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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Andreia Rocha de Vasconcellos Reductio ad silentium Ingmar Bergman, os sentidos e ressentimentos da redenção moral em meio aos escombros de Deus MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO SÃO PAULO 2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Andreia Rocha de Vasconcellos

Reductio ad silentium

Ingmar Bergman, os sentidos e ressentimentos da redenção moral em meio aos escombros de Deus

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

SÃO PAULO

2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Andreia Rocha de Vasconcellos

Reductio ad silentium

Ingmar Bergman, os sentidos e ressentimentos da redenção moral em meio aos escombros de Deus

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Dissertação apresentada à banca examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como

exigência parcial para a obtenção do título de Mestre

em Ciências da Religião, na área de concentração

“Fundamentos da Religião”, sob a orientação do Prof.

Dr. Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé.

SÃO PAULO

2013

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Banca Examinadora

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Para os meus pais e meu irmão

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Agradecimentos

Ao Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé que, com dedicação e incentivo, me orientou pelos caminhos

contraditórios das reflexões filosóficas.

Ao Prof. Dr. Ênio José da Costa Brito, cuja leitura profundamente sensível e acurada contribuiu

para a devida maturidade de minha pesquisa.

Ao Prof. Dr. Leandro Karnal, cujo generoso intelecto contribuiu sobremaneira para a arquitetura

do meu conhecimento.

Aos colegas da PUC, pelo acolhimento e pelas diversas oportunidades de discussão sobre as

ideias suscitadas em aula.

Ao Prof. Dr. Oswaldo Giacóia Jr. pela constante e prolífica possibilidade de diálogo.

À Profa. Dra. Scarlett Marton, cuja verve nietzschiana me fez vivenciar a profunda vinculação

entre o saber e o ímpeto da descoberta.

Ao Prof. Dr. Pedro Luiz Ribeiro de Santi, cujo prisma psicanalítico-filosófico me fez observar

nuances recônditas da condição humana.

A todos os queridos amigos da Casa do Saber, extensão do meu lar, local de encontros e

germinações de minhas inquietações intelectuais.

À querida amiga Roberta Grabert, que acompanhou o desenvolvimento do embrião

bergmaniano.

Ao meu amigo Flávio Ricardo Vassoler, com quem mantive infindáveis discussões em busca da

expansão dos horizontes do meu saber.

À minha irmã eleita Vanessa Murari Federmann, que sempre acompanhou e acalentou meus

projetos e descobertas.

Ao meu marido Fabio, cujo amor por esta pesquisadora me estimula a conhecer cada vez mais.

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O homem louco. Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado e pôs-se a gritar incessantemente: "Procuro Deus! Procuro Deus!"? E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? − perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? − disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? − gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar: "Para onde foi Deus?" − gritou ele −, "já lhes direi! Nós o matamos − vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda "em cima" e "embaixo"? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? − também os deuses apodrecem! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais − quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior − e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!" Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. "Eu venho cedo demais", disse então, "não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação − e no entanto eles o cometeram!" Conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Requiem aeternam deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: "O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?"

Friedrich Nietzsche, Gaia Ciência*

                                                            * São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 147-148.

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Resumo

Esta dissertação analisa o silêncio de Deus no filme O sétimo selo (1957), de Ingmar

Bergman, a partir de dois conceitos fundamentais desenvolvidos pelo crítico Jesse Kalin:

redução ontológica e geografia da alma. A vacuidade moral que irrompe com a

desestruturação do mundo medieval alicerçado segundo a imagem e semelhança de um

Deus cada vez mais silencioso é vivenciada escatologicamente pelas personagens do

consagrado filme de Bergman. Analisamos O sétimo selo a fim de apreender como os

conflitos narrativos protomodernos nos ajudam a compreender nossa própria época.

Palavras-chave:

Ingmar Bergman, O sétimo selo, Silêncio de Deus, Jesse Kalin, Redução Ontológica,

Geografia da Alma, Escatologia, Ruptura Moral.

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Abstract

This thesis analyses the silence of God throughout the movie The seventh seal (1957), by

Ingmar Bergman, from two fundamental concepts developed by the critic Jesse Kalin:

ontological reduction and geography of the soul. The moral vacuity which bursts from the

dismantling of the Medieval world grounded over the image and the similarity of a

crescently silent God is eschatologically lived by the characters of Bergman's consecrated

film. We analyse The seventh seal in order to apprehend the ways the protomodern

narrative conflicts help us understand our own times.

Keywords:

Ingmar Bergman, The seventh seal, Silence of God, Jesse Kalin, Ontological Reduction,

Geography of the Soul, Eschatology, Moral Rupture.

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Sumário

Introdução 

A caminho d’O sétimo selo .................................................................................................. 11 

Breve sinopse de O sétimo selo ............................................................................................ 15 

Capítulo I 

Gritos e sussurros na ilha de Bergman 

Fragmentos da vida como aportes filosófico-religiosos ....................................................... 17 

1.1.  Excerto biográfico ............................................................................................................. 17 

1.1.1.  Alguns marcos da infância ......................................................................................... 18 

1.1.2.  Reconhecimento Internacional ................................................................................. 19 

1.2.  A realidade ficcional do cineasta sueco ............................................................................ 22 

Capítulo II 

A reboque das contradições 

Leitores e leituras de Ingmar Bergman................................................................................. 26 

Capítulo III 

O sétimo selo enseja o discurso sobre o método de Jesse Kalin........................................... 33 

3.1.   Da alma sem morada à estepe da condição humana ....................................................... 38 

3.1.1.  O sétimo selo ausculta o silêncio de Deus ................................................................. 38 

3.2.   Fissões e confissões ........................................................................................................... 44 

3.3.   Breve excurso sobre Jöns, o escudeiro ............................................................................. 49 

3.4.   O prenúncio da última ceia ............................................................................................... 55 

3.5.   A última ceia como irrupção da Graça .............................................................................. 58 

3.6.   A pira de Deus ................................................................................................................... 68 

3.7.   O xeque‐mate e a sobrevida ............................................................................................. 71 

3.8.   Apocalipse Mundano ........................................................................................................ 76 

 

 

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Conclusões 

A tensão rediviva e inescapável de O sétimo selo ................................................................ 79 

Referências Bibliográficas .................................................................................................... 86 

Referências Fílmicas ............................................................................................................ 89 

 

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Introdução

Acaminhod’Osétimoselo

A obra do cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-2007) compõe um dos capítulos

mais essenciais da história do cinema. Por meio da enformação da poética fílmica, o diretor

realizou um conjunto profundamente significativo de discussões a respeito da angústia

moral e da finitude em um mundo que, crescentemente, relega Deus aos bastidores da

história.

A fortuna crítica de Bergman constitui um vasto material de trabalho que vem se

desdobrando de modo vertiginoso sobre a obra do cineasta. O texto em questão analisará o

filme O sétimo selo (1957), de Ingmar Bergman, em estreito diálogo com os conceitos de

redução ontológica e geografia da alma desenvolvidos por Jesse Kalin, estudioso da obra

do cineasta sueco. Apreenderemos os dilemas morais e existenciais que (des)configuram as

trajetórias das principais personagens sempre sob as sombras projetadas pelo silêncio de

Deus.

Em grande medida, a fortuna crítica tende a tornar unilaterais as apreensões de

Bergman em relação à condição humana. Paisley Livingston já notara tal fato, ao afirmar

que “um crítico usa Freud, outro, Jung, e um terceiro, Kierkegaard: seria surpresa constatar

que suas interpretações divergem em relação ao conteúdo filosófico dos filmes?” (2009, p.

55).

Bergman sempre se recusou de forma resoluta a “interpretar” seus filmes; ele enfatiza que havia despendido muita energia na orquestração do filme e, consequentemente, se sente convencido de que a comunicação deve se relacionar à orquestração. Ele permitirá prontamente uma multiplicidade de interpretações divergentes e, rapidamente, se recusará a decidir entre uma delas. (GIBSON, 1969, p. 10)

Daí a minha opção por acompanhar a lógica do filme em seu próprio movimento de

estruturação. Assim, trata-se de apontar univocamente a tragédia da modernidade sem

Deus, o esgarçamento da família tradicional, a impossibilidade do amor, a amizade

enregelada. De fato, em Bergman, as relações se constituem de modo limítrofe, vale dizer,

nos estertores de seus desenlaces. Se, em um mundo sem Deus, o amor deve se basear

única e exclusivamente no sentimento entre os amantes que se expressa pela escolha

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cotidiana da união, Bergman nos leva a refletir sobre as potencialidades e os impedimentos

para que os casais permaneçam juntos. Dessa maneira, ao lado do amor primordial de Jof e

Mia, nos depararemos com a solidão nostálgica do cavaleiro Antonius Block. Como se Jof

e Mia reconstituíssem o encontro original das metades platônicas separadas pelos deuses.

Jof está para Mia, assim como Antonius Block não está para sua antiga esposa. A cruzada

de que o cavaleiro tomou parte estilhaçou seu mundo outrora idílico e orgânico. Block

passou a se ver em meio às folhas esturricadas do outono da Idade Média. O amor já lhe

parece uma luz pálida e bruxuleante que nada mais faz do que se esgueirar diante das

sombras do silêncio de Deus. Sem as respostas tradicionais da transcendência, toda e

qualquer aposta na imanência se faz à revelia de um sentido total. O absoluto se confunde

com a contingência.

Nesse sentido, sustentamos que a pesquisa em questão poderá contribuir para o

prolongamento de uma herança dialética das análises da obra de Bergman. Não tentaremos

nos situar inequivocamente em uma posição, já que o movimento bergmaniano se desloca

através das mais contraditórias esferas existenciais. O diálogo estreito com Jesse Kalin não

implicará uma abstração da tessitura fílmica de modo que a narrativa cinematográfica se

adeque aos conceitos fundamentais com os quais trabalharemos. A discussão sobre a

filosofia da religião em Bergman partirá sempre da concretude das cenas para então

estabelecer relações dinâmicas com as ideias trazidas à tona pelo comentador. Assim, cada

aproximação ou afastamento em relação a Kalin será feito com base na trama conceitual

d'O sétimo selo.

Para a filosofia da religião, pensamos que o trabalho em questão pode insuflar uma

certa discussão sobre um conceito fundamental como a Graça. Conceito que O sétimo selo

transforma em efetiva vivência – ou melhor, convivência; vivência conjunta. Ao inter-

pretarmos Antonius Block como uma prévia do tipo niilista, pensaremos o inverno da Idade

Média como o locus primordial do silêncio de Deus. Ainda assim, veremos que o

esfacelamento da transcendência absoluta espraia matizes pelo mundo que insistem em

permanecer reluzentes e orgânicos a despeito da perda do paraíso. Veremos que, no

momento mais essencial do filme – e da análise –, a permanência do sentido não se dá pela

sustentação racional como se estivéssemos diante de uma ode ou em diálogo com Sócrates.

O sentido tênue simplesmente ocorre, ou melhor, o sentido fugaz simplesmente persiste.

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Quando temos em vista o desdobramento histórico da ruptura da Idade Média como

contínua saída de cena de Deus, entrevemos com ainda mais força e beleza a gratuidade da

Graça em meio à família de artistas mambembes: Jof, Mia e o pequeno Mikael. Que dizer

então do apego à vida por parte de Jöns, fiel escudeiro do cavaleiro Antonius Block?

Diferentemente dos inscientes Jof e Mia, Jöns perfaz os mesmos caminhos autofágicos que

emparedam a racionalidade de Block. No entanto, ao invés de se retirar cada vez mais do

palco das vivências como faz o cavaleiro, Jöns se enraíza crescentemente nas situações

como se não se incomodasse com o sentido baço que caminha sempre rente ao

despenhadeiro. Como explicar tal vinculação à vida que transcende a encruzilhada da

razão? Se Jöns não pudesse ver, diríamos se tratar de um ingênuo. Mas o escudeiro

ressignifica a ingenuidade ao uni-la à razão que não se distancia em nenhum momento da

mais bela capacidade de fazer o bem. Ao unirmos Jof, Mia e Mikael a Jöns, perceberemos

que Bergman entrevê veredas redentoras para a contingência. Já não estamos diante do

eternamente absoluto, mas por que não dizer que nos deparamos, ainda que por alguns

instantes, com o absolutamente belo? Nosso trabalho procurará entrever alguns matizes da

Graça, suas diferentes visões e aparições, seu ímpeto de permanência em meio a um mundo

que só faz profanar o sagrado ao dizer que tudo o que é sólido desmancha no ar.

Em suma e como hipótese, sustentamos que Bergman erige uma escatologia fílmica

de modo a levar às últimas consequências a (im)possibilidade de redenção em um mundo

sobre e sob o qual ressoa o silêncio de Deus para personagens como Block, Jof, Mia e Jöns,

que já não sabem a priori que caminho trilhar em face de um juízo iminente. Analisaremos

os dilemas morais que as distintas personagens enfrentarão em função de seu afastamento

ou aproximação em relação à ausência da divindade em um mundo que cada vez mais

esvazia o sentido orgânico e transforma a transcendência até então inquestionável em uma

centelha fugaz e terrena a ser fruída com morangos silvestres.

Enfim, como motivação para a realização desta dissertação, em primeiro lugar,

gostaria de mencionar a importância do cinema como uma arte que, em sua constituição,

dialoga com uma miríade de temas e campos de estudo, tais como a filosofia, a teologia, a

história, a psicologia, entre muitos outros. Assim, por intermédio da simbologia imagética e

do transcurso dos diálogos, uma série de discussões fundamentais se realizam como

metáforas e desdobramentos conceituais. O cinema, então, sempre me pareceu uma arte

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essencial para o desenvolvimento de campos intelectuais com os quais dialoga e para cujo

desenvolvimento contribui.

Na história do cinema, Ingmar Bergman é considerado um dos mais profundos e

prolíficos cineastas. Sua vasta produção cinematográfica abordou uma multiplicidade de

temas que se tornaram marcos de reflexão a partir das intervenções artísticas de Bergman.

Com um aparato produtivo que, via de regra, contava com baixos orçamentos, o cineasta

conseguiu, por intermédio de seu estilo e identidade inconfundíveis, imprimir uma marca

indelével nas reflexões de seus pares cinematográficos e na profícua fortuna crítica que se

relaciona ao seu trabalho.

Além de ser um dos primeiros filmes de Bergman, o consagrado O sétimo selo

desponta como uma obra que, com efetiva interdisciplinaridade, traz aportes fundamentais

para as ciências da religião. Imageticamente, uma das primeiras cenas do filme, na qual o

cavaleiro Antonius Block tenta vencer a Morte com o xeque-mate de uma partida de

xadrez, entrou para a história do cinema como um ícone para a síntese de um enredo em

função de uma imagem emblemática.

15

BrevesinopsedeOsétimoselo

O cavaleiro Antonius Block, recém-egresso de uma cruzada, depara-se com a Morte

em uma situação insólita e profundamente poética: Block lhe propõe uma partida de xadrez.

Um possível xeque-mate lhe daria sobrevida. Assim, em um primeiro momento, o

movimento ficcional de O sétimo selo (1957) pode ser compreendido como uma narrativa

que vai do lance do primeiro peão de Antonius Block até que o rei – e as demais

personagens – recebam o xeque-mate da Morte.

Além de caminhar sob a onipresença da Morte, Block tem a companhia de Jöns, seu

fiel escudeiro. Enquanto o cavaleiro procura auscultar o silêncio de Deus e compilar seus

vestígios em meio ao outono da Idade Média, Jöns, com uma capacidade analítica em nada

devedora às investigações de seu cavaleiro, atua de modo a afirmar a vida danificada como

um possível precursor de um niilismo afirmativo – algo que beira a legitimação da vida por

si mesma. Block pergunta pela divindade ausente, Jöns se volta para o mundo que ainda o

deleita com a volúpia das cortesãs; Block tenta recompor o sistema teológico de Deus Pai,

Jöns atua segundo os resquícios do Sermão da Montanha e procura fazer o bem efêmero em

meio à tragédia da peste bubônica. Block e Jöns configuram um fundamental par dialógico

de veredas que despontam a partir do silêncio da divindade.

Block cavalga a caminho de casa, onde deixara sua esposa quando do início da

cruzada. A jornada de retorno ao lar lhe apresenta uma efêmera e singela possibilidade de

comunhão quando do encontro com a família de artistas mambembes composta por Mia,

Jof e Mikael. Como Block, Jof parece agraciado pelo dom da visão para o que há no além-

mundo. O artista vê a imagem da Virgem a embalar seu pequeno Mikael, o filho que tanto

carinho recebe de Mia. A família acolhe Antonius Block em uma ceia com morangos

silvestres regados ao leite. Nessa breve comunhão, o cavaleiro se deparará com uma frágil

resposta para sua procura pela permanência da divindade. Deus teria sobrevida intermitente

nos momentos de entrelace que unem e reúnem as pessoas para compartilhar uma fruição

não utilitária. Block encontra na família mambembe uma integração com o mundo que sua

razão passa a desautorizar. Os inscientes Mia, Jof e Mikael sorriem diante da luz pálida do

outono, ainda que a folha amarelecida não possa resistir ao afago de um carinho que tenta

permanecer. Assim, encontramos na família mambembe um segundo par dialógico que

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desponta como um sentido outro para o crepúsculo dos deuses – a persistência da

esperança.

A jornada de Block se deparará com um outrora teólogo que se transforma em

celerado contumaz; com a arbitrariedade da Igreja e sua clava inquisitória; com uma

condenada à fogueira através de cujos olhos moribundos Block tenta encontrar laivos de

Deus. Quando a Morte empareda o rei de Block, o séquito de personagens é coagido a

caminhar por uma colina distante, cume suave que se confunde com o horizonte. Jof e sua

família, os emissores da Graça na última ceia, observam a partida eterna dos homens e

mulheres que há pouco lhes faziam companhia. Como se Ingmar Bergman entregasse aos

artistas mambembes a caixa de Pandora em que fica reclusa – e talvez cativa – a trêmula

esperança.

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CapítuloI

GritosesussurrosnailhadeBergman

Fragmentosdavidacomoaportesfilosófico‐religiosos

1.1. Excertobiográfico

Em uma carreira de aproximadamente sessenta anos ao longo da qual criou mais de

50 filmes para o cinema e a televisão e mais de 100 produções teatrais, Ingmar Bergman

exerceu grande influência sobre a história do cinema. Filmes como Morangos Silvestres,

Cenas de um Casamento e seu clássico Fanny e Alexander o consagraram como um dos

maiores mestres da arte cinematográfica.

Bergman influenciou uma grande variedade de cineastas, incluindo Woody Allen,

que assim se referiu ao sueco: "O que prefiro em Bergman é a profunda desolação e os

abismos sombrios a que ele nos leva através dos seus filmes" (CASTAÑEDA, 2012, p. 10)

Na Suécia, viemos na ilusão de que temos tudo. Mas no meio dessa vida plena, nós temos um grande vazio, a ilusão perdida de Deus, chame isso como quiser, uma necessidade de segurança material, social. É esse vazio e tudo o que os homens inventam para preenchê-lo que eu descrevo em meus filmes, e creio que é um modo de fazer filmes engajados nos problemas contemporâneos e mesmo no único problema fundamental: o de dar um sentido espiritual ou humano a uma civilização de felicidade material. Em todo caso, é meu problema pessoal. Não me peça para falar de outra coisa, eu não saberia. (BERGMAN, 1988, p. 47)

Segundo Jesse Kalin,

as influências mais fundamentais sobre Bergman como um pensador/escritor/di-retor parecem provir, em primeiro lugar, de sua própria vida e, especialmente, de sua infância e adolescência; em seguida, do Luteranismo, professado tanto em casa quanto semanalmente na igreja durante os serviços religiosos de seu pai pastor; em terceiro lugar, August Strindberg, cujas peças e escritos vários Berg-man conheceu e pelos quais o diretor sentiu peculiar afinidade. (2003, p. 191)

Continuemos a descrever alguns aspectos da vida de Bergman para, na sequência

deste trabalho, refletirmos sobre possíveis afinidades entre relações que o diretor nutriu em

sua vida e influências temáticas em sua obra. Vale frisar que não pretendemos tornar

unilateral a leitura que aproxima eventos biográficos da obra fílmica, isto é, não se trata de

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deduzir a obra a partir de fatos da vida. Nesse sentido, tomamos por referência o seguinte

mote de Jesse Kalin: "É claro que a família tensa de Bergman e sua infância são uma das

fontes e subtextos de seus filmes, apesar de a interpretação de tais relações nunca ser

simples e nem despida de muitas ambiguidades e armadilhas". (2003, p. 189)

Tendo em vista a orientação metodológica de Kalin, lançaremos luz sobre alguns

aspectos das relações que Bergman nutriu com seus pais, de modo a entrever possíveis

influências sobre seu prisma poético. Reiteramos, no entanto, que a apreensão biográfica

não configura a única chave hermenêutica para a busca de possíveis origens da realização

cinematográfica de Bergman, mas, ainda assim, traz à tona momentos essenciais para a

formação mais basilar do cineasta.

1.1.1. Algunsmarcosdainfância

Ingmar Bergman nasceu em Uppsala, Suécia, em 14 de julho de 1918, e faleceu em

30 de julho de 2007, em seu país natal, na Ilha de Fårö. Seu pai, um pastor protestante que

se tornou capelão do rei da Suécia, costumava humilhar e surrar Ingmar, uma criança

enfermiça. Bergman relatou diversas vezes o amor profundo que nutria por sua mãe e

também discorreu sobre seu hábito de refugiar-se em fantasias. Parece-nos possível

aproximar os temas de repressão, culpa e castigo, constantes em sua obra, à educação rígida

que o diretor teve em sua infância. Não se trata de dizer que a infância algo traumática é a

única fonte para tais construções, mas de apontar que tal período da vida de Bergman

municiou o diretor com uma pletora de experiências que, entre outras influências, seriam

elaboradas em suas obras.

Em entrevista concedida em 2001, Bergman disse à agência Reuters de notícias que

durante sua vida sempre se sentiu angustiado e inspirado por demônios peculiares. “Os

demônios são inúmeros, aparecem nos momentos mais impróprios e geram pânico e terror”,

disse à época. “Mas já aprendi que, se consigo controlar as forças negativas e atrelá-las à

minha carruagem, elas podem trabalhar em meu benefício”. Ainda segundo Bergman, tais

demônios são provenientes de sua infância atormentada pela rígida formação luterana que

sua família recebeu, formação que era baseada o tempo todo em conceitos relacionados ao

pecado, à necessidade da confissão, do castigo, do perdão, da ideia de Deus, e que para ele,

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naquele momento, parecia haver uma lógica implícita que deveria ser compreendida e

aceita. Mais tarde, Bergman não hesitou em dizer que tal rescaldo de experiências fez

transbordar uma série de demônios ao longo de seus filmes. Porém, ao mesmo tempo em

que Bergman aponta tal aspecto repressor da tradição cristã luterana, o diretor procurará

mostrar a importância de tal conteúdo teológico para refletir sobre a condição humana, os

conflitos morais, os tormentos afetivos, a solidão e a necessidade que temos do outro.

1.1.2. ReconhecimentoInternacional

O reconhecimento internacional chegou para Bergman a partir da premiação no

Festival de Cannes do filme Sorrisos de uma noite de verão (1955). Foi a oportunidade que

o diretor entreviu para reapresentar o roteiro de O sétimo selo (1956) que havia sido

rejeitado pelos produtores da Svensk Filmindustri.

O sétimo selo, que recebeu o prêmio do júri do Festival de Cannes em 1957, teve

como gênese, segundo Hubert Cohen (1993), uma peça de um ato, chamada Pintura sobre

madeira, que Bergman montou em 1954 para seus alunos de teatro. Um dos assuntos do

filme teria sido inspirado no mural de uma igreja medieval que Bergman visitara com o pai

quando criança. O mural mostrava a águia da revelação. A Morte jogava xadrez com um

cruzado. Em outra cena, a Morte cerra uma árvore em meio a cujos galhos um homem nu

procura guarida. Havia também a figura da Morte à frente da dança final através de terras

sombrias. (O profundo medo religioso da morte oriundo de sua formação teria levado

Bergman a representá-la como uma personagem central de O sétimo selo.) O mural oposto

mostrava a Virgem em meio a um jardim de rosas conduzindo uma criança que ainda não

consegue caminhar sozinha. No coro da igreja havia a imagem do drama da crucificação,

que deixou o jovem Bergman atordoado com a cena de extrema crueldade e sofrimento.

Os longos diálogos bergmanianos e as tomadas que focalizavam os rostos das

personagens − bem ao gosto do diretor de fotografia Sven Nykvist, que trabalhou com

Bergman ao longo de praticamente toda a sua carreira − denunciavam que seus filmes

estavam sempre à procura dos dilemas que açoitam a alma humana. O silêncio de um close

sobre o rosto de Max Von Sydow, o cavaleiro de O sétimo selo, tenta expressar,

imageticamente, a dor lancinante de uma personagem que perdera o enraizamento religioso

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de sua vida. Daí a permanência dos longos diálogos para tentar exprimir aquilo que já não

pode ser vivenciado no cotidiano outrora transcendente. Eis a imagem do silêncio de Deus.

* * *

A partir da autobiografia de Ingmar Bergman, A Lanterna Mágica, e do filme A Ilha

de Bergman, de Marie Nyreröd, estabeleceremos uma discussão que retomará aspectos da

vida do cineasta que possam ter influenciado conceitos essenciais para a construção de suas

obras.

Poderíamos dizer que a formação religiosa de Bergman, em estreito diálogo com

seu contexto familiar, aproximou a noção de Graça de um conceito/vivência fundamental

para a permanência de resíduos da transcendência em nosso mundo? Em que medida a

relação de Bergman com a mãe – relação aqui compreendida não no sentido psicanalítico,

mas existencial, isto é, como base para a formação de suas ideias em estreita correlação

com o mundo – pode ter sido responsável pela manutenção de um vínculo que transmite e

vivencia o amor para além da norma rígida e exterior do pai/ pastor protestante? Estaríamos

diante de uma Graça para além das tábuas da Lei?

Tais pontos de partida dizem respeito à percepção da cena de O sétimo selo em que

o cavaleiro Antonius Block entra em verdadeira comunhão com a família de artistas

mambembes formada por Jof, Mia e Mikael. A redenção momentânea relaciona-se, na ceia

em questão, não a um rito estatuído por normas férreas, mas pela espontaneidade de ações

que vão se constituindo na medida em que as personagens interagem. O diálogo que

principia entre Block e Mia logo envolve Jof e seu pequeno filho Mikael de modo a que a

fraternidade seja o vínculo (temporário) que os une. É bem verdade que a família de artistas

se mostrou cortês ao oferecer os morangos ao leite ao cavaleiro. Nesse sentido, estamos

diante de um ato tradicional na Idade Média, a oferenda de alimentos. Mas, ora, como

predeterminar o ímpeto e a profundidade da interação apenas com o cumprimento de uma

norma de etiqueta? A comunhão dos morangos ao leite, a meu ver, traz à tona um afeto que

pode estar vinculado à formação do olhar de Bergman por um amor materno que mostrava

a verdadeira dimensão de Deus para além do decálogo pétreo.

21

Ademais, podemos citar a relação de abandono como um marco na vida de

Bergman. O cineasta se sentia abandonado pelo pai, como se o progenitor nunca estivesse

presente quando Bergman dele precisava. Vale frisar que o abandono foi transmitido aos

filhos, de modo que Bergman se sentiria culpado, até o fim da vida, por não ter sido um pai

presente e efetivo, ou, por outra, por ter transmitido o legado de abandono de seu pai. Kalin

analisa o aspecto do abandono em meio à obra de Bergman. O abandono de Deus, o

silêncio da divindade, não estaria ligado a essa sensação de que nem o criador pode suprir

uma falta constitutiva?

N’O sétimo selo, notamos que muitos dos dilemas que despontam pela peste

medieval e pela ruptura dos valores tradicionais aproximam o contexto fílmico da crise da

modernidade. Assim, o filme que supostamente estaria preocupado em reconstruir um

determinado contexto histórico e seus valores estabelece, a meu ver, uma leitura

genealógica da crise de Deus que o aproxima dos dilemas modernos. Há uma crítica às

instâncias religiosas, à sua normatividade meramente exterior e sem piedade, à sua

punibilidade terrível. Por outro lado, os momentos de ruptura, ainda que fugazes, são

focalizados nas relações mais tenras e concretas das personagens entre si. Como se

Bergman cultuasse uma divindade fragmentada que não se aparta das vivências, por mais

diminutas que elas sejam. Veríamos, aqui, um possível desdobramento da relação

biográfica apontada no parágrafo anterior. O pater familias que estatui a norma esvazia o

sentido da religiosidade. Mas o veio materno desobstrui o cânone como fluxo da bondade.

No princípio não era apenas o Verbo isolado, mas a sua conjugação entre as pessoas, a sua

partilha entre aqueles que podem fazer e vivenciar boas ações.

Em suma, tentamos interpretar a narrativa da formação de Bergman a partir da

bibliografia de que dispomos, para apreendermos como a Lei, a Graça e o abandono se

articulam como momentos de angústia e redenção para a permanência dos vestígios divinos

em nosso mundo. Eis, a meu ver, um possível cerne do molde biográfico de Bergman que

influenciou sua perspectiva artístico-religiosa de mundo.

22

1.2. Arealidadeficcionaldocineastasueco

A diretora Marie Nyreröd a princípio nos mostra um Ingmar Bergman algo ermitão.

A Ilha de Färo o teria isolado do mundo. Um isolamento consentido. “O silêncio é

maravilhoso”, sentencia Bergman. De que silêncio fala o cineasta? Do silêncio para a

criação? Do silêncio de Deus? O cineasta que sempre vivera rodeado por sua equipe, pelos

atores sob sua batuta, agora vive algo recluso, passa dias sem falar com alguém. É

justamente nesse contexto que A Ilha de Bergman procurará dar voz ao criador de O sétimo

selo.

Uma mãe carinhosa, um pai severo. Em que medida poderíamos compreender o

fragmento do amor como uma contingência emancipatória em meio à lei rígida do pater

familias? Quando analisarmos O sétimo selo, veremos que a cena da ceia que brinda o

cavaleiro Antonius Block e a família de atores mambembes composta por Jof, Mia e o

pequeno Mikael possui uma centelha de redenção que permanece em brasa ainda que o

antigo mundo medieval e sua divindade inquestionável estejam em colapso. Bergman

demonstra um carinho profundo pela mãe, uma necessidade de afeto que o filho alimenta

continuamente, uma relação que se distancia da dinâmica mais propriamente normativa do

pai.

No domingo, Erlande estava sentado em meu aposento no teatro e falava de Bach. O mestre voltara de viagem e a esposa e os dois filhos tinham morrido durante sua ausência. Ele escreveu em seu diário: “Bom Deus, não deixe que eu perca minha alegria”. Durante toda a minha vida consciente vivi com isso que Bach chamava de “sua alegria”. Ela me salvou de crises e desamparos e me seguiu fielmente como meu próprio coração. Às vezes me inundando, às vezes difícil de controlar, mas nunca hostil ou destrutiva. Bach chamava a esse estado sua alegria, uma alegria de Deus. “Bom Deus, não deixe que eu perca minha alegria”. (BERGMAN, 2013, p. 55)

O amor da mãe, a meu ver, seria uma possível fonte da alegria bachiana de

Bergman. Seu ímpeto não apenas para seguir adiante. Mas para continuar a sorrir. A figura

paterna do pastor protestante de certa forma lhe trouxe os marcos de reflexão que animaram

em grande medida a cinematografia bergmaniana. Deus, um tema redivivo na obra do

cineasta, em grande medida foi mediado pela figura do pai. Deus Pai, então. E aí se tornaria

algo peculiar a insinuação da mãe. A mãe dinamizaria a lei. O pai irascível que, segundo

Bergman, “reprimia uma raiva terrível”, transmitia a lei como um profeta, um patriarca, a

metáfora do Velho Testamento.

23

A maior parte de nossa educação era baseada em conceitos como pecado, confissão, castigo, perdão e misericórdia, fatores concretos nas relações entre pais e filhos e com Deus. Em tudo isso se encenava uma lógica que nós aceitávamos e acreditávamos compreender. (...) Nunca tínhamos ouvido falar de liberdade, nem sequer experimentáramos seu gosto. Num sistema hierárquico todas as portas estão fechadas. (BERGMAN, 2013, p. 21)

A mãe de Bergman, por sua vez, despontaria como uma emissária do amor, aquela

que se aproxima da contingência humana que é mais complexa do que a norma estática.

Enquanto o pai estatui o dever ser, a mãe dá as mãos para o que de fato está ocorrendo. O

afeto tentaria compensar o rancor diante da necessidade de obedecer.

Em um dia invernal de ventania, no começo de 1965, minha mãe telefonou para o teatro e contou que meu pai havia sido levado ao hospital a fim de operar um tumor maligno na garganta. Ela queria que eu o visitasse. Respondi que não tinha vontade nem tempo, que meu pai e eu nada tínhamos a dizer um ao outro, que ele era para mim uma pessoa indiferente e que eu só o perturbaria se o visitasse em seu eventual leito de morte. Minha mãe ficou zangada. Insistiu. Eu também fiquei indignado e me recusei a ser chantageado emocionalmente – a eterna chantagem: “Faça isso por mim...” (BERGMAN, 2013, p. 19)

Esse amálgama contraditório entre a Lei e Jesus Cristo, a meu ver, pode ser uma das

chaves para compreendermos uma dinâmica profunda que a norma não consegue apreender

e nem mesmo silenciar. Quando Deus deixa de ser o Pai dos tempos para dar lugar ao

individualismo autofágico da modernidade, a nova norma também não consegue

arregimentar o afeto. A reedição da santa ceia em O sétimo selo nos trará a oportunidade de

pensarmos sobre os escombros da divindade para vermos em Bergman um autor que

exauriu os limites de uma reflexão religiosa que já não conseguia postular sistematizações.

“Existe Deus? Não existe Deus? O sétimo selo não traz uma resposta para esta

questão” (NYERERÖD, 2006). No caso de Bergman, a disjuntiva existe Deus ou não existe

pressupõe que o movimento de sua dúvida cinematográfica caminhará por ambas as

possibilidades sem que uma consiga subsumir a outra. Em Bergman e, sobretudo, em O

sétimo selo, o silêncio de Deus não torna afônico o amor gratuito de uma cerimônia regada

por morangos ao leite. A morte do Deus sistêmico atenua o ardor da fé, chega mesmo a

relegá-lo, mas o crepúsculo do Deus Pai parece trazer suas sombras ainda mais para perto

das criaturas que o sabem reparti-Lo em comunhão. Por outro lado, a bondade dos

morangos ao leite não consegue fazer com que os sinos voltem a dobrar por Deus. A

comunhão é contingente, a ceia logo finda, e as pessoas felizes terão que voltar para o seio

de um mundo que parece renegar de modo contumaz a expressão do afeto. Assim, a

24

disjuntiva que o próprio Bergman postula para sua obra parece não dar conta da dinâmica

tensa que vem à tona a partir de seus questionamentos: a dúvida sobre se existe Deus ou

não em meio a O sétimo selo seria mais bem expressa pelo movimento da contradição a

insinuar que existe Deus e não existe Deus, a depender do âmbito com que se lida. Da

totalidade divina sistemática se fez terra arrasada, mas a comunhão imanente persiste.

Neste momento, vale a pena mencionar algumas colocações de Bergman que

apontam para algo que O sétimo selo apenas insinua. Bergman não é um autor que

perscruta o além mundo, seus dilemas estão emparedados pelo lapso de tempo que nos

acomete entre a vida e a morte. Mas A Ilha de Bergman nos traz um cineasta que revela

relações com um plano que não é deste mundo.

Eu vivencio coisas, principalmente aqui, quando há lua cheia e o silêncio é total. (...) A luz da lua brilha aqui dentro, da lua cheia. E sinto muito fortemente que sou cercado por outras realidades. É incrivelmente intensa e projeta sombras. E, de novo, sinto muito estranhamente que sou cercado por outras realidades. (...) [Como se houvesse outras] entidades que talvez desejassem me dizer coisas. Não é superstição. É um fato. É assim. (NYRERÖD, 2006)

Em O sétimo selo, não há efetivas conexões que nos permitam associar a comunhão

da santa (e contingente) ceia a um plano espiritual a ser investigado. O filme, nesse sentido,

permanece nos limites do catolicismo. O mistério paira irresoluto e silencioso sobre um

mundo que Deus Pai já não consegue explicar. Mas a colocação acima revela que Bergman

vivenciava uma realidade outra que não lhe parecia nada silenciosa, realidade que com ele

se comunicava, realidade que comporta uma comunicação menos tangível, mas, nem por

isso, menos real.

Pelo fato de haver optado por uma análise de O sétimo selo, esta pesquisa não

aprofundará a investigação que liga Bergman a uma tradição religiosa outra, tradição mais

afeita a sondagens sobre o além mundo e a eternidade que, talvez, forneça chaves outras

para questionar se as vozes com as quais Bergman dialoga não são tão reais quanto sua

própria existência tangível que, em A Ilha de Bergman, se aproxima da morte. Quando, ao

fim do documentário, o cineasta fala sobre a saudade que sente de sua esposa mais longeva,

Ingrid Bergman, há uma percepção, quiçá conectada a essa vivência espiritual, que lhe

insinua que Ingrid o espera após a morte, que não haverá efetiva separação. Ainda assim, é

preciso reiterar que, em O sétimo selo, não há insinuações de que entre os escombros da

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teologia medieval possa despontar algo outro que não está condicionado ao sistema

católico.

Os morangos ao leite, por sua vez, são impulsionados por uma colocação do bispo

Jakob, personagem interpretada por um envelhecido Max Von Sydow que nem de longe

ressoa a juventude de Antonius Block.

− Acredita em Deus, tio Jakob? Um Pai do céu, um Deus do amor? Um Deus com mãos, um coração e um olhar vigilantes? − Não use a palavra “Deus”. Diga “santidade”. Há santidade em todas as pessoas. Santidade humana. Todo o resto são atributos, disfarce, manifestação e truque. Não se pode decifrar ou capturar a santidade humana. Ao mesmo tempo, é algo que podemos pegar. Algo tangível que dura até a morte. O que acontece depois é escondido de nós. Apenas os poetas, músicos e santos podem descrever aquilo que podemos apenas discernir: o inconcebível. Eles viram, conheceram, compreenderam... Não totalmente, mas de modo fragmentado. Para mim, é um conforto pensar na santidade humana. (NYRERÖD, 2006)

A santidade humana, a imanência do amor, está prenunciada em O sétimo selo de

maneira poética e singela na reedição da santa ceia. É a família de artistas mambembes que

terá a oportunidade de partilhar a Graça em uma comunhão já aqui no mundo então

solapado pela peste. A colocação de Bergman sobre a primazia da arte para a vivência do

espiritual nos traz uma nova dimensão para entender por que Jof tem a visão do Cristo com

a Virgem. Os artistas seriam agraciados com sua linguagem.

26

CapítuloII

Areboquedascontradições

LeitoreseleiturasdeIngmarBergman

No capítulo em questão, pretendemos dialogar com alguns dos principais autores da

fortuna crítica de Ingmar Bergman para estabelecermos uma trajetória conceitual que nos

permita uma aproximação crítica e mediada tanto em relação às análises de Jesse Kalin

quanto em relação ao enredo do filme propriamente dito. Nesse sentido, tomaremos por

base as seguintes obras: Cinema, Philosophy, Bergman: On Film as Philosophy, de Paisley

Livingston; The Silence of God: Creative response to the films of Ingmar Bergman, de

Arthur Gibson; Cinema Borealis: Ingmar Bergman and the Swedish Ethos, de Vernon

Young; Ingmar Bergman: The Art of Confession, de Hubert Cohen.

Dentre os autores em questão, quais abstraem a concretude fílmica para transformar

Bergman em comentador de determinados temas filosóficos sem que o cinema seja a

mediação por excelência que, a partir de sua linguagem e de suas categorias poéticas,

desdobra temas para as mais diversas áreas de investigação?

Arthur Gibson, por exemplo, realiza análises profícuas sobre a obra de Bergman a

partir de uma preocupação central: o silêncio de Deus e a crise teológica que se espraiará

até o ateísmo moderno. Suas percepções, nesse sentido, tendem a tornar mais unilateral o

movimento fílmico, para que a trama responda à questão religiosa previamente estruturada.

Apesar de Gibson ser um importante estudioso do cineasta, seu método de investigação

distancia-se do movimento pelo qual tentamos nos aproximar de Bergman e dos conceitos

seminais de Kalin. E mais: a concepção essencialista que estrutura as ideias de Gibson não

poderia ser mais distinta de nossa própria formulação de que o silêncio de Deus foi se

transfigurando e se tornando cada vez mais problemático, na medida em que o implemento

da modernidade ia banindo o transcendental para recantos obscuros da história. Na visão de

Gibson,

Sempre é preciso levar em consideração a especificidade do homem e do grupo formados pelo século XX, mas Bergman procura apreender tal peculiaridade por meio de uma realidade humana perene, da qual a especificidade histórica é uma mera modalidade. Assim, o filme em que toda a problemática do silêncio de Deus

27

é formulada se passa na Idade Média, como se a obra quisesse sublinhar a validade transtemporal e trans-situciacional da crise que vem à tona. (1969, p. 19)

Nesse momento, apreendemos o modo de estruturação ideológica de Arthur Gibson.

O autor lança mão de marcos universais, como se eles pudessem ser pensados para além da

história, isto é, em um momento lógico essencial que suplantaria quaisquer vicissitudes

transitórias. Uma essência humana imutável apenas apresentaria roupagens distintas nos

respectivos contextos históricos de sua manifestação. Em contraposição a tais

considerações, entendemos que a história não pode ser preterida em função de um momento

lógico ideal e atemporal para que possa ser feito um juízo sobre uma suposta universalidade

humana. Assim, ao invés de considerarmos que a premência em relação a Deus sempre

acompanhou o homem, veremos que dimensões o transcendental vai assumindo nos

diferentes momentos históricos, de modo que, em suas mutações, já não possa ser idêntico

a si mesmo ao longo do tempo. Quando, em meio à análise d'O sétimo selo, entrevemos a

crise do cavaleiro Antonius Block como a origem da ruptura teológica relacionada ao

término da Idade Média, não dizemos que o protagonista de Bergman terá as mesmas

dúvidas que assolam um intelectual moderno, uma vez que os instrumentos de perquirição e

indagação se modificaram sobremaneira com a crescente secularização do mundo a partir

da Renascença. Dizer que Deus está morto no século XIX é profundamente distinto de orar

para que Seu silêncio termine no outono da Idade Média. O niilismo moderno reconfigurou

a crise teológica, de modo que, no limite, a divindade não estaria apenas em silêncio; o

silêncio do vazio passaria a ser a própria divindade.

Vernon Young, por sua vez, realiza um estudo cultural e religioso das influências

peculiares à região escandinava e sustenta que, nos mais diversos autores, haveria um ethos

borealis a perpassar suas obras. Tal chave conceitual enriquece a apreensão de Bergman, de

modo que estudiosos não oriundos da Escandinávia podem compreender com mais

mediações o comportamento e a constituição das personagens e de suas respectivas tramas.

No entanto, o conceito de ethos borealis tende a tornar pálida a individualidade do artista

Ingmar Bergman, pois circunscreve a obra como um fenômeno cultural peculiar, fato que,

em boa medida, é um truísmo. Machado de Assis não foi mediado pela mesma formação

sociocultural própria a Henrik Ibsen. Assim, torna-se claro que suas obras possuirão

distanciamentos notados ao lado de questões que eventualmente estabeleçam paralelismos

entre tais autores tão díspares. Parece-nos, nesse sentido, que a análise mais imanente

28

consegue apreender os mecanismos poéticos de configuração da trama, de modo a iluminar

como a agonia das personagens relaciona-se ao silêncio de Deus, característica para a qual

as apreciações temáticas de Young contribuem, mas da qual não dão conta de modo

satisfatório por causa de seu maior distanciamento em relação à dinâmica mais

propriamente poética dos filmes.

Hubert Cohen estabelece discussões entre a vida e a obra de Bergman para entender

a recorrência de determinados temas nos filmes. A imagética religiosa ganha relevo quando

desvelamos visitas do jovem Bergman a catedrais que envergavam Cristos de madeira. Tais

figuras tornam-se marcos para o imaginário do cineasta. Mas, ainda uma vez, nos

deparamos com a insuficiência de elementos analíticos para apreender a filosofia da

religião a partir da dinâmica fílmica.

Paisley Livingston, a meu ver, é o crítico que mais se aproxima do universo

propriamente artístico de Bergman para entender como o cinema estabelece a mediação

para as questões religiosas e morais que assolam as personagens com as quais esta pesquisa

procurará dialogar. De qualquer maneira, os comentadores com os quais trabalharemos

serão movimentados ao longo da e em função da estrutura fílmica, ainda que nem todos

lancem mão de um método de análise poético-filosófica.

Por fim, em que medida os conceitos de redução ontológica e geografia da alma,

desenvolvidos por Jesse Kalin, englobam os conceitos desenvolvidos pelos demais autores,

de modo que possamos estabelecer uma metarredução conceitual da miríade de ideias e

comentadores a partir de Kalin? A resposta para esta pergunta será desenvolvida no

decorrer da análise, de modo que as ideias dos comentadores com os quais dialogamos

transformem-se em momentos da arquitetura conceitual de Kalin que nos ajudará a

compreender a complexidade da poética de O sétimo selo.

Em termos teológicos e em estreito diálogo com Kalin, entendemos O sétimo selo

como uma síntese dos temas que se irradiariam pela obra futura de Bergman. O silêncio de

Deus; a impossibilidade de uma vivência religiosa e moral; a fugacidade da felicidade e do

amor; o momento como o derradeiro vestígio divino; a arte agraciada como momento

redentor para além do sistema teológico e moral em ruínas. Em que medida os autores com

os quais dialogaremos se aproximam e se distanciam do leque de conceitos que as obras de

Bergman e Kalin nos fornecem? É o que a análise a seguir começará a responder.

29

Vale frisar que Jesse Kalin terá uma seção à parte no capítulo III, pelo fato de seus

conceitos serem os marcos teóricos fundamentais com os quais a dinâmica d'O sétimo selo

será analisada.

* * *

A fortuna crítica de Bergman pode ser compreendida entre autores que se aferram a

determinados temas de suas discussões – sobretudo as questões da filosofia da religião – e

críticos que procuram analisar suas obras em estreito diálogo com os princípios de

constituição fílmica. A análise em questão acompanhará a lógica de estruturação da

narrativa pari passu. As discussões que estabelecermos a partir de Bergman não utilizarão

O sétimo selo como um mote para ilustrar este ou aquele conceito da filosofia da religião.

Eis um expediente recorrente de análises que retiram da obra apenas os elementos que lhe

interessam para estruturar determinada discussão que, muitas vezes, não acompanha o devir

do conceito em meio ao filme propriamente dito. Quando discutirmos, por exemplo, a

noção de Graça, não o faremos fora do contexto fílmico que envolve as personagens

bergmanianas. Graça, então, será uma noção muito próxima da vivência das personagens,

da teia de suas relações. Na verdade, seria ainda mais preciso falar em Graça em meio a O

sétimo selo.

Ao longo do desenvolvimento desta dissertação, foi possível perceber que a

abstração da tessitura fílmica em prol de determinada discussão filosófica rompe e abstrai a

cadeia de acontecimentos que, em suas interpenetrações, erige conceitos poeticamente, isto

é, em estreita conexão com o devir narrativo. Assim, como entender a Graça sem seguir de

forma rente a ceia inusitada que aproxima personagens tão díspares como o cavaleiro Block

e a família de artistas mambembes Jof, Mia e Mikael? O profundo niilismo de Antonius

Block se vê tensionado por uma vivência enraizada no próprio cotidiano, uma vivência que

nada questiona, (1) porque não possui os elementos de indagação e (2) porque se sente

extremamente vinculada com o sentido da natureza que a circunda. Block não deixará de

perseguir o silêncio de Deus para buscar suas respostas inescapáveis, mas durante a ceia

que embebe os morangos ao leite, o cavaleiro se sentirá tão repleto de vivacidade que os

questionamentos ficarão momentaneamente relegados em função da alegria compartilhada

30

com a família de artistas. Nesse sentido, a Graça não se consubstanciaria como uma ação

vertical da divindade transcendente que fornece sentido a determinado contexto. A Graça

desponta com a mesma materialidade efêmera dos morangos ao leite; a Graça se entrelaça

aos sorrisos efêmeros circundados pela Morte à espreita. A Graça entre os escombros

parece ser, efetivamente, o legado mais propriamente positivo d’O sétimo selo. Uma

redenção que escorre entre os dedos como os grãos fugazes de areia pelo delgado pescoço

da ampulheta. O sentido não mais parece eterno e sequer paira de modo transcendente; a

Graça contingente aproxima a divindade silenciosa dos cacos do mundo. De qualquer

forma, e durante alguns momentos, Block, Jof, Mia e Mikael a vivem como se fosse

possível ludibriar a Morte. Nesse sentido, seria possível dizer que

Bergman não é um teólogo sistemático. Ele é um artista com uma preocupação obsessiva pela questão da existência de Deus (...). Se ele faz arte a partir de tal obsessão, tudo isso me parece interessante; quando ele não o faz, eu procuro apontar as falhas, mas eu realmente penso ser injusto transpor as expressões de sua arte em termos puramente teológicos que a nulificam. (YOUNG, 2000, p. 158)

A colocação de Vernon Young dá o tom para que reiteremos nossa preocupação em

buscar as discussões da filosofia da religião em meio à arte de Bergman, em meio à sua

tessitura fílmica, sem que façamos filosofia da religião à revelia de sua intencionalidade

poética.

Um ponto fundamental que estrutura nossa análise, no entanto, é a percepção de que

as personagens medievais d’O sétimo selo, sobretudo o cavaleiro Antonius Block e seu fiel

escudeiro Jöns, em grande medida parecem obsedadas por um espírito eminentemente

moderno. Neste caso, nossa análise está voltada para a constituição histórica e diferencial

dos ethos medieval e moderno.

Bergman declara assertivamente que o filme não tinha a intenção de fornecer uma representação realista da Suécia na Idade Média. (E, de fato, vários anacronismos foram identificados, como o fato de que a peste bubônica começou ao redor de 150 anos após o término da última cruzada, ao passo que o cavaleiro e seu escudeiro retornam de sua cruzada para encontrar a Suécia tomada pela peste.) Tais fatos são irrelevantes, porém, em relação ao principal propósito mencionado pelo próprio Bergman, que era “traduzir” a experiências das pessoas modernas por meio de uma forma poética e alegórica. (LIVINGSTON, 2009, p. 141)

Não se trata de dizer que não há uma ambientação medieval em O sétimo selo. O

fato de Bergman ter incorrido em anacronismos, como bem pôde notar Paisley Livingston,

não significa que o ethos medieval está simplesmente descartado do filme. Procuraremos

31

demonstrar, com base nos historiadores Johan Huizinga e Jean Delumeau, que a atmosfera

medieval é fundamental para compreendermos as diversas tensões que acometem as

personagens. Assim, se Block possui dilemas mais próximos à modernidade que, no limite,

prescinde de Deus, não é possível entender por que o cavaleiro insiste em auscultar o

reiterado silêncio da divindade sem observarmos que a vida das pessoas, em meio à Idade

Média, era mediada, da aurora ao crepúsculo, pelas invocações de Deus. Entreveremos em

Block a origem genealógica para a crise que faria com que a modernidade questionasse

radicalmente a existência de Deus, mas não atribuiremos ao cavaleiro o anacronismo de

superar as aporias teológicas se sua época ainda dependia da divindade transcendente para

que os sinos das igrejas continuassem a dobrar. Nesse sentido, a figura supostamente

coadjuvante do escudeiro Jöns dá um passo além. Jöns, em muitos momentos, mostra-se o

verdadeiro senhor de seu cavaleiro ao relegar o silêncio de uma divindade que já não

parecia presente e efetiva na vida do outono da Idade Média acossado pela peste e pela

ruptura das relações tradicionais. Jöns afirma a vida apesar de ainda não possuir os

elementos filosóficos e científicos para levar Deus para o mesmo tabuleiro em que a Morte

procura dar o xeque-mate em Antonius Block. A modernidade retroativa de Jöns está a um

passo da frágil afirmação da vida por si mesma, está a um passo de não precisar – já que

não mais quer – auscultar o silêncio de Deus, mas ainda não era possível, naquele

momento, reconfigurar o mundo danificado em função de um novo ethos. Assim, a forma

poética e alegórica a que Bergman, segundo Livingston, teria feito referência tensiona os

limites medievais e, ao mesmo tempo, a eles permanece circunscrita. Como os espectadores

bergmanianos são, necessariamente, homens e mulheres modernos, a ponte entre as

personagens medievais e seu ethos híbrido – entre o medievo e a modernidade – se

estabelece em dialogia com a recepção da obra. “Bergman está profundamente interessado

no homem moderno, mas ele nunca confunde o adjetivo com o substantivo”. (GIBSON,

1969, p. 19)

Os marcos historiográficos de Huizinga e Delumeau mostram-se novamente

importantes, então, para que possamos separar o joio do trigo. Não se trata de dizer que

Bergman tenha estabelecido uma nítida separação entre o contexto medieval e as

elucubrações modernas. Como já vimos e posteriormente iremos demonstrar, o outono da

Idade Média narrado em O sétimo selo anima um forte hibridismo que vai diluindo a

32

solidez da tradição conforme a realidade se mostra mais fluida e contraditória do que o

sermão reiterado das liturgias. De qualquer forma, momentos como as admoestações

temerárias do clérigo e a morte na fogueira da alegada bruxa nos demonstram como a única

instituição ainda monolítica da Idade Média, a Igreja Católica, conseguia imiscuir o joio e o

trigo ao fundir a fé ao medo – medo que, vale frisar, é parte indissolúvel de uma época em

que a razão e o pensamento autônomo se postam servis diante do mistério divino alardeado

aos quatro cantos pela autoridade do clero. Daí o movimento que norteia esta dissertação

para entrever a bela síntese de Bergman que desponta do conflito entre a Idade Média e a

modernidade. Síntese que nem de longe apazigua o confronto visceral e encarniçado entre

os polos contrários e contraditórios, mas que procura apreender a origem do processo de

questionamento de Deus que, ao mesmo tempo, traz a divindade para perto do mundo, para

perto de seus restos que, em face do céu, da abóbada vazia e silenciosa que a câmera de

Bergman tanto reproduz, parecem fazer cada vez menos sentido para além de si mesmos,

para além de suas próprias vivências passageiras e arbitrárias.

33

CapítuloIII

OsétimoseloensejaodiscursosobreométododeJesseKalin

Jesse Kalin parte de um panorama da obra de Ingmar Bergman. O crítico extrai

exemplos para, paulatinamente, chegar à sua construção conceitual. É assim que o cruzado

Antonius Block e o pastor Tomas Ericsson, protagonistas respectivos de O sétimo selo e

Luz de Inverno, em suas trajetórias distintas, apresentam dilemas contíguos. Block e

Ericsson vivem o dilema da ruptura do sistema metafísico. Block, em meio à crise dos

valores medievais, continua a voltar os olhos para o céu, o vazio tão recorrente na obra de

Bergman, para postular as antigas perguntas que já não encontram respostas entre o

desenho caótico das estrelas. Tomas, por sua vez, caminha entre os escombros da divindade

no pós-guerra do século XX. Diferentemente de Block, o pastor não parece sentir a

premência das perguntas. O silêncio de Deus já as calara. O rito religioso torna-se uma

mera contumácia, uma rotina litúrgica, um trabalho como outro qualquer. Tomas assiste ao

suicídio de um fiel que buscara consolo junto à teologia esvaziada; o pastor despreza a

mulher que o ama porque o silêncio de Deus o separara de seu verdadeiro e morto amor.

Se, neste momento, lançarmos mão do procedimento próprio a Kalin de abstração

dos conflitos das personagens para tentarmos alcançar o cerne equivalente de seus dilemas,

descobriremos que Block e Tomas padecem por conta da crescente ausência da divindade

em relação ao mundo.

Alcançam-se tais elementos pela remoção de tudo o que é inessencial e, assim, reduz-se a grande variedade da criação à sua estrutura. Não se trata de dizer que os detalhes e particularidades são insignificantes, mas que sua natureza e sentido dependem de tais elementos mais profundos, os quais fornecem forma e direção e determinam as limitações da aparência. Somente com o entendimento e a articulação de tais elementos mais profundos a aparência pode ser compreendida. (KALIN, 2003, p. 1)

Em que pese a profunda diferença entre os contextos históricos, poderíamos dizer

que os protagonistas em questão se angustiam por conta da mesma crise fulcral: a dor moral

decorrente do silêncio de Deus. É bem verdade que Block tem uma atitude arquetípica mais

ligada ao herói. No entanto, o heroísmo de Block, a não ser em momentos determinados e

fugazes, não consegue sintetizar aquilo a que Deus já não responde. Assim, de modo

34

essencial, ao heroísmo alquebrado de Block corresponde o cinismo resignado de Tomas

Ericsson. Se o pastor chega à conclusão de que antes orava para um deus-eco que apenas

reverberava, através das preces, aquilo que o próprio fiel esperava ouvir, desvelamos o

silêncio de Deus como uma fronteira a aproximar esferas a priori antípodas. Por que não

poderíamos pensar que a história, munida do crescente desencantamento do mundo,

desancou a atitude heróica de Block, ao fornecer mais elementos de questionamento em

relação à divindade? Se assim o fizermos, deveremos dizer que a religiosidade do cavaleiro

verga seus ombros como um atavismo do qual o cruzado simplesmente não consegue se

livrar. Ora, tal não é a situação de Ericsson, filho legítimo do niilismo de nossos tempos. Se

Block pode ser considerado um protoniilista, conforme discutiremos ao longo da análise,

Tomas já apreende a vacuidade do céu com a mesma falta de sentido com que articula sua

liturgia mecânica. Tomas Ericsson, dessa forma, nos aparece como a escatologia de

Antonius Block. E qual é a essência analítica que nos faz entrever a contiguidade dos

contrários a partir da síntese primeira? Segundo Jesse Kalin, trata-se da redução ontológica

que, no limite atômico, isto é, no ápice da indivisibilidade do ser, alcança o eclipse de Deus

pela irrupção do dilema moral como cerne da condição humana.

Neste momento, percebemos que Kalin se desloca da síntese panóptica para a

análise essencial. O procedimento analítico de redução ontológica entrevê, a partir da

dialogia entre os dilemas das personagens, a pedra de toque bergmaniana que se espraia

pela obra.

Uma redução – no sentido metafísico da palavra. Em sua concepção clássica, uma metafísica constituía um exame fundamental de todo o ser em seu âmbito mais elementar, buscando as coisas mais básicas e os princípios que as governavam através da mudança e do movimento, uma ontologia que desvelava a estrutura do mundo. (KALIN, 2003, p. 1)

Assim, poderíamos considerar Block e Ericsson duas personagens típicas, de modo

que suas ações levam às últimas consequências as fraturas morais às quais são submetidas.

Quando apreendemos o movimento (onto)lógico do processo de redução, estamos prontos a

acompanhar Kalin em sua jornada rumo à geografia da alma. Como se Kalin afirmasse que,

para conhecer a vasta estepe humana, seria preciso primeiramente apreender a essência do

nômade mais singular que a percorre com sofreguidão. A princípio, o procedimento de

Kalin extrai da obra de Bergman algo como uma fotografia por satélite. Vemos, então, uma

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massa amorfa de personagens e fatos que, com o mergulho redutivo, começam a dialogar

essencialmente segundo um princípio que os torna contíguos. Chegamos ao cerne da terra,

ao magma do ser e, assim, estamos prontos a voltar à superfície com um movimento de

superação que eleva e supera o momento analítico anterior.

Bergman retrata nossas vidas como jornadas através de uma paisagem dos lugares essenciais da alma. Eis a nossa geografia. A redução ontológica de Bergman revela o eixo de inflexão em termos de aproximação e afastamento como nossa fundamental postura espiritual. Aqui, o abandono e todos os consequentes sofrimentos são formas de desvio, e o amor e seu consequente florescimento são formas de aproximação. (KALIN, 2003, p. 16)

Redução ontológica e geografia da alma são momentos recíprocos e mutuamente

determinados. Da nebulosa geografia primeira chegamos à redução ontológica que, em seus

desdobramentos, nos faz palmilhar com mais essência e concretude a geografia da alma. A

alma, assim, mostra-se essencial a todas as personagens, mas a especificidade das

trajetórias calcadas nas escolhas morais determinará os diferentes destinos. No caso

específico d’O sétimo selo, a escolha moral é matizada pela presença da Graça, derradeiro

resíduo divino em meio ao mundo sulcado pela peste bubônica. Personagens como Jof e

Jöns terão a Graça como substrato em face do silêncio transcendente para que continuem a

percorrer suas jornadas reiteradas que se deparam com a Morte a todo instante. Graça

imanente que, em Luz de Inverno, já não se aproxima do pastor que reza como boceja ou se

espreguiça. Redução ontológica e geografia da alma constituem categorias reciprocamente

imbricadas e derivadas. A redução está para a árvore assim como a geografia vislumbra a

floresta. Sem as árvores unitárias a floresta não se constitui, mas também não podemos

imaginar a sobrevida da mera árvore sem o ecossistema que lhe dá guarida. O todo e a parte

se articulam em um movimento de contínuo diálogo. Segundo Kalin,

O sétimo selo é um filme sobre a moralidade, e suas personagens aparecem como exemplares de tipos humanos e possibilidades. As personagens, portanto, derivam mais do tipo de pessoa que o drama requer do que da história ou da psicologia individual (...). (2003, p. 63)

Nesse sentido, as personagens com as quais nos depararemos transformam-se em

receptáculos para questões a serem desdobradas por intermédio de suas ações. Como se

Kalin sugerisse que Bergman anima as tramas das personagens segundo o princípio de

escatologia criativa. De fato, toda a atmosfera d’O sétimo selo mostra-se profundamente

escatológica, uma vez que se trata do término do período medieval. As questões últimas são

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vivenciadas por todas em meio à peste bubônica que esgarça os valores consuetudinários.

Em face da morte iminente, que resta da vida resguardada por Deus? A atmosfera limítrofe

se funde ao e se confunde com o Juízo. A figura apocalíptica por excelência é a Morte.

Assim, todas as personagens, da mais angustiada à mais serena, terão de lidar, de uma

maneira ou de outra, com as irradiações do devir que irá cessar.

A escatologia, assim, não se constitui apenas como elemento discursivo que será

tensionado pelos diálogos das personagens. Apesar de a Morte perscrutar e ser perscrutada

incessantemente por Antonius Block, trata-se menos da investigação intelectual e mais da

impossibilidade de entendimento – e de ação. Não há um intelectual que, como o pensador

de Rodin, posta-se estático em face de uma reflexão que quer aprisionar o devir. No filme

em questão, os questionamentos são cotejados a cada instante com as ações que removem o

substrato seguro sobre o qual as ideias poderiam se assentar. Aqui encontramos o princípio

escatológico em ação: as personagens-típicas são pensadas como o desdobramento último

das ideias encarnadas em função das ações que trarão à tona.

A redução ontológica de Kalin nos faz pensar sobre o próprio princípio de

montagem fílmica. Do fulcro teológico-moral que estrutura O sétimo selo irradiam-se os

conflitos que colocarão à prova Deus e seu reinado, o mundo. A geografia da alma

pressupõe as várias jornadas. Ainda uma vez, redução e totalização apresentam-se como

momentos reciprocamente imbricados. Senão, vejamos: a essência redutiva liga-se à

impossibilidade de nortear a vida rotineira em função de Deus. Os diferentes caminhos

trilhados pelas personagens dimanam do espaço celeste esvaziado. Veremos que as opções

e trajetórias são balizadas por um derradeiro laivo divino, a Graça. A redenção, ainda que

tenra e momentânea, somente é vivenciada por aqueles que parecem ungidos pelos raios

opacos de uma divindade que apenas se insinua. Assim, as jornadas centrífugas da miríade

de personagens se espraiam em função de sua proximidade ou distanciamento em relação

ao silêncio de Deus. Só apreendemos a geografia a partir da pedra fundamental; por sua

vez, a pedra fundamental só ganha nuances efetivas de desenvolvimento com as estórias

vivenciadas pelas personagens.

A centralidade do dilema moral confunde-se desde o início do filme com o juízo

final. O julgamento fará despontar sétimo selo. Cada personagem parece rasgada por um

sentido último – mais ou menos consciente – em relação à própria vida. Não apenas o

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altamente consciente Antonius Block vislumbra o panorama de seus erros e acertos e

padece por conta da sede insaciável por redenção. Os agraciados Jof e Mia, artistas do

palco e da vida, vislumbram o todo com uma razão mais frágil, menos clarividente, mas

nem por isso menos total. A visão restrita não os impede de viver. Neste momento, se

pensássemos que é justamente a inconsciência que os faz feliz, teríamos que nos perguntar

por que as demais personagens sem grande discernimento não esboçam o mesmo sorriso

diante do pequeno Mikael.

Jöns, como síntese de nossa análise, incorpora a altivez racional de Block a um

ímpeto vivencial que compartilha apenas com a família de Jof. Jöns transforma-se,

inclusive, em agente da lei e da moralidade em face do Doutor Raval, outrora teólogo,

agora um ladrão. O escudeiro, de forma derradeira, afirma não apenas a própria vida, mas o

ímpeto de sobrevivência social para além de si mesmo – a sociedade deve continuar apesar

de Deus se quedar em silêncio.

As jornadas da alma expressas por Kalin dialogam de forma rente com a obra e seu

devir. Desse modo, nossa análise não abstrairá a construção bergmaniana para se aproximar

e apropriar das análises do comentador. Kalin será o mediador onipresente de nosso

transcurso teórico, mas a trama fílmica será a base efetiva a partir da qual as apreensões

ocorrerão. O sétimo selo e sua polissemia darão o tom para que concordemos com Kalin ou

dele discordemos sempre em função da primazia do objeto de análise. A filosofia da

religião em Bergman, a meu ver, erige-se de maneira mais crítica e polissêmica ao dialogar

com a poética do cineasta que, entre outros momentos semânticos, estabelece mediações

em relação a conceitos fundamentais da religião. Assim, Bergman não se torna apenas um

mote contingente para os comentadores, mas o cerne da redução ontológica que embasa a

análise propriamente dita.

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3.1. Daalmasemmoradaàestepedacondiçãohumana

3.1.1. OsétimoseloauscultaosilênciodeDeus

No princípio era o silêncio do Verbo. Na primeira cena, a câmera próxima ao plano

do espectador focaliza um céu nublado e distante, através de cujas nuvens uma luz tênue

tenta despontar. Na tomada seguinte, como um fiat lux decaído, um corvo flana e prenuncia

a Morte que desvelará o sétimo selo. Eis uma síntese para a lógica poética do filme. O

silêncio de Deus, a ausência da divindade, em contraste com a onipresença da Morte.

O início, característico de muitos filmes de Bergman, representa uma atmosfera de prenúncio, a costa marítima e a Morte. Estamos no limite das coisas. Após a abertura do Sétimo Selo, houve silêncio no Céu por uma hora e meia. A fonte de Bergman, o Apocalipse, justifica as imagens do mar e do céu vazios, que podem estar ligados a eternidade ou a expansão neutra, não contaminadas pela peste. Mas qualquer uma dessas significações deve ser feita em retrospecto, já que é a sequência de encadeamento do filme que nos permite atribuir o valor para aquilo que aparece antes. (...) Por que não pensarmos que a intenção de Bergman observa uma certa lógica em meio à fantasia? (YOUNG, 2000, p. 156, grifo meu)

Uma lógica de contraposições e sucessões reiteradas nos fará pensar em uma

circularidade para apreender o movimento poético d'O sétimo selo. A busca por Deus

redunda no encontro com a morte. “Ao lado de muitas imagens de graça e alegria,

encontram-se imagens antípodas de perdição e terror (...)”. (KALIN, 2003, p. 24) Imagens

de perdição e terror tornadas ainda mais angustiantes pelo sentido da música que obseda o

expectador. “Certamente, o Juízo Final situa definitivamente os eleitos no paraíso; mas

quem pode dizer com antecedência que estará entre as ovelhas à direita do Soberano Juiz?

Este se mostra duro e severo. O último dia da humanidade é bem o da cólera: dies irae”.

(DELUMEAU, 2010, p. 310) “Antes de a ação de O sétimo selo começar, há uma voz de

fundo que ressoa um coro fervoroso de Dies Irae” (COHEN, 1993, p. 123)

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Dies irae, dies illa1

1 Dia da Ira, aquele dia Em que os séculos se desfarão em cinzas, Testemunham David e Sibila! 2 Quanto terror é futuro, quando o Juiz vier, para julgar a todos irrestritamente! 3 A trompa esparge o poderoso som pela região dos sepulcros, convocando todos ante o Trono. 4 A morte e a natureza se aterrorizam ao ressurgir a criatura para responder ao Juiz. 5 O Livro escrito aparecerá em que tudo há em que o mundo será julgado. 6 Quando o Juiz se assentar o oculto se revelará, nada haverá sem castigo ! 7 Que direi eu, pobre miserável? A que Paráclito rogarei, quando só os justos estão seguros? 8 Rei, tremenda Majestade, que ao salvar salva pela Graça, salva-me, fonte Piedosa. 9 Recordai-vos, piedoso Jesus,

                                                            1 "Uma missa especial, também objeto de arranjos polifônicos (embora só a partir de meados do século XV) é a missa de finados, ou missa de réquiem, assim chamada a partir da primeira palavra do seu introito, que começa com a frase Requiem aeternam dona eis, Domine ("Dai-lhes, Senhor, o eterno repouso"). A missa de réquiem tem um próprio especial, que não varia com o calendário. O Gloria e o Credo são suprimidos, e a sequência Dies irae, dies illa ("Dia de ira aquele em que o universo...") é inserida logo a seguir ao trato. As modernas missas de réquiem (por exemplo, as de Mozart, Berlioz, Verdi e Fauré) incluem alguns dos textos do próprio, como o introito, o ofertório Domine Jesu Christe, a comunhão Lux aeterna ("Luz eterna") e, por vezes, o responsório Libera me, Domine ("Livrai-me, Senhor"). GROUT, Donald J. e PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. Lisboa: Editora Gradiva, 1994, p. 55.

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de que sou a causa de Vossa Via; não me percais nesse dia. 10 Resgatando-me, sentistes lassidão, me redimistes sofrendo a Cruz; Que tanto trabalho não tenha sido em vão. 11 Juiz Justo da Vingança Divina, Dai-me a remissão dos meus pecados, antes do dia Final. 12 Clamo, como condenado, a culpa enrubesce meu semblante suplico a Vós, ó Deus 13 Ao que perdoou a Madalena, e ouviu a súplica do ladrão, Dai-me também esperança. 14 Minha oração é indigna, mas, pela Vossa Bondade atuais, Não me deixeis perecer cremado no Fogo Eterno. 15 Colocai-me com as ovelhas Separai-me dos cabritos, Ponde-me à Vossa direita; 16 Condenai os malditos, lançai-os nas flamas famintas, Chamai-me aos benditos. 17 Oro-Vos, rogo-Vos de joelhos, com o coração contrito em cinzas, cuidai do meu fim.

A citação do Apocalipse aponta fundamentalmente para o sentido escatológico do

filme. “Quando o cordeiro abriu o sétimo selo, houve um silêncio no céu por cerca de meia

hora. Eu vi sete anjos diante de Deus e a eles foram dadas sete trombetas”. (8, 1,2)

Veremos que o cordeiro pode ser comparado à Morte que só faz executar sua função

precípua. Deus se confunde com o próprio silêncio no céu. A cena final, em que as

personagens se encaminham para o completo silêncio, transfigura o caráter celestial dos

sete anjos para transformá-los nas personagens que nada podem contra o destino

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inexorável. Por ora, continuemos a acompanhar paulatinamente a abertura do sétimo selo.

No entanto, vale frisar ainda uma vez a circularidade poético-teológica do filme em

questão.

Na sequência, a câmera desce até uma praia para nos apresentar Antonius Block, o

cavaleiro, seu fiel escudeiro Jöns e, pouco depois, a Morte, onipresença inequívoca, a

sombra de Block que o emparedará com um xeque-mate. A simbologia do tabuleiro de

xadrez não nos deve escapar.

O xadrez é, de todos os jogos humanos, o mais perfeito paradigma do mistério da liberdade e da relação do homem com Deus. Uma vez que o xadrez comporta um enorme número de possibilidades, todas se tornam livres e imprevisíveis; mesmo assim, o ritmo do jogo é tal que um jogador que tenha um domínio perfeito das combinações de possíveis movimentos e da psicologia de seu oponente tende a sair vitorioso. (GIBSON, 1969, p. 30)

O jogo com a Morte pode apenas ser prolongado, jamais vencido. O xadrez

apresenta várias combinações de escapatória, desde que Antonius Block restrinja-se ao

tabuleiro cujas bordas a Morte resguarda com total onipresença. O tabuleiro, uma síntese

para as idas e vindas do cavaleiro que só faz se chocar contra o muro do silêncio de Deus.

O tabuleiro, mais uma metáfora sintética para o transcurso estrutural d’O sétimo selo: a

busca inglória pelo Deus total que possa redimir a tragédia que desestabiliza os valores

medievais.

Antonius Block, sobrenome algo simbólico. Block nos remete a bloco, algo pétreo;

resistente, porém silencioso, impassível. “E eu te declaro: tu és Pedro, e sobre esta pedra

edificarei a minha Igreja”. (MATEUS, 16, 18) Veremos que a colocação de Jesus Cristo

para o apóstolo Pedro se movimenta por meio de fortes contradições ao longo d’O sétimo

selo. A pedra de toque do cavaleiro se verá muitas vezes inerte em face de um mundo que

já não o consola com qualquer sentido, com qualquer fundação pétrea. Por esse prisma, a

teologia de Bergman erige um sistema sobre um terreno eminentemente arenoso e volúvel.

No entanto, a pedra fundamental que Block carrega em seu nome como a armadura de

cruzado que enverga ao longo de todo o filme também embasará ações benéficas para

afirmar o mundo a despeito da fugacidade de seus resultados. Eis “o juramento cavaleiresco

como forma de cultura, como uma moral elevada para embelezar a vida”. (HUIZINGA,

2010, p. 145) Simão Pedro soergue o edifício cristão; Antonius Block caminha entre as

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ruínas do cristianismo. A sequência da análise demonstrará como Antonius Pedro Block

nega, renega e afirma a fundação pétrea proposta por Cristo.

A primeira intromissão do sobrenatural desvela a Morte para o cavaleiro. Já Jof, par

antípoda de Block, vê a Virgem Maria e um bebezinho que bem poderia ser o menino

Jesus. Enquanto o cruzado se depara sobrenaturalmente com o fim, Jof é acariciado pelo

início da vida, por sua fonte mais imaculada. Os extremos sobrenaturais envolvendo Block

e Jof não nos parecem aleatórios de forma alguma. Veremos que a procura vã do cavaleiro

encontra um Jof insciente e agraciado. Aquilo que Block tenta apreender com a razão, Jof

vivencia com a plenitude dos sentimentos telúricos. Enquanto o cruzado tenta entender, o

artista já está enraizado.

Mia, a esposa de Jof, põe em xeque as visões do marido. Entre as várias cenas-

síntese que caracterizam O sétimo selo, há uma que desponta na sequência da visão

sobrenatural de Jof. O artista vai até a casa nômade, a carroça onde Mia e Mikael dormem,

e acorda a esposa para lhe dizer o que acabara de vivenciar. Mia se mostra algo descrente,

já que Jof, em uma outra ocasião, teria forjado uma visão com uma suposta prova embebida

em tinta vermelha. O artista se defende dizendo que a tentativa de tornar crível o

sobrenatural, por meio de uma evidência falsa, era apenas um mecanismo para fazer com

que Mia se abrisse para as aparições. Um truque justificaria a verdade, prossegue Jof, “já

que não é uma realidade que você vê, é uma outra coisa”. Podemos deduzir que, se não se

trata de uma realidade visível, ou mesmo tangível, as leis que a governam são inescrutáveis,

ou então pertencem a um conjunto lógico não imediatamente contíguo ao plano natural ao

qual estamos habituados. Mas e se perguntássemos a Jof sobre o suposto mecanismo de

funcionamento que o leva a ter tais visões? Será que ele nos conseguiria explicá-las?

“Não pedi que tivesse visões”.

Se Jof não pediu pelas visões, ele as recebe gratuitamente, vale dizer, como uma

Graça. Diferentemente de Block, cujas visões só fazem desesperá-lo em face da Morte, Jof

foi agraciado com um dom que lhe permite fruir os momentos inefáveis que apenas

excepcionalmente visitam o cavaleiro. “A religião, assim, se torna arte”. (KALIN, 2003, p.

61) As trajetórias de Block e Jof se fundem e se apartam e dão o tom para a polaridade mais

radical do filme. É claro que Jof e sua família também encontrarão a Morte um dia, mas seu

destino não será selado junto com o cavaleiro e as demais personagens. Enquanto o

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sobrenatural desponta para Antonius Block como a contínua reiteração da espada de

Dâmocles, como o bafejo cada vez mais rente e cabal do destino, as visões de Jof acabam

por salvá-lo do abraço da Morte. Veremos, mais adiante, os desdobramentos das relações

antípodas de Block e Jof com o sobrenatural: a distância, o sentido antípoda e polar, mas

também a interpenetração – o ardil mundano e inusitadamente positivo de Block é que

logra ludibriar a Morte para viabilizar a fuga de Jof, Mia e Mikael.

Mas as polaridades antitéticas não se resumem a Block e Jof. Ao longo do filme, o

cavaleiro angustiado se depara com outras personagens que contrastam com sua

personalidade cindida de maneiras diversas. Que dizer da distância que separa Antonius

Block de seu fiel escudeiro Jöns? Enquanto Block ora ao cosmos vazio para que o silêncio

divino seja rompido, Jöns tem ambos os pés bem fincados ao chão. Jöns é mundano em

vários sentidos, mas não chega a ser malévolo. O escudeiro e sua cantoria dizem conhecer a

redenção “entre as pernas de uma prostituta”. Jöns conhece o mundo e seus percalços, sabe

caminhar entre as contradições da condição humana sem se prostrar como Block. Jöns

aceita o destino e tenta fruir o tempo que lhe resta. Block, por sua vez, só faz sobrevoar as

vivências como meros fenômenos, como se já não pudesse encontrar a totalidade de Deus a

partir da pluralidade das experiências pelas quais vai passando. Poderíamos dizer que a

triste trajetória de Block não encontra um refrigério senão quando o cavaleiro embebe os

morangos ao leite ao lado de Mia, a vivaz esposa de Jof. Adiante analisaremos a última

ceia que pôde reunir, ainda que momentaneamente, os auspícios de nosso protagonista.

Vale frisar, por ora, que o único encontro que consegue dar respostas para Block, as

respostas cabais que ele tanto procura, é o encontro definitivo com a Morte. As respostas,

então, despontam como o silêncio impassível das perguntas – a Morte não admite

arguições.

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3.2. Fissõeseconfissões

Block prossegue em sua peregrinação inglória rumo ao vazio. Uma pequena igreja

recebe o cavaleiro e seu escudeiro. O cruzado se depara com o confessionário. “Quero

confessar com sinceridade, mas meu coração está vazio. O vazio é um espelho que se

reflete no meu rosto. Vejo minha própria imagem e sinto repugnância e medo. Pela

indiferença ao próximo, fui rejeitado por Ele. Vivo num mundo assombrado, fechado em

minhas fantasias”.

Primeiramente há a morte do espírito, morte que ocorre após o abandono e a destruição do transcendental. (...) [Então] Vemos nesses giros para dentro de nós mesmos nossas próprias imagens. Elas são espelhos que nos confrontam com imagens que não queremos ver ou enfrentar, e nesse confronto é o nosso próprio eu que mais nos repugna e amedronta. Na redução ontológica de Bergman, não nos é dado um meio de nos distinguir dos outros. (KALIN, 2003, p. 57; p. 14)

É no mínimo curiosa a revelação de que um cavaleiro não se preocupa com o

próximo, de que o outro lhe seja indiferente. “As mentiras brotam em toda parte por entre

os buracos do traje cavaleiresco. A realidade nega continuamente esse ideal. (...) Quanto

mais um ideal de cultura exige virtudes das mais elevadas, maior é a desarmonia entre a

forma de vida e a realidade”. (HUIZINGA, 2010, p. 167; p. 173) De modo arquetípico, o

cruzado é um representante da fé, um estandarte humano para o hasteamento da bandeira da

cristandade. Ora, Antonius Block já não vê sentido para o término de seus dias. A peste

estiola a organicidade medieval, a estruturação do mundo em estamentos claramente

delineados, a organização social em que cada agente sabe a que posição pertence e a quem

deve obedecer ou sobre quem pode mandar, o mundo tão imutável quanto as orações

reiteradas costumeiramente. Já não há imediata correlação entre a fé em Deus e a

contumácia ordeira e regular do cotidiano. Block poderia ser considerado um anteparo para

a falta de sentido crescente que acomete sua época. A dor e a angústia advêm do silêncio

divino que, em escala crescente, revela-se como um completo abandono. Mas eis que um

suposto clérigo desponta no confessionário. Hábito negro, rosto mediado pelo tabique

vazado que permite o transcurso das palavras, mas que dificulta o reconhecimento dos

rostos. (Mal sabe Antonius que a Morte volta a lhe fazer companhia.) O xeque-mate

supostamente foi adiado, mas o jogo letal e a simbologia imagética de Bergman têm

continuação:

45

Com sua configuração quadriculada, sua grade de ferro e as sombras que ela projeta sobre a parede adjacente, a imagem parece um tabuleiro de xadrez. Assim, Bergman constrói o argumento visual de que o jogo continua mesmo quando o cavaleiro pensa que há uma trégua. Também é possível interpretar essa imagem como a amplificação das questões maiores no filme alegórico de Bergman. Em vez de oferecer absolvição, o ritual da confissão é apenas mais um momento no pensamento desesperançado e estrategicamente racional em meio ao qual o cavaleiro se vê emparedado. (LIVINGSTON, 2009, p. 53)

A Morte toma o lugar do clérigo, Bergman e sua simbologia crítica: a morte de

Deus e a degenerescência de Suas instituições.

Pode-se considerar o efeito desse abandono a ‘destruição do transcendental’. Tal expressão é particularmente apropriada às reflexões de Bergman sobre o eclipse e a morte de Deus, a partir das quais o sentido parece fundado em algo para além deste mundo. Mas em todos os casos é justamente o para além de si mesmo que entra em colapso, quer se trate de Deus, do amante ou dos pais, ou até mesmo do próprio mundo. (...) Para além do eu e do mundo não há mais nada confiável, e o significado da vida, nosso sentido de valor e objetivo, mesmo nosso prazer em estarmos vivos, são perdidos em face da tristeza, do ódio, da melancolia, da solidão e da dor. Antes, o sentido estava simplesmente lá; agora, o que nós tínhamos parece para sempre irrecuperável; somos arremessados em direção ao desespero e nosso espírito morre. Como resultado, o mundo se torna silencioso e o horizonte se transforma em um deserto. (KALIN, 2003, p. 6)

Block: É tão inconcebível tentar compreender Deus? Por que Ele se esconde em

promessas e milagres que não vemos? Como podemos ter fé se não temos fé em nós

mesmos?

Block demonstra que não consegue se saciar com o espírito de seu tempo. O

mistério já não lhe traz calmaria, as relações estão ruindo com as feridas da peste. As

perguntas do cavaleiro insistem em encontrar Deus entre os escombros do mundo. Mas Ele

permanece inacessível com os instrumentos de investigação humana. A razão e a empiria só

fazem tatear em círculos.

Block: O que acontecerá com aqueles que não querem ter fé ou não têm? (A

imagem esquálida de um Cristo entristecido secunda a confissão do cavaleiro.) Por que não

posso tirá-Lo de dentro de mim? Por que Ele vive em mim de uma forma humilhante,

apesar de eu amaldiçoá-Lo e tentar tirá-Lo do meu coração? Por que, apesar de Ele ser uma

falsa realidade, eu não consigo ficar livre?

Apenas os descendentes de Block conseguiriam transformar Deus em uma tradição

exterior. Block, um protoniilista, não consegue viver a comunhão social da morte de Deus.

A Baixa Idade Média e suas crises iniciam a desconstrução da organicidade teológica, mas

46

Block simplesmente não sabe o que fazer com o atavismo de um Deus que não consegue

abandonar.

Quando o mundo era cinco séculos mais jovem, tudo o que acontecia na vida era dotado de contornos bem mais nítidos que os de hoje. Entre a dor e a alegria, o infortúnio e a felicidade, a distância parecia maior do que para nós; tudo que o homem vivia ainda possuía aquele teor imediato e absoluto que no mundo de hoje só se observa nos arroubos infantis de felicidade e dor. Cada momento da vida, cada feito era cercado de formas enfáticas e expressivas, realçado pela solenidade de um estilo de vida rígido e perene. Os grandes fatos da vida – o nascimento, o matrimônio, a morte – eram envoltos, por obra dos sacramentos, no esplendor do mistério divino. Mas também os menores – uma viagem, uma tarefa, uma visita – eram acompanhados de mil bênçãos, cerimônias, ditos e convenções. (HUIZINGA, 2010, p. 11)

Deus faz parte de suas orações matinais, do desjejum; Deus antecipa o cálice de

vinho no almoço e no jantar, o Pelo Sinal é feito a cada instante diante das numerosas

capelas. Sem a oração noturna não se dorme em boa consciência. A divindade aparece

como mediação para todos e cada um dos atos que forjam o cotidiano. Como se livrar dela?

Block não o sabe. “Deus deve ser palpável, definitivo, reconhecível como uma pessoa,

alguém que responde às questões e pode se mostrar factível. Talvez Block seja muito

científico, ou talvez simplesmente educado e moderno”. (KALIN, 2003, p. 59) O cavaleiro

só faz sentir Deus como um fardo do qual não se livra sem que a culpa o faça naufragar.

Mas, na verdade, o protoniilismo de Block só faz patinar. Ainda não há os novos deuses da

modernidade. O altar de Block ainda é monoteísta. A humanidade, o socialismo, a ciência e

o sexo ainda estavam longe de destronar o antigo Deus da Capela Sistina que nosso

cavaleiro insiste em perscrutar.

Uma tensão entre dois polos espirituais é quase inconcebível para o espírito moderno. Isso é possível para os medievais, pois existe um dualismo absoluto entre o mundo pecador e o reino de Deus. No espírito medieval, todos os sentimentos mais puros e elevados foram absorvidos na religião, enquanto os impulsos sensuais e naturais, que eram conscientemente rejeitados, tiveram de se rebaixar ao nível das coisas mundanas pecaminosas. Na consciência medieval formam-se, lado a lado, duas concepções de vida: a visão ascética, que se apropria de todas as concepções éticas, e a mentalidade mundana, completamente deixada ao diabo, que se vinga terrivelmente. Se uma das duas predomina completamente, então surge o santo ou o pecador irrefreado; mas em geral elas se mantêm num equilíbrio instável, com enormes variações da balança. (HUIZINGA, 2010, pp. 292-293)

Block: Quero conhecimento, não fé ou presunção. Quero que Deus estenda as mãos

para mim, que mostre Seu rosto, que fale comigo. Mas Ele fica em silêncio. Eu O chamo no

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escuro, mas parece que ninguém me ouve. “O abandono não é algo que apenas acontece e

depois abandona nossas vidas, uma febre ou um corte que se curam”. (KALIN, 2003, p. 8)

Block quer a reedição da aparição de Cristo para o apóstolo Paulo, então Saulo, em

Damasco. Mas, e agora fala a Morte momentaneamente sob a batina clerical, “talvez não

haja ninguém”. Neste momento, parece-me interessante pensar no caráter dúbio da Morte

n’O sétimo selo. Suponhamos que a Morte seja uma mera visão do cavaleiro, uma visão

que não tem concretude alguma. Se pensarmos de tal maneira, ainda assim não

conseguiremos eliminar o encontro derradeiro com a Morte para todas e cada uma das

personagens. Vale lembrar, também, que Block não é o único que consegue ver a Morte.

Em uma cena que analisaremos posteriormente, descobriremos que também Jof sente a

Morte como uma entidade tangível e visível. Por sinal, tal visão acaba por alterar o destino

do artista mambembe e de sua família. Por ora, no entanto, sublinhemos o caráter dúbio da

Morte ora como entidade tangível, ora como projeção da consciência dolorosa do cavaleiro.

Se, no monólogo dialogado em questão, ao longo do qual a Morte clerical ausculta a

confissão do cavaleiro, entrevirmos a Morte como uma projeção de Block, encontraremos

um dos caminhos possíveis para um intelectual medieval que queira se livrar do fardo

teológico atávico que já não lhe traz explicações contumazes e, sobretudo, tranquilidade

adaptada: a morte. Quando a Morte replica a Block que talvez não haja ninguém no plano

divino pelo qual o cruzado tanto anseia, podemos apreender um veio de rompimento da

angústia. O silêncio de Deus transforma-se em silêncio após a morte. A Morte, nesse

sentido, é a única figura dúbia e inquestionável para Block. Dúbia, porque o próprio

cavaleiro admite que vive “num mundo assombrado, fechado em minhas fantasias”.

Inquestionável não apenas porque a Morte virá, mas porque ela se transforma em

depositária de todas as aflições insolúveis do cruzado. Se, ao fim e ao cabo, não houver

qualquer escapatória, se não houver respostas, a Morte se confunde com o silêncio e já não

haverá mais perguntas. O conhecimento não mais sofre por se considerar presunçoso. O

conhecimento silencia o cavaleiro por se confundir com o próprio silêncio.

Block: Temos de imaginar como é o medo e chamar esta imagem de Deus.

A poesia de Bergman funde e transfigura o sentido das imagens. O Velho

Testamento é pródigo na utilização da expressão temente a Deus como a relação do fiel

com a divindade. Afinal, o Deus do dilúvio e o Deus contra Sodoma e Gomorra bem

48

souberam mostrar a irrupção do som e da fúria contra a criação. Mas, naquele momento,

Deus se fazia sempre presente, Sua onipresença não era apenas pressentida, mas sentida

como intromissão objetiva no transcurso dos acontecimentos. A poética do cavaleiro

transforma o medo em relação a Deus, já que a atividade divina não se faz mais presente.

Em Sua ausência, Deus não mais impinge medo, pois o medo pressupõe a afronta, a

ameaça. Deus se confunde com o próprio medo, com o abandono, com a falta de respostas

e de consolo.

Block: Minha vida tem sido de eternas buscas, caçadas, atos, conversas sem sentido

ou ligações. Uma vida sem sentido. Não falo isto com amargura ou reprovação como fazem

as pessoas que vivem assim. Quero usar o pouco tempo que tenho para fazer algo bom.

Nós podemos escapar nos distanciando e nos voltando para nós mesmos. Mas quando nos vemos como os outros, tão feios e repulsivos quanto os demais, não há escapatória, não há para onde ir; podemos apenas reprimir este conhecimento, fustigar a nós mesmos e aos demais em ódio pelo que somos, ou então podemos nos envergonhar, podemos nos tornar responsáveis e iniciar uma mudança. (...) Ao nos depararmos com nossa morte, nos é dada a oportunidade de olharmos honestamente para nós mesmos, com uma luz clara e irredimível, e ver quem nós realmente somos. (...) Além de um sentido de vergonha ou embaraço pelo que somos, deve haver de alguma forma uma visão de como poderíamos ser. (...) Este retrato essencial (...) deve mostrar não apenas o que podemos ser agora neste momento particular ou nesta situação particular, mas também o que falhamos em ser e em que ainda podemos nos tornar. (...) O único recurso que temos é aquilo que carregamos conosco – nossa própria capacidade de amar e confortar. (KALIN, 2003, p. 17; p. 3; p. 21; p. 1; p. 15)

Veremos, na sequência de nossa análise, que o cavaleiro experimentará a bondade

dos morangos ao leite e também terá a oportunidade de salvar a família de Jof da morte

iminente. Por ora, frisemos que já existe, nesta última colocação de Block, uma clivagem

entre o conhecimento sobre o transcendente e as ações éticas que, de modo precípuo, se

baseiam na herança cristã do exercício do amor. Enquanto o cavaleiro indaga e se indaga,

não há meios de aplacar suas aflições. O caminho das perguntas se mostra tautológico e, no

limite, autofágico. Mas reparemos na assertividade com que Block afirma o ímpeto por

fazer o bem. Nesse caso, as pernas trêmulas deixam de hesitar, é preciso agir, a ação ética

se confunde com os escombros de Deus.

Em meio à total fragilidade, devemos encontrar algo para oferecer uns aos outros, ainda que se trate apenas de nossa humilhação compartilhada e do conforto de não estarmos sós. Em tais condições de desespero, ainda é possível se envergonhar em relação ao modo como tratamos os demais e ser tocado pelo pensamento de algo melhor. (KALIN, 2003, p. 20)

49

3.3. BreveexcursosobreJöns,oescudeiro

Dom Quixote de La Mancha, o cavaleiro que, para acreditar no sonho de

permanência dos valores nobres e cavalheirescos em face do mundo medieval em erosão,

duplica o próprio sonho e cria uma realidade ainda mais ficcional para tornar o primeiro

sonho menos incrível que o segundo contra o qual tanto luta: a altivez insólita e sempre

ausente dos moinhos de vento. Diante da espada sem adversários do cavaleiro de La

Mancha, Sancho, o escudeiro, põe sempre os pés no chão. É Sancho quem tenta advertir

Quixote sobre a índole mundana de Dulcinéia, a cortesã que o cavaleiro insiste em

confundir com uma princesa. Enquanto Quixote devaneia, Sancho age.

As aventuras e desventuras do fidalgo espanhol ao lado de seu escudeiro pragmático

nos remetem às relações entre Antonius Block e Jöns. Block, o protótipo escandinavo do

cavaleiro de La Mancha. “Tudo o que acontece em O sétimo selo é iluminado ou

obscurecido, conforme o caso, pelo diálogo moral das duas principais personagens: o

cavaleiro e seu escudeiro”. (YOUNG, 2000, pp. 153-154) Jöns e Sancho têm o mesmo

senso mundano, vale dizer, o mesmo enraizamento telúrico em face das situações que

enfrentam com sentido prático.

Como nossa análise vem demonstrando, Block tem dificuldade para agir em face da

vacuidade filosófico-teológica que tanto mina sua fé. O cavaleiro chega até mesmo ao

ponto de apreender a divindade como um fardo obsoleto do qual, entretanto, não consegue

se livrar. Jöns também sente os dilemas de Block. Mas enquanto o cavaleiro ainda ora aos

céus, o escudeiro tem os pés bem firmes sobre o chão. Tais colocações poderiam sugerir

que Jöns é um daqueles resignados que, no limite, não apreendem a tragédia que

acompanha a corrosão dos valores tradicionais. Mas, na verdade, Jöns, em grande medida,

pode ser tido como o verdadeiro cavaleiro. Não se trata de dizer que Block não consegue

fazer o bem. Como veremos, o cruzado se aproxima da herança benéfica de Deus ao

ludibriar a Morte e salvar a família mambembe de Jof. Sucede que Jöns, por sua vez, aceita

a impossibilidade das respostas em face da ausência de Deus e atua no mundo sem um

sentido maior que o resguarde, como se das próprias ações despontasse um veio de sentido

não mais transcendente, mas temporalmente imanente. Como se, por conta da “redução de

Bergman”, fôssemos “essencialmente itinerantes e desenraizados” (KALIN, 2003, p. 15),

50

vale dizer, como se o bem precisasse de constante guarida, de permanente reparo, assim

como os seres volúveis e contraditórios que tentam exercê-lo e muitas vezes dele se

afastam.

Block não pode aceitar o secularismo cínico de seu escudeiro Jöns, que vê Deus apenas como uma imagem feita para mascarar o vazio da vida e nosso medo da morte, o amor como mero sexo, e nossa fragilidade como nosso único consolo. Um mundo em que essas são as únicas alternativas é de fato desumano e insuportável – um mundo sem Deus –, então Block continua em sua busca, jogando xadrez para ganhar mais tempo, para encontrar suas respostas. (KALIN, 2003, p. 59)

“A ausência de Deus é articulada como algo mais forte do que uma mera proposição

filosófica negativa. Não se trata de um ateísmo otimista e robusto a tomar o lugar da fé.

Trata-se da articulação de Jöns da completa falta de sentido”. (GIBSON, 1969, p. 23) Neste

momento, nossa análise distancia-se do pensamento de Jesse Kalin e Arthur Gibson, já que

não concordamos com a afirmação de que Jöns vivencia apenas um secularismo cínico e a

completa falta de sentido. Há, de fato, uma forte dose de ironia na postura de Jöns em face

do mundo medieval em ruínas. Mas que se poderia esperar da vida além de uma ironia

objetiva em face do silêncio de Deus? O caráter objetivo da ironia liga-se ao esfacelamento

da organicidade medieval. No entanto, enquanto Block tenta apreender Deus com sua razão

aporética, o escudeiro Jöns, munido das mesmas aporias, afirma o mundo como se

entrevisse a paz entre os escombros. A afirmação fugaz não se liga univocamente à

dubiedade moral do escudeiro. Trata-se da impossibilidade de vivenciar Deus como um

todo, o bem como a síntese efetiva da vida. Se Jöns consegue tornar tátil a alegria em seus

encontros com as cortesãs ou por meio de uma cantoria estridente, por que não dizer que

ele apresenta uma tênue receita de bem-viver em meio ao caos impassível que já não sente

a presença da divindade? Assim, o heroísmo de Block, como diremos adiante, acaba sendo

invalidado pragmaticamente tal como ocorre com o cinismo de Jöns. Ambos sucumbirão

diante da morte. Mas se Bergman postula a vida como um corredor premido entre o

nascimento e o ocaso, não seria possível entender a atitude de Jöns como uma síntese entre

o teólogo emparedado e o pragmático sem consciência? O escudeiro tem o refinamento

racional de Block, mas pisa sobre a mesma terra que o artista Jof tanto admira.

Na mesma igrejinha em que Block faz sua confissão para a Morte, Jöns se depara

com um pintor que ilustra a escatologia da peste em um mural.

51

Em todo o decorrer da Idade Média, a Igreja meditou sobre o fim da história humana (...). Há unanimidade entre os historiadores em considerar que se produziu na Europa, a partir do século XIV, um reforço e uma difusão mais ampla do temor dos derradeiros tempos. (...) No Outono da Idade Média, escrevia [Johan] Huizinga, o sentimento geral é de que a ‘a aniquilação universal se aproxima’. (DELUMEAU, 2010, pp. 303-304)

Rostos dilacerados, uma completa balbúrdia de corpos entrelaçados, rostos em

súplica, gritos, prostrações, orações em vão. “Veja como as pessoas ficam com o pescoço

inchado. O corpo fica todo contraído e os membros, amolecidos. (...) A pessoa tenta se

livrar do inchaço. Morde as mãos e arranca as veias com as unhas. Seus gritos são ouvidos

de longe”. Enquanto o firmamento permanece impassível, a terra se faz repleta de gritos e

gemidos, choro e ranger de dentes. “É incrível, mas as pessoas acham que a peste é um

castigo de Deus. E aquelas que se consideram escravas do pecado se flagelam pela Glória

de Deus”. Diante da implosão dos valores medievais, Deus não mais desponta como a

entidade orgânica que paira sobre o mundo de modo benévolo. Deus volta a ser a ira, a

cólera, os fiéis voltam a temer univocamente a Deus. É como se, no contexto em questão,

não houvesse outra possibilidade de vínculo com a divindade a não ser como efetiva

negatividade. Não um Deus com atributos harmônicos, mas um Deus que se confunde com

a própria punição. Se levarmos às últimas consequências a colocação do pintor,

descobriremos que a Morte, ente sobrenatural que só Block e, no limite, Jof conseguem

entrever, tranforma-se em instância divina. Afinal de contas, há algo mais cruel do que

assistir ao próprio perecimento? O pintor e Jöns desvelam o caráter transcendente da Morte.

Mas, vale frisar, trata-se de uma transcendência negativa, isto é, o além-mundo apresenta-se

não como possibilidade, mas como privação, como término. Os fiéis continuam a invocar

Deus como centralidade dos fenômenos, a peste é um castigo para os pecadores, mas a

divindade não mais se configura como a bondade que paira e em quase nada se distingue de

sua serviçal, a Morte.

Jöns: Eu e meu senhor acabamos de voltar [de uma cruzada]. Você me entende,

pintor? Passamos dez anos na Terra Sagrada sendo mordidos por cobras, mosquitos e

animais selvagens, assassinados por pagãos, envenenados pelo vinho, infestados por

piolhos que nos devoravam, pela febre que nos matava. Tudo pela Glória de Deus. A

cruzada foi uma tolice que só um idealista inventaria. (...) Sou o escudeiro Jöns. Desprezo a

morte, zombo de Deus, rio de mim mesmo e sorrio para as mulheres. Meu mundo é meu, e

52

só acredito em mim mesmo. Ridículo para todos, até para mim mesmo, sem sentido para o

céu e indiferente para o inferno.

Jöns demonstra um apego escorregadio pelo mundo que destoa da dúvida

angustiada de Block e do medo dos fiéis. Como se Jöns só confiasse naquilo que seus olhos

pudessem tocar. A morte virá de qualquer forma, então o escudeiro a despreza. Deus não

responde às nossas preces; sendo assim, zombar da divindade equivale a rir de nós mesmos,

já que não é possível levar-se tão a sério sem as devidas respostas. Qual seria o elemento de

tênue fixidez senão as mulheres, o prazer? Quando afirma que seu mundo é só seu,

poderíamos pensar que se trata de um completo solipsista, um egoísta para quem o outro é

um mero instrumento. Mas o escudeiro leva a sério a zombaria sobre si mesmo. O mero

prazer e o egoísmo se desfazem quando é preciso afirmar o fio exíguo de vida premido

entre a indiferença do céu e do inferno. Que ocorre quando Jöns se depara com a maldade?

Enquanto Block só faz sofrer pela presença do mal no mundo, Jöns procura impedir a

tragédia objetivamente. Eis que o escudeiro reencontra Raval, antigo teólogo outrora

consagrado. Em que circunstâncias se dá o reencontro? Jöns entra em um casebre

abandonado e encontra Raval roubando e quase cometendo um estupro.

Raval: Eu roubo dos mortos. É muito lucrativo hoje em dia. Não adianta correr e

pedir ajuda. Cada um cuida da própria vida. É muito simples. Não adianta gritar. Nem

mesmo Deus irá ouvi-la. Não é surpreendente?

Raval revisita a Queda. Diante do mal efetivo, o escudeiro Jöns tem a legítima

atitude que se espera de um cavaleiro. Jöns impede Raval de cometer o ato vil e adverte o

antigo teólogo de que se ambos voltassem a se encontrar, a reprimenda não seria apenas

moral, mas concreta. O crime seria punido com um severo castigo. Diante do porte

hercúleo de Jöns, o ladrão e protoestuprador Raval não tem outra alternativa senão

aquiescer. Após a fuga de Raval, Jöns e a mocinha quase violada ficam a sós. O desejo do

cavaleiro é patente, mas Jöns é digno, vale dizer, ético. Diz à jovem solitária que poderia tê-

la ali, naquele instante, se assim o quisesse, mas não nutre o mau hábito de tomar mulheres

à força. O desdobramento imediatamente posterior da cena mostra um Jöns sequioso a dar

um beijo sem mais na jovem. A bela se esquiva, mas logo se vê atraída pela proposta de

acompanhar o escudeiro naquele instante. Não podemos dizer que o caráter vívido de Jöns

o resguarda do silêncio que tanto faz Block padecer. Também não podemos dizer que Jöns

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é um insciente como Jof e Mia. Jöns apreende a mesma vacuidade que acomete Block. No

entanto, Jöns simplesmente não se sente emparedado a ponto de não poder mais agir.

Block e Jöns, o cavaleiro e o escudeiro, chegam à mesma encruzilhada.

Etimologicamente, a cruz encravada em meio à encruzilhada nos remete à noção de crise

daquele que simplesmente não pode caminhar adiante. Pois logo deduzimos que Block e

Jöns seguem caminhos diametralmente opostos. Block é um homem do pensamento, da

dúvida. Jöns é um homem de ação. Jöns aceita os limites do pensamento sem deixar de

pensar. A desrazão só faz prostrar Antonius de joelhos. Assim, podemos entender Antonius

Block como o fiel depositário do sentido instável de sua época, enquanto Jöns pode ser lido

como a permanência da ação positiva entre os cacos de um mundo em ruínas.

Podemos dizer que a repulsa em relação ao mundo e a nós mesmos se transforma

em vergonha quando se junta ao reconhecimento de nossa própria falha. Sentir vergonha de

nós mesmos significa ver que agimos de forma miserável e perceber que poderíamos ter

feito algo melhor. “Embora nós sempre confundamos vergonha e culpa – e ambas estão

profundamente interrelacionadas na obra de Bergman –, há uma sutil diferença entre elas”.

(KALIN, 2003, p. 18)

A vergonha nos leva além da obrigação e da lei para o valor, e isso inclui uma referência implícita a um padrão inacessível, a um melhor tipo de pessoa. (...) O ponto, agora, não se refere apenas a não ofender o próximo, mas a fazer algo melhor para ajudá-lo. A vergonha, assim, projeta um ideal do que deveria ser, de algo a ser procurado e alcançado porque é reconhecidamente melhor e necessário, algo sempre além de qualquer lista de proibições. Inerente à vergonha é a comparação entre nosso estado atual e a imagem de nós mesmos do modo como deveríamos ser. (KALIN, 2003, p. 18)

Vemos que o agraciado Jöns introjeta um princípio de evolução imanente que

dialoga de forma rente com o movimento da vergonha diante de um mundo em que o eu

não mais encontra respostas. Veremos mais adiante que Block também agirá de acordo com

a feitura efetiva do bem, suplantando assim, ainda que momentaneamente, a busca do

sistema teológico pelo enraizamento efetivo (e volúvel) de Deus. De qualquer modo, a

imagem de Kalin é muito importante: o decálogo de Moisés, em face do sistema teológico

em erosão, só permite o oferecimento da outra face entre os escombros da religião e de

Deus. O sentido da evolução permanece com a percepção de que o eu não se constitui sem

o outro, de que a lei não consegue transfigurar o âmbito moral, de que a moral não pode se

transfigurar em função de coações. “Não matarás” não aniquila o ímpeto pelo assassinato.

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Ao ver de Kalin, apenas a elevação da consciência, em meio ao movimento de superação

próprio à vergonha do eu sempre relacional ao outro, pode, em diálogo com as personagens

de Bergman, estruturar as bases para uma nova vivência para além dos fragmentos da

antiga teologia.

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3.4. Oprenúnciodaúltimaceia

Antes de analisarmos o único momento de verdadeira comunhão que o cavaleiro

vivencia ao longo d’O sétimo selo, é importante apresentarmos dois outros aspectos: (i)

ainda uma vez, é a arte quem consegue apreender a presença da Morte ao lado de Antonius

Block; (ii) a fé como o crime e o castigo.

A companhia teatral de Jof apresenta-se em um palco via de regra improvisado. Que

canção a peça ressoa? “Alguém de negro corre na praia”. “O teatro religioso contribuiu por

sua vez para difundir o temor ao Anticristo e ao Juízo Final, porque as representações

tinham lugar diante de multidões consideráveis e mobilizavam um número importante de

atores”. (DELUMEAU, 2010, p. 320) Quem veste a capa negra senão a Morte? Neste

momento, se levarmos às últimas consequências a noção de que a Morte pode ser uma

fantasia, o próprio cavaleiro é envolvido pela peça e, assim, toda a história d’O sétimo selo

aponta para um caráter teatral e metalinguístico, vale dizer, a fantasia de Antonius Block

estaria contida em uma outra fantasia maior, a encenação do filme como um todo. Ao lado

do cavaleiro, apenas Jof e a peça conseguem entrever a companhia da Morte. “Alguém de

negro permanece na praia”. Como se a arte fosse uma esfera não de todo permeável à razão,

de modo que ela conseguisse captar, por conta da imaginação, outros sentidos vedados

àqueles que só fazem viver a existência mais enraizada no cotidiano.

A fé como o crime e o castigo. Um clérigo e sua procissão irrompem e interrompem

a apresentação da companhia de Jof. “Em tempos de medo, e esses eram frequentes, havia

procissões diárias, semana após semana (...) No fim da Idade Média, torna-se crônico o

sentimento de insegurança. O medo que, a cada crise, exigia das autoridades um reinado de

terror”. (HUIZINGA, 2010, p. 13 e p. 33)

Clérigo: Deus mandou seu enviado. Silêncio. Todos padeceremos com a Morte

Negra.

A fé desponta como o castigo diante do crime, a punição em face do pecado.

A extraordinária importância atribuída na época ao tema do Juízo Final e aos cataclismos que deviam precedê-lo (...) explica-se por uma teologia do Deus terrível, reforçada pelas desgraças em cadeia que se abateram sobre o Ocidente a partir da peste negra. A ideia de que a divindade pune os homens culpados é sem dúvida tão velha quanto a civilização. Mas está particularmente presente no discurso religioso do Antigo Testamento. Os homens de Igreja, aguilhoados por acontecimentos trágicos, estiveram mais do que nunca inclinados a isolá-la nos

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textos sagrados e a apresentá-la às multidões inquietas como a explicação última que não se pode colocar em dúvida. De modo que a relação entre crime e castigo divino – já neste mundo – tornou-se uma evidência para a mentalidade ocidental. (DELUMEAU, 2010, p. 335)

Quando o sentido do sermão se esboroa, restam o látego e a iminência da dor. É

preciso conter a horda dispersa. A Igreja, assim, transparece como a única instituição

monolítica em meio à desagregação medieval. Vejamos como as basílicas construídas sobre

a pedra primordial de Pedro agem diante dos fiéis em polvorosa.

Clérigo: Você aí, parado como um animal bovino, e você, sentado com este ar de

complacência. Sabem que este pode ser o fim de todos? A morte está atrás de vocês. Posso

ver sua sombra refletida contra o sol. Sua foice brilha quando a morte a levanta sobre suas

cabeças. Quem será o primeiro a morrer? Você aí, olhando feito um tolo, sua boca emitirá o

último gemido antes do anoitecer. E você, mulher, que leva uma vida de abundância e

luxúria! Você irá murchar e desaparecer antes do amanhecer. E você aí, com seu nariz

inchado e seu sorriso de idiota! Você tem mais um ano para desgraçar a terra com seu

desprezo. Todos vocês, idiotas e tolos, sabem que morrerão! Hoje, amanhã ou depois de

amanhã! Estão todos condenados! Vocês ouviram? Condenados!

A Igreja não possuía apenas o monopólio da interpretação bíblica. A Igreja possuía

também o monopólio do mistério. A multidão se cala diante do clérigo que sabe tão pouco

quanto os fiéis temerosos. Mas os pecadores oram segundo o costume que se ajoelha diante

da fé que se confunde com a autoridade.

O povo costumava viver na rotina de uma religião totalmente exteriorizada, com uma fé muito firme que engendrava medos e terrores, mas não impunha aos ignorantes perguntas ou conflitos espirituais (...). Por volta do fim do período medieval, à palavra do pregador juntou-se uma nova forma de representação: a gravura em madeira, que encontrou o seu caminho em todos os círculos da sociedade. Esses dois meios de expressão de massa, a pregação e a gravura, podiam reproduzir a ideia da morte como um conceito muito simples, direto e real, de forma nítida e violenta. (HUIZINGA, 2010, p. 287; p. 221)

Entrevemos, neste momento, uma forte crítica ao caráter autoritário e violento da fé

católica. Onde está o amor ao próximo diante dos insultos que o clérigo arremessa contra os

fiéis?

Não julgue, e não será julgado. Porque do mesmo modo que julgar, será também julgado e, com a medida com que tiver medido, também você será medido. Por que olha a palha que está no olho do seu irmão e não vê a trave que está no seu

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próprio? Como ousa dizer a seu irmão: Deixe-me tirar a palha do seu olho, quando tem uma trave no seu próprio? Hipócrita! Tire primeiro a trave do seu próprio olho e assim verá para tirar a palha do olho do seu irmão. (MATEUS, 7, 1-5)

Bergman nos mostra quão pouco cristã havia se tornado a coesão imposta pela

Igreja. Os fiéis não creem porque é absurdo; eles creem porque têm medo. O credo

primeiramente se confunde com o rito vazio, uma repetição exterior. Quando o mundo

medieval obscurecido já não consegue confundir o cotidiano com o eterno ontem, a

fogueira deve entrar em ebulição.

O cavaleiro Antonius Block só faz perguntar. A Igreja sentencia as respostas

legítimas. Quando contrastamos a angústia do cavaleiro com a truculência do clérigo,

desvelamos o caráter eminentemente positivo da dúvida de Block. A angústia da dúvida o

consome, é bem verdade, o cavaleiro tenta suprimi-la, chega mesmo a compartilhá-la com a

Morte, mas em nenhum momento o cruzado arremessa contra o outro as chagas que tanto o

acometem. Assim, em contraste com a truculência do clérigo, é chegado o momento – e não

mais do que o momento – de Antonius Block caminhar pela vereda exígua da redenção.

Que os morangos silvestres o façam encontrar a paz entre os escombros, já que, em cenas

como essas, parece haver “uma serenidade e calma que sugerem completude e suficiência”.

(KALIN, 2003, p. 25).

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3.5. AúltimaceiacomoirrupçãodaGraça

No Princípio eram os morangos. Morangos ao leite, morangos silvestres. Um oásis

em meio à tragédia d'O sétimo selo. Antonius Block, o cruzado que só faz questionar o

silêncio de Deus, viverá uma epifania ao lado da família de artistas mambembes: Jof, Mia e

o pequeno Mikael. Eis a irrupção da Graça.

As personagens veem quem são e onde estão e compreendem que alguma medida de vida e amor ainda é possível para elas. Tudo isso é difícil de ser descoberto, ainda mais difícil de ser mantido, e não há garantia nenhuma de que possa durar, mas a esperança encontrada, mesmo que seja silenciosa ou apenas temporária, nunca parece vazia. (KALIN, 2003, p. XIV)

Mas a Morte pálida e iminente é a expectadora de tal comunhão essencial que, a

despeito de sua beleza e positividade, já não consegue reconciliar o silêncio de Deus com o

mundo repleto de gritos e sussurros.

* * *

A velha ilusão da vida bucólica ainda irradiava uma promessa de felicidade natural (...). Parecia que era possível libertar-se sem lutar, mediante uma fuga para longe da rivalidade cheia de ódio e de inveja por honras vãs e status social, para longe do luxo e da pompa opressivos e exagerados, longe da guerra cruel e perigosa. (HUIZINGA, 2010, pp. 207-208)

Deitado sobre a relva, diante do tabuleiro, Block estuda o próximo movimento para

prolongar a ilusão de que pode ludibriar a Morte. Súbito, espreita o horizonte e entrevê uma

alegria que seu corpo não mais pode abraçar. A uma distância visível, mas não vivenciável,

Block vê Mia e seu bebê Mikael rolando pela grama, felizes. Atraído pelos sorrisos que

parecem lhe prometer um oásis, Block se aproxima e afaga o bebê com um elogio que só

Mia soube auscultar. Como se ela sentisse, sem poder entender, a dor do cavaleiro. (A

máscara da caveira, onipresença da Morte, não deixa de espreitar as personagens e os

espectadores.) Tem início um diálogo inusitado em que os gestos silenciosos revelam tanto

quanto as palavras veladas. Mia tem o colo nu, é bela, desejável. Mia ampara o bebê, é

bela, maternal. Block sente o fluxo de tal contradição.

Block: [Você] Está mais bonita sem maquiagem e com este vestido.

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Mia, entretanto, quer saber por que o cavaleiro sofre, mas a angústia existencial de

Block não pode ser comunicada a alguém que vive essencialmente. Mia sorri, abraça

Mikael. A mãe e o cavaleiro discutem brevemente sobre o futuro do bebê. Segundo Mia, o

papai Jof quer que Mikael se torne um acrobata. Mas, talvez, ele possa se tornar um

cavaleiro. O semblante de Block se faz mais melancólico. "Talvez ele não seja um

cavaleiro muito bom". Como se, de acrobata a cavaleiro, a vida perdesse sua inconsciência

sobre a dor do mundo. Antonius projeta sobre o pequeno Mikael seu próprio labirinto.

Mia: [Você] não parece feliz.

Mia não pensa, intui. Mia só faz sentir o nascer do sol cálido, ela ouve os pássaros e

traz o marido ausente para a conversa com o ávido cavaleiro, cuja longa cruzada há muito

não lhe trazia o calor da intimidade. Jof, marido de Mia, artista que também vê o

sobrenatural, agora faz companhia à tríade inicial.

Mia: Você viaja só? Quem é sua companhia?

Block diz não estar bem acompanhado. Mas não se trata do fiel escudeiro. Trata-se

da Morte, do eu, da morte iminente do próprio eu. Quem dera Block caminhasse ao lado da

inconsciência da família mambembe. É como se o cavaleiro fosse um filósofo que indaga a

todo momento sobre o sentido da vida sem jamais obter as respostas. A felicidade alheia

apenas sorri porque não gira sobre e para dentro de si mesma. A princípio, a felicidade da

família exacerba o sofrimento de Block. Há quanto tempo o cavaleiro não vê a amada de

que quase já não se lembra? Por que eles têm a felicidade que não acolhe Antonius?

Quando Mia quer saber por que as pessoas se atormentam, sabemos que a inconsciência

inocente a protege da dor dos questionamentos. Deus, ainda que silencioso, parece desvelar

os eleitos. Segundo Pondé2, a noção medieval de Graça não se relaciona às obras que um

fiel venha a fazer. Em Sua onipotência, Deus é quem provê; cabe ao homem a felicidade da

dádiva ou a angústia da solidão. Ao longo de todo o filme, Block experimenta a dor de não

ser um agraciado. Assim, a felicidade de Jof, Mia e Mikael poderia desestruturar

completamente sua alma já tão dilacerada. Mas a sequência da cena apresenta um corte que,

a meu ver, pode trazer à tona uma relação outra com a divindade.

                                                            2 Aula de Filosofia da Religião e Cinema do Programa de Pós-Graduação da PUC/SP em Ciências da Religião ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé no dia 06 de março de 2011.

60

Para afagar Block, a família mambembe, bem ao estilo medieval, oferece ao

cruzado seus frutos mais tenros: leite e morangos silvestres. Morangos colhidos por Mia, a

fonte de onde jorra seu amor. Eis a piedade cristã: ainda que se corte a própria carne,

compartilha-se com o próximo o pouco que se tem. A princípio, Block parece não acreditar.

Seu semblante só faz ressoar a pergunta: mas de onde vem essa felicidade com as coisas

mesmas? Como podem ser felizes sem os vários questionamentos? Por que a dúvida não os

fustiga? Enquanto Block tenta apreender o momento inefável em sua cadeia perpétua de

perguntas, Mia o afaga com uma tigela de leite repleta de simbologia. A comunhão da

partilha. O leite, veio maternal da vida, é oferecido ao cético cavaleiro como um convite à

última ceia. Antonius já não questiona, sorri; Block já não duvida, sorve o leite. O mundo,

ainda que momentaneamente, volta a ser ungido por um sentido que antes lhe escapava. Os

morangos silvestres regados pelo mais puro leite despontam, ainda que momentaneamente,

como laços etéreos de comunhão.

Os estudiosos de Bergman estabelecem, constantemente, uma relação entre a cena em questão e o conceito de comunhão. Trata-se da comunhão do amor ágape. Os primeiros cristãos usam tal expressão grega, que significa celebração, refeição conjunta, para se referirem aos encontros que realizavam. Cada um trazia um pouco de comida que, então, era compartilhada. Eles partilhavam o pão como se fazia no início do cristianismo, como Jesus o fez na última ceia. Todos viviam juntos; eles não só partilhavam a comida, como também moravam juntos, e a partir daí surgiram as comunidades religiosas. No cristianismo, a comunhão se transforma em amor. A comunhão acaba sendo usada pelos primeiros cristãos para descrever o afeto que une as pessoas3.

Block parece estar em um interstício. Ainda não relegou a armadura da descrença e

do abandono, mas já não consegue se desvencilhar de uma alegria que há muito não o

acalentava. “Em sua busca, Block está imitando Cristo na cruz, solitário, esperando por

alguma resposta transcendental. (...) [Mas] após a cruz há apenas o carinho de Maria e das

três mulheres na tumba, não uma voz vinda dos céus”. (KALIN, 20003, p. 62) O semblante

do cavaleiro já é outro. A comunhão desvela a Graça. “Todos parecem amar a vida (...),

aceitando-a incondicionalmente com os olhos bem abertos e celebrando a Graça que muito

freqüentemente está perdida ou escondida”. (KALIN, 2003, p. XV) Bergman é um cineasta

que fala de sofrimento, abandono, carência e desespero, mas em meio a toda essa dor

desponta uma certa alegria, o reconhecimento da beleza no mundo. O leite como uma                                                             3 Aula do curso Escandinávia: Filosofia e Cinema - A geografia da alma em Sören Kierkegaard, Lars Von Trier e Ingmar Bergman ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé, em Estocolmo, no dia 20 de junho de 2011.

61

centelha divina. O mundo agora parece acolher o cruzado. A fluidez do leite dilui as

questões. Para Bergman, é possível experimentar a Graça pela vida, em uma refeição. É

possível também experimentar a Graça na capacidade que temos de recuperar o sentido da

vida e de suas relações. Antes, o cavaleiro precisava desembainhar a espada em nome da

cristandade. Agora, o Cristo parece reencarnado na bondade frugal que todos vivenciam em

comunhão. "Pois onde dois ou três estiverem em meu nome, ali estou eu no meio deles".

(MATEUS, 18, 20)

O encontro do significado n'O Sétimo Selo aparece como uma Graça, como algo muito raro e acolhido por momentos muito especiais que despontam do convívio entre as pessoas. Nesse sentido, Bergman é quase um humanista. O humanismo do cineasta não se relaciona a uma visão irênica e idílica do ser humano, mas à percepção da capacidade de encontro, convívio e comunhão, no sentido próprio da palavra eucaristia. É na possibilidade de comunhão que desponta o sentido, e não quando se tenta apreendê-lo com perguntas. As questões não conseguem fazer o sentido emergir. Ele aparece na comunhão entre as pessoas4.

No princípio, há um silêncio que se mantém para provar que Deus não existe. No fim, há um silêncio ainda mais terrível que se revela como o verdadeiro silêncio de Deus. O Deus imaginado como inexistente porque o silêncio revela sua face como o último bastião da liberdade humana, um Deus cujo encontro com o homem se torna imanente e encarnado. (...) Deus está lá? E a resposta final ressoa: não, agora Ele está aqui! (GIBSON, 1969, p. 13; p. 14)

E eis que a fluidez do leite junta-se aos tenros morangos silvestres. Uma nova tigela,

a mesma comunhão. Morangos silvestres, morangos naturais, recém colhidos de um mundo

que há pouco só fazia oprimir o cavaleiro; mundo que, em sua imanência, agora desvela a

transcendência da Graça. Transcendência imanente: são os gestos de Mia, Jof e Mikael que

religam Block à experiência do mundo. “Necessitamos uns dos outros, necessitamos nos

voltar para o outro e, por meio dele ou dela, de voltarmos para nós mesmos. (...) Assim nos

movemos perpetuamente, nos aproximando ou nos distanciando, incapacitados de escapar

da nossa necessidade de envolvimento mútuo”. (KALIN, 20003, p. 12) “Mas se o ser

humano que busca se sente frustrado em sua relação com Deus, onde ele encontrará a cura

para sua solidão? Sua única opção é procurar seus companheiros mortais para algum tipo de

união fraterna e redentora”. (GIBSON, 1969, p. 33)

O morango ao leite pode ser entendido como uma manifestação de Deus, apesar de ser uma manifestação imanente, caso pensemos a imanência como a exclusão do transcendente entendido como Deus. Mas, nesse momento, a imanência não exclui a transcendência. A refeição é a abertura para o transcendente. Assim,

                                                            4 Aula de Filosofia da Religião e Cinema. 10 de junho de 2011.

62

imanente e transcendente estão se imiscuindo como a cor dos morangos que se dilui na brancura do leite5.

O cotidiano volta a ter beleza, o momento se faz repleto de sentido. “A única

condição sob a qual os homens podem viver é a comunhão. (...) Devemos entrever em que

ponto o desespero pode ser substituído pela alegria, o medo da vida pela sua celebração, a

dança da morte pela dança da vida”. (KALIN, 2003, p. 12; p. 21) O semblante do cavaleiro

só faz ressoar a resposta: eis de onde vem a felicidade com as coisas mesmas. Eles podem

ser felizes sem os vários questionamentos, porque a dúvida não os fustiga. O véu da

inconsciência não os faz auscultar o silêncio de Deus. A família do artista transfigura a

religiosidade na expressão imaculada do amor. “Durante o filme, é possível reconhecer

cada vez mais que Jof, o ator, Mia e o bebê, Mikael, são, ao mesmo tempo, uma

recapitulação e um prenúncio da Sagrada Família, ainda que Bergman tenha sido evasivo

ao oferecer a sugestão de modo oblíquo”. (YOUNG, 2000, p. 156) A família do artista ama

simplesmente. "Pois onde está teu tesouro aí estará também teu coração". (MATEUS, 6, 21)

Para Bergman, essa ideia de plenitude, de vida plena, pode aparecer em algumas brechas das vivências, ela pode surgir em momentos de comunhão nos quais encontramos os artistas. O convívio com tais pessoas pode nos ensinar algo, ou então tudo pode passar ao léu, sem percepção. Assim, seria possível compartilhar os morangos silvestres com os artistas sem a devida imersão no significado de que a natureza pode nos oferecer algo belo. E natureza, nesse sentido, refere-se tanto às pessoas que, generosamente, compartilham algo que lhes é próprio quanto à dádiva dos morangos silvestres6.

Como se a comunhão dos atos tornasse vívida a presença silenciosa de Deus. Deus

não apenas provê o leite, mas também tinge os lábios das personagens com a brancura da

nata. Deus não apenas provê a colheita dos morangos, mas se dilui através da doçura

irradiada pela canção de Jof. “Block quer que Deus o toque através de seus sentidos, mas

não se dá conta de que isso já aconteceu”. (KALIN, 2003, p. 61) “Eis a permanência dos

cacos do transcendente no mundo. O transcendente está despedaçado no mundo, sobretudo

em seus problemas, como a eternidade da alma e o sentido da vida. O transcendente como

sistema está destruído”7. Entrevemos, assim, a impossibilidade essencial para que o

cavaleiro encontre as respostas que busca com tanto temor e tremor. Mas mesmo o artista

não consegue cantar indefinidamente. O crepúsculo sempre sucede a aurora. Jof diz que a

                                                            5 Idem. 10 de junho de 2011. 6 Aula do curso Escandinávia: Filosofia e Cinema. 20 de junho de 2011. 7 Idem. 20 de junho de 2011.

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família pretende ir a Elsinore para o festival de teatro. Block os desaconselha, a peste está

ao encalço de todos. "Venham comigo pela floresta. Vocês podem ficar na minha casa ou

seguir pela costa leste".

Mia: Como tudo isto é bom.

Antonius: Um breve momento.

Após a destruição do transcendental, aquilo por que se espera torna-se muito difícil de ser alcançado e sempre se mostra vulnerável, sempre precisa ser refei-to. (...) Voltar-se para um outro, acolhê-lo ou ajudá-lo é possível para Bergman, mas trata-se de algo via de regra difícil e que não possui garantia alguma de duração e mesmo de aceitação. (KALIN, 2003, p. 22; p. 12)

Antonius Block fica se interrogando a todo instante e, nesse movimento, não

consegue usufruir dos momentos em que poderia encontrar o sentido. O sentido revela-se

na comunhão, e não em uma resposta cabal sobre o porquê do sofrimento. O sentido não é

uma resposta sobre o para onde irei, mas a própria possibilidade da partilha. “O ímpeto por

tais momentos significa mais do que a sua posse”. (KALIN, 20003, p. 22) Block

simplesmente não se dá conta de que o aqui e agora é sua única raiz. A posse do momento

significaria a paralisia do tempo, a retomada de Deus para além da contingência. Mas, se a

apropriação inequívoca não é mais possível, ao menos o cavaleiro pode almejá-la. Em

contrapartida, que dizer sobre Mia diante da fugacidade que se esvai entre os dedos do

cavaleiro? “Como sempre. Todos os dias são iguais. Não há nada de diferente. Mas o verão

é melhor que o inverno, pois não sentimos frio”.

Assim como o contraste entre o verão e o inverno era mais severo do que para nós, também o era o contraste entre a luz e a escuridão, o silêncio e o ruído. A cidade moderna praticamente desconhece a escuridão e o silêncio profundos, assim como o efeito de um lume solitário ou de uma voz distante. (HUIZINGA, 2010, p. 12)

As preocupações de Mia ligam-se às sensações de seu corpo. Mia é orgânica,

praticamente uma extensão da natureza que a tornou mãe. O corpo sensível como que erige

uma barreira contra a abstração. A impossibilidade de apreender Deus como um conceito, a

partir de uma abstração. Para Mia, Jof e Mikael, Deus não é o alfa nem o ômega, mas toda

a sequência do alfabeto, as ações mesmas que simplesmente ocorrem, que se desenrolam

gratuitamente. Não há um Deus a ser apreendido. A divindade se manifesta na própria

comunhão e se entrelaça com a própria natureza.

64

Block não consegue deitar raízes na natureza divina da família mambembe. Quando

o cavaleiro diz que "as pessoas vivem preocupadas", podemos considerar Block um

representante da humanidade desgarrada de Deus. Com laivos do homem moderno, o

cavaleiro prenuncia as pessoas cujas ações já não estão embasadas por uma inquestionável

teodiceia. “Não há teodiceia em Bergman e tal tormento só pode ser visto como a irrupção

do mal”. (KALIN, 2003, p. 11) Se analisarmos o dilema existencial do cruzado em

correlação com o apocalipse da peste medieval, chegaremos ao cerne metafísico da dor que

o afligia. Antonius tentava conversar com Deus, Block queria respostas, mas a especulação

racional não estava suficientemente desenvolvida na Idade Média a ponto de ocupar o altar

de Deus. Block, a encarnação da aporia. À falta de um método, vale dizer, diante da

ausência de um caminho que o conduza a Deus por sua razão aporética, só resta a Block a

tangibilidade inalcançável da memória.

Mia: Por isso é melhor viver a dois.

“Estamos sempre postos neste ponto de inflexão, estamos sempre em processo,

sempre dependemos dos outros”. (KALIN, 2003, p. 15) Quando as bodas do cavaleiro

ainda eram recentes, Block e a esposa pareciam felizes simplesmente. Mas o tempo parece

cindir a comunhão. “Para Bergman, (...) uma tarefa central da vida adulta é o retorno para o

passado e a tentativa de reparação de algo que se perdeu”. (KALIN, 2003, p. 57) Mas

enquanto Mia, Jof e Mikael vivem o tempo como o continuamente idêntico e feliz, Block e

a espada de sua consciência só fazem sentir a distância do que já não pode retornar. Os

artistas ludibriam o tempo da Morte com o tempo cênico. A verossimilhança do palco

procura confundir a verdade do tempo. Não se trata de dizer que Mia, Jof e Mikael são

imortais. Trata-se, por outro lado, de entrever que a consciência artística ensaia segundo

uma lógica toda outra. A imaginação não sai de cena quando as cortinas encobrem o palco.

O chronos continuamente idêntico de Mia aponta para a contiguidade entre ficção e

realidade. No limite, a família mambembe vive em meio à realidade ficcional. Mas Block

não consegue vestir outra máscara senão aquela que incorpora as sucessivas negações. A

negação do sorriso, a negação da presença - solidão contínua -, a negação do mundo - onde

está Deus? Silêncio.

Block: A fé é uma aflição dolorosa. É como amar alguém que está no escuro e não

sai quando a chamamos.

65

Eis uma chave hermenêutica que se confunde com a síntese do silêncio de Deus. A

fé não é apenas solitária. A fé é a própria solidão. "Isto tudo me parece mentira quando vejo

você e seu marido. Parece tudo indiferente". Neste momento, Block volta a encontrar o

interstício. Antes, ele saía da consciência dolorosa para ser abraçado pela vivência efetiva.

Agora, a bondade inefável dos artistas volta a ser vista pelo prisma da dúvida. Ainda assim,

o momento tenta resistir.

Block: Não me esquecerei disto. O silêncio... a tigela de morangos e o leite. Seus

rostos à luz do entardecer, Mikael dormindo na carroça e Jof com sua canção. Tentarei me

lembrar do que dissemos e levar esta lembrança entre minhas mãos, com cuidado, como se

fosse uma tigela cheia de leite. Isto será um símbolo para mim e uma grande ajuda.

O verbo assim conjugado, tentarei, já demonstra o ímpeto trôpego de Block para

resistir diante da fugacidade do momento. Mikael continua inocente, Jof e Mia ainda

sorriem, mas o cavaleiro, ao se eriçar, sente a (oni)presença do tabuleiro da Morte. Que se

há de fazer? Jogar é preciso. Mas, agora, Block move as peças como se o Bispo fosse um

verdadeiro enviado de Deus. A Morte não deixa de ser vivaz: ela quer saber por que o

cruzado sorri, uma vez que, a cada movimento, o xeque-mate se faz mais iminente. Como é

possível sorrir em face da Morte? Pois é o que Antonius faz, como se a centelha de

felicidade ainda o inflamasse, como se ainda houvesse morangos ao leite, como se a peste

bubônica não estivesse sitiando a todos. A Morte exige saber por que o cruzado sorri.

Quando ela entrevê que o sorriso do cavaleiro parece imune ao sétimo selo, sua onisciência

passa a ceifar a fonte de onde jorra o leite e brotam os morangos. Pois a Morte bem sabe

que a família de Jof se embrenhará pela floresta para escapar da peste. Mas ninguém escapa

da Morte. Prontamente, o rosto de Block se transtorna, a centelha divina se arrefece, o

momento vira matéria de memória, afago já distante. A dúvida volta a fustigá-lo. Block não

é ungido pela inconsciência que se enraíza no mundo. Deus parece ainda uma vez distante,

inatingível - e silencioso.

* * *

66

Em um momento supostamente menos importante d’O sétimo selo, a trupe de

artistas, Antonius Block, Jöns e sua protegida cruzam a floresta. Lisa, a esposa do ferreiro

carinhosa e lascivamente apelidada de Cunegunda, vai com eles. A adúltera, com o bom e

velho espírito das cortesãs, trai o ferreiro ali presente com o chefe da companhia de teatro

de que Jof e sua família fazem parte. O problema é que, não se sabe bem de onde, o ferreiro

desponta entre as árvores com a fúria cega de quem agora se sabe traído. Que faz o artista-

amante diante do marido passado para trás? Ora, atua.

Primeiramente, o artista se indispõe com o ferreiro. Quando percebe que a ira do

marido de Cunegunda não passará senão com um devido derramamento de sangue, o artista

lança mão de uma faca retrátil para lastimar o próprio peito. Os brios do ferreiro se

mostram efetivamente aplacados diante do holocausto. O marido traído chega mesmo a

perdoar Cunegunda em face do menu que se lhe apresenta: porco com nabos.

O artista-amante destoa profundamente de Jof. Jof é mais ingênuo, nada ardiloso. O

amante é mundano, lança mão da arte também para ludibriar o outro. Após encenar o

espetáculo da própria morte, o artista fica para trás e não consegue acompanhar a carroça da

trupe. Eis que ele pretende refugiar-se junto à copa de uma árvore para fugir dos silvos e

uivos dos animas que assolam a floresta durante a noite. Já sobre a árvore, um barulho

reiterado o faz lembrar dos “lenhadores da floresta. Alguém está cortando a minha árvore.

Por que está cortando a minha árvore? Poderia pelo menos ter a educação de dizer quem

é?”

Morte: Estou cortando a árvore, porque seu tempo acabou.

Artista: Não tenho tempo para isto...

Morte: Não tem tempo?

Artista: Tenho uma apresentação.

Morte: Foi cancelada, o ator morreu.

Artista: E meu contrato?

Morte: Foi cancelado.

Artista: Minha família, meus filhos?

Morte: Tenha vergonha, Skat.

Skat: Tudo bem, estou envergonhado. Mas não há um perdão especial para atores?

[grifo meu]

67

Morte: Não neste caso.

Comparemos os quinhões que cabem a Skat e a Jof em face da Morte.

Skat, o ardiloso, lança mão da mimese artística para ludibriar o próximo. Jof se

embebe da arte, o contato com o sobrenatural desponta como uma extensão de sua vivência

imaginativa. Podemos pressupor, assim, que o perdão especial para atores é de fato

concedido a Jof, já que, com a intervenção astuciosa de Antonius Block, Jof e sua família

conseguem escapar, por ora, das garras da Morte. Falaremos sobre tal desenlace no decorrer

da análise. Por ora, vale frisar que a Morte, aqui, assume um certo caráter moralizante. O

artista lascivo e ardiloso acaba punido. Não é Deus quem restitui os mandamentos, mas a

Morte, a emissária que estanca a vida.

Skat, o malicioso, não recebe indulgência alguma. Pelo contrário, precisa enfrentar,

no derradeiro momento, a vergonha de não se preocupar com os próprios filhos – se é que o

artista de fato os tinha. Jof, por sua vez, mostra-se efetivamente agraciado. Sua mimese não

procura ludibriar a Morte; a peça musical a entrevê pela praia, sob sua capa negra, o rosto

pálido e impassível. Dentre as personagens, a primeira a encontrar o sétimo selo é o lascivo

Skat. Aproximemo-nos, agora, da pira de Deus, para darmos sequência à busca incessante

de Antonius Block.

68

3.6. ApiradeDeus

Em sua busca incessante por respostas às perguntas que só fazem emparedá-lo,

Block recorre a uma fonte inusitada: uma suposta bruxa que havia sido condenada à

fogueira pela Santa Inquisição. Atada a uma pira prestes a arder em chamas, a condenada,

entorpecida, já se prepara para encontrar o sétimo selo. “O fascínio cruel e a compaixão

grosseira diante do patíbulo eram um elemento de peso na dieta espiritual do povo. Era um

espetáculo da moral”. (HUIZINGA, 2010, p. 14)

Block: Está me ouvindo? Dizem que você esteve com o diabo...

Condenada: Por que pergunta?

Block: Tenho um motivo pessoal. Quero encontrá-lo.

Condenada: Por quê?

Block: Quero perguntar a ele sobre Deus. Ele deve conhecê-lo mais do que

qualquer um.

Subjaz à colocação de Block a velha e reiterada estória de que o diabo é um anjo

decaído. Lúcifer, o portador da luz. Mas os escombros n’O sétimo selo transformam o

diabo em um agente mais crível da metafísica. A decadência do mundo medieval parece ser

feita à imagem e à semelhança do demônio. Assim, diante da impossibilidade de auscultar o

silêncio de Deus, Block tenta interpelar a divindade por uma entidade excomungada. O

diálogo não poderia conter mais simbologia. O cavaleiro quer saber sobre Deus por

intermédio de dois entes decaídos, a bruxa e o diabo. “No altar da igreja, Block se ajoelha

diante de um grande crucifixo de madeira que soergue um Cristo transtornado”. (COHEN,

1993, p. 127) Neste momento, desvelamos o sentido subliminar da câmera de Bergman que

focalizara a imagem de um Cristo agônico cujo silêncio já se confundia com a mera

madeira que a constituía.

A vida da cristandade medieval é, em todos os aspectos, permeada de imagens religiosas. Não há coisa ou ação em que não se procure estabelecer constantemente uma relação com Cristo e com a fé. De fato, tudo está orientado para uma concepção religiosa de todas as coisas, em uma espantosa propagação da fé. (...) Para o entendimento diário das pessoas comuns, a simples presença de uma imagem visível tornava totalmente supérflua a comprovação intelectual da verdade. Não havia espaço entre aquilo que era representado em cor e forma – as pessoas da Trindade, as chamas do inferno, os inúmeros santos – e a fé naquilo tudo. Não havia lugar para a pergunta: será que isso é verdade? Todas aquelas representações passavam imediatamente da imagem para a crença; graças aos seus contornos destacados e às suas cores vivas, elas eram gravadas no espírito,

69

com toda a realidade que a Igreja podia exigir e algo mais. (HUIZINGA, 2010, p. 248; p. 267)

Em nosso contexto escatológico que lança mão de um cavaleiro profundamente

reflexivo a buscar contínua e incessantemente Deus para além do mundo tangível em

pedaços, esvaziam-se cada vez mais tanto o sentido da pregação quanto a representação

material da divindade por intermédio das imagens. Deus se funde cada vez mais à figura da

morte.

Por volta do fim do período medieval, à palavra do pregador juntou-se uma nova forma de representação: a gravura em madeira, que encontrou o seu caminho em todos os círculos da sociedade. Esses dois meios de expressão de massa, a pregação e a gravura, podiam reproduzir a ideia da morte como um conceito muito simples, direto e real, de forma nítida e violenta. (HUIZINGA, 2010, p. 221)

É preciso perguntar às marcas de Deus que ainda fazem sentido, à bruxa e ao

anticristo, agentes da divindade a contrapelo, legados de uma metafísica que já não

consegue se sustentar como um sistema harmônico que pavimenta o caminho dos fiéis.

Condenada: Você pode ver Deus quando quiser.

Block: Como?

Condenada: Faça o que eu mandar. Olhe nos meus olhos. O que está vendo? O que

vê?

Block: Vejo muito medo nos seus olhos, nada mais. Nada mais.

Deus se confunde com o mero instinto de sobrevivência, um hábito de quem não

quer deixar de respirar, ainda que já não encontre um sentido para fazê-lo. Mas as respostas

não despontam dos olhos cada vez mais vazios da bruxa. Desponta o desespero, a ruptura

da lógica, o antissistema. Já é a hora de a pira da bruxa arder em chamas. O cavaleiro se

volta para Jöns, seu escudeiro.

Jöns: Pensei em matar os soldados, mas não conseguiríamos salvá-la. (...) O que ela

vê? Pode me dizer?

Block: Já não sente dor.

Jöns: Não me respondeu. Quem cuida dela? Um anjo, o diabo, Deus, ou é apenas o

vazio? O vazio. (...) Veja os olhos dela. Ela está descobrindo algo. O vazio sob a lua. (...)

Não. Estamos impotentes, pois vemos o que ela vê e tememos o mesmo. Pobre criança.

Não posso suportar!

70

A circularidade n’O sétimo selo se reitera ainda uma vez. Podemos estabelecer uma

relação de prenúncio entre a condenação da bruxa e o destino de Block e Jöns. Se o

escudeiro sentencia que ambos podem ver o vazio que acomete a bruxa, não se trata de

dizer que apenas há paralelismo na impotência e no temor. O cavaleiro e o escudeiro se

encaminham para a mesma pira que fará a bruxa arder em alguns instantes. A morte de

nossos protagonistas será apenas mais silenciosa, mas não menos dolorosa. Jöns

diagnostica a impotência, Block ainda tenta perscrutá-la.

No limite, Block consegue atuar minimamente no mundo. O cavaleiro entrega um

pouco de veneno à condenada. Que a morte da bruxa seja como Deus: silenciosa. A atuação

de Block prenuncia uma mudança objetiva e positiva no curso dos acontecimentos, uma

boa ação do cavaleiro como o resquício de religiosidade. Neste momento, Block traz a

piedade de uma morte mais rápida. O cavaleiro se confunde com seu enxadrista mórbido; o

defensor da cristandade, para a bruxa, faz as vezes da Morte. Mas não será sempre assim.

Jof, Mia e Mikael não conseguiriam mais tempo de vida senão pela dissimulação de Block

em face da Morte. Vejamos como uma atuação positiva do cavaleiro, para além das

perguntas que o paralisam, consegue dar sobrevida à família de artistas mambembes.

71

3.7. Oxeque‐mateeasobrevida

O cavaleiro joga xadrez com a Morte ainda uma vez. O xeque-mate insinua-se cada

vez mais. Às costas da Morte, a algumas dezenas de passos, a família mambembe de Jof

ainda dorme. Súbito, Antonius Block entrevê que pode atuar no mundo apesar de sua busca

inglória continuar sem respostas.

Quando comparamos Block a seu fiel escudeiro Jöns, dissemos que ambos

conseguem alcançar intelectualmente a vacuidade de um Deus que já não consegue

sintetizar o mundo medieval em ruínas. No entanto, as trajetórias convergentes do cruzado

e do escudeiro divergem no que se refere à postura diante da fratura do mundo. Jöns,

decididamente, age. Intervém quando se depara com injustiças, sabe aconselhar diante das

agruras e frustrações que volta e meia aparecem. O ferreiro, marido traído de Cunegunda,

ouve como um consolo a filosofia de Jöns sobre a índole das mulheres. Uma filosofia

pragmática, algo resignada, com laivos machistas. Mas, sobretudo, uma percepção que

busca o mundo e tenta entender seus dissabores. A frustração e a dor fazem parte dos

descaminhos assim como as cicatrizes do soldado que vai à guerra. Nesse caso, não se trata

de tentar sintetizar o mundo e seus valores. Não se trata de apreender o sentido ou o

ressentimento de uma época como um diagnóstico. Trata-se de desabafar, de externar uma

dor e ouvir um conselho como um afago que, de certo modo, dê um sentido ainda que tênue

à sobrevivência mais ínfima e insciente. O marido traído não ausculta o silêncio de Deus.

Deus, para ele, se confunde com a reiteração mecânica das orações. É preciso trabalhar,

casar e procriar. A ruptura lasciva de Cunegunda, de certa forma, não era de todo

imprevista. A esposa furtiva como que conta com o perdão míope do marido. Algo como

uma breve ruptura da ordem pequenina para que o ciclo ordinário da vida continue a fluir

em sua inércia. Por esse prisma, o conselho de Jöns traz calmaria à superfície

momentaneamente revolta do lago.

Jöns: Dentre as coisas imperfeitas deste mundo, o amor é o que há de mais perfeito

em suas imperfeições.

Que há de sub-reptício no aforismo de Jöns? A admissão de que o devir do mundo é

imperfeito; de que a imperfeição nos constitui; de que, ainda que não reconciliado, o mundo

pode fornecer vivências que beiram a união dos fragmentos. O ferreiro chega a dizer ao

72

escudeiro que ele é feliz por conseguir acreditar em tal máxima. Jöns, como que a divagar

consigo mesmo em voz alta, afirma que nem mesmo sabe se acredita no que acabara de

dizer. De qualquer modo, a sutura já havia sido feita. A máxima faz as vezes do conselho,

Jöns consegue se escorar em uma sabedoria autóctone e prosaica. Jöns, personagem que

prenuncia o moderno niilismo, bem conhece os descaminhos da razão, mas isso não o

impede de fruir os sabores e dissabores da vida enquanto ainda está aqui.

Em face de Jöns, que dizer do pensador Antonius Block? Jöns pisa sobre a terra

vítima de erosão, sente os aromas do mundo. Block tenta ler entre as estrelas, apruma os

ouvidos para auscultar o além-mundo, do silêncio quer reconstruir o sentido sem que jamais

possa admitir, como Jöns, que se trata de mais um sentido via de regra efêmero. Assim, de

certo modo, e guardadas as diferenças com relação à agraciada família mambembe,

podemos falar de Jöns como alguém que recebe laivos da Graça divina. Do contrário, como

explicar esse caráter telúrico do escudeiro que não apenas consegue resistir ao desespero da

razão como logra fazer o bem entre os escombros da teologia cristã?

Mas eis que Antonius Block, a partir da simbologia dos morangos regados ao leite

de Mia, Jof e Mikael, irá deslocar suas inquietações do céu para a terra a fim de salvar, ao

menos momentaneamente, a família mambembe do encontro imediato com a Morte. O

xeque-mate se aproxima, a Morte se concentra no desenlace; enquanto isso, a pouco mais

de uma dezena de passos, Jof tem uma nova visão. Já não se trata de uma revelação

celestial, da Virgem e do Menino, mas da Morte de capa preta e face vazia, branca, pálida e

espectral. Jof tem um novo contato com o sobrenatural. Contato que, decisiva e

pragmaticamente, alterará o curso dos acontecimentos. Assim, nossa análise precisa levar

em consideração ambas as possibilidades para acompanhar o movimento poético d’O

sétimo selo: por um lado, o sobrenatural como uma ilusão e, por outro, a realidade

sobrenatural. Senão, vejamos: suponhamos que Jof vivencie o além-mundo como uma

efetiva alucinação visual. Em um primeiro momento, como dissemos anteriormente em

nossa análise, a visão da Virgem e do Menino tem um caráter eminentemente extático. A

fruição do belo, um presente matinal. Não poderíamos dizer que há um desdobramento

pragmático a partir da primeira visão de Jof. O artista apenas tenta convencer a esposa de

que suas visões são reais. Para tanto, chega mesmo a lançar mão de truques ardilosos,

porque, segundo Jof, uma mentira poderia convencer Mia da verdade. Porém, neste

73

momento, a visão de Jof muda o curso da narrativa fílmica. Jof toma a decisão de mudar o

itinerário da família em função da presença da Morte. Se lançarmos mão do ceticismo,

poderemos dizer que tal acontecimento encontra paralelo na superstição do cotidiano.

Afinal, algumas pessoas chegam a alterar certas decisões ou fatos de suas vidas por conta

de premonições supostamente descobertas em sonhos ou visões. E, algumas vezes, tais

decisões, em contraste com a realidade e seus desdobramentos, de fato se mostram

decisivas. Assim, não podemos descartar a leitura eminentemente cética, mas devemos

arremessá-la de encontro à e ao encontro da leitura que entrevê um sentido para o

sobrenatural.

O filme ressalta que a visão da Morte não é a primeira experiência sobrenatural de

Jof. Assim, vemos um sentido na relação entre as duas visões do artista: do Nascimento à

Morte, do Gênesis ao Apocalipse. Não se trata de uma visão sonhada, mas vivenciada com

os olhos bem abertos. A visão muda o curso dos acontecimentos, sendo que tanto para Jof

quanto para o cavaleiro, havia efetivamente um jogo de xadrez com a Morte. A visão,

assim, apresentou um caráter relacional, não ficando restrita a apenas uma das personagens.

Via de regra, é mais plausível diagnosticar uma alucinação unívoca. No entanto, a

alucinação em Bergman caminha pelas ruínas da Idade Média. O fato é que o entrelace

entre a visão de Jof e a tática de Block resulta na fuga da família mambembe de seu

encontro mais imediato com a Morte. Assim, o sobrenatural atua na realidade, ainda que ele

possa ser questionado como uma leitura possível entre outras. Se o aceitarmos como a

manifestação da transcendência na imanência, o silêncio de Deus, ainda que

momentaneamente, se faz ouvir. Se o tomarmos como uma mera percepção atávica ligada

às superstições da época, ainda assim não poderemos ignorar o desdobramento pragmático

das visões e/ou alucinações que mudaram o curso dos acontecimentos.

O encadeamento entre as visões de Block e Jof nos fornece também um novo e

inusitado sentido para as ações do cavaleiro que, por ora, deixa de questionar e se

questionar para agir no mundo. Block chama a atenção da Morte para si. “Na partida final

de xadrez com a Morte, Block possibilitou a Jof e Mia, o jovem casal que tanto o tocou, a

escapatória junto com Mikael, o bebezinho. Assim, ele atuou segundo os preceitos

cristãos”. (YOUNG, 2000, p. 154) A câmera de Bergman incita o espectador a perceber a

dualidade das intenções de nosso protagonista. O cavaleiro joga com a Morte – plano mais

74

próximo – e acompanha a fuga da família de Jof – plano mais distante. Não é por mero

egoísmo que Block tenta ludibriar a Morte ao embaralhar as peças do tabuleiro. A memória

da Morte é implacável, logo as peças são posicionadas em seus devidos lugares. O xeque-

mate volta a ser iminente. A Morte só faz se gabar, “ninguém consegue me enganar”. Mas,

enquanto isso, e ainda que momentaneamente, a foice da Morte de fato é enganada pelo

ardil benéfico de Antonius Block. A Morte poderia levar a todos, mas terá de fazer uma

nova jornada para buscar Jof, Mia e Mikael. Graças à nobreza do cavaleiro.

Tomando a Morte como um clérigo para quem fazia a confissão, Block afirma que,

no pouco tempo de vida que lhe resta, gostaria de fazer algo bom – seguir, afinal, o Sermão

da Montanha. As dúvidas e a angústia reiteradas o impossibilitam de sentir a dor do

próximo. Mas, à iminência do xeque-mate, Antonius Block se descentra, o outro está ali, os

outros são a família agraciada que o acolheu com a última ceia, a dádiva dos morangos

silvestres. “A visão de Block também é transformada, e ele se desvencilha do

transcendental e age em face da verdade que se posta diante dele. A vida escapa da Morte, e

sempre o fará, já que há algo que sempre é possível em meio à vida propriamente dita”.

(KALIN, 2003, p. 67) O cruzado quer não apenas retribuir; ele quer salvar, fazer o bem o

norteia sem que a dúvida, neste instante, consiga paralisá-lo. Se a religião como sistema

coeso entrou em colapso, a religiosidade do amor permanece como a esperança vinculada

ao livre-arbítrio. Antonius poderia cavalgar no bojo do mero ressentimento. Já que não sabe

onde está Deus, por que ajudar o próximo? Mas não, a dúvida se cala diante da bondade,

ainda que fazer o bem não pavimente os caminhos centrífugos que iremos percorrer. Assim,

com sua ação decisiva, Antonius Block configura-se como a síntese que envolve Jof e Jöns.

Com Jof, o cavaleiro compartilha a vivência do sobrenatural. Com Jöns, o cruzado

compartilha, neste momento, não apenas a ciência sobre os restos teológicos, mas o ímpeto

pela vida, vontade que tenta transfigurar a necessidade em liberdade, o destino em livre-

arbítrio, o lamento em acalento.

* * *

Morte: Você nunca para de questionar?

Block: Nunca vou parar.

75

Morte: Mas você não tem respostas.

O desespero de Block só faz aumentar diante da ausência de respostas, mas sua

angústia não consegue reproduzir o silêncio de Deus. Enquanto Block continua em sua

cruzada intelectual, um grito lancinante desponta em meio a uma clareira na floresta. É

Raval, o antigo teólogo, atual ladrão contumaz, que agora se vê acometido pela peste de

modo terminal.

Raval: Vocês têm um pouco de água? Preciso de água! Estou com medo de morrer!

Não quero morrer! Vocês não têm piedade de mim? Ajudem-me! Pelo menos falem

comigo! “A doença e as deformidades físicas e espirituais tornam-se imagens centrais na

obra de Bergman”. (KALIN, 2003, p. 20)

As demais personagens assistem ao imbróglio, mas a companheira de Jöns, anterior

vítima em potencial de Raval, acaba se apiedando. Seria possível dizer que, ainda uma vez,

Bergman entrevê os escombros do cristianismo e do amor mútuo não na devoção oficial ou

mesmo intelectual, mas na ação pura e simples, no espontâneo fazer o bem. Comparemos o

altruísmo da companheira de Jöns tanto com as vociferações do clérigo punitivo quanto

com as indagações teológicas de Block. O clérigo só faz amedrontar, a fé em Deus tirita os

dentes e se apóia sobre as pernas trêmulas dos fiéis. Quando Block efetivamente atua no

mundo, quando o cavaleiro se mostra solidário, ele o faz à revelia de suas questões, a

contrapelo de sua dúvida paralisante. Mas, no contexto em questão, a companheira de Jöns

se dispõe a ajudar aquele que, anteriormente, a teria estuprado não fosse a intervenção do

escudeiro. Trata-se ou não de um exemplo inusitado de perdão? A dor do ego anteriormente

mutilado mostra-se menor do que a dor pelo antigo algoz agora transformado em vítima.

Ela se dispõe a ajudá-lo, a confortá-lo em seus últimos momentos, mas Jöns a bloqueia.

Jöns: Não adianta. É tudo em vão. Estou dizendo que é em vão.

Jöns não a proíbe de ajudar o moribundo Raval, mas lança luz para o fato de que o

altruísmo nada pode contra a tragédia. Ao fim e ao cabo, podemos entrever que os

morangos ao leite formam de fato uma ilha cercada por inevitabilidade de todos os lados. A

bondade existe, ela ainda respira de modo trôpego, mas a síntese de sua impotência é

focalizada pela câmera que acompanha a agonia final de Raval junto aos olhos da

companheira de Jöns. A bondade, como algo que não se explica, se confunde com um

atavismo que já não consegue ditar o ritmo dos acontecimentos.

76

3.8. ApocalipseMundano

Na sequência final d’O sétimo selo, Antonius Block conduz os demais sentenciados

– todos inscientes sobre o desenlace – à sua antiga morada, o castelo que ficara aos

cuidados da esposa que já não consegue reconhecê-lo como antes.

Esposa de Block: Soube pelos cavaleiros que você estava voltando. Esperei aqui,

todos os outros fugiram da peste. Você não me reconhece mais? Você também mudou,

Antonius. Agora vejo que é você. Em algum lugar nos seus olhos, em algum lugar no seu

rosto, escondido e assustado está o rapaz que deixei há tantos anos. “Em sua essência, a

‘destruição do transcendental’ é o abandono pelas outras pessoas, nossa falha no amor e na

fé, nossa falha em dar conforto e proteção”. (KALIN, 2003, p. 7)

Block: Tudo terminou e eu estou cansado. (...) Estes são meus amigos...

Esposa: Mande-os sentar. Preparei o café.

Todos sentados à mesa, chegamos a uma ceia que destoa profundamente da partilha

dos morangos ao leite. Personagens e expectadores sentimos um clima de término, uma

transfiguração do apocalipse que o transforma em hipocalipse. Senão, vejamos: o prefixo

apo- aponta para o que está em cima, para o que vem de cima. Assim, apogeu refere-se ao

ponto mais elevado em relação à terra (geo). Calipse, proveniente de calypso, aproxima-nos

da revelação. Na verdade, do princípio ao fim, de alfa a ômega, O sétimo selo nos revela o

hipocalipse, a revelação que vem de baixo, da própria terra, dado o silêncio contumaz que

transfigura o céu em uma completa ausência.

Súbito, entre os convivas à iminência da Morte, a esposa de Block abre a bíblia e ata

as pontas fílmicas do princípio ao fim: a mesma passagem do Apocalipse que fora lida no

começo do filme por uma voz que bem se assemelha à voz da personagem que vivencia a

Morte, agora é lida pela iminente viúva de Block, de modo que a circularidade da poética

d’O sétimo selo complete os seus desígnios de maneira cabal.

Esposa de Block: “Quando o cordeiro abriu o sétimo selo houve um silêncio no céu

por cerca de meia hora”. Lembremos as nuvens negras que descortinam a primeira cena do

filme. Lembremos, também, o pássaro agourento que paira sobre o céu como a efetiva

intromissão da transcendência – a Morte. “Eu vi sete anjos diante de Deus e a eles foram

77

dadas sete trombetas”. Os sete anjos se transformam nas personagens prestes a terem o

destino selado.

Quando a Morte enfim aparece aos convivas, Block regurgita ainda uma vez suas

indagações em forma de prece:

Block: Suplico a Sua presença, Senhor. Tenha misericórdia de nós, Deus, pois

somos pequenos e assustados em nossa ignorância. “A Morte não é um juiz, e Deus não é

algo apartado de Sua criação. Assim, quando a Morte aparece no castelo do cavaleiro, ela

não fala. Vemos o que ela vê”. (KALIN, 2003, p. 64)

No período final da Idade Média, quando um novo espírito já estava em vias de surgir, existia somente, em princípio, a velha escolha entre Deus e o mundo: o completo desprezo por toda a maravilha e beleza das coisas terrenas e da vida ou a sua aceitação ousada, colocando a alma em perigo. (HUIZINGA, 2010, p. 59)

É então que Jöns toma a dianteira para, diante da Morte, deixar de ser apenas o fiel

escudeiro:

Jöns: Em sua alegada escuridão, onde todos devemos estar, não há ninguém para

ouvir suas lamentações e sofrimentos. Limpe suas lágrimas e enxergue sua indiferença.

Mas Block não aceita que a Morte seja o desenlace que calará suas dúvidas e

angústias para sempre. Ele quer a sobrevida do antigo Deus, ele quer novas respostas para

perguntas que já não fazem sentido, ele quer novas perguntas para respostas que já não

podem confortá-lo.

Block: Deus, que está em algum lugar, deve estar, tenha piedade de nós.

O apocalipse de Bergman envolve a remoção das couraças sobre os olhos da alma para que a consciência possa mudar e a uma visão verdadeira possa ser alcançada. Essa mudança é como acordar de um sonho ou ser tomado por uma epifania. (KALIN, 2003, p. 4)

Jöns: É tarde demais para ser absolvido de seus pecados eternos. Mas, neste último

momento, pelo menos sinta o triunfo de enxergar e se mover...

A Morte promete apenas o fim da vida, apenas a escuridão. Entender isso é voltar nossa atenção daquilo que está além da vida para aquilo que está enraizado nela. Esse é o verdadeiro domínio do espírito e é o lugar onde as respostas podem ser vistas e escutadas. O silêncio da Morte não é o silêncio de Deus. (KALIN, 2003, p. 60)

Jöns demarca profunda e definitivamente a sua diferença em relação a Block.

Mesmo no momento derradeiro, o escudeiro agora tornado efetivo cavaleiro consegue fruir

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o conhecimento que advém da empiria, do contraste com a realidade. Block quer o sistema

teológico, quer recompilá-lo entre os escombros da divindade. O pior cego não é aquele que

não quer ver. Block reedita o dito popular. O pior cego é aquele que só quer ver, é aquele

que tem a pretensão de fazer retroceder a roda da história, que quer refundar a Idade Média

entre seus destroços.

Jöns: Farei silêncio em protesto.

Qual é a punição ou a recompensa? Todas as personagens já as receberam. O que vemos ao fim não é a Morte conduzindo-as para outra vida no céu ou no inferno, mas simplesmente a Morte levando-as daqui, para sua própria “terra escura” da inexistência. A Morte realmente não possui segredos. Sua paz e tranquilidade se refere ao completo esquecimento. O único lugar de luz (e de irrupção espiritual) é aquele associado com Jof e Mia, e aí se trata da vida, da imanência. Os sofredores são libertos do sofrimento, não há nada mais. (KALIN, 2003, p. 64)

Jöns reverberará o mesmo silêncio de Deus, apocalipse tornado hipocalipse diante

da Morte. O silêncio d’O sétimo selo.

 

79

Conclusões

AtensãoredivivaeinescapáveldeOsétimoselo

Ao comentar O sétimo selo no documentário A Ilha de Bergman, Ingmar Bergman

procurou ressaltar o caráter irresoluto da trama em relação à existência de Deus. Segundo o

autor, o filme não chegou a respostas conclusivas, mas inflamou ainda mais o ímpeto das

perguntas. Nesse sentido, que desdobramentos finais podemos extrair da trajetória de suas

personagens? Afinal, como o filme lança luz sobre a atual e profunda crise teológica?

A atormentada personagem do cavaleiro Antonius Block foi considerada, ao longo

desta dissertação, um protótipo da modernidade. Suas perguntas sobre a divindade

simplesmente não cessavam. Deus permanecia em silêncio, mas Block sempre tentava

auscultá-Lo. De nada adiantaram as admoestações do fiel escudeiro Jöns. Até o derradeiro

momento, o cavaleiro continuou a voltar suas preces para a abóbada vazia do céu, esta

imagem tão recorrente na filmografia de Bergman.

Por que Block simplesmente não virou as costas para Deus? Ora, alguém que optou

pela defesa da fé, que se tornou um cavaleiro, não abandona a missão tão facilmente. Ainda

assim, tal apego pôde ser arrefecido pelas barbaridades das cruzadas que acabaram por

transformar a vida segundo os evangelhos em uma trágica derrisão. Como o Cândido, de

Voltaire, que foi perdendo o otimismo visceral ao longo de seu transcurso tétrico pelas

calamidades do mundo, Block foi se petrificando – a negação do bloco de pedra sobre o

qual Cristo profetizou que Pedro construiria seu reino. Tudo lhe fazia afastar-se cada vez

mais da divindade. A aura extática de um mundo orgânico e coeso, em que cada estamento

tinha seu lugar, em que cada qual se curvava diante dos superiores hierárquicos até que

Deus ocupasse o trono diante do qual todos deviam se prostrar, em suma, o verão da Idade

Média, todo esse panorama estava esturricando como a frágil folha outonal a partir da qual

o historiador Johan Huizinga encontrou sua bela metáfora para a decrepitude do período

medieval.

Mas Antonius Block se aferrou à herança medieval. Assim, seria possível dizer que

o protagonista de O sétimo selo não quis aceitar o sepultamento dos valores que haviam

alicerçado suas escolhas. Block, por esse prisma, seria um anacrônico que estaria tentando

conter a roda da história para que os feudos, a cavalaria e a Igreja ainda continuassem a

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pregar assim na terra como no céu. Mas o esfacelamento do medievo subverte a boa nova e

a transforma assim no céu como na terra. Tal percepção sobre Antonius Block me parece a

mais imediata. No entanto, há outras camadas de interpretação que podem suscitar

reflexões distintas sobre possíveis metáforas do cavaleiro.

Se os diferentes povos sempre se estruturaram com uma miríade de cosmologias,

por que Antonius Block deveria entoar o réquiem da religiosidade? O cavaleiro também

sintetiza o ímpeto do homo religiosus, para quem a dimensão de um outro mundo, a

dimensão de algo melhor e a consolação diante da dor são buscas inescapáveis. Nesse

sentido, a busca racional de Block estaria clamando por instrumentos e respostas teológicos

que o outono medieval não lhe poderia fornecer. Ainda assim, tal ímpeto investigativo, a

contrapelo do autoritarismo do clero que propugnava pelo mistério, pode ser visto como um

prenúncio de tradições espirituais que partem das bases legadas pelo catolicismo para

continuar a investigar o que há para além do silêncio de Deus. Por esse novo prisma, Block

torna-se um religioso negativo, aquele que, em estreita correlação com as aporias de seu

tempo, já não consegue oferecer respostas cabais, mas que, em conjugação com a dúvida,

postula uma série de perguntas que solapam as estruturas ossificadas da fé e as fazem

caminhar.

Nesse momento, o cavaleiro assume duas identidades recíprocas e sub-

repticiamente pressupostas, como se houvesse ocorrido uma cisão entre Antonius e Block.

Antonius, o religioso anacrônico que quer conter o esboroamento da fé medieval fazendo

com que a história deixe de caminhar e se modificar. Block, o religioso projetivo que, ao

clamar por Deus enquanto Ele permanece em silêncio, insufla ar fresco às questões que

norteavam a espiritualidade e pressupõe novas formas de investigação sobre o silêncio de

Deus. A segunda acepção, a meu ver, está profundamente vinculada à noção de que o

cavaleiro anteciparia configurações de um tempo vindouro. Um moderno para quem não é

possível aceitar sem mais a lógica do mistério e da autoridade clerical da fé.

Do entrechoque entre o Antonius anacrônico e o Block religioso não desponta

apenas a espiritualidade. Chegamos também às raias do ateísmo. E, nesse momento, é o fiel

escudeiro Jöns quem se entrelaça ao cavaleiro. Se a angústia de Block pressupõe a fé

anacrônica e a espiritualidade reestruturada, o silêncio de Deus também pode se confundir

com sua total inexistência. O silêncio do nada, portanto. Diante de tal apostasia, que faz o

81

teólogo Raval, outrora doutor da Igreja? Torna-se um bandido contumaz, um vil estuprador.

Eis uma das possibilidades que a ruptura do tecido social calcado na religião apresenta. Se

o medo da punição divina transforma-se em mero fogo fátuo, os intelectuais – a antena da

raça, se retrabalharmos a máxima do poeta Ezra Pound sobre os escritores – conseguem

entrever, em meio aos escombros da transcendência, que tudo passa a ser permitido. Tal

opção me parece também a mais imediata, e Bergman mostrou-se polissêmico ao estruturar

o filme com a plêiade de desdobramentos que o silêncio de Deus poderia suscitar. No

entanto, como entender o fiel escudeiro Jöns? Que contribuições ele teria a trazer para o

devir da história?

Apesar de ser pragmática e simbolicamente um escudeiro, Jöns perfaz a mesma via

crucis intelectual que faz com que Antonius Block sofra por conta da ausência de Deus.

Porém, enquanto Block rumina os cacos divinos, Jöns, qual um niilista afirmativo – e aqui

temos uma suposta contradição nos termos –, lança raízes pelo mundo em ruínas. Se beber

é preciso, então bebamos! O prazer é fugaz, mas as cortesãs ainda o incitam. Tudo isso

poderia fazer de Jöns um cínico que apenas afirma o momento, ou então a mera sucessão

dos momentos. Mas quem é que contém o roubo e a vilania de estupro de Raval senão o

escudeiro? Afirmar o prazer também implica refrear o ímpeto do ego, fazer o bem mesmo

que isso implique ir contra a própria vontade. Jöns perfaz o caminho que dá vazão a uma

leitura moderna de sua atitude. Senão, vejamos: com o crepúsculo dos deuses, Jöns realoca

o assim na terra como no céu e o transforma, com uma profunda transvaloração, em assim

no céu como na terra. O ímpeto de fazer o bem, a vontade de amar, a aceitação da finitude,

tudo isso o leva não ao desespero de Block, mas ao desafio altivo perante a vida que nos

solapa pelo transcurso do tempo. É como se Jöns assim dissesse: “se é preciso morrer,

então é ainda mais preciso viver”. E aqui se dirime a suposta contradição nos termos para o

niilista afirmativo: o niilismo nega a tradição, nega os valores consolidados, denega a

divindade, mas afirma o corpo sujeito ao devir do tempo. Afirmação contingente e

temerária, mas, ainda assim, uma afirmação. Se levarmos às últimas consequências o

argumento e as práticas de Jöns, não chegaremos a um protoiluminismo e às ideias que

embasaram o filho dileto da razão, o socialismo? Seria preciso transformar o mundo apesar

da sua finitude, apesar de o próprio Jöns não vir a fazer parte da incerta harmonia futura –

ainda mais arbitrária se pensarmos no contexto de fratura medieval em que o filme se

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ambienta. Uma certa dose de cinismo, então, dá as mãos a um ímpeto transformador bem

próprio à modernidade. Desse entrechoque chegamos a uma certa gaia protociência do

viver em que o toque do sol cálido bem pode fazer sorrir, em que o regozijo na alcova da

cortesã tende a parecer o repouso dos justos. Jöns, nesse sentido, ultrapassa Block e

apresenta um desdobramento outro para as angústias do cavaleiro. A afirmação efêmera da

vida diante da aniquilação dos valores tradicionais.

Quando evocamos Jöns pelo prisma da afirmação efêmera da vida, não podemos

deixar de encontrar laivos da família de artistas mambembes formada por Jof, Mia e o

pequeno Mikael. A contiguidade se faz arredia ao pensarmos que Jof é insciente em face de

Jöns. O artista não conhece os bastidores teológicos dos evangelhos. Mas, ainda assim, Jof

afirma a vida. Ele a afirma não porque conheça o “apesar de”, não por uma opção

claramente consciente como a de Jöns, mas por estar enraizado em um cotidiano que lhe

permite sorrir ao encontro de si mesmo e de suas aspirações. Uma família acolhedora o

recebe e é por ele insuflada, Jof cantarola e convoca os bons deuses da música, Mia o ama

com carinho e dedicação. E mais: ao lado de Block, Jof é o único a ver efetivamente o

além-mundo. Duas personagens compartilham experiências tangíveis com a espiritualidade.

Block desde sempre lida com a Morte; Jof tem a visão da Virgem ao lado do pequeno

Mikael e, no momento derradeiro, é salvo pela percepção de que a Morte joga xadrez com o

cavaleiro. “Vamos fugir enquanto há tempo!”

Jof poderia ser considerado um mero ingênuo e iletrado como aqueles que o senso

comum, sem perceber as agruras da falta de formação, tende a tomar como felizes. Mas, a

meu ver, não se poderia estar mais longe de uma interpretação efetiva. Jof não é um mero

ingênuo que simplesmente respira e passa os dias a sorrir mesmo com as mais terríveis

intempéries a lhe fustigar. Jof e sua família são felizes como artistas. A vida, nesse caso,

encontra-se em simbiose com as aspirações mais próprias. Jof ama e é amado. Jof é pai. Jof

atua. O iluminismo chegou a acreditar que poderia criar sociedades em que Jof fosse

gradativamente se transformado em Jöns. Eis o ápice da utopia – o não-lugar de Thomas

More tornado lugar histórico e social pela transformação humana. Mas a história não

realizou o ímpeto de Jöns e transforma em algo bastante contingente a felicidade de Jof.

De qualquer forma, Block, Jöns e Jof formam a tríade dialética que estruturou esta

análise. As personagens se constituem de forma relacional e recíproca para tentarmos

83

entreouvir o que desponta do silêncio de Deus. Quiçá todos tenhamos algo dos elementos

que estruturam o cavaleiro, o escudeiro e o artista. Bergman os transformou em três

personagens, mas procurei analisá-las em suas estreitas contiguidades, como se suas

identidades fossem fluidas, na medida em que se complementam.

O ímpeto de Block clama pela volta de Deus e, no limite, por sua reconfiguração.

Jöns tenta afirmar um novo sentido da vida entre as fissuras medievais, afirmação tênue que

ainda precisaria da moderna tradição niilista para compor a falta de sentido como um

caminho existencial. Jof, por sua vez, sintetiza o encontro que Block gostaria de ter com a

afirmação vital de que Jöns tenta lançar mão com felicidade. Os três momentos podem

durar? Ora, todos precisam lidar com a finitude, a Morte sempre à espreita. Mas se, ainda

uma vez, lançarmos as personagens umas contra as outras, deveremos perguntar o que resta

delas ao levarmos em consideração a colocação de que O sétimo selo poderia ser uma

narrativa sobre as origens do niilismo moderno.

O cristianismo não mais estrutura a sociedade como um todo. O Sermão da

Montanha, denegado pelas práticas contumazes dos cristãos e de sua Igreja, não mais

estabelece a mediação inequívoca das ações cotidianas. Ainda assim, o crepúsculo dos

deuses não relegou à religião a um completo vale de sombras. O Brasil, nesse sentido, é um

país paradigmático. Uma miríade de crenças e religiões convivem de forma mais ou menos

tensa e comprovam que a fé, mesmo diante de um mundo sobremaneira secularizado,

persiste como um importante pilar. A agonia de Block, nesse sentido, ainda encontraria

guarida nas igrejas, templos, sinagogas, mesquitas, terreiros e centros. Parece-me possível

dizer que suas aflições ganhariam novas e mais trágicas dimensões quando do contraste

entre o êxtase de uma cerimônia religiosa e a realidade enregelada e indiferente que

circunda os e muitas vezes se infiltra nos locais sagrados. Block teria novos instrumentos

para questionar o silêncio de Deus e a persistência da religião. Sob novas formas e tensões,

o cavaleiro continuaria a vivenciar seu diálogo com a divindade.

Jöns, por sua vez, seria municiado por um vasto arsenal filosófico para afirmar a

vida por si mesma. Uma afirmação contingente, mas, ainda assim, uma afirmação. Se se

voltasse para o socialismo, teria que lidar com as agruras de uma utopia que se transformou

em profunda cicatriz distópica ao longo de suas experiências pelo século XX. Talvez ele se

transformasse em um democrata que tentasse lutar pelo melhor dos mundos possíveis, isto

84

é, alguém que hasteia a bandeira do mal menor. Mas também poderíamos pensar em um

Jöns que afirma uma trajetória própria – um Nietzsche revisitado. Nesse sentido, a

decadência dos parâmetros artísticos, a ascensão autoritária da indústria cultural e a lógica

de competitividade e indiferença se apresentariam como fortes obstáculos para a busca do

escudeiro pela bela vida. Não é abstruso pensar que o grande ímpeto de Jöns pudesse se

reverter em uma aguda depressão. Uma depressão contraditória. Jöns seria deprimido – isto

é, comprimido – por um mundo mais estreito que sua enorme vontade de vida. O mundo

talvez não lhe pudesse oferecer a sanha de momentos intensos e verdadeiros por que sua

trajetória tanto procura. Daí, também, um possível desdobramento resignado de Jöns. Uma

resignação que tanto poderia ser sábia – desfrutemos, então, dos fragmentos que nos podem

fazer sorrir – quanto cínica. O cinismo despontaria da consciência vívida de que há algo

melhor em nós, algo que não pode ser vivido. Logo, algo que não mais queremos viver.

Jöns, assim, teria um vasto terreno na contemporaneidade e daria vazão a uma série de

personagens típicas.

E quanto a Jof? A insciência do artista mambembe não diz respeito apenas à falta de

formação. É bem verdade que a ignorância filosófico-teológica faz com que Jof não consiga

apreender intelectualmente os estlhaços aporéticos que transformam Deus em uma aposta.

Mas que dizer da felicidade que Jof sente em ser artista? Que dizer de seu amor por Mia e o

pequeno Mikael? Se Block e Jöns dissessem que se trata de uma mera contingência, seria

possível redarguir que se trata de uma contingência finita que, ainda assim, faz Jof sorrir. O

ceticismo tenta enquadrar tal felicidade, mas não consegue explicar por que ela se insinua

pelas frestas exíguas da indiferença, do cinismo e, no limite, do desprezo. É como se

disséssemos que Jof simplesmente é. Ele não sabe que há mais, mas também não se

incomoda por e nem sente haver menos. Ele está bem. É bem verdade que a modernidade

secularizada tende a transformar Jof em um completo desvio que beira o milagre em uma

sociedade que baniu Deus do mundo. Também é verdade que a postura pouco racionalizada

de Jof teria pouca chance de sobrevivência em meio a um mundo de cálculo utilitário e

razão instrumental que coagem o eu a transformar o outro em uma alavanca de seu

hedonismo. Postas as limitações de Jof, ainda assim sua felicidade se insinua e parece

constituir um norte inescapável – daquelas esperanças silenciosas (o reverso do silêncio de

Deus, seu retorno) de que não queremos abrir mão, mas que também não confessamos a

85

praticamente ninguém, sob a pena de nos considerarem ingênuos. Mas Jof não é um

simplesmente um cego que ri. Ele bem sabe proteger a família das investidas da Morte. Jof

também morrerá. Mas isso não lhe impede de exercer sua graça. O conceito que Bergman

nos trouxe do medievo a partir das vivências de Jof se transforma em permanência da

esperança em nossa sociedade do cálculo egoísta. No outono da Idade Média, Jof era um

agraciado. No inverno da modernidade, Jof é inexplicavelmente feliz. E, aqui, poderíamos

falar dos vários tipos de felicidade industrialmente planejados. Mas estamos diante de uma

alegria quase inexistente pelas coisas mesmas, por um abraço, por um encontro, por uma

ceia que nos brinda com morangos ao leite.

Bergman, até os estertores, mencionou a possibilidade de santidade entre os

homens. Algo que aponta para além do atual estado de coisas. Algo que pede um outro, um

além. Jof não pode ser tomado como o paradigma que se contrapõe inequivocamente à

modernidade. Seria um retrocesso afirmar que o embotamento da razão liberta e emancipa.

Mas seu caráter telúrico, seu ímpeto vivencial estruturam o que de melhor a utopia nos

tentou fornecer. Sua felicidade reúne as perguntas do cavaleiro Antonius Block e a

afirmação terrena do escudeiro Jöns com a altivez de quem expressa, ao longo da existência

que se esvai, o transcurso autóctone da própria vocação. Se, como Bergman sustentou, O

sétimo selo mais suscita perguntas do que sentencia respostas, as trajetórias das

personagens em questão nos fazem auscultar o silêncio de nossas próprias angústias e

expectativas. Viver em meio a crenças levianas não parece ser uma saída. Sobreviver em

meio à crença nihil tampouco oferece abrigo. A graça ainda oferece aconchego, desde que

compreendamos suas transformações em uma sociedade secularizada que transformou o

medievo em uma lembrança reiterada. Reconfigurar Jof e as dúvidas e libelos de Block e

Jöns seria um projeto para humanizar a humanidade. Continuaríamos – e continuaremos – a

jogar xadrez com a morte. O xeque-mate não deixaria de ser doloroso. Mas, a cada

momento, buscaríamos algo outro que a secularização não consegue calar. O afago

inescapável da eternidade, a bondade de Jof, os anseios de Block, o ímpeto de Jöns: a

tensão rediviva de O sétimo selo.

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