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Motrivivência Ano XXII, Nº 35, P. 79-98 Dez./2010 1 Este artigo resulta da dissertação Lazer, trabalho e educação no capitalismo brasileiro: concretude histórica e projeto revolucionária (2008), defendida por Fernando Pereira Cândido, orientada por Nise Jinkings e co-orientada por Iracema Soarez de Souza - CDS/UFSC, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: www. ppge.ufsc.br 2 Doutorando em Educação, Linha Trabalho e Educação, no Programa de Pós-graduação em Edu- cação da Universidade Federal de Santa Catarina. Contato: [email protected]r 3 Professora Adjunta do Departamento de Metodologia do Ensino e da Pós-graduação em Edu- cação, Centro de Ciências da Educação, da Universidade Federal de Santa Catarina. Contato: [email protected]r REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E INVESTIGAÇÃO DO LAZER COMO MERCADORIA 1 Fernando Pereira Cândido 2 Nise Jinkings 3 RESUMO Este artigo aborda a problemática do lazer no conjunto das relações sociais capitalistas. Tem como objetivo avançar no conhecimento das categorias analíticas presentes em O Capital, de Karl Marx, que permitem conhecer as relações do lazer mediado pela mercadoria e produzido como mercadoria. O terreno histórico concreto considerado para essa análise é o capitalismo pós reestruturação produtiva, tomando como fonte produções científicas que refletem, no plano ideal, as transformações na forma de organização social da produção. Palavras-chave: Lazer. Capital. Mercadoria. doi: 10.5007/2175-8042.2010v22n35p79

Reestruturação produtiva e investigação do lazer como mercadoria

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Fernando Pereira Candido et al.

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  • Motrivivncia Ano XXII, N 35, P. 79-98 Dez./2010

    1 Este artigo resulta da dissertao Lazer, trabalho e educao no capitalismo brasileiro: concretude histrica e projeto revolucionria (2008), defendida por Fernando Pereira Cndido, orientada por Nise Jinkings e co-orientada por Iracema Soarez de Souza - CDS/UFSC, no Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Santa Catarina. Disponvel em: www.ppge.ufsc.br

    2 Doutorando em Educao, Linha Trabalho e Educao, no Programa de Ps-graduao em Edu-cao da Universidade Federal de Santa Catarina. Contato: [email protected]

    3 Professora Adjunta do Departamento de Metodologia do Ensino e da Ps-graduao em Edu-cao, Centro de Cincias da Educao, da Universidade Federal de Santa Catarina. Contato: [email protected]

    REESTRUTURAO PRODUTIVA E INVESTIGAO DO LAzER

    COMO MERCADORIA1

    Fernando Pereira Cndido2

    Nise Jinkings3

    RESUMO

    Este artigo aborda a problemtica do lazer no conjunto das relaes sociais capitalistas. Tem como objetivo avanar no conhecimento das categorias analticas presentes em O Capital, de Karl Marx, que permitem conhecer as relaes do lazer mediado pela mercadoria e produzido como mercadoria. O terreno histrico concreto considerado para essa anlise o capitalismo ps reestruturao produtiva, tomando como fonte produes cientficas que refletem, no plano ideal, as transformaes na forma de organizao social da produo.

    Palavras-chave: Lazer. Capital. Mercadoria.

    doi: 10.5007/2175-8042.2010v22n35p79

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    Introduo

    No contexto das elabora-es no campo da esquerda sobre o problema do lazer, considerando novas determinaes postas pelo processo de reorganizao do capital chamado reestruturao produtiva, encontramos alguns problemas de fundo na anlise e crticas do lazer. Esses problemas dizem respeito, fundamentalmente a trs pontos:

    1) Uma pr-concepo idealis-ta sobre a essncia do lazer, que lhe atribui uma funo e potencialidades descoladas de sua constituio histrica efetiva.

    2) A apropriao parcial ou in-correta das categorias anal-ticas fundamentais de Marx (segundo nosso entendimen-to particular, necessariamen-te sujeito crtica e com-provao no terreno histrico concreto), determinando o procedimento incorreto da anlise da mediao do lazer pela mercadoria e da produ-o do lazer como mercado-ria a partir do momento do consumo e no do momento da produo.

    3) A superestimao de mu-danas conjunturais na re-produo do capital, ainda

    que estratgicas, como mo-tor de revolues na estrutu-ra basilar do lazer quando, propriamente, as mudanas verificveis no alteraram os fundamentos centrais da coi-sa em si.

    Objetivamos colaborar para a superao dessas questes, principalmente em relao ao se-gundo ponto. Numa discusso apa-rentemente abstrata, o que se atin-ge, no entanto, o resultado final de uma investigao que nos abre o conhecimento das relaes sociais em sua concretude, pois demonstra os elementos mais simples de um complexo conjunto de relaes profundamente contraditrias.

    Apesar de fundamental, no temos aqui condies de discor-rer detidamente sobre a processua-lidade histrica e as especificidades que demandaram e constituram a reestruturao produtiva. Sumaria-mente, indicamos alguns pontos do processo cujo principal resultado so modificaes na relao entre capital e trabalho que permitiram a superao (parcial e temporria) de uma das crises de acumulao peridica do capital, localizada nos finais de 1960, com o fim dos Anos de Ouro do capitalismo (a grosso modo, de 1945 a 1969). De forma geral, conhecido como a subs-tituio da rigidez, caracterstica

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    do modelo taylorista-fordista, pela flexibilidade do modelo toyotista-honista. No fordismo, com uma produo de massa caracterizada pela racionalizao das operaes, trabalho parcelado/desqualificado, juno de operaes na linha de montagem, produo controlada e produtos padronizados, culmi-nando com a automatizao das fbricas (GOUNET, 2002), a pro-duo se d amplamente na mesma indstria, que gerencia desde a pro-duo das peas at a montagem e acabamento do produto final, com grande nmero de funcionrios e alto grau de controle externo sobre os mesmos. A base tecnolgica chamada rgida, pois apresenta m-quinas e estruturas fixas, projetadas para produzir sempre no mesmo local. O poder de organizao e luta dos trabalhadores conside-rvel, inclusive, pela aglutinao e mtuo-reconhecimento entre os trabalhadores (centenas, milhares) das grandes fbricas.

    Por motivos diversos, a partir do incio da dcada de 1970, com uma produo imensa que no tem o consumo correspondente, o capitalismo teve que buscar novas formas de acumulao.

    Na superfcie, essas dificulda-des podem ser melhor apreen-didas por uma palavra: rigidez

    [...]. Por traz de toda a rigidez especfica de cada rea estava uma configurao indomvel e aparentemente fixa de poder poltico e relaes recprocas que unia o grande trabalho, o grande capital e o grande go-verno no que parecia cada vez mais uma defesa disfuncional de interesses escusos definidos de maneira to estreita que so-lapavam, em vez de garantir, a acumulao do capital (HAR-VEY, 2001, p. 135-136).

    Em resposta a esse pro-

    blema, o capital vai re-orientar sua produo a partir de uma especia-lizao flexvel (SABEL; PRIORI, 19844, apud ANTUNES, 2003), que a negao da produo em massa de grandes indstrias pela afirma-o de uma produo artesanal em pequenas e mdias indstrias, que adota uma base tecnolgica mais desenvolvida, flexibilizando a produo e diminuindo a alienao do trabalhador tpica da produo fordista (tese que foi criticada por mais de um motivo, mas que apre-sentamos por dar alguns indicati-vos). Antunes (2003) mostra, entre as experincias de acumulao flexvel, o destaque e importncia do modelo japons, o toyotismo/ho-nismo, elucidando a partir de Coriat

    4 SABEL, C. ; PRIORI, M. The Second industrial divide. New York: Basic Books, 1984.

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    (1992)5, quatro fases da generaliza-o desse modelo, a saber: primeiro se empregou o modelo produtivo automobilstico japons na indstria txtil, levando exigncia de que cada trabalhador operasse vrias mquinas; segundo, elevao da produtividade sem aumento do nmero de funcionrios; terceiro, adoo do modelo Kanbam dos supermercados estadunidenses, que na prtica significa produo sob demanda a partir de uma tecnologia de reposio de estoque, superando a produo em quantidade para ficar estocada; quarto, imposio do mtodo Kanbam s empresas contratadas. Ocorre a desencentra-lizao da produo da ordem de 75% para 25% (ANTUNES, 2005), temos nmeros diretos como, por exemplo, na produo de um carro, onde 10.000 trabalhadores podem participar, mas apenas 2.000 se-ro contratados diretos da fbrica (GOUNET, 2002).

    Distanciando-se da pro-duo marcadamente rgida do fordismo, o novo modelo:

    se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos pro-dutos e padres de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento

    5 CORIAT, Benjamin. Pensar al revs: trabajo y organizacin em la empresa japonesa. Mxico, 1992.

    de setores de produo inteira-mente novos, novas maneiras de fornecimento de servios finan-ceiros, novos mercados e, so-bretudo, taxas altamente inten-sificadas de inovao comercial, tecnolgica e organizacional. A acumulao flexvel envolve rpidas mudanas dos padres do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regies geogrficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado setor de servios, bem como conjun-tos industriais completamente novos em regies subdesenvol-vidas (HARVEY, 2001, p. 140).

    A consequncia da imple-mentao das novas tecnologias na produo a intesificao do ritmo de trabalho, a informalizao das re-laes trabalhistas, devido ao grande nmero de desempregados e terceiri-zao do trabalho, enfraquecimento dos sindicatos e da capacidade de mobilizao dos trabalhadores, substituio do controle externo pelo controle interno (grupos de trabalhos em que os trabalhadores se cobram mutuamente, dentro do grupo e aos grupos concorrentes no interior da empresa). O capital afirma essa competitividade ao individua-lizar os rendimentos, promovendo

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    diferenas salariais em funo do cumprimento de metas por traba-lhador, por unidades ou equipes de trabalho, resultando que esse sistema maximiza a explorao do trabalho e conduz a atitudes pouco solidrias nos ambientes laborais (JINKINGS, 2004, p. 229).

    No Brasil essa reestrutura-o se d com contornos prprios a um pas perifrico do capitalismo mundial. Tumolo (2002) identifica meados da dcada de 1970 como o incio de mudanas que podem identificar essa reorganizao da forma de produo. Antunes (2004) observa novas implemen-taes tecnolgicas no contexto da recuperao da economia brasileira, em meados de 1980. Nesse momento testemunha-se a introduo da automao indus-trial de base microeletrnica nos setores metal-mecnico, automobi-lstico, petroqumico e siderrgico (Idem, Ibidem, p. 17-8). Tumolo, aps apresentar autores que indi-cam modificaes que reforam a produo fordista, sintetiza os seguintes pontos da reestruturao produtiva no Brasil:

    Tendo como base as pesquisas realizadas, possvel afirmar que a marca distintiva do chamado processo de reestruturao pro-dutiva no Brasil a heterogenei-dade generalizada, que ocorre

    no s entre as empresas, mas tambm no interior delas.Praticamente todas as pesqui- sas que as tinham [as relaes de trabalho] como objeto de in-vestigao apontam a ocorrn-cia da intensificao do ritmo de trabalho e, ao mesmo tem-po, um empenho no sentido de afastar e neutralizar a ao sindical, valendo-se de diversos mecanismos [...].Dessa forma, tendo uma postura crtica, boa parte dos autores des-te ltimo grupo considera que, no Brasil, se configura um processo de modernizao conservadora (TUMOLO, 2002, p. 64-5).

    Essa apresentao sumria de aspectos importantes do processo histrico que marca o novo pado da acumulao capitalista no pro-cesso chamado de reestruturao produtiva, d algumas pistas da materialidade do contexto histrico atual, tecido particularmente a partir de mudanas nos anos 1980 e a defi-nio de reformas conservadoras nos anos 1990. Essas so mudanas es-truturais que redefinem orientaes polticas, filosficas, educacionais e, refletidas nesse incio de sculo XXI, levam a novas interpretaes da realidade social. Os padres produti-vos, polticos, cientficos e culturais se alteram, de forma que as prticas de lazer, bem como a anlise e interpretao sobre tais prticas so

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    alteradas. nessa rea de conheci-mento da atividade humana que queremos intervir, particularmente polemizando com as interpretaes sobre o lazer inserido na dinmica capitalisma de produo de determi-nado ser social.

    A produo do lazer como mercadoria

    Aqui importa discutir o lazer como uma mercadoria, qual o seu valor de uso e seu valor. Superar a anlise do lazer como mercadoria com predominncia no plano da circulao, indo para a anlise do lazer como mercadoria no momento da sua produo e da sua produo como mercadoria no processo especificamente capitalis-ta. Nossas consideraes posterio-res, nesse especfico, so feitas com base nos estudos da mercadoria, em O Capital, de Karl Marx (1985).

    Inicialmente pertinente expor o que se entende por lazer, uma vez que a sua compreenso buscada a partir de vrios aspectos e a ele so atribudos vrios significados.

    Aqui o lazer definido a partir do seu lugar, do seu papel nas relaes sociais, por isso, entende-se que ele hegemonicamente o momento de recomposio/potenciao6 da fora de trabalho despendida na ati-vidade laboral. Sua existncia se d no tempo livre, definido por oposi-o ao tempo ocupado do trabalho. Analisando historicamente a forma de ser do tempo livre nas diferentes formaes sociais, observa-se que na Antiguidade e na Medievalidade o cio era a forma de ocupao do tempo livre. Por sua vez, o lazer uma categoria que se constitui na sociedade do capital, onde pos-suidores dos meios de produo e de subsistncia se relacionam juridicamente com os possuidores da fora de trabalho como iguais, homens igualmente livres a partir de uma base econmica essencialmen-te desigual. Sendo o tempo livre definido por oposio ao tempo ocupado, do trabalho, dois encami-nhamentos so possveis: primeiro, o tempo livre do capitalista, que no trabalhador, ocupado com outra categoria que no o lazer, que pode ser o cio, por exemplo;

    6 Entende-se como recomposio/potenciao, e no apenas como recomposio, devido a ligao indissolvel entre lazer e educao, entre descanso/fruio da produo cultural da humanidade e generalizao do conhecimento, atitudes e valores j produzidos. Ao mesmo tempo em que a fora de trabalho recomposta, pelo descanso, ela potenciada, pelo aspecto de formao que a fruio da cultura apresenta. Remete-se aqui indicao de Marx da fora de trabalho de maior peso social, que tem mais tempo socialmente necessrio utilizado na sua formao, para fazer o paralelo com um lazer mais complexo se comparado ao lazer mdio, um lazer com maior tempo socialmente necessrio para a sua elaborao.

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    segundo, que o tempo livre do ca-pitalista e o lazer que ele frui nesse tempo determinado socialmente, mediante o mais-trabalho tomado do trabalhador.

    Essas reflexes partem do entendimento de que o contedo do lazer e do cio no difere. A msica, o teatro, os esportes, a gi-nstica, as lutas, as festas, as viagens e etc. compem um e outro, porm, o que os distingue so suas funes nas relaes sociais.

    Na sociedade mediada pelas mercadorias, onde se gera o lazer, a alienao do trabalha-lienao do trabalha-dor, dos produtos e dos meios da sua atividade chega ao ponto que somente como trabalhador ele [pode] se manter como sujeito fsico e apenas como sujeito fsico ele trabalhador (MARX, 2004, p. 82). Pensando na funo do lazer, restaurao de fora de trabalho no tempo livre, v-se a sua determi-nao fundamental pela forma de produo social da vida nesse fato, do trabalhador ter que vender sua fora de trabalho para se reprodu-zir como homem, e ter que existir como homem para vender sua fora de trabalho. Ao definir-se o lazer pelo trabalho, dado que para Marx o processo de trabalho subsumido pelo processo de valorizao, no ca-pitalismo impossvel compreender o lazer - se ele determinado pelo trabalho - sem compreender o ob-

    jetivo e o resultado do trabalho na sociedade do capital: a mercadoria e a valorizao do valor.

    Em tal sociedade, assim como a educao existe em condi-es diferentes para o proletariado e para os capitalistas, tambm o lazer existe em condies muito diferentes para estas duas classes, determinado centralmente pelo fa-tor econmico. preciso levar em considerao a heterogeneidade do nvel de participao dos indivduos nas atividades de lazer, advinda, principalmente da diferena de classes (PADILHA, 2000, p.61). E essa dualidade na existncia do lazer, bem como da educao, para ser entendida, depende da compreenso da mercadoria como fora central de mediao entre os indivduos, bem como, do poder de determinao dessa forma social, interna e externamente contradit-ria, na qualidade dos bens culturais consumidos, em mdia, pelas clas-ses fundamentais.

    Marcellino entende o la-zer como a cultura vivenciada no tempo onde se pode optar pela atividade, com acento no carter desinteressado dessa atividade, ou seja, onde o objetivo do agente des-sa atividade somente a satisfao provocada pela situao (MAR-CELLINO, 1996, p. 3). Desinteres-sado para quem? Para quem media a atividade professor de educao

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    fsica, recrelogo, animador scio cultural, empresrio, etc , no , pois este sujeito tem seus objetivos, que vo da imediata reproduo da sua vida pela venda da sua fora de trabalho, obteno de lucro venden-do o acesso prtica, no caso do dono de uma empresa de recreao ou eventos, at a educao do outro que est vivenciando a prtica. A indicao de Taffarel (2005) ilus-trativa do carter interessado que existe no lazer. O lazer um dos fenmenos socioculturais contem-porneos de alta relevncia para a classe trabalhadora e est situado dentro da diviso internacional do trabalho. A autora indica suas modificaes dada degenerao social decorrente de um projeto de mundializao da educao de perfil neoliberal, que no campo do lazer pode ser observado no seu empresariamente internacional-mente, resultando em sistemas de franquias, sua mercantilizao em emprios e centros tursticos, sua espetacularizao e esportiviza-o (TAFFAREL, 2005, p.5).

    O que define o lazer o carter social da ao, o papel que a atividade ocupa na organizao dessa sociedade. Por exemplo, o esporte. Se a pessoa envolvida com ele um atleta profissional, um tcnico, um jornalista esportivo, um mdico do esporte, o esporte , para eles, um trabalho. Sua funo

    na organizao social produzir o lazer para os outros. Est vendendo uma mercadoria (com valor de uso: a catarse, o descanso, a apreciao esttica; e valor: o tempo social-mente necessrio para produzir um atleta profissional, um time profissional, a estrutura material e fsica que possibilita o esporte), configurando um trabalho produ-tivo desde que se configurem as relaes de explorao da fora de trabalho e produo de mais-valia nesse processo. Por outro lado, se o indivduo que com o esporte se envolve no tem neste o local onde vende sua fora de trabalho para obter seus meios de subsistncia, este indivduo tem o esporte como uma alternativa de lazer.

    No caso do trabalhador em esporte, para definir se este produz ou no uma mercadoria, tem que se considerar se ele vende sua fora de trabalho produzindo capital ou ape-nas reproduzindo as condies para a produo do capital. O primeiro caso se d com os envolvidos com o esporte profissional ou esporte amador em instituies privadas. O segundo caso, com os envolvidos com o esporte amador em escolas ou instituies mantidas pelo Estado ou por instituies sem fins lucrati-vos, onde o aprendizado e a prtica do esporte no so comprados, mas acessados pelos trabalhadores como condio bsica de existncia.

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    Do ponto de vista de quem pratica a atividade, por mais que este no esteja em um momento de obrigao, a satisfao da atividade condio indispensvel a sua qualidade de vida, sem a qual ele no pode reproduzir e vender sua fora de trabalho. Logo, o carter desinteressado no possvel de ser evidenciado como aspecto de-finidor, seno, como entendimento distorcido da relao do lazer na estrutura atual. Antunes (2005) lembra de forma muito precisa, se a luta pelo tempo livre dissociada da luta pela superao das relaes produtivas prprias do capitalismo, as aes se limitam ao possvel den-tro da ordem e buscam avanos por meio do consenso.

    Frente a isso, ser visto como alguns pensadores contem-porneos discutem a relao lazer/mercadoria e as vias de anlise para essa relao, com suas conseqn-cias para a compreenso do lazer. Pellegrin (2006, p.121) diz que na modernidade o corpo assume dois ideais: corpo produtor e corpo consumidor. O smbolo da modernidade o corpo que consome e as prticas corporais procuradas pelas pessoas como for-ma de lazer no esto acima desses determinantes. Essa anlise parece no considerar a indissociabilidade entre produo e consumo para a realizao da mercadoria. E, o que

    mais equivocado, indica que a t-nica da preocupao com o lazer como mercadoria o consumo, e no a produo. Entendemos a im-possibilidade de separar produo e consumo como se fossem duas fases do capitalismo, a fase em que se produziu muito e a fase em que se consome muito (para onde iria a produo da primeira fase e de onde viriam os produtos consumi-dos dessa segunda?). Porm, consi-derando toda a formulao de Marx sobre a mercadoria e sua centrali-dade por ser portadora do valor e condio ineliminvel da produo de mais-valia, no possvel tratar o lazer como mercadoria dando centralidade ao consumo, esfera da circulao, sem perder o caminho correto da anlise do problema, o momento da produo do lazer como mercadoria, local de onde se origina a valorizao do valor ou, o D, conforme a explicao de Marx.

    Padilha (2006) faz uma anlise do shopping center buscan-do compreender a sua relao com o consumo e o lazer. As categorias mais gerais utilizadas so capita-lismo, consumo e espao urbano. Ela mostra a origem histricas dos centros comerciais nas lojas de departamento de Paris, nos scu-los XVIII e XIX, chegando a uma nova definio desses centros, na sua atual configurao, shopping

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    center hbrido porque congregam consumo de bens de consumo, de servios e de lazer (Idem, Ibidem, p.150). Sua anlise do lazer como mercadoria guiada pela demons-trao de como so criados desejos de consumo e a identificao desse ato felicidade. Na sua dimenso conservadora, o lazer um tempo para o consumo manipulado pela publicidade que prioriza o lucro para os capitalistas. publicidade a autora reserva grande parte da dis-cusso para evidenciar seu carter de ferramenta de produo de ne-cessidades artificiais no capitalismo. Um dos pressupostos dessa anlise do shopping center hbrido como smbolo da sociedade de con-sumo capitalista a considerao de que o interior do shopping o mundo de dentro, apropriao do pensamento de Benjamin (1991)7

    e Freitas (1999)8. Padilha resume sua tese acerca da relao entre shopping center, consumo e lazer da seguinte forma: Os shopping centers so smbolos de uma so-ciedade que valoriza o espetculo do consumo de bens materiais e de lazer-mercadoria oferecendo so-mente a uma parcela da populao o direito a esse consumo e a este

    lazer, mas excluindo a maioria dessa mesma populao. Segundo ela os soppings, configuram-se como espaos de lazer alienado, influenciando de forma decisiva a construo da identidade social de cada um, tanto daqueles que o acessam quanto dos que deles so excludos mas que, enfeitiados pela publicidade e pela cultura de consumo, desejam faz-lo (PADI-LHA, 2006, p.147).

    Em sua anlise crtica dos centros comerciais, que expressam o estilo de vida americano, e sua influncia na determinao das re-laes sociais capitalistas, a autora mostra que o sopping Center, tra-tado como instituio, mascara as contradies da vida social e da vida psquica alcanando, por meio dos produtos da indstria cultural, a aceitao vida desumana. Esta instituio presta um servio de depurao e assepsia, viabilizando a iluso de que nossas insatisfaes psquicas podem ser resolvidas por aquisies materiais e por diverti-mentos reificados (PADILHA, 2006, p.154-5). Mostrar esse carter de instrumento de reproduo dos centros comerciais, indicando sua caracterstica, a maior contribuio

    7 BENJAMIN, Walter. Paris, capital do sculo XIX. In: Walter Benjamin. Sociologia. tica, 1991. (Coleo Grandes Cientistas Sociais).

    8 FREITAS, Ricardo F. Nas alamedas do consumo: os shopping centers como soluo de lazer nas cidades globalizadas, contato, 1999.

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    do texto que perseguiu o objetivo de mostrar a relao deste local com o consumo e o lazer, refletindo sobre a formao das necessidades e dos mecanismos da publicidade como sustentao de uma cultu-ra de consumo (Idem, Ibidem, p.137). O texto discute a relao produo/consumo a partir de Marx, nos Grundrisse, o problema da produo destrutiva e da obso-lescncia planejada, em Mszros (1989)9 e a questo da alienao e do fetichismo da mercadoria. Todavia, em relao ao problema do lazer como mercadoria, a autora sublinha o carter de mercadoria fetichizada e reificante, de merca-doria que representa a privatizao do pblico, e, demonstra quais so as mercadorias lazer presentes nos shoppings, a saber: as salas de ci-nema, os jogos eletrnicos, a praa de alimentao, os ocasionais e padronizados eventos artsticos, os brinquedos, dentre outros (Idem, Ibidem, p.148). E, de forma geral, ela afirma o lazer-mercadoria identificado no consumo de bens materiais e simblicos, como os produtos da indstria cultural, pa-cotes de viagem, brinquedos em parques de diverso (p.130, sem grifos no original). Todavia, no

    demonstra como produzida a mercadoria lazer. A sua anlise se preocupa fundamentalmente com o consumo, suas causas e seus efeitos na sociabilidade e no projeto de emancipao.

    O primeiro problema na sua anlise, que significa um entra-ve para a correta compreenso do lazer como mercadoria, seu pres-suposto do shopping center como um mundo de dentro e o restante da cidade como um mundo de fora. Isso no explica nada do ca-pitalismo para alm da aparncia. to abstrato quanto o corpo. O ambiente para o consumo dife-renciado e isto mesmo constitui um processo de agregar valor s merca-dorias. Porm, a forma como a coisa satisfaz a necessidade, e mesmo o local, se no shopping center ou na rua de comrcio popular, no altera a relao capitalista fundamen-tal, a valorizao do valor, o que no foi mostrado a partir do foco estabelecido.

    Outra questo em Padi-lha refere-se a uma viso ideal do lazer, como um espao e tempo que era voltado ao ser humano e foi submetido ao capital. Ela diz que a subordinao do lazer lgica do capital d-se basicamente pelas vrias

    9 MSZROS, Istvn. Produo destrutiva e Estado capitalista. So Paulo: Cadernos Ensaio, 1989. (Srie Pequeno Formato).

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    maneiras de mercantilizao da di-verso (p.130) e, posteriormente, aps sua correta compreenso sobre a incompatibilidade entre tempo livre e capitalismo, recorre viso idealizada do lazer, sustentando que em uma abordagem marxista o lazer e o tempo livre so vistos como algo manipulado e pervertido pela lgica do capital (p.146-7). Apesar de se expressar sobre lazer e tempo livre acertadamente como singularidades, os iguala dizendo que so uma coisa. O principal no est na letra do texto, mas na concepo histrico-social que ele demonstra. Se a perspectiva que adotamos est correta, de que o lazer essencialmente recompo-sio/potenciao da fora de tra-balho, ele se inicia assim por ser a forma como se toma o tempo livre na sociedade capitalista, nas suas relaes sociais, ento a avaliao de que o lazer foi pervertido no condiz com sua formao histrico-social. Tal ponto de partida dificil-mente possibilitar a correta anlise do lazer como mercadoria.

    A construo de Padilha que se repete em Mascarenhas de suas crticas ao lazer-mercadoria pela via do consumo, necessita da concepo de valor simblico. O valor o trabalho social objetivado, medido pelas unidades de tempo e expresso no valor de troca na for-ma simples, desdobrada, geral

    e dinheiro do valor, conforme Marx (1985). A nica fonte do valor o trabalho humano abstrado de suas qualidades teis, o trabalho em geral ou abstrato. Portanto, valor simblico, valor que vem do sm-bolo, que emana do smbolo, pode ser teorizado, mas no conforme a investigao marxiana da mercado-ria. Tambm, a existncia de bens materiais e bens simblicos encaminham a pesquisa para um terreno onde no o trabalho, mas a cultura ou a linguagem a categoria central de anlise. Um valor e sua expresso, o valor de troca, no podem existir sem seu portador, o valor de uso. A publicidade produz desejos associados s coisas, inten-sifica o consumo pela identificao da felicidade com o consumo, o espao reorganizado para a con-juno de consumo de bens, uso de servios e compra de lazer, todavia, a necessidade da existncia do cor-po da mercadoria no excluda. Sem o seu corpo as propriedades fsicas do objeto , no h sua alma, seu valor. No caso do lazer, se ele mediado pela mercadoria preteritamente produzida, como um CD para jogo eletrnico, ou se ele atividade que ser executada no shopping, os meios para produzir essa atividade, como o prprio local onde elas acontecem, so tambm sua condio. Por mais coberta de fetiche que esteja a mercadoria, por

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    mais relaes sociais, trabalho so-cialmente necessrio para produzi-la, e desejos encarnados que ela traga consigo e apresente como seus prprios atributos, existe um objeto, o trabalho vivo que se objetivou em forma de ser, propriedade im-vel (Idem, Ibidem, p.151), como a prpria mercadoria ou como con-dio de sua produo. Ou esses pressupostos so aceitos e, nesse caso, no se aceita nenhum tipo de valor ou bem simblico, ou a teoria do valor que deve guiar a anlise da mercadoria no a marxiana. Mes-mo no caso da produo do lazer como mercadoria, onde a anlise pode ter que seguir desvendando novas categorias, haja vista que no h transformao da natureza pelo processo de trabalho em seus aspectos simples, mas trata-se de matria social, a existncia do valor de uso, portador material do valor de troca, no pode ser dispensado, bem como, no pode ser admitido um valor vindo da subjetividade e sem objetivao.

    Por ltimo, falar em so-ciedade do consumo tanto uma redundncia quanto uma impre-ciso, muito funcional ao capital, assim como o grosso das formula-es da teoria crtica da Escola de Frankfurt (MSZROS, 2004). uma redundncia, pois qual so-ciedade no uma sociedade que consome, portanto, do consumo?

    Segundo, por mais que se produza, e por mais voltado ao luxo que se apresente um ramo da produo, o grosso da populao, da classe trabalhadora e do contingente de desempregados, no consome o mnimo necessrio para uma vida digna, frente aos avanos reais das foras produtivas. Pior ainda do que isso, no consome sequer para se reproduzir como uma fora de trabalho em condies ideais de ser explorada. Conforme se sabe, a partir dos estudos da reorganizao do capital para responder sua cri-se, desde a dcada de 1970, as for-mas de organizao da produo, investindo contra as organizaes sindicais e pulverizando as conquis-tas do Estado de Bem Estar-social nos pases em que se chegaram a constituir , implementaram mais profundos nveis de explorao dos trabalhadores, fizeram crescer assustadoramente as taxas de de-semprego e pioraram as condies de vida dos trabalhadores com o arrocho salarial.

    Dessa forma, usar um con-ceito tal como sociedade do consu-mo leva a um distanciamento irre-cupervel da realidade. Frente a esta breve retrospectiva, lembrando que a situao da classe trabalhadora e do contingente de desempregados e subempregados vem se agravando, necessrio perguntar: consumo de quem? Padilha diz que o consumo

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    no toca a todos da mesma forma. Se ela mesma tem a noo dessa situao, porque insistir nesse con-ceito? O mesmo ocorre com Mas-carenhas (2005, p.134), porm, no caso deste, mais incompreensvel o por qu da utilizao desse con-ceito, considerando os dados que ele prprio apresenta que infirmam uma suposta sociedade de consu-mo. Especificamente no Brasil, ele mostra que 24,7 milhes de pessoas vivem com menos de 1 dla/dia, 56, 6 milhes recebem entre 1 e 2 salrios mnimos/ms, no podendo atender suas necessidades bsicas de alimentao, moradia, sade, transporte, educao e, inclusive, lazer.

    Adjetivaes como esta, que buscam dar conta de mudanas aparentes no capitalismo, no auxi-liam na compreenso do movimento incessante de valorizao do valor, da contradio em processo que o capital, obscurecem seu enten-dimento, acabando por dificultar a superao dessa relao social. Antes de nos lanarmos s novas denominaes, conceitos como so-ciedade do consumo, entendemos ser necessrio um esforo para com-preender as categorias j descobertas e que seja feito uso delas para criticar o capital e o capitalismo.

    Tambm encontramos a apropriao de conceitos e catego-rias que dificultam a compreenso

    da realidade nas anlises de Masca-renhas (2005) sobre a mercadoria. O objeto de sua tese diz respeito ao problema do lazer como mer-cadoria. Sustenta-se na categoria mercolazer, que expressa a mani-festao tendencial do lazer na fase de sua subsuno real ao capital. O mercolazer produto da passa-gem do lazer da era fordista, que tinha a funo social, ou valor de uso, caracterizado pelo descanso, divertimento e desenvolvimento, seja com o objetivo de controle social ou de recomposio da fora de trabalho, para o lazer da era da acumulao flexvel e da cultura globalizada, que assume funo direta na produo e reproduo do capital. Se na produo rgida o lazer era uma anti-mercadoria (p.139) por ser um direito social e parte de uma poltica pblica com fins educativos e conformativos dos trabalhadores, desde 1970, no cen-tro do capital, e de 1990, no Brasil, observvel essa nova fase do lazer que se converte em mercadoria.

    Alm do lazer em sentido estrito como mercadoria, o mer-colazer explicado por mais duas funes do lazer em suas relaes com o mercado. Primeiro, com a produo de valores de troca para as mercadorias, independentes de seus valores de uso, associando o lazer, modos e estilos de vida e sensaes de prazer s mercadorias, que ele

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    chama de valor de uso prometido ou valor de uso corruptor. Segun-do, pela criao de ambientes praze-rosos para as compras, que passam a ser vivenciadas como prticas de lazer, configurando o que ele chama de compra divertida. Essa guinada do lazer como direito social para o lazer como mercadoria pressu-posta pelo enaltecimento do luxo, tendncia que reflete a necessidade de expanso do consumo.

    Deve-se considerar, pri-meiro, que se o lazer determinado diretamente pelo modo de organizar a produo seja sob fordismo ou toyotismo , no se pode afirmar a mudana fundamental do lazer com a acumulao flexvel, dado que o fordismo persiste com muita fora aps a dcada de 1970, conforme Harvey (2001). Segundo, pela pr-pria reorganizao dos processos produtivos, novas formas de recom-posio da fora de trabalho devem ser requeridas. Por isso, mesmo que o Estado se desresponsabilize progressivamente pela oferta de lazer, sendo assumida tal oferta por empresas privadas, ainda que sejam compradas e caracterizem o consu-mo/consumismo o papel definidor das prticas de lazer, nas relaes sociais, continua o mesmo, ainda que adotando novas formas. Nesse momento histrico no h uma mudana no modo de produo capitalista , mas na forma de sua

    organizao relativa/tendencial/parcialmente do fordismo para o toyotismo. Por isso, defendo que as prticas sociais e instituies em seu interior (principalmente aquelas prprias dessa formao social) no mudaram essencialmente, ainda que tenham sido ocupadas como territrio de produo e venda de mercadorias pelo capital.

    Tomando o pressuposto do consumo para a anlise do lazer como mercadoria, Mascarenhas afirma que a troca o ponto de partida para a anlise do lazer como mercadoria. Em seguida discute a relao entre produo e consumo, tratando com a idia de Marx de que o consumo gera a produo, assim como, a produo cria um consumo determinado, chega discusso da disjuno entre necessidade e pro-duo da riqueza, fundamentado em Mszros (2002). Apresenta a idia da autonomizao crescente do valor de troca em relao ao valor de uso, processo em que a publicidade e a moda tm papel importante. Via fetiche da mercado-ria, o capital efetiva essa disjuno, um desequilbrio na relao entre produo e consumo, com este caminhando na frente daquela, os valores de uso so superados pelas necessidades de venda, fazendo aparecer novas contradies. Ele afirma que so agregados outros va-lores ao valor de uso da mercadoria,

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    se orientando em Haug (1997), para quem a aparncia esttica, os valores de uso prometidos pelas mercadorias, surgem como uma funo de venda tornada autnoma no interior do sistema de compra e venda (apud MASCARENHAS, 2005, p.179-82). Corretamente afir-ma que tal processo no se constri de outro modo seno pelo trabalho objetivado pelo design e pela propa-ganda, [de forma que] a mercadoria a qual foram colados estes valores de uso corruptores tem expandido seu respectivo valor de troca (Idem, Ibidem). Para alm do questionvel e improdutivo conceito de valor de uso corruptor, a apreciao do au-tor correta sobre a origem do valor que a mercadoria, produzida sobre orientao da venda, carrega. Identi-ficamos alguns desvios na sua anlise do valor da mercadoria lazer.

    Sua apropriao de Haug (1997) o leva a constatar que o design faz cair as barreiras entre as mercadorias, criando complexos de mercadorias e a formulao das mercadorias hbridas, produto do processo de inovao esttica que deposita, artificialmente, um determinado complexo de valores de uso num nico corpo de merca-doria, como o carro que serve no s ao transporte convencional, mas, tambm, ao transporte em situao de viagens natureza. Dada a im-portncia do design e do marketing,

    ele pode afirmar que a produo da esttica do mercolazer deve ser entendida como um processo de trabalho imaterial, cujo determina-do quantum encontra-se coisificado na forma final dada s mercadorias funcionalizadas para o lazer (Idem, Ibidem, p. 187). Afirma que o valor de uso substitudo pelo significan-te, a importncia sai das caracters-ticas fsicas das mercadorias para os pensamentos e sensaes associa-dos mercadoria. Considerando sua apropriao do conceito de valor simblico, pode estar aqui o ponto onde o autor se perde na anlise do valor das mercadorias, da relao do lazer com as mercadorias e, ele prprio, produzido como uma de-las. Esse desvio se aprofunda com a apropriao feita pelo autor do conceito de trabalho imaterial, o que interfere na coerncia da dis-cusso sobre o primado materialista na construo marxiana, conforme Lessa (2007).

    Aps ter discutido a cria-o do palco de vivncia para as compras, segunda caracterstica do mercolazer (p.189-192), o au-tor desenvolve algumas anlises, tomando o exemplo dos esportes de aventura e trabalhando com diferentes situaes, de forma que seja possvel desenvolver sua fundamentao para o mercolazer considerando as categorias: valor de

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    uso, valor de troca; consumo produ-tivo, consumo individual; produtor, consumidor; meios e instrumentos auxiliares. realizado, nessa tese de Mascarenhas, um movimento de abstrao, partindo de situaes reais verificveis empiricamente nos esportes de aventura na natureza, tambm denominados comumente de esportes radicais ou academi-camente de AFANs (Atividades Fsicas de Aventura na Natureza), para equiparar e utilizar algumas das categorias explicativas do ca-pital, que Marx desenvolve no O Capital. Do conjunto de exemplos e abstraes sobre a prtica dos esportes na natureza, destacamos um referente ao raffiting em que, a relao entre valor de uso e valor de troca problemtica, terminando com a afirmao de que o cliente consome essencialmente o mer-colazer (p.195). O que consumir essencialmente mercolazer? Nes-se particular, entendemos como um equvoco considerar que a nfase na anlise da mercadoria tem que ser sobre o desejo, a necessidade de consumo produzida artificialmen-te pela propaganda, pelo design, pela moda e, sob a vigncia do valor simblico. Apesar de o autor anunciar que essas produes tm valor dado pelo trabalho humano, ele acaba por autonomizar estas vias de promoo do consumo, atribuindo a elas a origem do valor.

    Lembramos uma passagem de Marx (1985, p.167) na qual se pode con-firmar que o valor, abstraindo sua representao puramente simblica no signo do valor, existe apenas num valor de uso, numa coisa. [...] Portanto, se o valor de uso se perde, perde-se tambm o valor. Dado isso, perdemos uma das chaves que abrem os caminhos da compreen-so do problema.

    O lazer (da forma como entendemos, produzido como mercadoria ou mediado pela mer-cadoria), que para Mascarenhas tem diferenciao feita a partir da forma de consumo dos meios ou utenslios auxiliares para produo do lazer, consumo produtivo ou individual, explicado atualmente, segundo ele, pela categoria mercolazer; sua funcionalidade para o sistema hoje cada vez mais econmica do que social, o que se constata em diferentes processos: como coisa significante, valor de uso prome-tido, valor de uso corruptor, palco de vivncias, compra vivenciada, compra divertida, enfim, seja como funo de venda, como forma de consumo ou seja, o consumo divertido ou como mercadoria stricto sensu. O autor v um vazio de sentido humano em seu contedo. Isso, pois a subsuno real do lazer ao capital implicou na mudana do que antes nele era qualitativo-concreto pelo que hoje

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    apenas quantitativo-abstrato, o que, em outros termos, correspon-de sua reificao. Em seguida analisa a reificao do lazer atravs do xtase-lazer, expresso maior da interferncia do valor de troca sobre o universo das prticas de lazer (Idem, Ibidem, p.201). Para ele, os 3D diverso, descanso e desenvolvimento assinalados por Dumazedier (1999)10 so subsu-midos pela promessa de utilidade expressa pelos 4S sport, sun, sex and sea , estes ltimos, apontados por SantAnna (2001)11 como os novos balizadores para a busca do ideal de lazer (MASCARENHAS, 2005, p. 200-2). Os equvocos nessa compreenso: primeiro, dissociar o valor de uso dos 3 D do valor de uso dos 4 S, o que decorre de uma viso idealizada do lazer; segun-do, considerar a qualidade moral para a anlise econmica do lazer, uma vez que, segundo Marx, no importa que tipo de necessidade a mercadoria satisfaz, se do estmago ou da fantasia.

    Consideraes finais

    Avaliamos que os autores realizaram um movimento apenas

    inicial, incompleto (limitaes de todo o campo de estudos, no dos pesquisadores supra-citados) e ecltico, que carece de maior de-senvolvimento, aprofundamento e comprovao cientfica. O carter de ecletismo no uso do marxismo por esses autores constitui-se pro-fundamente problemtico, tendo em vista que defendemos, no plano da teoria e do mtodo, a ortodoxia no trato do materialismo histrico-dialtico. Nessa defesa, da ortodo-xia metodolgica, no h relao alguma com o dogmatismo, ela permite perseguir a clareza acerca da direo da pesquisa, sobretudo da relao constituinte no processo da pesquisa (NETTO, 2002, p.26), e isso fundamental nesse tipo de investigao, dado que tericos de esquerda, denominados marxistas penitentes, pretendem superar a ortodoxia metodolgica pela via do pluralismo (NETTO, 2004).

    Com exceo desse car-ter de ecletismo, admitimos que as crticas que tecemos aos trabalhos aqui destacados carecem da mesma necessidade de aprofundamento e comprovao histrico-concreta, dado seu carter tambm inicial e incompleto.

    10 DUMAZEDIER, Joffre. Sociologia emprica do lazer. 2. ed. So Paulo: Perspectiva; SESC, 1999.11 SANTANNA, Denise Bernuzzi. Corpos de passagem: ensaios sobre a subjetividade contempo-

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    ABSTRACT

    This article approaches the problematic of the leisure in the set of the capitalist social relations. It has as objective to advance in the knowledge of the analytical categories present in The Capital, of Karl the Marx, who allow to know the relations of the leisure mediated for the merchandise and produced as merchandise. The historical concrete area considered for this analysis is the capitalism after productive reorganization, taking as source scientific productions that they reflect, in the ideal plan, the transformations in the form of social organization of the production.

    Keywords: Leisure. Capital. Merchandise.

    Recebido: fevereiro/2011.Aprovado: Abril/2011.

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