inserção na sociedade
capitalista. Da fama de “financiador do capitalismo” à de “trabalhador
comunista” e, portanto, “subversivo”, a presença dos judeus nos diversos
movimentos das distintas classes sociais foi (e de certa forma ainda é) um
elemento de relevância para a idealização de um movimento judaico
internacional que visava destruir os valores da sociedade ocidental cristã.
Por último, e não menos importante, é necessário compreender o anti-
semitismo em seus diversos aspectos. Ele não se manifestou de forma racional
ou irracional. Ele se apresentou com um grau de complexidade que utilizou
tanto elementos objetivos quanto subjetivos, não só no campo político-
econômico, a partir de seu posicionamento nas classes, ou nas elaborações
raciais científicas que buscavam uma justificativa concreta para a inferiorização
do judeu e/ou para a sua classificação como irremediavelmente desonesto,
usurário, trapaceiro, mas também na subjetividade de todos esses aspectos, a
partir de bases mitificadoras, como apresentado pelo psicanalista austro-
húngaro Wilhelm Reich7.
6 Chamo de anti-semitismo moderno aquele que se preocupa em ir além do aspecto religioso
para explicar o por quê da necessidade dos judeus serem excluídos e /ou expurgados da sociedade. Ele se baseia principalmente num discurso científico. Problematizarei, mais a frente, a ideia de um anti-semitismo “milenarizado”, já que tendo concordar com a opinião de que o anti-semitismo é fruto da modernidade, a partir da racialização do semita. Sobre as outras manifestações de ojeriza aos judeus seria mais coerente caracterizá-las como anti-judaísmos, já que se pautam ou na religião ou na cultura judaica, ou mesmo na ancestralidade, não necessariamente vinculada a uma ideia de raça semita. Sobre pré-moderno, se refere ao período anterior e genericamente chamado de moderno que tem como principal marco a fundação dos Estados-nações e o desenvolvimento do Iluminismo na Europa.
7 Na verdade ele nasceu em uma região hoje pertencente à Ucrânia, chamada Galícia,
noroeste ucraniano, na época, em 1896, pertencente ao Império Austro-Húngaro. A obra aqui analisada é: REICH, Wilhelm. Psicologia de Massas do Fascismo. São Paulo. Editora Martins Fontes, 1988.
21
Sobre essa complexidade Reich, analisando a questão do fascismo, aponta
para uma relação direta com aspectos biopsíquicos do homem que se
dividiriam em três níveis:
1) O nível superficial, em que percebemos o homem da cooperação social. É
aquele onde observamos que um “...homem médio é comedido, atencioso,
compassivo, responsável, consciencioso.”
2) Um nível intermediário “...constituído por impulsos cruéis, sádicos lascivos,
sanguinários e invejosos.” Nesse nível o homem se comporta dessa forma
porque é impelido a reprimir o seu cerne biológico.
3) O nível do cerne biológico que é aquele em que, em condições sociais
favoráveis, apresenta o homem como um animal racional de essência honesta,
trabalhadora, amorosa e cooperativa que tendo motivos odeia. (cf. REICH,
1988, p. XVII)
Problematizarei essas exposições de Reich mais adiante quando discutir os
elementos endógenos e exógenos do anti-semitismo, mas esse trecho serve
para ilustrar a tentativa de Reich de analisar questões racionais e irracionais
vinculadas ao ódio aos judeus. Ele ainda diz que “… a extensão da violência e
a ampla propagação desses 'preconceitos raciais' são prova da sua origem na
parte irracional do caráter humano. A teoria racial não é uma criação do
fascismo. Pelo contrário, o fascismo é um produto do ódio racial e a sua
expressão politicamente organizada.” (REICH, 1988, p. XXI)
Interessa aqui ponderar sobre o caráter meramente racional dado pelo
psicanalista à subjetividade, em que pese ser essa uma análise psicanalista e
não historiográfica; retomarei a questão mais à frente, mas o trecho
complementa a alusão de ir além de uma análise somente objetivista ou
funcionalista do anti-semitismo, apesar de sua tentativa, no campo teórico, de
se validar como empírico.
22
1.1. Os Judeus e A Questão da Raça
Gostaria de tocar no ponto que se refere à categorização dos judeus enquanto
raça. Importante essa discussão porque traz luz ao debate que se estabelece
em torno das continuidades e rupturas do anti-semitismo. Defendo que a
racialização do judeu é um elemento diferenciado no anti-semitismo moderno,
com base na “cientifização” da sociedade. Para os intelectuais do século XIX,
não caberia mais uma argumentação de inferioridade racial dos homens
baseada em superstições ou meramente no argumento religioso, eram
necessárias comprovações científicas, com base em pesquisas, em dados
adquiridos a partir da observação e dos estudos sociais e biológicos para se
definir a inferioridade de um grupo social, e/ou povo, normalmente denominado
de raça ou subraça, com o interesse de apartar e/ou exterminar o “objeto” de
estudo da sociedade após a comprovação científica da impossibilidade de
assimilação, ou de assimilação condicional, daquele indivíduo ou grupo numa
determinada sociedade8.
Segundo Nei Lopes que, em sua obra, cria dois personagens que explicam aos
seus filhos o que seria o racismo, a origem da palavra raça vem do italiano
razza e tinha um sentido de índole. Ele afirma que só depois de um tempo, já
no período Iluminista, é que passou a se referir a cada uma das variedades da
espécie humana ou animal. Originalmente hierarquizava, de forma
depreciativa, as raças consideradas civilizadas e as selvagens. Só
posteriormente mudará a sua hierarquização para uma perspectiva de raças
inferiores e superiores. E essa diferença é importante, porque para o primeiro
momento o critério de racialização a partir do referencial civilizatório significava
que qualquer um poderia mudar sua situação, bastando aceitar o modelo de
civilização vigente. No caso da racialização a partir de raças superiores e
inferiores essa mudança passa a ser mais difícil porque ao se referenciar em
questões que estariam biologicamente pré-estabelecidos a mudança evolutiva-
racial se torna improvável ou impossível. No entanto, as coisas não eram tão
8 Uma obra que traz importantes contribuições para essa discussão, e que será utilizada por
mim nessa discussão, é: POLIAKOV, Léon. O mito ariano. Coleção Estudos, n.º 34. São Paulo. Editora Perspectiva. 1974
23
simples. A teoria racial pretensamente biológica não era tão rígida assim, já
que mesclava seus referenciais científicos com religião e outras mitologias.9 A
discussão que segue visa, justamente, desconstruir essa idéia de rigidez das
ciências.
Vale a pena trazer aqui um breve resumo das reflexões do historiador Léon
Poliakov que estuda a evolução histórica do mito ariano, mas não só, já que ele
também recupera as fontes do racismo e dos nacionalismos desde antigos
mitos de origem e as vinculações destes com o processo histórico de
racialização; e a partir da historiadora brasileira Lília Schwarcz que analisa de
que forma essa racialização científica chegou ao Brasil e aqui foi apropriada na
perspectiva da construção de um racialismo à brasileira. O que me interessa
prioritariamente nesse momento, do texto de Schwarcz, é exatamente o que
ela traz das contribuições estrangeiras.
Para Poliakov o racismo do Conde francês Joseph Arthur de Gobineau (1816-
1882) e seus contemporâneos, inclusive para o socialista “utópico”10 Claude
Henri de Saint-Simon11, seria uma tentativa de explicação que mesclava razão
e relações com o misticismo religioso que tinham origens no século XVIII e que
a partir dessa mescla tirava, inclusive, posicionamentos políticos, já que era de
bom tom discutir política junto com ciência. Eric Hobsbawm diz que nessa
época os filósofos e pensadores, de modo geral, estavam em maus lençóis, já
que eram vistas como pensadores abstratos e de nenhuma relevância, com
algumas exceções como o positivismo francês de Augusto Comte, o empirismo
inglês de John Stuart Mill e Hebert Spencer, este último chamado pelo
historiador egípcio, radicado na Inglaterra de “...o medíocre pensador, cuja
influência era então maior do que a de qualquer outro no mundo...”
9 LOPES, Nei. O racismo explicado aos meus filhos. Rio de Janeiro. Agir, 2007 10 Entre aspas porque a definição de socialista utópico não é da época e sim de período
posterior e estruturado por Friedrich Engels em “Do socialismo utópico ao científico”. 11
Conde de Gobineau: nobre francês de origem aristocrática é o autor do livro Ensaios sobre a desigualdade das raças humanas (1853), um dos marcos da teoria racialista mundial. Um fato curioso foi que o Conde de Gobineau foi representante diplomático da França no Brasil, nos anos de 1869-70, em que classificava os brasileiros como “degenerados e malandros”. (RAEDERS, 1988, p. 10)
Saint-Simon: Socialista reformista francês, um dos principais socialistas utópicos e um dos fundadores do socialismo moderno, ao conceber uma sociedade futura dominada por cientista e industriais. (In: http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/SaintSim.html)
24
(HOBSBAWN, 2007, p. )12. Mas esses homens das ciências de Hobsbawm
estão ligados às tentativas de “inserirem” nas ciências humanas o modelo das
ciências biológicas e criminais.
Dentro dessa discussão de racialização e hierarquização das raças havia
grupos distintos. Uma parcela desses cientistas acreditava que a razão, apesar
das diferenças, poderia “nivelar” as raças trazendo a ideia de humanização a
partir da civilização, a exemplo de Pierre Cabanis. Essa abordagem parece
carregar aquilo que vimos acima sobre uma hierarquização muito mais
relacionada ao processo civilizador (que dividia as raças entre selvagens ou
não) do que a uma superioridade racial de cunho biológico. Outros acreditavam
que a religião pudesse salvar e igualar os seres humanos. Poliakov diz que
essa perspectiva tinha muito mais aceitação entre os ingleses. Mas havia
aqueles que não acreditavam na igualdade dos homens, nem pela razão nem
pela religião. Era o caso de Victor Courtet d'Isle que defendia que o conceito de
liberdade era algo abstrato que estava muito mais no plano do desejo do que
da prática concreta. Daí ele “propunha como remédio uma acentuação das
diferenças raciais, de modo que não se pudesse mais invocar a igualdade.”
(POLIAKOV: 1974, p. 201)
Como disse acima os embates no campo intelectual eram diversos, contudo
parece que o último grupo, que defendia uma desigualdade racial acabou por
servir mais aos propósitos políticos de justificativa para a subordinação de uma
dita raça sobre outra com o pretexto de superioridade, ou mesmo que as
funções destas pretensas raças eram distintas, sendo que umas existiam para
mandar e outras para servir. 13
Sobre essa apropriação política Schwarcz reflete o seguinte:
Assim, interessa compreender como o argumento racial foi política e historicamente construído nesse momento, assim
12 HOBSBAWM, Eric. Ciência, religião, ideologia. In.: A Era do Capital 1848-1875. Rio de
Janeiro, 2007. 13 Poliakov cita o caso de interpretações que colocavam os povos de origem ariana, como os
anglo-saxônicos, ibéricos e germânicos que teriam uma propensão natural para comandar enquanto que os eslavos teriam uma propensão natural para trabalhar e, portanto, para serem comandados.
25
como o conceito raça, que além de sua definição biológica
acabou recebendo uma interpretação sobretudo social. O termo raça, antes de aparecer como um conceito fechado, fixo e natural, é entendido como um objeto do conhecimento, cujo o significado estará constantemente renegociado e experimentado nesse contexto histórico específico, que tanto investiu em modelos biológicos de análise.14 (SCHWARCZ:
2001, p. 17)
Essa apropriação política teve vários propósitos. Justificativas para a
dominação imperialista, para a escravidão15 ou mesmo como base para
projetos nacionalistas. (cf. HOBSBAWN op. cit.). No caso dos judeus serviu
para apartá-los do convívio com seu meio social, fora da comunidade judaica,
tendo uma relação aparentemente direta com os projetos nacionalistas. Digo
aparentemente porque em diversos locais onde o anti-semitismo moderno
ganhou corpo os judeus já estavam num processo de assimilação muito
avançado, como é o caso da Alemanha da década de 1930, o que significa, a
partir de uma análise bem superficial, que esses judeus já se sentiam parte
desse país.16
A impossibilidade de adaptação das raças, mesmo pela conversão religiosa ou
pelo processo civilizador, serviu de argumento ao franco-inglês W. F. Edwards
que, com isso, questionava a teoria do clima e sua correlação com a
hereditariedade racial e de origem físico-moral. Para provar essa
inadaptabilidade ele cita o caso dos judeus e sua impossibilidade de adaptação
moral e física nos diferenciados lugares em que se instalaram. (POLIAKOV,
1974, op. cit. p. 209). Contudo o exemplo judeu não significava que todos os
racialistas considerassem os judeus como inferiores. Benjamin Disraeli, futuro
primeiro-ministro britânico,17 e de origem judaica, classificava os judeus como
representantes verdadeiros da raça caucasiana. Poliakov traz a seguinte
14 Grifos da autora. 15 Principalmente para os liberais brasileiros da primeira metade do século XIX que defendiam
a escravidão como um direito baseado na superioridade racial e levantavam críticas às intervenções inglesas utilizando o argumento de livre mercado para manutenção da mão-de-obra escravizada. Para saber mais ver: BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo. Companhia das Letras, 2004.
16 O processo de assimilação dos judeus na Alemanha se dava, nos principais centros, muito antes de sua
unificação (1871). Para saber mais ver: MARX, Karl. A questão judaica.
17 Disraeli foi primeiro-ministro do Reino Unido por duas vezes. Uma rápida passagem no ano de 1868 e, posteriormente, entre os anos de 1874-1880.
26
citação de Disraeli, de sua obra Coningsby, publicada em Londres - Inglaterra,
no ano de 1844:
O fato é que não podeis destruir uma raça pura da organização caucásica. É um fato fisiológico... Neste momento, apesar dos séculos e das dezenas de séculos de degradação, o espírito judeu exerce vasta influência nos negócios europeus. Não falo de suas leis, às quais ainda obedeceis, nem de sua literatura, da qual estão saturados vossos espíritos, mas o intelecto hebraico vivo. Não há grande movimento intelectual na Europa no qual o [sic] judeus não desempenhem um grande papel. Os primeiros jesuítas foram judeus; a misteriosa diplomacia russa que tanto perturba a Europa Ocidental é conduzida principalmente por judeus; esta revolução poderosa, que se prepara neste momento na Alemanha, e que é tão pouco conhecida na Inglaterra, se tornará uma segunda e mais vasta Reforma, desenvolveu-se totalmente sob os auspícios judeus que quase chegam a monopolizar as cátedras da Alemanha... (Disraeli APUD Poliakov, 1974, p. 215)
Curiosamente a “ode” aos judeus, feita por Disraeli serviu para que os anti-
semitas criassem a ideia de uma conspiração mundial judaica de tomada do
poder.
Disraeli e Courtet de d'Isle aparecem como nomes que influenciaram o Conde
Joseph Arthur de Gobineau, talvez um dos principais teóricos da racialização.
Gobineau é tido como um dos inspiradores do racismo nazi-fascista. Porém, o
racialista francês pode não ter tido um posicionamento otimista em relação à
possibilidade de igualdade entre as raças, mas não chegou a desenvolver algo
sobre as “raças inferiores” em suas especificidades, nem sobre os judeus, nem
sobre os negros, nem sobre qualquer outro, mas acreditava na supremacia
branca como podemos ver na citação abaixo:
O fato fundamental no progresso ou na decadência das nações não é a religião, a moral ou um bom governo, mas o fator racial. A pureza racial, se a raça for bem dotada, é a condição necessária e suficiente para que se realize o progresso da sociedade de sua civilização, e para que fique obstada sua degenerescência e seu consequente extermínio. Toda mistura é uma contaminação que vicia as fontes do progresso. Afirmo que existe uma desigualdade das raças quanto ao seu valor: umas são superiores, outras inferiores. Das três raças originalmente existentes - a branca, a amarela e a negra – a primeira, particularmente seu ramo ariano, mostrou-se a mais
27
criadora e sob sua égide constituíram-se as grandes civilizações da história. (GOBINEAU Apud LOPES, 2007, p. 25-26)
Apesar de negar os preceitos religiosos, como podemos ver nesse trecho,
Poliakov afirma que a teoria de Gobineau se vinculava com a cronologia
bíblica, mais uma característica do racialismo do século XIX, inspirador do anti-
semitismo do século XX. Sobre isso Reich traz mais uma contribuição: “O
caráter sádico-perverso da ideologia da raça revela-se também na atitude
perante a religião. O fascismo seria um retorno ao paganismo e um
arquiinimigo da religião. Muito pelo contrário, o fascismo é a expressão máxima
do misticismo religioso.” (cf. REICH, 1988, p. XXI)
Theodor Adorno e Max Hokheimer fazem um vínculo direto com o cristianismo,
da seguinte forma:
Desde os primeiros dias, o cristianismo teve esse pressentimento, mas só os cristãos paradoxais, os anti-oficiais, de Pascal a Barth passando por Lessing e Kierkegaard, fizeram dele a pedra angular de sua filosofia. Nessa consciência, eles foram não somente os radicais, mas também os tolerantes. Mas os outros, que recalcavam esse pressentimento e, com má consciência; procuravam se persuadir do cristianismo como uma posse segura, tinham que buscar a confirmação de sua salvação eterna na desgraça terrena daqueles não faziam o turvo sacrifício da razão. Eis aí a origem religiosa do anti-
semitismo. (ADORNO E HOKHEIMER, 2006, p. 148, grifo meu)18
O pressentimento a que se remete o trecho se reflete à contradição cristã que,
segundo os autores, ao mesmo tempo que se pretende espiritual (já que a
salvação é espiritual, segunda a máxima do “dai a César o que é de César”),
na prática não só está em constante negociação com o poder terreno, como o
formata a partir de seus próprios interesses. Porém o que isso tem a ver com
que foi dito até agora? Tudo. Para os intelectuais da Escola de Frankfurt essa
ligação religião-poder político se liga diretamente com a postura do fiel frente
ao seu posicionamento em relação ao denominado outro, aquele que não se
18 ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Elementos do Anti-Semitismo: Limites do Esclarecimento. IN: Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 2006. Tradução: Guido Antonio de Almeida. p. 139 – 171
28
“encaixa” nessa sociedade cristã, apesar de se auto-declarar sociedade laica.
Enquanto a religião exige uma doação do fiel a partir da fé e da obra, sem ter a
garantia de um retorno, já que a escolha de ser ou não salvo não cabe ao fiel,
mas sim a Deus e seus representantes (terrenos ou celestiais), ele busca sua
própria justiça. Daí sua indignação contra o judeu que não compreende nem a
razão ligada, obviamente, ao pensamento cristão, e nem a religião “certa”, o
cristianismo. Aí a mescla entre as duas formas de anti-judaísmo, o científico e o
religioso.
E essa é uma das grandes discussões em torno do racismo, a relação entre
este e o místico. Poliakov cita o caso de dois nomes eminentes na
intelectualidade do século XIX, Johann Fichte e Friedrich Schelling. Para o
primeiro o que determinava a superioridade de uma raça sobre a outra não era
o seu fenótipo, mas sua origem. O termo “raça branca” para ele era muito
genérico, os judeus, por exemplo, eram brancos fenotipicamente, mas de
origem distinta daqueles reais representantes dessa raça: os povos de origem
germânica. Para isso, segundo Poliakov, ele utilizava um juízo metafísico,
então: “Assim, pois, a filosofia alemã continuava a tratar das 'relações entre o
físico e o moral' pelo viés do moral: o 'invisível' devia manifestar o visível, a
matéria era de certa forma secretada pelo pensamento”. (POLIAKOV, 1974, p.
222)
Schelling, por sua vez, considerava os judeus como um não-povo, contudo os
via com bons olhos já que essa classificação de não-povo não tinha um sentido
anti-semita e sim de representantes da raça pura, sem vínculos necessários
com algum povo para se constituir enquanto uma raça. Essa raça superior,
iluminada19, era a raça branca, que para Schelling tinha um caráter bem geral,
não importando se eram germânicos, eslavos, judeus ou qualquer outro povo.
O contato desse homem espiritualmente superior com aqueles que não
conseguiram atingir esse grau de evolução espiritual seria benéfico para o
mesmo, como no caso dos negros escravizados, posto que estariam
predestinados a escravidão ou a extinção. Por outro lado Fichte “era partidário
19 Para Poliakov, Schelling “parecia inicialmente julgar as diferentes raças humanas segundo o clássico espírito das Luzes.” (p. 222)
29
da emancipação dos judeus, precisamente porque não via de que outra
maneira se poderia fazer com que renunciassem às suas crenças, que de
forma alguma lhe pareciam enraizadas em seus corpos.” (POLIAKOV, 1974, p.
225)
Essa última situação acabava por colocar os judeus numa situação dúbia. Ao
mesmo tempo em que, por se diferenciarem apenas pelo seu comportamento
religioso, social e cultural, eles seriam assimiláveis, outros intérpretes viam
nisso um perigo maior exatamente porque os judeus seriam um elemento
subversivo daquela ordem social difícil de ser identificado e, por isso mesmo,
de ser erradicado da sociedade de maneira a não mais desequilibrar tal ordem.
Poliakov diz que a origem mítica da superioridade da raça ariana é fortemente
marcada por uma fé nas origens diferenciadas de outros povos, mas o que
acabou por vencer não foi necessariamente o orgulho dessa origem diferente,
arianos oriundos da Índia, e sim a relevância que foi dada, pelos anti-semitas,
de ser uma origem diferente da dos judeus e, também, das outras raças
consideradas inferiores. O trecho abaixo ilustra bem o assunto:
Em 1904, um espírito crítico francês, Jean Finot, assim determinava a situação:
Estes produtos da imaginação científica, acolhidos cegamente, sem a menor crítica, passaram além disso, para os manuais de História e de Pedagogia. Hoje, dentre 1.000 europeus instruídos, 999 estão persuadidos da autenticidade de suas origens arianas (...) Isto tornou-se quase um axioma. Depois desta doutrina tão profundamente enraizada na consciência européia, a Sociologia, a História, a Política e a Literatura modernas não cessaram de opor os arianos aos outros povos semitas ou mongóis. A origem ariana tornou-se numa espécie de fontes benfazeja de onde fluem a alta moralidade da Europa e as virtudes de seus principais habitantes. Quando se procura comparar, de acordo com o jargão sociológico atual, duas mentalidades, duas morais, diz-se correntemente “ariano” e “anariano”. Crê-se então ter dito tudo. (POLIAKOV, 1974, p. 266)
Mas existiam aqueles que pensavam diferente de Fichte e Schelling e
naturalizavam a ojeriza aos judeus, considerado-a como inevitável. A citação
abaixo é do livro Kulturgerschichte, de Von Hellwald: “O preconceito antijudeu é
uma espécie de sentimento instintivo e natural, que se manifesta onde quer
30
que homens de raça diferente entrem em contato.” (Idem , p. 263) Esse tipo
pensamento caiu como uma luva nas mãos dos anti-semitas e ecoou no século
XX.
1.2. Questões Contemporâneas Sobre Raça e A Questão Judaica
Acima demonstrei que para a historiadora brasileira Schwarcz interessa mais o
sentido social e político dado ao racismo do que sua conceituação científica
biológica. Obviamente que existe uma ligação direta entre um e outro porque,
como também disse anteriormente, a apropriação desse conceito pelas
ciências humanas se deu junto com o anseio de tornar esta área supostamente
mais científica, se aproximando não só das metodologias de análises das
ciências naturais bem como de seus objetos de pesquisa.
O caráter político do racismo resistiu (e ainda resiste a meu ver) mais tempo do
que sua matriz científica. Schwarcz diz que na Europa a abordagem das raças
humanas no campo das ciências biológicas entrou em desuso ainda nos anos
de 187020, mas no campo das ciências sociais e até mesmo da História essas
abordagens eram usadas para validar as ações imperialistas de dominação de
outros povos, principalmente após a partilha do continente africano no final do
século XIX. Mesmo em relação a sua aplicação no campo das ciências
biológicas há de se ter cuidado com essa afirmação, já que, mesmo que tenha
iniciado seu declínio, ela foi utilizada ainda como válida por médicos,
sanitaristas, dentre outros, como teoria de análise até pelo menos, a primeira
metade do século XX.
Nessa discussão vale a pena trazer as reflexões do sociólogo polonês,
radicado na Inglaterra, Zygmunt Bauman. Seria o anti-semitismo um tipo de
racismo? E mais. O racismo existe de fato?
20 Segundo essa mesma autora, aqui no Brasil tais conceitos chegavam e eram apropriados de maneira particular. Ela ainda afirma que tal apropriação não seguia uma lógica europeia, podendo, inclusive, mesclar linhas teóricas divergentes, mas igualmente úteis aos propósitos brasileiros, como o positivismo e o darwinismo-social.
31
Sobre anti-semitismo o autor afirma que sua utilização é errônea, já que
mesmo os nazistas não utilizaram no período da guerra por causa do seu
significado semântico. Utilizar anti-semitismo significava transformar o judeu
em um grupo social organizado, o que significava territorializar o conflito, e um
dos elementos discursivos dos nazistas era exatamente o de que os judeus
não tinham pátria e não eram assimiláveis, por isso mesmo, descartáveis para
qualquer projeto de nação. Bauman, assim, difere a posição do judeu no
conflito intergrupal, por não existir um conflito por territorialidade. De fato a
desumanização do outro grupo, fossem judeus, ciganos, negros ou eslavos, fez
parte dos planos alemães, mas quando o autor reivindica existir territorialização
para que haja conflito intergrupal ele reproduz o sentido dado à prática racista
de desterritorializar o outro.
Explicarei melhor o que eu quero dizer. O mito ariano se funda na
superioridade racial de uma raça sobre outra. Dessa forma, o caminho natural
seria a raça ariana, dominar as outras a partir da conquista dos seus territórios.
Aí se baseia a territorialização dos conflitos entre o III Reich e os outros países,
principalmente os países do leste europeu, considerados como natos à
submissão e ao trabalho. Quando Bauman traz o argumento, a da não
existência da territorialização dos judeus (bem como dos ciganos) e daí a não
possibilidade de se denominar anti-semitismo a perseguição aos judeus à
época acaba por concordar que de fato os judeus não tinham vínculos com a
terra, não faziam parte de algum território, ou seja, eram de fato estranhos
àquele país.
Acho importante ressaltar que o conceito de territorialização utilizado pelo autor
se embasa nesse mito de origem. Entendo que o enraizamento dos grupos
sociais não perpassa apenas por isso, aliás, penso que tal aspecto só ganhará
grande relevância a partir da criação dos Estados-nações. Portanto, a despeito
desse critério, os judeus eram sim territorializados, já que, em muitos casos,
viviam há séculos em uma mesma localidade e se sentiam pertencentes a ela.
Esse conceito de territorialização demonstra de maneira contundente a ligação
existente entre esse cientificismo e a religião, porque, no final das contas,
quem define o pertencimento acaba sendo a filiação religiosa, tomando-se
32
sempre o cuidado de que quando se é necessário fazer esse recorte - religião -
é apenas numa perspectiva metodológica, não compreendendo as outras
dimensões sociais, como a político-econômica.
Indo à segunda questão.
“A modernidade tornou possível o racismo.” (BAUMAN, 1998, p. 83). Com essa
afirmação Bauman faz o seu elo entre o pensamento moderno e racismo. O
autor argumenta que a conceituação do fenômeno racismo é comumente
vinculada a qualquer forma de ressentimento, preconceito grupal ou conflito
inter-grupal. Para Bauman os trabalhos historiográficos e etnológicos
documentam uma constância e universalidade da tendência a abominar e
manter a distância grupos estranhos (estrangeiros). A partir daí ele traz a
contribuição de Pierre-André Taguieff e os seus três níveis de racismo. (cf.
BAUMAN, 1998, p. 84.)
De acordo com Taguieff o racismo primário é universal, sendo que ele defende
que a ojeriza a grupos estranhos faz parte de nossa construção biológica,
assimilada desde outros tempos, onde o medo a outros grupos que nos fez
sobreviver. Esse racismo primário é uma resposta ao estranho e não precisa
de uma inspiração, instigação ou teoria, já que é nato ao ser humano. No
racismo secundário a aversão ao outro ganha uma argumentação lógica e é
racionalizada pela ideia de ameaça do estranho que seria o contraponto ao
bem estar do grupo a exemplo da xenofobia ou etnocentrismo. Já no terciário
encontramos a seguinte característica: “...mistificador, que pressupõe os outros
dois níveis inferiores, distingui-se pela utilização de argumentos quase
biológicos.” (BAUMAN, 1998, p. 85) Esse racismo terciário seria, então, algo
próximo do racismo moderno, das ciências.
Antes de tudo, vale lembrar que Reich, a partir de suas análises, chega a um
resultado oposto ao de Taguieff. Ao contrário do francês, o psicanalista austro-
húngaro vê um homem que tem uma tendência natural a se sociabilizar e viver
com o outro de forma harmônica, é o que apontamos acima como o cerne
biológico.
33
A teoria de Taguieff, em sua raiz, naturaliza o comportamento racista. Mas, é
importante apontar que o sociólogo polonês critica o aspecto mistificador do
racismo terciário, pois para ele Taguieff teria sido mais feliz se tivesse
respaldado o caráter científico-biológico do mesmo, ou seja, não é quase
biológico o argumento, mas totalmente biológico. E é a partir desse caráter
científico-biológico que Bauman fará sua diferenciação entre heterofobia e
racismo.
Nela Bauman trouxe uma importante contribuição que é a atemporalidade da
heterofobia, já que se basearia no ressentimento ao outro e não a uma raça
que, para esse autor, é fruto da modernidade, no que ele tem razão. No
entanto, Bauman confere uma carga muito grande de subjetividade à
heterofobia. Ele traz uma irracionalidade heterofóbica, colocando-a como fruto
de uma ansiedade incontrolável. Penso que se esse argumento for verdadeiro
teremos que forjar outro conceito para ser utilizado atemporalmente nos casos
de conflitos inter-grupais. Por mais que esses conflitos tenham aspectos
subjetivos fortes não podemos descartar suas questões objetivas. Usando o
exemplo de nossos antepassados mais longínquos, conforme faz a teoria de
Taguieff, um grupo rivalizava com outro por questões objetivas como obtenção
de alimentos, água, etc..
O autor ainda traz mais uma categoria, que ele difere do racismo e da
heterofobia: a inimizade coletiva. Ela seria, “antagonismo mais específico
gerado pelas práticas humanas de busca de identidade e estabelecimento de
limites.”, nas quais “os sentimentos de antipatia e ressentimento parecem mais
apêndices emocionais de atividade de separação; separação que por si mesma
requer uma atividade, um esforço, uma ação continuada.” (BAUMAN, 1998, p.
86-87) Para mim a dissociação dos três conceitos empobrece a discussão.
Avalio importante fazer mais uma citação do autor sobre o racismo:
“Resumindo: no mundo moderno, caracterizado pela ambição do autocontrole e
da autogestão, o racismo declara certa categoria de pessoas endêmicas e
irremediavelmente resistente ao controle e imune a todos os esforços de
melhoria.” (idem, p. 88)
34
É presumível a concordância com Bauman nas duas questões, embora o
acordo seja parcial. Porém, perde-se ao analisar de forma superficial os
elaboradores do racismo do século XVIII ao XX. 21 Penso que para uma análise
mais detida, o autor deveria considerar que quando se faz essa análise mais
profunda da História do racismo, percebe-se que isso é relativizado exatamente
por causa da visão civilizatória de mundo do Iluminismo que via na razão a
possível salvação daqueles que estivessem abertos para isso. Não ignoro,
porém, que dentro desse debate existem os incrédulos dessa salvação e os
que defendiam (e / ou defendem) a ideia de que estes nunca chegariam a ser
iguais, mas vejo nisso um resquício das sociedades pré-modernas ou
absolutistas, com a sua visão de mundo sem mobilidade social.
Se reivindicasse a linha de raciocínio de Bauman, chegaria à conclusão de que
o anti-semitismo se encaixa muito mais na heterofobia do que no racismo, já
que ele se insere na lógica de que, mesmo renegando sua herança judaica,
ainda assim seria visto como o outro. Acredito que isso possa ocorrer, porém
não creio que haja como dissociar os três conceitos, o racismo, a heterofobia e
a inimizade competitiva. O anti-semitismo é racista por racializar o judeu como
inferior, desagregador; é heterofóbico por colocar o judeu como o outro,
indesejável por ser estrangeiro e que tenta se assimilar de forma contagiosa a
essa sociedade que busca o equilíbrio; e é inimizade competitiva porque a
negação do judeu se faz necessária, como vimos anteriormente, enquanto
indivíduo e enquanto religioso, para a criação de uma identidade antagônica à
negada e ainda tenta estabelecer limites objetivos e subjetivos, como os
relacionados ao que um judeu pode ter ou não, qual espaço pode frequentar,
onde pode professar sua fé...
Num sentido contrário, principalmente se referido ao anti-semitismo, defendo a
existência do racismo, conforme o argumento do historiador brasileiro Marcelo
Badaró Mattos, que diz que se o mesmo não existe de fato ao menos
socialmente existe e serve, objetiva e subjetivamente, para uma hierarquização
21 Ele só faz isso, rapidamente, nas páginas 92 e 93 e só cita de passagem Gobineau e Levy. Para uma abordagem mais rica ver: POLIAKOV, 1974.
35
social. O racismo cumpre esse papel exatamente por que necessita dessa
hierarquização para melhor explorar a partir da competitividade não apenas
extra-classe, mas intra-classe. Sua superação não está posta sem a mudança
no modo de produção vigente, o capitalismo. Somente com sua superação se
abre uma possibilidade de se extingui-lo. Abaixo as palavras de Badaró:
O núcleo duro do sistema a ser superado por qualquer projeto emancipatório consistente é a subordinação estrutural do trabalho ao capital. Porém, não é menos verdadeiro que, no exercício da exploração / dominação de classe, é importante para o capital estabelecer / estimular desigualdades outras, que induzam à concorrência interna e à fragmentação da identidade entre os trabalhadores e produzam “exércitos industriais de reserva” permanentes, ou seja, grupos de “excluídos” que contribuam em seu conjunto para pressionar para baixo a
massa salarial. (MATTOS, 2007, 174-200)
Também concordo com a socióloga Patrícia Pinho que diz o seguinte, sobre a
questão da raça, tendo como recorte a questão do negro:
Ao contrário daqueles que defendem que esta noção [de raça]
deve ser usada como meio de mobilização e unificação dos grupos que têm sido historicamente oprimidos, defendo aqui que a luta anti-racista deve incluir a superação da idéia de “raça”. Quanto mais percebemos o papel da cultura e da política na construção da negritude, mais fácil será reconhecer o quanto esta não é determinada por características fixadas pela “raça” ou pela natureza.” (PINHO, 2004, p. 20)
O que ela traz aos negros, aplico em relação à questão do racismo aos judeus.
Entretanto sem negar, como faz Bauman, a questão do racismo, mas
colocando-o como construção social sobre o outro. Sem fazer odes à ideia de
raça, no sentido de auto-afirmação, mas desconstruindo essa noção, como
propõe Pinho e Reich.
Reich caracteriza o racismo como algo que atua muito mais subjetivamente do
que objetivamente. Para ele, explicar a um racista que raças não existem e que
são conceitos científicos ultrapassados de nada adianta. O racista tem fé
religiosa na superioridade racial e tenta fazer suas vítimas acreditarem nisso,
se utilizando da propaganda e da naturalização disso para que, inclusive, suas
36
vítimas corroborem com esse pensamento.22 Então, para o psicanalista austro-
húngaro, a única forma de se combater o racismo seria demonstrando não
apenas a sua incoerência teórica, mas sim o irracionalismo contido nele, já
que: “A única maneira de abalar a teoria racial é revelar suas funções
irracionais, que são essencialmente, duas: dar expressão a certas correntes
inconscientes e emocionais que predominam no homem [em relação] ao
nacionalismo, e de encobrir certas tendências psíquicas.” (REICH, 1988, p. 74)
E continua, após citar as contradições discursivas dos líderes nazistas:
Como tamanho disparate pode ser exposto numa “teoria” que pretendia ser a base de um mundo novo, um “terceiro Reich”? Se nos habituarmos à idéia de que a base emocional, irracional de tal hipótese devem sua existência, em última análise, a fatores existenciais definidos; quando nos libertamos da idéia de que a descoberta dessas fontes irracionais de concepção da vida, surgidas numa base irracional, significa relegar a questão para o campo da metafísica, então compreendemos não só as condições históricas que deram origem ao pensamento, mas também sua substância material. Os resultados falam por si. (REICH, 1988, p. 74-75)
Wilhelm Reich não nega os aspectos objetivos. Ele defende o aspecto
econômico como base objetiva do racismo, porém sua essência (a ser
combatida de forma mais efetiva) está em questões de cunho subjetivo, como a
ideia de Nação e superioridade racial. Mais uma vez dou a palavra ao autor:
Disto se conclui que as condições econômicas em que surge uma ideologia explicam a sua base material, mas não proporcionam um conhecimento imediato de seu fundo irracional. Este fundo surge diretamente da estrutura do caráter dos homens, sujeitos a determinadas condições histórico-econômico. À medida que desenvolvem a ideologia, os homens se transformam; é no processo de formação das ideologias que vamos encontrar o seu fundo material. Assim, a ideologia surge com uma base material dupla: a estrutura econômica da sociedade e a estrutura típica dos homens que a produzem, estrutura essa que é, por sua vez, condicionada pela estrutura econômica da sociedade. Torna-se claro, assim, que o processo irracional da formação de uma ideologia cria, por sua vez, estruturas irracionais, nos homens. (Idem, p. 75 e 76)
22
Para uma discussão interessante sobre o processo de naturalização, cf. GRAMSCI, Antonio. Cardenos do Cárcere. Vol. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2002. p. 50.
37
Aponto isso como uma contribuição importante de Reich, já que ele demonstra
essa relação intrínseca entre o objetivo e o subjetivo, que parece ter sido a
tônica do racismo.
Reich ainda traz uma contribuição diferenciada por parte do ideólogo nazista
Alfred Rosemberg (1893-1946)23. Para o nazista citado, a origem das raças
nórdicas estava na Grécia. É na Grécia que a raça dos guerreiros existia e os
deuses gregos eram os heróis, ao contrário dos deuses do Oriente Próximo
que eram deuses humanizados. A derrocada da cultura superior grega se deu
a partir do contato com os etruscos e a inserção dos seus deuses entre os
adorados, em especial Dionísio e suas festas, já que para Rosemberg a
liberdade sexual trazida por esse deus trouxe a desestruturação da sociedade
grega.
O que de fundo se está condenando é a mistura de raças. Para Rosemberg a
presença do deus etrusco entre os gregos simbolizava a miscigenação a qual
se submeteu o povo grego e que coincidiu com a derrota de sua civilização; é
na pureza da raça que está o segredo do sucesso de um povo. E Rosemberg
não se limita a isso... Para ele a miscigenação entre classes diferentes também
significava derrocada de um povo. Para isso cita tanto os romanos como os
hindus. O que remete a uma outra ideia do racismo, relacionada diretamente a
sua origem fascista: para um bom funcionamento do organismo societal é
necessário não misturar as partes.
Até agora transitei por algumas formas de manifestações do racismo tentando
sempre ligá-lo ao anti-semitismo, já que é a questão do judeu que me interessa
aqui. Em todas essas manifestações racistas o pano de fundo foi a sua “base
científica”. Mas, como demonstrei acima, o que estava por trás na maioria das
vezes não eram interesses meramente científicos, mas também políticos, não a
toa no campo da política ele serviu, ao menos abertamente, até o fim do
apartheid sul-africano no final da década de 1980 e ainda na década de 1990,
23 Dirigente nazista de origem estoniana, quando a Estônia ainda pertencia ao Império Russo. Migrou para a Alemanha após a Revolução Russa de 1917. A base das reflexões de Reich para o que trato aqui é o livro “O Mito do Século XX” (no original “Der Mythus des 20 Jahrhunderts”, editora Hoheneichen - verlag), publicado, pela primeira vez, em 1930.
38
no caso das justificativas das guerras e massacres na região da antiga
Iugoslávia. Além disso, trouxe também algumas reflexões sobre os aspectos
subjetivos desse racismo, principalmente a partir das reflexões de Reich que,
sem perder a relação entre o objetivo e o subjetivo, ressaltou o caráter
psicológico e irracional do racismo.
Por último vale acrescentar uma contribuição do campo da linguística, trazida
pelo ensaísta francês Jean-Pierre Faye. Segundo ele, a linguística age no
campo da subjetividade, também, e como Reich constata, quando diz que o
discurso fascista é pensado para atingir o subjetivo das massas24, ela é
pensada para tal25. Em Introdução a linguagens totalitárias26 Faye analisa as
mudanças ocorridas na forma de se relatar as questões. Ele vai posicionar no
século XIX a mudança mais efetiva na forma de se tratar os relatos que tinham
uma base quimérica (fictícia, na concepção spinoziana, segundo o autor) e
passam a buscar seu espaço do mundo das ciências. Mas ela se dá de forma a
garantir o discurso dominante. Ele cita o caso de Gobineau que serve como
ilustração dessa situação e que desloca (não só ele, mas segundo Faye ele é
uma das principais influências) a discussão da luta entre classes e a transforma
em luta entre raças.
Nas palavras do autor:
As quimeras da narração seguida pela imensa revolução foram substituídas por uma versão completamente distinta: aqueles que o Primeiro cônsul foi procurar e literalmente encomendar “no partido contrarevolucionário” [sic], na casa de M. de Montlosier. Ali, como exporá Thierry, constrói-se uma linguagem ou “o emprego de uma fraseologia” que, no decorrer do processo, “substitui a ideia de classes e estratos pela de povos diversos, [que] aplica à luta de classes inimigas ou rivais o vocabulário pitoresco da história das invasões e conquistas.”
24 Massas aqui é entendido não é entendido como grupo de pessoas amorfas e monolíticas, mas é uma forma de me referir genericamente às diversas frações que compõem as classes subalternizadas. 25 Imagino haver uma ligação estreita entre o discurso e a linguística. Uma das coisas que me apontam isso é a discussão sobre verdadeiro e falso feita por Faye e por Foucault. Para ambos ela é definida pelas classes dirigentes que, aí dialogando com Bourdieu, a definem sempre em diálogo com o sentimento popular, para mais fácil serem aceitas pelos subalternizados. 26 FAYE, Jean-Pierre. Introdução às linguagens totalitárias – Teoria e transformação do relato. Coleção Estudos, n.º 261. São Paulo. Editora Perspectiva. 2009
39
Por sua vez, porém, tal vocabulário pitoresco e sua fraseologia
vão se transformar. Para chegar finalmente à forma mais brutal dos enunciados desta substituição:
Eles queriam a luta de classes. Eles terão o combate das raças, até
a castração.27 (FAYE, 2009, p. 13, grifos do autor)
O ensaísta francês ainda traz uma contribuição importante para compreender o
vínculo mitológico do anti-semitismo fascista citado por Reich. Eis que surge
Ernst Krieck28, ideólogo nazista discípulo de Rosemberg. Krieck antagoniza
duas formas de narrativas, a que parte do Logos (ou da Ratio) e a que parte do
Mythos. A primeira é valorativa, narra os fatos a partir do julgamento e da
decisão sobre a relação entre o verdadeiro e não verdadeiro. A segunda forma
se baseia apenas na narração do fato, no contar. A partir dessa compreensão
Krieck defende que a História contada a partir dos mitos é a forma correta;
aliás, ele coloca de forma dissociada História e mito, defendendo assim, a sua
forma de historicizar. Mas não só isso. O mito será a tônica dos discursos
totalitaristas. Contudo, aqui pode-se compreender que há uma tentativa,
mesmo que malfadada, ou como diz Faye, pobre intelectualmente, de se
vincular o mito com uma forma de se fazer ciência a partir de uma neutralidade
científica oferecida pela narrativa mitológica, pretensamente indefectível29.
Os autores contemporâneos enriqueceram o debate sobre o anti-semitismo.
Reich se coloca entre aqueles que viram a ascensão e queda do fascismo na
Europa, mas continuou a refletir sobre o tema posteriormente. Das discussões
mais recentes, Bauman e Faye trazem contribuições que avançam ao já
colocado pela historiografia do tema.
1.3. Anti-semitismo “Por Dentro” e “Por Fora”
Nesse tópico tratarei das questões ligadas ao anti-semitismo no que se referem
às “razões” de sua existência. Razões, entre aspas, porque não está colocado
27 Segue-se a nota do autor: Lanz von Liebenfels (ver: J-P.Faye, Langage totalitaires, livro II, parte II) 28 Foi membro do Clube Jovem Conservador nos anos 1920 e ingressa no Partido Nacional-Socialista na década de 1930. 29 Para mais detalhes ver o tópico O Enunciado Narrativo: Mythos contra Logos, no primeiro capítulo de FAYE, 2009.
40
como justificativa real e sim justificativa construída socialmente e
historicamente.
Mas por que “por dentro” e “por fora”?
Parto da perspectiva de que a construção do anti-semitismo não é, como
afirma Jean-Paul Sartre, em Réflexions sur la question juive,30 apenas um
elemento do não-judeu para com o judeu. Existe uma relação dialética entre
esses dois elementos. Esse é um assunto polêmico e já rendeu muitos debates
sobre a principal defensora dessa ideia: Hannah Arendt31. Abaixo transcrevo
trecho em que ela apresenta sua reflexão:
A teoria que apresenta os judeus como eterno bode expiatório não significa que o bode expiatório poderia também ser qualquer outro grupo? Essa teoria defende a total inocência da vítima. Ela insinua não apenas que nenhum mal foi cometido mas, também, que foi feito pela vítima que a relacionasse com o assunto em questão. Contudo, quem tenta explicar por que um determinado bode expiatório se adapta tão bem a tal papel abandona nesse momento a teoria e envolve-se na pesquisa histórica. E então o chamado bode expiatório deixa de ser a vítima inocente a quem o mundo culpa por todos os seus pecados e através do qual deseja escapar ao castigo; torna-se um grupo entre outros grupos, todos igualmente envolvidos nos problemas do mundo. O fato de ter sido ou estar sendo vítima da injustiça e da crueldade não elimina a sua co-responsabilidade. (ARENDT, p. 25-26)
Primeiramente localizarei onde Arendt coloca essa questão.
É importante destacar a diferenciação que ela faz entre o anti-semitismo
moderno e o de outros tempos. A partir dessa questão a autora coloca as
diferenças em suas origens.
Para ela há uma diferença importante entre as manifestações contra os judeus
antes das elaborações racialistas da modernidade e depois. A diferença
estaria, exatamente, no que já expus no início do capítulo. Ou seja, as
30 Publicado no Brasil com o título: A Questão Judaica. Editora Ática, 1995. 31 A obra referência aqui é: ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Companhia das Letras, São Paulo. 2007
41
perseguições aos judeus antes das elaborações racialistas estariam ligadas
discursivamente às diferenças religiosas. Os judeus não eram colocados como
raça inferior, mas sim como assassinos de Jesus e que renegavam a fé cristã.
Por outro lado, as elaborações racialistas colocavam a perseguição num outro
patamar e, junto com o projeto de criação das identidades nacionais, não
apenas de perseguição religiosa, mas uma perseguição respaldada na ciência,
como vimos no tópico acima.
Portanto no primeiro momento caberia mais o termo de anti-judaísmo, já que
estava diretamente ligada à religião e aos modos de ser dos judeus32; no
segundo momento se vinculava à questão da racialização judaica e mesmo
que isso não significasse um abandono à questão religiosa o que se destacava
discursivamente era o aspecto racial.
Em ambos os casos, não só para Arendt, bem como para Abraham Leon33, a
questão econômica estava diretamente ligada a essas perseguições. Nesse
sentido podemos verificar aspectos de fora e de dentro das comunidades
judaicas. Claro que mantendo as especificidades. As comunidades judaicas no
centro-oeste europeu estavam ligadas a atividades urbanas, ao comércio,
quando ainda essas atividades eram de pequena importância. Foram impelidos
a essa vida, pois como sofriam constantes perseguições buscavam atividades
onde pudessem acumular riquezas móveis. Por outro lado os judeus do leste
europeu se dedicavam a atividades agrícolas, ou seja, se configuravam na
estrutura social de forma diferenciada. Havia aqueles que estavam ligados ao
poder vigente, na maioria dos casos, a partir da administração financeira de
principados ou reinos. Eram estes os judeus-de-corte. Vale ressaltar que
enquanto a função de judeu-de-corte era um “privilégio” de alguns judeus e
seguramente momentânea, a visão do judeu enquanto usurário era
32 Modos de ser no sentido de que ser judeu está além da religiosidade, mas perpassa a cultura, a organização social, etc. O termo é usado no plural porque existem diversas formas de “ser judeu” não apenas a partir das diversas formas de se relacionar com a religião, mas variando de acordo com região e tempo. Para ver mais: BUBER, Martin. Histórias do Rabi. Ed. Perspectiva, São Paulo. 1967; DEUTSCHER, Isaac. O judeu não-judeu e outros ensaios. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro. 1970; VVAA. A Paixão de Ser – Depoimentos e Ensaios sobre a Identidade Judaica. Porto Alegre. Artes e Ofícios, 1998. 33
Marxista de origem judaica que escreveu: A concepção materialista da questão judaica.
42
disseminada, de forma generalizada, seja para os da corte, que tinham a
proteção dos senhores, como para os das comunidades urbanas e rurais,
desprovidos de qualquer proteção.
É diante dessa imagem do judeu generalizada, independente da sua
localização na estrutura social, que Baumam traz a ideia de judeus como um
grupo arco-iris. Esse conceito serve de ilustração para compreender como o
judeu era visto, tratando o judeu a partir de uma visão prismática, uma
metáfora, em alusão a um arco-íris onde o judeu é visto a partir de uma lente
que recebe a luz e a projeta de diversas cores, em um prisma que dependendo
de onde e quem olha tem um formato diferenciado. Essa metáfora é utilizada
pelo o autor para ilustrar como o judeu era visto por servos e senhores. Para os
senhores nada mais eram do que iguais aos plebeus e para os servos eram
vistos como portadores da opressão senhorial.
Acredito que essa metáfora pode ser aplicada inclusive ao anti-semitismo. Se
pensarmos que classes dominantes e classes subalternizadas se relacionavam
com a perseguição aos judeus de forma diferente. Trazendo, rapidamente, para
o caso brasileiro, na década de 1930, enquanto a população tinha uma rejeição
mais baseada numa ideia de judeu anti-cristão, ou seja, opositor do
cristianismo, com uma raiz muito mais religiosa, intelectuais e políticos
procuravam restringir a presença judaica no país por outras razões34,
vinculadas, dentre outras, à razões de construção da nação, entre outros
motivos, os quais me debruçarei mais detidamente nos próximos capítulos, em
especial o segundo, em que apresento algumas das leis restritivas à imigração.
Por hora, o importante é perceber a relação existente entre o anti-judaísmo e o
anti-semitismo que apesar de distintos, estão relacionados.
Conceitualmente Marx contribui para pensarmos essa relação da seguinte
forma:
34 Sobre o assunto ver: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O antisemitismo na Era Vargas (1930 – 1940). Editora Brasiliense, São Paulo. 1988; MAIO, Marcos Chor. Nem Rotschild Nem Trotsky – O pensamento anti-semita de Gustavo Barroso. Rio de Janeiro, Imago Ed., 1992; CRUZ, Natália dos Reis. A questão judaica. O anti-semitismo na doutrina integralista. IN: O Integralismo e a questão racial. A Intolerância como princípio. Tese de doutorado. Niterói. Universidade Federal Fluminense. 2004 – dentre outros trabalhos.
43
“(...)a categoria simples que pode exprimir relações dominantes de um todo pouco desenvolvido ainda, relações que já existiam antes que o todo tivesse se desenvolvido na direção que é expressa em uma categoria mais complexa. Nesse sentido, as leis do pensamento abstrato que se eleva do mais simples ao complexo correspondem ao processo histórico real.” (MARX, 2007, p. 258)35
Dessa forma, podemos analisar o anti-semitismo moderno como tendo raízes
nos anti-semitismos anteriores. Apesar dessa relação, como o próprio Marx vai
defender mais à frente em sua obra, uma categoria simples só se desenvolve
quando as condições estão dadas pelo processo histórico real, quando se
desenvolvem as condições históricas que permitam o seu desenvolvimento
pleno.
Sim. Mas então qual a relação dos judeus com essa construção? Como eles
não são vítimas se até agora discuti apenas como o anti-semitismo foi
construído pelos não judeus?
Uma outra obra de Karl Marx nos ajuda nesse sentido. É A Questão Judaica.36
Ela não trata da questão das perseguições aos judeus, mas sim, trava um
debate sobre a emancipação do judeu na sociedade. Em linhas gerais, se
contrapondo a Bruno Bauer que defende a emancipação do judeu a partir de
sua liberdade de culto, Marx defende que a emancipação social do judeu só se
dará quando ele se emancipar de sua própria religião, bem como a sociedade
em geral, que só concretizará a sua libertação quando emancipar o Estado da
religião.
Ou seja, o judeu também se mantinha como tal por uma opção. A vivência em
guetos, as atitudes “estranhas”37 frente à convivência coletiva, a relação com a
religião e até mesmo com o dinheiro eram atitudes oriundas não apenas da
35 A obra aqui utilizada é: MARX, Karl. Introdução à Contribuição à Crítica da Economia Política. IN: Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo, Editora Expressão Popular, 2007. 2.ª edição. Tradução: Florestan Fernandes. p. 235 – 270 36 Recentemente publicada pela Editora Expressão Popular com o título Para a questão judaica, no ano de 2009. 37 Entre aspas por não significar estranhas num sentido valorativo mas de diferentes atitudes comportamentais se comparado ao restante da sociedade. Obviamente isso não significava uma regra, mas características buscadas na necessidade de identificar “o outro”.
44
cabeça dos anti-semitas. Não quero com isso dizer que essas justificativas
tinham validade, já que na maioria das vezes essas atitudes diferenciadas
serviam apenas como estereótipos, tendo em vista que, em se tratando do
período compreendido como “moderno”, os judeus já passavam, no mundo
ocidental, mais especificamente no centro-oeste europeu, por um processo de
assimilação muito rápido e por vontade própria de integração sócio-cultural.
Indo além dessas questões, a participação de judeus em movimentos políticos,
tanto os vinculados às classes dominantes, quanto os ligados às classes
subalternizadas, serviam como pano de fundo para a “conspiração mundial
judaica” contra o mundo ocidental cristão.
Mas há um elemento apontado por Arendt que me parece de extrema
importância. Ela reflete a assimilação apontada acima. Diz que, por sua vez,
setores do judaísmo viram no anti-semitismo a possibilidade de evitar essa
sangria. A seguir as palavras da filósofa alemã, radicada nos Estados Unidos:
O aparecimento e o crescimento do anti-semitismo moderno foram concomitantes e interligados à assimilação judaica, e ao processo de secularização e fenecimento dos antigos valores religiosos e espirituais do judaísmo. Vastas parcelas do povo judeu foram, ao mesmo tempo, ameaçadas externamente de extinção física e, internamente, de dissolução. Nessas condições os judeus que se preocupavam com a sobrevivência do seu povo descobriram, num curioso e desesperado erro de interpretação, a idéia consoladora de que o anti-semitismo, afinal de contas, podia ser um excelente meio de manter o povo unido, de sorte que na existência de anti-semitismo “eterno” estaria a eterna garantia da existência judaica. Essa atitude decerto supersticiosa, relacionada com a fé em sua “eleição” por Deus e com a esperança messiânica, era fortalecida pelo real fato de ter sido a hostilidade cristã, para os judeus, autêntico fator que, durante muitos séculos, desempenhava o papel do poderoso agente preservador, espiritual e político. Os judeus confundem o moderno anti-semitismo com o antigo ódio religioso antijudaíco. (ARENDT, 2007, p. 27)
Eis uma boa ilustração do papel dos judeus em relação ao anti-semitismo. Mas
é importante salientar que as questões apontadas acima não explicam de
forma completa, a problemática dos judeus. Na verdade, numericamente,
45
esses judeus eram minorias se comparado aos milhões que não se
beneficiaram dessa perseguição, muito pelo contrário. Além disso, existe
também a relação de judeus que compunham a classe dominante e dos
sionistas que tiveram importância no desenvolvimento do anti-semitismo
moderno.
Os primeiros pensavam em se distanciar de qualquer reconhecimento
enquanto judeus, principalmente nas situações em que se achavam, posto que
isso fecharia portas no mundo burguês, como dizem Adorno & Hokheimer:
O entrelaçamento dialético do esclarecimento e da dominação, a dupla relação do progresso com a crueldade e a libertação, que os judeus tiveram que provar nos grandes esclarecedores38 bem como nos movimentos populares democráticos, também se mostra no ser dos próprios assimilados. O autodomínio esclarecido com que os judeus adaptados superam inteiramente as lembranças penosas da dominação imposta por outros (por assim dizer, a segunda circuncisão) tirou-os de sua comunidade carcomida e os jogou sem mais na burguesia moderna, que já avançava inexoravelmente para a recaída na simples repressão, ou seja, para sua reorganização como raça pura. A raça não é imediatamente como querem os racistas, uma característica natural particular. Ela é, antes, a redução ao natural, à pura violência, a particularidade obstinada que, no existente, é justamente universal. A raça, hoje, é a auto-afirmação do indivíduo burguês à coletividade bárbara. Os judeus liberais, que professaram a harmonia da sociedade, acabaram tendo que sofrê-la em sua própria carne como a harmonia étnica [Volksgemeinschaft]. Eles achavam que era o anti-semitismo que vinha desfigurar a ordem, quando na verdade é a ordem que não pode viver sem a desfiguração do homem. A perseguição aos judeus, como a perseguição em geral, não se pode separar de semelhante ordem. Sua essência, por mais que se esconda às vezes, é a violência que hoje se manifesta. (ADORNO & HOKHEIMER, 2006, p. 140)39
No caso dos sionistas a situação era ainda mais grave. A omissão de uma
parcela desses servia para validação de seus projetos de fundação de um
Estado judaico. Para isso, basta lembrar que os ideais sionistas não tinham
38 Esclarecimento, esclarecidos e suas derivações se referem ao Iluminismo, aos Iluministas e
suas derivações. A opção pela utilização da tradução de Aufklärung por esclarecimento é, trocadilho a parte, esclarecida pelo tradutor em nota preliminar ao texto, na p. 07.
39 ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Elementos do Anti-Semitismo: Limites do Esclarecimento. IN: Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 2006. Tradução: Guido Antonio de Almeida. p. 139 – 171
46
muita repercussão em diversas comunidades judaicas que, como afirmei
anteriormente, passavam por um processo de assimilação muitas vezes
acelerado. O artigo Israel: cinco décadas de pilhagem e limpeza étnica,
assinado pela jornalista Cecília Toledo ilustra bem o assunto:
Um dos reflexos mais sórdidos dessa política foi a ação do sionismo em relação à resistência judaica contra os massacres de judeus na Europa. Em julho de 1944, o dirigente judeu eslovaco, rabino Dov Michael Weissmandel, escreveu aos funcionários sionistas encarregados das “organizações de resgate”, propondo uma série de medidas para salvar os judeus de Auschwitz. Ofereceu mapas exatos das ferrovias e planejou o bombardeio das linhas que levavam aos crematórios. Pediu que bombardeassem os fornos de Auschwitz, que lançassem de pára-quedas munição para 80 mil presos e bombas para explodir o campo e pôr fim à cremação de 13 mil judeus por dia. Caso os aliados se recusassem a colaborar, Weissmandel propunha que os sionistas, que dispunham de fundos e organização, comprassem aviões, recrutassem voluntários e fizessem a operação. Weissmandel não era o único a pedir isso. No final dos anos 40 e durante os anos 40, porta-vozes judeus da Europa pediram socorro, campanhas públicas, resistência organizada, manifestações para obrigar os governos aliados a colaborar. Mas sempre se deparavam com o silêncio sionista ou mesmo com sua sabotagem ativa. O rabino Weissmandel, em julho de 1944, um ano antes de terminar a guerra, enviou aos sionistas uma carta de protesto, publicada parcialmente em História Oculta do Sionismo, de Schoenman: “Por que não fizeram nada até agora? Quem é o culpado por esta terrível negligência? Não são vocês os culpados, irmãos judeus, que têm a maior sorte do mundo, a liberdade? Enviamos a vocês esta mensagem especial: informamos que ontem os alemães iniciaram a deportação de judeus da Hungria. Os que foram para Auschwitz serão mortos com gás cianeto. Essa é a ordem do dia de Auschwitz desde ontem: A cada dia serão asfixiados doze mil judeus – homens, mulheres e crianças, anciãos, crianças de peito, doentes ou não. E vocês, nossos irmãos aí na Palestina, e de todos os países livres, e vocês, ministros de todos os reinos, por que mantêm silêncio diante desse grande assassinato? Silenciam enquanto assassinam milhares, já são seis milhões de judeus? Silenciam agora, quando dezenas de milhares estão sendo assassinados ou esperam na fila da morte? Seus corações destroçados pedem socorro, choram por vossa crueldade. São brutais, vocês também são assassinos, pelo sangue frio do silêncio com que olham, porque estão sentados com os
47
braços cruzados sem fazer nada, apesar de que nesse mesmo instante poderiam deter ou postergar o assassinato de judeus. Vocês, nossos irmãos, filhos de Israel, estão loucos? Não sabem o inferno que nos rodeia? Para quem guardam seu dinheiro? Assassinos! Loucos! Quem faz caridade aqui, vocês, que soltam uns centavos daí, de suas casas seguras, ou nós, que entregamos nosso sangue neste inferno?” Nenhum dirigente sionista apoiou esta petição, nem os governos ocidentais bombardearam um único campo de concentração. A colaboração entre o sionismo e o fascismo fez com que o primeiro traísse a resistência e voltasse as costas para o operativo que resultou na morte de pelo menos 6 milhões de judeus. (TOLEDO, 2001, p. 75-76)40
Penso que, apesar de longa, a citação do artigo de Cecília Toledo nos serve
para termos ideia da dimensão da omissão de algumas organizações judaicas,
laicas ou religiosas, frente ao anti-semitismo mundial como forma de justificar
seus projetos político-religiosos. Anacronismos a parte, não é difícil perceber
essa utilização nos dias de hoje em relação ao Estado de Israel. Sempre que
questionado pela suas atrocidades impetradas contra os palestinos, os
representantes políticos do Estado de Israel levantam suas vozes contra o anti-
semitismo disseminado no mundo ocidental e milenar. Assim como o projeto
político da liberdade aos judeus da opressão somente por serem judeus era
uma mentira, a defesa do Estado de Israel por esse viés é uma outra
inverdade. Mas isso é um assunto para um outro trabalho.
Apesar desses fatores “internos” e “externos” aos judeus sobre o anti-
semitismo, o que estava em jogo era um emaranhado de interesses não
apenas individuais, mas de projetos coletivos como o sionismo. De forma
alguma isso justifica a omissão, mas o objetivo foi apenas tentar apontar para
essa complexidade do anti-semitismo e não encontrar um ou outro elemento
dele. Mesmo assim sei que é impossível dar conta dessas possibilidades de
40 TOLEDO, Cecília. Israel: cinco décadas de pillaje y limpieza étnica. IN: Revista Marxismo Vivo, n.º 3. Maio de 2001. Versão eletrônica acessada em 22 de junho de 2010 em: http://www.litci.org/inicio/newspublicaciones/marxismo-vivo (tradução livre minha); Para ver mais: VVAA. Judaísmo versus Sionismo – Três ilustres judeus opinam sobre Israel. Rio de Janeiro. Estudos Árabes da Delegação da Liga dos Estados Árabes, 1969. Coleção Monografias; e PINSKY, Jaime. Origens do Nacionalismo Judaico. São Paulo, HUCITEC, 1978.
48
anti-semitismo que deram assunto para diversos livros de distintas áreas do
conhecimento, sendo que aqui, nem de perto, o tema foi esgotado. Mas
registro que é a partir dessa complexidade que tentarei analisar as fontes,
tentando compreender o anti-semitismo à luz do racismo, dos elementos
psicológicos, linguísticos e discursivos, além de tentar fugir da vitimização do
judeu diante desse monstro que é o anti-semitismo, até mesmo porque parto
da ideia de que, vítimas ou algozes, somos todos sujeitos ativos na história.
Retomando dois dos três autores baianos do início, Boris Tabacoff e Jacob
Gorender tinham quatro e nove anos, respectivamente, em 1933, início desta
pesquisa, e trazem relatos que se baseiam em lembranças, suas e de
familiares e da comunidade, segundo os próprios autores. Talvez por isso
mesmo não se apresente em seus relatos o anti-semitismo contido nos meios
de comunicação e na política da AIB. Já os equívocos da Esther Largman
estão na sua lida com suas fontes. Em Judeus nos Trópicos a autora utiliza
diversas fontes orais e parcas fontes jornalísticas. Em muitos casos, como na
impressão sobre o papel da imprensa para a divulgação do anti-semitismo na
Bahia e os “apelidos” dados aos judeus, são tratados pela autora como eventos
de menor importância.41 No desenvolver da dissertação se mostrará que essas
interpretações são equivocadas. As fontes aqui trabalhadas permitirão
demonstrar esses equívocos e refletir como o anti-semitismo foi uma
manifestação presente na imprensa baiana.
41 LARGMAN, 2002, p. 78 e 79.
49
CAPÍTULO II
XENOFOBIA, IMIGRAÇÃO E RAÇA NO BRASIL DOS ANOS 1930
“Além do mito que limita o infinito E da cegueira dos guardas das fronteiras”
(Guardas das Fronteiras, Engenheiros do Hawaii)
Existe um número razoável de trabalhos que se referem ao anti-semitismo, em
sua expressão moderna, no Brasil da década de 1930.42 Para entender o por
quê do “terreno fértil” para a propagação dessa ojeriza aos judeus nesse
período é necessário compreender em qual conjuntura isso se dava. Qual
situação permitiu que se configurasse um anti-semitismo que, mesmo não
tendo tido uma expressividade, numericamente e em intensidade, semelhante
ao ocorrido na Europa, se apresentou no Brasil tanto entre os representantes
do Estado, mais especificamente no campo da diplomacia, bem como em
organizações de influência de massas, como AIB, que chegou a ter milhares de
filiados e divulgava esse anti-semitismo em obras, jornais e revistas, suas ou
sob sua influência? 43
Neste capítulo farei uma breve apresentação dessa conjuntura. Lanço mão,
para essa discussão, de trabalhos sobre o assunto e documentação
apresentados em outras obras e dados fornecidos pelos jornais utilizados como
fonte nessa dissertação.
42 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na Era Vargas (1930 – 1940). Editora Braziliense, São Paulo. 1988; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci . Cidadão do mundo: Brasil diante do Holocausto e dos judeus refugiados. Editora Perspectiva, São Paulo. 2010. CYTRYNOWICZ, Roney. Além do Estado e da ideologia: imigração judaica, Estado-Novo e Segunda Guerra Mundial. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n.ª 44, p. 393-423. 2002; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em Guarda Contra o Perigo Vermelho. São Paulo, Perspectiva, 2002; CRUZ, Natália dos Reis. O Integralismo e a Questão Racial. A Intolerância como princípio. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, 2004; MAIO, Marcos Chor. Nem Rotschild Nem Trotsky – O pensamento anti-semita de Gustavo Barroso. Rio de Janeiro, Imago Ed., 1992; ALMEIDA, Maria das Graças Andrade Ataíde de. A Construção da Verdade Autoritária. São Paulo. Série Teses. Ed. Humanitas FFLCH/USP. 2001; SANTOS, Manuela Monteiro Teles dos. O anti-semitismo no jornal O Imparcial (1933-1938). Monografia de especialização. Feira de Santana, Universidade Estadual de Feira de Santana. 2004. 43
Na Bahia o número total de filiados variam entre 46.000 a 80.000. ver: LIMA, 2010, p. 73, nota 39, onde o autor problematiza esses números. Existem ainda outros estudos sobre esses números que apontarei no próximo capítulo
50
2.1. 1930: Uma Década de Transformações
A década de 1930 se inicia com significativas transformações político-
econômicas.44 O Brasil da hoje chamada Velha República (nascida com a
proclamação da República no Brasil, em 1889) agonizava em crises sociais e
político-econômicas. Para substituí-la apresentava-se um novo grupo político
que trazia em seu nome a imagem que fazia de si mesmo: Aliança Liberal.
Esse grupo trazia consigo bandeiras que rompiam, ao menos no discurso, com
a política oligarca do café-com-leite e defendia reformas sociais e voto secreto.
Digo ao menos discursivamente porque na prática se reuniam em torno da
Aliança nomes ligados à Velha República, como o ex-governador baiano José
Joaquim Seabra, além dos antigos parceiros dos paulistas, os oligarcas
mineiros que abriram mão do nome de Antônio de Andrada em detrimento da
candidatura do gaúcho Getúlio Dorneles Vargas.
No entanto, a Aliança Liberal (AL) sai derrotada das eleições de 1930,
marcadas por denúncias de fraudes. Mas não demoraria para que a AL
chegasse ao poder. O vitorioso das eleições, Júlio Prestes, candidato ligado ao
ex-presidente Washington Luís, não conseguiu solucionar a crise político-
econômica vivida no Brasil e em outubro de 1930 políticos e militares ligados
ou apoiadores da Aliança Liberal tomaram o poder, destituindo Washington
Luis e não permitindo que Júlio Prestes tomasse posse, criando uma Junta
Militar de um governo “revolucionário” provisório que logo seria substituído pela
figura de Getúlio Vargas, principal líder da “revolução de 1930”.45
Em torno dos eventos de 1930 constrói-se a idéia de uma revolução burguesa
à brasileira, já questionável hoje. Questionável porque hoje se pergunta em
quais aspectos houve de fato uma revolução. Tendo-se como referência o
“aburguesamento” arquitetônico e logístico das cidades brasileiras não cabe, já
44
Utilizo, aqui, o termo “político-econômico” para designar o que comumente são colocados de forma distinta: a política e a economia. O referencial teórico para a utilização do termo é a obra de Karl Marx “Contribuição para a Crítica da Economia Política”. Para o autor a separação entre economia e política é um artifício retórico dos economistas burgueses para desvincular a relação simbiótica entre ambas dimensões da sociedade. 45
Cf. AMADO, 1973; CAMPOS (a), 2006; CARNEIRO, 1998; FERNANDES, 2004; FURTADO, 1972; MENDES, 1992; MOURA, 1980; TRONCA, 1982; TOTA, 2000; TAVARES, 2001;
51
que a Belle Époque brasileira do final do século XIX cumpriu esse papel em
cidades como Rio de Janeiro, Recife e Salvador. Se a referência for o
surgimento de uma burguesia brasileira menos ainda, tendo em vista diversos
trabalhos que já apontam para uma leitura processual sobre a construção da
burguesia no Brasil, como exporei a seguir.
Em “A escravidão entre dois liberalismos” Alfredo Bosi afirma que o liberalismo
à brasileira tem sua origem diretamente ligada aos interesses do sistema
escravista no país:
Porque foram, sem dúvida, as lutas da burguesia agroexportadora que tinham cortado os privilégios da Metrópole graças a abertura dos portos em 1808; esses mesmos patriotas tinham garantido, para si e para a sua classe, as liberdades de produzir, mercar e representar-se na cena política. Daí o caráter funcional e tópico do seu
liberalismo. (BOSI, 2004, p. 198, grifo do autor)
No decorrer do texto Bosi vai tratar de como o liberalismo possui margem de
manobra para se adaptar às mais diversas circunstâncias, sendo que no Brasil
se constituiu como uma alternativa de um conflito intra-classe dominante que
colocava em contraposição projetos políticos que se antagonizavam entre um
projeto patriótico e outro de recolonização. O liberalismo à brasileira, portanto,
não pautava as demandas das classes subalternizadas e nem buscava
alianças estratégicas. Ao fim e ao cabo, não cumpria um papel revolucionário.
46
Quem também contribui para essa discussão é o sociólogo Florestan
Fernandes. Indo além47 de Bosi, Fernandes, em “A concretização da
Revolução Burguesa”, explica as dificuldades em se definir uma revolução
burguesa. Para o Brasil, Fernandes diz ter havido uma configuração de ilhas
46
Há um levantamento bibliográfico pautado no debate acerca do liberalismo a brasileira feito em: GRINBERG, Keila. Liberata – a lei da ambigüidade: As ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume – Dumará, 1994. Nessa obra a autora traz discussões muito importantes sobre o debate do tema no Brasil, como a concepção das “ideias fora do lugar”, de Maria Sylvia de Carvalho Franco, bem como outras leituras desse liberalismo à brasileira, ou no Brasil, como pautam alguns estudos, dentre eles Roberto Schwartz, Wanderly Guilherme e o Alfredo Bosi. 47
O “além” fica por minha conta, já que Bosi não tem como objetivo definir burguesia ou muito menos sua revolução.
52
burguesas “desde o período colonial até o início da República, caracterizada
pela presença de capitalistas do campo e da cidade.” (FERNANDES, 2004, p.
426) Pela sua vinculação com o mundo rural, a burguesia brasileira,
notadamente a partir do Império, teria feito um pacto político, no qual o Estado
continuava na mão das oligarquias que lhe garantiria, em troca, a liberdade
político-econômica apenas para assegurar seus interesses comerciais e
industriais.
Portanto, estamos diante de uma burguesia dotada de moderado espírito modernizador e que, além do mais, tendia a circunscrever a modernização ao âmbito empresarial e às condições imediatas da atividade econômica ou do crescimento econômico. Saía desses limites, mas como meio – não como um fim – para demonstrar sua “civilidade”. Nunca para empolgar os destinos da nação como um todo, para revolucioná-lo de alto a baixo. (FERNANDES, 1975 (2004), p. 428)
Na Bahia as coisas se configuravam de forma semelhante, ainda que com algumas
particularidades. Em primeiro lugar, apesar da “revolução de 1930” ter indicado Juraci
Magalhães para a função de interventor, preterindo, assim, José Joaquim Seabra,
político baiano ligado à República Velha, e que havia apoiado a Aliança Liberal, essa
atitude não significou ruptura com a oligarquia baiana, já que o interventor oriundo do
Ceará garantiu sua governabilidade a partir de aliança com os velhos coronéis da
política baiana, a exemplo do coronel Franklin Lins de Albuquerque. Em segundo
lugar, as eleições para o legislativo de 1933 e 1934 apontam para o mesmo, sendo
que os aliancistas elegeram diversos nomes ligados à velha oligarquia baiana. (cf.
TAVARES, 2001, p. 419-446).
A dissertação de Aruã Lima sugere o contrário. Segundo o mesmo “o objetivo dos
primeiros momentos da interventoria de Juraci Magalhães foi estabelecer parâmetros
para diálogo entre classes. Fazer o estado parecer um mediador dos interesses
classistas e, mais que isso, tutelar – por meio do amparo – a organização das
classes.” (LIMA, 2010, p. 111). Para exemplificar tal postura Lima fala da Reforma
Política, que previa a participação de trabalhadores e sobre a perseguição promovida
pelo interventor Magalhães a figuras antigas da política baiana, como Simões Filho,
Góes Calmon, J. J. Seabra e os irmãos Mangabeira (João e Otávio), dentre outros.
Por outro lado é fácil notar a aproximação entre Magalhães e oligarcas e políticos
tradicionais a partir das eleições para a Assembléia Nacional Constituinte, em maio de
53
1933, e das eleições para a Constituinte baiana em outubro de 1934, a exemplo de
Clemente Mariani (filho do magistrado Pedro Ribeiro), Antônio Garcia de Medeiros
Neto (ligado a Rui Barbosa), cônego Manuel Leôncio Galrão (indicado por Miguel
Calmon, Simões Filho e outros para o senado, em 1927)48 e Valdomiro Lins de
Albuquerque. Ao que parece se por um lado Magalhães tentou executar os objetivos
da revolução, por outro manteve sua governabilidade a partir de alianças com esses
setores.
De qualquer sorte, percebe-se que se seguiu um esquema parecido, em relação à
questão oligarquia-burguesia, apresentado anteriormente. E mais, tanto na Bahia,
quanto no Brasil, as diferenças eram esquecidas quando o assunto era a repressão às
classes subalternizadas. Mais uma vez, Fernades:
Porque é nele [no conflito com as oposições dos subalternizados], nesse entrechoque de conflitos de interesses da mesma natureza ou convergentes e de sucessivas acomodações, que repousa o que se poderia chamar de “consolidação conservadora” da dominação burguesa no Brasil. Foi graças a ela que a oligarquia – como e enquanto oligarquia “tradicional” (ou agrária) e como oligarquia “moderna” (ou dos “altos negócios”, comerciais-financeiros, mas também industriais) – logrou a possibilidade de plasmar a mentalidade burguesa e, mais ainda, de determinar o próprio padrão de dominação burguesa. Cedendo terreno ao radicalismo dos setores intermediários e à insatisfação dos conflitos em largo prazo, pois não só resguardou seus interesses materiais “tradicionais” ou “modernos”, apesar de todas as mudanças, como transferiu para os demais parceiros o seu modo de ver e de praticar tanto as regras quanto o estilo do jogo. Depois de sua aparente destituição pela revolução da Aliança Liberal, as duas oligarquias ressurgem vigorosamente sob o Estado Novo, o governo de Dutra e, especialmente, a “revolução institucional”49 (sem que se ofuscassem nos entreatos). Parafraseando os mexicanos, poderíamos dizer que se constituiu uma “nova aristocracia” e que foi a oligarquia (“antiga” ou “moderna”) – e não as classes médias ou as industriais – que decidiu, na realidade, o que deveria ser a dominação burguesa, senão idealmente, pelo menos na prática. (FERNANDES, 2004, p. 428)
48
Folha do Norte, Ano XVIII, nº916, 29 de janeiro de 1927, p. 1, APUD CAMPOS (b), 2008. Em: http://www.abhr.org.br/wp-content/uploads/2008/12/campos-juliano-mota.pdf Visitado em 05 de janeiro de 2011. 49
A “revolução institucional” ao qual o autor se refere é o golpe civil-militar de 1964. (nota minha)
54
Ou seja, se é correto afirmar que houve avanços no período compreendido
como a primeira fase da “revolução de 1930”, ou seja, entre os anos de 1930 e
1937, antes do Estado Novo, isso não significou um imobilismo da classe
dominante, mas sim um rearranjo temporário que serviu para preparar o
terreno para que a própria velha oligarquia voltasse com roupas novas. Num
primeiro momento como defensora do Brasil contra a ameaça estrangeira,
representada pelo comunismo, no Estado Novo; num segundo, como
defensora da democracia e contra a ditadura Vargas, em 1945.
Se houve uma revolução promovida pelos acontecimentos de 1930, essa foi
em outras questões de grande relevância para a consolidação da burguesia
nacional. Em primeiro lugar o que marca esse período é o avanço em relação
às leis trabalhistas que por sua vez estão diretamente ligadas à aceleração do
processo de industrialização do país. 50
Mas esse período consolida, também, o posicionamento do Brasil frente ao
cenário internacional, em que Tucci Carneiro afirma que Vargas posava de
defensor da democracia para fora, mas exercia seu poder de ditador dentro do
país. Tal postura significou uma posição dúbia do governo brasileiro em relação
à política de imigração, uma oficial e uma extra-oficial, como dissertarei a
seguir.
2.2. Os Indesejáveis
Historicamente os ministérios ligados à entrada de imigrantes no Brasil eram
responsáveis pelo comércio e pela agricultura. Num primeiro olhar pode-se
afirmar que a imigração no Brasil tinha um cunho meramente econômico, mas
basta ver do que tratava seus decretos e regulamentações para perceber que
existia algo mais nessa relação.
50
Ver: FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. – Dentre outras questões, o livro aborda sobre o destaque na recuperação da economia brasileira após a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, que gerou uma crise mundial. Esse destaque se dá pelo Brasil ter conseguido reagir a essa crise antes mesmo dos Estados Unidos da América (EUA).
55
Em 14 de janeiro de 1888, a Princesa Izabel assina o decreto de número
9.841,51 prorrogando o contrato com a Sociedade Colonisadora de 1849,
localizada em Hamburgo (atual Alemanha), e regulamenta a entrada de
colonos encaminhados por esta Sociedade para trabalharem no setor
agrícola.52 Essa prorrogação traz um dado importante: o projeto de
embranquecimento da sociedade brasileira, que se iniciou muito antes do fim
da escravidão, já tinha a preocupação em trazer colonos brancos de
determinadas regiões da Europa (além dos germânicos, os italianos fizeram
parte de outra grande leva trazidos para o Brasil para substituir a mão-de-obra
negra no trabalho, não só industrial, mas no campo também). (Cf. RIBEIRO, p.
463, 2008). O decreto da Princesa ainda prevê a presença de um pastor,
bancado pela colônia, e um padre, bancado pelo Império, dentro das Colônias,
para garantir o “sustento espiritual”.
Ainda sobre o decreto n.º 9.841/1888, um demarcador dessa política é o
incentivo financeiro para os colonos. Num Brasil onde a expectativa de vida,
em 1910, portanto, 22 anos depois do decreto, era de apenas 33,4 anos, não
podem ser desprezados os incentivos aos imigrantes, que não ficavam apenas
no auxílio em relação à viagem, mas também à garantia de uma estrutura
habitacional (ao menos teoricamente) dentro das “regras de higyene”, e de
garantias de renda e de acesso à terra que nem de longe se assemelhava a
51
Assinado pela Princeza Imperial Regente, como consta no documento e pelo Bacharel Rodrigo Augusto da Silva, do Conselho de sua Magestade O Imperador e Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obra Públicas. Os decretos apresentados estão disponíveis no site http://www2.camara.gov.br/, acessado em 26 de setembro de 2010. 52
Em seu artigo, sobre a Primeira República, Anna Clara Sampaio Ribeiro problematiza a utilização de conceitos como IMIGRANTES e ESTRANGEIROS. Para ela a utilização do segundo traz uma carga negativa, já que estrangeiro tem, dentre seus diversos significados, o sentido de alguém não pertecente a um determinado lugar, forasteiro, enquanto imigrante teria um significado mais acolhedor. No decreto que trato acima, o imigrante é tratado como COLONO, a meu ver uma visão não-pejorativa que trazia a idéia de colonização de lugares “ermos” ou “não-civilizado”. Nos documentos a seguir a definição varia, muitas vezes no mesmo texto, entre estrangeiro e imigrante. Tenho a impressão de que essa variação se dá dependendo do que está sendo tratado. Quando se trata do imigrante que se encontra dentro das regras estabelecidas, pesando aí o seu antecedente de boa conduta, ele é definido como imigrante. Quando se fala do não cumprimento desses requisitos, é tratado como estrangeiro. Nos documentos do Itamaraty (trazidos em CANEIRO, 1988) é comum o imigrante indesejável ser tratado como estrangeiro.
56
realidade da população pobre do país, sem acesso a terra e nem garantias de
trabalho no campo.53
A despeito da realização das garantias contidas no decreto acerca do
cumprimento de tais vantagens aos imigrantes, o fato é que elas
demonstravam um tratamento diferenciado aos mesmos e uma garantia legal,
ao menos no papel. Em 03 de novembro de 1911 o então presidente Hermes
da Fonseca assinou o decreto 9.081 que regulamenta o serviço de
povoamento. O documento também é firmado por Pedro de Toledo, Ministro da
Agricultura, Indústria e Comércio.
Na regulamentação é tipificado qual imigrante pode adentrar o país. Ela
impede, dentre outras questões, a entrada de pessoas que exerciam profissões
ilícitas e pessoas conhecidas como criminosas, desordeiras, mendigas,
vagabundas, dementes ou inválidas. Definição mais aberta impossível. O
reconhecimento dessas características pode ser obtido por funcionários
brasileiros nos países de origem, a partir de fontes não especificadas, o que
permite que qualquer um entre nessas classificações de acordo com os
interesses desses funcionários ou de suas ligações políticas. O que seriam
profissões ilícitas ou pessoas conhecidas como desordeiras e vagabundas? A
ciência eugenista, da época, se baseava na craniologia para definir
vagabundos e desordeiros, definindo raças mais propícias a essas
características. Profissões ilícitas, decerto, variavam de acordo com o interesse
de mão-de-obra, no país.
Em 1911, o país era basicamente agrícola e como é observável no decreto,
“necessitava”54 de mão-de-obra para o campo. A mesma ciência que
classificava quem era vagabundo ou desordeiro, apontava quais raças eram
mais propícias ao trabalho e dentre elas as que melhor se encaixavam nos
diversos ramos no campo e na cidade. A título de ilustração ao debate aqui
53
Sobre os dados de expectativa de vida, ver ESTATÍSTICAS DO SÉCULO XX, IBGE, 2006. 54
Aspeado porque na verdade o Brasil já tinha uma mão-de-obra extremamente classificado para esse tipo de serviço, afinal, foram mais de 300 anos de escravidão negra e os ex-escravizados constituíam estavam mais do que qualificados a atender essa demanda.
57
apresentado, os racialistas classificavam os judeus como uma raça voltada
apenas para as atividade usurárias, ou seja, econômicas, comerciais...55
Ainda no ano de 1911, o Estado mantinha as vantagens anteriores, como o
auxílio nas despesas de recebimento (ou seja, de chegada), hospedagem e
sustento desses imigrantes durante um determinado tempo e em algumas
situações de necessidade, como em caso de doença, e ampliavam os
benefícios no sentido da infra-estrutura, garantindo a criação de estradas e de
uma área urbana (rua e praça) na colônia. O artigo a seguir resume algumas
dessas vantagens:
Art. 56. Os immigrantes agricultores, formando familias
destinadas á localização em nucleos coloniaes, gosarão das
seguintes vantagens, além de outras referidas no presente
regulamento:
1ª, alimentação aos recem-chegados, gratuitamente
fornecida durante tres dias, e em casos extraordinarios até seis
dias no maximo, si porventura elles carecerem deste auxilio:
2ª, durante os seis primeiros mezes, e em casos
extraordinarios até o oitavo mez, a contar da data em que
chegarem ao nucleo, si os immigrantes cuidarem da cultura e
beneficiamento dos seus lotes e não dispuzerem de recursos
para se manter:
a) trabalhos a salario ou empreitada em obras ou serviços do
nucleo, fazendo-se a distribuição dos serviços de sorte que a
cada adulto de uma familia correspondam pouco mais ou
menos, a juizo da administração, 15 dias de trabalho por mez,
devendo, quanto possivel, consistir o serviço em preparo ou
melhoramento da estrada ou do caminho que servir ao lote que
lhe pertencer ou em outros trabalhos proximos;
b) em falta de trabalho remunerado, ou quando este não
baste, a juizo da administração, para manter familias
numerosas, fornecer-se-hão viveres a debito aos chefes da
55
Cf. CARNEIRO, 1998 e POLIAKOV, 1974.
58
familia, calculando-se esse fornecimento á razão de $800 a 1$
diarios no maximo, por adulto ou por maior de sete annos, e de
metade por menor de sete até tres annos.
3º, medicamentos e dieta gratuitamente em caso de molestia
durante o primeiro anno, a datar do dia em que chegarem ao
nucleo.
Paragrapho unico. Dar-se-ha assistencia medica gratuita aos
immigrantes emquanto o nucleo não fôr emancipado.
Art. 57. O Governo Federal, por intermedio da Directoria do
Serviço de Povoamento, poderá distribuir periodicamente aos
colonos sementes e plantas, assim como publicações sobre os
diversos ramos da agricultura.
O Art. 62. inclui o trabalhador rural brasileiro, mas apenas para puni-lo, já que
ele não é citado em nenhuma outra parte do decreto-lei, no caso de não cultivo
da terra. Esse artigo diz o seguinte:
O colono estrangeiro ou o trabalhador nacional localizado que
deixar de cultivar seu lote por espaço de tres mezes, a não ser
por motivo justificado de força maior, a juizo do director do
nucleo, será excluido do mesmo, sem direito a indemnização
alguma, desde que não se ache de posse do titulo definitivo de
propriedade.
Nesse artigo evidencia-se uma pretensa igualdade de tratamento, mas no
acesso à terras, apenas na punição... O decreto ainda prevê a expedição de
títulos e distribuição de lotes, conforme define o capítulo X.
Sobre a organização da Diretoria do Serviço de Povoamento, mais
especificamente sobre a terceira seção, voltada para IMMIGRANTES E
CONTABILIDADE, o decreto nos informa:
59
Art. 154. A 3ª secção terá a seu cargo:
§ 1º Preparo da correspondencia a ser expedida ao ministro,
aos inspectores do Serviço de Povoamento, administradores
de hospedarias de immigrantes, departamentos
administrativos, emprezas, associações ou particulares e a
quaesquer agentes ou encarregados de serviços que
interessem á secção.
§ 2º Providencias attinentes á chamada, introducção,
recebimento, hospedagem, expedição e patrocinio de
immigrantes.
§ 3º Estudo e applicação de medidas convenientes á
fiscalização dos mesmos.
Mas é ao intendente que é conferido o direito de aplicar as restrições para os
imigrantes autorizados, como consta no artigo 157, § 3º:
Impedir, de accôrdo com as autoridades de Policia e Saude
do Porto, o desembarque, como immigrantes, de pessoas que
soffram de molestias contagiosas, exerçam profissão illicita,
sejam reconhecidos como criminosos, desordeiros, mendigos,
vagabundos, dementes ou invalidos, que não possam ser
recebidos ex-vi das disposições em vigor.
Em 31 de dezembro de 1924, o então presidente Arthur da Silva Bernardes, e
seus ministros, João Luiz Alves, Ministro da Justiça e Negócios Interiores do
Brasil e no mesmo ano nomeado ministro do Superior Tribunal Federal (STF), e
Miguel Calmon du Pin e Almeida, da Agricultura, Indústria e Comércio, assinam
o Decreto n.º 16.761 que regulamenta, mais uma vez, a entrada de imigrantes
no país. O critério financeiro novamente foi o determinante, sendo que
estrangeiros que se aventurassem a ingressar no país tendo comprado
passagens de 2.ª e 3.ª classe estariam proibidos de entrar no Brasil. Além
disso, mantinha-se o critério volátil de boa conduta, sendo que agora atestada
por documentos devidamente authenticados que provem sua boa conducta
60
bem como a respectiva carteira de identidade (Art. 2.º). Quais eram esses
documentos? Como e onde consegui-los? O Decreto não especifica...
Como dito anteriormente, a Era Vargas foi marcada por políticas de
regulamentação da entrada de imigrantes no país. Já no primeiro momento de
seu governo, em 12 dezembro de 1930, Getúlio Vargas assina o decreto n.º
19.482, publicado no Diário Oficial do dia 19 do mesmo mês e ano.56 Uma
característica forte desse decreto é a predileção por trabalhadores do campo
no processo de imigração e a criação da lei de dois terços que exige a
contratação de ao menos essa porcentagem de trabalhadores natos do Brasil.
Essa lei é voltada a indivíduos, empresas, associação, companhias e firmas
comerciais.57
Outra característica marcante do decreto é a obrigatoriedade do cadastro de
desempregados brasileiros ou estrangeiros junto às delegacias de
recenseamento do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio ou delegacias
policiais, sendo que aqueles que não procedessem assim, poderiam ser
processados por vadiagem. 58 Além disso, caso a ocupação fosse forjada, tanto
no caso de estrangeiros quanto no caso de brasileiros, e sendo descoberta a
fraude estariam sujeito à punições estabelecidas no Art. 8.º, com multa e/ou
prisão de até 30 dias. O mais interessante são as considerações que
antecedem o decreto. Nela podemos encontrar o seguinte texto:
Considerando, tambem, que uma das causas do desemprego
se encontra na entrada desordenada de estrangeiros, que nem
sempre trazem o concurso util de quaisquer capacidades, mas
frequentemente contribuem para aumento da desordem
econômica e da insegurança social;
E antes
Considerando que uma das mais prementes preocupações da
sociedade é a situação de desemprego forçado de muitos
56
Acessado em 15 de janeiro de 2011: http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-19482-12-dezembro-1930-503018-publicacao-1-pe.html 57
Decreto n.º 19.482 de 12 de dezembro de 1930, Art. 3.º 58
Op. Cit., Art. 4.º, § 1.º
61
trabalhadores, que, em grande número, afluiram para a Capital
da República e para outras cidades principais, no anseio de
obter ocupação, criando sérios embaraços à pública
administração, que não tem meios prontos de acudir a
tamanhas necessidades;59
Ou seja, o governo encontrou na imigração e na migração os vilões do
desemprego. Portanto, nada tinha a ver com as condições precárias de
emprego no campo e nem tampouco com o próprio sistema de produção
capitalista, no caso das indústrias, ou mesmo uma “herança maldita” do
sistema escravista que deixou os ex-escravizados ao léu, expulsando-os dos
campos para as cidades. De fundo a década de 1930 marcou a economia
brasileira devido aos reflexos da crise de 1929 que abalou o mundo. Em
Formação Econômica do Brasil, Celso Furtado afirma que o café, principal
produto da economia brasileira que ainda tinha como base a sua produção e
venda, teve queda vertiginosa de preços na década referida, o que significou
crise econômica e desemprego, nos primeiros anos. Mas, nem por isso setores
da sociedade brasileira deixavam de defender a entrada de mão-de-obra
européia no país. Segue, na íntegra, texto publicado no jornal baiano O
Imparcial, de 11 de janeiro de 1933, sobre imigração de colonos para o Brasil.
O Plano A imprensa alemã acaba de nos surpreender com uma notícia deveras interessante. Ainda mais por demonstrar que, embora servindo também a interesses próprios, alguns estrangeiros se preocupam mais com os nossos problemas que nós mesmos. Trata-se da iniciativa tomada pelo general Kurdt, atualmente na Bolívia, de estudar a possibilidade de colonizar os vastos territórios do vale do Amazonas. Exposto o plano pelo seu autor, que pretende localizar no noroeste brasileiro os sem trabalho da Alemanha, foi dada a idea recebida com acentuada simpatia na republica teutonica. O Banco Internacional de Ajustes, da Basiléa, teria prometido ao general Kundt o apoio financeiro que lhe fosse possível para a efetivação de tal projeto. Pelo menos assim o afirmam
59
Op. Cit., ambos são retirados das considerações iniciais que precedem o decreto.
62
alguns jornais gemanicos embora outros descreiam do financiamento de tal empresa por parte do aludido banco. Sejam, porém, quais foram os meios de que possam dispor o general, não deixa de ser bem achado o seu plano. Si, por um lado, está a preocupação patriótica justa e justa de beneficiar á sua terra, diminuindo-lhe o número de desocupados, é também verdade que o povoamento do vale amazônico é fato que marca uma nova era de atividade progressista para aquela zona. Assim saibam selecionar os colonos para ali destinados, mandando gente valida e capaz.
Há uma bibliografia que sugere que os nazistas tinham planos para a América
Latina o que pode comprovar que a notícia da coluna Notas e Tópicos não é
nenhum absurdo.60 Independente disso, é interessante extrair da matéria a
defesa do articulista (os textos dessa coluna eram apócrifos) de uma seleção
dos colonos a “povoarem” essa região.
Na continuidade do governo Vargas, outras leis serão colocadas em práticas
para o melhor controle da imigração, sempre tendo como justificativa um
discurso oficial que escamoteia o projeto de melhoria de uma pretensa raça
brasileira. O ano de 1934 representa um marco na elaboração jurídica no
Brasil. Visando assentar dentro da nova ordem todos os aliados, o novo
governo teve que conciliar tanto militares, quanto liberais e oligarcas. Antônio
Celso Mendes, citando Paulino Jacques, nos diz o seguinte, sobre as
novidades da Constituição de 1934:
a) quanto à forma: 1) introdução do nome de Deus no
preâmbulo; 2) incorporação do texto de preceitos de direito
civil, direito social e de direito administrativo; 3) multiplicação
60
Hitler e o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães – Partido Nazista – se efetivam no poder alguns dias depois da notícia da nota, em 30 de janeiro de 1933. Para saber mais sobre a presença e os planos do Partido Nazista no Brasil, ver: HILTON, Stanley E.. Suástica sobre o Brasil – A História da Espionagem Alemã no Brasil (1939-1944). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977; DIETRICH, Ana Maria. Caça às suásticas: O Partido Nazista em São Paulo sob a mira da Polícia Política. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, FAPESP, 2007; ATHAIDES, Rafael. O Partido Nazista no Paraná (1933 – 1942). Maringá: EDUEM, 2011.
63
dos títulos e capítulos, ficando a Constituição com mais do
dobro de artigos que tinha a de 1891;
b) quanto à substância: 1) reforço dos vínculos federais; 2)
poderes independentes e coordenados entre si; 3) sufrágio
feminino e voto secreto; 4) o Senado com funções de prover a
coordenação dos poderes, manter a continuidade
administrativa e velar pela Constituição; 5) os ministros de
Estado, com responsabilidade pessoal e solidária com o
presidente da República e obrigados a comparecer no
Congresso para prestarem esclarecimentos ou pleitearem
medidas legislativas; 6) a Justiça Militar e Eleitoral, como
órgãos do poder Judiciário; 7) o Ministério Público, o Tribunal
de Contas e os Conselhos Técnicos, coordenados em
Conselhos Gerais, assistindo os ministros de Estado, como
órgãos de cooperação nas atividades governamentais; 8)
normas reguladoras da ordem econômica e social, da família,
educação e cultura e dos funcionários públicos, da segurança
nacional. (JACQUES apud MENDES, 1992, p. 89)
É nesse período que é assinado o Decreto n.º 24.258, de 16 de maio de 1934,
que regulamenta a entrada de estrangeiros em território nacional. 61 Nesse
decreto se mantém alguns dos critérios estabelecidos nos anteriores, como a
necessidade da demanda de mão-de-obra no setor agrícola e a autorização
e/ou solicitação prévia por parte de governos estaduais e Ministério do
Trabalho para entrada e estadia. 62
Sabendo-se que as leis são elaboradas a partir de interesses de classe e no
intuito de se criar consensos intra e entre classes, o Decreto de 1934 significou
mais do que aparentava ser.63 Não era meramente um marco regulatório da
entrada de imigrantes no sentido de garantir a estabilidade política brasileira
contra os “subversivos estrangeiros”, nem tampouco visava assegurar emprego
61
Acessado em 26 de setembro de 2010: www2.camara.gov.br 62
É do governo Vargas a criação do Ministério do Trabalho, em 26 de novembro de 1930, e a partir daí o Ministério que terá uma importância na decisão não mais será um daqueles vinculados à indústria, agricultura ou comércio, nem mesmo o de Relações Exteriores, como era de se esperar, mas sim aquele que regulamenta e fiscaliza as relações de trabalho. 63
Há uma bibliografia interessantíssima sobre o assunto. Dentre elas, trabalho aqui com: GRINBERG, 1994, LENIN, 1980 e GENOVESE, 1988.
64
para brasileiros ou defender a saída de capitais do país ou controlar melhor seu
trânsito. Como pano de fundo da lei, que delegava aos cônsules a prerrogativa
de concederem vistos para estrangeiros e o Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio, trazia a idéia de construção da raça brasileira. Para o
aprimoramento da mesma seria necessário selecionar quais estrangeiros eram
“melhores” para o povoamento do país.
Essa afirmação não surge do nada. Em O Imparcial de 1.º de abril de 1935
uma notícia traz indícios de qual o verdadeiro intuito das leis de imigração:
O Problema Immigratorio Informações do M. do Trabalho O sr. Agamenon Magalhães, Ministro do Trabalho nomeou uma commissão encarregada de elaborar um ante-projeto de lei regulando a entrada dos immigrantes em território brasileiro e, bem assim, traçando as normas jurídicas dentro das quaes se deverão enquadrar os problemas administrativos da colonização nacional e da assimilação dos estrangeiros aqui entrados. Essa commissão, que é composta de pessoas illustres e idôneas, sob a presidência do sr. Oliveira Vianna, Consultor Jurídico do Ministério do Trabalho, já se installou e vae encaminhando normalmente os seus trabalhos. Para melhor estudo dos assumptos foram, mesmo, consultados varias sub-commissões, que ficaram assim formadas: Direitos do immigrante: - Deputado Moraes Andrade, Vaz de Mello e Oliveira Vianna; Custas e entrada de estrangeiros: - Dr. Dulphe Pinheiro Machado, Dr. Vaz de Mello e Dr. Raul de Paula. Selecção e condições enérgicas do immigrante: Prof. Roquete Pinto, Dr. Renato Kehl e Dr. Nicolas Debané; Colonização: Dr. Dulphe Pinheiro Machado, Dr. Raul de Paula, e deputado Moraes de Andrade; Assimilação: - dr. Vaz de Mello, dr. Nicolas Debané e dr. Oliveira Viana; Organização do Departamento Nacional de Immigração: dr. Dulphe Pinheiro Machado, dr. Renato Kehl e dr. Moraes de Andrade; Bases para o Instituto de Immigração: dr. Roquete Pinto, dr. Renato Kehl e dr. Oliveira Vianna. Estas sub-commissões estão trabalhando nos ante projectos parciaes e têm a grande parte dos seus trabalhos elaborada. Concluídos estes trabalhos parciaes, terão logar então as sessões da Commissão, em que serão debatidos os projectos parciaes e elaborado o ante-projecto geral.
65
“Essa commissão (...) é composta de pessoas illustres e idôneas...”. Bem que
poderia ter sido uma piada de Primeiro de Abril, mas não era. Do Ministro
Agamenon Magalhães aos membros da comissão, começando pelo seu
presidente, o famigerado racista Oliveira Vianna, pude constatar em um
número significante dos que pensaram a política imigratória da primeira etapa
do governo Vargas (1930 – 1937) era composta por eugenistas racistas e/ou
anti-semitas.64
Em sua obra, Maria Luiza Tucci Carneiro65 pesquisa, principalmente, a
correspondência e documentação da diplomacia brasileira com Itamaraty. Isso
permitiu a autora encontrar o discurso do “melhoramento da raça” em diversas
dessas fontes. A maioria são circulares secretas que a autora disse ter tido
dificuldades em ter acesso no período de sua pesquisa, na década de 1980.
(CARNEIRO, 1995, p. 247). Segundo Carneiro, na prática havia uma
predileção a certos imigrantes, ligados ao “projeto de construção do povo
brasileiro”, como é possível ver no trecho de um documento oficial, a seguir:
Entretanto, permito-me repetir o que já escrevia essa
Secretaria, em meus relatórios referentes a 1931 (ver ofício n.º
25 de 24 de fevereiro de 1932) e a 1932 (ver ofício n.º 30, de
11 de março de 1933), que a emigração desta parte da Europa
para o Brasil, é a pior possível e de modo algum deveria ser
facilitada. Não é que na Rumânia faltem elementos bons para o
trabalho rural (êste é um país de camponeses, os quais,
porém, apegadíssimos ao solo nativo, raramente emigram).
Entre as populações que formam as minorias nacionais –
quatro milhões e meio contra treze milhões e meio de rumenos
-, os alemães e os húngaros, tão conhecidos e apreciados
64
Sobre Agamenon Magalhães e os judeus cf. ALMEIDA, 2001 e LEWIS, 2005; Sobre Renato Kehl cf. SANTOS, Ricardo Augusto. O que é bom já nasce feito? Uma leitura do eugenismo de Renato Kehl (1917 – 1937). IN: Revista Intelectus, ano 04, volume II, 2005. http://www.intellectus.uerj.br/Textos/Ano4n2/Texto%20de%20Ricardo%20Augusto%20dos%20Santos.pdf Acessado em 23 de maio de 2011; Sobre Oliveira Viana cf. SCHWARCZ, 2001; Dulphe Pinheiro Machado e sua ligação com a política de imigração: CARNEIRO, M. L. Tucci. A Imagem do Imigrante Indesejável. In: Seminários – n.º 3 (Crime, Criminalidade e Repressão no Brasil República). Acessado, no dia 23 de maio de 2011, em: http://www.usp.br/proin/download/revista/revista_seminarios3_imagemimigrante.pdf;
65 CARNEIRO, M. L. Tucci. O Anti-semitismo na Era Vargas (1930-1940).
66
como trabalhadores na nossa terra, poderiam migrar em maior
número se possuíssem recursos para os enormes gastos com
a viagem até aí. Quando podem, porém, êles partem tomando
o vapor para o Brasil em Gênova ou em Trieste. Restam os
judeus que formam aqui uma população superior a um milhão
de indivíduos e que são os únicos que daqui partem para o
Brasil Avessos ao trabalho agrícola, eles emigram e
estabelecem-se nas nossas cidades se entregado às
especulações dos nosso pequeno comércio. (Relatório de
Nabuco Gouvêa, da Legação brasileira na Romênia, para o
Ministério das Relações Exteriores. Bucareste, 1934. In MDB,
Ofícios Recebidos, 1934, Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI).
apud CARNEIRO, 1988 p. 507)
A Lei de Imigração, teoricamente, regulamentava a qualquer emigrante, mas o
que esse ofício demonstra é que havia, ao menos, uma não-predileção aos
judeus. O documento aponta para alguns estereótipos atribuídos aos judeus,
como comerciante, como o que tem dinheiro para viajar. No entanto, é
importante salientar aqui que haviam órgãos judaicos, como o IKUF (Idishe
Kultur Farband ou Associação Cultural Judaica), criado na década de 1930, e
que servia como um organismo para manter relação com organizações
progressistas judaicas a nível internacional, que financiavam a migração de
judeus para países onde não houvesse perseguições. É importante ressaltar
ainda que o IKUF mantinha-se financeiramente não a partir de investimentos
recebidos de grande empresários judeus e sim indivíduos solidários a causa
deles, de organizações sionistas e até mesmo da URSS.66 Além disso,
independente de haver pagamento ilícito ou não, a rejeição a judeus tem como
única base real o racismo, como visto no capítulo anterior.
Já no período de perseguição ostensiva aos judeus na Alemanha nazista, o
embaixador brasileiro nesse país, senhor Cyro de Freiras Valle, manda o
seguinte ofício, que segue parcialmente:
Senhor Ministro,
66
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
67
Por primeira vez em minha longa carreira, ao dirigir a Vossa
Excelência o telegrama n.º 185, de 25 de outubro próximo
findo, apartei-me de uma norma invariavelmente seguida,
desde que tive a honra de colocar meus fracos préstimos às
ordens do Serviço Público brasileiro. E só o fiz, conforme me
permití [sic] dizer a Vossa Excelência, por considerar êsse
passo um imperativo dever patriótico.
2. Tratava-se da questão da emigração de semitas para o
Brasil. Não sou, nem nunca fui, contra os judeus. Mas acho
impossível calar que aqueles que estão a entrar no Brasil são
de má qualidade. (…) (Ofício de Cyro de Freitas Valle, da
Embaixada Brasileira em Berlim, para Oswaldo Aranha, do
Ministério das Relações Exteriores. Berlim, 02/11/1939. In
MDB, Ofícios Recebidos, set. a dez. de 1939. AHI, APUD
CARNEIRO, p. 533 grifo meu)
Para um embaixador que, segundo o próprio, nunca havia entrado em contato
com o Ministro, esses judeus eram de “má qualidade” porque, segundo o
cônsul, na seqüência de seu ofício, eles estavam a pagar entre 800 florins a
440 dólares para conseguir sair da Alemanha nazista e entrar no Brasil. Que
crime imperdoável eles cometeram, não? Pagaram para viver e ainda eram
tidos como maus elementos. A mão pesava dependendo do caso. Vejamos o
trecho a seguir, relacionado a uma solicitação da Embaixada do Brasil, em
Washington, EUA, enviado ao Ministério das Relações Exteriores em 1940.
... conforme a Circular Secreta n.º 1.249, era permitida a
entrada no Brasil de cientistas e artistas de “origem semita”.
Aqueles que não dispunham de dinheiro para “comprar” um
visto, tentavam entrar através deste dispositivo legal, tendo
que, posteriormente, transformar o visto temporário em
permanente.
Diante desta possibilidade a Embaixada do Brasil em
Washington sugeriu ao Ministério de Relações Exteriores, em
68
1940, o ingresso de seis mil intelectuais que, residentes na
Europa, procuravam refúgio na América, mas com uma
ressalva: a maioria era de origem ariana.
(...) A Secretaria do Ministério das Relações Exteriores
respondeu oficialmente que o Brasil não colocava obstáculos à
vinda desses indivíduos, conforme a Circular Secreta n.º 1.249.
Esta era uma forma indireta de se afirmar que aqueles que
eram judeus não poderiam entrar, impedidos pela legislação
vigente. (CARNEIRO, 1995, p. 278, grifos da autora)
O mais interessante nisso tudo é que a Circular Secreta citada por Carneiro foi
assinada por Oswaldo Aranha, considerado por muitos como defensor dos
judeus na Era Vargas, por compor o setor americanófilo do governo Vargas.
Acontece que a obra de Tucci Carneiro desconstrói o mito em torno da figura
de Aranha, que inclusive presidiu a reunião da Organização das Nações
Unidas (ONU) que fundou o Estado de Israel, em 1948.
A autora trabalha com vários exemplos que colocam Aranha como um dos
mentores e executores das restrições à entrada dos judeus no país,
principalmente no período do Estado Novo, a partir de 1938. Exemplos disso
são as negativas à entrada de judeus no país, quando Ministro das Relações
Exteriores, mesmo que enquadrado nas possibilidades previstas em lei, como a
existência de parentes no Brasil, estabelecidos até 31 de dezembro de 1938, e
que eram cientistas e artistas de reconhecimento internacional67, na maioria
das vezes indicados por diplomatas, embaixadores e outros representantes do
Brasil no exterior.68
Mas tal posicionamento não se restringia à principal figura da diplomacia
brasileira à época. O Itamaraty, de forma geral, foi um instrumento do anti-
semitismo fascista, principalmente no Estado Novo, segundo Tucci Carneiro. 69
Exagero ou não da autora, o que consta é um número grande de profissionais
67
Op. Cit. p. 270 68
Op. Cit. p. 276 a 284 69
Op. Cit. P. 262
69
de primeiro escalão do Itamaraty, sendo que, baseada em correspondências e
documentos desse órgão, ela cita uma lista de diversos membros da chamada
Elite Rio Branco, como é conhecido o corpo diplomático dessa instituição. 70
Nessa lista Carneiro se preocupa em arrolar tanto aqueles que defendiam de
alguma forma a imigração de judeus como aqueles que propugnavam a idéia
do judeu como elemento nocivo à sociedade brasileira. Dentre os defensores,
invariavelmente imperava o quesito de caráter econômico dos judeus. Entre os
detratores, permeava a idéia de que os judeus eram elementos subversivos
(muitas vezes difusores do comunismo), não eram dados a trabalhos no
campo, eram avarentos e comerciantes que tinham práticas escusas, como a
cobrança de juros abusivos, no comércio.71
2.3. As restritas possibilidades na análise dos dados sobre a imigração de
judeus72
A primeira consideração a ser feita sobre o trabalho com os dados da
imigração judaica no país é a dificuldade de realizá-lo, já que os judeus só
passaram a constar no censo a partir de 1940. Existe uma grande variação dos
números apresentados antes dessa data, que permite levantar duas questões.
A primeira delas é a existência de duas formas de obtenção dos dados: a oficial
e a apresentada por grupos que incentivavam e patrocinavam as imigrações.
Contudo, será que de fato houve um levantamento sistemático sobre a
imigração pelas partes, já que os números apresentados têm uma diferença
muito grande entre um e outro? A outra questão levantada é: será que os
dados oficiais demonstram apenas uma tentativa de barrar esses imigrantes
sem, no entanto, ter havido uma organização e ação concreta do Estado para
sua concretização? Ou será que o dos organismos de imigração judaica trazem
um número super-estimado, já que, quando chegavam ao Brasil, nem sempre
era possível acompanhar a trajetória desses imigrantes e nem sempre se
70
Op. Cit. 295 a 337 71
Como vimos anteriormente, o trabalho no campo era a preferência legal para o ingresso de imigrantes. 72
Os dados aqui apresentados foram retirados das seguintes obras: CARNEIRO, 1995; LESSER, 1995; e LARGMAN, 2002. Sobre as dificuldades em relação os dados censitários sobre os judeus no Brasil, cf. DECOL, 2001.
70
estabeleciam nas cidades que chegavam ou mesmo no país? Não existem
condições para respostas categóricas, sobre o assunto, mas ainda assim é
possível se realizar algumas análises, em cima desses dados.
Os números sobre apresentados por Tucci Carneiro demonstram a
preocupação do Itamaraty e do Ministério das Relações Exteriores sobre a
entrada de semitas no Brasil. Em um debate travado com o embaixador do
Brasil em Berlim, Cyro de Freitas, Aranha se defende das acusações de que
teria “afrouxado” na concessão de vistos de entrada de judeus no país. Na
resposta ao embaixador, Aranha demonstra que enquanto esteve à frente do
Ministério, a partir de 1938, houve uma queda drástica na entrada de judeus,
comparando com o ano anterior. Dessa forma apresenta os seguintes dados.
Ano Número de judeus imigrados
1937 9.263
1938 4.900
1939 2.289
Os dados acima confirmam a diminuição de vistos concedidos para imigrantes
de origem judaica. Se comparados com os anos anteriores verifica-se que a
queda na imigração coincidiu com a o primeiro governo Vargas. Na verdade, a
década de 1930 demonstra uma oscilação que talvez signifique o enrijecimento
em diversos períodos, sem existir um padrão nesses anos. Além disso, se não
evidenciam a realidade, ao menos ratifica a postura anti-semita de Aranha,
como o mesmo quis demonstrar oportunamente, e do governo Vargas.
O ano de 1931, referente ao decreto n.º 19.482, de dezembro de 1930, já
tratado acima, apresentou uma diminuição de 44 % em relação ao ano anterior,
que já havia registrado redução de 27% em relação a 1929. Em 1931 entraram
no Brasil 1.985 judeu contra 3.558 no ano anterior. No entanto a maior queda
foi registrada no ano de 1935, quando apenas 1.758 judeus entraram no país.
71
O interessante é que essa redução coincide com o ano promulgação da Lei de
Segurança Nacional que se apresentou como medida contra as ameaças
externas de ideologias extremistas, principalmente o comunismo, vinculado
pelos anti-semitas como de origem judaica. Para Diorge Konrad esse ano
houve uma radicalização nos posicionamentos ideológicos, demonstrados na
adesão de militares da revolução de 1930 a movimentos como a AIB e a
Aliança Nacional Libertadora (ANL), de orientações de extrema-direita e
comunista, respectivamente.73
Os dados apresentados por Carneiro, citado em relatório por Oswaldo Aranha,
não coincidem com os apresentados por Jeffrey Lesser. Para Lesser, no
mesmo período, de acordo com suas fontes, os dados foram os seguintes. 74
Ano Número de Imigrantes Judeus
1937 2.003
1938 530
1939 4.601
Os números variam de forma absurda, sendo que a fonte de Carneiro são as
oficiais e de Lesser, da Publicação Judaica Sociedade da América.
Independente da variação ambos concordam com a diminuição no número de
judeus ao país nos anos de 1937 e 1938, sendo que os dados oficiais buscam
a defesa do Ministério de Relações Exteriores na gestão de Oswaldo Aranha.
As obras aqui analisadas não trazem informações sobre a entrada dos judeus
na Bahia durante a década de 1930. Lesser apenas informa o quantitativo
daqueles que desembarcaram na Bahia em 1930 (30 judeus). Lesser e
Largman apresentam os números do recenseamento de 1940, onde consta que
viviam na Bahia, nesse ano, 955 judeus espalhados por todo território, havendo
uma concentração maior em Salvador (764) e em Ilhéus e Itabuna (que
73
KONRAD, Diorge Alceno. Contra o empoderamento da Aliança Nacional Libertadora: o reforço do poder do Estado com a Lei de Segurança Nacional. IN: Revista História & Luta de Classes, ano 5, edição número 7, julho de 2009 (Dossiê: Estado e Poder). 74
Ver LESSER, 1995, p. 319, Apêndice 5
72
somados contavam com 106 judeus), sem distinção de quantos eram nascidos
no Brasil ou oriundos de outros países.
Largman, a partir de entrevistas na comunidade judaica da Bahia, apresenta
outras informações:
Através de levantamento nominal, obtidos por entrevistas,
depoimentos, jornais e cartas, chegamos a um número
estimado de famílias judias que residiram no Estado da Bahia
entre 1912 e 1945, ano do término da Segunda Guerra
Mundial, quando chega outra onda de imigrantes, os refugiados
e egressos de campos de concentração nazistas.
Ashquenazim: 314
Sefaradim: 26
Total: 340 famílias (LARGMAN, 2002, p. 51)75
Os dados oferecidos por Largman não permitem avaliar o impacto das leis de
imigração aqui na Bahia, já que se referem a um período muito longo (33 anos)
que excedem ao proposto para trabalhar nesta dissertação. Mas servem para
se ter uma idéia do tamanho da comunidade judaica na Bahia. A média de
famílias, considerando o número total e dividindo pelo total de anos
apresentados por Largman, é de 9,5 famílias por ano, desconsiderando as
variações por ano. porém, considerando os dados de Lasser de que em 1930
entraram 30 judeus e que essas famílias hipoteticamente possuíam cerca de 3
pessoas, não houve uma variação muito grande em relação a média de
famílias que adentram o estado da Bahia durante os anos 1930.
A manutenção da média não significa que na Bahia não houve anti-semitismo
no estado. Talvez pelo tamanho da comunidade judaica, não houve na Bahia
75
Grosso modo, Ashkenazim é aquele judeu europeu de origem centro-oriental. Sefaradim é aquele judeu de origem ibérica, mediterrânea, do Oriente Médio, norte da África, em sua maioria, expulsos da Espanha e Portugal que se deslocaram principalmente para Holanda e Estados Unidos da América (EUA). Essa diferenciação se aplicava, inclusive, dentro das comunidades. Hoje, serve muito mais para apontar origens, já que judeus Serfardim e Ashkenazim migraram e tiveram filhos e filhas em Israel, localizada no Oriente Médio, além de fora dos locais tidos como referência.
73
uma perseguição como pode se verificar em outros estados, como São Paulo,76
mas a perseguição aos judeus não depende da presença dos mesmos. O anti-
semitismo aponta como judeus ou colaboradores dos mesmos todos aqueles
que se opõem aos seus posicionamentos.
Penso que, a despeito dos números serem pequenos, aspectos outros que não
estão ligados necessariamente à dimensão numérica, mas a projetos e
expectativas, possam contribuir para entender esse processo na Bahia desse
período. Nesse sentido, ressalto que a xenofobia por parte das elites baianas é,
por certo, muito importante para pensar o estado como um cenário para a
proliferação do anti-semitismo entre setores da política baiana, notadamente.
Essa xenofobia é apresentada por Aruã Lima como uma das motivações para o
anti-comunismo dessas elites da seguinte forma:
Assim, dois elementos históricos são fundamentais para
compreender a construção do anticomunismo na Bahia: 1) o
ato de silenciar as lutas subalternas a partir da propagação de
suposto apreço natural dos baianos à ordem e à cordura; 2) a
absorção, por parte de antagônicos grupos políticos de elite, de
certa xenofobia para sustentar a proteção da Bahia aos
ataques de forasteiros. (LIMA, 2010, p. 95)
Forasteiro... O anti-semita aponta sempre o judeu como tal. Se não houve uma
“filiação” das elites baianas ao anti-semitismo deu-se um terreno fértil para
suas manifestações. Além disso, a preocupação com o crescimento da AIB na
província da Bahia era constante por parte da administração de Juraci
Magalhães em sua interventoria.
76
Na edição de 19 de julho de 1934, do jornal A Offensiva, órgão oficial da AIB, é encontrada uma matéria intitulada Nós e os judeus – Autoridades israelitas: attenção!, que é uma resposta da AIB a denúncias de que os integralistas estão a perseguir os judeus no Brasil. Com um conteúdo fortemente anti-semita, onde aponta para o caráter anti-nacionalista dos judeus, mas afirmando que a luta da AIB não é contra a religião ou a raça judaica, o texto é uma resposta da AIB a essas acusações. Não tenho como afirmar que a denúncia sobre a perseguição da AIB em São Paulo é verdadeira, mas a denúncia representa indícios de que isso deve ter ocorrido, feito pelos integralistas ou não.
74
Tratarei de forma mais detida sobre a AIB e seu anti-semitismo nos próximos
capítulos. Saliento, porém, a lacuna existente na historiografia baiana sobre os
impactos das leis de imigrações da Era Vargas na Bahia. Como dito antes, os
dados disponíveis nas obras aqui trabalhadas não permitem analisar como isso
se deu a nível local. Porém, compreendendo que este capítulo visa trazer uma
análise de conjuntura a partir da relação do nacional e do local, postulando a
ligação entre a política de imigração a nível nacional com a permissividade de
um discurso anti-semita que encontrou eco em toda a sociedade brasileira.
A AIB como organização difusora do anti-semitismo à brasileira encontrou,
senão a permissão, a omissão do governo Vargas para propagar sua visão
sobre o judeu. E não só a AIB. Como apresentado acima essa visão permeou
as ações da política de imigração por parte dos órgãos oficiais, que teve o
cuidado de manter em caráter sigiloso seus objetivos, atuando a partir das
Circulares Secretas e correspondências do seu corpo diplomático.
75
CAPÍTULO III FASCISMO E ANTI-SEMITISMO. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E O
DISCURSO ANTI-SEMITA NAS PÁGINAS DE O IMPARCIAL E DO DIÁRIO
DE NOTÍCIAS
“Assim o principiante que aprendeu uma nova língua: a traduz sempre para a sua língua materna, mas só se apropria do espírito da nova língua e só é capaz de se exprimir livremente nela quando se move nela sem reminiscências e esquece nela a sua língua original.”
(Karl Marx, 18 Brumário de Luís Bonaparte)
Seria o integralismo uma forma de fascismo? Seria o anti-semitismo uma
característica primordial dos fascismos? As respostas a essas perguntas
norteiam esse capítulo no seu primeiro momento, no intuito de localizar o
debate sobre o discurso anti-semita da Ação Integralista do Brasil, na Bahia.
Pretendo levantar algumas discussões da época e outras atuais, sobre a
questão do integralismo, mas não só. Se tratei de forma específica o anti-
semitismo no primeiro capítulo, agora pretendo abordar o fascismo e sua
versão brasileira e sua elaboração anti-semita.
3.1. Sobre o fascismo O que é fascismo? Existem diversas respostas a essa pergunta, dadas por
seus elaboradores, simpatizantes, opositores. Mas o objetivo aqui não é propor
ou dar mais uma resposta e sim fazer algumas considerações acerca de
leituras e noções que norteiam o debate conceitual, obviamente sem a
pretensão de esgotá-lo, até mesmo porque não é possível, dada a
complexidade e o curto espaço proposto para sua alusão. Porém, é inevitável a
aproximação a determinadas leituras quando se pretende fazer um estudo
como ora apresento. Penso que localizar essa discussão seja expor quais os
artefatos com os quais opero e as lentes pelas quais lanço o olhar para o anti-
semitismo na Era Vargas e suas repercussões na Bahia. Parto da
compreensão da necessidade do diálogo com as perspectivas de classe para a
definição do mesmo que, de certa forma, orientam a leitura que faço desse
fenônemo.
76
Algumas definições surgem no bojo dos acontecimentos e apontam para
algumas questões. Cronologicamente, entre os autores utilizados aqui, está
Antônio Gramsci, marxista italiano e ferrenho adversário do regime fascismo.77
De antemão, aponto para as limitações no trabalho com este autor, já que
apenas utilizo dois de seus textos sobre o assunto. Gramsci talvez tenha sido
um dos contemporâneos que mais elaboraram sobre o fascismo, já que desde
antes de sua prisão já realizava diversas análises sobre esse movimento. Das
obras publicadas no Brasil, encontram-se referências ao movimento fascista
em seus Escritos Políticos, Cadernos do Cárcere e Cartas do Cárcere, todas
lançadas no Brasil pela editora Civilização Brasileira. Portanto, para uma
análise mais completa de sua leitura sobre o fascismo seria necessária uma
leitura minuciosa dessas obras.
Antes de entrar no texto de Gramsci, propriamente dito, algumas
considerações de sua discussão sobre o fascismo. Para Marcos Del Roio, é
importante localizar o propósito da obra para compreender seus objetivos.78 O
comunista sardenho fizera sua análise não com objetivos acadêmicos, mas sim
de um militante que combatia o fascismo. Todavia, não é um texto panfletário,
já que ele teve uma preocupação metodológica de buscar sempre
compreender seus objetos de estudos a partir de leituras e fontes que lhe
permitisse uma análise processual e embasada. Como diz Del Roio: “Gramsci,
do cativeiro, analisava o fascismo dentro de um complexo quadro histórico,
envolvendo não só a Itália, mas a revolução francesa e os impulsos criativos
presentes no capitalismo do seu tempo.” (DEL ROIO, 2001)
Mas não só do cativeiro. Gramsci analisou o movimento fascista antes mesmo
de ser preso. Em 11 de março de 1921, ele já alerta para os perigos do
fascismo, afirmando que esse regime é uma opção aos setores médios da
sociedade que buscam uma solução fácil para seus problemas sociais e
econômicos, pela via armada e repressão, e denunciando o caráter ilusório,
77
Gramsci foi uma das vítimas do fascismo na Itália, tendo ficado preso até próximo de sua morte, em 1937. 78
DEL ROIO, Marcos. Gramsci e o fascismo. Acessado em 24 de junho de 2011: http://www.ifch.unicamp.br/mundosdotrabalho/tex/delroio.pdf
77
citando o exemplo da Espanha, rico financeiramente e pobre em mercadorias e
energias produtivas. Além disso, esse autor também denuncia a eleição dos
trabalhadores organizados, da cidade e do campo, como reais ameaças à
economia, por parte dos fascistas e de seus seguidores. É a eleição de um
espantalho, característica presente nos fascismos, para desviar do real inimigo:
a burguesia, o capitalismo e seus gestores.79
August Thalheimer, marxista alemão, é o segundo a trazer reflexões de suma
importância sobre o fascismo. Em primeiro lugar ele se preocupa em não
realizar uma análise superficial sobre o objeto. 80 Para isso o comunista alemão
se utiliza do legado de Marx e Engels, mais detidamente as análises de Karl
Marx realizadas sobre o 18 de Brumário e a Comuna de Paris, utilizando-se do
conceito de bonapartismo como principal método de análise para se pensar em
como governos autoritários burgueses se compõem e suas características.81 A
contra-revolução impetrada por Luís Bonaparte na França seria uma
característica comum a períodos nos quais a burguesia sacrificava seu poder
político em prol da manutenção de seu poder social. O bonapartismo, então,
surge como uma alternativa à manutenção da ordem, tendo como discurso
uma exacerbação do que o autor chama de princípios de nacionalidade e um
discurso anti-burguês, que faz com que setores do proletariado, já incrédulos
em relação à burguesia, vejam na solução apontada pelo autoritarismo a
alternativa para a crise política (e em alguns casos econômica) criada pela
burguesia; ao mesmo tempo que em nenhum momento toma atitudes contra a
classe dominante, pelo contrário, a beneficia e garante à classe o direito de
explorar. O fascismo carregaria essas características. Em resumo:
Da mesma maneira encontram-se concordâncias na situação da luta de classes da qual se origina aqui a forma bonapartista, ali a forma fascista de poder de Estado. No caso do fascismo italiano, como no caso do bonapartismo, um assalto fracassado do proletariado, com a conseqüente
79 GRAMSCI, Antonio. Itália e Espanha. In: Escritos Políticos, vol. 2. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 2004; E do mesmo autor, O povo dos macacos. In: Escritos Políticos, vol. 2. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2004.
80 O texto que me sirvo aqui é Sobre o fascismo, escrito por Thalheimer em 1930. A bibliografia
completa da obra encontra-se na referência bibliográfica. 81
As obras de Marx são O 18 de Brumário de Luis Bonaparte e A Guerra Civil em França.
78
decepção da classe operária, a burguesia esgotada, confusa, sem energia, procurando por um salvador que lhe consolide o poder social. Concordância também na ideologia, centrada em torno da idéia “nacional”, a luta aparente contra a corrupção parlamentar e burocrática, investidas simuladas contra o capital, etc. Traços semelhantes quanto aos “heróis” do golpe de estado. (THALHEIMER, 2010, p. 62)
As diferenças também são apontadas por Thalheimer. Elas estão ligadas ao
local e tempo histórico de cada um dos regimes. As bases míticas nacionalistas
têm origens diferentes, refletindo no próprio título de seus líderes, sendo
Imperador dado a Luis Bonaparte em lembrança aos tempos de ouro de seu
tio, Napoleão; já Benito Mussolini busca está referência mítica no Duce, de
acordo com o autor, ligada aos tempos dos césares. Mas, mais do que isso,
Thalheimer aponta para as diferenças na conjuntura da luta de classes e do
próprio capitalismo.
Mais importantes são as diferenças devidas às modificações do caráter geral do capitalismo. O terceiro Napoleão agia ainda na época do capitalismo da livre concorrência e das revoluções burguesas inacabadas na Itália e Alemanha. A fama [reichtstitel] de revolucionário que Napoleão I por certo tempo teve direito, e que Napoleão III procura explorar, operava agora contra ele. Na guerra contra a Itália ele atrai o movimento de libertação italiano, para logo em seguida rejeitá-lo, na medida em que, no interesse de suas conquistas dinásticas, o abandona depois de breve apoio. Na guerra franco-alemã choca-se diretamente com os interesses revolucionários da Alemanha por uma unidade nacional e se despedaça em conseqüência. A guerra de conquista dinástica que, movida pela lenda napoleônica e pelas contradições internas do sistema, precisa conduzir, está fora de tempo: tardia por não representar mais nenhum princípio revolucionário; precoce, por não poder ainda representar o princípio imperialista no sentido moderno, na falta de bases econômicas adequadas. A política externa de Mussolini, pelo contrário, é desde o início baseada e dirigida de forma imperialista, no sentido moderno da palavra. Ela é assim “moderna” mesmo que mascarada como antiga, porém desde início, abertamente reacionária. Ela tem que se despedaçar na contradição, de um lado, entre os objetivos exagerados que se coloca e, por outro lado, os meios escassos que dispões para a sua execução. Além disso, a contradição entre a conformação e a estrutura social da organização militar, correspondente à discrepância entre a necessidade de demolir todas as classes da sociedade para
79
viver às suas custas e as necessidades da condução da guerra imperialista. (THALHEIMER, 2010, p. 65-66)
Portanto, mesmo apontando para as semelhanças, Thalheimer consegue
ressaltar as diferenças. O equívoco da análise do marxista alemão, que
escreveu antes da ascensão de Hitler, foi achar que o fenômeno fascismo era
apenas característico de países de desenvolvimento capitalista atrasado, como
Itália, Polônia, Bulgária e Espanha. (THALHEIMER, 2010, p. 55-56). O nazismo
mostrou-se uma realidade para a Alemanha, de desenvolvimento capitalista
avançado, demonstrando que não havia um vínculo entre as características
feudais, visto pelo autor nos países acima citado, e uma conjuntura favorável
para a ascensão do nacional-socialismo. Em O Imparcial, de 03 de fevereiro de
1933, é publicado, na primeira capa, matéria oriunda da Alemanha, com o título
Política Alemã, tendo entre as fotos a de Ernst Thalmann, denominado chefe
do Partido Comunista, onde se encontra a seguinte matéria:
GUERRA AOS COMUNISTAS Berlim, 2 (O Imparcial) – Acredita-se que, em vista das graves ocorrências provocadas pelos comunistas, em luta constante contra os partidários de Hitler, o governo alemão resolverá fazer guerra de morte aos comunistas.82
O búlgaro Geórg Dimitrov foi secretário-geral da Internacional Comunista
(KOMINTERN) entre os anos de 1934 e 1943, tendo escrito A unidade operária
contra o fascismo como um informe ao VII Congresso Mundial da
KOMINTERN, em 02 de agosto de 1935. Dimitrov havia sido preso em 1933 na
Alemanha nazista, acusado de ter posto fogo no Reichtag (prédio do
parlamento alemão), mas foi repatriado pela União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas no mesmo ano.83 Em seu informe sobre o fascismo na Europa, o
revolucionário búlgaro traz alguns apontamentos sobre o que seria para ele o
fascismo e aponta, como encaminhamento do Congresso, a criação de frentes
únicas anti-fascistas. Em que pese os acordos posteriores entre Stálin e Hitler,
o relato de Dimitrov traz diversas análises relevantes.
82
Grifo meu. 83
Informações retiradas de http://pt.wikipedia.org/wiki/Georgi_Dimitrov e http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/d/dimitrov_georgi.htm
80
Uma delas é de que a ascensão do fascismo ao poder é a substituição de
formas de governos burgueses. Nesses momentos a burguesia abre mão de
sua democracia em prol de uma ditadura, chamada pelo autor de terrorista.
Isso aproxima a análise de Dimitrov à de Thalheimer no que se refere à perda
de poder político da burguesia em nome da garantia do poder social.84
Acrescenta-se a essa análise a forma como o fascismo influencia as massas,
que para o comunista búlgaro se baseia na exploração de preconceitos
arraigados e também no apelo às questões mais imediatas para as massas,
como soluções para problemas sociais. Nisso o fascismo apela para um
discurso aparentemente anti-capitalista, o que colocam fascistas e burgueses
em campos opostos, aos olhos dessas massas. (DIMITROV, 1978, p. 13)
O fascismo atrai, no interesse dos setores mais reacionários
da burguesia, as massas decepcionadas que abandonaram os
antigos partidos burgueses impressiona estas massas pela
violência de seus ataques contra os governos burgueses, por
sua atitude irreconciliável com os antigos partidos burgueses.
(DIMITROV, 1978, p. 14)
A citação acima dialoga com outro autor que tratarei mais à frente: Wilhelm
Reich. O relato de Dimitrov tem um caráter panfletário, na medida em que se
trata de um informe dado a um Congresso para que se encaminhem
deliberações. Apesar do panfletarismo, tomo este como um texto de suma
importância, dentro de suas limitações, para a compreensão de como os
contemporâneos viam o fascismo.
Outro autor contemporâneo ao fascismo que deixou seu legado foi o
revolucionário russo Lev Davidovich Bronstein85, conhecido como Leon Trotsky.
Em alguns escritos ele levantou a discussão sobre o fascismo, normalmente
notas panfletárias ou respostas a cartas, jornais ou pedido de organizações
revolucionárias que se opunham à orientação de Stálin na URSS. Trotsky foi
84
A base dessas interpretações pode ser encontrada na obra em que Karl Marx analisa a ascensão de Luís Bonaparte, 18 de Brumário. 85
Lev e Leon significam Leão; Davidovich significa Filho de David, em russo; Bronstein é sobrenome materno de Trotsky, que por sua vez é apelido. Trotsky é judeu de nascimento mas nunca professou a fé.
81
banido da URSS em 31 de janeiro de 1928, após expulsão do Partido
Comunista e exílio forçado dentro do próprio país soviético, anos antes. Em
seu banimento fugiu constantemente da perseguição de Stalin nos países em
que ficou exilado, tendo como última residência o México, onde foi morto por
um agente de stalinista. Nos anos pesquisados no jornal O Imparcial era
comum encontrar notas sobre Trotsky falando de sua decadência política,
associando, constantemente, sua figura ao de judeu errante ou como prova da
conspiração judaico-comunista. Uma nota do dia 15 de janeiro de 1933, ilustra
bem essa questão:
COMO O JUDEU ERRANTE - Trotsky quer ir para o Uruguay –
Montejideo [sic], 14 (A.B.) – Segundo se noticia o ex-comissário do povo da União Soviética, Leon Trotsky, que se encontra exilado em Stambul, estaria providenciando [ilegível] permissão do governo uruguaio afim de transferir residência para esta capital.
Na edição de maio de 1937 da revista integralista ANAUÊ86, de circulação
nacional, consta uma charge contendo a imagem de Trotsky, transpondo um
muro e se dirigindo a uma paisagem onde se vê homens com armas que estão
sentados e conversam em cima de várias caveiras. Na legenda se lê: “Quando
o Soviet transpõe as muralhas do Kremilin”. Odiado por Stálin e seu grupo87 e
pelos fascistas, quando do seu exílio no México, Trotsky é mais um
contemporâneo do fascismo a contribuir sobre sua definição.
Leon Trotsky considera o fascismo como uma forma de imperialismo.88 Para
provar isso, ele argumenta a partir do expansionismo ao estilo imperialista
seguido pelos países fascistas, como a Alemanha, em relação à Europa, a
Itália, em relação ao norte da África e o Japão, em relação ao leste da China.
Afirma ainda que, se não fosse a “intromissão” desses países na política
86
ANAUÊ, maio de 1937, caixa MR/5509 – Arquivo Edgard Leuenroth /Universidade Estadual de Campinas (AEL/UNICAMP) 87
Para saber mais conferir o livro de Trotsky, escrito em sua própria defesa após ser expulso da URSS: Revolução Desfigurada. Lisboa: Antídoto, 1977. 88
Os textos que trabalhei aqui são os seguintes: Combater o imperialismo para combater o fascismo e O fascismo e o mundo colonial, de agosto e 21 de setembro de 1938, ambos contidos em Escritos latino-americanos.
82
imperialista de países como França e Inglaterra, não haveria problemas entre
essas nações, portanto, esses imperialismos “de primeira linha” foram
coniventes à ascensão do fascismo na Europa. Nesse sentido, se aproxima
das análises dos autores vistos até aqui.
Mas Trotsky diz que os fascistas dos países “atrasados”, como os da América
Latina, surgem como expressão de dependência servil ao imperialismo. Ao que
parece essa afirmação tem muito mais um caráter de bandeira política do que
uma análise mais detida sobre o assunto. Tanto Francisco Franco na Espanha,
como Antônio Salazar em Portugal, ou mesmo Plínio Salgado, no Brasil,
abraçam a defesa de um mito nacionalista e elaboram suas teorias, mesmo
que com características muito próximas, de forma a defender sua originalidade,
dialogando com as necessidades dos locais onde existiram, assim como foi nos
países que compuseram o Eixo.89
Por último, trago a contribuição do psicanalista Wilhelm Reich, já citado no
primeiro capítulo. Em Psicologia de massas do fascismo Reich faz uma rica
análise sobre os mecanismos de controle psicológico do fascismo, tendo
publicado seus estudos, pela primeira vez, em 1933. Tratei de alguns aspectos
dessa obra no capítulo sobre anti-semitismo. O que importa agora são as
aproximações deste autor com os autores acima. Ele trata mais
especificamente o fascismo alemão e pincela acerca do fascismo italiano.
Reich conclui que o fascismo seduz diversas camadas sociais e busca
explicações no campo da psicanálise para compreender esse processo.
Portanto, o êxito de Hitler não pode ser explicado pelo seu papel reacionário na história do capitalismo, pois este, se tivesse sido claramente apresentado na propaganda, teria obtido resultados opostos aos desejados. O estudo do efeito produzido por Hitler na psicologia das massas parte forçosamente do pressuposto de que um führer ou o
representante de uma idéia só pode ter êxito (se não numa perspectiva histórica, pelo menos numa perspectiva limitada) quando a sua visão individual, a sua ideologia ou o seu
89
Sobre Salazar e Franco, cf. SOARES, João Bernardo. Labirintos do fascismo. 1998
83
programa encontram eco na estrutura média de uma ampla camada de indivíduos. (REICH, 1988, p. 34, grifos do autor)
O trecho acima explica o fenômeno fascismo não pelo seu líder, mas explica
seu líder pela necessidade do fenômeno. Como se para a concretização do
fascismo fossem necessárias duas coisas para que sua aceitação se
consolidasse:
1.º) Que houvesse um setor importante da sociedade que acreditasse na
necessidade de um salvador. Esse setor teria que ter uma posição tática dentro
da luta de classe que transitasse tanto entre a burguesia, quanto entre os
trabalhadores; seria a pequena-burguesia;
2.º) Para que se garantisse a influência diante desse setor, então, seria
necessário um posicionamento ambíguo em relação às classes dominantes. Ao
mesmo tempo em que se tinha um caráter de exaltação da classe trabalhadora
e a necessidade de uma revolução contra os capitalistas, se garantia à
burguesia os seu direito enquanto classe economicamente dominante. (REICH,
1988, p. 35)90
Corroborando com Reich, Plínio Salgado se mostra um defensor da classe
média, em O que é Integralismo?, obra publicada pela primeira vez em 1933 e
uma das leituras obrigatórias na formação dos integralistas, sugerida tanto na
imprensa Sigma, como no jornal A Offensiva e na revista ANAUÊ:
O ódio de uns e de outros [a grande burguesia e as “extremas esquerdas” do proletariado], contra as mentalidades cultas e contra o espírito elevado e nobre das classes medias, não tem limites. Já um socialista hespanhol exclamou no auge da cólera: “a pátria do proletariado é onde está seu pão: só a classe media tem pátria”. Não se trata, porém de classe média, e sim da intelligencia e da cultura, da moralidade e do espírito que cream a dignidade, determinando que esta paire acima das luctas mesquinhas,
90
No livro Por que ser anti-semita? a feminista e anarquista Maria Lacerda de Moura traz um telegrama em que Hitler “abre mão” de seu anti-semitismo e busca financiamento para seus projetos junto ao banqueiro alemão judeu Barão de Schroeder. Tratarei de forma mais detida o assunto no último capítulo.
84
consciente dos superiores destinos da creatura humana. (SALGADO, 1933, p. 49-50)
O psicanalista austro-húngaro aponta para uma alegoria presente no discurso
fascista. A nação é tratada como família e a pátria como mãe. Para que a
“mãe” não tenha filhos doentes é necessário que não gere filhos de portadores
de doenças, como a sífilis e com isso não se contamine a “família”. Doenças
sexualmente transmissíveis estão sempre presentes nesses discursos, onde os
indesejáveis sempre são relacionados como essas doenças.
Quando fora promulgada uma lei que estabeleceu a execução de um decreto
obrigando portadores de doenças hereditárias ou incuráveis a serem
esterelizados o correspondente especial do jornal O Imparcial, Martins Castello,
escreveu um artigo sobre o tema que saiu em primeira página na edição do dia
12 de janeiro de 1934. O relato de Castello aponta os “enfermos” que seriam
esterelizados, como portadores de “loucura maníaca, a imbecilidade congenital,
a surdez hereditária, a dansa de São Guido, a schyzophremia [sic], a paralysia
geral hereditária, epilepsia e qualquer grave deformação corporal.”
Continuando a matéria o correspondente relata o caso em que um judeu,
chamado Martins Fuchs, teve filho com uma “ariana”. Esse caso foi julgado
pela Corte de Berlim e os juízes Von Eckstein e Von Laube condenaram Fuchs
a dez anos de prisão. Diante disso Martins Castello diz que, diante de “uma
decisão que é verdadeiramente edificante”,91 não sabe se os judeus estão
incluídos entre aqueles que se enquadram na lei, mas que deveriam estar.
No mesmo jornal citado acima, a 29 de janeiro de 1933, o tema retorna às suas
páginas na coluna Nota e Tópicos:
A ESTERELISAÇÃO É uma medida que, sem dúvidas, tem revolucionado os círculos sociaes e, sobretudo, scientificos do mundo civilizado, essa que Adolf Hitler acaba de estabelecer na Allemanha, tornando obrigatória a esterelisação para todos aquelles que forem portadores de doenças capazes de influir maleficamente, pela procreação, na eugenia da raça.
91
O ideal racista na Allemanha de Hitler, in: O Imparcial, 12 de janeiro de 1934.
85
Evidentemente, dentre os mais avançados projectos do chanceler nazista é este o de maior projeção. Tem sido muito commentada a iniciativa do chefe nazista. No Brasil muitas tem sido as cogitações despertadas pela mesma, entrando, por fim, como assumpto obrigatório em os commentarios scientificos do momento. Várias autoridades abasiladas têm opinado, expendendo conceitos ao seu modo de vêr, em torno da esterilisação. Todo indivíduo portando de uma moléstia transmissível por hereditariedade, é obrigado, por lei, a submetter-se a uma interveção cirúrgica que o deixa impossibilitado para procrear. A syphilis é, portanto, um dos males incluídos neste ról. A providência tomada pelo governo hitlerista é, realmente, violenta. E, em nosso paiz, seria inexeqüível. Havia de limitar muito o número dos capazes...92
O texto é apócrifo já que é uma coluna em que essas notas são de autoria do
próprio jornal. A ironia é latente e a finalização indica que o autor do texto
considera a maior parte dos brasileiros como portador dessa doença e insere a
sífilis na lista das doenças passíveis de indicação para esterilização e que,
imagino, deva ter uma conotação semelhante ao dos nazistas, tendo em vista a
continuação do texto e o tom de ironia, já apontado.
Exposto os autores, pode-se verificar a relação entre si. Todos eles apontam
para a relação entre os fascismos e a burguesia, ou seja, o discurso anti-
capitalista é apenas uma máscara para atrair os setores críticos ao capitalismo.
Essa máscara se torna necessária quando o capitalismo gera crises em que
surgem protagonistas, no campo da política, que propõem sua superação
perante a derrubada da burguesia do poder. Dimitrov aponta que os governos
democráticos burgueses que precedem o fascismo preparam sempre o terreno
para a chegada destes ao poder. Penso que é possível ir além. Governos com
características autoritárias normalmente são precedidos de governos que
preparam esse teatro em que encenam uma mudança tática na forma de
governo, no regime, mas não no sistema e nem seus protagonistas.
92
Grifo meu
86
Mas, será que o integralismo entra nesse rol de organizações fascistas?
Gilberto Vasconcelos, autor de A Ideologia Curupira tem a obra prefaciada por
Florestan Fernandes. O sociólogo da USP menospreza o Integralismo,
colocado-o como algo vazio e afirmando, por diversas vezes, a reduzida
importância que teve a AIB para a história do país, não tendo tido uma
relevância social e política. Ele ainda, afirma o seguinte:
Os que pensam que é importante estudar o “discurso integralista” e o integralismo por causa do presente comentem um equivoco. Não superamos essa conturbação da dominação de classe burguesa e da dominação imperialista com um reacionarismo exarcebado e, o que é mais grave, o totalitarismo de classe consolidou-se, por uma via moderna: o Estado autocrático burguês mostra muito bem os compassos dessa modernidade e suas conseqüências destrutivas. Contudo, o integralismo é uma página virada da história (se é que merece tamanha consideração). (FERNANDES, prefaciando VASCONCELOS, 1979, p. 14, grifo do autor)
O trecho acima demonstra o grau de desprezo que Fernandes dá à AIB.
Gilberto Vasconcelos, se não descarta a importância do integralismo no Brasil,
rejeita a sua originalidade. O autor busca, durante todo o texto, provar que o
discurso integralista era descolado de sua realidade, como se fosse uma
ideologia meramente transplantada da Europa e implantada, de forma
anacrônica, no Brasil. Em uma dessas tentativas ele diz que uma prova disso é
que o discurso integralista reivindicava, assim como no fascismo europeu, que
a necessidade espiritual estava acima da material. Para o autor, numa
realidade como a do Brasil, em que a população vivia em miséria e
subdesenvolvimento, isso era destoante. No entanto, nos locais onde o
fascismo chegou ao poder a população vivia em condições de miséria. Na
Alemanha e Itália, principais representantes do fascismo no período, a
população sofria com a escassez de alimentos, devido às sanções pós-
Primeira Guerra e crise dos anos 1920. Essa crise foi um dos elementos para
que Mussolini e Hitler chegassem ao poder em seus países. Os textos
analisados acima, de contemporâneos, demonstram isso muito bem e ainda
aportam demonstrando os aspectos burgueses dessa contra-revolução, que
87
buscava controlar os elementos de ruptura com o capitalismo por parte das
classes subalternizadas e garantir o controle econômico da burguesia.
Outro aspecto contrário ao integralismo é seu vínculo nítido com a religião.
(VASCONCELOS, 1979, p. 33-38) O fascismo europeu, para Vasconcelos, era
anti-clerical. Porém, se houve uma superposição do Estado sobre a religião, o
catolicismo foi inspiração tanto para o nazismo como para o fascismo italiano.93
No jornal baiano Diário de Notícias (DN), na coluna Telegrammas de toda a
parte chegou a informação de que Mussolini solicita da Igreja Católica auxílio
contra as sanções impostas pela Liga das Nações referentes a invasão italiana
à Abyssinia (Etiópia)94 em 1935, o que é sucedido pelo pedido abstrato de paz
por parte da Igreja Católica.95 Paz na Europa ou no mundo e, portanto, contra a
invasão? O texto publicado no jornal não deixa isso claro. Porém, em Cadernos
do Cárcere, Gramsci aponta para essa relação entre burguesia, Igreja Católica
e fascismo como algo dado.96
Gilberto Vasconcelos também aponta a visão integralista como estetizante,
“humanista” e contemplativa (VASCONCELOS, p. 36). Sobre o humanismo e
espiritualismo de sua doutrina, o próprio Plínio Salgado, em O que é
integralismo?, aponta para como deve ser tratada as duas questões. 97 Tratarei
mais sobre os intelectuais, suas obras e a AIB no próximo capítulo. Se é
verdade que os integralistas eram estetizantes (pois que criavam uma
determinada estética no sentido de convencer em relação ao comportamento
moral, social ou mesmo de vestimentas) e humanistas (na medida em que se
reivindicavam ao lado das idéias de valorização do ser humano), as ações da
AIB não eram em nada contemplativas e incidiam diretamente no
comportamento, vivência e prática das pessoas.
93
Sobre o nazismo conferir REICH, 1988. 94
Os jornais se referem ao país com os dois nomes, não havendo um padrão. 95
Jornal Diário de Notícias de julho a novembro de 1935. 96
Cf. em especial, os volumes 4 e 5, que tratam de forma mais detida sobre a Ação Católica e sobre Risorgimento. Ver também: DECOL, op. cit.
97 SALGADO, 1933, p. 17. Mas não só nessa página. A brochura é toda voltada para
discussões espiritualistas e para demarcar as visões de mundo do Integralismo e é apresentada, como discutirei de forma mais detida no próximo capítulo, de forma bastante objetiva e com um linguajar acessível.
88
Existem diversos aspectos que sugerem essa influência na forma como as
pessoas deveriam se comportar. As caravanas por todo o país, inclusive no
interior, que foram implementadas pela a AIB informa a respeito de suas
concepções comportamentais e, porque não, estéticas. Ressalta-se aqui que o
próprio Gilberto Vasconcelos aponta, quando faz sua análise da apologia ao
curupira por parte dos integralistas, que havia uma valorização do que vem do
interior. O que vinha de fora, pelo litoral, era estrangeiro e contaminava a
“pureza” da brasilidade, representada pelo que vinha da mata, do interior, etc
(VASCONCELOS, 1979, p. 21). Nessas localidades a AIB procurava dialogar
com a realidade local. Esse tipo de relação sugere que houve uma repercussão
positiva em prol da Ação, já que os camisas verdes, como também eram
conhecidos os integralistas, alcançaram 1.352.000 membros em todo o país,
chegando a 1.843 núcleos, em dezembro de 1935.98
Na Bahia o integralismo chegou a ter, segundo a própria organização em O
Imparcial, de 21 de maio de 1936, 46.000 integrantes, distribuídos em mais de
300 núcleos municipais e distritais, além de ter conseguido eleger 65
vereadores, além do prefeito da cidade de Santa Inês. Além disso, a AIB
promovia diversas ações que a aproximavam da população, como a campanha
de arrecadação de fundos para as famílias atingidas pelas chuvas do mês de
maio de 1935 na cidade de Salvador.99
Outro equívoco do autor é ver os intelectuais integralistas como meros
reprodutores de ideologias hegemônicas, no caso o fascismo.
(VASCONCELOS, 1979, p. 43). Essa afirmação se baseia nas formulações de
que o Brasil seria um país de capitalismo dependente. Isso geraria uma leva de
intelectuais que traziam modelos de economia, política e moral, de forma
pronta e acabada, do exterior. Nesse ponto o autor resgata e reivindica as
teorias de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Florestan Fernandes. No
entanto, não existem exportações de ideais prontas e acabadas, seria anti-
98
Revista Anauê!, n.º 6, janeiro de 1936. Além dos dados de crescimento dos núcleos, no mesmo número é feita uma análise de crescimento dos votos na AIB em todo o país, projetando para 280.000 votos para o período entre 1935 e 1936. 99
O Imparcial, edições do dia 25 de maio de 1935 e do dia 06 de junho de 1935, dentre outras do mesmo período.
89
dialético pensar dessa forma. Penso que a inserção do Brasil e da América
Latina no mundo ocidental eurocentrado se dá a partir da imposição pela
forma, num primeiro momento; mas para garantir a sua conformação nesse
plano foi necessário o diálogo com a realidade local, o que quebra com a idéia
de uma relação meramente reprodutora em qualquer tempo ou local. 100
Para indicar o contrário, Cristiano Cruz Alves utiliza o historiador Ricardo
Benzaquen de Araújo que aponta para as características que encaixariam o
integralismo brasileiro como totalitarismo.
Sua tentativa se fundamentava no exame do integralismo com as devidas distinções em relação ao pensamento conservador. A primeira e mais importante é o espírito revolucionário que o integralismo carrega consigo ao contrário da pura e simples crítica que o conservadorismo faz em relação ao capitalismo. Ao colocar o integralismo um pouco distante do pensamento conservador, Araújo propõe o uso do conceito de totalitarismo. Dois dos elementos constitutivos do totalitarismo, pensados por Araújo, estariam presentes para explicar a doutrina integralista: primeiro, a absolutização da participação e segundo a identificação da noção de igualdade com o de uniformidade. A igualdade pensada por Salgado, e aí está uma das principais inovações no âmbito das idéias de direita no Brasil, dentre elas o esparso e mal definido conservadorismo, é a dissolução da diferença e a negação do conflito. Já o conservadorismo procura resguardar alguns privilégios sociais e um grau de autonomia entre as instâncias sociais e políticas. (MAIO apud ALVES, 2008, p. 51)
De fato, Plínio Salgado e os outros intelectuais do integralismo eram originais
em suas elaborações, tendo constantemente o cuidado de trazer sua atuação
política para a realidade brasileira e sempre buscar uma linguagem que fosse
facilmente assimilada pelos não-letrados. No início de O que é integralismo? o
chefe integralista se preocupa em apontar para quem ele dirige o seu texto,
apontando para a necessidade de transformar o discurso difícil da
intelectualidade em uma linguagem que possa atingir “as massas populares...”.
(SALGADO, 1933, p. 13).
100
Discussões desse tipo estão contidas em obras como Os donos do poder, de Raimundo Faoro; A Heresia dos Índios, de Roberto Vainfas; A Conquista da América, Tsvetan Todorov; Dialética Colonial, Alfredo Bosi; e Liberata, de Keila Grinberg.
90
Outra preocupação era se diferenciar das “doutrinas européias”, como o
fascismo e o nazismo. No jornal O Imparcial, de 21 de julho de 1935, em
matéria intitulada O Integralismo e o Extremismo: “O Integralismo é uma
concepção philosofica” – affirma o sr. Plínio Salgado – “que engendra um novo
systema salvador dos princípios democráticos, o líder integralista distingue,
dessa forma, o Nazismo, o Fascismo e o Integralismo:
Desde o primeiro dia tenho dito e repetido que o Integralismo é completamente diferente do Fascismo e do Hitlerismo, porque a nossa missão é muito maior. Na Itália e na Alemanha existia anteriormente o “espírito nacional consciente”, existia uma nação. No Brasil nada disso existia. Cumpre crear a Nação. Crear a nação é fazer coisa absolutamente nova, lançar os lineamentos de uma civilização também nova. Não temos aqui os resíduos das civilizações mortas. Não temos aqui de carregar, como Zarathustra, um cadáver às costas. O povo é creança, o paiz é jovem, immensas as reservas de energias. É preciso crear a Nação. Essa obra exige ordem. Na anarchia nada se fará.
Ao mesmo tempo em que se coloca como negativa a não existência de um
“espírito nacional consciente” se torna positivo não se carregar “os resíduos
das civilizações mortas”, já que, assim, existiria no Brasil a possibilidade da
originalidade. Na continuação da matéria Salgado ainda vai afirmar que o
integralismo é uma milícia de ALMAS e não de ARMAS, dizendo que as tarefas
postas para a AIB não eram para o presente e sim para o futuro. Em tom
profético ele diz que: “E se alguém não entender isto, guarde para seus netos
leiam e elles entenderão.”
Mas é importante entender a conjuntura em que ele escreveu essas
considerações. Eram tempos de Lei de Segurança Nacional, chamada pelos
integralistas de Lei Espantalho,101 que combatia os extremismos políticos,102
101
O Imparcial, 29 de janeiro de 1935 (matéria de capa) 102
Após o Levante Comunista de Novembro de 1935, no Rio de Janeiro, no Recife e em Natal, Plínio Salgado escreve sucessivos textos em que sugere que a Lei de Segurança Nacional especifique como extremismo apenas o comunismo. Em O Imparcial, de 13 de dezembro do mesmo ano o chefe do integralismo escreve um artigo intitulado A Imperiosa Definição (Com vistas ao sr. presidente da República e ás altas patentes do Exército), em que formaliza essa sugestão, visando inibir as ações das polícias estaduais contra a AIB. Aqui na Bahia o delegado auxiliar, tenente Hannequim Dantas, declara em entrevista dada ao Diário de Notícias de 05 de
91
sem uma definição clara do que isso seria exatamente. E esse não era um
receio em vão. Governos, como o de Juracy Magalhães, na Bahia, e o de
Nereu Ramos, em Santa Catarina, criaram medidas de combate ao
integralismo. Cristiano Alves afirma que a perseguição do governo baiano se
deu por diversas razões ligadas ao clima de instabilidade suscitados pela AIB
em todo o Estado (ALVES, 2008, p. 58).
Já Patrícia Carvalho (2005) aponta para um medo em relação ao crescimento
político da AIB e às simpatias à organização por parte de seus opositores. Não
era à toa esse receio, já que o deputado autonomista Rafael Jambeiro, em
notícia divulgada pelo jornal Diário de Notícias de 02 de dezembro de 1935,
teria proposto uma homenagem da Assembléia Legislativa da Bahia à AIB que,
segundo o deputado estadual havia dado apoio a Vargas no combate ao
comunismo. Em Santa Catarina o mesmo jornal noticia, em 13 de setembro de
1935 que o governador do estado estaria apavorado com os integralistas. Em
29 de abril de 1936, num discurso de saudação ao interventor de Sergipe,
Eronildes de Carvalho, Juracy Magalhães expõe seu posicionamento em
relação ao que considerava extremismos.
Dos triunfos fugazes da barbárie contra o direito, da força contra a majestade da lei, obtidos em nações de formação étnico-históricas inteiramente díspares da brasileira, ousam, as velhas cassandras indígenas, inferir conclusões favoráveis aos seus reacionários objetivos clorofilados, ou à tentativa impatriótica de subjugação do Brasil aos internacionalistas interesses vermelhos. Esquecem-se, todavia, que esses surtos se verificaram como fenômenos esporádicos, determinados por condições específicas, assumindo até, em alguns casos, o significado patriótico de uma ocorrência de salvação nacional. (...) Tudo que há de bom e útil nas doutrinas extremistas pode e deve ser incorporado, como em grande parte incorporado já está, ao regime brasileiro, de vez que a Democracia oferece a elasticidade necessária à marcha evolutiva de nossa civilização.103
agosto de 1935, portanto, antes do Levante, que aguarda apenas autorização para o fechamento da AIB no estado da Bahia, já que para ele os integralistas seriam tão extremistas quanto os comunistas da Aliança Nacional Libertadora. 103
MAGALHÃES, Juracy. Pregação Democrática. In: Minha Vida Pública na Bahia. Livraria José Olympio Editora. Salvador. 1957. p. 97. Grifos meus, em que as palavras grifadas dão ênfase aos elementos indígenas reivindicados pela AIB e a cor da farda dos mesmos, respectivamente.
92
Se os integralistas se defendiam, afirmando que não eram extremistas
violentos, nos seus escritos vemos um discurso diferente.
O mais inflamado deles surge do integralista cearense Gustavo Barroso. Na
obra Brasil: Colônia de Banqueiros, ele finaliza um de seus capítulos com um
texto de conteúdo fascista, em que recorre a um mito fundador, ligado à idéia
de uma Nação como autêntica comunidade humana perfeita, onde se lê o
seguinte:104
Busquemos a um século de distância as palavras do Príncipe-Regente D. Pedro no seu Manifesto de 6 de agosto de 1822 e ensinemos a mocidade a repeti-las, cheia de fé e de entusiasmo: “Não se ouça, entre nós outro grito que não seja UNIÃO... Formem todas as nossas províncias o feixe misterioso que nenhuma força pode quebrar!” É a profecia do fascio, do feixe da união, do fascismo salvador, que a voz da nossa História nos faz dos horizontes do Passado, para que possamos caminhar unidos e fortes para os horizontes do Futuro! (BARROSO, 1936, p. 140)
Aos que buscam desvencilhar o integralismo do fascismo esse texto serve para
uma reflexão, no mínimo, contrária. Ao discurso de que o integralismo pregava
uma revolução nas almas e não de armas, a prova de que esse discurso servia
para essa conjuntura e para diferenciar-se do discurso dos comunistas de
tomada do poder. O próprio Plínio Salgado, na obra já citada, fala dos planos
de ações violentas. No trecho que apresento a seguir, Salgado demonstra mais
uma característica fascista em seu projeto. Ele defende uma ação enérgica
contra os revolucionários de esquerda, ao mesmo tempo em que mascara um
ataque à burguesia.
9.º) – Reprimir o communismo, não pelos methodos de violencias da policia liberal-democratica, que hypocritamente massacra os pobre proletários, emquanto protege os communistas de collarinho, mas pela acção enérgica contra os responsáveis intellectuaes na propaganda desnacionalizadora do bolchevismo, inimigos da Pátria, os quaes, como tal, devem
104
Sobre o mito fundador e a Nação como autêntica comunidade humana perfeita, cf. KONDER, 2009, p. 45
93
ser considerados, perdendo os cargos que occupam e abandonando a communidade brasileira;
10.º) – Reprimir os abusos do capitalismo, sua ingerência nos negócios do Estado, sua crueldade para com as massas
populares, sua ganância, sua avareza, a oppressão que exerce contra os productores; (SALGADO, 1933, p. 101 e 102, grifos meus)
Observa-se que aos comunistas está reservada sua expulsão do país que, é
lógico se pensar, não se faria através do convencimento e sim da força. Para a
burguesia não se coloca como alternativa sua expulsão, nem uma retaliação
maior, apenas reprimir os abusos do capitalismo e não da burguesia. A
liberdade de comércio da burguesia só estaria restrita nas áreas em que o
Estado tivesse domínio, garantindo, assim, a possibilidade de manutenção de
seu poder econômico e social. Isso diante de uma obra em que Salgado tem
uma preocupação muito maior em criticar o liberalismo burguês do que o
comunismo.
O discurso integralista ainda corrobora com o fascista em seu corporativismo
aparente. Sobre esse aspecto Plínio Salgado diz o seguinte:
É sobre a base corporativa que o Integralismo construirá a Pátria Brasileira. Só a corporação exprime os legítimos interesses da Nacionalidade, não só porque constitue uma expressão econômica, mas principalmente porque representa uma expressão ethica. (SALGADO, 1933, p. 103)
Sobre o corporativismo o marxista brasileiro Leandro Konder faz a seguinte
consideração: “O ‘corporativismo’ se mostrou, afinal, mera empulhação
destinada a manter a ficção de um ‘terceiro sistema’ capaz de funcionar como
síntese ou alternativa para o capitalismo e o socialismo.” (KONDER, 2009, p.
109)
Konder traz outra importante contribuição para o debate sobre o fascismo. Ele
seria um tipo de Totalitarismo ou Extremismos? É comum encontrar o termo,
94
mesmo entre os escritos integralistas, 105 mas o significado dado era o de que
era necessária essa visão totalitária para que se evitasse a fragmentação na
construção do ideal de nação e, como vimos, há uma negação veemente por
parte dos mesmos sobre ser o integralismo uma forma de extremismo. A noção
de totalitarismo que é reivindicada pela AIB, portanto, está ligada à ideia de
coesão.
Em sua obra, Konder traz o debate à tona, expondo diversas contribuições
teóricas sobre o assunto, transitando de Jacques Maritain e Hanna Arendt à
Wilhelm Reich e Escola de Frankfurt.106 A principal crítica do autor gira em
torno da idéia de que ambas as terminologias tentam aproximar as
experiências autoritárias de esquerda e de direita, colocado-as num mesmo
balaio e têm como principal referencial a biografia de seus líderes, assinalando
as exceções, como é o caso de Reich. A meu ver, a tentativa de alinhar
stalinismo e fascismos visa desvincular os regimes fascistas do capitalismo e
da burguesia, algo semelhante a colocar o fascismo não como um fruto do
capitalismo e sim como uma exceção aos “caminhos natural” da democracia
burguesa, o que cai por terra diante das análises já apresentadas no início do
capítulo.
Nos argumentos expostos até agora fica clara a vinculação entre fascismo e
integralismo, bem como sua originalidade. Até mesmo em relação à discussão
sobre raça, em que pese o discurso anti-semita que analisarei mais à frente.
Em uma nota na primeira página de O Imparcial, de 14 de setembro de 1935,
aparecem informações sobre uma entrevista dada por Plínio Salgado a um
jornal da Alemanha nazista. Vejamos.
UMA ENTREVISTA DO SR. PLÍNIO SALGADO A UM JORNAL ALLEMÃO
Diz que o chefe nacional salvará o Brasil no momento opportuno!
Berlim, 13 (O Imparcial) – O “Deutsche Allgemeine Zeitung” publica entrevista do seu correspondente no Rio de Janeiro com o sr. Plínio Salgado, chefe do movimento integralista no
105
SALGADO, 1933, p. 22 a 24. 106
KONDER, 2009, a partir da p. 116.
95
Brasil. Nessa entrevista o sr. Plínio declara que no momento opportuno os integralistas salvarão o Brasil. Perguntado sobre si o programma integralista comportava o combate aos semitas o chefe integralista respondeu que o problema a resolver no Brasil era moral e não ethnico. Os integralistas eram partidários do esquilibrio orçamentário obtido pelo monopólio financeiro do Estado e suppressão das coberturas ouro107. Eram contrários às ligas secretas internacionaes, aos trusts e aos partidos internacionaes exploradores. O chefe integralista terminou fazendo o elogio do nacional-socialismo allemão.
Mas o problema semita é uma característica presente em qualquer fascismo? É
o que analisarei a partir de agora.
3.1.1. Anti-semitismos e fascismos A resposta à segunda pergunta do capítulo pode ser encontrada na ojeriza que
os movimentos fascistas têm ao que é estrangeiro, de fora. Como expus no
primeiro capítulo, no mundo ocidental o judeu é visto como “o outro”, já que é
um ser estranho ao mundo cristão. Mesmo com a tentativa de laicização do
Estado, a ciência do século XIX colocou o judeu como aquele que está
naturalmente propenso a ser uma raça que não se adapta, não se dilui nas
outras.
Porém, para um estudioso português do assunto, essa concepção não se
sustenta. João Bernardo Maia Viegas Soares, conhecido como João Bernardo,
marxista autonomista português, defendeu, em 1998, a tese Labirintos do
Fascismo, onde busca fazer uma análise sobre alguns aspectos do fascismo
em diversas partes do mundo.
Bernardo não considera o anti-semitismo como algo constitutivo do fascismo.
Ele toma cuidados pertinentes e pondera sobre a compreensão do anti-
semitismo no nazismo. Mas o autor esquece que também é pertinente que
uma das características dos fascismos, em constante diálogo com suas origens
míticas de raças, é a ojeriza ao estrangeiro, mesmo que apenas
107
Cf. BARROSO, 1936, p. 86 e 87.
96
discursivamente e, para o mundo ocidental, o judeu é a encarnação do que é
estrangeiro, como afirmado acima.
No capítulo em que analisa o racismo do fascismo João Bernardo escreve um
subtópico intitulado Fascismo filo-semita. Em que pese o título, que traz a idéia
de participação de judeus no fascismo, ou uma simpatia dos fascistas em
relação aos judeus, o autor traz provas que apontam para o lado oposto de sua
formulação. Na verdade, ele trata as manifestações anti-semitas como casos à
parte. No caso italiano diz que a grande preocupação de Mussolini era social e
não racial. Para isso cita a constatação de Alfred Rosemberg, Chefe da
Repartição de Política Exterior do Partido Nacional-Socialista Alemão,108 um
dos teóricos raciais do nazismo, ao visitar a Itália em 1932 em que afirma que o
anti-semitismo italiano era uma questão de conveniência e não
necessariamente uma prática, mesmo considerando que o ex-secretário do
Partido Fascista, Farinacci, e Paolo Orano tivessem desenvolvido uma doutrina
anti-semita. (BERNARDO, 1998, p. 348)
Contudo essa afirmação comprova que o anti-semitismo era parte constitutiva
do fascismo italiano, mesmo que não tenha se praticado uma perseguição
como na Alemanha nazista, já que seria um equívoco considerar que o anti-
semitismo só se aplica em casos de extermínios, como no caso alemão.
Mesmo assim, o autor admite que em 1939 membros da Gestapo, inseridos na
polícia secreta mussoliniana, a OVRA,109 efetivaram uma ampla perseguição
aos judeus nesse período.
Além das reflexões próprias, suscitadas pela tese de João Bernardo, os
Cadernos do Cárcere de Antônio Gramsci, trazem uma importante contribuição
para o assunto. Se para Bernardo não houve uma preocupação, por parte do
fascismo italiano, de elaborar sobre “questões rácicas”, já que “ocupou-se
apenas com uma problemática estritamente social...” (BERNARDO, 1998, p.
108
Sobre a função de Rosemberg no partido nazista, ver na revista Anauê!, n.º 3, agosto de 1935. Trato das elaborações desse membro do partido nazista no primeiro capítulo. 109
A OVRA foi a polícia secreta e política do reino da Itália, fundado em 1927, sob o regime de Benito Mussolini, no reinado de Vitor Emmanuel III. Cf.: http://pt.wikipedia.org/wiki/Organizzazione_per_la_Vigilanza_e_la_Repressione_dell'Antifascismo
97
348), Gramsci defende que houve sim uma elaboração racial que teve de pano
de fundo a relação do Norte com o Sul da Itália, sendo que os nortistas
achavam que os sulistas eram inferiores racialmente, já que o próprio Orano e
outros intelectuais, que posteriormente serviriam de inspiração ao fascismo ou
mesmo elaborariam para e nesse movimento, estavam entre os criadores
desse racismo. Ao buscar a forma como os judeus eram tratados no
Risorgimento, movimento cultural e político, umas das bases de inspiração do
movimento fascista, Gramsci cita as memórias Raffaele Ottolenghi, em que se
pode constatar a presença do anti-semitismo nesse movimento, desde o século
XIX.110 Portanto, parece-me uma leitura precipitada a afirmação de João
Bernardo sobre o caso italiano, mas não só, como exporei a seguir.
Outro caso analisado pelo autor português é o fascismo (a partir da falange) no
governo Franco, na Espanha. Lá no final da década de 1920, o fascismo
buscou se aproximar das comunidades judaicas sefarditas fora do país. Essa
busca era defendida a partir da idéia de que essas comunidades eram
promotoras da língua espanhola em outros países, mas havia o interesse
econômico por trás disso. Esse discurso era tão frágil que o próprio Bernardo
diz que isso mudou, a partir da Guerra Civil Espanhola, quando os fascistas
espanhóis abriram mão de sua “solidariedade” aos judeus e passaram ao
campo anti-semita quando os nazistas passaram a enviar armas e apoio aos
falangistas.111 Além disso, autor ainda aponta, ainda para elaborações anti-
semitas dentro do próprio fascismo espanhol. O texto a seguir é carregado da
xenofobia, característica do fascismo, de autoria de Mariano Rodrigues
Vasquez, conhecido como Marianet, do Comitê Nacional dos Trabalhadores,
pelos fascistas: “Em Espanha existiam duas potências econômicas, a dos
Judeus e a dos jesuítas. A dos Judeus era quase toda formada por capital
estrangeiro. A dos jesuítas surgia na maior parte dos casos como capital
nacional.” (BERNARDO, 1998, p. 349)
110
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, vol. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2002. p. 42 – 44 e p. 62-87
111 Nome dado aos combatentes pró-fascistas da Espanha. Desse apoio alemão, nunca é
demais lembrar o bombardeio da cidade de Guernica, ao norte da Espanha, no País Basco, em que milhares de pessoas morreram. O horror em Guernica foi eternizado na tela, homônima, do pintor espanhol Pablo Picasso.
98
No caso brasileiro não era diferente. Esses aspectos podem ser encontrados
nos jornais e nas elaborações integralistas que apresentarei a seguir.
3.2. O anti-semitismo na imprensa baiana
ENTRE JUDEUS
- Triste, Abraham?
- Sim, meu caro Isaac. Muito treiste [sic]... - Alguma morte na família?
- Peór ainda, Isaac. Perdemos trinta e um contos na Bolsa. E desse dinheiro, o conto de réis era meu...
(O Imparcial, Domingo, 06 de janeiro de 1935, assinado
por M.) A utilização dos jornais como fonte não é uma novidade. Eles trazem a notícia
como uma verdade imparcial, mas carregam consigo uma carga ideológica
muito forte. Os jornais, portanto, criam verdades, trazendo ao leitor a ilusão do
conhecimento delas a partir da relação causa e efeito dada à informação
transmitida por eles, contribuindo, assim para a constituição do imaginário
social. (MARIANI, 1998, p. 60 e 61)
No caso da AIB encontram-se dois tipos de jornais que se vinculam a ela que
podemos tratar da seguinte forma: os jornais escritos por integralistas e os
jornais integralistas. Chamo de jornais escritos por integralistas aqueles em que
a linha editorial segue a doutrina ou abre espaço livre para informações
oriundas dessa organização; como jornais integralistas, considero aqueles que
estão submetidos ao crivo da Secretaria Nacional de Imprensa (SNI), Sigma -
Jornais Reunidos e as Comissões de Imprensa da AIB.112
Essa divisão tem como base a caracterização feita por Antonio Gramsci113, que
utiliza a metodologia de distinguir os jornais segundo suas características
(GRAMSCI, 2010, p. 198). Desemboca dessa definição a função do jornal,
estabelecida como jornais de informação ou de opinião. O primeiro seria um
112
Para saber mais cf. FERREIRA, 2006. 113
GRAMSCI, Caderno 24 (1934): Jornalismo. In: Cadernos do Cárcere, vol. 2. 2010.
99
jornal “sem partido” explícito e o segundo um órgão oficial de algum partido, por
conseguinte, um escrito para as massas e outro para um público mais
específico.
O integralismo fazia essa distinção. As publicações da AIB passavam pelo crivo
da Secretaria Nacional de Propaganda (SNP) e pela SNI. Na primeira edição
da revista ANAUÊ! é facilmente observável esse procedimento. Na contracapa
encontramos o seguinte texto.
Secretaria Nacional de Propaganda Tendo examinado os originaes da matéria a ser publicada no primeiro número da revista “Anauê!”, e nada achando em desaccordo com a doutrina integralista, autorizo sua publicação. Secretaria Nacional de Propaganda, 2 de fevereiro de 1935.
a) Custodio de Viveiros Chefe do Departamento de Imprensa
Laís Ferreira diz que o controle do que era publicado era rígido e orientado pelo
Código de Ética do Jornalista, do Chefe Nacional, sendo os órgãos oficiais da
imprensa integralista obrigados a enviar um exemplar de cada edição ao SNI e
a Plínio Salgado. Ao que parece, a sede do jornal A Offensiva, de circulação
nacional, recebia esses jornais. Constatei em alguns dos números visitados
uma coluna em que eram listados jornais recebidos na sede do jornal, no Rio
de Janeiro. Esses jornais eram classificados como Integralistas e Diversos
(FERREIRA, p. 46). Ferreira lista, ainda, os seguintes jornais integralistas: O
Imparcial, A Província, O Popular, O Operário, A Voz do Estudante, A Voz do
Sigma, O Jornal, O Sigma, A Faula, O Serrinhense, O Sertão e A mocidade,
sendo os cinco primeiros de Salvador e todos os outros do interior da Bahia.
São 12 jornais enumerados, mas na coluna dos jornais que chegavam ao jornal
A Offensiva, apenas encontrei o jornal oficial da AIB no estado, A Província, o
que sugere que o controle sobre os jornais locais era feito pela Secretaria de
Imprensa de cada estado (ou provincial, como denominavam os integralista).
Aqui, desfaço um equívoco, O Imparcial não estava entre aqueles jornais
submetidos ao SNI da AIB, ou seja, não era um jornal integralista, ainda que
100
escrito pelos mesmos. O que na verdade só aconteceria a partir de 1934,
quando Victor Hugo Aranha, um dos principais dirigentes da AIB baiana,
passou a dirigir o jornal, o qual fazia parte da Companhia Editora e Graphica da
Bahia, de propriedade do autonomista Álvaro Martins Catarino.
O Diário de Notícias era de propriedade do juracisista Altamirando Requião.
Requião apoiou desde o início o golpe civil-militar de 1930, mas foi acusado de
“revolucionário de última hora” por J. J. Seabra, já que estava alinhado
anteriormente ao governo de Washington Luis. Seu biografo, Cláudio Veiga,
afirma que o jornal de Altamirando foi o primeiro e único jornal baiano a apoiar
o golpe. (VEIGA, 1993, p. 86)
Mas o Diário de Notícias estava junto com O Imparcial na divulgação da AIB na
Bahia. A relação com O Imparcial se dava de forma mais direta, já que o jornal
era dirigido por um dos dirigentes da AIB baiana. Já o Diário de Notícias tinha
uma relação reconhecida pelos integralistas. Num quadro destinado à
divulgação da AIB nos estados, na coluna Província da Bahia do jornal A
Offensiva de 16 de agosto de 1934, fica demonstrada essa relação dos jornais
baianos com a AIB no relato sobre Imprensa.
Os jornaes “O Imparcial”, a “Era Nova” e o “Diário de Notícias”, têm dado ampla publicidade ás notícias referentes ao nosso movimento nesta Província, annunciando sessões e dando o seu resultado, illustrando-as com “clichês”, publicando artigos assignados por companheiros desta e de outras Províncias.
No Diário de Notícias (DN) de março de 1935, eis que surge um esclarecimento
da existência de uma coluna, no jornal, intitulada Integralismo.
A Posição da Imprensa Desta tribuna temos falado a linguagem integralista, facilitando a todos, e principalmente áquelles que vivem nos logares mais distantes do rumor das metrópoles, cuja virgindade é cortada pelo DIÁRIO DE NOTÍCIAS, o conhecimento deste movimento que é nosso que de todos os brazileiros, mormente dos que, ainda, guardam intacto o sentimento nacional e teem inviolável, o sentimento de honra. O “Diário de Notícias” que não é um defensor das nossas idéias, senão antes, de caracter conservador, doutrinador,
101
noticioso, político, sem fugir da sua situação social e informativa, criou esta secção “Integralismo”, ao lado das demais columnas que enchem esta página. A imprensa tem uma superior finalidade: - a de trazer ao público assenhoreado da marcha social e política dentro de um critério honroso. E foi interpretando a missão da verdadeira imprensa que o “Diário de Notícias”, embora sem commungar com os nossos postulados, illustrou uma de suas páginas com esta secção. Nella serão reflectidos todos os pontos doutrinários, as notícias, daqui e das demais Províncias. E através deste espelho que o “Diário” creou, ouviremos também a palavra de ordem do Chefe. Esta secção, pois, é de grande alcance. E os integralistas devem propaga-la, fazendo-a conhecida daquelles que, ainda, a desconhecem. Comquanto não figure no quadro redactorial deste orgão, emprestarei á nossa secção todo o esforço, aliás commun a cada integralista, procurando mante-la e torna-la interessante cada vez mais. Para isso espero contar a dedicação e o estimulo de todos os companheiros de jornada, mesmo porque prestigiar esta secção é dever expresso e imperioso de qualquer “camisa-verde” seja qual for sua situação social. E.C.
A sessão de uma coluna no jornal não é casual. Altamirando Requião era um
admirador da AIB e do fascismo. A linha editorial do jornal prova isso, com
diversos textos pró-nazistas.114
Mas estes jornais não se limitavam a dar apenas publicidade ao integralismo.
Com exceção da Era Nova, que não encontrei nos arquivos da Biblioteca
Pública do Estado da Bahia, irei expor de que forma eles serviram para
divulgação do anti-semitismo integralista no estado da Bahia.
O anti-semitismo da AIB é tido como uma expressão apenas de um grupo
dentro da Ação, não representando a linha política da organização. Mas isso
não se sustenta a partir de uma rápida análise da imprensa integralista da
época. Não apenas Gustavo Barroso e Miguel Reale escreviam textos de
conteúdo anti-semita. Existem textos de autoria dos próprios órgãos, em que
pese a necessidade de aprovação por Plínio Salgado e da SNI para que
114
Cf. PEIXOTO JR., 2003. Além da referência, encontrei, no jornal, uma convocatória do Partido Nazista Alemão na edição de 29 de janeiro de 1935 que conta entre os anexos desta dissertação.
102
fossem publicados, portanto, implicando que não estavam em desacordo com a
doutrina integralista.
Além disso, o discurso do Chefe de que o problema brasileiro era moral, ético e
não étnico não nega um conteúdo racista. Além disso, os integralistas
demarcavam bem qual a liberdade de credo que era permitida. Na revista
ANAUÊ! de janeiro de 1935, em sua primeira edição, foi possível encontrar um
hino integralista escrito pelo padre Mello, de Bom Jesus de Itabapoana, Rio de
Janeiro, em agosto de 1934. Nele encontramos o seguinte trecho: “Seja qual
for o credo/ É livre a consciência/ Mas creia, reconheça e adore a providência.”
Na mesma edição o mesmo padre e o reverendo Gastão de Oliveira, da
mesma cidade e da Igreja Episcopal Brasileira, escrevem uma carta que data
de 4 de janeiro, onde eles defendem que o integralismo não tem exclusividade
religiosidade desde que siga a tríade Deus, Pátria e Família e seja... cristão!
O anti-semitismo, mesmo, indica problemas morais como inerentes às raças. A
avareza relacionada ao judeu seria um defeito moral já internalizado
geneticamente, bem como a sua não adesão a nenhuma nação.
Inicio com um texto contido na revista ANAUÊ! na edição, de janeiro de 1935,
em que Gustavo Barroso escreve um artigo intitulado As Duas Internacionaes.
Em suas páginas uma rápida análise da relação conflituosa da II Internacional,
social-democrata, e a III Internacional, conhecida como a Internacional
Comunista (KOMINTERN). Barroso diz que ambas estiveram em conflito
enquanto não tinham um concorrente que surgiria com a criação do fascismo.
Após isso passaram a se unificar. E adivinhem quem estava por trás dessa
união? Deixo com Barroso a resposta.
Pois bem, depois que os dois credos irmãos – socialismo e
communismo – não se sentiram mais sozinhos no mundo e
que surgia para combatel-os e reduzil-os á impotência o
movimento fascista, começaram a se namorar no sentido
duma união defensiva. A ordem fascista ameaçava de morte
ambas as Internacionaes do desgoverno, anarchia e
103
aniquilamento dos povos para entregal-os escravizados ao
jugo de Israel.
(...) A frente única socialista-communista contra o fascismo e a
guerra (que linda tapeação!...) foi furada por essa recusa [dos
socialistas ingleses, escandinavos, tchecoslovacos,
holandeses e belgas]. Deus sempre suscitou divisões entre as
tendas de Israel.115
Isso no primeiro número da revista. Na continuidade do texto Gustavo Barroso
faz um breve histórico afirmando que: “É inútil a luta do Povo Eleito pelo
domínio do mundo desde o dia em que adorou o Bezerro de Ouro...”,
estabelecendo um paralelo entre Judá e Samária com o Comunismo e o
liberalismo e a II e a III Internacional. Três coelhos em uma cajadada só: anti-
semitismo, anti-liberalismo e anti-comunismo. Aliás, algo bem comum no
discurso anti-semita integralista.
Na terceira edição número da revista, de agosto de 1935, num novo artigo,
intitulado Literatura Comunista, Barroso faz uma análise de obras que
considera estarem sob influência da URSS. Mas não analisa autores de
romances soviéticos, já que ele alega que a esterilidade que Hitler impôs aos
“fisicamente degenerados”, os russos impuseram aos seus intelectuais; ele se
dedica a autores que classifica como “da burguesia decadente, freudiano,
impotentes, vítimas ou servos do judaísmo corruptor”. Dentre os brasileiros ele
seleciona Jorge Amado, José Lins do Rego e Gilberto Freyre. Usa como
referência um estudo francês e aponta para autores daquela origem que,
apesar de nomes franceses, são todos descendentes do “famigerado fetor
judaicus, todos são judeus...”.116
Em outro artigo, Peor das Invasões, Barroso comenta a fundação da Escola
Livre de Sociologia e Política, em São Paulo, a qual ele classifica como uma
“fundação judaica, de espírito judaico, destinada a formar mentalidades de
acordo com os protocolos dos sábios de Sião que possam influir mais adeante
115
Grifos meus. 116
Grifo do autor
104
nos rumos da vida brasileira.” Para sustentar sua argumentação ele lista o
nome dos fundadores da Escola, indicando “os judeus” e “proto-judeus” do
grupo. Na verdade, dos nove nomes que aparecem, quatro têm sobrenomes
que se poderia efetivamente afirmar de origem judaica: Armando Moretzsohn
de Oliveira, Roberto Simonsen, Raul Briquet e Ciro Berlink; os proto-judeus são
pessoas que possuem o primeiro nome de origem judaica, como Abraão
Ribeiro e um dos outorgantes, Samuel Ribeiro. A argumentação do integralista
é absurda e recheada de paranóias anti-semitas, mas ele termina seu texto
conclamando para os integralistas se levantarem contra essa invasão judaica.
Contudo, o anti-semitismo não se limitava apenas a Gustavo Barroso. Talvez
bebendo no próprio integralista cearense ou nas mesmas fontes, Ordival
Gomes escreve, no número 8 da revista, de março de 1936, o artigo As
primeiras affirmações do nosso nacionalismo, em que investiga nas diversas
resistências contra estrangeiros, dos quais excetua os portugueses, a origem
de nosso nacionalismo. Sobre o “saque das minas” no Brasil ele diz o seguinte:
“O ouro de Minas Geraes é pouco para alimentar a burguesia gozadora de
Lisboa [a crítica é feita à uma burguesia lisboeta e não aos portugueses, tidos
como parte constitutiva da raça brasileira] e saciar a fome foraz [sic] dos
judeus117 ingleses a quem Portugal se escravizara.”
Como um “incremento” ao proselitismo da formação anti-semita entre os
integralistas a Livraria Sigma Editora indicava, nas páginas da Anauê! como
leitura obrigatória, entre outros, o livro Protocolos dos Sábios de Sião de
conteúdo anti-semita e traduzido por Gustavo Barroso, sobre o qual me deterei
no próximo capítulo. No jornal integralista de circulação nacional, A Offensiva,
também eram sugeridas leituras no quadro Bibliographia Integralista, entre os
queais merecem destaque os livros de economia escritos pelos integralistas
Barroso e Miguel Reale, de conteúdo anti-semita, Brasil: Colônia de Banqueiros
e O Capitalismo Internacional, respectivamente.
117
Grifo meu
105
As páginas dos jornais também eram recheadas do anti-semitismo verde-
oliva.118 Em 1.º de dezembro de 1933, portanto antes mesmo da entrega da
direção ao integralista Victor Hugo Aranha, o jornal O Imparcial noticia a visita
de Gustavo Barroso à Bahia e apresenta um resumo do discurso proferido por
ele na sede da Associação dos Universitários da Bahia (AUB). Nesse discurso
Barroso fala do materialismo semita do liberalismo e do capitalismo. Como
dirigente nacional, apresenta a análise do integralismo sobre a conjuntura, um
esboço do que viria a ser seu livro Brasil: Colônia de Banqueiros, onde ele
associa os planos judeus de dominação mundial ao comunismo e ao
capitalismo, cita Hitler como base para as suas considerações sobre política,
educação e economia. Nesta mesma edição, na coluna Notas e Tópicos, o
jornal tece diversos elogios ao integralista, o que demonstra simpatias de seus
redatores ao movimento.
O Imparcial não dá voz ao seu anti-semitismo somente pelas canetas verdes
dos integralistas. Na mesma coluna citada acima, do dia 19 de março de 1934,
o jornal afirma que as guerras ao redor do mundo são financiadas pelo ouro
judeu. Com o sugestivo título Propulsores da Guerra a redação do jornal
escreve o seguinte: “São os syndicatos armamentistas, a “Internacional”, as
fabricas todas de armas que se multiplicam e se espalham com o ouro judeu...”
Mais uma vez recai sobre o comunismo e os judeus as mazelas do mundo.
O nazismo também serve como pano de fundo para o anti-semitismo
“imparcial”. Em 05 de abril de 1934, na coluna Registro Internacional, uma
nota, intitulada O “aryanismo” no commercio allemão, apresenta um telegrama
oriundo da cidade de Nuremberg, Alemanha, com a informação de que os
judeus não estão impedidos de praticar o comércio na Alemanha nazista. O
referido telegrama, que não parece ser de origem alemã119, apesar da aludida
origem, sobretudo pela forma da escrita, termina com uma manifestação
indignada de seu autor. Vejamos:
118
Os integralistas também eram conhecidos como camisas-verdes, em razão de suas camisas verde-oliva.
119 A impressão de que o telegrama não seja de origem alemã está, sobretudo, na forma da escrita que se porta a Alemanha como quem está de fora do país. Além disso, parece uma notícias plantada, já que omite as perseguições comerciais às casas judaicas, implementadas, gradualmente
106
Como compreender, portanto, que os hitleristas allemães, depois de tomarem aos judeus todas as armas com que poderiam manejar ao seu favor, deixem em seu poder a mais temível e poderosa dellas? Os actuaes dirigentes da Allemanha desconhecem, com certeza, a força do dinheiro...
O eufemismo começa com as aspas no título e termina com a indignação que
mascara a perseguição aos judeus no III Reich. E o melhor desse eufemismo
estava por vir. Na edição do dia 20 de abril de 1934, na coluna Notas e
Tópicos, a seguinte nota que transcrevo na íntegra.
ANTI-NAZISTAS Elles andam por toda a parte, despertando os mais desencontrados commentarios... Aqui são judeus capitalistas, explorando com toda força... a força alheia; ali, são agitadores reaccionários, cavando abysmos entre nações; adeante são revolucionários communistas, incendiários bolchevistas... São atacados em toda parte os judeus. Com ou sem razão, vae-se desenvolvendo a campanha, desencadeada pelo nazismo, disciplinado e enérgico. Porque serão tão perseguidos os judeus? Não moverá esta campanha ante-semita um ódio gratuito e injustificável? É o que as vezes parece, deante da tenacidade dos perseguidores... Mas o que ás vezes parece é apenas apparencia, ás vezes... A realidade, a verdadeira realidade está nos bastidores. Agora mesmo houve o julgamento sensacional, em Varsóvia, dos communistas da cidade de Luch. Depois de 42 dias descobriu-se que a maioria dos accusados era de raça hebraica, em numero de 55... Muitos delles foram
condemnados. Os judeus são considerados os instigadores mais perigosos da actuação communista, visceralmente contraria ao partido chefiado por Adolf Hitler.120
Como apontado acima, o jornal era do autonomista Álvaro Martins Catarino.
Mas a admiração por Hitler não era uma raridade entre os que compunham
120
Grifo meu.
107
esse grupo político baiano. Acima vimos a homenagem do deputado
autonomista Rafael Jambeiro. Mas na edição de O Imparcial de 23 de fevereiro
de 1933 consta um texto de autoria do também autonomista Antônio Balbino
em que o político elogia a ascensão de Hitler. Interessa aqui ressaltar que,
como discutido no capítulo anterior, era perceptível a xenofobia entre os
autonomistas que se utilizaram desse expediente para construir seus discursos
contra a interventoria do cearense Juracy Magalhães na Bahia.
Em 1934, A Offensiva, na matéria de capa da edição do dia 12 de julho,
apresentava um texto do Chefe Fascista francês, Henry Coston. A matéria
intitula-se Sob jugo da grande finança internacional e analisa a influência dos
banqueiros judeus na economia francesa. Do mesmo modo, Miguel Reale
também utiliza as páginas de A Offensiva para destilar seu ódio contra os
judeus. Em 19 de julho de 1934, ele escreve um texto em que analisa um
pedido de proibição do fascismo no Brasil, feita na Constituinte, argumentando
que esse foi um ataque de judeus ao integralismo. É importante lembrar que
esse é um jornal para a formação da militância da AIB. O discurso de Reale,
um dos principais líderes da organização, junto com Salgado e Barroso, tem
um peso forte na formação de seus militantes.
Ao que parece, o ano de 1935 foi fértil para a propaganda contra os judeus no
Brasil. A tentativa dos órgãos de imprensa aqui analisados em disseminar uma
propaganda nesse sentido pode ser constatada aos folhear algumas edições.
O órgão oficial dos integralistas, A Offensiva, posta em primeira página A
Trajectoria da idéa communista, escrita por Reale, onde, mais uma vez, o
judaísmo é vinculado ao comunismo internacional e é exaltado o combate feito
pelos fascistas alemães e italianos aos marxistas.
No DN a presença das colunas Integralismo dão o tom ao ataque contra os
judeus. Em 11 de fevereiro de 1935 é publicado na coluna um texto com o título
“As forças secretas da Revolução”, um ataque aberto aos judeus onde o autor,
não identificado, do texto apresenta alguns trabalhos como referência aos
estudos sobre a questão do judeu. Entre esses livros consta o já amplamente
citado Brasil: Colônia de Banqueiros, de Gustavo Barroso, O anti-semitismo de
108
Hitler, do integralista baiano Brasilino de Carvalho121, que analisarei no próximo
capítulo e um dos clássicos do anti-semitismo, As forças secretas da revolução,
de Leon Poncins. É importante lembrar que essa coluna é orientada como
leitura obrigatória de todo integralista na Bahia e leva as idéias dessa
organização para todo o estado. O que significa que o anti-semitismo
integralista atingia diversas regiões da Bahia.
No mesmo mês, ainda encontramos um texto, nessa mesma coluna, destinado
aos operários que, além de outras coisas, como negar a luta de classes,
denuncia o comunismo como uma doutrina dissolvente, uma criação judaica.
Um ano antes, em 27 de setembro de 1934, no jornal A Offensiva, havia sido
publicado o texto Operários e Judeus em que também era denunciada a
“influência nefasta” que os judeus tinham sobre o operariado e apontada essa
influência como parte seu do programa de dominação mundial dos judeus
contidas nos Protocolos dos Sábios de Sião.122 A coluna do DN parece ter
seguido a orientação de A Offensiva, haja vista a pequena presença de judeus
no operariado baiano, já que sua principal ocupação era o comércio. 123
Mas fora das colunas integralistas também vinham ataques aos judeus. O DN
de 17 de dezembro de 1935 traz a matéria O communismo e a sua obra
mundial – Milhões de creaturas sacrificadas, pela fome, pelo fogo, pela corda e
pelo ferro – Um relatório sinistro baseado nas próprias declarações dos
Soviets, de autoria do chefe da propaganda nazista, ministro Joseph Goebbels.
A matéria traz uma foto com a seguinte legenda: “LITVNOFF, ou melhor, o
judeu Wallack Meer,124 hoje ministro da Rússia, preso, há annos, em Paris,
como ladrão”. No corpo do texto uma lista de judeus, que teriam orquestrado
atrocidades contra os povos de seus respectivos países. Além de Litvnoff, Bela
Kun, na Bulgária e Levien, Axeirod e Levine Nissen, na Alemanha. A matéria foi
121 Lançado em 1935, este livro suscitou diversas notas de companheiros integralistas. 122 BARROSO, Gustavo (org.). Os protocolos dos Sábios de Sião. Coleção Comemorativa do
Centenário de Gustavo Barroso, 5,ª Edição. Porto Alegre: Revisão Editora,1991. Tratarei a obra de forma detida no próximo capítulo. O chamado Protocolos é um texto apócrifo surgido no final do século XIX, na Rússia czarista.
123 LARGMAN, 2002.
124 Apesar de realmente ser de origem judaica, Maxim Maximovitch Litívnov não se chamava Wallak Meer. Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Maxim_Litvinov
109
publicada em dois dias, terminando o relato da conspiração judaico-comunista
na edição do dia 18.
Em O Imparcial não era diferente. A presença do anti-semitismo estava
bastante presente em 1935. Na coluna Notas e Tópicos pequenas notas dão
conta do serviço. No mês de abril duas saltaram aos olhos. Na edição de 04 de
abril uma delas intitulada “Pelo Brasil”, anuncia a adesão do senhor Souza
Dantas, ex-diretor da Carteira Cambial do Banco do Brasil, ao integralismo. O
texto aponta para a experiência prática que o novo camisa-verde teria com os
banqueiros e que corroborava com a obra de Barroso sobre os banqueiros no
país referente ao papel espoliatório dos mesmos.
No texto do dia 11 de abril o título já diz tudo: Colônia de Banqueiros... De
acordo com o texto, enquanto o Brasil for refém deles não há como superar a
crise financeira. O país vivia em crise e não conseguia sair. Na verdade o que
acontecia era um misto de conjuntura internacional com política econômica
brasileira que ainda se mantinha agrária e refém da cafeicultura, que fazia com
que o país não conseguisse sair da crise.125 Mas para o anti-semitismo
barrosiano a culpa recaia, mais uma vez, nos judeus.
Nessas páginas de jornais, pode-se ler ainda, ao lado dos preconceitos, o tom
jocoso que é despendido aos judeus. A história de Isaac Velhacman é contada
em forma anedótica, o que põe em cheque a veracidade das informações ali
contidas. É narrado que esse judeu chegou ao Rio de Janeiro e se tornou
comerciante, na verdade um vendedor ambulante, que logo enriquecera e fixou
comércio. Certa vez Isaac precisou de alguém para abrir o cofre em que
guardara seu dinheiro, pois tinha perdido sua chave. O judeu contratou, então,
Severino, que depois de abrir o cofre recebeu a negativa de Isaac em receber o
valor que havia acordado antes, no que o brasileiro bateu a porta do cofre
deixando o comerciante sem ter como abri-lo. O autor do texto finaliza dizendo:
“Quem nos dera, porém, uma meia dúzia de Severino no leme dos negocios
desse Brasil! Negro que não se confunde com branco.”
125
FURTADO, 1972.
110
O título do texto acima é Judiaria. A meu ver, representa o discurso anti-semita
do banqueiro judeu contra os povos. Isaac Velhacman, que, pelo sobrenome,
aparenta um trocadilho com Homem Velhaco, representa o judeu que quer tirar
vantagem sobre Severino, o brasileiro que adota a postura necessária a ser
tomada pelos brasileiros, como é orientado que os integralistas o façam.
Mas o terreno mais fértil ocorreu quando do Levante comunista. Entre os
chamados agentes extremistas estavam alguns judeus, o que logo foi noticiado
por O Imparcial de 1.º de dezembro de 1935. Esses judeus estavam ligados a
uma organização chamada BRAZCOR (Socorro Vermelho Judaico),126
considerada e apresentada pelo jornal como “perigoso foco de agentes
extremistas”. Isso serviu como pretensa prova da relação dos comunistas
brasileiros com os “judeus apátridas internacionalistas”, quando na verdade era
o BRAZCOR que fazia parte do PCB e não o contrário.
Como uma organização de unidade nacional a AIB baiana não se limitou em
promover o anti-semitismo nos jornais que deram espaços para que isso
pudesse acontecer. Em O Imparcial isso foi mais latente, já que a linha editorial
do jornal, mesmo antes de estar sob a direção de um integralista, demonstrava
profunda simpatia à AIB. No Diário de Noticias o espaço foi aberto enquanto
seu dono, Altamirando Requião, se manteve simpático ao integralismo, mas
sem mudar as linhas gerais do jornal, já que a AIB baiana fazia oposição a
Juracy Magalhães que, por sua vez, era apoiado por Requião.
Mas o anti-semitismo desses jornais não se limitou, como já foi exposto, à linha
integralista. A xenofobia autonomista parecia se traduzir em certa antipatia aos
judeus, em que pese o apoio que o interventor deu à comunidade judaica
baiana, inclusive doando o terreno onde seria instalado o cemitério dos judeus,
nas Quintas, em 1936.127 Já o anti-semitismo do Diário também estava
126
O BRAZCOR era uma organização ligada ao Partido Comunista do Brasil (PCB). Cf. KUPERMAN, Esther. ASA – Gênese e trajetória da esquerda judaica não sionista carioca. In: Revista Espaço Acadêmico, n. 28, setembro de 2003. Visitado em 25 de junho de 2011: http://www.espacoacademico.com.br/028/28ckuperman.htm; e VVAA. PCB: Oitenta anos de luta. Fundação Dinarco Reis. 2002. 127 LARGMAN, 2002.
111
vinculado à relação próxima que o jornal estabeleceu com comerciantes
alemães do estado e da simpatia de seu dono pelo nazismo.128
128 PEIXOTO, 2003.
112
CAPÍTULO IV – GUSTAVO BARROSO, INTELECTUAIS INTEGRALISTAS
BAIANOS E A QUESTÃO JUDAICA
“Os intelectuais são um grupo autônomo e independente, ou cada grupo social tem uma [sic] sua própria categoria especializada de intelectuais? O problema é complexo por causa das várias formas que assumiu até agora o processo histórico real de formação das diversas categorias intelectuais.” (GRAMSCI, Cadernos do Cárcere, 2010, p. 15)
A consideração acima inicia o Caderno 12, escrito no ano de 1932, pelo já
citado intelectual, Antônio Gramsci. Intitula-se “Apontamentos e notas
dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais”. As
indagações do autor giram em torno de sua preocupação sobre a metodologia
de análise da questão dos intelectuais. Para Gramsci o problema está na
predefinição do papel do intelectual, sem antes se analisar o contexto histórico,
suas relações sociais e o seu lugar de classe. (GRAMSCI, 2010, p. 18)
Na continuação de sua análise sobre a questão dos intelectuais, Gramsci
instiga a reflexão e discussão a partir da afirmação de que “seria possível dizer
que todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na
sociedade a função de intelectuais...” (idem, ibidem), diluindo a separação
entre trabalho manual e intelectual, onde o primeiro procede do segundo, já
que exige algum grau de instrução para ser realizado. Talvez hoje isso nos
pareça óbvio, mas essa discussão é de extrema importância, principalmente
para a época e a conclusão acerca da necessidade do trabalho intelectual para
o trabalho manual coloca a discussão em outro patamar...
O debate agora gira em torno da função social dada aos intelectuais. Todo
homem é um intelectual, porém: “Formam-se assim, historicamente, categorias
especializadas para o exercício da função intelectual; formam-se em conexão
com todos os grupos sociais mais importantes...” Ou seja, há uma definição em
cada tempo e sociedade, de um determinado grupo social que vai cumprir a
função de intelectual. Mas então, qual é essa função?
113
Retornemos ao início do texto... Essa função que é histórica e variável de
acordo com cada grupo social e seu respectivo grau de especialização e
aperfeiçoamento de seus conhecimentos, dada pela sua formação na escola,
inicialmente, e posteriormente na prática, no exercício de sua função dentro da
estrutura social, no que Gramsci chama de “mundo da produção”. Mas, essa
função no “mundo da produção” é mediatizada, a grosso modo, pela
superestrutura, que o autor divide em dois grande planos:
a) Sociedade civil (ou os organismos privados de hegemonia, dentre eles os
partidos políticos);
b) Sociedade política ou Estado, “... que correspondem, respectivamente, à função de 'hegemonia' que o grupo dominante exerce em toda sociedade e àquela de 'domínio direto' ou de comando, que se expressa no Estado e no governo 'jurídico'.” (GRAMSCI, 2010, p. 21)
Outra consideração relevante de Gramsci se dá em torno da divisão entre os
intelectuais de tipo rural e urbano. Os segundos são intelectuais que já nascem
no seio da sociedade industrial, já adaptados a ela e por isso mesmo sem
nenhuma iniciativa de inovação. Já os primeiros são em grande parte
“tradicionais”, ligados à massa social do campo e à pequena burguesia das
cidades “... esse tipo de intelectual põe em contato a massa camponesa com a
administração estatal ou local (…) e, por esta mesma função, possui uma
grande função político-social, já que a mediação profissional dificilmente se
separa da mediação política.” (idem, ibidem) Esses intelectuais tradicionais
tanto são disputados pelo grupo hegemônico, quanto tentam se inserir no
mesmo. Possuem uma relação contraditória com o camponês, já que ao
mesmo tempo em que o camponês admira esse intelectual, ele o despreza por
inveja, enquanto os intelectuais urbanos, como técnicos de fábricas, não têm a
necessidade de cumprir um papel político sobre as massas urbanas industriais,
já adaptadas às suas funções e inseridas na sociedade industrial.
Esses intelectuais tradicionais “... sentem com 'espírito de grupo' sua
ininterrupta continuidade histórica e sua 'qualificação'. Eles se põem a si
114
mesmos como autônomos e independentes do grupo social dominante.” (idem,
Ibidem, p. 17)
O marxista italiano ainda reflete sobre o papel dos partidos políticos para a
questão dos intelectuais e faz duas distinções sobre esse papel:
1) para alguns grupos sociais, o partido político é nada mais do que o modo próprio de elaborar sua categoria de intelectuais orgânicos, que se formam assim,e não podem deixar de formar-se dadas as características gerais e as condições de formação, de vida e de desenvolvimento do grupo social dado, diretamente no campo político e filosófico, e não no campo da técnica produtiva (…); 2) o partido político, para todos os grupos, é precisamente o mecanismo que realiza a sociedade civil a mesma função desempenhada pelo Estado, de modo mais vasto e mais sintético, na sociedade política, ou seja, proporciona a soldagem entre intelectuais orgânicos de um dado grupo, o dominante, e intelectuais tradicionais; e esta função é desempenhada pelo partido precisamente na dependência de sua função fundamental, que é a de elaborar os próprios componentes, elementos de um grupo social nascido e desenvolvido como “econômico”, até transformá-los em intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as atividades e funções inerentes ao desenvolvimento
orgânico de uma sociedade integral, civil e política. (idem, ibidem, p. 24)
Continuando, Gramsci analisa alguns casos específicos de formação de
intelectuais. Interessa, aqui, o caso da América Central e do Sul, inclusive
porque as impressões de Gramsci se referem ao período destacado nesse
trabalho. Ele aponta para a inexistência de intelectuais de tipo tradicionais e
destaca a formação dessa intelectualidade vinculada à Igreja e ao setor militar.
Aponta, ainda, a relação direta entre esses intelectuais e as elites latifundiárias
dos seus respectivos países. E ainda:
Pode-se dizer que, no geral, existe ainda nessas regiões americanas uma situação de tipo Kulturkampf129 e tipo processo Dreyfus, isto é, uma situação na qual o elemento laico e burguês ainda não alcançou o estágio da subordinação dos interesses e da influência clerical e militarista à política laica do
129 Cultura do conflito, tradução minha. Ver nota posterior à escrita de Gramsci, referente ao termo, na edição aqui utilizada.
115
Estado moderno. Ocorre assim que, por oposição do jesuitismo, tenham ainda grande influência a Maçonaria e o tipo de organização cultural como a “Igreja positivista”. Os eventos dos últimos tempos (novembro de 1930) – do Kulturkampf de
Calles, no México, às insurreições militar-populares na Argentina, no Brasil, no Peru, no Chile, na Bolívia – demonstram precisamente a exatidão destas observações.
(GRAMSCI, 2010, p. 31)
Essas considerações servem para que se possa pensar que tipo de intelectuais
eram Gustavo Barroso e aqueles outros que pensavam sobre o anti-semitismo,
sobretudo da intelectualidade baiana. É perceptível em suas obras os aspectos
militares e católicos que compõem as suas elaborações sobre o anti-semitismo
no Brasil. Na verdade são reflexões que buscam sempre questionar o modelo
de Estado liberal e o comunismo, elegendo o judeu como seu elaborador, cujo
objetivo é a destruição do mundo cristão. Esses autores escrevem sempre se
preocupando com o lugar que ocupam e se dizendo representantes do povo
brasileiro, em especial dos trabalhadores desse país.
4.1. LITERATURA E PROPAGANDA
Na tradição das organizações revolucionárias marxistas a difusão de sua
política se dá de duas formas: agitação e propaganda. A primeira consiste em
poucas idéias para muitas pessoas, passadas por palavras-de-ordem que
sintetizem suas concepções. A segunda consiste em muitas palavras para
poucas pessoas, no intuito de aprofundar essas idéias junto àqueles
interessados em se aproximar ou entrar na organização. Mas essa não é uma
forma genuinamente marxista e existe antes mesmo da formação dessas
organizações; e mais, não são exclusividade, também, das organizações de
esquerda. A extrema-direita, como os nazistas, fascistas e integralistas,
também se serviu dessa forma de disseminar ideias.130
Para a AIB isso dispunha de um papel importante. Todas as províncias tinham
o Departamento Provincial de Propaganda que se encarregava de difundir a
130 Ver discussão feita por FERREIRA (2006), a partir de Jean-Marie Domenach, em seu trabalho, a partir da p. 43. Ela trata das diferenças entre a propaganda para o leninismo e o hitlerismo. Ainda sobre essa discussão ver CRUZ (2004) sobre a relação entre a propaganda integralista e a alemã, em especial capítulos I e II.
116
doutrina do Sigma, ou seja, da Ação. Esses Departamentos de Propaganda
usavam jornais, realizavam eventos em cada lugar onde houvesse núcleos da
AIB. Elas estavam subordinadas à SNI. Como visto no capítulo anterior.
(FERREIRA, 2006, p. 46)
Além de promover cursos e imprmir jornais a AIB publicava livros, que se
subordinavam à SNI. Em A Offensiva era indicada uma bibliografia integralista
no intuito de iniciar a formação sobre a doutrina. Os autores mais
recomendados eram Plínio Salgado e Gustavo Barroso.131
As obras integralistas revelavam a grande importância e preocupação sobre o
papel do intelectual dada pela organização. A própria formação da AIB está
vinculada à intelectualidade brasileira.
O lançamento do Manifesto Integralista em outubro de 1932 marcou o surgimento oficial da Ação Integralista Brasileira - AIB liderada por Plínio Salgado. A formação da AIB resultou das reflexões e convergências ideológicas entre intelectuais, reunidos em torno da Sociedade de Estudos Políticos – SEP.
(FERREIRA, 2006, p. 21)
A obra mais elementar do integralismo é iniciada com as seguintes
considerações de Plínio Salgado, na abertura do primeiro capítulo, intitulado
“Destino do Homem e da Sociedade”:
A presente exposição da doutrina integralista eu a faço para as massas populares, procurando ser o mais simples possível, evitando as teminologias difficeis e me desembaraçando, das malhas do eruditismo.
Escrevo para o meu povo numa hora de confusão e de duvidas, tanto nacionaes como universaes, e todo o meu desejo é tornar accessivel aos simples o pensamento que já penetrou dominantemente as classes ilustradas do Paiz.”
(SALGADO, 1933, p. 13. Grifos meus)
131 Na edição de 14 de dezembro de 1935, do referido jornal, no boxe Bibliographia Integralista eram indicados seis livros de Gustavo Barroso e oito de Plínio Salgado. Dentre os livros indicados de Barroso estava, na seção Economia a obra “Brasil: Colônia de Banqueiros”, uma das analisadas neste capítulo.
117
Pode-se ver a preocupação de Salgado sobre a forma que escreve o
intelectual. E isso, como veremos adiante, não é uma preocupação exclusiva
dele. Se Marilena Chauí afirma que o destinatário da propaganda integralista
eram as classes médias,132 o desejo da AIB em se inserir nas classes
subalternizadas era claro. Essa expectativa se desvela em algumas ações,
como a campanha em prol do desabrigados das enchentes em Salvador em
1935, amplamente noticiado em O Imparcial133 ou a tentativa de valorização
dos trabalhadores brasileiros tanto nas obras integralistas, aqui selecionadas,
como na revista Anauê!, da AIB.
A despeito da discussão sobre intelectuais, não será feita, aqui, nenhuma
exposição mais detida sobre a vida dos autores escolhidos nessa análise.
Sobre Gustavo Barroso existem dois trabalhos que considero importantes:
“Nem Rotschild nem Trotsky. O pensamento Anti-Semita de Gustavo Barroso”
de Marcos Chor Maio e “Integralismo e Anti-Semitismo nos Textos de Gustavo
Barroso na década de 1930” de Roney Cytrynowicz.134 Sobre Brasilino de
Carvalho não encontrei muitas informações acerca da vida do autor, apenas
que o mesmo era Chefe do Departamento Provincial de Imprensa, fundador do
jornal “A Província” em 1934, órgão oficial da AIB - Bahia, e um dos
responsáveis pela compra e reestruturação do jornal “O Imparcial”, em 1935,
junto com Vítor Hugo Aranha, diretor do jornal entre os anos de 1934 a 1937 e
chefe provincial do Departamento de Propaganda no estado.
Portanto me deterei às obras dos mesmos para uma análise destas como
difusoras do anti-semitismo integralista tanto nacionalmente quanto na
província da Bahia.
4.2. GUSTAVO BARROSO, OS BANQUEIROS E OS SÁBIOS DE SIÃO
Gustavo Barroso era um dos principais propagandistas do integralismo. Em
1933, um ano após a fundação da AIB, percorreu o país numa caravana
132 CHAUÍ (1978) apud FERREIRA (2006) 133 Ver O Imparcial, 06 de junho de 1935, também FERREIRA (2006b) 134 MAIO, 1992; e CYTRYNOWICZ, 1991.
118
integralista noticiada por “O Imparcial” como “O integralismo em marcha!”.135
No primeiro dia da visita à Bahia, em 29 de novembro, Barroso conferenciou
sobre o tema “As utopias do socialismo”, tendo afirmado, segundo resumo do
próprio jornal:
Em 1844, Marx e Engels começaram o seu namôro com o communismo utopico e, em 1847, plagiando Consideránt lançaram ao mundo com repique e foguêtes o tal do communismo scientifico, logo abraçado pelos refractarios, inassimilaveis, fanaticos, despeitados, invejosos e negativistas sob a batuta do judaismo internacional.”
E conclui: “Os povos fortes não têm mêdo desses espantalhos encarnados.
(…) O Integralismo é a grande doutrina dessa synthese espiritual. Os
socialismos são utopias e mumias sociaes”136
Barroso mostra para que veio. Em companhia de outros líderes integralistas,
como noticiado quando da sua chegada no dia 28 de novembro, dentre eles
Miguel Reale, não é relatada nenhuma objeção por parte dos outros líderes
nacionais da AIB quanto às suas considerações de cunho claramente anti-
semita. No dia 1.º de dezembro o jornal apresenta novo resumo da palestra de
Barroso, com o seguinte conteúdo, se referindo ao materialismo da sociedade
contemporânea subserviente ao:
… materialismo semita com o neomessianismo político, o livre arbitrio desassociador, o determinismo historico, o socialismo mascarando o imperialismo, o capital e o trabalho despersonalizados, a uniformidade animal do communismo marxista! (…) O seculo XIX separou, dividiu tudo, phenomenos theorias, homens. O judaismo ao invés do que pensava, preparou os meios de uma synthese que lhe será fatal.(...) A inquietação que profundamente abalou e continua a abalar o mundo foi um phenomeno puramente intellectual com as devidas projecções no campo da política e da economia. A reconstrucção que vae salvar o mundo é tambem um
phenomeno puramente intellectual. (Pela Unidade Nacional! O Imparcial, 1.º de Dezembro de 1933. Grifos meus)
135 O Imparcial, 30 de novembro de 1933. 136 Ibidem
119
No trecho acima destaco a continuidade da propaganda anti-semita de Barroso
com consentimento dos outros líderes. Ressalto ainda o papel conferido aos
intelectuais por Barroso que continua, na sequência do texto, salientando o
lugar da escola nessa transformação intelectual.
A educação é a própria substancia da vida sobretudo da parte intellectual. Na escola é que se pode modelar a sociedade. A
nação forma-se estractifica-se nos bancos das aulas e mais do que a nação, o próprio espirito de uma época. Neste século, estamos em face duma decomposição mollecular da sociedade. Sente-se na vida das nações aquele “fermento de decomposição” a que Hitler se refere, “ameaça occulta de
afundamento do occidente.” (Idem. Grifo meu)
No dia 02 de dezembro de 1933 o jornal noticia a última conferência da
comitiva integralista em marcha e, mais uma vez, destaca a exposição de
Gustavo Barroso, o que demonstra sua primazia entre os seus. Nessa
derradeira apresentação, Barroso apresenta resultados parciais sobre seus
estudos dos empréstimos brasileiros, intitulado “Brasil, colônia dos Rotschild”.
Esses estudos seriam a base para a composição de “Brasil: Colônia de
Banqueiros”, como afirma o próprio autor na obra, publicada pela primeira vez
em 1934. (BARROSO, 1936, p. 97) O publico alvo dessas conferências? Além
dos militantes da AIB-Bahia, que vierem de diversas cidades da província, na
edição do dia 30 de novembro, que as atividades seriam voltadas para as
“classes produtoras”. Quais seriam essas classes produtoras? Os
comerciantes, que cederam a sede de seu clube137 ou os trabalhadores? Essa
dúvida o jornal não soluciona, mas imagino que sejam os trabalhadores o que
aponta, mais uma vez, para o público o qual a AIB desejava alcançar...
A importância dessas visitas, como disse acima, está no fato de que elas
faziam parte de uma caravana que apresentava e aprofundava a doutrina
integralista nos locais por onde passava. O destaque dado a Barroso indica a
proposta de Salgado de aproximar seus líderes e intelectuais da militância da
organização. Além disso, também demonstra que mesmo antes de publicar
suas obras de “denúncia do judaísmo internacional”, que iniciada exatamente
137 Clube Comercial da Bahia (ACB)
120
com Brasil: Colônia de Banqueiros, em 1934, o líder integralista cearense já
difundia seu ideal anti-semita, em atividades regulares da própria organização.
Suponho que tenha ganhado mais relevância essas conferências, proferidas na
Bahia, porque o próprio Barroso as cita em sua obra.138
Gostaria de fazer três considerações a partir do que foi exposto até o momento.
A primeira delas se refere à ênfase que o autor dá à questão da
intelectualidade. Para ele a crise social é intelectual e, portanto, só mudará a
partir de uma revolução intelectual nos moldes integralistas. Somente assim o
povo brasileiro pode despertar contra a ameaça do “judeu internacional”,
destruidor dos valores ocidentais, cristãos. Em “Brasil: Colônia de Banqueiros”
critica os “intelectuais da elite” que, segundo ele, não estão preocupados com o
povo, os quais se associam ao judaísmo internacional nos meios de
comunicação e na política.
A nova nação [o Brasil] deu-se ao nascer, de mãos atadas ao capitalismo sem pátria. Metido o pé nas suas misteriosas engrenagens, o corpo todo do Brasil haveria de, em um século, passar por entre as moendas do engenho de fazer ouro. Elas espremeriam de seu povo suor e sangue. E, depois de assim dessorado, sugado, espoliado, ainda os literatos em busca de êxitos fáceis viriam considerá-lo inerte e preguiçoso, apelidá-lo de Jeca Tatu e fazer, pervertidamente, o Retrato do Brasil. Ao brasileiro roubado e escravizado, brasileiros não se pejaram de caluniar! (BARROSO, 1936, p. 13, grifo do autor)
Uma alusão direta à Monteiro Lobato e Paulo Prado, intelectuais brasileiros de
expressão nacional que escreveram, respectivamente, Urupês, que traz a
imagem do Jeca Tatu, o homem ignorante do interior e símbolo do atraso
brasileiro; e Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira, em que o
autor trata das razões pela qual o povo brasileiro seria atrasado. Esses autores
trazem uma visão pessimista do Brasil.
138 “Os dois capítulos precendentes são simplesmente o desenvolvimento duma conferencia sob o título Brasil – colônia dos Rotschild, que pronunciei de outubro de 1933 a janeiro de 1934, nos seguintes lugares: Sede da Ação Integralista do Rio de Janeiro, Clube Comercial da Baía, Associação Comercial de Maceió, Associação dos Empregados no Comercio de Recife, Teatro José de Alencar de Fortaleza, Palácio Teatro de Belém, Teatro Artur Azevedo de S. Luiz do Maranhão e Associação dos Escolteiros de Natal.” (p. 96 e 97)
121
Outra consideração a ser feita é sobre o papel da escola na formação desses
intelectuais. Gramsci aponta para isso afirmando: A escola é o instrumento
para elaborar os intelectuais de diversos níveis. (GRAMSCI, 2010, p. 19) O
autor italiano tece essas considerações no cárcere um ano antes de Barroso,
mas serve para ilustrar como a questão da escola é vista pelos intelectuais da
época. Apesar da valoração que ambos dão à escola, eles seguem caminhos
distintos. Enquanto Gramsci faz uma leitura mais complexa, sobre a questão da
funcionalidade da escola no sentido de operacionalização da gestão e
produção na sociedade, Barroso pensa na escola como apenas difusora da
moral cristã ocidental. A revolução intelectual está diretamente ligada a essa
moral, que nortearia à nova sociedade integral.
A última consideração se refere à centralidade imputada por Barroso ao partido
político nessa formação. Essa revolução intelectual se dará a partir da doutrina
integralista, já que é o integralismo a grande síntese do espírito renovador que
destruirá o materialismo judaico-marxista. Retomando Salgado, na obra acima
citada, ele diz o seguinte:
A concepção integralista do mundo, como a própria palavra está indicando, considera o universo, o homem, a sociedade e as nações de um ponto de vista totalitario, isto é, sommando todas as suas expressões, todas as suas tendencias, fundindo o sentido materialista do facto ao sentido interior da idéa,
subordinando ambos ao rhytimo supremo espiritualista e apprehendendo o phenomeno social segundo as leis de seus movimentos. O signal que adoptamos nos uniformes dos “camisas-verdes” e na bandeira do integralismo (sigma), indica em mathematica o symbolo do calculo integral. Quer dizer que a nossa preoccupação é sommar tudo, considerar tudo, nem nos perdendo na esphera exclusiva da metaphysica, nem nos deixando arrastar pela unilateralidade do materialismo. (idem,
p. 23 e 24)
Mas, o somar tudo e todos têm um porém. A espiritualidade defendida pela AIB
é a cristã, aqueles que estavam fora dela estavam fora de sintonia com a
proposta de sociedade integralista, dentre eles os judeus e é isso que está
contido no discurso de Gustavo Barroso.
122
A seguir, me deterei a uma análise de duas obras de Gustavo Barroso de
grande importância nas suas elaborações anti-semitas. Ambas têm um caráter
panfletário e são repletas de chamados à juventude, ao operariado e ao povo
brasileiro.
Por ordem cronológica, a primeira delas é a já citada “Brasil: Colônia de
Banqueiros”. O subtítulo explica o conteúdo da obra “História dos empréstimos
de 1824 a 1934”. Nela o autor faz um levantamento dos contratos de
empréstimos realizados pelo Brasil desde sua independência até o período da
publicação. O curioso é que o autor sempre culpa os judeus pelo estado de
dependência financeira do país, nunca analisando as condições em que se
deram esses empréstimos e nem o papel de Portugal, Inglaterra e Estado
Unidos nesses processos, reservando a esses países o papel de vítimas do
plano internacional dos judeus, a partir da relação dos banqueiros judeus.
Mesmo quando não tem certeza sobre a “origem semita” dos banqueiros, como
no caso dos estado-unidenses, o autor insinua sua origem ou relação com o
plano de destruição do mundo cristão, fruto da conspiração internacional
judaica.
As interpretações seguem continuamente a linha de levar o leitor a concluir de
quem é a culpa, o convocado a fazer parte da luta contra os planos dos judeus.
O livro começa com uma citação de Leon Poncins sobre Trotsky e Rotschild,
colocando-os como dois extremos da civilização do século XX e representantes
do “espírito judaico”.
Barroso utiliza-se de metáforas cristãs com conteúdo “nativo”. Em um dos
trechos, diz:
Embora acoimados pelos comunistas de servirem ao capitalismo, os Integralistas são os que até hoje têm tido coragem de pregá-la – para que o colosso acorde, se espreguice, quebre as cadeias e, erguendo o tacape duma verdadeira liberdade, espatife os ídolos e os bezerros de ouro. (BARROSO, 1936, p. 15)
123
Uma referência clara ao relato bíblico de Jesus no templo e à idolatria dos
judeus aos bezerros de ouro, utilizando-se de alegorias como o tacape do índio
brasileiro.139
Sobre os políticos brasileiros, o autor denuncia sua postura frente aos judeus e
se revolta contra os que, segundo ele, agem contra o povo brasileiro: “Chama-
se isso habilidade. Aperta-se a mão e coroam-se com títulos os homens que
desse modo procedem, enquanto se mete na prisão o desgraçado que furtou
um níquel para matar a fome de seu filho.” (Idem, p. 17)
Nesse trecho Barroso demonstra a “sensibilidade” dos integralistas frente
àquele que rouba para matar a fome de sua família. Dialoga com o sentimento
popular, o que sugere a busca de um diálogo com os setores subalternizados e
com a classe média – como já discutido -, normalmente sensíveis à questões
como falta de acesso à alimentação, moradia e saúde.
Apesar de se opor ao conceito de luta de classes, faz referência a ele,
oportunamente utilizando-se do sentimento popular diante das lutas contra
“estrangeiros” (holandeses ou portugueses):
Os brasileiros humildes, brancos, caboclos, negros e mestiços, unidos como nos gloriosos dias da guerra holandesa, haviam derramado seu sangue no Genipapo, em Itaparica e em Pirajá. Os brasileiros chamarrados de ouro fizeram as combinações diplomáticas, os pactos de famílias e as negociatas de dinheiro. (Idem, p. 33)
A convocação da juventude, do operariado, dos soldados e do povo brasileiro
está em todo o texto. Sempre com o discurso de que a opinião destes é (ou
139 Eis os textos: João 2:13-17: “Aproximara-se então a páscoa dos judeus, e Jesus subiu
para Jerusalém. E ele achou no templo os que vendiam gado, e ovelhas, e pombas, e os corredores de dinheiro nos seus assentos. Assim, depois de fazer um chicote de cordas, expulsou do templo a todos com as ovelhas e o gado, e derramou as moedas do cambistas e derrubou as suas mesas. E ele disse aos que vendiam pombas: ‘Tirai estas coisas daqui! Parai de fazer da casa de meu Pai uma casa de comércio!’ Seus discípulos lembraram-se de que está escrito: ‘O zelo da tua casa me devorará’”; e 2 Reis 17:16: “E continuaram a abandonar todos os mandamentos de Jeová, seu Deus, e passaram a fazer para si estátuas fundidas, dois bezerros, e a fazer um poste sagrado, e começaram a curvar-se diante de todo o exército dos céus e a servir Baal;”. (TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO DAS ESCRITURAS SAGRADAS, 1986)
124
deveria ser) a de se opor ao judaísmo internacional. E não só nessa obra as
coisas estão colocadas dessa forma.
Na outra obra aqui analisada, “Os protocolos dos Sábios de Sião”, livro de
autoria da polícia secreta do czar russo, a Okhrana, em seu projeto de
incitação aos pogroms, publicado no Brasil em 1936, traduzido por Gustavo
Barroso. Como não podia deixar de ser ele faz o prefácio. Mais uma vez induz
o leitor a chegar às suas conclusões.
No prefácio ele se detém ao Processo de Berna, entre os anos de 1934 e1936,
no qual a justiça suíça considerou a obra como ilegal pelo seu conteúdo
inverídico. Barroso diz reunir provas que comprovam a veracidade da obra e
afirma que a autenticidade só pode ser questionada por judeus ou pessoas de
má-fé. Um argumento de autoridade, uma vez que, de antemão, desautoriza
críticas e mesmo localiza de onde podem “injustamente” vir: de judeus ou de
pessoas de má-fé. (Idem, p. 58)
Em todo o texto o autor busca descredibilizar os envolvidos no processo, sejam
os juízes (que ele diz serem judeus ou social-democratas) ou os advogados,
sendo que o de acusação teria forjado provas e o de defesa seria
incompetente. Além disso, sempre que mostra as provas interpreta à sua
maneira – muito particular - as fontes. Como, por exemplo, no caso em que
analisa a opinião dada pela revista judaica estado-unidense que diz que a
autenticidade ou não dos Protocolos é de menor importância; frente ao caso, o
que teria maior importância seriam suas consequências contra os judeus, ao
que Barroso afirma que essa colocação confirma a autenticidade da obra. Os
próprios judeus estariam assumindo essa autenticidade. (Idem, p. 61 e 62)
No intuito de afirmar suas conclusões e de justificar o seu ódio aos judeus, o
autor diz o seguinte: “E o antijudaísmo abrolhou por toda a parte como uma
reação defensiva natural e necessária.”140
140 Ao contrário do que defendo no primeiro capítulo, Barroso não faz distinção entre anti-
judaísmo (de caráter cultural e religioso) e anti-semitismo (com um recorte racista demarcado).
125
O papel que essas obras desempenham na propaganda integralista é de
fundamental importância. Em primeiro lugar porque a função de Gustavo
Barroso na formação da AIB era de grande destaque. Ele capitaneava as
caravanas integralistas pelo país e se fazia presente em diversos momentos,
como no Congresso da AIB baiana em 1935. Além disso, suas obras figuravam
entre as de referência na formação intelectual dos militantes integralistas e
nunca é pouco destacar que esta era uma organização com milhares de
membros em todo o país. e, diferente de seus seguidores baianos, o que
Barroso dizia tinha eco em todos esses locais.141
4.3. BRASILINO DE CARVALHO E O ANTI-SEMITISMO DE HITLER
“O debate de uma determinada época, de fato, além de abrir ao pesquisador a possibilidade de conhecer a perspectiva individual de cada autor, deixa entrever a conformação de grupos e o complexo de relações entre os agentes culturais” (OLIVEIRA, p. 25)
Brasilino de Carvalho era chefe do Departamento Provincial de Propaganda da
AIB – Bahia, além disso, junto com Victor Hugo Aranha, outro militante da AIB,
ajudou à reestruturar o jornal O Imparcial, em 1934. Sobre a vida dele não
encontrei muita coisa, apenas referências sobre sua relação com o jornal e um
debate, ocorrido nas páginas de O Imparcial referente a um livro seu, O anti-
semitismo de Hitler.
Deparei-me Brasilino de Carvalho de uma forma diferente a que cheguei a
Gustavo Barroso. Quando se fala de anti-semitismo Barroso é a principal
referência brasileira. Como dito acima, trata-se de um dos principais
intelectuais do integralismo brasileiro e suas obras sempre se encontram entre
as indicadas como referenciais básicos para a formação do militante
integralista.
141 Com isso, estou querendo demonstrar que o anti-semitismo não era uma elaboração de
alguns militantes locais, mas sim da própria AIB.
126
Carvalho, por sua vez, não aparece entre as indicações de leitura da Secretaria
Nacional de Imprensa. Segui um caminho curioso para conhecer os pontos de
vista desse dirigente da AIB – Bahia. Localizei uma resenha de seu livro
quando pesquisava sobre anti-semitismo no jornal O Imparcial. O livro foi
anunciado, pela primeira vez, em 11 de janeiro de 1935, em um box que
informava seu lançamento. Na seção do jornal Livros Novos do dia 16 de
janeiro de 1935 é apresentado uma obra que se intitula O Anti-Semitismo de
Hitler. A apresentação do livro não é assinada por ninguém, o que me faz crer
que seja escrita pelo corpo editorial do jornal ou por algum leitor da obra, ou
pelo próprio autor, que tinha ligações estreitas com o diretor do jornal, o
também integralista Victor Hugo Aranha.142
Ao ler a apresentação pode-se constatar o seu conteúdo propagandista e
defensor do anti-semitismo. O texto começa assim:
Ha uma bem entendida anciedade [sic] nos circulos culturaes da Bahia, interessados nas questões sociaes que agitam o mundo nessa hora de intranquillidade universal, pelo apparecimento do livro de Brasilino de Carvalho - “O Anti-Semitismo de Hitler” - tão amplamente annunciado. O assumpto é dos mais palpitantes e da maior actualidade. À ascenção de Hitler ao governo da Allemanha, que elle vae reerguendo e recollocando aos olhos do mundo na situação proeminente que attingiu nos ultimos annos que precederam à grande guerra, succedeu-se uma forte reacção nacionalista contra os inimigos do paiz, os que não querendo se conformar com o regimem renovador que empolgava a nação allemã, procuravam por meios revolucionários resistir-lhe. A Allemanha era um formidavel centro de actividades communistas animadas pelos judeus.
Logo de início o texto já justifica a defesa de Carvalho ao nazismo e suas
ações contra os judeus. No decorrer é feita uma apresentação mais detalhada
da obra. O livro é uma resposta a uma outra obra, publicada pela Editora
Civilização Brasileira, e intitulada Por que ser anti-semita – Um inquerito entre
intellectuaes brasileiros. Essa obra reuniu intelectuais brasileiros que
142 Sobre a relação entre Aranha e Carvalho, cf. FERREIRA, p. 41.
127
expuseram suas opiniões diversas sobre o assunto. O texto do jornal diz o
seguinte sobre a resposta de Carvalho:
Discutindo com segurança, argumentando e documentando suas affirmações feitas em linguagem clara e franca, elle deixa nos que lêem perfeitamente esclarecido o assumpto
convencendo que não foi anti-semitismo que Hitler faz na Allemanha, mas defesa necessaria das novas instituições allemães, do nacionalismo allemão, ameaçados pelo internacionalismo judaico.
Como propaganda, o texto já apresenta a resposta dada pelo autor ao tema e
dá sua interpretação dos fatos ocorridos na Alemanha nazista, além de elogiar
a escrita do autor e defender que suas contra-argumentações se basearam em
documentação, o que já lhe confere adiantadamente, mais respaldo entre os
potenciais leitores. Pensei, então, que aí estava uma resenha em O Imparcial
que apresentava, na Bahia, a defesa do anti-semitismo, mas não era só isso.
Procurei saber quem era o autor e, na dissertação de Laís Ferreira constatei
que, além de integralista, o autor fazia parte do quadro da AIB – Bahia e que o
mesmo era chefe do Departamento Provincial de Propaganda. Brasilino de
Carvalho, então, estava dando sua contribuição enquanto intelectual eleito pelo
integralismo baiano. Há ainda uma rápida referência ao autor numa resenha143
de Ivair Augusto Ribeiro que fala sobre seus estudos acerca do integralismo na
imprensa da cidade paulista de Olímpia. Brasilino de Carvalho aparece como o
articulador do texto Fascismo e communismo, publicado no jornal Cidade de
Olympia de 28 de janeiro de 1934, onde tece, sendo eufemista, elogios a
Mussolini.
Constado quem era o autor, ao menos no que é relevante para o tema desta
dissertação, tentei buscar algo mais sobre ele, sua importância para AIB e não
o encontrei em nenhuma das diversas obras sobre o integralismo ou anti-
semitismo. Parti, então, na busca de sua obra e, posteriormente, para a análise
da mesma. Ao ler o livro, percebi que para fazer uma análise mais qualificada
da obra seria necessário buscar a motivação para a escrita de Carvalho. Lendo
143
RIBEIRO, Ivair Augusto. Sob o signo do fascismo e do anti-semitismo: o integralismo na imprensa de Olímpia / SP (1929-1937)
128
Por que ser anti-semita? pude comparar suas argumentações com as dos
autores que o escreveram, in loco. Segue-se, então, essa análise, cujo o
objetivo é tratar, especialmente, das principais polêmicas travadas pelo
integralista baiano com os outros intelectuais.
4.3.1 A BARRA DE FERRO E A BROWNING144
Se tem algo que a resenha diz e condiz com a obra de Brasilino de Carvalho é
a sua linguagem. Os capítulos são curtos e os textos são caracterizados por
uma linguagem irônica e de fácil entendimento. O estilo da argumentação, e a
formatação do texto apontado acima são muito semelhantes à de Plínio
Salgado e Gustavo Barroso que, talvez, se influenciassem mutuamente e
cultivavam uma forma de se comunicar e convencer, tido como referência para
toda militância. Da mesma forma o autor sempre “encaixa” citações de autores
conhecidos como Leon Poncins e Henry Ford, conhecidos anti-semitas.
Curiosamente Carvalho não utiliza nenhuma obra de Barroso, somente Os
protocolos dos Sábios de Sião que não é de autoria do integralista cearense,
mas ainda não havia sido publicado a partir de sua tradução.
O livro é dedicado a Salgado, como toda obra integralista, e à Hitler e Mussolini
que, segundo suas palavras symbolisam a reacção christã contra o
bolchevismo (CARVALHO, 1934). Além disso, curiosamente, dedica ao
chanceler austríaco Dollfuss, morto por nazistas da Áustria, numa tentativa
fracassada de tomada de poder, antes da anexação deste país pela Alemanha,
o que, por certo, demonstra uma preocupação constante dos integralistas em
não serem rotulados de extremistas.145
144 O subtítulo foi pensado a partir do texto de Baptista Pereira que em seu texto para “Por que ser anti-semita?”, intitulado “A América do Sul e o antisemitismo germânico” diz o seguinte: “Leon Trotsky, no 'Manchester Guardian' lembra que quando um homem empunha uma barra de ferro parece mais perigoso do que quando esconde no bolso do paletot uma Browning. O Hitler das denegações é o segundo. A vida dos Judeus continua hoje ameaçada por uma Browning escondida.” (p. 19-20) Browning é um tipo de rifle. Baptista Pereira foi genro de Ruy Barbosa e publicou O Brasil e o anti-semitismo, pela editora Guanabara, em que denunciava as atrocidades de Hitler, na Alemanha nazista, contra os judeus (cf. seção Livros e autores: Problemas sociaes – Historia – Impressões, de Quixadá Felício, em O Imparcial, 10 de fevereiro de 1934. 145 Quando da cassação do PCB e da ANL, após a tentativa de golpe em 1935, a AIB, a partir de Plínio Salgado, lança uma campanha nos jornais na tentativa de que não seja aplicada à
129
No prefácio do livro Carvalho já questiona os objetivos da obra com a qual
debate, fazendo a seguinte consideração sobre a nota dos editores do livro que
indica para onde enviar comentários sobre o mesmo:
Porque a nota referida, pedindo referencias e commentarios a uma publicação de natureza dessa, deixa transparecer a certesa dos seus divulgadores acerca da ingenuidade brasileira, facil, por isso mesmo, de ser illudida pelos conceitos emittidos nos escriptos de intellectuaes brasileiros que, julgando com o coração mais que com o cerebro, não relutaram em emprestar o brilho dos seus nomes à fachada de um livro-mau, offerecendo-lhe material para que se levante uma columna apparentemente forte em que se ampare, no Brasil, a mais impatriotica e a mais perigosa de quantas causas más têm afflingido os povos. Causa que é tanto mais perigosa e impatriotica quando se trata de um paiz como o Brasil, onde fóra do ambiente integralista, ninguém comprehende a origem do problema social que ameaça o christianismo.(CARVALHO, 1934, p. II e III. Grifo do autor)
Desde o início o autor desqualifica a opinião dos outros intelectuais que
usariam muito mais o coração do que o cérebro, além de considerar que o
povo brasileiro é ingênuo e por isso mesmo fácil de cair nessas
argumentações. Além disso, demonstra que, assim como Barroso, ele acredita
que a causa dos males brasileiros está nos judeus e que a AIB é o único lugar
onde isso está claro. Não quero, com isso, dizer que a AIB, ao menos
explicitamente, apontava os judeus como a causa dos problemas brasileiros,
mas que essa conclusão não surge do nada e remete, assim como Barroso,
sua luta contra os “judeus internacionais” à organização.146 O trecho também
mostra o caráter de propaganda da obra e seu desejo de convencer os leitores
de sua verdade.
Carvalho se preocupa em “desmistificar” a inocência dos judeus no caso da
Alemanha. Argumenta, como pode ser constatado no texto de O Imparcial, que
organização o rótulo de extremista. Aliás, é uma preocupação que consta na obra de Salgado, já citada neste capítulo, O que é integralismo, onde ele diz: “... o liberalismo entrou a cumprir sua missão dissolvente, abrindo os portos do Brasil ás ideologias extremistas.” (p. 85) 146 Sobre essa questão ver CRUZ (2004)
130
Hitler na verdade foi “forçado” a castigar os responsáveis pela bolchevização
da Alemanha, ou seja, os judeus. Pobre coitado esse Adolph Hitler, não?
Forçado a castigar os judeus! Essa preocupação se dá porque, segundo o
autor, “No Brasil, accentua-se também a propaganda contra o supposto anti-
semitismo de Hitler.” (CARVALHO, 1934, p. 03. Grifos meu).
Semelhante à Barroso, em outro trecho, Carvalho se coloca como um
intelectual a serviço do povo e que conhece e aceita sua função, como dever,
enquanto os outros seriam membros da elite: 147
Começaram por dizer que, ante a repercussão que vae tendo no Brasil o anti-semitismo de Hitler, lhes occorreu appellar para um grupo de intellectuaes, solicitando-lhes um pouco de luzes para orientação das massas brasileiras, neste momento que consideram crepuscular. E estes, com a “gentilesa e generosidade” que tão bem caracterisam as elites nacionaes – acudiram promptamente ao seu apello. (CARVALHO, 1934, p. 4. Grifo meu).
A preocupação da obra “Por que ser anti-semita?”, apontada no prefácio pelos
seus compiladores, se dá porque estes consideram a discussão como feita de
forma muito superficial do tema nos debates em jornais. É bem verdade que
nem a obra de Carvalho e nem a obra da Civilização Brasileira se aprofundam
no tema, mas podemos encontrar na segunda discussões mais qualificadas
sobre o assunto.
Em linhas gerais, a maior parte dos autores de Por que ser anti-semita?
apelam para a aversão do povo brasileiro a preconceitos de cor ou religião.
Obviamente uma falácia, já que algumas etnias não eram bem vistas dentro do
processo civilizador brasileiro, mas, a partir disso, podemos perceber o que
esses intelectuais pensavam sobre racismo e o seu projeto de Brasil como uma
democracia racial.
As polêmicas de Brasilino de Carvalho com os outros autores variam de caso a
caso. Interessa aqui algumas delas, em detrimento de outras, por considerar de
147 O termo “intelectuais da elite” é utilizado pelos compiladores de “Por que ser anti-semita?”, p. 9
131
maior relevância, seja devido à importância que Carvalho dá, seja por avaliar
que são os textos melhor construídos. O primeiro deles é o de Evaristo de
Macedo, qualificado pelo autor integralista e “julgador apressado” e afirma que
Macedo não leu de verdade as obras que cita. A adjetivação se dá pelas
conclusões que Macedo chega a partir de ideias de autores clássicos do anti-
semitismo internacional, como Chamberlain, Poncins e Ford. Carvalho não
aprofunda muito sua crítica, mas eis a motivação de sua divergência.
Quando, ha annos, li a obra do teuto Chamberlain que traz por título, na edição franceza, La genèse du XXième siècle148, e
percorri as muitas eruditas páginas inspiradas pela ogerisa germanica contra os Judeus, tive a impressão de que os argumentos ali reunidos (por formas calculadamente tendenciosas), longe de autorisar a thése anti-semítica do autor, serviram para sustentação da thése contraria. (…) O mesmo succedeu commigo, ultimamente, ao perlustrar a obra de Léon Poncins As forças secretas da Revolução – Maçonaria e Judaismo, e a de Henry Ford O Judeu Internacional. Qualquér [sic] dellas a meu vêr, reaffirma, da
maneira mais completa, a existencia de altas faculdades que, concorrendo nos Judeus, contribuiram para lhes assegurar as situações combatidas pelos autores.149
Reproduzi acima a citação ao qual Carvalho se prendeu para concluir o seu
posicionamento sobre o autor, mas sequer é esse o ponto central do texto de
Macedo. O texto é repleto de citações sobre outros estudos sobre os judeus.
Estudos esses que o levaram a concluir que o problema judaico é, de fundo,
econômico, e não moral ou religioso como podemos ver no trecho a seguir.
Estou convicto, no emtanto [sic], de que, alem do preconceito racista, naturalmente robustecido na Allemanha após a sua derrota, está agindo, ali, a mesma concorrência economica
que, outr'ora, era dissimulada pelo fanatismo religioso em Hespanha e em Portugal.150
Das duas, uma. Ou Brasilino de Carvalho, que acusa o seu opositor de não ter
lido as obras que cita, fugiu da argumentação central de Macedo ou fez uma
leitura apressada do texto. Mas cabe aqui uma terceira hipótese. Ele pode ter
148 A gênese do século XX. Tradução minha. 149 O antisemitismo actual, como expressão da angustia economica. p. 21-22. 150 Idem. p. 24
132
feito uma leitura altamente tendenciosa, a ponto de desvirtuar o objeto e os
objetivos de Evaristo de Macedo. Talvez, esse tipo de ilação não caiba ao
trabalho historiográfico, mas sei que a possibilidade de conjecturar possibilita
entender determinados fatos. São, portanto, conjecturas acerca dessa
polêmica, cujo objetivo é buscar compreender como se constituiu os caminhos
argumentativos daquele intelectual.
Na seqüência, o autor, tratado por Carvalho, é Plínio Barretto. Não repetirei as
impressões tidas acima, já que não é difícil constatar que os camisas-verdes
baiano ou não leu os textos por completo ou tergiversa diante das discussões
centrais de cada autor, numa forma de esvaziar o debate e levar o leitor a
conclusões que ele supõe errôneas sobre a argumentação dos autores. Nesse
sentido, as impressões que se tem ao ler o texto de Carvalho, jogam por terra a
afirmação contida em O Imparcial que diz que este autor documenta as suas
argumentações.
Sobre Barretto, que em seu texto tece algumas considerações sobre as
restrições de trabalhos aos judeus na Alemanha nazista e conclui que isso não
seria “aplaudido” aqui no Brasil, Carvalho deturpa todas as argumentações e se
prende apenas a essa última consideração, dizendo:
“Condemnar a attitude de Hitler, responsabilisando-o pelo crime politico de haver despertado o povo allemão para a realidade de um perigo imminente, achando que o brasileiro nunca seria de igual medida, é declarar-se solidario ao
judaismo, pretendendo representar a aspiração do nosso povo, de cuja totalidade uma grande percentagem, convencida da responsabilidade dos judeus em face da revolução universal, não haverá de concordar com os seus pontos de vista. (CARVALHO, 1934, p. 11. Grifo meu).
Percebe-se que Brasilino de Carvalho considera que o povo brasileiro já está,
então, convencido do “projeto inescrupuloso” dos judeus a nível internacional.
Nesse fragmento ele transforma o seu desejo de ojeriza aos judeus em
convicção dos brasileiros em quase sua totalidade. Trata-se de um recurso
discursivo, uma forma de convencer os seus leitores de que a luta contra os
judeus no Brasil já está dada.
133
Um parêntese na análise dos textos e do debate. Apesar de Os protocolos dos
sábio de Sião não serem citados pelos autores da coletânea de textos,
Brasilino sempre insere trechos desse livro no debate como documentação que
comprova as más intenções dos “planos dos judeus”.
Um outro artigo importante é o de Maria Lacerda de Moura. Feminista,
anarquista individualista, militante anti-fascista.151 É o texto melhor articulado
da coletânea pela complexidade com que ela trata o assunto, não vitimizando
os judeus, mas trazendo uma análise bastante rica para o assunto. Ela inicia
com contribuições da psicanálise sobre “instintos primitivos” e “ferocidade
ancestral”, argumentando que estas são características de nosso lado animal,
disciplinadas pela nossa vida em sociedade e que são estimuladas em
situações extremas, como as guerras e suas conseqüências: fome e miséria.
Nessas situações:
Aparecem os caudilhos, surgem os charlatães sem escrupulo, de palavra fascinante e atitudes tragi-cômicas, e a mentalidade prehistorica do troglodita, desperto pela virulencia dos condutores de febre alta, volta a endeusar a autoridade do
mais forte e pede o capataz de rebenque em punho.152
Moura continua e argumenta que ao mesmo tempo em que Hitler quis
exterminar os judeus, ele não teve problemas em ser financiado por judeus
ricos, como o barão Schroeder, banqueiro. A autora baseia sua denúncia em
um telegrama com notícias de Berlim.153 Ridiculariza Hitler, dizendo que o
mesmo não conhece nada de antropologia ou etnografia, disciplinas que
afirmam não existir nenhuma raça pura e sim povos. Sobre as raças, lança o
argumento de que só existem raças históricas e sociais e não biológicas.
Na última parte do texto, Moura sistematiza as bases do anti-semitismo
moderno, sendo eles: o nacionalismo; os movimentos libertários e a tomada de
consciência de classe. Para ela o nacionalismo, para evitar essa tomada de
151 Cf.: http://www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_2349.html e http://www.nodo50.org/insurgentes/textos/mulher/10feminismocaridade.htm 152 “Escuta Israel!...”. p. 39. O título se refere a uma das orações judaicas que se inicia com um trecho da Torá: “Shemá Israel, Adonai Eloheinu, Adonai Echad...” trad. “Ouça Israel, o Senhor é é seu Deus, o Senhor é Único”. Nota minha. 153 Idem, p. 44
134
consciência e esvaziar os movimentos revolucionários, desvia o foco da
necessidade de superação da sociedade burguesa e joga para um inimigo
imaginário, no caso alemão, o judeu.
Apesar de todas essas argumentações Brasilino de Carvalho resume assim a
contribuição de Maria Lacerda de Moura:
… além de ser expressão feminina da proclamada “gentilesa e generosidade” dos brasileiros, deixou-se influenciar, ainda, pela sensibilidade do seu sexo. Tão prodiga ella foi na exaltação do
martyrio de que são victimas os judeus na Allemanha, que se não deteve nem diante de grosseiros sophismas.
E mais
O que se deu na Allemanha não foi o que affirmou a escriptora internacionalista. Quando Hitler assumiu a chefia do governo, o seu programma de acção já estava traçado: destruir a influencia judaica, para não deixar que a Allemanha fosse destruida pelo judaismo, que a vinha solapando desde os primeiros fragores da guerra de 1914.(CARVALHO, 1934, p. 14 e 15. Grifos meus)
A argumentação de Carvalho mais uma vez é pobre, restringindo-se a tentar
descredibilizar a autora usando, dentre outras coisas, o fato dela ser mulher,
demonstrando qual o papel relegado às mesmas dentro da doutrina
integralista.
Sobre o texto de Antonio Piccarolo Carvalho ele diz:
Da conferencia-depoimento do Snr. Antoniio Piccarolo, a conclusão philosophica se resume no seguinte: sendo esse intellectual um apaixonado defensor do judaismo internacional, e o mais feroz dos anti-fascistas brasileiros, qualquer argumento de que se sirva para a defesa da raça e ataque ao regimen, embora menos racional e mais absurdo, encontra sempre a sua razão de ser no estado de animo do próprio articulista. (Idem, p. 17 e 18).
Piccarolo foi um jornalista italiano que veio para o Brasil em 1904, a convite do
Partido Socialista Italiano, para coordenar um jornal da organização em São
135
Paulo.154 O texto dele segue uma argumentação semelhante ao de Moura, de
que o anti-semitismo não tem motivações reais na divergência moral ou
religiosa e sim em questões econômicas. A moral que segue tem uma origem
comum, os textos bíblicos, daí não haver uma ligação lógica entre uma
perseguição baseada nessas questões. O autor expõe algumas diferenciações
entre os fascismos alemão e italiano. Como se pode ver, o texto não se resume
apenas a absurdos ou a seu estado de ânimo.
Alguns textos, como o de Menotti del Picchia e Gilberto Amado, não são
discutidos por Carvalho. De fato, eles não trazem nenhuma polêmica maior.
Todos se opõem ao anti-semitismo, mas baseiam suas formulações em
generalidades, como o argumento de que aqui no Brasil não se prolifera o anti-
semitismo porque somos um povo sem preconceitos de raça e nem religião.
Mas tem um, em especial, que não entendi porque ele não toca. Orígenes
Lessa. Seu texto se intitula O Martyrio é a força (p. 97). Digo em especial
porque nesse texto Lessa, remete-se, inclusive, ao argumento que Carvalho
usa para desqualificar a obra, de que os textos são, em muitos casos,
contraditórios em suas conclusões, mas que representam a proposta da
coletânea que é a diversidade na abordagem (em alguns casos um tanto
quanto pobres), argumenta que os judeus estão por trás da construção do anti-
semitismo, ou seja, daria subsídios à ideia de uma trama internacional judaica.
Abaixo um trecho significativo:
É por isso que, longe de ver no actual anti-semitismo uma injusta e anachronica manifestação do velho “vicio alemão”, como chama Ludwig, ao anti-semitismo de sua terra, eu tenho mais a sensação de estar vendo titeres a lançar pedras e chufas, movidos à sombra pela sagacidade de velhos e doutos lideres hebreus.155
De fato, fica a dúvida do por quê Brasilino de Carvalho não analisou esse texto.
Mas posso sugerir que, ao que me parece, tenha sido porque o objetivo era
154 Ver: http://segall.ifch.unicamp.br/site_ael/index.php?option=com_content&view=article&id=101&Itemid=90 155 O Martyrio é a força, p. 99
136
polemizar com aqueles que tinham uma explicação diferente da sua e do
partido que representava.
Se Lessa não foi considerado por Carvalho, não foi o caso de Jayme Adour da
Câmara, considerado por ele como “o mais sereno e desapaixonado
depoimento”. Isso porque Câmara demonstra claramente seu posicionamento
anti-semita. A ideia central de seu texto é que os judeus são inassimiláveis –
um argumento racialista, diga-se de passagem, conforme já exposto. Para
comprovar sua tese ele cita dois casos. Um de Uriel Costa, português que
tentou adentrar em um gueto judaico. Ele se converteu e após questionar o
isolamento judaico, foi castigado e expulso pelos judeus. O outro caso é do
filosofo Baruch Spinoza, que nascido dentro da religião foi expulso ao
questionar seus dogmas.
A seguir um dos trechos do texto de Câmara: “Ha mil e novecentos anos que
êsses obscurantistas invencíveis não desejam outra coisa: fugir do mundo; e só
o lograram trancando-se em suas comunas em que não é permitida a menor
transigência com a dissolvente “haskala”, fonte de todo envenenamento.” 156
Convenientemente, quando concorda com suas teorias e o seu posicionamento
o autor não é mais guiado pelas emoções.
Outro autor enfocado por Carvalho é José Mendonça. O texto dele relativiza as
perseguições aos judeus. Mendonça acha que são justificáveis quando feita a
judeus subversivos, que queiram desestruturar a política, mas diz que esses
são minoria e defende que os judeus deram grandes nomes para humanidade.
Brasilino de Carvalho discorda da conclusão, apesar de achá-lo coerente em
suas justificativas sobre as perseguições. Sobre esses “grandes nomes”, ele
afirma terem como objetivo a destruição do mundo cristão. (CARVALHO, 1934,
p. 58)
156 O problema judeu. p. 163
137
O livro de Brasilino de Carvalho finaliza expondo sua tese central. Não há anti-
semitismo, o que há é a luta contra os projetos de dominação mundial pelos
judeus. Para descaracterizar a luta contra o anti-semitismo Carvalho afirma que
a imprensa “judaizada” do mundo inteiro leva à frente esse projeto: “Essa
campanha vae se tornando perigosa porque, para conquistarem os judeus a
solidariedade dos povos christãos, que se deixam facilmente trahir pelo
sentimentalismo religioso, se mascaram de ingênuos e innocentes, afim de que
o seu protesto tenha a desejada efficiencia.”157
A coletânea de textos com a qual Carvalho debate é grande. São 35 artigos,
em 267 páginas. A resposta é dada em pífias 97 páginas. Pífias não tanto pela
extensão, mas pela qualidade que empobrece a resposta de Carvalho. Apesar
disso, a obra teve aparente repercussão entre os integralistas baianos, como
apresentarei a seguir.
4.3.2 DEBATE ENTRE INTEGRALISTAS
Já apresentei o texto que divulga o livro de Brasilino de Carvalho no jornal O
Imparcial, um dos mais importantes periódicos da Bahia na época. Abordarei
agora a repercussão da obra e do texto do jornal.
O primeiro a comenta-la é o também integralista (aliás, todos os comentaristas
da obra são da AIB – Bahia) Adonias Aguiar Filho.158 Aguiar compôs a AIB da
cidade de Ilhéus e, segundo Marcelo Lins, era um dos maiores ativistas da AIB
no sul da província.159 Sobre a obra, Adonias Filho diz o seguinte:
Em conjunto, o livro de Brasilino de Carvalho consegue o seu fim. Desfaz, valendo-se de sua característica jornalística, todos os argumentos, todas as “razões” apresentadas pelos
157 Idem, p. 87 158
Adonias Aguiar Filho, conhecido apenas como Adonias Filho, foi um escritor baiano que retratou em suas obras, principalmente, a realidade da região cacaueira do estado da Bahia que tem como principal cidade Ilhéus. Para saber mais sobre Adonias Filho, sua obra e sua relação com a AIB, conferir: CARDOSO, João Batista. Literatura do Cacau – Ficção, ideologia e realidade em Adonias Filho, Euclides Neto, James Amado e Jorge Amado. Ilhéus: EDITUS, 2006. 159 LINS, Marcelo da Silva. Vermelho da terra do cacau: atividade comunista no sul da Bahia (1935-1936). Dissertação de mestrado. Salvador, UFBA, n/d, p. 147.
138
intellectuaes brasileiros no “Por que ser anti-semita?”. Desfaz os argumentos e desfaz os autores. Revela ao publico a sobra de talento e a falta de caracter em certos escriptores patricios.160
Mas Adonias Filho não fica só nos elogios. Seu texto é um complemento ao
livro de Carvalho. Nele se prende a dois autores que não obtiveram de
Carvalho uma atenção maior.
O primeiro é Nelson Tabajara, que argumenta que as bases do nazismo é o
fanatismo religioso. Adonias Filho se põe a destruir a argumentação de
Tabajara, dizendo que o nazismo se baseia na ciência (!). Cita como referência
da doutrina de Hitler estudos da época sobre craniologia, que identificavam a
superioridade da raça alemã. Na própria coletânea, se de fato a intenção não
fosse apenas a complementação da propaganda anti-semita de Carvalho,
Adonias Filho encontraria uma argumentação contrária, na contribuição de um
outro autor, Decio Ferraz Alvim, que em seu texto Divagações sobre o anti-
semitismo, cita Lombroso, na sua obra, Delitto Político, 1.ª parte, em que
argumenta que os judeus não são puros semitas e que o judeu é mais ariano,
devido às misturas, que semita.161 Mas por motivos óbvios não é intenção de
Adonias FIlho trazer essa discussão à tona. Pelo contrário, ele opta por travar
seu debate com Tabajara, que centra seu texto em reconstruir a história do
anti-semitismo da Idade Média até os tempos de hoje e afirmar que os judeus
são parte da formação do povo brasileiro.
O outro com o qual Adonias Filho trava um debate é Bezerra de Freitas. Mais
uma vez, ele perde o foco da discussão trazida pelo articulista da coletânea de
textos da Civilização Brasileira. Filho afirma que Freitas opõe a religião à
ciência e relembra as contribuições, mencionadas por Carvalho em seu livro,
que os religiosos, padre Franco e Reverendo Moigno, deram à ciência. O texto
de Carvalho confunde a produção científica desses religiosos com suas opções
de fé. Mas Freitas não opõe uma coisa à outra, argumenta que ambas têm seu
160 Seção Livros novos – À margem d' “Anti-semitismo de Hitler”. O Imparcial, 12 de fevereiro de 1935 161 Divagações sobre o anti-semitismo, p. 147
139
lugar e que nem a ciência pode suplantar o conforto espiritual das religiões,
tampouco a religião deve se opor à ciência.162
Ainda em fevereiro, na edição do dia 27 de O Imparcial, aparece um outro
comentário da obra de Carvalho. Desta vez quem escreve é Oldegar Vieira,
responsável pela formação no Departamento Provincial de Juventude.163 O
texto de Vieira é de exaltação à obra de Carvalho. Ele ainda afirma ter lido “Por
que ser anti-semita?” e diz ter pensado em comentá-lo, mas reconhece que a
obra de seu companheiro de agremiação o contemplou em tempo hábil. O texto
é pequeno, mas diz muito. Abaixo um trecho.
“Por que ser anti-semita?” decepciona!
Mas é possível que a mentalidade da nossa gente, deante de
figurões que nella figuram e tão ignorante que é da questão
social e tão romantica, si deixe levar pelo sentimentalismo, pela
incoherencia, pela literatica, pela paixão, pela “gentilesa”, pela
“generosidade” dos nossos intellectuaes tão attenciosos ao
“appelo” dos judeus quanto levianos e absurdos.
Por isso, Brasilino de Carvalho, com o seu livro prestou um
grande serviço tanto aos que sabem, como os que não sabem
“por que ser anti-semita”.164
No dia 07 de março de 1935, eis que surge a opinião de Herbert Parente
Fortes, piauiense, professor da Faculdade de Filosofia e do Ginásio Baiano e
líder integralista, opinando sobre a obra de Brasilino de Carvalho.165 Fortes
inicia elogiando a obra de Carvalho, mas baseia seu texto no argumento de
que generalizações são perigosas e diz não acreditar que os judeus são os
únicos culpados pelas revoluções comunistas ou pelo capitalismo. Argumenta
da seguinte forma:
162 Religião e Sciencia, p. 241 e 242. 163 Sobre Vieira, ver FERREIRA, 2006, p. 86. 164 Seção Livros Novos – O anti-semitismo de Hitler. O Imparcial, 27 de fevereiro de 1935. 165 Sobre Fortes ver FERREIRA, 2006, p. 61.
140
Com J. Maritain estou certo do perigo do capitalismo judaico a
serviço de seu sionismo messianico. Com isso estou longe de
negar os merecimentos dessa raça immortal de homens
capazes de assimilar o espírito de todas as demais raças sem
assimilar-se a nenhuma delas, entre as quaes muitas há de
uma inexperiencia lastimavel, com(o) a nossa. Por outro lado,
porem, concordo ainda com J. Maritain em acreditar no perigo
maior dos maus christãos. O pior judeu do mundo não seria
capaz de amedrontar uma nação, se não contasse com a
conivencia dos filhos da terra que se lhe offerecem para
vanguarda de seus planos revolucionarios. Grita-se por ahi
contra o grande numero de judeus que dirigem a Russia
sovietica em contradição com os judeus que manejam
omnipotentemente o capitalismo opressor da Inglaterra, da
França, da Norte America. Mas é preciso ser ingenuo para crer
que o judeu faz tudo isso contra a vontade dos filhos dessas
nações. (…) Ao meu ver, a celeuma contra o judeu se funda
em parte em uma velha manobra politica de lançar para o mais
fraco a culpa. Falo, já se vê, do ponto de vista Brasileiro. Não
me acredito uma vitima do judaismo, mas de uma sociedade
em que o judeu occupa uma parte, - a parte financeira
propriamente dita...166
Curiosa essa referência à Maritain. Em 1943 não parecia ser mais essa a
opinião do intelectual francês. No prefácio à obra Racisme-Antisémitisme:
Antichristianisme, ele diz o seguinte sobre a entrega de judeus para os nazistas
na França:
Eu falei sobre o anti-semitismo muitas vezes; eu nunca poderia ter pensado que um dia eu teria que falar sobre o assunto por causa de leis promulgadas para perseguir, feito por um governo de se diz francês. Face a essa vergonha, uma vergonha nova foi recentemente aprovada. Eu falo das terríveis medidas tomadas contra os judeus estrangeiros, não só em áreas ocupadas, mas na chamada zona livre. Vinte mil judeus estrangeiros foram presos pelos alemães na zona ocupada. Na zona não ocupada treze mil foram perseguidos
166 O Anti-Semitismo de Hitler – Um estudo do sociologo Herbert Fortes. O Imparcial, 07 de março de 1935.
141
pela polícia, para serem entregues, e em seguida deportados, em condições desumanas que vão além da nossa imaginação. Uma enorme onda de indignação mobilizou a consciência cristã na França e o excesso do mal teve pelo menos efeito, que o anti-semitismo, revelado ao povo francês sob sua verdadeira natureza, será no entantao rejeitado por ele como um veneno maldito.167
Na sequência do seu artigo, Fortes irá relativizar a questão do judeu no Brasil,
defendendo que, desde que mantido sob controle das leis, os judeus possam
contribuir para a formação do país. Diz que a obra de Carvalho aponta para
uma especificidade alemã, onde os judeus operavam o jogo de subversões
apontado por ele acima.
Fortes, ao que parece, teve a preocupação veiculada pelos líderes do Sigma
de relativizar a questão da perseguição aos judeus, mas confirma a não
assimilação e seu envolvimento com movimentos subversivos. Parece-me que
a principal preocupação é não fazer uma ligação direta entre o anti-semitismo e
a AIB.
O anti-semitismo da AIB é parte constituinte da formação da organização.
Enquanto temos Gustavo Barroso como seu principal elaborador, a obra de
Brasilino e o debate em torno dela demonstram qual o posicionamento dos
intelectuais baianos da AIB, além da importância desses intelectuais na
formação de uma concepção.
Outro aspecto relevante para se entender concepção e funcionamento na
Bahia é a preocupação em relação à inserção dos integralistas nas classes
167 MARITAIN, p. 13-14, IN: OESTERREICHER (1943) traduzido do alemão. Tradução livre.
Reproduzo, a seguir, o original: J'ai parlé de l'antisémitisme bien des fois; je n'aurais jamais pensé que je devrais le faire un jour en face de lois persécutrices promulguées par un gouvernement qui se dit français. A ces lois honteuses une honte nouvelle a été récemment ahouée, je parle des mesures affreuses prises contre les juifs étrangers non seulement en region occupée mais dans la zone soi-disant libre. Vingt mille juifs étrangers ont été arrêtés par les Allemmands dans la zone occupée. Dans la zone non-occupé treize mille ont été pour-chassés par la police, pour être livrés, ensuite et deportés, dans les conditions d'inhumanité qui dépassent l'imagination. Une immense vague d'indignation a soulevé la concience chrétienne em France, et l'excés du mal a du moins cet affet que l'antisémitisme, révélé au peuple français dans sa vraie nature sera désor mais rejeté par lui comme un poison maudit.
142
subalternizadas, o que indica que os mesmos objetivavam disseminar o anti-
semitismo na sociedade baiana. Se não houve manifestações de perseguições
físicas aos judeus, na província da Bahia, havia um projeto de se disseminar o
ódio aos mesmos. Talvez pela irrelevância numérica da comunidade judaica na
Bahia e pela não identificação imediata dos mesmos isso não tenha acontecido
ou esses intelectuais não conseguiram tornar suas opiniões sobre os judeus
hegemônicas entre seus associados e sua área de influência. Talvez...
143
CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS
As maiores contribuições do marxismo para a História são, ao meu ver, a
dialética e o desenvolvimento desigual e combinado. A análise da conjuntura
dos anos 1930, feita a partir desses conceitos, permite compreender melhor
como se deram as disputas no campo da economia política. Nesse período
houve um acirramento de ideologias que se apresentavam de forma bastante
enérgicas, rompendo com o “marasmo” do reformismo e com a aliança de
classes entre a burguesia e a social-democracia na Europa, ao mesmo tempo
em que o comunismo e o fascismo se espalhavam pelo mundo. No Brasil a
ascensão de Vargas ao poder prometia ser a ruptura com as velhas
oligarquias, ao menos no discurso. Na prática, Vargas e seus aliados,
conseguiram se equilibrar no fio da navalha, utilizando-se das disputas políticas
entre os “extremismos” e entre seus aliados e adversários como um jogo para
sua manutenção no poder durante toda a década de 1930.
Os herdeiros da Aliança Liberal cumpriram os seus papéis no governo
provisório. Ora a ferro e fogo, ora cedendo às pressões classistas,
manteviveram as insatisfações sócio-políticas dentro de limites que não
conturbassem a ordem do Estado burguês. Administrou crises políticas,
financeiras e sociais e, internacionalmente, se relacionou com liberais e
fascistas, e até mesmo se aliou aos comunistas da URSS, quando lutou lado a
lado com os soviéticos contra os países do Eixo, na Segunda Guerra Mundial.
Esse tempo de crises nacional e internacional permitiu o afloramento de
sentimentos conservadores, como a manutenção da família nesses moldes, a
xenofobia, o racismo. Os jornais se sentiram a vontade para disseminar esses
ideais e abriram suas portas para quem “melhor” os elaborassem. O ódio ao
judeu veio no bojo dessa situação.
O judeu, visto a um só tempo como comunista e capitalista, além de elemento
anti-cristão, serviu como o bode-expiatório de todas as mazelas da
humanidade. O racismo político serviu como pano de fundo para essas
elaborações, além do apelo moral, já que o judeu além de desestabilizador da
144
economia e da política, tentava destruir a civilização cristã, segundo tais
ideologias.
A Ação Integralista Brasileira teve um papel fundamental na divulgação dessas
ideias, já que, como organização de tipo fascista, precisava eleger o
“forasteiro”, agitador e desestabilizador de toda essa ordem. Mas nem só de
integralismo viveu o anti-semitismo difundido na Bahia. Como demonstrei,
jornais que não faziam parte da imprensa integralista oficial também serviram
de meio de divulgação desse anti-semitismo.
O intuito do meu projeto de pesquisa era demonstrar a existência de anti-
semitismo na Bahia. Como refleti no início desse trabalho, se não houve uma
perseguição física efetiva contra os judeus no estado, criou-se um clima de
apreensão contra a comunidade judaica, principalmente a partir dos meios de
comunicação, mas não só. É importante lembrar que a AIB conseguiu ter uma
grande influência política no estado, chegando a eleger um prefeito no interior e
um vereador em Salvador e o intuito da organização era por em ação suas
elaborações teóricas.
Além dessas considerações, gostaria de incluir outras questões de relevância
nesse trabalho.
A primeira delas é apontar que preconceitos raciais ainda são uma realidade
não só no Brasil como no mundo. A “eleição” de inimigos, principalmente
quando acontecem crises profundas no âmbito sócio-político-econômico, ainda
segue normas racialistas. Vemos isso em acontecimentos recentes na Europa,
como a morte do brasileiro Jean Charles em Londres, a perseguição a
argelinos na França, os muros da vergonha do século XXI, na fronteira dos
EUA com o México e o que divide e invade a Palestina, construída pelo Estado
de Israel, ou o tratamento dado a bolivianos no Brasil. Os negros ainda ocupam
um lugar de subalternização em nossa sociedade, ocupando cargos de menor
remuneração e ainda tendo uma participação marginal na política. Os judeus
ainda são vistos como algo execrável para uma boa parcela da sociedade,
145
como um ser de fora e usurário. Ou seja, a eleição do “outro” ainda faz parte de
nossa realidade.
A produção de uma dissertação que busca as raízes disso serve para que
possamos traçar o processo e identificar essas construções. A chamada
primeira Era Vargas, de 1930 a 1945, foi um período em que as disputas
ideológicas demarcaram bem essas discussões. Ora de forma sutil, como no
caso da diplomacia do governo Vargas, ora de forma mais escancarada, como
nas manifestações ultra-direitistas da Ação Integralista Brasileira. Esse período
faz parte da formação de parcela de uma tradição política que deve ser, no
mínimo, revista.
Uma outra discussão ilustrada por esse trabalho diz respeito ao papel da
imprensa. Ainda é comum ouvir setores da mídia reivindicando essa
independência da informação veiculada. Fala-se de liberdade de expressão
para os grandes conglomerados midiáticos, mas quando essas organizações
são chamadas para responderem pelo que falam logo se levantam para acusar
a existência de censura ou perseguição à imprensa. Enquanto isso, entra
governo e sai governo, as manifestações de cunho social são criminalizadas e
têm sua visibilidade “filtrada” pelos interesses de classe burgueses. Com
sugestivo nome de O Imparcial este jornal serviu como instrumento de
divulgação de idéias autoritárias e carregadas de preconceitos. Além do ataque
aos judeus, a luta por um modelo de sociedade conservadora, onde mulheres,
trabalhadores e negros deveriam aceitar o “seu lugar” de subalternizado. O
Diário de Notícias seguia uma linha muito semelhante e basta olhar para os
principais veículos de imprensa da atualidade para ver um discurso parecido,
de forma mais sutil, velada e mascarada pela tal “democracia”.
Por último, uma reflexão sobre os intelectuais. Disse no início desse trabalho
que as fontes me levaram até essa questão. Mas além das fontes algo me
inquieta há algum tempo. Dois movimentos acontecem de forma preocupante.
O primeiro deles é que a intelectualidade acadêmica se torna cada vez menos
orgânica. O distanciamento entre o que é produzido nas academias e a maior
parte da população faz com que nos afastemos cada vez mais dela e se torna
146
em um desafio que todos os intelectuais precisariam tomar para si, já que,
principalmente nas instituições públicas, devemos retorno à sociedade. O
segundo desses movimentos é campanha das grandes mídias e de políticos
conservadores em descredibilizar qualquer tentativa de análise mais profunda
das questões que envolvem a sociedade em seus variados aspectos. A
superficialidade das análises se reflete nas informações, de forma que se
mantenha o povo “pacificado” em torno da naturalização de problemas sociais,
como a violência e a pobreza.
Os intelectuais da AIB tinham uma preocupação constante em quebrar com
esse distanciamento. Talvez isso explique o seu tamanho e a sua inserção
social.
Falando especificamente do que trata essa dissertação, penso que
compreender o anti-semitismo e suas diversas formas de manifestação é um
desafio. A construção desse preconceito tem diversas bases: religiosa,
econômica, política; e compreender essas questões à luz da luta de classe
permite entender como elas têm servido, para as classes dominantes, como
um desvio do foco de qual a verdadeira origem dos problemas sociais. O caso
baiano é um exemplo. A comunidade judaica baiana era pequena, apesar de
sua importância econômica, nos anos 1930. Os grandes comerciantes
estrangeiros do estado eram os alemães. Mas tanto integralistas quanto
autonomistas destilaram seus venenos contra os judeus, algo constatado nas
páginas de seus jornais e de jornais simpáticos a ideais autoritários de
extrema-direita.
Continuar combatento a criação de novos (ou velhos) “espantalhos” para
nossos entraves sociais deve ser o trabalho e objetivo de todo historiador que
compreende a necessidade de se livrar das maquiagens utilizadas para se
explicar os processos de transformação das sociedades a curto, médio e longo
prazo.
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