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Universidade Estadual de Campinas Departamento de Saúde Coletiva Residência Multiprofissional em Saúde Mental Nicole Guimarães Cordone Reflexões sobre as proposições de atividades em Terapia Ocupacional: Relato de experiência de uma terapeuta ocupacional na Residência Multiprofissional em Saúde Mental. Trabalho de Conclusão de Curso da Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. Orientadores: Ellen Ricci Thiago Lavras Trapé Coordenadora: Rosana Onocko Campos Campinas 2016

Reflexões sobre as proposições de atividades em Terapia ... · Para discorrer e refletir sobre o uso de atividades em TO serão utilizados como referência nesse trabalho autoras

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Universidade Estadual de Campinas

Departamento de Saúde Coletiva

Residência Multiprofissional em Saúde Mental

Nicole Guimarães Cordone

Reflexões sobre as proposições de atividades em

Terapia Ocupacional:

Relato de experiência de uma terapeuta ocupacional na

Residência Multiprofissional em Saúde Mental.

Trabalho de Conclusão de Curso da

Residência Multiprofissional em Saúde

Mental do Departamento de Saúde Coletiva

da Faculdade de Ciências Médicas da

Universidade Estadual de Campinas.

Orientadores: Ellen Ricci

Thiago Lavras Trapé

Coordenadora: Rosana Onocko Campos

Campinas

2016

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Vamo entalhar melodia Na madeira da poesia

Esculpir a jangada

Pra navegar a palavra. (Clarianas)

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Sumário

1. Prefácio ............................................................................................................... 4

2. Introdução .......................................................................................................... 6

2.1 A constituição da Terapia Ocupacional como profissão – Uma retrospectiva

histórica ................................................................................................... 6

2.2 O uso de atividades em Terapia Ocupacional – Os diferentes modelos .. 8

2.3 Atividades e a criação de territórios existenciais .................................... 9

2.4 Encontros e a potência de agir ............................................................... 12

3. Contextualização dos campos de atuação .......................................................... 14

4. Narrativas, fragmentos e reflexões sobre as experiências com atividades .......... 19

4.1 Complexo Hospitalar Ouro Verde ...................................................................... 19

4.2 Centro de Convivência Casa dos Sonhos ............................................................ 25

4.3 Centro de Saúde Rosália ..................................................................................... 31

4.4 Centro de Atenção Psicossocial AD Reviver ....................................................... 33

5 Considerações Finais .................................................................................................... 40

6 Referências bibliográficas ........................................................................................... 42

7 Anexo ........................................................................................................................... 44

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1. Prefácio

"Vou mostrando como sou,

E vou sendo como posso,

Jogando meu corpo no mundo,

Andando por todos os cantos

E pela lei natural dos encontros

Eu deixo e recebo um tanto."

(Mistério do Planeta - Novos Baianos)

Nesse trabalho pretendo trazer uma reflexão sobre as proposições de atividades em

Terapia Ocupacional. A partir das narrativas de fragmentos da experiência vivida nesses dois

anos de Residência Multiprofissional em Saúde Mental, buscarei explorar os objetivos das

intervenções com atividades e as formas de analisá-las.

Iniciarei aqui relatando como se deu minha aproximação com a Residência e

consequentemente, na Rede de Saúde Mental de Campinas. Prestei a residência na Unicamp

por indicação de uma amiga que falou sobre a alta qualidade do programa e sobre a rede

estruturada de saúde mental de Campinas (referência nacional). Quando passei decidi me

aventurar por esse caminho desconhecido, sem saber o que eu iria encontrar.

Deparei-me com um turbilhão de coisas novas: cidade, casas, pessoas, serviços de

saúde e decidi mergulhar nessa experiência de muito movimento e vida. Foram encontros

que me afetaram, me ensinaram e me transformaram.

Fazem parte desse caminho percorrido as vivências nos serviços que escolhi trabalhar

nesses dois anos: Caps AD Reviver, Centro de Saúde Rosália, Centro de Convivência Casa dos

Sonhos e Enfermaria de Saúde Mental do Hospital Ouro Verde; as experiências na Unicamp

(supervisões, aulas, encontros de rede, grupo de estudos sobre Espinosa); além da

participação em movimentos sociais e culturais (Luta Antimanicomial de Campinas, Semana

de Audiovisual de Campinas e Comissão de visibilidade da população em situação de rua).

A partir da experiência vivida nos campos de atuação como residente

multiprofissional, pretendo refletir sobre como se deu as proposições de atividades grupais e

individuais. Sobre experiência, Bondiá (2002), expõe:

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A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (p.24).

Também utilizarei aqui a contribuição de Jean Oury (1991), que afirma no texto

“Itinerários de Formação” a importância de “extrair do campo cotidiano, onde tudo está

frequentemente misturado, as coisas mais pregnantes, as coisas essenciais que na maioria

das vezes não aparecem” (p.4). Desse modo, a partir do relato e da análise das experiências

de proposições de atividades durante meu processo de formação como residente

multiprofissional, tentarei fazer nesse trabalho os exercícios propostos por Bondiá e Oury.

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2. Introdução

2.1 A constituição da Terapia Ocupacional como profissão – Uma retrospectiva

histórica

Ao recuperar a história da Terapia Ocupacional, percebe-se que ela não é linear. A

profissão assumiu e continua assumindo diferentes características ao longo do tempo e as

práticas se manifestaram em diferentes contextos. Além disso, é importante ressaltar que o

uso das atividades como forma de tratamento, não necessariamente indicam o início da

profissão. Pois desde datas remotas há a presença do uso de atividades relacionadas às

questões de saúde e doença, mas não necessariamente esses usos tem relação com a

Terapia Ocupacional (Medeiros, 2010).

A profissão surgiu no Canadá e Estados Unidos no atendimento em hospitais gerais e

aos doentes mentais. Durante a Primeira Guerra Mundial houve a preparação de um grande

número de pessoas para realizarem o tratamento de acidentados e neuróticos de guerra. A

partir daí começou a se construir sistematizações metodológicas para o uso de atividades de

acordo com o grau de incapacidade do doente (Medeiros, 2010).

A criação da primeira escola formadora de terapeutas ocupacionais foi em 1917 nos

Estados Unidos. Então, a profissão se estabeleceu como área própria de conhecimento e

começaram a surgir escolas, associações profissionais, oficialização de currículos, criação do

código de ética profissional, realização de congressos internacionais e a criação da

Federação Mundial (Hopkins; Wooodeside, Kielhofner apud Medeiros, 2010).

Em outros países, como Inglaterra, embora já houvesse a prática do uso de atividades

para funções terapêuticas e cursos de curta duração para formação especializada nesse

campo, o estabelecimento da Terapia Ocupacional como profissão se deu na Segunda

Guerra Mundial (Medeiros, 2010).

No cenário brasileiro, tivemos grande influência Europeia na assistência psiquiátrica

do século XIX com a vinda da família real para o Brasil. Com a construção do Hospício D.

Pedro II no Rio de Janeiro em 1852 houve a criação de oficinas de trabalho como modo de

distrair e disciplinar os doentes mentais. Também houve o desenvolvimento do uso do

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trabalho para a assistência psiquiátrica na Colônia Juliano Moreira (RJ) e em Franco da Rocha

(SP), na perspectiva do tratamento moral (Medeiros, 2010).

O Tratamento moral foi instituído por Pinel, que transformou o trabalho na base do

funcionamento asilar. Ele acreditava que as atividades laborativas proporcionavam a

manutenção da saúde, da ordem e um comportamento adequado. Através das atividades

era realizado o controle do tempo, dos corpos e das mentes das pessoas internadas nos

hospitais psiquiátricos (Medeiros, 2010 e Lima, 2004b). Lima (2004b) afirma que “o hospício

os isola do contato com o mundo exterior e passa a se encarregar da totalidade de suas

vidas, prescrevendo para eles ocupações; entre elas, o trabalho tem lugar de relevo como

principal meio de cura” (p.3).

Sobre o uso do trabalho nos hospícios e na sociedade, Lima (2004b) aponta que:

o trabalho não foi instituído como medida de sanidade mental somente no interior do asilo. A valorização e dignificação do trabalho eram base para a construção de uma nova sociedade organizada em torno da produção capitalista que requeria a sujeição do ritmo da vida ao tempo da produção. A indicação do trabalho como medida terapêutica surge no bojo de reformas humanitárias, da busca de igualdade entre os homens, do surgimento da sociedade industrial e da transformação da loucura em doença mental, que estavam em curso no final do séc. XVIII e início do XIX, na Europa, e mais fortemente na França (p.4).

Na década de 40 houve a criação do Serviço de Terapêutica Ocupacional dirigido pela

psiquiatra Nise da Silveira no hospital psiquiátrico em Engenho de Dentro (RJ). Nise

desenvolveu importante trabalho com atividades expressivas e terapêuticas, pesquisas e

publicações na perspectiva junguiana (Medeiros, 2010). Essa experiência influenciou, mais

tarde, a prática da Terapia Ocupacional.

O estabelecimento da profissão Terapia Ocupacional ocorreu no Brasil em 1957.

Nesse ano:

Uma equipe da ONU (Organização das Nações Unidas) instalou no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo um curso de formação de terapeutas ocupacionais com duração de doze meses. Em 1964, já com duração de três anos, o curso foi regulamentado e, em 1969, reconhecido como de nível superior. A profissão foi oficializada em 1971 e, em 1975, foi criado o conselho profissional juntamente com os fisioterapeutas – o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional ( Coffito).

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Atualmente existem cursos de graduação em quase todos os estados do país (Medeiros, 2010, p.44).

2.2 Os diferentes modelos de atuação em Terapia Ocupacional

A Terapia Ocupacional (TO), nascida no âmbito médico, tinha como objetivo a partir

da sua criação em 1917, a manutenção do individuo ocupado com perspectivas de

treinamento vocacional. Nessa época a profissão era utilizada para o tratamento moral e no

atendimento de soldados e pacientes cronicamente incapazes.

Conforme a Terapia Ocupacional foi se constituindo como profissão, buscou

inspiração nos procedimentos e teorias médicas e psicológicas para seu modelo de atuação,

que consistia em “Exercícios físicos, estimulação sensorial, atividades sequenciais do

desenvolvimento humano, atividades significativas para expressão e organização do ego,

reforços e extinção de comportamentos” (Medeiros, 2010, p.49).

Kielhofer (1985) apud Medeiros (2010) denomina como Fase de reducionismo o

período de 1942 a 1960, quando a profissão estava alinhada com o Movimento de

Reabilitação dos Estados Unidos e atuava com incapacitados físicos e mentais com o objetivo

de favorecer a restauração da função útil. A Terapia Ocupacional atuava nas áreas de

especializações médicas (ortopedia, neurologia, psiquiatria e reabilitação de pessoas com

deficiências visuais e auditivas).

Diversos autores classificam de formas diferentes os modelos em Terapia

Ocupacional. De acordo com Medeiros (2010), é possível resumir os principais modelos da

seguinte forma:

1) Comportamentalista, Intrapsíquico e Sensório-integrativo: Modelos de

cientificidade reducionista nos quais, o ser humano é concebido como um animal

racional, psicológico e social, mas desconsidera-se o contexto histórico-político-

social em que vive. Ele é concebido e tratado em partes.

2) Modelos de perspectiva humanista: Buscam entender as manifestações humanas

de maneira mais totalizante, no seu estar no mundo. Utilizam concepções

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fenomenológicas e existencialistas e priorizam as relações e interações do

indivíduo e seu ambiente.

3) Modelo de Ocupação Humana: Baseado na “Teoria Geral de Sistemas” (Kielhofner

& Burke).

4) Modelo de Concepção materialista-histórica: Há um esforço atual, com base nas

práticas transformadoras do Sistema Único de Saúde, em sistematizar um modelo

que tenha como pressuposto uma concepção materialista-histórica do homem e

da sociedade. Um modelo que se propõe a ser utilizado no processo de libertação

do homem inserido numa relação de produção capitalista para uma

transformação radical da sociedade.

2.3 Atividades e a criação de territórios existenciais

Foi apresentado anteriormente um breve resumo dos diferentes modelos de atuação

utilizados ao longo da história pela TO. A partir disso, podemos conceber a existência de

múltiplas Terapias Ocupacionais, nas quais de acordo com os conceitos de homem, saúde e

doença que utilizam, imprimem diferentes modelos de assistência. A escolha desses

modelos teórico-práticos resulta da escolha de pressupostos conceituais, científicos e

filosóficos e indica as maneiras de aplicação das atividades como recursos terapêuticos. Na

medida em que essas práticas se realizam e intervém no campo social, essas escolhas

também têm finalidades políticas (Medeiros, 2010).

Como vimos anteriormente, as atividades podem ser utilizadas para a manutenção

das instituições totais, sem que se coloque em questão a exclusão social que estas exercem

e realizam (Lima, 2004b). Mas “podem, também, paradoxalmente, serem importantes

aliados das propostas de transformação institucional, ferramentas estratégicas no caminho

da desinstitucionalização e da construção de novas instituições em saúde mental” (Lima,

2004b, p.2).

Para discorrer e refletir sobre o uso de atividades em TO serão utilizados como

referência nesse trabalho autoras que compreendem a proposição de atividades na

perspectiva de desenvolver as possibilidades do indivíduo, como sujeito de sua própria

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história, interferir na qualidade de sua vida mediante o seu fazer, com foco na autonomia e

considerando o contexto histórico-social e político em que os corpos estão inseridos e

entendendo saúde como um direito social (Medeiros, 2010).

A Terapia Ocupacional tem como objeto e instrumento de trabalho as atividades

humanas. Essas são da ordem dos sujeitos e dos coletivos e possuem sentidos e

determinações culturais, históricas, de gênero, econômicas, etc. Muitas vezes as atividades

em TO são utilizadas de formas protocolares, de acordo com lógicas de classificações e

categorizações e “há modos de fazer que são a efetuação da exclusão, da submissão, da

repetição vazia e mortífera” (Quarentei, 2001, p.6).

No sentido contrário a esses usos, Quarentei (2007) apresenta o conceito de

atividades como territórios existenciais (termo que desenvolve a partir da leitura de Deleuze

e Guatarri). Nessa concepção, as atividades são exercidas e efetuadas como acontecimentos

nos lugares e tempos onde existimos e criamos nossos modos de viver; são nosso chão,

matéria e potência para existirmos. Dessa forma, para além de realizações de tarefas, as

atividades humanas são acontecimentos de vida, e estão ligadas as necessidades e a

potência de expressão e criação (Quarentei, 2007).

Na perspectiva construtivista/criacionista defendida por Quarentei (2007) a tarefa da

Terapia Ocupacional consiste em “instituir processos de experimentação, apreciação e

afirmação, construção de si, vida(s) e mundo(s), ou um “cuidar-de-si”, experimentar como

produtor constituir-se pertencente e, construir uma nova ação no mundo” (Furtado, 1999,

apud Quarentei, 2007, p.10).

Desse modo, a autora compreende as atividades como exercícios de criação,

processos de experimentação, afirmação de potência e vida, produção de modos de estar no

mundo e de novas subjetividades, construtora e transformadora do sujeito e da vida

(Quarentei, 2007).

Para além dessa concepção da proposição de atividades para criação de novos modos

de existência, o trabalho clínico, alinhado com uma prática social, busca construir

significados coletivos para essas novas formas de existência e suas produções materiais. Esse

trabalho deve ter um direcionamento na inclusão do individuo em redes de interação social,

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possibilitando, assim, um trabalho de reinserção social e aumento da qualidade de vida

(Lima, 2004b).

As considerações de Lima (2004) são também muito pertinentes para compor com

essa discussão. A autora defende a invenção de uma análise de atividades que contribua

para a “construção de um olhar que possa oferecer acolhimento aos sujeitos em atividade e

se deixar afetar por esses sujeitos e por seus fazeres” (p. 43). Trata-se de um olhar que

atento as sutilezas, novidades e singularidades “cria sentido para aquilo sobre o qual se

debruça e devolve este sentido (p.44)”.

Para realizar essa análise de atividades, Lima (2004), propõe:

Mais do que aprender sobre as características de cada atividade, o que esta outra análise de atividade pode nos ensinar é a olhar para nós mesmos em nossas ações e em nosso fazer; a olhar para o outro em suas ações e buscar aí, no limiar do invisível, a intrincada trama de afetos, histórias e saberes; e a olhar para cada atividade em suas infinitas possibilidades, incluindo a abertura para o futuro de novas experiências com os materiais, com as técnicas, com a cultura e com o mundo humano. (p.47).

Para que se possa estabelecer uma comunicação nesse processo terapêutico que se

da a partir de um encontro com o usuário através da realização de atividades “é

fundamental que se possa escutar e olhar a ação da pessoa no mundo, acolher esta ação,

que é de qualquer forma expressiva e diz alguma coisa, mesmo que ainda não seja possível

nomear aquilo que é dito” (Lima, 2004, p. 46).

É importante nos atentarmos para o fato de que essa troca estabelecida pode

estimular a potência de criação, bem como ferir, dominar, e tolher a liberdade do outro. Por

isso se faz necessário nos indagarmos constantemente sobre nossas próprias práticas e

refletir sobre os sentidos das nossas proposições para quem a realiza, problematizando o

porquê da realização da atividade, como ela está sendo feita e em que situação isso

acontece. Esses sentidos são construídos no encontro com o outro.

Lima (2004b) também traz uma importante contribuição na discussão sobre as

atividades artísticas. Ela expõe que essas atividades, influenciadas pelas perspectivas de arte

contemporânea, são importantes instrumentos de valorização da expressão, de descoberta

e ampliação de possibilidades individuais e de diferentes possibilidades de ser e de acessos

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aos bens culturais. Para a autora a potência do trabalho da Terapia Ocupacional está em

“possibilitar a cada um a descoberta de uma forma própria de construir sua ação no mundo”

(Lima, 2004, p.47).

2.4 Encontros e a potência de agir

Por fim, gostaria de acrescentar nessa discussão introdutória algumas ideias

inspiradas em Espinosa, filósofo do século XVII, e em outros autores, como Deleuze, que

podem nos ajudar a refletir sobre os encontros ocorridos na prática clínica (entre

terapeutas, usuários e atividades) e sobre as potencialidades dos sujeitos atendidos.

Espinosa define um corpo pelo poder de afetar e ser afetado e pelas relações de

velocidade e lentidão, repouso e movimento que estabelece (Deleuze, 2002). Os corpos

existem em relação, que podemos chamar de encontros. De forma geral, os encontros

podem ser divididos em bons ou maus. O critério para essa definição é o aumento ou

diminuição da potência de agir experimentada em decorrência deles.

Sobre esse tema, Bittencourt (2012) afirma que:

O aumento da nossa potência de agir se origina diretamente da ocorrência de um bom encontro, que decorre, por sua vez, da nossa capacidade de, mediante a compreensão do fluxo de afetos que são gerados através das impressões das causas externas, utilizarmos essa relação como suporte para a ampliação do sentimento de alegria em nosso ânimo, posto esse afeto se transformou em causa ativa, da qual temos pleno domínio (p.108).

Portanto, nossa potência de agir sofre constantes variações ao longo do dia e é

aumentada ou diminuída conforme os encontros que acontecem. É importante

compreender as causas desses afetos de alegria ou tristeza e entender o que há em comum

entre o corpo que me afeta e o meu, que me traz alegria, e o que naquele corpo não me

convém. A partir disso os encontros podem ser selecionados para que se tenham bons

encontros e se resista aos maus encontros (Deleuze, 2005).

Muitas vezes é necessário fazer um exercício de não olhar uma situação somente

pela impotência, mas acreditar na potência dos sujeitos. Deleuze (2005) afirma que “cada

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ser, qualquer que seja, de todas as maneiras efetua tudo o que pode sua potência, isto torna

todos os seres iguais” (p. 27).

Para desenvolver a prática clínica em Terapia Ocupacional, é importante que se tenha

abertura para o encontro com o outro na percepção de suas potencialidades, diferenças e

nas trocas efetivas que esse encontro proporciona, numa perspectiva de ampliação de vida,

criação de novos territórios existenciais e construção do comum.

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3. Contextualização dos campos de atuação

Os equipamentos onde atuei nos dois anos da Residência Multiprofissional fazem

parte da rede de Saúde Mental de Campinas, reconhecida nacionalmente pela abrangência

dos serviços de saúde mental que possui, o que faz com que seja referência nessa área.

Através do estabelecimento de um convênio de co-gestão entre Prefeitura Municipal

de Campinas e o Sanatório Dr. Cândido Ferreira em 1990, teve inicio o movimento de

transformação desse tradicional hospital psiquiátrico. Essa instituição passou a ser chamada

de Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, operando com base nos princípios da Reforma

Psiquiátrica. Desde então vem se construindo uma rede de Saúde Mental na cidade. (Merhy,

Feuerwerker et al; 2007-2016).

Atualmente, a rede de Saúde Mental de Campinas é composta por serviços próprios

municipais e pelos serviços em co-gestão com o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira

envolvendo no total seis Caps III, quatro Caps ad, quatro Caps i, oito Centros de Convivência,

Oficinas de trabalho e geração de renda, Serviços Residenciais Terapêuticos, um Núcleo de

Retaguarda, uma Enfermaria de Saúde Mental em Hospital Geral e a presença de equipes de

Saúde Mental nos Centros de Saúde.

Recentemente os serviços de Saúde Mental foram regulamentados na Portaria Nº 3.088

de 23 de Dezembro de 2011 que instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), destinada

ao atendimento de pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades

decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde

(SUS).

Apresentarei a seguir os serviços da rede de saúde e saúde mental de Campinas que

foram os campos em que atuei como residente multiprofissional, locais onde aconteceram

as vivências que irei relatar durante o presente trabalho.

Centro de Saúde Rosália

O Centro de Saúde Rosália está definido na portaria como Unidade Básica de Saúde. É

um ponto de atenção da RAPS na atenção básica e é gerido pela Prefeitura Municipal de

Campinas. Conforme definição da portaria é:

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constituído por equipe multiprofissional responsável por um conjunto de ações de saúde, de âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver a atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades (Brasil,2011, p.4).

No ano de 2014 dividi minha carga horária em dois campos de atuação (CS Rosália e

Caps ad Reviver). Desenvolvi algumas atividades no CS indo no serviço de uma a duas vezes

por semana, conforme necessário. De forma geral as atividades realizadas por mim no CS

foram: atendimentos individuais (grande parte da carga horária), participações em reuniões

de uma das equipes de saúde da família, visitas domiciliares, atendimentos em outros

equipamentos da rede, criação de um grupo de pais, construção de rede, mapeamento dos

equipamentos do território, entre outras.

Centro de Atenção Psicossocial (Caps) AD Reviver

O Caps é o ponto de atenção da RAPS na atenção psicossocial especializada. O Caps

ad III atende adultos com necessidades de cuidados clínicos contínuos decorrentes do uso de

crack, álcool e outras drogas. É um serviço com no máximo doze leitos para observação e

monitoramento, de funcionamento 24 horas, incluindo feriados e finais de semana; indicado

para municípios ou regiões com população acima de duzentos mil habitantes (Brasil, 2011).

O Caps AD III Reviver é o primeiro Caps AD 24 horas de Campinas, possui 50

profissionais, sendo 20 de nível superior e 30 com nível técnico ou ensino médio completo. É

referência para os distritos Leste e Norte de Campinas (450 mil habitantes) e atende adultos:

em média 450 usuários por mês. Possui oito leitos noite. É uma unidade do Serviço de Saúde

Dr. Cândido Ferreira (SSCF).

Atuei no Caps ad Reviver durante os anos de 2014 e 2015, com permanência de

apenas um período da semana no último ano. Pude desenvolver e participar de diversas

atividades: plantão, acolhimentos novos, atendimentos de referência, grupos, criação de um

novo grupo (grupo de leito), matriciamentos, discussão de casos, reuniões de equipe,

ambiência, planejamento, busca ativa, visitas domiciliares, acompanhamentos terapêuticos,

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entre outros. Aprendi muito sobre os processos de trabalho de um Caps e sobre o cuidado

de pessoas que fazem uso abusivo ou prejudicial de álcool e outras drogas.

Centro de Convivência Casa dos Sonhos

O Centro de Convivência (CECO) Casa dos Sonhos é um serviço do Sistema Único de

Saúde com parceria com a Proteção Social Básica do Sistema Único da Assistência Social

(SUAS). Trata-se de uma unidade do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira (SSCF), instituição

filantrópica de saúde mental conveniada, desde 1990, com a Prefeitura Municipal de

Campinas.

De acordo com a portaria da RAPS (2011), os Centros de Convivência são serviços

estratégicos para a inclusão social das pessoas com transtornos mentais e pessoas que

fazem uso de crack, álcool e outras drogas, através da construção de espaços de convívio e

sustentação das diferenças.

O CECO Casa dos Sonhos tem a missão de “Ser um espaço aberto à comunidade,

construído coletivamente, com a intenção de facilitar convivência, qualidade de vida,

inserção social e a troca de saberes através de atividades de saúde, educação, cultura,

esporte e lazer.” 1. São oferecidos à população em geral espaços de sociabilidade, produção

e intervenção cultural na comunidade.

A equipe é composta por uma gerente, duas assistentes sociais, duas monitoras,

duas auxiliares de limpeza, duas auxiliares de serviços gerais, um vigilante, quatro

professoras da Fumec (Fundação Municipal para Educação Comunitária), uma educadora de

saúde, dois agentes de saúde, um auxiliar de enfermagem, um oficineiro, um assistente

administrativo, duas residentes multiprofissionais de saúde mental ( uma psicóloga e uma

terapeuta ocupacional) e doze voluntários que realizam atividades diversas.

Atuei no CECO Casa dos Sonhos durante o ano de 2015, período em que também fiz

carga horária na enfermaria de Saúde Mental do Hospital Ouro Verde e no Caps ad Reviver.

Participei de grupos de artesanato e convivência, criei um grupo de teatro para crianças

1 Trecho extraído de um documento do Centro de Convivência Casa dos Sonhos que é entregue para as pessoas

que chegam para conhecer o serviço.

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realizado numa Organização não Governamental do território, participei das reuniões de

equipe, realizei atendimentos individuais, entre outros.

Enfermaria de Saúde Mental do Complexo Hospitalar Ouro Verde

A enfermaria especializada para atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno

mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, em Hospital

Geral, é um ponto de atenção da RAPS na atenção hospitalar. De acordo com a portaria

“oferece tratamento para casos graves relacionados aos transtornos mentais e ao uso de

álcool, crack e outras drogas, em especial de abstinências e intoxicações severas” (Brasil,

2011, p.7). A portaria também expõe que:

o cuidado ofertado no âmbito da enfermaria especializada em Hospital Geral deve estar articulado com o Projeto Terapêutico Individual desenvolvido pelo serviço de referência do usuário e a internação deve ser de curta duração até a estabilidade clínica. O acesso aos leitos na enfermaria especializada em Hospital Geral deve ser regulado com base em critérios clínicos e de gestão por intermédio do Caps de referência e, no caso do usuário não acessar a rede por meio deste ponto de atenção, deve ser providenciado sua vinculação e referência a um Caps, que assumirá o caso. Além disso, a equipe que atua em enfermaria especializada em saúde mental de Hospital Geral deve ter garantida composição multidisciplinar e modo de funcionamento interdisciplinar (Brasil, 2011, p.7).

A enfermaria de Saúde Mental do Complexo Hospitalar Ouro Verde, é um serviço

público, gerido pela Organização Social SPDM a partir de convênio firmado com a Prefeitura

Municipal de Campinas.

Atuei na enfermaria durante o ano de 2015. Nesse período alguns profissionais da

equipe multiprofissional foram saindo e não houve contratação e reposição dos cargos. Por

fim, a equipe ficou composta por: um enfermeiro e três técnicos de enfermagem por plantão

(tendo três plantões por dia), uma psicóloga, uma assistente social, cinco médicos

psiquiatras com cargas horárias diferentes que cumprem função de preceptores dos

residentes do primeiro ano de psiquiatria, que são quatro, sendo um dos médicos o

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coordenador geral da enfermaria; duas terapeutas ocupacionais residentes em saúde mental

e uma escriturária.

Com exceção dos profissionais da enfermagem e da escriturária, os outros

profissionais se dividem em duas miniequipes, cada uma responsável por dez leitos dos vinte

da enfermaria. Os profissionais da limpeza e da manutenção se dividem em todo o hospital.

A chefia é uma médica que não está presente no cotidiano da enfermaria.

Para além dessa chefia, as coordenações de cada núcleo profissional são diferentes e

estão espalhadas pelo hospital. As equipes médicas, de enfermagem e multiprofissional

respondem ao coordenador da enfermaria (médico psiquiatra), que dialoga com instâncias

superiores do hospital e também trabalha na assistência e na preceptoria dos residentes

médicos. Os técnicos de enfermagem respondem ao enfermeiro responsável pelo plantão, e

todo núcleo de enfermagem responde a um supervisor de núcleo do hospital. A psicóloga

responde a uma fisioterapeuta que coordena a equipe de reabilitação do hospital, que não

possui experiência em saúde mental e não está presente no cotidiano da enfermaria; e a

assistente social responde ao serviço social do hospital, que também tem pouca

proximidade com a Enfermaria de Saúde Mental.

Para tentar responder a defasagem da equipe multiprofissional, três terapeutas

ocupacionais e um fisioterapeuta da equipe de reabilitação do hospital vão em alguns

períodos da semana realizar grupos pontuais. São profissionais que por não estarem no

cotidiano da enfermaria, não conhecem as pessoas internadas e não estão apropriados das

discussões de caso em miniequipes. Essa organização gera fragmentação dos processos de

trabalho e dificulta a vinculação dos usuários e profissionais, já que esses estão na

enfermaria em momentos pontuais durante a semana.

Em um determinado momento do ano de 2015, os profissionais da equipe

multiprofissional da enfermaria, por estarem em número reduzido, saíram do papel de

referência dos casos, que antes era feito em dupla, junto com os residentes de psiquiatria.

Dessa forma, somente os residentes médicos passaram a assumir a referência de cuidado

das pessoas internadas. A equipe multiprofissional ficou responsável por realizar grupos e

atendimentos individuais e acompanhar os usuários na área externa, pois esses não podem

ficar sem acompanhamento nesse espaço pelos riscos de fuga.

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4. Narrativas, fragmentos e reflexões sobre as experiências com atividades

Contraditórias, coerentes, angustiadas, instigantes, as

questões sempre surgem... Elas revelam quanto o

processo é bonito e dolorido. Bonito, porque proporciona

o novo, a alegria das descobertas; porque reflexivo dos

valores e desejos mais pessoais e coletivos. É dolorido

porque exige a revisão do que aparentemente estava

seguro, acomodado e pronto – provocando muitas vezes

resistências internas – e porque evoca a necessidade de se

criar coisas novas.

Bonito e dolorido, enfim, porque exigente de um

posicionamento crítico e transformador, tanto das

práticas como de si mesmo. (Medeiros, 2010)

Serão apresentados a seguir alguns relatos e reflexões sobre experiências ocorridas nos

serviços onde atuei como residente multiprofissional nos últimos dois anos. Experiência aqui

entendida como o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca e o modo como lhe

atribuímos ou não um sentido (Bondía, 2002).

Os fragmentos a serem apresentados, registrados em diário de campo ou reativados a

partir da memória, se relacionam com situações vividas nas quais o uso de atividades estava

presente como propostas de intervenções nos serviços, por diferentes profissionais,

inclusive eu mesma, e com diferentes objetivos (terapêutico, de convivência, de criação e

expressão, de ocupação do tempo ocioso, entre outros).

4.1 Enfermaria de Saúde Mental do Complexo Hospitalar Ouro Verde

A Enfermaria de Saúde Mental do Hospital Ouro Verde está organizada atualmente de

modo complexo e difuso. As diferentes coordenações para os diferentes núcleos

profissionais, sendo que algumas não estão presentes no cotidiano da enfermaria, gera

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fragmentação dos processos de trabalho, mensagens contraditórias, discursos e práticas

diferentes.

No processo de trabalho que vivi na enfermaria, percebi que essa está funcionando

numa lógica médico-centrada, na qual os profissionais médicos ocupam um importante

lugar de poder, sendo seu saber o mais valorizado, o que define as condutas e são esses

profissionais que estão como as únicas referências de todos os casos atendidos na

enfermaria. Essa lógica que muitas vezes é preponderante em ambientes hospitalares, que

funcionam de acordo com o modelo biomédico, se agravou pelo esvaziamento da equipe

multiprofissional da enfermaria, pois terapeutas ocupacionais e psicólogos que eram

contratados foram saindo por diversos motivos e não houve recontratação desses cargos na

equipe multiprofissional.

As discussões de casos nas reuniões de equipe na maioria das vezes priorizavam a

identificação de sintomas das pessoas internadas e a possibilidade de remissão desses

através das intervenções medicamentosas, que é uma aposta terapêutica considerada de

grande importância no período da internação. O contexto sócio-familiar, os projetos de vida,

os interesses e potências das pessoas internadas são pouco trazidos para as pautas de

discussão e muitas vezes não são considerados no projeto terapêutico dos casos.

Considero a importância da utilização das medicações como parte do tratamento, se

feita de forma responsável, não abusiva e com indicação, mas acredito serem necessárias

outras intervenções terapêuticas que considerem o contexto dos sujeitos atendidos, seus

desejos, escolhas, potências e sofrimento e que não tenham como objetivo a normatização

ou adaptação do sujeito.

Sobre os discursos psiquiátricos dominantes Medeiros (2010) afirma que:

O tratamento consiste em eliminar os sintomas. Não se questionam, no entanto, as razões que originaram determinados sentimentos e ações. Nessa perspectiva a felicidade pode ser adquirida por meio de pílulas, e a psicofarmacologia é a grande patrocinadora de corpos dóceis e adaptados (p. 164).

Em relação ao uso de atividades na enfermaria, percebo que muitas vezes elas são

convocadas pelos profissionais e pelas pessoas internadas com o objetivo de ocupação do

tempo ocioso, de distração, como forma “do tempo passar mais rápido” e para que as

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pessoas internadas se envolvam em alguma atividade e não solicitem tanto os outros

profissionais.

Normalmente as atividades são desenvolvidas num espaço denominado pelos

profissionais como ateliê e acontecem quase todos os dias quando há pessoas da equipe

multiprofissional (psicólogos, terapeutas ocupacionais e/ou assistente social) que se

disponibilizem a acompanhar a realização das atividades.

O tipo de atividade realizada é livre e feito a partir da escolha de cada um. Para tanto,

são disponibilizados materiais diversos como: tinta, peças de madeira, telas, barbantes,

linhas, tecidos, guardanapos, palitos, papeis, peças para mosaico, massa de biscuit, entre

outros. Em alguns momentos durante o ano não foi disponibilizado recursos financeiros para

a compra de materiais, o que limitou bastante as possibilidades de atividades a serem

realizadas.

Descreverei a seguir uma cena ocorrida em um desses momentos de realização de

atividades na enfermaria.

Quando abro o armário e apresento os materiais disponíveis para a realização de

atividades, o usuário M. vendo os barbantes pergunta se tem agulha de Crochê. Então pego

a agulha que fica guardada em outro armário, pois se entende que oferece riscos, e dou para

ele que começa a fazer crochê, demonstrando muita habilidade na técnica.

Enquanto realiza essa atividade, M. começa a narrar que aprendeu a fazer crochê

quando estava recluso em um presídio, local em que muitas pessoas realizam esse tipo de

atividade, e que nesse contexto os objetos produzidos tem valor de troca, como por exemplo,

por maços de cigarro. M. completa que fazer crochê desperta uma sensação ruim nele, pois

ativa lembranças difíceis e dolorosas dessa época em que estava preso.

Em um determinado momento, enquanto ainda realiza essa atividade, M. começa a

planejar a confecção de um biquíni de crochê para presentear sua mãe. Quando acaba o

tempo destinado para o ateliê, ele guarda os materiais e diz que dará continuidade a

atividade em outro momento.

No dia seguinte, enquanto acompanho novamente as pessoas internadas na

realização de atividades, M. continua sua atividade de crochê. Quando a médica que é sua

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referência chega e o vê crochetando, fica surpresa com tamanha habilidade e o questiona

sobre quando e como ele aprendeu isso, comentando que ele realiza essa atividade muito

bem. Então ele responde: - Eu sei fazer muitas coisas! Faço crochê, jogo futebol, tenho

imaginação, sei contar histórias, entre outras habilidades citadas.

Durante a realização da atividade de crochê por M., algumas pessoas que circulavam

pelo espaço, profissionais e pessoas internadas, fizeram comentários relacionando a

atividade de crochê como uma atividade “de mulher”. Os comentários eram em tom de “tirar

sarro” de M. ou de surpresa por ele fazer uma atividade que para essas pessoas não é

compatível com o gênero masculino.

Quando M. termina o que se transformou ao longo dos dois dias em um tapete de

crochê, presenteia uma pessoa que está internada e que fez aniversário naquela semana.

Não é possível mensurar e acessar tudo o que uma atividade pode significar para um

sujeito e nem todos os efeitos que pode produzir. Mas por esse breve acompanhamento,

podemos refletir sobre vários elementos que puderam ser disparados através da realização

da atividade de crochê por M.

Trata-se de uma atividade que foi aprendida num determinado contexto e momento

de vida de M. A realização da técnica ativou lembranças, fez referência às pessoas que

compartilharam o saber do crochê com ele e vieram à tona memórias do que foi difícil de ser

vivido e a partir disso foi possível a M. falar sobre esse momento da vida.

Também foi possível a M., a partir da produção de uma peça de crochê, fazer

agenciamentos sobre o que fazer com o que foi produzido, fazendo-o pensar em pessoas

para presentear. Portanto, essa atividade também teve o sentido de mapear sua rede social

e mobilizar afetos para pensar que destino dar a produção.

Esse fazer também se mostrou como uma forma de reconhecimento e de afirmação

das habilidades e potências de M. Houve uma valorização dos seus saberes, por ele e pelas

outras pessoas, e ele pode relatar outras coisas que sabe e gosta de fazer, além da técnica

do crochê.

Nas discussões de caso em reunião de equipe sobre M., ele muitas vezes era definido

por seu diagnóstico, pelo discurso desorganizado e pelos sintomas psicóticos que estava

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apresentando. Através da realização da atividade, M. mostrou que para além de sintomas e

sua remissão, existia ali uma pessoa que tem saberes, potências, capacidade de criação,

desejos e história.

Também podemos refletir sobre o significado cultural das atividades e as atribuições

dadas a elas em relação ao gênero associado aos fazeres. Profissionais e pessoas internadas

relacionaram a atividade de crochê como um fazer de mulheres, e responderam com

estranhamento o fato de um homem realizá-la. Isso me faz pensar sobre a lógica machista

que nossa sociedade está organizada, na qual determinamos atividades “de homens” e “de

mulheres“, como se as pessoas não fossem todas singulares e livres para escolherem fazer o

que se identificam. Através dessa lógica, mesmo um ambiente profissional e de cuidado não

está ileso de responder a essas escolhas com julgamentos morais.

Durante todo o tempo que trabalhei na enfermaria, me questionei sobre o sentido

que as atividades têm naquele espaço e qual é o lugar da Terapia Ocupacional (TO) para a

equipe. Por vezes, senti que o trabalho da TO não era compreendido e tão pouco valorizado.

Em muitos momentos, as pessoas da equipe fazem referência às atividades como

tendo a função de entreter os usuários para que eles demandem menos dos outros

profissionais. Dessa forma, durante a realização das oficinas, os usuários envolvidos não

incomodam os profissionais em suas tarefas rotineiras. Também era comum que as

atividades fossem solicitadas para que através delas, se identificassem sintomas.

Por diversas vezes as atividades foram interrompidas para que as pessoas internadas

fossem realizar outros procedimentos (verificação dos sinais vitais, conversas com os

médicos, etc), o que demonstra que outros procedimentos são priorizados, sendo o espaço

de realização de atividades desrespeitado e sua importância é, muitas vezes,

desconsiderada.

Relacionei esses acontecimentos com o que Medeiros (2010) descreve quando

aborda sobre o reflexo do cientificismo nas práticas de Terapia Ocupacional no início da

profissão no Brasil. Ela aponta que o movimento de reabilitação:

incorporando o objeto da medicina científica como seu, passou a se dirigir não mais ao “homem como um todo” em sua reintegração

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social, mas a desenvolver técnicas e procedimentos dirigidos às incapacidades, às patologias, às partes do corpo, etc. Dessa forma, a medicina reconquistou seu papel hegemônico em tal prática social, medicalizando-a. Os demais profissionais participavam como auxiliares médicos, submetendo-se aos seus diagnósticos, prescrições e propedêuticas (p.104).

A equipe multiprofissional da enfermaria, em muitos momentos é convocada a ter

um papel de subordinação ao profissional médico, que restringe o olhar a uma patologia.

Percebi-me em alguns momentos desempenhando o papel de “auxiliar dos médicos”, numa

função de vigilância e controle. Essas funções são determinadas por uma lógica de

organização que tem pressupostos instituídos nas outras instâncias de decisão e poder.

A relação entre profissionais e pessoas internadas, muitas vezes reafirma uma

posição desigual e de dominação do outro. Como afirma Medeiros (2010) “As práticas de

saúde revestidas ideologicamente de “científicas”, portando de “verdadeiras”, exercem e

assumem o poder, delegado pelo Estado, de estabelecer os padrões de normatividade em

função dos interesses desse estado” (p.45).

Dessa forma, considero a contribuição de Medeiros (2010), importante para refletir

sobre essas questões. A autora expõe que:

Não se trata de considerar a Terapia Ocupacional como trabalho complementar de menos importância ou, ao contrário, de tentar superar em importância as demais áreas de saúde. Esse raciocínio, individualista e competitivo, gerado pela divisão social do trabalho, oculta as possibilidades de um trabalho integrado e transformador. (p. 137)

Com o desenvolvimento do trabalho e através das contribuições da equipe

multiprofissional nas reuniões de equipe, alguns profissionais, pontualmente, passaram a

valorizar mais o trabalho da TO e entender melhor o sentido da proposição de atividades.

Para além de distrair e ocupar o tempo ocioso das pessoas internadas e de minimizar

os efeitos negativos causados pela instituição, a realização de atividades na enfermaria tem

o objetivo de possibilitar aos sujeitos internados momentos de expressão, criação e outras

formas de comunicação. Com isso objetiva-se instaurar a possibilidade das pessoas

produzirem novas subjetividades, que não só a de doentes e incapacitados e exercerem suas

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potências e habilidades. Também é uma forma de fazer um desvio nos procedimentos

médicos e nas práticas medicalizantes.

“(...) Cada uma dessas atividades não é realizada para se obter efeitos específicos, mas para oferecer uma rede de possibilidades articuladas, aumentando a probabilidade de que algo de novo se de nesse mundo do mesmo” (Lima, 1997, p.46).

No decorrer do meu trabalho na enfermaria do CHOV durante o ano de 2015, a

proposição de atividades com os objetivos citados acima foi se tornando cada vez mais difícil

de realizar. Por todas as questões que a enfermaria foi apresentando ao longo do ano (lógica

médico centrada, diminuição da equipe multiprofissional, falta de materiais para realizar as

atividades, fragmentação do trabalho, desvalorização da TO, entre outras citadas) me vi num

processo de grande desestímulo para o trabalho e de adoecimentos, sensação também

compartilhada pela outra TO da residência multiprofissional que também atuou na

enfermaria.

Senti que minha potência de agir foi diminuindo ao longo do tempo, e fui

experimentando a sensação de afetos paralisantes ao ter que lidar com o processo de

trabalho da enfermaria e as grandes dificuldades que estavam sendo colocadas.

Essas questões foram sendo discutidas em supervisões e em plantões individuais, até

que por uma decisão coletiva entre as residentes, supervisora, preceptora e coordenadora

da residência, decidiu-se fechar o campo de residência na enfermaria do CHOV. Isso

aconteceu pela compreensão que o funcionamento da enfermaria não está de acordo com o

modelo de atenção hospitalar em saúde mental que o programa de residência aposta para

uma boa formação.

4.2 Centro de Convivência Casa dos Sonhos

Durante o meu trabalho como residente multiprofissional no Centro de Convivência

Casa dos Sonhos, acompanhei e colaborei em grupos que eram realizados com o objetivo da

convivência através da realização de atividades artesanais (decoupagem, pintura em objetos

de madeira, confecção de pulseiras de macramê, trabalhos com tecidos e materiais

recicláveis, entre outros).

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Todos os grupos são abertos, caracterizam-se por terem participação de população

heterogênea (pessoas de diferentes idades e classes sociais, com e sem sofrimento

psíquico). A escolha dos materiais e atividades artesanais a serem realizadas é livre e

conforme o desejo de cada um e o que é oferecido.

Como expõe Lima (2004b), numa afirmação que se relaciona com a vivência que tive

no CECO “As oficinas podem ser lugar de aprendizagem, de produção, de intercâmbio, de

ampliação das relações, de mergulho no universo cultural” (p.16).

A participação das pessoas nos grupos possibilitava convivência com pessoas

diferentes, exercício da potência de ação e criação, saída do isolamento social que algumas

pessoas se encontravam, ampliação de redes afetivas, conversas e trocas sobre temas

diversos, experimentação, aprendizado de técnicas, realização de novas produções materiais

e subjetivas, agenciamento sobre que destino dar as peças produzidas, entre outras infinitas

possibilidades. Também ouvi relatos de alguns participantes que referiram melhora de

sintomas ansiosos e depressivos a partir da participação nos grupos.

Oficina de teatro em uma ONG (parceria com o CECO Casa dos Sonhos)

Além das oficinas que participei como colaboradora no Centro de Convivência Casa

dos Sonhos, eu tive interesse em propor alguma oficina, entendendo que o CECO é um

espaço potente para a proposição de atividades diversas.

Escolhi trabalhar com teatro e expressão corporal, pois tenho experiência com essas

linguagens e acredito que são muito potentes para desenvolver a expressão, criação,

integração, acesso a cultura, discussão de diferentes temas, observação, desenvolvimento

de senso crítico etc.

Para definir o público alvo, conversei com a equipe do CECO sobre a proposta, e

expus sobre o desejo de trabalhar com crianças e adolescentes. A equipe falou sobre uma

ONG do território que recebe crianças no contra turno escolar e já havia se interessado em

formar parcerias com o Centro de Convivência. A partir disso, eu e a residente de psicologia

que também está no CECO nos interessamos por elaborar a oficina conjuntamente. A ONG

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se interessou por nossa proposta e começamos a fazer a oficina com as crianças

semanalmente, com duração de uma hora por semana, de Maio a Dezembro de 2015.

Definimos que o critério de participação na oficina seria o desejo de estar, portanto

expomos a ideia para as crianças de todas as salas (de 07 a 14 anos), e a partir disso as

crianças interessadas se inscreveram. Era uma oficina aberta, de modo que a cada encontro

novas pessoas entravam e as que já participavam escolhiam se queriam ou não fazer

naquele dia. O número médio de participantes por oficina foi de 15 a 30 crianças.

Quando apresentamos a proposta, explicamos que o objetivo das oficinas era de

experimentação de jogos e exercícios teatrais e de expressão corporal. Não tínhamos como

foco inicialmente a apresentação de uma peça de teatro, como parecia ser a expectativa dos

profissionais da ONG, isso só aconteceria se ao longo do processo com as crianças

identificássemos que era importante.

Definimos uma dinâmica de funcionamento dos grupos. Iniciávamos as oficinas com

uma atividade de ativação (andar pelo espaço de diferentes formas e ritmos, cantar músicas

de roda, brincadeira, dança livre, alongamento e aquecimento, acrobacias de solo, entre

outros), depois realizávamos uma atividade de conexão ou para desenvolvimento de alguma

habilidade (jogos de concentração, relaxamento, massagem, exercícios de voz, trabalho de

identificação de emoções, expressão corporal, entre outros), em seguida propúnhamos um

exercício de criação (divisão em grupos para criação de cenas com diferentes temas,

continuação de histórias, construção de personagens com massa de modelar e materiais

recicláveis, uso de objetos para construir uma cena, teatro de fantoches, entre outros) e, por

fim, os grupos apresentavam o que tinham criado conjuntamente naquele dia.

Durante a realização das oficinas, nos deparamos com algumas dificuldades que

fomos aprendendo a manejar com o tempo. Frequentemente as crianças estavam muito

agitadas, com dificuldade de se concentrar nas propostas; algumas crianças apresentavam

comportamento agressivo com os outros participantes; pelo grande número de crianças,

tínhamos dificuldades de perceber como cada um estava se colocando e se desenvolvendo

na oficina, sendo que em todas as oficinas entravam crianças novas e algumas faltavam.

Com o passar do tempo essas dificuldades foram diminuindo. Os participantes foram

entendendo melhor os objetivos da oficina de teatro e se implicando mais nas atividades,

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passamos a conhecer melhor as crianças, o que facilitou os manejos e, de forma geral, as

crianças demonstravam muito interesse, afeto e desejo em estar naquele espaço.

Buscamos criar um espaço de relações horizontais, onde as questões pudessem ser

discutidas em roda e todos pudessem se expressar e serem valorizados em suas colocações.

Além disso, as crianças tinham liberdade de sair da oficina na hora que desejassem, seja

porque não queriam mais realizar as atividades propostas naquele dia ou para ir ao banheiro

e beber água.

Frequentemente emergiam problemas de relações e convivência e atitudes em que

algumas crianças excluíam e ofendiam outras. Isso era trabalhado com elas através de

conversa e com a proposição de exercícios de teatro que contribuíssem para essas

discussões.

Um exemplo disso foi uma oficina em que a questão da exclusão apareceu de

maneira muito marcante: na hora de dividir as crianças em grupo para um exercício de

criação, nenhum grupo queria a participação de uma menina. Então, na oficina seguinte

fizemos uma roda de conversa para discutir e refletir sobre trabalho em grupo, convivência

com as diferenças, falamos sobre o ditado “uma andorinha só não faz verão” e sobre

situações de exclusão e as crianças montaram cenas com histórias que elas criaram para

representar esse tema.

Com o desenrolar da atividade e do processo grupal questões foram aparecendo e, a

partir disso, foram sendo trabalhadas ao longo do tempo e dando sentido e direção ao

processo. Então, ocorreu um fato marcante que influenciou no desenvolvimento da oficina

até o fim do processo.

Em uma das oficinas as crianças se dividiram em grupos e criaram histórias que foram

apresentadas com fantoches. Esse processo foi muito interessante porque as crianças

puderam experimentar diferentes vozes e se mostraram menos tímidas para apresentar por

não terem que se expor corporalmente. Porém, na apresentação do último grupo, foi

encenada uma história de um animal que, de acordo com o termo que as crianças usaram,

“tinha cabelo ruim” e todos os fantoches que estavam na cena começaram a gritar “cabelo

Bombril, cabelo Bombril, cabelo Bombril”, umas das meninas que estava assistindo essa

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apresentação e tem cabelo crespo, levantou com raiva e arrancou o pano que cobria as

pessoas do grupo.

A partir disso, eu interrompi a oficina e fizemos uma roda de conversa para discutir

essa questão. Conversamos sobre as diferenças, sobre a importância de respeitar o modo de

ser de cada um e sobre as ofensas que aconteceram e encerrei a oficina. Compartilhei o que

havia acontecido com a coordenadora e a assistente social da ONG e elas contaram que os

ataques às pessoas que possuem cabelo crespo pelas crianças era comum na ONG e

descobri que uma criança já havia saído da ONG por esse motivo.

Então, identifiquei que esse era um tema necessário de ser debatido e trabalhado

com as crianças. Para criar ferramentas para lidar com isso, entrei em contato com pessoas

de movimentos negros e pedi auxílio de atividades possíveis para fazer o debate sobre o

racismo, que é a raiz desse problema que aconteceu. As crianças, com essas atitudes

ofensivas dirigidas as pessoas com cabelo crespo estavam reproduzindo situações que

acontecem socialmente.

A partir de então realizamos atividades que ampliassem a discussão do tema,

discutissem o racismo e valorizassem a beleza negra. É importante considerar que a maioria

das crianças que participam dessa oficina de teatro são negras ou pardas.

Na oficina seguinte, fizemos uma roda de conversa para debater novamente o que

havia acontecido na oficina anterior e as crianças relataram outras situações em que foram

vítimas de racismo, contamos algumas histórias do livro “Histórias da Preta” de Heloísa Lima,

que discute sobre a identidade afro-brasileira, levamos imagens de pessoas negras (com

cabelo Black Power, turbantes e tranças), imprimimos frases como “meu cabelo não é ruim,

ruim é o seu preconceito”, “Meu cabelo crespo, minha identidade, minha raiz”, “Meu cabelo

é lindo” e “Essa é minha beleza” e propusemos uma oficina de cartazes, na qual as crianças

se dividiram em grupos, confeccionaram cartazes a partir desse tema e colaram no espaço

da ONG (fotos dos cartazes em anexo).

Para dar continuidade ao debate sobre esse tema, na oficina seguinte exibimos dois

vídeos. Um deles era um documentário de 5 minutos sobre a Mc Sophia, que é uma criança

paulistana de 11 anos que canta rap e tem um trabalho artístico direcionado ao

empoderamento da criança negra, o outro era um clip de uma música da cantora Dona

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Imperatriz que aborda sobre o cabelo crespo e incentiva o uso natural do cabelo. Depois,

fizemos uma roda de conversa para debater sobre os filmes apresentados e tiramos fotos de

todas as crianças, num sentido de valorização da beleza de cada um.

No decorrer do processo também conversamos sobre as outras formas de

preconceitos sofridos que as crianças identificavam em suas vidas e surgiu o tema da

restrição das brincadeiras direcionadas para meninos e meninas, e os problemas que elas

encontravam quando queriam brincar com algo que culturalmente era uma brincadeira

definida para o outro gênero.

Como o processo das oficinas estava se direcionando para a finalização (já que as

atividades da ONG encerravam em Dezembro para as férias) conversamos com as crianças

sobre o interesse delas em realizar uma apresentação e elas se mostraram motivadas para

isso. Pensamos em realizar um evento de finalização do teatro com a presença das crianças e

dos pais, com uma atividade que representasse um pouco de como foi a vivência durante

todo o processo.

No dia do evento as crianças fizeram com os pais e outros familiares alguns exercícios

de ativação que realizamos durante o ano e que nesse momento elas conduziram, foram

exibidos para os pais os dois filmes que exibimos para as crianças durante o processo e

foram apresentadas cenas criadas pelas crianças, que se dividiram em quatro grupos, sobre

a discriminação étnica.

A partir do relato dessa experiência com atividade teatral e de expressão corporal

oferecida para crianças de 7 a 11 anos, podemos refletir sobre os sentidos que a atividade

foi tendo ao longo do processo.

Identifico que a partir da atividade proposta as crianças puderam se expressar, se

desenvolver, interagir, conviver, exercitar a capacidade de criação, explorar o próprio corpo,

exercer sua potência de ação e refletir coletivamente sobre problemas sociais.

Tivemos devolutivas de algumas mães e educadoras em relação a mudanças

percebidas no desenvolvimento de algumas crianças a partir da participação no grupo. Uma

educadora expôs que uma criança que era muito tímida e tinha muita dificuldade em se

colocar, teve um grande avanço nesses aspectos pela participação na oficina do teatro. Em

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outro relato, uma avó comentou sobre a importância que teve para sua neta o trabalho

sobre a questão do cabelo, pois a menina tinha baixa autoestima e se sentia triste por ter

cabelo crespo.

Nesse sentido, Beth Lima (2004b) expõe que “As ferramentas expressivas, verbais,

plásticas, corporais, se instalam no cruzamento entre o mundo humano das formas finitas e

o mundo trans-humano de virtualidades infinitas, do qual surgem as linhas de fugas, a

transformação das formas vigentes, a criação do novo, a arte (p.14).

4.3 Centro de Saúde (CS) Rosália

Dentre as ações que realizei como residente multiprofissional no Centro de Saúde

Rosália, o que preponderou foram os atendimentos individuais. Apresentarei um deles nesse

trabalho. Identificarei a pessoa atendida como João (nome fictício).

O primeiro contato que tive com ele foi através de uma consulta conjunta com um

médico, que solicitou que eu participasse. Nesse momento ele apresentou questões de

tentativa de suicídio, uso de muitos medicamentos psicotrópicos e depressão. A partir desse

primeiro contato, foi feito a proposta de que começaríamos um processo de atendimentos

individuais semanais de Terapia Ocupacional e ele concordou.

João se queixava de muita tristeza, apresentava desejo de morte e dizia não ter

vontade fazer nada. Tinha uma família desestruturada. O pai era alcoólatra e havia falecido

há dois anos, momento em que João identifica que iniciou a depressão. Sua mãe também

usava muitos medicamentos. João também tinha uma questão de uso abusivo de álcool e

cocaína.

Nos atendimentos que realizei com André não priorizei de inicio a realização de

atividades. Iniciei fazendo a escuta das questões que trazia para identificar as demandas que

apresentava e como era sua ação no mundo. A proposição de atividades aconteceria se ao

longo dos processos dos atendimentos identificássemos que faria sentido e seria

interessante.

Tentei identificar com João o que ele gostava de fazer. Ele relatou que não estava

fazendo nada naquele momento de sua vida e ficava grande parte do tempo deitado na

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cama. Mas expôs que quando era mais novo tinha paixão pelo radioamadorismo, uma

atividade de intercomunicação que consiste em operar estação receptora e transmissora de

rádio particular, sem fins lucrativos. Também referiu gostar de música e citou algumas que

gostava.

Quando ele trouxe a paixão que tinha por radioamadorismo, perguntei se ele tinha

vontade de retomar essa atividade e ele respondeu que sim, mas que estava com

dificuldades financeiras para investir nos materiais necessários para viabilizar isso. Em todos

os atendimentos referia sentir muito desânimo e solidão. Estava afastado do trabalho por

essas dificuldades.

Em um determinado atendimento ele referiu que gostava de cozinhar, mas que há

muito tempo não o fazia. Falou sobre pratos que gostava e tinha habilidade de fazer. A partir

disso, combinamos de cozinhar, para retomar essa atividade que não realizava a cerca de

dois anos. Ele escolheu fazer feijoada, comprou os ingredientes necessários e fizemos na

cozinha do Centro de Saúde.

Durante a realização da atividade ele foi ensinando as etapas de preparo da feijoada

e falou sobre si e sua história de vida. Vários profissionais do Centro de Saúde circularam no

espaço e foram fazendo comentários e dando devolutivas (que o cheiro estava bom, que

devia estar uma delícia, etc). Quando finalizamos, almoçamos e ele levou uma parte do que

sobrou pra casa e a outra deixou no CS para que os profissionais experimentassem. Esse foi

um momento importante de retomada de um fazer que ele gostava, João pode ser

valorizado por isso e isso proporcionou a aproximação de João com a equipe, que interagiu

com ele durante a realização da atividade.

Durante o processo dos atendimentos, que durou cerca de seis meses no total,

outras atividades emergiram. Ele sempre referia que tinha uma rede social empobrecida e se

sentia sozinho e sem apoio. Porém em um dos encontros disse que colecionava fotos 3x4 de

pessoas que conhecia. Pedi para que ele trouxesse essas fotos e quando ele trouxe, fizemos

uma atividade de forma espontânea. Ele espalhou as fotos pela mesa e foi falando o grau de

proximidade e confiança que tinha por cada pessoa. Movimentou as fotos e as agrupou em

pessoas mais ou menos próximas. Essa atividade se transformou em um mapeamento de

sua rede de apoio.

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Também fizemos uma atividade relacionada ao conhecimento das medicações que

ele tomava, pois João usava muitos remédios e sempre trazia isso como demanda,

solicitando aumentar o uso. Pedi as bulas das medicações que ele tomava na farmácia e

fizemos uma tabela identificando pra que eram indicadas e quais eram as contra indicações.

Com o passar do tempo ele foi diminuindo a frequência nos atendimentos e parou de

ir. Então, quando eu estava encerrando minhas atividades no CS, fiz uma visita domiciliar

para saber como João estava e informar que eu estava finalizando meu trabalho como

residente no Centro de Saúde.

Nessa visita ele relatou que estava se sentindo melhor e que tinha retomado o

trabalho e por isso não tinha mais possibilidade de ir aos atendimentos. Também me

informou que tinha retomado a atividade de radioamadorismo e mostrou para mim um

rádio que havia comprado e como funcionava esse hobby.

Na maioria dos atendimentos que realizei com João a proposição de atividades não

estava presente. Mas através da linguagem verbal João expunha sobre sua vida,

dificuldades, sofrimentos, desejos, redes de apoio e fazeres. Nos nossos encontros

pensávamos em estratégias de como João poderia potencializar sua ação no mundo e

enriquecer sua vida com fazeres que pudessem fazer sentido.

Nos momentos que utilizamos a atividade como recurso terapêutico, foi a partir do

que João expunha sobre os fazeres que faziam sentido pra ele e que por vários motivos ele

não estava dando conta de realizar. Considero que esse processo foi fundamental para que

João pudesse retomar atividades importantes de sua vida.

4.4 Caps AD Reviver

Para expor sobre as experiências com atividades que vivi no período em que atuei no

Caps AD Reviver, recorri ao trabalho que escrevi no ano de 2014, no qual expus e refleti

sobre a ambiência do Caps, local de convivência, onde os usuários ficam quando não estão

em grupos ou atendimentos individuais. Também vou expor sobre a experiência de criação

de um grupo de leito noite que teve duração de aproximadamente um ano e meio com

encontros semanais.

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As conversas, jogos, atividades culturais e artísticas desenvolvidas no espaço da

ambiência foram permitindo aproximação com os sujeitos atendidos, bem como a

apreensão dos seus fragmentos biográficos e das trajetórias de uso de substâncias

psicoativas. Apresentarei, através dos fragmentos descritos no trabalho que escrevi em

2014, algumas das experiências com atividades que vivi nesse espaço, buscando analisa-las

de acordo com o objetivo do presente trabalho.

Jogo de damas

Quando iniciei minha atuação como residente multiprofissional no Caps AD Reviver

passava grande parte do tempo na ambiência. Eu estava conhecendo o Caps, os usuários e

os profissionais, entendendo seu funcionamento e participando das atividades que

aconteciam nesse serviço.

Em um desses fins de tarde em que eu transitava pela ambiência e já não estava

acontecendo mais nenhuma atividade programada, comecei a jogar damas com um dos

usuários que estava por lá. Durante o jogo começamos a conversar, ele trouxe elementos da

vida dele, explicou porque estava no Caps e há quanto tempo frequentava e fizemos

brincadeiras sobre o jogo relacionadas ao ganhar e perder.

A partir desse contato inicial através de um jogo de damas na ambiência, sempre que

nos víamos conversávamos e cada vez mais ele foi trazendo sobre si, sobre as situações de

vida que estava passando e algumas dificuldades.

Depois fui entender que ele era um usuário que causava problemas no serviço, fazia

muitas brincadeiras, algumas delas inconvenientes e desrespeitosas. Mas comecei a

perceber também que pra ele não era fácil acessar algumas questões de sua vida e admitir

seus próprios erros e dificuldades e esse jeito constante de brincar era um modo de driblar

isso e a forma que tinha para estabelecer contato com o outro.

Como eu havia tido esse contato inicial com ele de uma forma mais lúdica e

passamos a estabelecer uma relação de confiança, ele me acessava para fazer solicitações,

perguntas, falar sobre problemas que estava tendo e sobre a percepção que tinha do

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serviço. A partir disso me tornei uma de suas referências, passando a acompanhá-lo mais

sistematicamente.

Confecção de pulseiras (artesanato)

De terça-feira à tarde a ambiência é bem movimentada por ter oficinas abertas nesse

espaço. Em um desses dias, um usuário artesão começou a fazer pulseiras de macramê com

um material que tinha no ateliê. Mostrei-me interessada no modo como ele confeccionava

as pulseiras e me aproximei para acompanhar a confecção.

A partir disso, ele foi me ensinando essa técnica e outras pessoas também se

aproximaram interessadas em aprender.

Achei muito significativo esse acontecimento, pois foi uma situação em que ele

experimentou estar em um lugar de valor e reconhecimento, ensinando um saber

importante que tem para outras pessoas e sendo valorizado por isso.

Depois disso ele sentiu confiança para compartilhar comigo alguns aspectos de seu

histórico de vida e algumas situações difíceis que estava vivendo no ambiente familiar

(dificuldades de relação com os filhos e esposa), o que, na minha percepção, tornou esse

acontecimento ainda mais significativo.

O fato de essa atividade ter sido feita de forma espontânea na ambiência também

possibilitou que outras pessoas entrassem em contato com ela e tivessem a oportunidade de

aprender e o usuário a possibilidade de transmitir seu conhecimento.

Buscar os materiais que tinha e soltar pipa na ambiência

Em uma tarde de sexta-feira com bastante vento, vários usuários ocupavam o espaço

da ambiência. Quando desci eles estavam se organizando, junto com outra profissional, para

confeccionar uma pipa. Ajudei com a busca dos materiais, que foram improvisados com o

pouco que tinha.

Os usuários confeccionaram a pipa coletivamente, compartilhando seus

conhecimentos para isso. Foi uma pipa feita com muitas mãos.

Quando ficou pronta foram para a área aberta em volta da piscina do Caps para que

empinassem a pipa, se revezando para isso. Foi um momento em que todos que estavam

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presentes no local contemplaram esse acontecimento, a pipa voava alto no céu. Enquanto

isso, conversaram sobre quando soltavam pipa na infância e davam uns toques aos

principiantes.

Foi uma situação em que todos estavam motivados e envolvidos no mesmo objetivo:

levar a pipa ao céu.

Jogos: baralho e damas

Muitas manhãs e tardes da ambiência fazem parte desse fragmento. Alguns usuários

gostam bastante dos jogos de baralho e tabuleiro. Através disso acontecem interações,

conversas e formam-se parcerias. Algumas pessoas são reconhecidas pela habilidade que

têm nessas atividades.

Estar presente nesses momentos é uma boa oportunidade para se aproximar dos

usuários e conhecê-los em um contexto de descontração, que é bem diferente do contato

nos espaços formais de cuidado. Algumas conversas e trocas significativas também emergem

nesses momentos.

Improvisação de rap

Interesso-me bastante pela cultura do hip hop e suas manifestações artísticas. Em

decorrência disso, em alguns momentos na ambiência levei propostas de criação de músicas

de rap direcionadas principalmente as pessoas que eu sabia que se identificavam com esse

estilo musical.

Recordo-me de um dia específico em que eu estava conversando com dois usuários e

propus que improvisassem uma letra de música. Eles começaram a cantar de forma que

cada um fazia uma estrofe. Passaram alguns minutos nesse jogo de improvisação.

Vale a pena ressaltar que esses usuários são casos graves atendidos pelo Caps, ambos

com histórico de perdas sociais e materiais importantes. Um deles estava envolvido em

muitas intercorrências no serviço, sendo suspenso por diversas vezes e o outro é um usuário

mais antigo, bastante solicitante à equipe e que traz queixa de sofrimento intenso quase

diariamente.

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Para mim foi surpreendente acompanhar o processo criativo que se desenvolveu

nesse momento entre eles. Foi uma situação em que se evidenciou a potencialidade deles

de criação, inventividade e rapidez no raciocínio. Foi uma forma de expressão espontânea.

Em outros momentos na ambiência levei bases de rap e funk para incentivar a criação

improvisada de letras. A partir disso, surgiram algumas criações de muita qualidade. Letras

que falavam da realidade vivida e de aspectos que estavam acontecendo naquele momento

de vida de cada um.

Grupo de leito noite

Após a apresentação das experiências com atividades na ambiência do Caps, relatarei

a seguir sobre a experiência de criação e desenvolvimento do grupo de Leito Noite (LN),

buscando refletir sobre como o uso de atividades colaborou ou não para o processo grupal.

Esse grupo foi criado por mim e por um enfermeiro também residente

multiprofissional da Unicamp. Teve inicio em agosto de 2014, e foi realizado semanalmente,

com duração de aproximadamente uma hora por grupo. Caracteriza-se como grupo

fechado, pois participam os usuários que estão inseridos em leito noturno no Caps AD

Reviver. Como o fluxo de usuários em LN é rotativo e o critério pra participar do grupo é

estar em leito, a cada semana pessoas diferentes participavam do grupo.

O grupo foi idealizado a partir da percepção de que o LN é uma alternativa de

acolhimento intensivo que pode ser utilizado durante o tratamento dos usuários em

situações de crise no Caps ad. Então, fizemos a proposta de realizar um grupo direcionado

aos usuários em LN com os objetivos de promover reflexão sobre o atual momento de vida

das pessoas que estão em LN, problematizar a necessidade e a importância singular para

cada usuário na utilização desse dispositivo; favorecer a construção de projetos de vida e

possibilitar interação e troca de experiências, fortalecendo os laços de convivência entre os

usuários que estão em leito.

Ao longo do processo de construção e desenvolvimento do grupo, fomos

experimentando diferentes formas de realização deste. Em alguns grupos propusemos

atividades como recursos para disparar os temas pra discussão, promover interação entre os

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participantes ou como possibilidade não verbal de expressão da vivência, também foram

propostas dinâmicas e fizemos grupos de conversa.

Após um ano e meio realizando o grupo percebemos que além dos objetivos

previstos na construção do grupo, ele também desempenhou a função de ser um dispositivo

de avaliação, terapêutico e analisador (do Caps, do Projeto Terapêutico Singular, do

profissional de referência de cada caso, dos vínculos estabelecidos no serviço, de como as

pessoas estão).

De forma geral, os temas abordados durante os grupos foram: Período do leito noite;

projetos para depois da saída do LN (moradia, trabalho, abrigo, justiça, documentos,

mudança de cidade, internação); como estão emocionalmente e fisicamente; como está

sendo o leito noite; questões de organização, rotina e estrutura do LN; relação com os

profissionais do Caps; dificuldade de relacionamento e convivência com os usuários que

estão em permanência dia durante a semana ou que estão em leito noite e fazem uso de BA

e SPAs no Caps; convivência ( dificuldade de conviver, isolamento, prazer e modos de estar

no Caps); medicação; sintomas psicóticos; morte; história de vida; relações familiares;

conflitos; perdas; coisas que as pessoas gostam de fazer; questão do morar ( pessoas em

situação de rua, moradia, lembranças de lugares que morou, Caps como lugar de moradia);

funções do leito noite e habilidades e profissões de cada um.

Os usuários também expuseram durante o grupo diferentes motivos pelos quais

estão em LN: desintoxicação; promoção de abstinência; prevenção de recaída; questões

clínicas; retaguarda facilitadora para organização de projetos de vida; articulação com a

assistência social; local importante para repouso; possibilidade de afastamento do ambiente

familiar e muitos identificam o LN como um lugar acolhedor.

Em vários momentos, alguns usuários que estavam em LN reclamaram sobre a falta

de atividades oferecidas pelo Caps, pois quando estão em LN permanecem vários dias no

espaço e consideram insuficiente a oferta de grupos e atividades.

Uma das dificuldades para o desenvolvimento do grupo foi o fato dele ter

participação rotativa, pois a cada encontro tínhamos que construir com os participantes a

proposta e os objetivos do grupo de LN. Desse modo, alguns grupos fizeram sentido para os

participantes, que se envolveram nas propostas, e em outros, isso não aconteceu.

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As atividades foram propostas em alguns momentos com o objetivo de serem

disparadoras para as discussões, como possibilidade não verbal de expressão e para

promover interação entre os participantes. Realizamos atividades como: colagem, desenho,

escrita, confecção de cartaz com palavras chaves, criação de cartões para trocar entre os

participantes, entre outras.

Considero que em algumas das propostas as atividades favoreceram o processo

grupal e foi um elemento que enriqueceu o grupo. Porém, algumas vezes as propostas não

fizeram muito sentido para as pessoas, que em alguns momentos preferiram falar ao invés

de realizar a atividade proposta.

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5. Considerações finais

Que as atividades possam encarnar uma nova ética que

se desloca da noção capitalista de produção para a ideia

de produção de vida e criação de mundos. A única

finalidade aceitável das atividades humanas é a produção

de uma subjetividade que enriqueça de modo contínuo

sua relação com o mundo (Guattari, 1992 apud Lima

2004b).

Nesse trabalho tentei expor a minha experiência nesses dois anos como residente

multiprofissional em saúde mental e refletir sobre os sentidos das proposições de atividades

nos serviços que atuei.

Trata-se de um relato de experiência de fragmentos do que eu vivenciei e das

interpretações, reflexões, críticas e questionamentos que eu tive a partir dessas vivências e

encontros.

No processo de formação da Residência Multiprofissional há enfoque no campo da

saúde mental e os diferentes núcleos que compõe o grupo (Psicologia, Terapia Ocupacional,

Enfermagem e Fonoaudiologia) participam das discussões em supervisão trazendo o olhar

do núcleo e da experiência de cada um.

No inicio desse processo de formação me dediquei a entender o campo da saúde

mental, aprendendo sobre políticas públicas, funcionamentos dos serviços de saúde mental,

análise institucional, redução de danos, filosofia da diferença, entre outros temas. Com o

tempo senti necessidade de um aprofundamento na clínica da Terapia Ocupacional,

retomando nessa profissão o que me motiva, me encanta e me mobiliza e com quais

referencias me identifico.

Portanto busquei nesse trabalho discutir sobre a prática da Terapia Ocupacional,

refletindo acerca do uso das atividades nos serviços e do olhar da TO para isso, pois essas

proposições são muito frequentes nos equipamentos que atuei e são propostas por

diferentes profissionais e com diferentes objetivos.

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Foi muito interessante fazer o exercício de descrição de alguns processos grupais e

individuais com atividades que vivenciei e analisá-los, pois isso me possibilitou refletir sobre

a minha própria prática como terapeuta ocupacional e sobre as práticas com atividades nos

serviços de maneira geral. Pensar sobre os objetivos e os sentidos que as proposições de

atividades podem ter para o público atendido, também me ajudaram a descobrir o sentido

da minha própria prática. Além disso, considero que esse relato pode auxiliar outros

profissionais (terapeutas ocupacionais ou não) que se interessam no tema.

Dessa forma concluo que a proposição de atividades em saúde mental pode ser

muito potente e propiciar para os sujeitos a experimentação de novas possibilidades,

criação, expressão, produção de vida, convivência, inserção na rede social, acesso a bens

culturais, criação de sentidos, exercício da potência de ação, entre outros.

Porém, da mesma forma que as atividades podem ter essa função transformadora,

que aumente a potência de agir dos sujeitos, possibilitando a criação de novas

subjetividades, também podem ter função alienante, adaptativa, de mera distração e

disciplinadora.

Por isso, é muito importante que as equipes dos serviços reflitam e discutam sobre

suas práticas e façam uma análise crítica e clínica acerca do objetivo que as proposições tem

e para que elas estão servindo.

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6. Referências Bibliográficas

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Rio de Janeiro, 2012. Disponível on-line:

http://www.achegas.net/numero/41/renato_nunes_41.pdf

Brasil. Ministério da saúde. Portaria Nº 3.088, Institui a Rede de Atenção Psicossocial.

Brasília, 2011.

Bondia, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ. [online].

2002, n.19, pp. 20-28. ISSN 1413-2478.

Chauí, M. Espinosa, Uma filosofia da liberdade. Editora Moderna, 1995.

Deleuze, G. Espinosa Filosofia Prática. Escuta, 2002

Deleuze, G. Cursos de Gilles Deleuze – Deleuze e Espinosa, Tradução de Emanuel Fragoso e

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Lancetti, A. Clinica Peripatética. Hucitec. São Paulo, 2013.

Lima, E. A. Clínica e Criação – A Utilização de Atividades em Instituições de Saúde Mental.

Dissertação de Mestrado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 1997.

LIMA, E. M. F. A. A análise de atividade e a construção. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v. 15,

n. 2, p. 42-8, maio/ago., 2004

Lima, E. A. Oficinas, Laboratórios, Ateli ês, Grupos de Atividades: Dispositivos para uma

clínica atravessada pela criação. In: Costa CM, Figueiredo AC. Oficinas Terapêuticas em

saúde mental – sujeito, produção e cidadania, Contra Capa Livraria, Rio de Janeiro, p. 59-81.

2004b

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Medeiros, M. Terapia Ocupacional: um enfoque epistemiológico e social. EdUFSCAR. São

Carlos, 2010.

Teixeira, R. As redes de trabalho afetivo e a contribuição da saúde para a emergência de

uma outra concepção de público. San Diego, 2004.

Quarentei, M. A. Conferência de encerramento “Terapia Ocupacional e produção de vida”

Porto Alegre, 2001. VII Congresso Brasileiro de Terapia Ocupacional.

Quarentei, M. A. Do ocupar a criação de territórios existenciais. X Congresso de TO em

Goiania (GO). 2007

Merhy, E.E.; Feuerwerker, L.; Silva, E.; Freire, F.; Amaral, H.; Palmieri, T.; Oki, N.; Fonseca, A.;

Ramos, C. Projeto de pesquisa: Acessibilidade em uma complexa rede substitutiva de

cuidado em saúde mental – o caso de campinas. Universidade Federal do Rio de Janeiro,

2007-2016.

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ANEXO

Imagens dos cartazes confeccionados pelas crianças participantes das oficinas de teatro do

CECO Casas dos Sonhos em parceria com a ONG APAS:

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