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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA REDES SOCIAIS E MICROPOLÍTICAS DA JUVENTUDE FÁBIO DAL MOLIN Orientador: Professor Dr. José Vicente Tavares dos Santos Porto Alegre, 2007

Redes Sociais e Micropoliticas Da Juventude

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Apresenta formas de relações em redes sociais dos jovens

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA REDES SOCIAIS E MICROPOLTICAS DA J UVENTUDE FBIO DAL MOLIN Orientador: Professor Dr. J os Vicente Tavares dos Santos Porto Alegre, 2007 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA REDES SOCIAIS E MICROPOLTICAS DA J UVENTUDE FBIO DAL MOLIN TeseapresentadaaoProgramadePs-Graduaoem SociologiadaUniversidadeFederaldoRioGrandedo Sul, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Sociologia Orientador: Professor Dr. J os Vicente Tavares dos Santos Porto Alegre, 2007 3RESUMO O bairro Restinga, criado em meados dos anos setenta a partir de loteamentos e polticas de remoodefavelaspossuiumaterritorialidadeespacialesocialmarcadapeladiferenaeo estigma. O bairro , freqentemente, alvo de pesquisas acadmicas e j foi escolhida como plano piloto para um projeto de segurana pblica municipal A ambivalncia das polticas de urbanizaodividiuaRestingaemduasreas,aVelhaeaNova.Anecessidadedemobilizaopor melhoriasnascondiesdevidanobairroativouotrabalhoredessociaisquegerenciame executam o que ser chamado aqui de micropolticas para a juventude. Estas redes so constitudas por cidados que trabalham com hip-hop, mdias alternativas, promotoras legais populares, antigos lderescomunitrioseprofessoreseprofessorasdeescolasmunicipais.Soconsideradasaqui micropolticas atividades alternativas e realizadas em espaos intermedirios ou em colaborao s polticas estatais como metodologia para atingir a populao jovem e promover o debate sobre temas pertinentes realidade do bairro: educao ambiental, direitos humanos, democratizao dos meios de comunicao, violncia escolar.Estas micropolticas so executadas de diversas formas: eventosculturais,protestos,negociaescomopoderpblico,eprincipalmente,oficinas.Esta pesquisa procura descrever o trabalho destes cidadosseus conflitos com as polticas pblicas, a partirdeentrevistas,observaesdecampo,eparticipaoematividadesdacomunidadee acompanhamento de uma listade discusses telemtica. A pesquisa inclui uma reflexo sobre o conceitodejuventude,aspolticaspblicasnoBrasil,ahistriadobairroeaanlisedas micropolticasnaRestingaOsresultadosmostramqueaspolticaspblicaseasinstituies tradicionaisservemcomoalavancasparaasiniciativasdosatores,massuaburocraciae instabilidade,aomesmotempoemquegeramconflito,ativamprocessosdeautonomiaeauto-gesto.Palavras-chave: juventude, polticas pblicas, redes sociais, micropolticas 4ABSTRACT Restingaisacommunitydistrictthatwascreatedinthemidseventiesfromrealestate development and public policies of favela removals. Its social and spatial territory is characterized bydifferenceandstigma.Frequently,thedistrictisasiteforacademicresearchandwasonce chosen as a pilot plan for a municipal public security project. The ambivalence of urbanization policies divided Restinga into two areas, the Old and the New. Due to the need to improve the qualityoflivingconditions,socialnetworksweremobilizedinthedistrict,managingand performing,whatwillbecalledhere,youthdevelopmentmicro-policies.Thesenetworksare constitutedofHip-Hopteachers,alternativemediaproducers,low-incomeattorneys,traditional community leaders and public school teachers. Micro-policies are considered here as alternative activities and activities that are accomplished in an intermediate space, or in collaboration with government policies as a methodology to reach the juvenile population and promote the debate on themespertinenttotherealityofRestinga:environmentaleducation,humanrights,media democracy,schoolviolence.Thesemicro-policiesaredeliveredinmanyways:culturalevents, protests,negotiationswithpublicauthorityand,principally,workshops.Thisresearchseeksto describe the work of theses citizens, theyre conflicts with public policies, from interviews, field observations, and participation in community activities and following up on a discussion list on the Internet. The research includes a reflection on the concept of youth, public policies in Brazil, the history of the district and the analysis of the micro-policies of Restinga. The results show that the publicpoliciesandtraditionalinstitutionsserveasleversfortheactorsinitiatives,butits bureaucracy and instability, at the same time in which it generates conflict, activates processes of autonomy and self-management. Keywords: youth hood, public policies, social networks, micro-policies. 5SUMRIO LISTA DE INSTITUIES E SIGLAS......... .........................................................................VII QUADROS............................................................................................................................... .X APRESENTAO.....................................................................................................................14 1 INTRODUO.......................................................................................................................16 2 PROBLEMA DE PESQUISA E HIPTESE DE TRABALHO.............................................22 3 METODOLOGIA 3.1. Coleta e organizao dos dados ..........................................................................................23 3.2 Construo do campo:o uso de projetos de extenso como campo de investigao.............25 3.3 Dirios de campo...................................................................................................................25 4 PLANO TERICO E CONCEITUAL 4.1 J uventude, ambivalncia e modernidade ..............................................................................27 4.2Abordagemdarelaoentrejuventudeemodernidadevindadaliteraturaedo cinema..........................................................................................................................................28 4.3 A modernidade espreme os sujeitos......................................................................................29 4.4 Estado, redes e movimentos .................................................................................................33 4.5 Campo de disputas e poder simblico...................................................................................40 4.6 Redes, rizomas, macropolticas e micropolticas..................................................................42 4.7 J uventude...............................................................................................................................48 4.8 Polticas da juventude............................................................................................................53 4.9 Os jovens, as gangues e a violncia.......................................................................................47 5-POLTICAS PBLICAS DA JUVENTUDE NO BRASIL 5.1 Panorama geral......................................................................................................................61 5.2 Plano Nacional da J uventude................................................................................................64 5.3 Oficinas.................................................................................................................................68 6-RESTINGA:UMA HISTRIA DE AMBIVALNCIA E SEGREGAO URBANA 6.1Periferia..................................................................................................................................77 6.2 Remover para promover........................................................................................................83 6.3Programas de desfavelizao e excluso social......................................................................91 6.4Relato de uma entrevista com Beleza.....................................................................................92 6.5 Seu Alcides, o guerrilheiro urbano........................................................................................96 6.6 As favelas e o problema da segregao urbana.................................................................98 6.7 Plano Municipal de Segurana Urbana: projeto-piloto da Restinga:..................................100 6.8 Ilustraes............................................................................................................................103 67- CAMPOS DE AES E MICROPOLTICAS 7.1 Interaesentre a UFRGS e a Restinga.............................................................................107 7.2Vivenciando a cultura na Restinga.....................................................................................108 7.3 Projeto Convivncias...................................................................................................... 109 7.4 Por uma universidade de idias (pequeno ensaio).............................................................. 115 7.5 Estdio Multimeios.............................................................................................................117 7.6FERES:asredessociaiscomoestratgiadegeraoautnomademicropolticasda juventude na Restinga...............................................................................................................124 7.7 FERES: aes e interconexes............................................................................................125 7.8 Tornar-se slido...................................................................................................................129 7.9 Comit de Resistncia Popular e Rdio Resistncia...........................................................130 7.10 Oficinas sobre violncia nas escolas.................................................................................138 7.11 Ilustraes.........................................................................................................................168 8-CONCLUSODEUMPERCURSO:DAVIOLNCIAJUVENILSREDES MICROPOLTICAS 8,1 Violncia juvenil como mecanismo de disparo: do crime da sociedade inclusiva s redes sociais da sociedade excludente................................................................................................173 8.2 Lquido, slido, gs:as redes e suas expanses e contraes..............................................181 9 -EPLOGO............................................................................................................................189 10- REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...........................................................................192 ANEXO...................................................................................................................................200 Histria da Restinga construda no projeto Vivenciando a Cultura na Restinga...............201 Projeto Estdio Experimental Multimeios ...........................................................................205 Histria do FERES................................................................................................................213 Cronograma FERES 2005.....................................................................................................218 7 LISTA DE INSTITUIES E SIGLAS Academia de Samba Estado Maior da Restinga AMOVIR- Associao dos Moradores da Vila Restinga Associao dos Moradores Almirante Tamandar Pitinga Associao dos Moradores Cabriva Associao dos Moradores da Vila Castelo Associao dos Moradores da Vila Nova Santa Rita Associao dos Moradores do Barro Vermelho Associao de Moradores do Ncleo Esperana I Centro Administrativo Regional Restinga/ Extremo Sul (CAR) Centro Infanto -J uvenil Monteiro Lobato Centro de Promoo do Menor- COM Centro do Trabalhador da RestingaCentro Regional Sul FASC Conselho Tutelar Micro Regio 7 Consultoria de Segurana PMPA CRAS Comisso Regional de Assistncia Social Creche Comunitria Santa Rita Creche Renascer da Esperana CUFA- Central nica de Favelas DEDS Departamento de Educao e Desenvolvimento Social da PROREXT- Pr-Reitoria de Extenso E.C.A: Estatuto da Criana e do Adolescente E.J .A Educao de J ovens e Adultos EJ EMA- Encontro de J ovens Educadores para o Meio-Ambiente Escola Municipal de Primeiro Grau Deputado Lidovino Fanton 8Escola Municipal de Primeiro Grau Dolores Alcaraz Caldas Escola Municipal de Primeiro Grau Senador Alberto Pasqualini Escola Municipal de Primeiro Grau Vereador Carlos Pessoa de Brum Escola Municipal de Ensino FundamentalMrio Quintana Escola Municipal Especial Tristo Sucupira Vianna Escola Estadual de Primeiro Grau J os do Patrocnio Escola Municipal Infantil Vila Nova Restinga- Quinta Unidade Escola de Samba Estado Maior da Restinga Empresa de Transporte Tinga FASE Fundao de Assistncia Scio-Educativa Frum Regional da Restinga FERES- Frum de Educao da Restinga e Extremo Sul MEC- Ministrio da Educao e Cultura MHHOB- Movimento Hip-Hop Organizado Brasileiro MINC- Ministrio da Cultura O. P -Oramento Participativo Programa de Execuo de Medidas Scio Educativas em Meio Aberto PEMSE- FASC Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social e Institucional UFRGS Programa de Ps-Graduao em Sociologia UFRGS Programa de Sade da Famlia (PSF) Vila Castelo P.T. Partido dos Trabalhadores Rede Integrada de Atendimento da Restinga Restinga Crew O.N.G: Organizao No-Governamental SESU- Secretaria de Ensino Superior SIM Servio de Informao Mulher-PLPs Promotoras Legais Populares 9SMDHSU- Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurana Urbana Secretaria Municipal da Cultura Projeto de Descentralizao da Cultura SMED- Secretaria Municipal de Educao Unidade CECORES- Centro Comunitrio da Restinga Telecentro Restinga Unidade Sanitria da Restinga Velha O.N,G. Zombando Crew TV Gato Brasil 10QUADROS QUADRO 01 DECLOGO DAS REDES.......................................................................................42 QUADRO 02- CONCEITOS DE OFICINA.....................................................................................69 QUADRO 03: DINMICA DE UMA OFICINA............................................................................70 QUADRO 04 OFICINEIROS ACADMICOS E POPULARES....................................................70 QUADRO 05 VIOLNCIA NAS ESCOLAS :DEFINIES AMPLAS......................................153 QUADRO 06 VIOLNCIA NAS ESCOLAS DEFINIES SIMBLICAS ..............................154 QUADRO 07 VIOLNCIA NAS ESCOLAS: DEFINIES FSICAS OU CRIMINAIS..........155 QUADRO 08 :VIOLNCIA NAS ESCOLAS: DEFINIESAMPLAS OU DIFUSAS...........156 QUADRO 09 VIOLNCIA NAS ESCOLAS: SOLUES INTERNAS.....................................157 QUADRO 10 VIOLNCIA NAS ESCOLAS AUSNCIA DE SOLUO...............................158 11COLABORADORES E COLABORADORAS ClarisseAbraho,AugustoCezar,EvandroGuimares,MarcosFernandes,J .C.Beleza Alex Pacheco, Maria das Dores, Maria Guaneci, Andr Saroba, J ackson e Sabrina e demais membrosdoFERES,doComitdeResistnciaPopularedaTVGATO(depoimentos, informaes,histriadaRestinga,acessoasescolaseacolhimentodosprojetosde extenso, orientaes e guias) seu Alcides (depoimento).. Paulo Ressadori (digitalizao dos mapas da Restinga) DeisimerGorczevski,ElizngelaZaniol(informaessobreaRestingaeoPlanode Segurana Municipal e parceria no projeto Vivenciando a Cultura na Restinga). BiancaRuskowski,MarcosGoulart,DanielaScheifler(fotos,depoimentos,relatosdo projeto Convivncias eartigos sobre polticas pblicas da juventude). Gislei Lazzarotto e Cleci Maraschin (seminrio sobre extenso universitria e coordenao do Vivenciando..., emprstimo da cmera) Rodrigo Azevedo (ensinamentos e discusses criminolgicas, parceria na prtica docente e orientaes na banca de qualificao) Maria de Lurdes C. Ferraz (reviso do texto) Daniel Vaz Smith (pela fora com o abstract) Maria Obdlia Fayos Garcia, diretora Centro Cultural Brasil-Espanha (minha impressora estragou justo no momento da tese) CAPES (financiamento). 12 AGRADECIMENTOS ESPECIAIS: EvaMariaFayosGarcia(peloamor,compreensoeapoio),TaniaMaraGalliFonseca(minha grande mestra), Aline Winter Sudbrack e todos meus colegas de doutorado, J os Vicente Tavares dosSantos,professoresefuncionriosdoPPGS,GiovaniAndreoli,J ulianaDornelles,Rubem Vieira, Fernando Carvalho e J os Machado Pais. 13 A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhe seja imposta pela nossa certeza de que essas coisas so elas mesmas e no outras, pela imobilidade de nosso pensamento perante elas. A verdade que, quando eu assim despertava, comoespritoadebater-separaaveriguar,semsucesso,ondepoderiaachar-me, tudo girava em redor de mim no escuro, as coisas, os pases, os anos. Marcel Proust 14APRESENTAO O objetivo desta tese discutir e analisar as estratgias de moradores e trabalhadores do bairroRestinganaformaoderedesdecooperaoparadiscussoeexecuodepolticas pblicas voltadas para a juventude do bairro. A produo de redes abrange a heterogeneidade de entidades e sujeitos envolvidos, as estratgias organizacionais, bem como os objetos de interveno e campos de conflito. Na introduo ser feito um panorama geral do percurso desenvolvido pelo pesquisador em diferentestrajetriasacadmicas,queolevaramescolhadaRestinga,ealgumasdesuas problemticas como objeto da tese, at a elaborao do problema de pesquisa. No captulo seguinte ser apresentada a metodologia de pesquisa, atravs da descrio das tcnicas de coleta, anlise e a utilizao de tecnologias informatizadas. A seguir, sero abordados os operadores conceituais da tese, um conceito de ambivalncia, abordado por Bauman (1999) e tambm por David Garland (2005), que d conta de uma constante emprica presente em muitos depoimentos e situaes, explcitos no material emprico desta tese. Como exemplo, temos a relao das polticas pblicas do Estado e as demandas da populao, as relaesentreasleiseosprojetosexecutivos(macropolticasoupolticasmolares)eas ressonncias na complexidade da vida cotidiana e do trabalho precrio dos atores (micropolticas ou polticas moleculares). Tambm faz parte do referencial conceitual, a discusso, de Boaventura de Sousa Santos (2000), sobre o conflito entre regulao e emancipao, dentro do conjunto de prticas sociais e ideologias contemporneas que Bauman (2001) chama de Modernidade Lquida. Na seqncia ser discutido o conceito de juventude na contemporaneidade, opanorama das polticas pblicas da juventude no Brasil, chegando ao cotidiano de redes sociais que executam micropolticas da infncia, adolescncia e juventude do bairro Restinga. Nesse percurso, torna-se possvel traar um diagrama, ou campo de lutas simblicas e territoriais, envolvendo asaes estatais ou paraestatais (SANTOS, 1999), gerando mltiplos modos de vinculao, organizao e ao. As noes de campo, poder e de capital simblico de Bourdieu (1996 ;1989) tambm esto contempladas, como fio condutor da construo do problema de pesquisa e na teoria sociolgica fundamental deste autor. Serexaminadooconceitoderede,etambmoderizoma.pelaelasticidadee multiplicidadedasvinculaesediferentesmaneirasdeao,intervenoeconflitodasredes acompanhadasnotrabalhodecampo.Oprotagonismoabordadonosentidodeumtrabalho 15educativo, centrado em problemticas cotidianas do bairro e tambm da realidade brasileira, como ademocratizaodosmeiosdecomunicao,aecologia,oquestionamentodasprticas pedaggicas escolares, o desenvolvimento de formas de cooperao e a apropriao dos espaos pblicos; antagonismo, como as relaes ambivalentes e conflitivas com o poder estatal. A ao das redes implica em interveno e debate em campos de ao social, conflitos e dualidades. Nocaptulo06,serapresentadaahistriadoBairroRestingaeserofeitasalgumas consideraesarespeitodoseuprojetodeurbanizao,umpoucodadinmicaambivalentee controversadoEstadoesuaspolticaspblicasparaobairro,culminandocomoPlanode Segurana Pblica Municipal. A seguir, ser discutido o uso de atividades de extenso como campo emprico, e descritos osprojetosquefornecerammuitosdossubsdiosparadescrieseanlises.Serfocalizadaa polmica construo do Estdio Multimeios, parte do Plano de Segurana, e descritas as redes e micropolticas que atuam no bairro e que foram diretamente afetadas pelo referido projeto. Este captulo est dividido em duas partes: na primeira, feito um histrico da formao e estratgias de organizao das redes e, na segunda parte, sero abordadas as intervenes na comunidade, tendo como operadores descritivos o cronograma de aes e intervenes do FERES, as experincias do autor da tese em uma sesso de Rdio Livre e em oficinas sobre violncia nas escolas. Ocaptulo08umatentativadeinterpretaodomaterialempricodentrodoplano conceitual da tese; no 09, sero feitas as consideraes finais. Aps o eplogo encontram-se as referncias bibliogrficas e, em anexo, documentos referentes ao FERES e ao Estdio Multimeios. Aopoinicialerainserirmapasefotosdentrodotexto,paratransmitiraoleitoruma experincia mais rica do elemento destacado da tese, que o campo emprico; no entanto, por razes tcnicas de formatao e impresso, as figuras sero inseridas ao fim dos captulos 06 e 07, na seqncia em que aparecem em notas de rodap ao longo do texto. 161- INTRODUO A Restinga, como ser detalhado no captulo 06, um bairro construdo em nos anos 60 em umapolticadedeslocamentodefavelasdereasconsideradasprecriasparaumterreno geograficamente isolado das zonas centrais de Porto Alegre.Oprojetoarquitetnico,emtermosideais,eraestruturadoemunidadesvicinaisque constituiriamumcentrourbanoplenamentedesenvolvidoeautnomo.Taisunidadesvicinais representariamaaopacificadoraeorganizadoradoEstado,nacrenadequeaarquitetura poderia ser a soluo para problemas de convivncia urbana. Desde o incio de sua construo, a ambivalnciadaaodoEstadodeterminouformasdesegregaoeisolamento.Algumas remoes foram feitas fora e outras consentidas, a triagem dos candidatos moradia tinha um carteroficialporrenda,mastambmporapadrinhamentoouaindapelosimplesobjetivode desmontar as favelas nas regies centrais de Porto Alegre. Nosanos60,aVilaRestingaNova,projetoinicialdaRestinga,tevecincofasesde desenvolvimento; sua execuo foi parcial, pelo fato de o parque industrial, planejado para dar empregos sua populao, foi embargado, alm da falta de planejamento de aes estruturadas naoutra Restinga. O loteamento provisrio, no qual as famlias passariam por uma triagem, acabou sendo permanente e chamado de Vila Restinga Velha, para onde at hoje as populaes faveladas so removidas, havendo poucas e precrias polticas de urbanizao. O resultado do programa de remoo de favelas foi uma dupla segregao: a segregao interna pela diviso da Restinga em duas metades, que guardam entre si um diagrama simblico1 no qual toda a violncia est na Velha e as pessoas de bem esto na Nova, e em relao ao resto da cidade, pelo seu isolamento geogrfico A observao deste estudo, bem como os de minha dissertao de mestrado e dois estudossobreurbanizao (WIGNER, 1978 e HEIDRICH, 2002)mostram a Restinga como um campo de disputas heterogneo. A diviso binria Velha/Nova presente, mas no compartilhada por todos, e foi sensivelmente alterada pela evoluo das fases urbanas e a construo de uma avenida que a integra ao resto da cidade, e contrariamente ao senso comum, ajuda na circulao entre as duas Restingas. As grandes dificuldades enfrentadas pela populao, em termos de urbanizao e habitao, so sentidas por sua parcela de jovens e adolescentes que freqentam as escolas. 1 A concepo de diagrama simblico (trabalhada mais adiante)ser uma confluncia entre a de Poder Simblico (Bourdieu, 1989), a de configurao simblica (Elias &Scottson, 2000) e a interpretao do diagrama foucaltiano por Deleuze (1999) 17ARestingatambmrepletadepolticasassistenciaispararesolverassituaesde vulnerabilidade e excluso social, alm da violncia domstica e do trfico de drogas. Da mesma forma, marcante o papel da mobilizao de seus moradores e trabalhadores na reivindicao de soluesparaosproblemasetambmnaconstruodeentidadeseredessociaisqueatuam fortemente na mediao entre o Estado e a populao.O percurso deste pesquisador no bairro, presente desde 1996, justamente acompanhando asRedessociaisondeocorremalianas,conflitos,territrioshbridosentreatoresdoEstadoe movimentossociaisdobairronaexecuo,planejamentoegestodepolticasdainfncia, adolescnciaejuventude.Asaesdopoderpblicoeseusaparelhostcnicos,polticose cientficos so interpretadas por seus moradores e trabalhadores como precrias que no levam em conta o protagonismo da comunidade, configurao simblica que parece acompanhar a Restinga desde a sua construo. Ser aqui descrito o trabalho do FERES (Frum de Educao da Restinga e Extremo Sul), e algumasdesuasmltiplasinterconexescomoutrasinstituies,umarededetrabalhadorese trabalhadoras, que se autodenominam educadores populares e professores e professoras do Estado, que desenvolvem estratgias de luta e executam polticas scio-educativas voltadas para jovens, adolescentes, crianas, professores de escolas e comunidade em geral.Esta tese constituda por uma pesquisa a campo, marcada espacialmente por um bairro de Porto Alegre em termos concretos e geopolticos, o Bairro Restinga. A escolha deste local surgiu de um percurso de trabalhos anteriores que, ainda que tivessem metodologias e objetivos diversos, apresentavam como analisador fundamental as circunstncias de seu ambiente.Meu primeiro contato com o bairro foi na condio de estagirio do curso de graduao em Psicologia na UFRGS, na disciplina Estgio Integrado em Psicologia Social e Institucional. O local desteestgiofoinaEscolaEstadualJ osdoPatrocnio,daRestingaVelha.Comopartedo trabalho dos estagirios estava o mapeamento do contexto social da escola, e a apresentao de um trabalhofinalcomcaractersticasdeinvestigaocientfica.Muitasinterpretaeseanlises referiam-seaocotidianoescolaretambmssuasinterfacescomalocalizaogeogrficado bairro, suas conseqncias simblicas, suas redes de poder e com os servios circundantes. A escola, no bairro, encontra-se em uma rede compreendida por escolas do Municpio e do Estado, incluindo diversos atores sociais: as Polcias, o Conselho Tutelar, as Redes de poder do bairro,emgerallideranascomunitrias,igrejas,movimentosculturais,almdosterritriosdo trfico de drogas. Otrabalhodeestgiorepresentouaaberturadeumcampodeanlisesatentopouco convencionalnapsicologiaenoseuaprendizado.claroquetodotrabalhopsicolgicode 18interveno, mesmo o mais conservador, envolve uma leitura mnima e um envolvimento com as condiesinstitucionaisesociaislocais,masesseteveemumdosseusobjetivosiniciaisa cartografia2 social de seu territrio.As teorias lidas e abordadas nas supervises acadmicas e na elaborao do relatrio final de estgio construram um objeto de anlise e interveno inspirado nos conceitos de micropoltica, segmentaridade,territrios,mquinasabstratas, molaremolecularconstantesnaobradeGilles DeleuzeeFlixGuattari(GUATTARI,1980;DELEUZE&GUATTARI,1996/1998).Tais pensadoresatravessamcamposdiversosetransversosdascinciashumanas:apsicanlise, filosofia,apsicologia,ascinciassociais;complementandoesses,oconceitodemicropoltica, destes mesmos autores, ser discutido e utilizado na interpretao do material emprico. A histria da Restinga, suas caractersticas urbanas, conflitos, e, enfim, tentativas de descrever e interpretar um imaginvel modo de ser e subjetivar restinguense levaram o aproveitamento da experincia ao lugar do estgio posterior, na Psicologia Clnica, em uma Unidade Bsica de Sade Municipal.OsconceitosdeDeleuzeeGuattari,cujacomplexidadedeobjetoseperspectivasos levaram a chamar sua anlise de esquizoanlise, ou seja, uma anlise ao mesmo tempo do social, dogrupal,doantropolgico,dopolticoedesuasafetaeseatravessamentosnosingular, instrumentalizam o olhar do pesquisador a atingir vos rasantes e ao mesmo tempo estratosfricos.No trabalho cotidiano de observar uma escola, uma turma em sala de aula ou a reprimenda de um professor a um aluno, ou at mesmo o controle de entradas e sadas, possvel confrontar-se com aquilo que est enquadrado nas polticas molares da educao (macropolticas), os currculos, dos regimes de trabalho e de filosofias pedaggicas, bem como a situao de um bairro construdo em polticas de segregao urbana. Noentanto,narebeldiadosalunos,nairritaodoseducadores,nospequenosconflitos entre mes, pais e a equipe diretiva possvel observar a reao dos sujeitos, as derivaes da poltica, o foco onde construda a resistncia, exatamente no lugar da precariedade da poltica que se pretende absoluta e que, em determinados pontos, bem aparelhada, disciplinada e financiada, ela chega perto de seus ideais. Da Escola J os do Patrocnio Unidade Bsica de Sade da Restinga Velha o olhar do pesquisador-cartgrafo levou meus ps ao Conselho Tutelar e Rede de Ateno CrianaeaoAdolescente,umaRedeque,aindaquemajoritariamentecompostapor 2 Cartografar remonta a uma tempestade... Tempestade de escolher rotas a serem criadas, constituir uma geografiade endereos, de registros de navegao, buscar passagens... Dentro do oceano da produo de conhecimento, cartografar desenhar,tramarmovimentaesemacoplamentosentremarenavegador,compondomultiplicidadese diferenciaes. (KIRST et ali, 2003, p.91) 19representantes de escolas e pelo Conselho Tutelar, sob a gide da macropoltica do Estatuto da Criana e do Adolescente, tambm era agenciada e gestada pelo provisrio, pelo incerto. OestudobuscavaacompreensodeumaredesocialatravsdaTeoriadosSistemas Vivos.Porsistemavivoentende-seaqueleque,mantendosuaorganizaodistintaporum observador (identidade sistmica), realiza cmbios em sua estrutura (elementos constituintes) no processodeproduodesimesmo(autopoiese).Porseremabertosaofluxodematriae energia, os sistemas autopoiticos realizam seus cmbios estruturais a partir de interaes com outrossistemas,ouacoplamentosestruturais.Foifeitaumabrevecontextualizaotericaa respeito das descobertas da fsica contempornea, at a noo de redes autopoiticas, seu uso na psicologia social e institucional. Foi escolhida como objeto de estudo a Rede Integrada de Servios do Bairro Restinga, em Porto Alegre, atravs da observao de suas reunies (dirios de campo) e transcries de suas atas, bem como documentos enviados pela e para a Rede como sistema. Foram analisados trsmomentosdesuaautopoiese:suaconstituiocomoespaoabertoemltiplo,seus movimentos com fins organizativos (auto-regulao) e um acoplamento com outro sistema. Por fim, discutiu-se a importncia da pesquisa, pela sua integrao entre a teoria dos sistemas vivos e os conceitos de Santos (1999) sobre os movimentos sociais e suas relaes com o Estado, alm das relaes entre regulao e emancipao. Enfim, a Rede do E.C.A. demonstrava mltiplas formas de organizar-se, sem apresentar umaestruturargida,umageometriaestatalburocrtica.Noentanto,odesejodetrabalhar coletivamentenaresoluodosdiversosproblemasreferentessvariadasformasdeviolncia, fsica,simblica,ouainda,difusa,quepercorremocotidianodeboapartedapopulaoda Restinga, transformou a precariedade e a desorganizao em estratgias mltiplas de organizao que mantiveram e ainda mantm a Rede funcionando por mais de dez anos.AhistriadePortoAlegremostraquenestascomunidadessegregadas,vilas,favelas, cortios, os moradores nunca esperaram sentados para que a mquina do Estado resolvesse seus problemas,atporqueestanuncafoicapazdefaz-lonemmesmonosbairrosmaisassistidos (WAILSELFISZ et ali, 2004). Na Restinga, grande a queixa com relao ausncia (ou ambivalncia) do Estado no provimento de condies bsicas de sade, moradia, transporte, segurana, alimentao.O bairro foi construdo por uma poltica pblica de habitao inconclusa do Estado, possui boa parte de sua populaoinfantileadolescenteemescolas,hpostosdesade,umcentrocomunitrio (CECORES), e sua populao majoritariamente eleitora (IBGE, 2002). 20Intervencionismo, assistencialismo e ambivalncia geram frustrao e prostrao de uma parcela da populao da Restinga, mas tambm iniciativa e ao em outra parcela importante. Por outro lado, existe uma queixa em relao prpria vinculao precria dos atores da Restinga e a uma suposta falta de participao. Na verdade, h uma grande rede de ONGs, movimentos sociais e cidados moradores e moradoras do bairro envolvidos em todo tipo de atuao que desenvolvem mltiplos modos de intervir e estratgias de organizao. Pude analisar a Rede Integrada de Ateno Criana e ao Adolescente como um sistema autoorganizado,autopoitico,queatuaapartirdeestruturaspreexistentesdoEstado,masque constri uma poltica prpria, uma micropoltica. Foram relevantes, na ocasio, as idias de Santos (1999), sobre o Estado que se enfraqueceu a partir da prpria fora, e da importante reao dos movimentos sociais, na clssica relao entre regulao e emancipao, autonomia e dependncia3. A rede se organiza em um processo daordemaocaos e docaosordem, de instituies estatais formando uma rede heterognea e da Rede heterognea construindo modos de se organizar. Assim constru uma metodologia de observao e anlise de redes sociais em trs aspectos: sua constituio heterognea (mltiplos atores, instituies e modos de participar), suas estratgias de gerenciamento(modosdefuncionar)esuaefetividade,suaaonocontextodeinterveno (micropolticas). Aps um perodo de latncia do mestrado, no qual trabalhei como professor do curso de formao de policiais da Secretaria de J ustia e Segurana do RS, novamente recebi o convite, por uma parceria entre o ento secretrio de Segurana Municipal de POA e a Psicologia Social da UFRGS, para retornar Restinga, desta vez para observar o trabalho dos oficineiros populares do bairro na preveno da violncia juvenil. A primeira verso do projeto de tese era analisar ao Plano Municipal de Segurana Urbana Projeto Piloto Restinga. Ao entrar no curso de Sociologia, foram-me apresentadas muitas teorias sociolgicas contemporneas, talvez mais do que eu poderia absorver, e o mais importante, eu pude estudarnasdisciplinasoptativastodoopercursodacriminologia,desdeosculoXIXata contemporaneidade.Ainda que a culminncia da criminologia contempornea de esquerda fuja ao conceito de crime e siga rumo a uma complexidade crescente e necessidade de etnografias e estudos mais finos e subjetivos, meu projeto de qualificao tinha como objetivo analisar as tecnologias sociais de preveno da violncia, atravs do trabalho dos oficineiros da Restinga. A banca persuadiu-me a 3 Conforme Santos, (1999), a ser detalhado no captulo 05. 21nofazerisso,eaaprofundarosaspectosetnogrficosdobairroesuasconflitualidadesna educao dos jovens locais. Novamentefuilevadoamergulharnacomplexidadedasredes,atravsdeminhas iniciativasprprias,mastambmaproveitandoaexperinciadedoisimportantesprojetosde extenso:VivenciandoaCulturanaRestingaeConvivncias,ambostendocomoguiae plataforma uma nova rede social, integradora e gerenciadora de polticas scio-educativas do bairro que,tambm,naprecariedade,naheterogeneidadeenoconflito,buscaaautonomia,a autoorganizao, a interveno: o FERES (Frum de Educao da Restinga e Extremo Sul). O perodo em que estive conectado ao FERES foi o compreendido entre a criao de um Frum das Escolas, uma reunio de professores de escolas com oficineiros para algumas oficinas e projetos em conjunto at a mudana de nome para FERES, em 2005, e a conquista de uma sede no ms de novembro de 2006. Tais movimentos levaram-me a comparar o FERES com a Rede do E.C.A.utilizando-medasmetforasdosestadosfsicosdamatria:slido,lquidoegasoso (BAUMAN, 2001), e os cmbios entre tais estados, acompanhados por seus fluxos (DAL MOLIN e RIBEIRO, 2000). A tese est estruturada em uma metodologia que implica, alm dos dirios de campo, na utilizao de projetos de extenso como meios de obteno de dados, a problematizao do tema da juventude, da violncia e das polticas pblicas na contemporaneidade. A idia original da pesquisa partiudaquestodaviolnciajuvenil,umamltiplaconstruohistricadobairroRestinga, analisando os componentes da segregao urbana e das polticas ambivalentes, e da configurao simblica (ELIAS&SCOTSON, 2000). A tese constitui, ainda, uma anlise da gnese das redes sociaiscomasquaissetrabalhounestepercursododoutorado,bemcomoalgumasdesuas conflitualidades e uma descrio das aes e intervenes temticas e pontuais destas redes, o que chamo de micropolticas. Pela insero no contexto conflitivo entre a ambivalncia do Estado e da contrapartida das redessociais,oconceitodesistema,abordadonadissertao,darlugarparaodecampode disputas e conflitos de Pierre Bourdieu (1989; 1996). Indoaoencontrodaidiadeumasociologiadanolinearidade,deJ osMachadoPais (2001), procuro trazer nesta tese uma construo esttica e epistemolgica, tambm ps-linear. Nos captulos referentes construo do objeto, a descrio dos projetos de extenso, da breve histria da juventude e das polticas pblicas, as vrias verses da histria da Restinga e o problema da segregao urbana, o ritmo da argumentao ser linear, visto que so dados j estruturados da fonte. As etapas em que h o mergulho nas redes e na conflitualidade sero menos lineares, porque sobre a precariedade e a mobilidade das redes sociais que meus argumentos se sustentam. 222- PROBLEMA DE PESQUISA E HIPTESE DE TRABALHO PROBLEMA Como, em um contexto de ambivalncia da ao do estado so delimitados os campos de disputa envolvendo as polticas pblicas da juventude.Tambm se procura investigar como asredes sociais do Bairro Restinga transversalizam este campo e desenvolvem micropolticas scio-educativas para infncia, adolescncia e juventude; de que maneira estas redes se organizam, quem so estes atores, quais so os principais conflitos das redes sociais do bairro e de suas polticas pblicas. HIPTESE Asegregaoeoisolamentodobairrosocomponentessimblicosimportantesna ocupaodeespaosintersticiaisdoEstadopelasredessociais.Aindaqueaproblemticada violncia criminal seja constante, as principais questes referem-se s formas de violncia difusa e simblica, bem como a atuao ambivalente do Estado.O modo de ao das redes e de seus atores propor discusses sobre a problemtica em geral do bairro e, neste contexto, surgem mltiplas formas de organizao e mobilizao, os quais podem ser comparados com os estados da matria: o slido, o lquido e o gasoso. As redes da Restinga produzem, nas conexes e desconexes com o Estado,aesmicropolticas.Estasconexesedesconexesdemonstrariamapropriedade heterognea da ao estatal e das prprias redes, em movimentos de autonomia e dependncia, organizaoedesorganizao,regulaoeemancipao.Oscamposdeconhecimentoe interveno relativos a juventude, violncia e polticas pblicas so transversallizados pela ao das redes micropolticas em espaos hbridos e heterogneos, em trs aspectos:multiplicidade, estratgias de organizao e interveno. 233- METODOLOGIA 3.1 Coleta e organizao dos dados A metodologia de anlise constitui a organizao de dados, atravs do software intitulado Programa NVIVO, o qual possibilita a alimentao de informaes obtidas qualitativamente de maneira desorganizada, temporal e espacialmente, e sua categorizao e recategorizao contnuas. Os dados desta pesquisa aparecem de maneira difusa, porque pertencem a diferentes incurses no bairro:projetosdeextenso,participaoecolaboraoematividades,entrevistas,fotografias, filmagens, eventos, visitas, conversas, debates, mensagens enviadas a uma lista de discusses via e-mail, leitura de projetos como o plano de Segurana Pblica Municipal, cronogramas de atividades e eventos, e alguns elementos provenientes de minha histria anterior no bairro, como estagirio, durante o Curso de Psicologia da UFRGS e no mestrado.Ajustificativaparaissoqueasatividadesanterioresnobairrodelimitarame possibilitaram as incurses na etapa oficial de coleta, que foi o ano de 2005, e seguem uma mesma linha de raciocnio e de descobertas. A pesquisa do mestrado, por seu princpio de conexo, levou-me a outras redes da Restinga, inclusivequandotevesuadinmicaorganizacionalafetadapeloPlanodeSeguranaPblica Municipal,elaboradopeloentosecretrioLuzEduardoSoares,noanode2001.Napoca,a Restingafoiescolhidacomolcusdoprojetopilotodesteplano,porserumacomunidadede periferia, isolada geograficamente e urbanisticamente em relao ao restante de POA, assim como por apresentar elevados ndices de homicdios (na sua maioria de jovens e relativos ao trfico de drogasedeviolnciacontraacrianaeoadolescente).Esteplanodeterminavaumasriede intervenes na estrutura da segurana pblica em Porto Alegre, apresentando como diferencial um mapeamento de instituies assistenciais e de movimentos sociais atuantes no bairro. Seu lema era disputar menino a menino com o trfico (SOARES, 2001). AcriaodeumEstdioMultimeios,localdeoficinasartsticaseproduocultural, mobilizou a comunidade na sua gesto e administrao, tambm fomentando a criao de outros movimentos,umdelesserexaminadocomdetalhesaqui:oFERES:FrumdeEducaoda Restinga e Extremo Sul. Usarei as mensagens de mail da Lista do FERES, onde so debatidas, planejadas,relatadaseavaliadasasatividadesdoreferidoFrumedeoutrosmovimentos,sua estrutura de gerenciamento e princpios. Atravs do FERES pude estabelecer contatos e aprofundar minhas etnografias no bairro.Outro fator importante na metodologia foi a proposta de colaborao em algumas de suas atividades,feitanocontratoestabelecidocomoFERES:oferecimeusconhecimentosparadar 24algumas oficinas sobre violncia nas escolas e, em conseqncia, sobre o referendo da venda de armas e munies. Tambm colaborei para a insero da Restinga no Projeto Convivncias, do Departamento de Educao e Desenvolvimento Social da UFRGS.Calculoque,entreprojetosdeextenso,oficinas,observaesdeoficinas,eventosdo FERES ou sesses de rdio comunitria, reunies dos Seminrios e dos grupos temticos, bem comoseminriosgeraiseentrevistas,ototaldevisitasaobairrotenhasidode150.Entre mensagensdee-mailsrecebidaseenviadasdalistaFERES,iniciadasemabrilde2005e acompanhadasatnovembrode2006,acrescentadasslistasdosprojetosdeextenso,somam 3000 mensagens contendo folders, relatos de atividades de todos os grupos, debates, divulgao de eventos e intercmbio de informaes. Estelevantamentodemensagensdecorreioeletrnicoimportantepelofatodeque, atualmente,oe-mailconsideradoferramentafundamentalemtodososgruposeprojetos realizadosnomestrado,nestecontextoemqueosinterlocutores,nasuamaioria,utilizavam-se destatecnologiapararelatarexperincias,eventos,intervenese,porvezes,discusses autoanalticas referentes a seu papel no grupo, ao funcionamento da lista e das prprias estratgias de gerenciamento. Aprimeiraseleodomaterialdemensagensfoifeitanaprpriacoleta,atravsda filtragemdepequenasdiscussescotidianas,marcaodeencontros,discussessobrehorrios, eventos ou assuntos externos temtica das listas (como futebol, por exemplo). A segunda seleo implicou a captao de fatos relevantes ou notcias, relatos de eventos significativos feitos pelas prprias redes (incluindo os que eu mesmo redigi), bem como o envio de documentos,especialmenteosprojetos,cartasdeclaraesequaisquermensagensquedessem conta de um plano geral das temticas ou do prprio gerenciamento do grupo. Aterceiraseleofoiumacategorizaotemtica,proporcionadapelacriaodens (nodes) do NVIVO. Alm do curso de extenso ministrado pelo professor Alex Teixeira (PPGS-UFRGS)edadisciplinasobretecnologiasinformacionais,doprof.J osVicenteTavaresdos Santos(UFRGS),aproveiteitambmmeusconhecimentosobtidosnotrabalhodeiniciao cientfica, sob a orientao do Prof William B.Gomes (PPG Psicologia, UFRGS), quando, para analisar entrevistas, utilizvamos as trs etapas do mtodo fenomenolgico: descrio, reduo e interpretao. Este processo era construdo a partir da leitura das entrevistas e categorizaes e recategorizaes, em um programa mais antigo e simples que o NVIVO, o The Etnograph. Asobservaesdecampoforamarmazenadasemfilmagens,fitasK7,oucoletadasno programa de gerenciamento de e-mails chamado MicrosoftOutlookExpress. A transposio dos 25dados ao NVIVO feita pela transferncia destes para o editor de texto Microsoft Word conversopara o formato R.T.F (Rich Text Format).ONVIVOexigecomorequisitoaaberturadeumprojeto(createaproject),e,dentro deste, so abertos os documentos, pelo comando browse a document. Com o documento aberto, feitaaleituraecodificao,atravsdaferramentacoder.Ascategoriasidentificadasantesda entradadosdadosnoprogramasoinseridascomopastaschamadasnodes(ns).Ousurio procede a leitura do arquivo, enviando os textos categorizados para os ns abrindo a interface do coder e executando o comando code. Os ns previamente construdos so chamados tree nodes. Aleituradomaterialpodelevarcriaodenovascategoriasquepodemserposteriormente nomeadas, atravs da ferramenta freenodes. O NVIVO permite que dentro de cada n sejam feitososmesmosprocessosdecriaodenovascategorias,bemcomooreagrupamentoe interseco destas. Porforadohbitoetambmpelocarterdealtacomplexidadedosdadoscoletados, apenasaferramentadecriaoemanipulaodensfoiutilizadae,mesmoassim,muitos assuntosforamcategorizadoserecategorizadosvriasvezes.Aescolhafinaldoscaptulose temticasdateseveiodeumainterfaceentreasupervisodoorientadoreacategorizaodo material e das informaes processadas no trabalho de campo. preciso admitir que um risco foi assumido na escolha de uma multiplicidade to grande de informaes e sua transformao em dados foi um processo difcil, que talvez tenha dado um cartersuperficialsanlises,porm,foiumprocessointeressanteepistemologicamentepara, justamente, dar conta do conceito de rede e seus mecanismos. Os dirios de campo so tambm categorizaes, mas que utilizam mecanismos de seleo provenientes das memrias do prprio pesquisador e seus processos evocativos e interpretativos. Muitos foram escritos no nibus ou em momentos de exausto, ao chegar de uma viagem s vezes de uma hora e meia de nibus, na chuva ou no calor, para aproveitar a experincia recente; outros, tambm, aps vrios dias para aproveitar o esfriamento da reflexividade.Alguns dirios foram enviados por e-mail para listas e reabsorvidos, outros passaram meses confinados em pastas do computador, at serem relidos, revisitados e transformados em texto. 3.2 Dirios de campo Os dirios de campo foram escritos de diferentes maneiras, aproveitando fluxos de insero na comunidade e meus prprios insights tericos e crticos. Muitos destes dirios eram escritos por mail, ou para a lista do FERES, ou para lista do projeto Vivenciando..., ou seja, possuem um certo direcionamento a uma alteridade, so relatos compartilhados em rede. 26Em algumas ocasies, so descries mais objetivas e, em outras, so quase como textos que mesclam leituras tericas e j reflexes pensando no texto da tese. Eu mantenho este estilo de escrever desde os relatrios de estgio da graduao, talvez por minha tradio fenomenolgica e minhasposterioresleiturasdeMaturana,colocandodeformaexplcitaetotalmenteradicalo observadordentrodacoisaobservada,sabendodosriscos,masconscientizandooleitordeles. Minhas anlises so anlises de intensidade e meu mtodo intuitivo e em fluxos. Meu objetivo como pesquisador refletir, recolocar, desconstruir e reconstruir. Durantetodoocursodedoutoradoparticipeidedoisprojetosdeextensoqueforam importantes fontes de dados: a) Vivenciando a Cultura na Restinga: parceria entre o FERES e o Departamento de Psicologia SocialeInstitucionaldaUFRGS,atravsdeumEditaldoMECSESUparaformaode Educadores Populares. Durante dois anos, foram realizados encontros semanais com os oficineiros, planejamento e execuo de oficinas, produo de um vdeo e uma publicao escrita, contendo inclusive uma histria da Restinga, contada por moradores mais antigos. b)Convivncias:iniciativadaPROREXT,daUFRGS.Nesseprojeto,10estudantesde semestres iniciais, de cursos regulares da UFRGS, convivem em bairros ou comunidades, com uma permanncia de seis dias. Nesse projeto, foram visitadas todas as principais unidades habitacionais do Bairro, os estudantes tiveram a oportunidade de conviver com oficineiros e apresentar em seus relatriossuasimpressessobreacomunidade.Tambmforamfeitosamplolevantamento fotogrfico e filmogrfico, com mais de 200 fotos e 6 horas de filmagem. Foi feito tambm um passeio ao Morro So Pedro e um programa inteiro na Rdio Livre. 274- CAMPO TERICO E CONCEITUAL 4.1 Juventude, ambivalncia e modernidade4

Ajuventudeserproblematizadaaquicomoumaformaexemplardoprpriosujeito contemporneo, e suas relaes ambivalentes entre o individual e o social, entre a liberdade e a coero, entre a participao e a inrcia. No presente condenado a repetir o passado de uma poltica habitacionalmodernaehigienistadosanos60,soobservadasaessociaiscujadinmicae complexidade s podem ser analisadas pela viso das redes e das micropolticas, das formas de violncia difusa, e da modernidade metaforizada entre estados da matria, o slido, o lquido e o gasoso. A juventude, ento, um territrio hbrido, inscrito nas teias do social. Nesta perspectiva, a construodoobjetodepesquisapartedeumcamposocialondeestoemjogoquestes macrossociolgicas, como relaes de capital simblico (BOURDIEU, 1999) dentro de um campo de disputas entre instituies estatais e paraestatais, como a educao, as polticas de segurana ou dejuventude,aadministraomunicipal,acomunidadeorganizada,asgangueseotrficode drogas. Mas, primeiro, vamos delimitar os diferentes campos e problemticada juventude e de suas polticas. 4.2UmaAbordagemdarelaoentrejuventudeemodernidadeadvindadaliteraturaedo cinema 4 Somos modernos, contemporneos ou ps-modernos? A expresso moderno, circunscrita ao terreno das artes,confunde-secomaSemanadeArteModerna,einvocapersonagenscomoOswalddeAndrade,Mriode Andrade, Anita Malfatti, e etc. Todos estudamos a semana de 1922 como um marco do modernismo no Brasil, e tal corrente artstica e literria, inspirada pelo clima europeu da poca, propunha-se a romper com padres formais da arte, da literatura, da poesia. E,talvez,sejaestezeitgeistmodernistaquetenhaconstrudoarededesignificadosquepermeiaouso corriqueiro da palavra moderno, que significa o novo, o contemporneo, que se confunde com o conceito estatstico de moda, que a repetio de um mesmo fato, roupa ou tendncia. Uma pessoa moderna costuma trajar-se de acordo comastendnciasdeseutempodeseucontexto,desuacidade,eeladeixades-lonomomentoemqueno acompanha esse ritmo de intensas mudanas. Aquilo que moderno no necessariamente est preso no tempo e no espao, porque a moda pode ser retr, a moda pode ser vestir-se com acessrios das nossas avs adquiridos em briques e brechs. Desta maneira, o suco corriqueiro da expresso ser moderno confunde com ser contemporneo, ou estar alinhado. Nas cincias sociais e na filosofia, a idia de modernidade apresenta-se de uma forma mais restrita a um perodo no tempo e no espao e a um determinado modus operandi daquilo que chamamos de sociedade moderna, ou como diz um grande pensador da modernidade, o socilogo ingls Anthony Giddens: O que modernidade? Como uma primeira aproximao, digamos simplesmente o seguinte :modernidade refere-se a estilo, costume de vida e ou organizao social que emergiram na Europa a partir do sculo XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influncia (Giddens 1991) Giddens observa a modernidade como um e conjunto de relaes econmicas e sociais que surgiram com o iluminismo, a democracia e o fortalecimento do estados nacionais, 28 Autores da sociologia contempornea, como Zygmunt Bauman (1999) e Anthony Giddens (1991) defendem que a ps-modernidade no significou o fim da modernidade, mas a relativizao, a crise identitria e funcional das instituies modernas, a Sociedade e o Estado A constatao que h uma individualizao das relaes sociais e que o protagonismo da ao social no mais pertenceapenasaoEstado,mastambmaosmovimentossociaiseinstituiesparaestatais. Conforme Bauman, a socializao partiria anteriormente da sociedade para os indivduos; hoje o processomodernoseliquefez,distribuiu-seentreosatoressociais,porisso,tambmdefinea modernidade tardia como modernidade lquida, cuja solidez dissolve-se pelas redes sociais.NoBrasil,estadinmicaseaplicapeladesigualdadesocialecarterhistricode precariedadeeautoritarismodoEstado.SegundoBauman(2005),oEstadoretirou-se(oufoi retirado) da esfera da proteo social nos estados em que ele realmente funcionou como protetor, e em partes do terceiro mundo. A Modernidade Lquida o passo seguinte da relativizao do papel das instituies modernas, retomando clebre frase de Marx: Tudo o que slido se desmancha noar(MARX,apudBAUMAN,2001).Oprocessodeindividualizaonosignificaria, necessariamente,oenclausuramentodosujeitonasuaindividualidade,esim,umainversodo processo sistema social-indivduo para indivduo-sistema social. As leituras de David Garland (2005) so muito semelhantes s de Bauman, considerando o papeldoEstadotardomodernonaspolticasdecontrolecriminal.Garlanddescreve,emA Cultura do Controle, o percurso da esperana na cincia e nos especialistas para o pragmatismo dasrespostasadaptativaseatuariais.Atravsdemedidasquedocontadasensaode insegurana,respondemaumaopiniopblicasedentaporpunioeresultados,outambm esquizofrnicaeambivalentenaexecuodemltiplastendncias,incuasemumcontexto considerado de normalidade e banalizao do crime. Aps examinar o conceito de ambivalncia em Bauman, tambm utilizarei o mecanismo de ambivalncia das polticas de segurana de Garland; no entanto, primeiramente, pretendo abordar a idia de um escritor ingls que, nos anos 60, soube descrever e sintetizar, em um filme, as polticas criminais da modernidade ambivalente. 4.3A modernidade espreme os sujeitos 29Alex - estranho, quando assisto a estes filmes sobre sexo e ultraviolncia, sinto esta sensao horrvel e tenho vontade de morrer. Enfermeira - Claro! A violncia realmente ruim. E seu corpo agora est aprendendo isso. (BURGESS,1999) AnthonyBurgess,noprefcioescritoaumaedioespanholadesuamaisfamosaobra LaranjaMecnica,forneceumainteressanteexplicaoparaestettulo:aidiadeLaranja representa algo vivo, mole, orgnico, sensvel, e Mecnica denota uma mquina dura e fria que a espreme. A juno dos termos representaria a relao do indivduo com o Estado e suas instncias disciplinares e repressoras. Laranja Mecnica relata a trajetria de Alex, 14 anos, que podemos chamar de jovem em conflito com a lei; no apenas com a lei, mas com instituies como a Escola, a Famlia, a Polcia, enfim, o mundo adulto ou a sociedade responsvel por sua tutela, uma sociedade na qual os jovens vestem roupas de uma mesma moda e falam grias constituintes de um dialeto prprio, o Nadsat. Durante a noite, os grupos juvenis dominam as ruas, impondo seu poder simblico e sua maioria. Alex e seus trs comparsas, aps ingerirem uma espcie de leite turbinado com diversos tiposdedrogas,seguemumatrajetriadoquechamamdeultraviolncia:pequenosroubos, estupros e conflitos com grupos rivais. Nas agitadas noites do bando de Alex, a ultraviolncia uma grande diverso, um ritual conjunto de jovens irreverentes e perversos. Alex, alm das aventuras noturnas, apaixonado por msica, e o som de Beethoven provoca efeitos semelhantes a uma droga estimulante; mora com os pais e est matriculado em uma escola que pouco freqenta, por no conseguir acordar cedo, aps suas noites de ultraviolncia que lhe rendem dinheiro, diverso e status. Cansados de pequenos furtos, os colegas da gangue de Alex o convencem a realizar um roubo maior: o assalto a uma manso onde vive uma mulher solteira e solitria. Alex, o lder, o primeiro a entrar na manso e, diante da reao da vtima, trado por seus companheiros e pego pela polcia. Seus delitos anteriores no deixavam rastros, inclusive aquele que se tornou uma cena clssica da histria do cinema; Alex e sua turma invadem a residncia de um escritor e, estuprando violentamente sua esposa, deixam seqelas irreparveis.Trado pelos colegas, preso e espancado de forma humilhante na delegacia, e encaminhado para uma penitenciria de segurana mxima. Nesta etapa, narra como entrou em contato com os homens mais perigosos da sociedade e como acaba assassinando outro preso, colega de cela. Comoapreciavamsicaerudita,consegue,aindanapriso,trabalharcomoauxiliardo capelo, preparando os hinos da missa e lendo os evangelhos diariamente. 30nestemomentodolivroqueteminciooconflitoexplcitoentreAlexeoEstado Moderno,noqualasforassubjetivadorasdasmquinassociaisexercemsuapresso disciplinadora sobre a mquina-viva que protagoniza a histria. O capelo imaginava que aquele jovem, aparentemente bem comportado, estava se tornando um bom cristo, mas, na verdade, ao ler o Novo Testamento, Alex alimentava suas fantasias perversas imaginando-se como legionrio, dandochibatadasemJ esusCristo.AimaginaoambivalentedojovemAlexprocessavade maneira singular aquilo que deveria cur-lo.Dada a superlotao dos presdios e a possibilidade da vinda de presos polticos ao sistema carcerrio, o Ministrio do Interior, responsvel pela segurana, resolve usar da cincia psicolgica para erradicar o crime, a partir do mtodo Ludwig de condicionamento, do qual Alex voluntrio. Omtodo,inspiradonasteoriasBehavioristasdemodificaodecomportamentopelo emparelhamentodeestmulos,consisteemamarr-loemumacadeiradecinema,emcujatela seriam passados filmes sobre ultraviolncia e sexo, sendo injetada em seu corpo uma substncia, a qualprovocavaextremasnuseaseumasensaodemorte.Apartirdaumaassociaode estmulos, Alex, ao pensar em sexo ou violncia, estava condicionado a ter estas sensaes at parar de pensar. Curado e libertado, o jovem, ao sair da priso, confronta-se com a crueldade da sociedade que no o perdoou por seus crimes. Inclusive a sua famlia o substituiu por um filho adotivo. Seus antigos colegas de crime tornam-se policiais, torturando-o e espancando-o. A mquina estatal o processou, mas as suas Redes de sociabilidade no se configuraram para receb-lo. Alex acaba por cair nas mos de um grupo de oposio ao governo, que tenta us-lo, mas acaba falhando, pois seu chefe um escritor que havia sido sua vtima e que, agora, tenta mat-lo. Novamente nas mos do Estado, Alex sofre uma cirurgia no crebro e retorna sua vida anterior,comumanovaturmadeamigos.Umanoite,suanovaturmaoconvidaparacometer crimes como de hbito, mas Alex recusa, e acaba encontrando um velho amigo, agora j adulto, casado,no falando mais grias, o que o faz pensar que o crime j no tinha mais graa, e que estava na hora de construir uma nova vida. interessante observar o trajeto de Alex por todas as instituies disciplinares modernas: Igreja, Presdio, Cincia, Escola, Famlia e, at mesmo, a que apontada como criminognica: o grupo de pares, ou gangue. E mais, ainda que todas o tenham assimilado, torturado ou tentado influenciar, de certa forma, elas fracassaram. Ele sempre mostrou resistncia, que tambm tinha poder sobre elas, e que seu trajeto como Laranja espremida pelas mquinas sociais mostrou o esquadrinhamentoevidentedatentativadamodernidadeeseusaparelhosformatadores,como apresenta Bauman: 31 Podemos dizer que a existncia moderna na medida em que produzida e sustentadapeloprojeto,manipulao,administrao,planejamento.A existncia moderna na medida em que administrada por agentes capazes (isto,possuemconhecimento,habilidadeetecnologia)esoberanos.Os agentessosoberanosnamedidaemquereivindicamedefendemcom sucesso o direito de administrar a existncia: o direito de definir a ordem e, por conseguinte, pr de lado o caos como refugo que escapa definio. Aprticatipicamentemoderna,asubstnciadapolticamoderna,do intelectomoderno,davidamoderna,oesforoparaexterminara ambivalncia: um esforo para definir com preciso - e suprimir ou eliminar tudo que no poderia ser ou no fosse precisamentedefinido.(1999, p. 15). No meio de sua trajetria, pressionado e manipulado pelo poder do Estado, Alex expressa sua condio: sinto-me como uma laranja mecnica, potncia ambivalente, expresso da vida sob a forma da violncia em conflito com potncias governamentais disciplinares e modernas, medidas curativas e punitivas da modernidade igualmente violenta. importante destacar que, ao final da histria, Alex resolve abandonar o crime a partir de reflexes alheias a todos mtodos subjetivadores aos quais foi submetido. Este fato, por um lado, pode trazer tona uma aluso sociedade disciplinar moderna; por outro, demonstrar ironicamente que, mesmo com toda a carga institucional, foi a prpria vontade do sujeito que o curou, em uma demonstrao de autonomia. A Laranja ambivalente mostrou-se um ser vivo. Sobre isso, Burgess comenta um fato curioso, e bastante significativo nesta argumentao: o livro foi escrito em 21 captulos, porque 21 anos representa a maioridade legal e, no final, ao encontrar um dos integrantes de sua antiga gangue, mais velho, casado e que abandonou as noites de travessura e as grias, Alex levado a refletir sobre a falta de sentido da violncia, e adquire discernimento sobre seus atos e seu papel social.O interessante que o editor norte-americano optou por cortar este ltimo captulo; na sua tica,nohaveriaqualquerpossibilidadedeAlexdeixarsuavidadecrime,etalfinalseria inverossmil. Entretanto, Stanley Kubrick (1972) utilizou a verso censurada para fazer sua verso cinematogrfica. Baumanescreve,emModernidadeeAmbivalncia,queacontemporaneidademaisumrefluxoda modernidade do que propriamente uma ps-modernidade. As instituies modernas, educacionais, cientficas, fabris, buscavam sempre o controle, a previsibilidade, a ordem ou a pureza. No entanto, os sujeitos submetidos a elas sempre foram ambivalentes: o manicmio cura o louco, mas o faz s custas de sua subjetividade; a priso s eficaz, porque mantm o preso isolado; a modernidade se concretiza em um fracasso de instituies que intentam ser socializadoras, mas o homem-mquina cartesiano s existe nos livros.A cincia moderna funda-se nos mecanismos de classificao, ou de ordenao e seriao. A segregao resultante de processos scio-cognitivos modernos. A partir de um plano tcnico-cientfico possvel determinar quem so os bons e quem so os maus, os criminosos natos, ou aqueles cujas condies econmicas certamente vo tornar-se 32delinqentes;eopapeldacinciajustamenteevitaristo.Paraconstruirumasociedadeorganizadanecessrio exercer o controle sobre seus cidados, sua sade, seu modo de existncia, suas fraquezas, e poder intervir, curar, eliminar aquilo que foge regra. Reduzir ao mximo a ambivalncia: para isso trabalham as mquinas modernas.No perodo moderno, a cincia classificatria e os grandes projetos de engenharia social pareciam, para seus idealizadores, como a nica alternativa. Hoje, a tendncia que a ambivalncia sejaconsideradapelasociedade,quesereconheamaslimitaesdomundomoderno.As instituies tais como a Escola, o Manicmio, as Prises, embaladas no sonho moderno da cura, da reabilitao e da socializao plena, encontram-se em crise com relao a seus prprios ideais, mas noquerdizerquetenhamchegadoaoseuocaso.SamosdasociedadecrenteemumEstado protetor, e entramos no mundo da novidade, da incerteza e da mudana rpida; mudemos nosso modo de funcionar, toleremos mais a diferena, e talvez possamos construir uma sociedade plural que conviva com a diferena. AplicandoasidiasdeBauman(1999)aocontextodacriminologiacontempornea,o criminlogoinglsJ ockYoung(2002)falasobreosproblemasdainclusosocialemuma perspectiva moderna. At que ponto, em uma sociedade no mais tutelada exclusivamente pelo Estado, no qual mltiplos atores e redes sociais entram no jogo poltico e social, pode-se falar em inclusoemtermosmodernos?poristoqueYoungdottulodeseulivroASociedade Excludente, argumentando que os mecanismos de incluso do Estado geram, em contrapartida, outros mecanismos de excluso.nestaperspectivaqueserobservadoaquioconceitodejuventude,comocategoria ambivalente,mveleinstvel,absolutamentereferidaaocontextomltiplodoquesignifica jovem, em especial no Brasil, pas em que a questo da juventude inicialmente relevante em termos de rebeldia e participao poltica na sociedade e na contemporaneidade, surgindo como smbolo de status, alienao e consumo, referindo-se s suas categorias includas ou de violncia e destruio em suas categorias excludas.Ainda no contexto das polticas criminais, Garland utiliza-se da noo de ambivalncia ao referir-seaoconflitoediscrepnciaentreosprojetoselaboradospelosgestoreseleitos,sua utilizaonosmeiosdecomunicaoeaexecuodestaspolticaspelostcnicosquelidam diretamentecomacomplexidadedarealidade.Estaapropriaodoconceitodeambivalncia fundamentalnestatese,poiseuacrescentariaesteconflitodosgestoresdarealidadequelas polticascriadaseexecutadas,nocasodasespecficasdosbairrosdeperiferia,pelosprprios sujeitos. aquiqueentraaidiademicropoltica. UtilizandoametforadeBauman,oEstado jardineiro errou a mo nos agrotxicos e no fez as podas na hora certa. nesta perspectiva que 33atuam as redes sociais, como ervas daninhas em um jardim, aquilo que Michael Hardt e Toni Negri denominam biopoltica, a poltica das redes feitas de moradores e trabalhadores, dentro e fora da burocracia estatal, a multido. 4.4 Estado, redes e movimentos As conflitualidades entre o poder pblico estatal e as redes pode ser expressa como um jogo entremacropolticasquegeramressonnciasmicropolticas,emicropolticasconectadasna reivindicao de macropolticas. A complexidade temtica abordada pelo FERES em seus eixos de interveno representa a capacidade de aderir a projetos diferentes e traz sua caracterstica mais marcante como movimento reticular.Asegmentaridadedoisolamentodobairropossibilitouumaglobalizaodosparceiros envolvidos,eaantigadualidadeentreaUniversidadeeacomunidadediluiu-senos universitrios, os quais participam da vida poltica da Restinga, mesmo provindos de diferentes pontos da cidade.Outra segmentaridade recente, a do Partido dos Trabalhadores e seus vrios anos de gesto, que inicialmente representou decepo, tambm fez com que as redes compreendessem que o Estado no necessariamente governado pelo partido, ou que pelo menos a necessidade de obter recursos e parcerias pode transcender a conflitos anteriores. Nos espaos intersticiais de polticas pblicas e mquinas administrativas, as redes escavam tneis e percorrem caminhos subterrneos. nebuloso o terreno de polticas pblicas da juventude ou educacionais, ou dependentes de mecanismos viciados da democracia representativa, com seus cargos de confiana, seus anos eleitorais e suas mega-mquinas politizantes e politizadoras.As redesseauto-produzememvelocidadesimensurveis,solidificando-se,liquefazendo-se, evaporando-se, enquanto o Estado e suas instituies esto presos cronificao. O que compete s redes, para que movimentem mquinas defensoras de direitos humanos, de melhores condies de moradia, de visibilidade positiva na mdia, de acesso cultura, transformar sua acelerao em velocidade, e sua velocidade em atrito. Mas este processo paga o preo da liberdade; ele difcil, rduo, pedregoso, e mesmo quando os benefcios aparecem, eles dependem do ponto de vista de quem analisa as redes. O ciclo global de lutas desenvolve-se na forma de uma rede disseminada. Cada luta local funciona como nodo que se comunica com todos os outros modos, sem nenhum eixo ou centro de inteligncia. Cada luta mantm-se singular e vinculada as suas condies locais, mas, ao mesmo 34tempo, est mergulhada na rede comum. Esta forma de organizao constitui o exemplo poltico mais plenamente realizado de que dispomos do conceito de multido. (HARDT e NEGRI, 2005, p.340) As configuraes sociais observadas na tese apresentam configurao em rede, ou seja, conexes e ns que integram e potencializam prticas. As idias funcionais de horizontalidade, liderana, cooperao e ausncia de hierarquia trazem uma imagem de algo que composto por diversas linhas, mas que estas linhas, por seus pontos de convergncia. Estabelecer um plano decirculao de saberes e fazeres, e que cada instituio possa, como recurso, buscar e fornecer informaes ou assessoria, bem como tambm fornecer tais informaes tentar democratizar, de forma redistributiva, o conhecimento e as prprias prticas, criando um espao virtual comum.Pode-seestenderessaquestoparaombitodosmodoshistricosdeorganizao societria.Aorganizaodossereshumanosemestadosnacionaismanifestou-se,dediversas formas. Essas formas so territrios decorrentes da necessidade de organizao, obtidas em um contrato social, que pode ser entendido por Santos, como: ametforafundadoradaracionalidadesocialepolticadamodernidade ocidental. Os critrios de incluso/excluso que ele estabelece vo fundar a legitimidade da contratualizao das interaes econmicas, polticas, sociais e culturais. A abrangncia das possibilidades de contratualizao tem como contrapartida uma separao radical entre includos e excludos. (SANTOS, 1999 p.34)Comoseestentendendoaquiasredesentidadesmicropolticas,creioqueSantostraz interessantesanlisesdoEstadoModernoesuastransformaescontemporneas,apresentando elementos organizativos fundamentais e suas mudanas estruturais ao longo das transformaes sociotecnolgicas do capitalismo.Em sua anlise, o autor apresenta o contrato social como surgido em uma srie de tenses: entre regulao e emancipao social, entre o direito natural e o civil, em critrios de incluso e excluso.Santosprosseguesuaanlisemostrandoqueagestocontroladadocontratosocial apresenta trs pressupostos chamados metacontratuais: 1-RegimeGeraldeValores-ondeestoincludasasnoesdebemcomumevontade geral; 2- Sistema comum de medidas - relaes de espao-tempo, monetarizao; 353-Espao-tempo privilegiado - onde esto as delimitaes do territrio estatal, a rea de abrangncia de sua atuao burocrtica e a formao de uma identidade nacional. Estes pressupostos seriam mantenedores de uma organizao contratualizada, caracterizada pela legitimidade da ao governamental, o bem estar econmico e social, a segurana nacional e individual, e uma identidade coletiva, o que tornaria o estado a principal arma das lutas pelo bem comum. Paraamanutenodestaorganizaocontratual,sonecessriascertasconstelaes institucionais (macropolticas): 1-Socializao da economia - atravs de leis trabalhistas, relaes salariais, seguridade social e a centralidade do estado, atuando em relao s transformaes do capitalismo, agindo em uma segunda constelao; 2-ApolitizaodoEstado-tornando-seesteumEstadoprovidncia,ouestado desenvolvimentista, estatizando a regulao do capitalismo e criando uma tenso entre este e para a democracia; 3-A nacionalizao da identidade cultural, entendida como importante para a estabilidade dos critrios de socializao; Os elementos estruturantes do contrato social, por sua vez, tambm iro existir em uma tenso entre ordem e desordem, entre liberdade e organizao. No h controle sem descontrole, leis sem ilegalismos, poder sem resistncia, controle criminal sem crimes incontrolveis.Santos (1999), aponta para os limites da contratualizao. A incluso social como critrio do Estado, por exemplo, apresenta como limite a excluso, ou seja, com o contrato social surgem as desigualdades contratuais, como a relao entre periferia, centro, semiperiferia, interior-capital. Os movimentos entre includos e excludos so relaes fundamentais para a constituio dos sistemas polticos, sendo que, o outro limite que o autor observa no contrato social que a politizao e democratizaodaesferaestatalacabaramacarretandoemumadespolitizaodaesferano estatal. As grandes tenses, ou acoplamentos destrutivos s quais os estados contratuais submeteram-se, por toda sua caracterstica de sistema aberto e dinmico, trouxeram o que chamado de crise, ou transio paradigmtica. Eis algumas destas tenses, segundo o autor: 1-A idia de fim da sociedade; 362-A proliferao catica de poderes (ou seja, a formao de subsistemas atuantes dentro do estado, como vrus); 3-Desaparecimentodasnoesfixasdetempoeespao,muitodevidosnovas descobertas cientfico-tecnolgicas, que teriam causado uma exploso no mercado e nas relaes de consumo; 4-Instabilidade sistmica; Nacontemporaneidade,taisformasdeorganizaosotransformadaspeloprprio desmantelamento de muitos Estados Nacionais (especialmente os do terceiro mundo), vistos como ameaaacertosinteressesdomercado"globalizado",econtroladordeumamquinamiditica anexadora.Aconfiguraodominantedaesferapolticahojeamdiacomessa estrutura triangular - mdia, sondagens, eleio - onde cada ponto refora ao outro. As pesquisas reforam a mdia, a mdia refora as pesquisas, que refora a eleio e por a vai, numa estrutura fechada a trs. uma espcie deestruturaemestrelaondesetemumcentro,queparteldecimae depois uma periferia na base (LVY 1996).5 Santosestendesuaanliseatapassagemdeumestadopolitizadoequeacolhiaseus cidados para um estado ao mesmo tempo liberal e autoritrio, cuja fora acabou por determinar seuprpriofortalecimento,medidaqueseusatorestrabalharamparadiminuirsuainfluncia. Destaforma,pordeterminaodoprprioestado,asleistrabalhistas,porexemplo,so flexibilizadas e as relaes empregatcias passveis de livre negociao entre os grandes portadores do capital com os cidados desprotegidos pela legislao.A concentrao da atividade poltica no ato de votar e nos partidos polticos cristalizou o podernasmaioresemaisricascampanhas,eadefesadosdireitosdocidado,bemcomoa educaoeocombateviolnciaforamconcentradosemumsetorpblicoburocrticoe ambivalente entra a cidadania e es respostas adaptativas assistencialistas, punitivas, eleitoreiras. O Estadocontemporneops-contratual,atravsdousodasuafora,acabouporproduzirsua fraqueza. Ocontratosocialparecetersidoumamaneiraqueaespciehumanaconstruiupara estabelecer regras de convvio comum a todos, por meio da linguagem e do fazer. No entanto, o domnio social do Estado pode gerar interaes destrutivas, que no permitam movimento em rede de matria e energia. 5 LVY, Pierre A Emergncia do Ciberespao e as Mutaes Culturaishtp://www.portoweb.com.br/PierreLevy/aemergen.html s/d 37Para Maturana e Varela(2001) e Maturana(1999), bilogos chilenos autores que escrevem sobre educao e poltica, fundamental que, em qualquer relao social, a tica, entendida como a reflexo da legitimidade da presena do outro, constitui em um alicerce da organizao. Dentro da teia da vida, no possvel viver sem a presena da rede de relaes. Em uma reunio de seres humanos em que na vida no h amor (e amor entendido pelos autores como tica,alteridadee respeito), no possvel sustentar a rede da vida implcita nas redes sociais que formam o estado, sem pensar nas interaes que sustentam a vida. A concentrao de poder, dinheiro e informao, em um sistema social humano, implicam a formaodeconcentradosdentrodarede,grandesmquinasqueexecutamacoplamentos destrutivoscomoutrasmquinas.Adestruio,bemcomoocontroledestadestruio, concentradas em um s ponto, implica que este ponto subjuga os demais, os coloca em uma relao no de diferena, mas de inferioridade..Voltando ao paradoxo entre a fora e a fraqueza do Estado (SANTOS, 1999), este assume a tarefadedestruirasimesmosemconsultarseuscidados.OEstadops-contratualrompe unilateralmente seu elo com o cidado, que por ele era assistido, e no se reconhece mais como unidade reguladora, deixa para que os cidados regulem-se entre si a si prprios. Surgem, ento, da desregulamentao forada, a possibilidade tanto de uma transferncia do poder do Estado para grandes corporaes que substituem a sua regulao pelas leis do fluxo de capital, quanto de uma democracia redistributiva ou participativa. Para Santos, a flexibilidade do Estado, que a princpio pode denotar desordem ou ineficcia, apresenta a possibilidade de que o cidado possa retomar seu controle. O diagrama social apresenta aqui maiores conexes entre o real e o possvel. Apresenta-se, ento, dentro do caos gerado pelo fim da concentrao estatal, uma forma horizontaldefuncionamentoemqueoscidados,ospequenosgrupos,ascomunidades,que decidem, a partir de cooperao e discusso, o tipo de investimento que o Estado deve fazer. A regulao dos sistemas sociais passa de um combate entre formas, em que ele funciona, ora por concentraodepoderpordelegaohierrquica,pelovotoeacumulaodecapital,orapela formao de sistemas baseados em cooperao, em que o outro est sempre includo, pois o poder encontra-se nas necessidades da vida: Num espao pblico em que o Estado convive com interesses e organizaes no estatais, cuja atuao coordena, a democracia redistributiva no se pode confinardemocraciarepresentativa,poisestafoidesenhadaapenaspara ao poltica nos marcos do Estado. (SANTOS, 1999, p. 40) 38Novamentenaradicalidadedeseupensamento,oautor(2000)dizqueademocracia representativa no apresenta mais as poucas virtualidades polticas de outrora. Nas novas condies, a democracia redistributiva tem de ser democracia participativa, e a participao democrtica tem de incidir tanto na atuao estatal de coordenao como na atuao dos agentes privados, empresas, organizaesnogovernamentais,movimentossociaiscujosinteressesedesempenhooestado coordena. Entre os fatores explicativos da ao coletiva orientada para a participao na gesto pblica destaca-se a existncia de uma rede associativa relativamente densa.Talredeassociativa,entretanto,sserpotencializadorada participaonamedidaemqueforcompostaporagentescomprometidos com a sua produo, capazes de contraporem-se de forma efetiva s prticas deorganizaesdasociedadecivilqueorientamsuaatuaoporoutros referenciais opostos participao... (KUNRATH SILVA, 2001, p.124) importantefazerumacomparaodestadualidadeentreoestataleonoestatal,eo entendimento de que o Estado seja um instrumento de controle direto da esfera no-estatal, ou at mesmo uma parte de uma complexidade maior chamada social, com as relaes contemporneas do controle criminal de David Garland (2005) e J ock Young 6 (2002). Estes dois autores tambm demonstram a abertura do Estado Moderno a uma outra complexidade nas polticas de controle do delito, pelas contribuies da mdia, de movimentos representativos de segmentos sociais: Emoutraspalavras,nofazsentidodemocratizaroestadose, simultaneamente, no se democratizar a esfera no estatal. S a convergncia dosdoisprocessosdedemocratizaogaranteareconstituiodoespao pblico de deliberao democrtica. (KUNRATH SILVA, 2001 p.37) Santosobserva,ento,umanovacontratualidade,ouumaps-contratualidade,onde possvel a formao de sociabilidades alternativas, uma reintegrao da noo de bem comum, na 6Segundo J ock Young (2002):Trata-se de um movimento da modernidade para a modernidade tardia, de um mundo cuja tnicaestava na assimilao e na incorporao para um mundo que separa e exclui (p.15) Ummundoemque,comoargumentarei,asforasdemercadoquetransformaramasesferasdaproduoedo consumo questionaram inexoravelmente nossas noes de certeza material e de valores incontestes, substituindo-as por um mundo de riscos e incertezas, de escolha individual e pluralidade, e de uma precariedade econmica e ontolgica profundamente sedimentada (p.15) Mastrata-sedeumasociedadepropelidanoapenaspeloaumentodaincerteza,mstambmpeloaumentoda demanda. Pois as mesmas forasde mercado que tornaramnossa identidade precria e nosso futuro incerto geraram umaumentoconstantedasnossasexpectativasecidadania,engendrando,oquemuitoimportante,umsentido disseminado de demandas frustradas e desejos no satisfeitos (p.15) Um mundo de certeza aparente deu lugar a um mundo de pluralidade, debate, controvrsia e ambigidade. E enquanto os comentadores do comeo dos anos 1960 deploraram a conformidade da era, os anos subseqentesexperimentaram desordem, rebelio e criminalidade ascendente disseminadas, apesar do aumento continuado das rendas mdiase das tentativas mais comprometidas de construir uma sociedade mais satisfeita e ordeira (p.16) 39qual o estado no seria mais o responsvel nico, e sim, mais um parceiro. Eis alguns princpios destas sociabilidades alternativas: 1.Solidariedade (conhecimento como emancipao), abertura para pensamentos alternativos; 2.Reinveno da deliberao democrtica, tornando o conhecimento como ao importante no processo social;3.Capacidade de desvio, ou seja, a realidade no se reduz quilo que existe, ela deixa margens utopia, ao turbulenta de um pensamento com turbulncia; 4.Areinvenodeumespao-tempodedeliberaodemocrtica,apartirdeumnovo contrato social, que inclui a natureza; 5.Porfim,humprincpiodemodificaonasrelaesdetrabalho,cujadiretrizmais interessante a de congruncia entre cidadania e trabalho, ou seja, devemos trabalhar para o nosso bem e de nosso semelhante. Ainda que represente uma diluio do poder estatal, democracia redistributiva s possvel a partir de conexes reticulares mquina estatal, estratgias de conflito e enfrentamento no campo de poder. SerexaminadaaseguirarelaoconflitivaentreaambivalnciadoEstadoeseus conflitos com a ao das redes sociais atravs da utilizao do conceito de Pierre Bourdieu (1989) depodersimblico,edasconfiguraesdecampoqueasdisputasdestepoderocorrem.O isolamento e a segregao urbana, exibidos a seguir no captulo da gnese da Restingadelimitaram umcampoespecficodedisputas,ondeocorremredesdepoderentreaesdoestadoeda comunidade e suas interpenetraes 4.5 Campo de disputas e poder simblico No entanto, num estado do campo em que se v o poder por toda a parte, como em outros tempos no se queria reconhec-lo nas situaes emqueeleentravapelosolhosdentro,nointillembrarquesem nuncafazerdele,numaoutramaneiradeodissolver,umaespciede crculo cujo centroest em toda a parte e em parte alguma- necessrio saberdescobri-loondeelesedeixavermenos,ondeelemais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simblico , com efeito, esse poder invisvel o qual s pode ser exercido com a cumplicidade daquelesque no queremsaber quelheestosujeitosoumesmoqueo exercem ( BOURDIEU, 1989,p.07) 40A Restinga pode ser observada luz da teoria de Pierre Bourdieu.Suas caractersticas de isolamento e seus conflitos entre Estado e cidados, e entre as polticas pblicas e as redes sociais demonstram haver uma intensa disputa decapital simblico, cultural, poltico. Bourdieu coloca o problema do poder simblico a partir do debate acerca do poder na poca e em particular pela tentativa de apresentar o balano de um conjunto de pesquisas sobre o simbolismo numa situao escolar de tipo particular pelo ano de 1973. Aqui tambm enfrentada uma questo referente a campos de disputa no ambiente escolar, e a um diagrama especfico gerado pela ambivalncia do Estado. Ele diz o seguinte acerca do poder: ... necessrio saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele mais completamente ignorado, portanto reconhecido: o poder simblico , com efeito, esse poder invisvel o qual s pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que no querem saber que lhe esto ou mesmo que o exercem ( 1989, p.13). Bourdieu situa os sistemas simblicos como estruturas estruturadas de acordo a tradio idealista e como estruturas estruturantes pela anlise estrutural. Entochegaasuaprimeirasnteseondedizque,opodersimblicoumpoderde construo da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseolgica e supe uma concepo homognea do tempo, do espao, do nmero, da causa, que torna possvel a concordncia entre as diferentes perspectivas em disputa.Os smbolos so os instrumentos por excelncia da integrao social, tornam possvel o consensusacercadosentidodomundosocialoqueajudanareproduodaordemsocial:a integrao lgica a condio da integrao moral. A escuta aos diferentes sujeitos que atuam nas redes da Restinga fez emergir a construo do bairro comoum smbolo de isolamento, e a diviso entre as metades7 Nova e Velha, como o desenho representativo do conflito entre a ao do estado organizada e planejada e as falhas operacionais e micropolticas destas aes Posteriormente, Bourdieu fala das produes simblicas como instrumentos de dominao em uma perspectiva marxista, sem antes salientar que a tradio desta escola do pensamento social privilegia as funes polticas dos sistemas simblicos em detrimento da sua estrutura lgica e da sua funo gnoseolgica.Sistemassimblicosconsideradoscomoinstrumentosestruturadoseestruturantesde comunicao e de conhecimento, cumprem a funo poltica de instrumentos de imposio ou de legitimao da dominao, que contribui para assegurar a dominao de uma classe sobre outra 7 A ser esmiuada no captulo 06 41(violnciasimblica)dandooreforodasuaprpriaforasrelaesdeforaqueas fundamentam contribuindo assim para a domesticao dos dominados segundo Weber8. Queocampo?Ocampo(espao)deproduosimblicaummicrocosmodaluta simblica entre as diferentes construes de valores. A classe dominante o lugar de uma luta pela hierarquia dos princpios de hierarquizao. O poder simblico no reside nos sistemas simblicos em forma de umafora invisvel e indizvel,mas que se define numa relao determinada e por meio desta- entre os que exercem o poder e os que lhe esto sujeitos, quer dizer, na prpria estrutura do campo em que se produz e que se reproduz a crena. Para Bourdieu (1996) na noo de campo o capital financeiro ou econmico no mais o fator principal par a anlise das redes de poder. As disputas por saber, status, poder poltico, etniase espaos de interveno configuram relaes entre o que o autor chama de capital cultural, ou simblico.Nocampodedisputasatravessadopelopodersimblico,asredesacontecem,oEstado lana suas pautas e gera padres que iro distribuir-se e reverberar nos campos de disputa.Na RestingaoEstadointervmcomseupodersimblicosuperior,queincluioeconmicoeo burocrtico. Os moradores, lideranas comunitrias, funcionrios pblicos formam subcampos de disputa na sua atuao, nas intervenes e nos conflitos com a prpria mquina estatal. Como complemento s idias de Bourdieu, no processo de observao destes conflitos nos diferentes campos esto e redes. E nos efeitos destes conflitos simblicos acontece a micropoltica. 4.6 Redes, rizomas, macropolticas e micropolticas QUADRO01DECLOGODASREDES(obtidonositedaRededeInformaessobreo Terceiro Setor www.rits.org.br) I.Autonomia: Cada integrante mantm sua independncia em relao rede e aos demais integrantes. Numa rede no h subordinao.II. Valoreseobjetivoscompartilhados: O que une os diferentes membros de uma rede o conjunto de valores e objetivos que eles estabelecem como comuns.III.Vontade: Ningum obrigado a entrar ou permanecer numa rede. O alicerce da rede a vontade.IV.Conectividade:Umaredeumacosturadinmicademuitospontos.Squandoesto ligados uns aos outros que indivduos e organizaes mantm uma rede.V. Participao: A cooperao entre os integrantes de uma rede o que a faz funcionar. Uma rede s existe quando em movimento. Sem participao, deixa de existir. 8 apud Bourdieu, 1989. 42VI.Multiliderana: Uma rede no possui hierarquia nem chefe. A liderana provm de muitas fontes. As decises tambm so compartilhadas.VII.Informao: Numa rede, a informao circula livremente, emitida de pontos diversos e encaminhadademaneiranolinearaumainfinidadedeoutrospontos,quetambmso emissores de informao.VIII. Descentralizao: Uma rede no tem centro. Ou melhor, cada ponto da rede um centro em potencial.IX.Mltiplosnveis:Umaredepodesedesdobraremmltiplosnveisousegmentos autnomos, capazes de operar independentemente do restante da rede, de forma temporria ou permanente, conforme a demanda ou a circunstncia. Sub-redes tm o mesmo "valor de rede" que a estrutura maior qual se vinculam.X. Dinamismo: Uma rede uma estrutura plstica, dinmica e em movimento, que ultrapassa fronteiras fsicas ou geogrficas. Uma rede multifacetada. Cada retrato da rede, tirado em momentos diferentes, revelar uma face nova. As cidades, bairros, escolas, comunidades podem ser comparadas a tapearias ou peas de vesturio. Em uma primeira impresso pode-se observ-las como unidades simples e isoladas, no entanto,acomplexificaodoolhareaobservaomaisagudatornamvisveisasredesque compem e desenham os tecidos. O conceito de rede na observao das mquinas sociais capaz dedesvelarconflitoseprocessos,taiscomodeexcluso,violnciaederelacionamentos interpessoais. Paradiscutiroconceitoderede,precisopensarque,comodizFritjofCapra(1996), quando olhamos para a vida, estamos olhando para redes.A idia de rede, operacionalizada nestapesquisa,podeserexpressaporumdomnioderelaesentreelementosdeuma multiplicidadequeocupamtantoaposiodepartesconstituintesquantodeoperadores,que conservamemsitantoarepetio(acoletividade),quantoadiferena(asespecificidades possveis). Redes so momentos mltiplos, singulares e coletivos, sociais e individuais, espaciais e temporais (DAL MOLIN & FONSECA, 2007). Aambigidadedasredeseavolatilidademanifestam-senofatodestaspoderemser,ao mesmo tempo, macropolticas e micropolticas, assim como elas podem ser abertas ou fechadas. O exemplo do declogo acima o de um conceito ideal de rede, uma formao discursiva. Na dissertao de mestrado (DAL MOLIN, 2002), analisando a Rede Integrada do E.C.A., num espao de reunio das entidades do bairro que, desde 92 se mantm, ainda que praticamente sem nenhuma institucionalizao, formas volteis de organizao e nenhum vnculo burocrtico, pude estabelecer trs formas de manifestao da rede, do mais amplo ao mais restrito.1-A rede como o todo do bairro Restinga (uma rede virtual); 432-Aredecomooespaocriadopelasreuniesefruns,bemcomoasintervenesdas redes no bairro (uma rede atual); 3-A rede como o crculo interno das entidades mais engajadas, participativas e presentes (um devir-rede). Estas formas de manifestao das redes so importantes operadores na anlise de qualquer outra,atualizadaspelasespecificidadesorganizacionais,pelograudevinculaoe comprometimento: 1-Redesemestadogasoso:aspossibilidadesdeconexeseparcerias, representando a abertura.; 2-Redesemestadolquido:intervenesmaispontaisnobairro,ocupaode espaos, mltiplas estratgias de gerenciamento; 3-Redesemestadoslido:organograma,cronogramaetendncias institucionalizao. Almdestas,diversasoutrasredesaparecemintegrandoaRestingaesuasinstituies, como redes de telecomunicaes, entre escolas, instituies de sade, assistncia social, entre os prprios moradores da Restinga, operando em movimentos de multiplicao, integrao e conexo. A rede possvel encontra sua forma de expresso em enunciados gerais, como a explicitao escritadesuasexpectativas,funes,atribuieseregras,comoasencontradasnodeclogo, envolve os enunciados metafricos, como estar na rede, trabalhar em rede.O plano do real j apresenta o acontecimento em si, a rede conectada exatamente naquele momento, suas mltiplas formasdeestruturar-seeorganizar-seelegendocoordenaes,marcandoreunies,horrios, estabelecendo locais. A rede maior da Restinga pode ser entendida como todas as entidades corporais ou noconectadas atravs do padro em rede ou, separadamente, pelas suas reunies quinzenais, suas atas, sua coordenao seus locais, suas entidades mais vinculadas. Resumindo, no plano do possvel, temos,aproximadamente,70entidadesassistenciaisemovimentossociais,bemcomoqualquer cidado que porventura queira acessar as redes e fazer parte delas. No plano real, uma reunio da rede pode ser um acontecimento em que participem, por exemplo, apenas as escolas, ou apenas as entidades de assistncia, apenas oficineiros. Aconstituiodeumpaspodesercapazdeinformarsobreaorganizaodeuma sociedade,masasociedademanifesta-setambmautonomamente,constituindodiferenas, 44transgresses,progressos.Emumarede