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Universidade de Brasília Instituto de Relações Internacionais Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais XV Curso de Especialização em Relações Internacionais Rede de Bancos de Leite Humano: Uma trajetória de origem brasileira. Eneida Zanquetta de Freitas Artigo apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Relações Internacionais. Orientador: Professora Doutora Cristina Inoue Brasília 2014

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Universidade de Brasília

Instituto de Relações Internacionais

Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais

XV Curso de Especialização em Relações Internacionais

Rede de Bancos de Leite Humano:

Uma trajetória de origem brasileira.

Eneida Zanquetta de Freitas

Artigo apresentado como requisito

parcial para obtenção do título de

Especialista em Relações

Internacionais.

Orientador: Professora Doutora

Cristina Inoue

Brasília

2014

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RESUMO

O presente artigo pretende ressaltar a cooperação técnica brasileira na área de bancos

de leite humano dentro do universo da cooperação em saúde, mostrando sua

relevância no contexto internacional e o impacto surtido nos países beneficiários.

Busca-se traçar sua trajetória na conformação da Rede de Bancos de Leite Humano,

que abrange desde países da América Latina à Europa, passando pelo Caribe e pela

África, unificando a saúde pública dessas nações no combate à mortalidade infantil,

por meio do estabelecimento de redes transnacionais e da organização de

comunidades epistêmicas, que fazem dessa área um exemplo de coordenação e

solidez.

Palavras-chave: Rede de Bancos de Leite Humano. Cooperação brasileira em saúde.

Relações transnacionais.

ABSTRACT

This article seeks to highlight the Brazilian technical cooperation in human milk

banks within the universe of health cooperation, showing its relevance in the

international context and its impact in recipient countries. It intends to draw its

trajectory on the conformation of the Human Milk Banks Network, stretching from

Latin America to Europe, from the Caribbean and Africa, unifying public health of

these nations in combating child mortality, through the establishment of transnational

relations and the organization of epistemic communities, that make this area an

example of coordination and strength.

Keywords: Human milk banks network. Brazilian health cooperation. Transnational

relations.

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1 INTRODUÇÃO

A Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (CID)1,

institucionalizada nos anos 1950, surge, a partir do fim da 2ª Guerra Mundial,

segundo Corrêa (2010), como um importante mecanismo de política externa dos

países desenvolvidos, visando à promoção da estabilidade política e social dos países

em desenvolvimento. Aqueles se consideravam modelos para estes, reservando-se o

direito de determinar os temas a serem abordados nas ações de cooperação

internacional. Nessa linha de pensamento, organismos internacionais foram criados,

inicialmente, para oferecer assistência pós-conflito, que depois voltaram suas ações

para o desenvolvimento dos países menos favorecidos.

Essa concepção de cooperação internacional está baseada nas convicções

tradicionais de que o hemisfério norte, por já ter alcançado o seu desenvolvimento

socioeconômico, é capaz de ensinar ao hemisfério sul como fazê-lo,

independentemente de observação de suas particularidades culturais, potencialidades

e interesses. Esse paradigma tem sido complementado, desde o final da década de

1970, pela denominada Cooperação Sul-Sul2 ou cooperação técnica entre países em

desenvolvimento. Essa faceta da cooperação internacional estabelece seus preceitos

de acordo com o princípio da horizontalidade, no qual existe uma igualdade de

posição entre os países parceiros (note que a terminologia “país beneficiário” é

substituída), orientada pela demanda do país solicitante, inexistindo qualquer

imposição de condicionalidades ou intervenção nos assuntos internos das partes.

Mesmo nos casos em que existe uma grande diferença no grau de desenvolvimento

1 A Cooperação Internacional para o Desenvolvimento busca, por meio da inserção de alterações

sociais, econômicas e políticas, nos países do Terceiro Mundo, promover o desenvolvimento, de

forma que haja um equilíbrio mundial. Pode-se utilizar, também, o termo Ajuda Oficial ao

Desenvolvimento – conceito elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento

Econômico (OCDE), referindo-se à assistência técnica ou financeira ofertada por meio de recursos

públicos. 2 Na verdade, o conceito de Cooperação Sul-Sul (CSS) pode ser mais amplo. A Cooperação Sul-Sul

pode incluir intercâmbio entre países emergentes (IBAS, BRICS). Pode, ainda, dar-se em nível global

(no âmbito da Organização das Nações Unidas, do Movimento dos Países Não Alinhadoss, do Grupo

dos 77) ou em nível regional (Mercosul, UNASUL, CEDEAO). Não obstante, neste artigo, adotar-se-

á a definição do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que trata a CSS

como um mecanismo de desenvolvimento conjunto entre países do Terceiro Mundo, ou do Sul

Global, em resposta a desafios comuns. Isso abrange as relações de troca entre países da África, Ásia,

América Latina, Caribe e Oceania. Cf. Wikipédia – A enciclopédia livre. S. d. Disponível em:

<http://pt.wikipedia.org/wiki/Coopera%C3%A7%C3%A3o_Sul-Sul>. Acesso em: 08/12/2013.

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dos dois países cooperantes, permanece o espírito do aprendizado mútuo e da

horizontalidade entre os atores (CORRÊA, 2010), estabelecendo-se um verdadeiro

intercâmbio entre os países.

A Cooperação Sul-Sul, de acordo com Buss e Ferreira (2010), orienta o

processo de desenvolvimento no planejamento estratégico segundo a realidade do

país parceiro, privilegiando os interesses nacionais; prioriza ações de longo prazo;

enfatiza o fortalecimento institucional; faz com que os países parceiros, beneficiários

da ajuda, exerçam liderança sobre suas políticas e estratégias de desenvolvimento;

concentra-se na gestão por resultados; e age de acordo com a responsabilização

mútua dos países cooperantes. Nesse sentido, a cooperação internacional, como

alternativa de promoção do desenvolvimento, rompe com a transferência passiva de

conhecimentos e tecnologias e acredita que só é capaz de atingir seus objetivos

quando se preocupa com o repasse de informações e com a formação de capacidades

que possam, efetivamente, propiciar mudanças qualitativas e sustentáveis nos países

receptores. Tudo isso, aliado ao respeito à cultura e aos hábitos sociais locais,

constitui a chave para o êxito e a sustentabilidade de qualquer investimento ou ação

de desenvolvimento de capacidades.

Segundo a Agência Brasileira de Cooperação (ABC),

“[...] a cooperação técnica prestada pelo Brasil está centrada no

fortalecimento institucional de nossos parceiros, condição fundamental

para que a transferência e a absorção dos conhecimentos sejam efetivadas.

Sem fins lucrativos e desvinculada de interesses comerciais, a cooperação

técnica pretende compartilhar êxitos e melhores práticas nas áreas

demandadas pelos países parceiros”. (BRASIL, s. d.).

Por vezes, a cooperação internacional lança mão de um terceiro elemento, um

país financiador do Norte, que, aliado ao conhecimento técnico de um país do Sul,

pode levar o desenvolvimento em uma determinada área ao país solicitante na

chamada Cooperação Triangular ou triangulação, que observa as mesmas indicações

da cooperação horizontal. Essa modalidade está cada vez mais comum, utilizando-se

da união de esforços para alcançar um objetivo comum, a solidariedade.

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Sob esse enfoque, o Brasil, em diversas áreas do conhecimento, como é o

caso da saúde, tema deste artigo, passa de receptor a doador de cooperação, devido à

expertise desenvolvida, às tecnologias alcançadas e à capacidade de seus recursos

humanos. A situação econômica do país já permite o auxílio a outros países da região

e, também, da África, tendo como foco uma cooperação estruturante, baseada na

construção de capacidades para o desenvolvimento. Essa cooperação prestada pelo

Brasil tem se desenvolvido, principalmente, de forma bilateral, sendo o país

responsável tanto pelo aporte técnico quanto financeiro aos projetos.

Este artigo trata de investigar uma área que é considerada uma das principais

vertentes, se não a principal, da cooperação técnica brasileira em saúde: os Bancos de

Leite Humano (BLH). Busca-se discutir como se deu o surgimento dessa cooperação

e a base do êxito alcançado pelos projetos de BLH no âmbito da cooperação

internacional para o desenvolvimento, bem como o impacto gerado nos países

recipiendários. Argumenta-se que a formação da Rede de Bancos de Leite Humano

(rBLH) existente entre os diversos países que possuem os mesmos, orientados pelo

modelo brasileiro deu-se por meio de relações transnacionais, gerando comunidades

epistêmicas.

As redes transnacionais, segundo Thomas Risse-Kappen (1999), são

interações regulares, entre diferentes Estados, em que pelo menos um ator não é

agente estatal ou que não age em nome do seu Governo ou de uma organização

intergovernamental. São constituídas por atores transnacionais, que Giovanni Olsson

define como qualquer ente que estabeleça fluxos ou relações de nível internacional,

sejam eles políticos, jurídicos, econômicos ou culturais (RIBAS, s. d.). No caso deste

artigo, defende-se que tais relações contaram com a ação de sujeitos produtores de

conhecimento, que tiveram importante influência na realidade da saúde materno-

infantil de outros países, influenciando e difundindo diagnósticos e soluções,

caracterizando a conformação de comunidades epistêmicas.

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2 A IMPORTÂNCIA DOS BANCOS DE LEITE HUMANO PARA A

COOPERAÇÃO BRASILEIRA EM SAÚDE

No que diz respeito especificamente à saúde, um dos primeiros movimentos

realizados entre os países foi a iniciativa “Política Externa e Saúde Global”, lançada

pelos Ministérios das Relações Exteriores da África do Sul, Brasil, França,

Indonésia, Noruega, Senegal e Tailândia, que resultou na Declaração de Oslo,

chamando a atenção para a necessidade de dar prioridade à saúde na política externa

de todos os países (BUSS; FERREIRA, 2012). Já em 2007, essa iniciativa enfatizou

que saúde é uma das mais importantes questões de longo prazo na política externa do

nosso tempo.

A cooperação internacional passa a conjugar a promoção do crescimento

econômico com estratégias de redução da pobreza. Nesse escopo, a Cúpula do

Milênio, em 2000, aprovou os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM),

chamados, no Brasil, de “8 jeitos de mudar o mundo”, dos quais três são voltados

para os problemas de saúde, a saber: reduzir a mortalidade infantil (ODM 4),

melhorar a saúde das gestantes (ODM 5) e combater a Síndrome da

Imunodeficiência Adquirida (AIDS), a malária e outras doenças (ODM 6).

Em consonância com o quarto Objetivo do Milênio, o Banco Mundial (BM)

estima que investir em iniciativas de saúde infantil produz resultados que

correspondem a sete vezes o valor dos fundos investidos, por meio da redução das

despesas com a segurança social e do aumento na produtividade econômica. A Ajuda

Pública para o Desenvolvimento (APD) destinada à saúde materna e infantil passou

de 2,1 mil milhões de dólares em 2003 para 3,5 mil milhões em 2006, em nível

mundial, mas esse valor ainda é insuficiente para atingir as metas do ODM 4. Para

alcançar esse propósito, calcula-se que se deva aportar recursos suplementares de

APD da ordem dos 10,2 mil milhões de dólares por ano. Só assim é possível garantir

um financiamento suficiente para reforçar os sistemas de saúde e atender às

demandas de cuidados de saúde destinados às mães e crianças e de outros serviços de

saúde reprodutiva. Além disso, as campanhas de educação para a saúde devem seguir

divulgando conhecimentos sobre práticas de cuidados de saúde básicos, como a

importância do aleitamento materno, o incentivo ao aleitamento materno exclusivo

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até aos seis meses de idade e o aleitamento materno como um complemento

alimentar entre os seis meses e os dois anos (OBJECTIVO 2015, s. d.).

Nessa perspectiva, encontram-se os bancos de leite humano, que, no Brasil,

têm seu centro de referência no Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo

Cruz (FIOCRUZ), vinculada ao Ministério da Saúde (MS). A estratégia dos BLH

trazem um grande benefício social, cujo impacto reflete na persecução do ODM 4,

com ênfase no componente neonatal, além de resultados econômicos mensuráveis no

que diz respeito à redução de gastos do sistema público de saúde com internações e

compra de fórmulas lácteas. O país é um dos poucos a ter conseguido, mediante a

implantação de ações estratégicas integradas nas áreas de Saúde da Mulher e da

Criança, promover amplamente o aleitamento materno, fazer frente ao marketing

agressivo da indústria de leites para lactantes3 e reverter a desastrosa tendência do

desmame precoce sobre a saúde infantil.

O fato de que o leite materno é o melhor alimento para qualquer bebê com

menos de seis meses de idade é inquestionável. Embora até mesmo a indústria de

alimentos infantis concorde com a afirmação, mais e mais mães, inclusive do

Terceiro Mundo, estão se voltando para alimentos artificiais durante os primeiros

meses de vida de seus bebês4. Na pobreza encontrada em cidades da África, Ásia e

América Latina, a decisão é, muitas vezes, fatal. O problema maior é que as

populações mais carentes não podem usá-los corretamente (na quantidade e

frequência indicadas), gerando a desnutrição. Essa limitação pode enfraquecer uma

criança e torná-la mais vulnerável a infecções. Por outro lado, uma infecção,

3 Aquela que produz leite. Diz-se da mulher que amamenta. Cf. Dicionário Online de Português. S. d.

Disponível em: <http://www.dicio.com.br/lactante/>. Acesso em: 25/12/2013. 4 "No Brasil, o aleitamento materno entre os índios tupinambás era a regra geral até a chegada dos

descobridores europeus, que trouxeram, em sua bagagem cultural, o hábito do desmame. Para as

mulheres europeias daquela época pertencentes às classes sociais dominantes, o amor materno não

tinha valor social e moral, fato que as levava a considerar a amamentação uma tarefa indigna para uma

dama. Esse comportamento tendia a ser copiado pelas demais classes como forma de distinção social.

Em Lisboa, a amamentação mercenária era uma prática socialmente instituída, e cabia às saloias,

camponesas da periferia, o aleitamento dos filhos das classes sociais dominantes. Em resumo,

Portugal transmitiu ao Brasil o costume das mães ricas de não amamentarem seus filhos" (ALMEIDA,

1999:30). Quando já não há mais a servidão das amas de leite, surge, em substituição, o leite

industrializado.

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inevitável em condições precárias, por sua vez, impede uma criança de absorver os

nutrientes de sua alimentação e isso a leva à desnutrição (MULLER, 1974)5.

A correlação entre infecção e desnutrição é evidente. A diarreia6 é mais

frequente e grave na desnutrição do que em bebês bem nutridos. A desnutrição

protéico-calórica em suas várias formas é associada a formas agudas ou crônicas de

diarreia, podendo vir a causar óbito. Tal é a gravidade do mal da desnutrição que se

pode observar que ele constitui uma prioridade para os programas nacionais de saúde

da maioria dos países em desenvolvimento (MULLER, 1974).

Seguindo o posicionamento favorável à lactância materna, bem como o

combate à desnutrição e à morbimortalidade7 infantil, em 2001, a Rede Brasileira de

BLH, que é hoje a maior e mais complexa rede de bancos de leite humano do mundo,

ganhou projeção internacional ao receber o Prêmio Sasakawa de Saúde, concedido

pela Organização Mundial da Saúde (OMS), agência do sistema da Organização das

Nações Unidas (ONU) especializada em saúde, reconhecendo a contribuição da Rede

Brasileira de Bancos de Leite Humano para a redução da mortalidade infantil e

promoção do aleitamento materno8.

A partir de então, a tecnologia brasileira de BLH ganhou visibilidade

internacional, passando a ser demandada por outros países que igualmente sofrem

com o problema da mortalidade infantil e neonatal. Começou a ser exportada para os

países da região como uma boa prática, levando a países em desenvolvimento uma

solução de baixo custo, e por isso sustentável no Terceiro Mundo.

5 "The baby killer", de Mike Muller, foi um relatório publicado em 1974 pelo jornalista inglês Mike

Muller, dando origem a uma grande polêmica que viria a questionar a qualidade dos leites

industrializados. 6 As principais causas da mortalidade infantil são pneumonia, diarreia, malária e sarampo. Cf.

Objectivo 2015. S. d. Disponível em:

<http://www.objectivo2015.org/pt/index.php?option=com_content&view=article&id=83&Itemid=207

>. Acesso em: 02/02/2014. 7

De acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, morbimortalidade é a relação entre a

morbidade (incidência de uma doença) e a mortalidade como consequência dessa enfermidade. 8 A Organização Mundial da Saúde (OMS) admitiu o trabalho da Rede Brasileira de Bancos de Leite

Humano como a maior colaboração para a redução da mortalidade infantil e para a promoção da

lactância materna da década de 1990.

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“Nos países em desenvolvimento, quer pelo risco biológico associado à

utilização de fórmulas quer pelo elevado custo dos produtos disponíveis

no mercado, garantir o leite humano é garantir a nutrição adequada e a

diminuição da morbidade e mortalidade neonatal”9.

Sob essa ótica, a exitosa experiência brasileira em bancos de leite humano

vem sendo difundida e compartilhada, tendo sempre como compromisso a qualidade

do produto, a qualificação de recursos humanos, a difusão do modelo de gestão e o

desenvolvimento científico e tecnológico. Garante-se, assim, o acesso universal ao

leite materno para lactantes em risco, observando a segurança do produto (leite

humano), bem como a manutenção de seu valor biológico. A Rede Brasileira de

Bancos de Leite Humano segue, então, um sistema de controle bastante rígido, a fim

de garantir que inexista risco biológico para os recém-nascidos que recebem leite

humano. Além do controle de qualidade perseguido pelos BLH, a Rede procura

assegurar um monitoramento ideal das características nutricionais e imunoquímicas

que atribuem funcionalidade ao leite humano10

.

No contexto da cooperação internacional, a Rede Brasileira de Bancos de

Leite Humano tem o objetivo de viabilizar a transferência de tecnologia em bancos

de leite humano, segundo o modelo brasileiro, para os países cooperantes, com

ênfase no desenvolvimento de competências locais e na discussão dos princípios que

embasam o modelo tecnológico desenvolvido no Brasil, com vistas a possibilitar sua

adequação de acordo com as peculiaridades geopolíticas de cada país. Hoje, os

bancos de leite humano são o tema do Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil que

reúne o maior número de projetos no âmbito da cooperação técnica internacional11

do Ministério da Saúde (MS)12

, com financiamento da Agência Brasileira de

Cooperação (ABC), estando presente em vinte e três países.

9 Cf. FIOCRUZ. S. d. Disponível em: <http://www.canal.fiocruz.br/destaque/index.php?id=695>.

Acesso em: 08/12/2013. 10

Disponível em: <http://segib.org/upload/File/Iniciativa_Bancos_de_Leiteportu.pdf>. Acesso em:

15/12/2013. 11

Segundo a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), a cooperação técnica internacional constitui

importante instrumento de desenvolvimento, auxiliando um país a promover mudanças estruturais nos

campos social e econômico, incluindo a atuação do Estado, por meio de ações de fortalecimento

institucional. Os programas implementados sob sua égide permitem transferir ou compartilhar

conhecimentos, experiências e boas-práticas por intermédio do desenvolvimento de capacidades

humanas e institucionais, com vistas a alcançar um salto qualitativo de caráter duradouro. Disponível

em: <http://www.abc.gov.br/CooperacaoTecnica/Conceito>. Acesso em: 20/12/2013. 12

A cooperação técnica internacional na área de bancos de leite humano representa 21,5% de toda a

cooperação do Ministério da Saúde (MS). Segundo o relatório da Assessoria Internacional de

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O Diretor da ABC, entre 2008 e 2012, Ministro Marco Farani, assume a

relevância dos projetos de BLH para a cooperação brasileira, extrapolando o âmbito

da saúde, quando explicita:

“Resolvemos olhar com mais atenção para esse projeto pela importância

do projeto, a importância social, o sucesso já comprovado no Brasil, pela

sua dimensão humana e porque esse é o trabalho da Agência Brasileira de

Cooperação: levar boas práticas brasileiras para outros países,

disponibilizá-las, compartilhar com outros países nossas experiências de

forma altruísta como um trabalho do Estado brasileiro, de todo o povo

brasileiro”13

.

“A Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL)

projetou um incremento populacional de 19,4%, entre 2005 e 2020. Essa

expansão representa uma expectativa de cerca de 11,6 milhões de

nascimentos no período, com estimativas de até 15,3% de partos

prematuros. Nesse contexto, o aleitamento materno se configura como

uma ação necessária para a reversão dos índices de morbidade e

mortalidade infantil/neonatal que persistem na região”14

.

Assim, pode-se perceber a importância inconteste da estratégia brasileira de

bancos de leite humano, com resultados que evidenciam o impacto positivo de sua

atuação no campo da saúde materno-infantil.

Dados de 201315

certificam que 123.696,60 litros de leite humano

pasteurizado com qualidade certificada foram distribuídos a 168.215 recém-nascidos

internados em unidades de terapia intensiva ou semi-intensiva16

, envolvendo a

participação de 154.507 mães que integraram voluntariamente o programa de

doação17

. Além disso, a cada ano, mais de 1.350.000 mulheres – gestantes,

Assuntos Internacionais em Saúde "A Cooperação Brasileira em Saúde", de fevereiro de 2013, os

projetos de Bancos de Leite Humano (BLH) representavam vinte e três dos cento e sete projetos

vigentes. 13

Vídeo produzido pelo Canal Fiocruz por ocasião do I Fórum de Cooperação Internacional em

Bancos de Leite Humano. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=-vtBsHsry-0>. Acesso

em: 29/12/2013.

14 Disponível em: <http://www.crics8.org/agendas/program/activity.php?lang=en&id=38>. Acesso

em: 15/12/2013. 15

Disponível em

<http://www.fiocruz.br/redeblh/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=redeblh_espanhol&

sid=354>. Acesso em: 08/08/2014. 16

O volume de leite coletado representa de 55% a 60% da real demanda por leite humano no Brasil.

Números publicados no Portal Brasil em 05/10/2012. Disponível em:

<http://www.brasil.gov.br/saude/2012/10/lancada-campanha-de-doacao-do-leite-materno-2012>.

Acesso em: 08/02/2014. 17

Atualmente, no Distrito Federal, os bancos de leite materno coletam mais do que o dobro da

quantidade necessária para bebês prematuros e recém-nascidos abaixo do peso. Segundo a

Organização Mundial da Saúde, a capital brasileira é a única do mundo que pode ser considerada

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10

puérperas18

e nutrizes19

– recorrem aos bancos de leite humano em busca de apoio

assistencial para amamentar diretamente seus filhos.20

Os estudos realizados pela CEPAL mostram, ainda, a probabilidade de

aumento não apenas dos partos prematuros como, também, de suas consequências,

que impactam os indicadores de mortalidade neonatal – tudo isso vem abonar o

investimento na estratégia de bancos de leite humano. Os neonatos21

prematuros e de

baixo peso, além da falta de maturidade de suas funções digestiva e imunológica,

apresentam elevada carência nutricional e têm baixa capacidade de suportar o jejum,

em razão do reduzido estoque de nutrientes que possuem22

. A utilização do leite

humano na nutrição enteral23

mínima é indicado, devido a seu efeito trófico24

sobre a

mucosa, que se dá pela presença de fatores de crescimento25

. A alimentação do bebê

prematuro e das crianças recém-nascidas26

de baixo peso deve considerar a

imaturidade intestinal e suas implicações. Dessa forma, o leite humano assume

autossuficiente em alimento armazenado. Disponível em:

<http://www.douradosagora.com.br/noticias/ciencia-e-saude/parceria-com-corpo-dos-bombeiros-vai-

estimular-coleta-de-leite-materno>. Acesso em: 28/12/2013. 18

Mulher que deu à luz muito recentemente. Pode ser sinônimo de parturiente ou mulher em trabalho

de parto. Informação de acordo com o dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em:

<http://www.portais.ws/?page=art_det&ida=3752>. Acesso em: 25/12/2013. 19

Nutriz é a mulher que amamenta; aquela que alimenta. Disponível em:

<http://www.dicionarioinformal.com.br/nutriz/>. Acesso em: 25/12/2013. 20

Dados da Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano apresentados no V Congresso Brasileiro de

Bancos de Leite Humano/I Congresso Iberoamericano de Bancos de Leite Humano/Fórum de

Cooperação Internacional em Bancos de Leite Humano ABC/FIOCRUZ, realizado no período de 27 a

30 de setembro de 2010. 21

Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, o termo neonato se refere a bebês nos seus primeiros

28 dias (mês) de vida. 22

Disponível em: <http://segib.org/upload/File/Iniciativa_Bancos_de_Leiteportu.pdf>. Acesso em:

15/12/2013. 23

A nutrição enteral, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), designa todo e

qualquer “alimento para fins especiais, com ingestão controlada de nutrientes, na forma isolada ou

combinada, de composição definida ou estimada, especialmente formulada e elaborada para uso por

sondas ou via oral, industrializado ou não, utilizada exclusiva ou parcialmente para substituir ou

complementar a alimentação oral em pacientes desnutridos ou não, conforme suas necessidades

nutricionais, em regime hospitalar, ambulatorial ou domiciliar, visando a síntese ou manutenção dos

tecidos, órgãos ou sistemas" (RCD nº 63, de 6 de julho de 2000). 24

Relativo à alimentação, conforme o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. 25

Disponível em: <http://segib.org/upload/File/Iniciativa_Bancos_de_Leiteportu.pdf>. Acesso em:

15/12/2013. 26

Nas publicações da American Heart Association, Emergency Cardiovascular Care e International

Liaison Committee on Resuscitation , o termo recém-nascido refere-se, especificamente, aos primeiros

minutos ou horas que se seguem ao nascimento.

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função essencial na preparação do intestino na sua capacidade digestiva e, ao mesmo

tempo, no desenvolvimento do sistema imunológico intestinal27

.

Esse cenário permite inferir que os projetos de cooperação na área de bancos

de leite humano são capazes de ampliar as capacidades nacionais a ponto de produzir

as transformações sociais necessárias para contribuir com a reversão dos índices de

morbimortalidade infantil nos países cooperantes. Face ao exposto, faz-se oportuno

questionar sobre os meios que propiciaram o estabelecimento e a expansão da Rede

de Bancos de Leite Humano (Rede BLH), presente hoje em países da América

Latina, Caribe, África e Europa.

3 CONTEXTO HISTÓRICO

Em outubro de 1943, tem início a trajetória dos Bancos de Leite Humano

(BLH) no Brasil. O primeiro BLH, localizado no atual Instituto Fernandes Figueira

da Fiocruz, nasce com o objetivo de coletar e distribuir leite humano para atender

casos especiais. Nessa época, o leite humano distribuído pelos bancos não eram

considerados uma ameaça às fórmulas lácteas, como hoje. A doação de leite era

recompensada, não apresentando o caráter voluntário da atualidade. Apenas nos anos

1980, os bancos de leite humano começam a desempenhar uma função relevante na

saúde pública, com a criação do Plano Nacional de Incentivo ao Aleitamento

Materno. Até então, o leite humano distribuído não recebia qualquer tipo de

tratamento. Apesar disso, por meio de estudos, comprovou-se que 85% dos óbitos

por desnutrição em lactentes28

desmamados estavam associados ao uso de

alimentação artificial e isso justificava a atuação de um BLH.

Assim, a partir de 1985, nota-se a expansão dos bancos de leite humano

(ANVISA, 2010; ALMEIDA, 1999). A Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano

(Rede BLH-BR), como é conhecida atualmente, apresenta seu modelo de

crescimento baseado na descentralização aos estados e municípios, sendo formada

por duzentos e quatorze BLH em funcionamento e mais cento e vinte e cinco postos

27

Disponível em: <http://segib.org/upload/File/Iniciativa_Bancos_de_Leiteportu.pdf>. Acesso em:

15/12/2013. 28

Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, o termo “lactente” inclui o período neonatal e se

estende até 1 ano de idade (12 meses).

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12

de coleta29

. Sua política de atuação fundamenta-se na prática institucional de

responsabilidade pública e social, bem como no respeito ao exercício de cidadania,

por meio das já citadas doações voluntárias de leite humano ordenhado.

Em vários países, os bancos de leite humano encerraram suas atividades, na

década de 1980, com o surgimento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

(AIDS) e os agravos dela decorrentes. Temia-se pela segurança operacional e pelo

risco biológico. Enquanto isso, no Brasil, a realidade era inversa. Os bancos de leite

humano passavam por um processo seguro de ampliação quanto ao número de

estabelecimentos. Os cuidados necessários para certificar a qualidade do leite

humano ordenhado já haviam sido consolidados e a AIDS já não era uma ameaça aos

BLH. Nesse contexto sanitário, importante advento, a partir de 1998, foi o

envolvimento das Vigilâncias Sanitárias como parceiros para o crescimento quali-

quantitativo dos bancos de leite humano (ALMEIDA, 1999).

A Rede BLH inicia-se no Brasil com a contestação do modelo anglo-saxão de

bancos de leite humano. Mediante estudos e pesquisas, no âmbito da FIOCRUZ,

comprova-se que não é necessário que se utilizem equipamentos tão sofisticados e

caros nem tampouco os frascos especiais para o acondicionamento e armazenamento

do leite, que, até então, eram importados dos Estados Unidos por um alto valor. Foi

demonstrado que a técnica de banho-maria substituía perfeitamente o maquinário

anteriormente utilizado e que os recipientes usados para a coleta e armazenamento do

leite humano poderiam ser abandonados e trocados por vidros de maionese ou café

solúvel devidamente esterilizados. Sob essa perspectiva, desenvolveram-se os BLH

brasileiros que, traziam um padrão simples e eficiente, economicamente viável aos

países em desenvolvimento.

29

No Brasil, a coleta do leite humano na casa das doadoras é feita com o apoio do Corpo de

Bombeiros Militar, sob o projeto Bombeiro Amigo do Peito. Essa é uma iniciativa do Ministério da

Saúde, em desenvolvimento desde outubro de 2002, lançada com base na parceria no Distrito Federal

com o Corpo de Bombeiros, chamada “Bombeiro Amigo da Amamentação”. Esse trabalho mereceu

reconhecimento pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em 1998. Em alguns casos,

há, também, a participação do Rotary Clube na coleta do leite materno.

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13

Fato relevante para a história dos bancos de leite humano no Brasil foi o

lançamento da Política Nacional de Aleitamento Materno pelo Ministério da Saúde,

durante o I Congresso Brasileiro de Bancos de Leite Humano, reintegrando o

incentivo dessa prática à pauta das políticas públicas brasileiras, após cerca de um

ano de exclusão. O evento contou com a participação de mais de 700 profissionais de

BLH, representando 95% dos bancos do país. Como resultado desse evento,

inaugura-se a Rede Nacional de Bancos de Leite Humano, como era chamada à

época (ANVISA, 2010).

A rede constitui um projeto da FIOCRUZ em parceria com o Ministério da

Saúde, com a missão de promover a saúde da mulher e da criança, a fim de contribuir

para a redução da mortalidade neonatal e de melhorar os indicadores de aleitamento

materno no Brasil (FIOCRUZ, 2003) e é exatamente essa a perspectiva transmitida

aos países beneficiários da cooperação em bancos de leite humano. É repassada não

apenas a tecnologia do modelo brasileiro, como também a ideologia construída em

termos da importância do aleitamento materno para o desenvolvimento saudável da

criança. Como diz o Dr. Franz Reis Novak, Coordenador do Centro Referência

Nacional para Bancos de Leite Humano, referindo-se aos países beneficiários da

cooperação em BLH, “a gente não transfere o modelo, a gente transfere princípios.

Então, nós transferimos a filosofia de modo que eles adaptem à sua cultura, à sua

realidade e coloquem isso em funcionamento lá”30

.

As atividades de um BLH iniciam-se com a coleta do leite materno, com a

ajuda de profissionais capacitados. Após essa primeira fase, o leite cru é

acondicionado em recipientes de vidro com tampa de plástico e guardado no

refrigerador, por até 24 horas, ou no freezer, por um período máximo de quinze dias.

No caso de serem transportados, esse processo é realizado em caixas isotérmicas,

revestidas de PVC, preferentemente, resfriados com gelo reciclável em quantidade

proporcional ao número de frascos de leite. O leite coletado é, então, selecionado de

acordo com as condições de conservação em que se encontra no momento da

recepção e classificado antes de sua estocagem. O leite humano passa, em seguida,

pelo processo de pasteurização em banho-maria, em temperatura de 62,5ºC por 30

minutos. Logo há um resfriamento dos frascos com a imersão em água a cerca de

30

Vide Nota 14.

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5ºC. O produto está, assim, pronto para ser congelado e estocado em freezer, com

validade de 6 meses, sob rigoroso controle de temperatura. Esse leite está apto a ser

distribuído e administrado, segundo prescrição médica ou de nutricionista, a bebês

prematuros ou recém-nascidos de baixo peso com problema de sucção, recém-

nascidos infectados, especialmente com enteroinfecções (gastroenterites ou

desidratações), portadores de deficiências imunológicas, portadores de diarreia

potraída ou persistente (entre duas e quatro semanas), portadores de alergia a

proteínas heterólogas31

e casos excepcionais, a critério médico32

.

4 TRAJETÓRIA INTERNACIONAL DOS BANCOS DE LEITE HUMANO

4.1 Iniciativas multilaterais

No início da Rede, no final da década de 1990, apenas bancos de leite

humano brasileiros se integravam, realizando intercâmbio de ideias e soluções. Em

2000, foi realizado o II Congresso Brasileiro de Bancos de Leite Humano e I

Congresso Internacional de Bancos de Leite Humano, na cidade de Natal. A partir

daí, inicia-se a trajetória internacional dos Bancos de Leite Humano (BLH). Do

evento, participaram representantes da área vindos da França, dos Estados Unidos da

América (EUA), do Reino Unido e da Venezuela. Foi uma iniciativa de troca de

experiências e conhecimentos, que reconheceu a posição de vanguarda ocupada pelo

Brasil.

Em 2005, em Brasília, acontece o IV Congresso Brasileiro de Bancos de

Leite Humano e, concomitantemente, o II Congresso Internacional de Bancos de

Leite Humano, marco histórico da cooperação internacional na área de BLH. Esse

evento sediou o I Fórum Latino-Americano de Bancos de Leite Humano, que contou

com a participação de 11 países da região (Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia,

Costa Rica, Cuba, Equador, Guatemala, Paraguai, Uruguai e Venezuela), dos EUA,

da Inglaterra e, ainda, de quatro organismos internacionais (Aliança Mundial para

31

Aquelas que são expressas em um organismo diferente daquele que a sintetiza naturalmente.

Disponível em: <http://content.synapseshub.com/biotecnologia/proteinas-heterologas>. Acesso em:

11/02/2014. 32

Disponível em: <http://www.vitalin.com.br/blog/2013/08/13/banco-de-leite-humano-o-que-e-como-

funciona-e-porque-e-tao-importante/>. Acesso em: 02/02/2014.

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Ação em Aleitamento Materno (WABA), Fundo das Nações Unidas para a Infância

(UNICEF), Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (IBFAN) e

Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)). Como um dos resultados do evento,

foi assinado um acordo multilateral, a Carta de Brasília33

, que constituiu um

protocolo internacional com vistas ao fortalecimento da lactância materna e dos

bancos de leite humano, assinado pela Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa

Rica, Cuba, Equador, Guatemala, Paraguai, Uruguai e Venezuela, com o expresso

compromisso de garantir a quantidade, segurança e eficácia dos BLH a serem

utilizados pela população de seus respectivos países, no âmbito do que já se podia

considerar Rede Latino-Americana de Bancos de Leite Humano.

O crescimento das atividades de cooperação entre países ibero-americanos

gera a necessidade de estruturação de um modelo de ação, por meio da criação da

Rede Ibero-Americana de Bancos de Leite Humano (IberBLH). Isso significava

delimitar espaços de interação positiva e a definição dos princípios de cooperação e

comunicação. Nesse contexto, em 2007, é apresentada a proposta do Programa de

Apoio Técnico para Implantação da Rede Ibero-Americana de Bancos de Leite

Humano (Programa BLH)34

na XVII Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e

de Governo, realizada no Chile, com a participação dos vinte e dois Chefes de Estado

e de Governo dos países-membros da Comunidade Ibero-Americana. O Programa

BLH propõe à Comunidade o intercâmbio de conhecimento e de tecnologia no

campo da lactância materna e bancos de leite humano como estratégia para atingir os

Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, enfatizando a redução da mortalidade

infantil.

33

Carta de Brasília (vide Anexo “A”). 34

Declaração de Santiago: Item 19 – "Fortalecer – no marco dos compromissos do Consenso de

Monterrey* sobre financiamento do desenvolvimento, como no âmbito da Iniciativa contra a Fome e a

Pobreza e da busca de mecanismos inovadores de financiamento – a colaboração iberoamericana,

sobre a base de propostas concretas tais como, a iniciativa regional "Para a Erradicação da

Desnutrição Infantil na América Latina e o Caribe" e programas destinados a lutar contra a

desnutrição infantil crônica, especialmente em menores de cinco anos, mulheres grávidas e mães

lactantes. Neste contexto aprovamos o Programa Cumbre Red de Bancos de Leche Humana". O

Consenso de Monterrey foi o resultado da Conferência Internacional sobre Financiamento para o

Desenvolvimento, promovido pela ONU, no México, em março de 2002. O documento estabeleceu

uma iniciativa para combater a pobreza, com os países ricos prometendo, oficialmente, tentar dobrar

sua cooperação para o desenvolvimento dos países pobres e esses concordando em aproveitar melhor

os recursos recebidos.

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Sob o tema “Coesão social e políticas sociais para alcançar sociedades mais

inclusivas na Ibero-América”, a Cúpula aprova a proposta, que conta com o

envolvimento, inicialmente, de sete países: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia,

Paraguai, Uruguai e Venezuela35

. Esses países comprometem-se, assim, a apoiar a

implantação de pelo menos um banco de leite humano em seu território, que seja

capaz de atuar como centro de referência da Rede Ibero-Americana, que é

coordenada, desde o seu surgimento pelo Coordenador da Rede Brasileira de Bancos

de Leite Humano, Dr. João Aprígio Guerra de Almeida. Ademais, os países da Rede

pactuam investir, por ano, US$ 127.200,00 (cento e vinte e sete mil e duzentos

dólares) em ações voltadas ao desenvolvimento dos BLH em seu próprio país. Mais

tarde, juntam-se a essa Rede, por meio de Carta de Adesão, firmada pelas respectivas

autoridades (Ministros da Saúde), a Costa Rica, a Espanha, o Panamá e o Peru.

Em 2008, com o apoio da Organização Pan-Americana da Saúde, surge o

projeto “Brasil, Honduras e Equador – Bancos de Leite Humano”. O objetivo da

iniciativa, que teve a duração de um ano, foi o de desenvolver e apoiar políticas e

respostas institucionais e comunitárias que fortalecessem o aleitamento materno e a

capacidade de resposta do Estado, utilizando-se da expertise brasileira. Aqui, o

suporte financeiro e institucional da OPAS possibilita o desenvolvimento de uma

ação conjunta, que até então era oferecido somente pela Agência Brasileira de

Cooperação (ABC) em projetos bilaterais.

Ainda no mesmo ano, outros dois continentes eram contemplados

multilateralmente com a iniciativa dos bancos de leite humano: África e Europa

(pontualmente, Portugal). Na XVII Reunião dos Pontos Focais de Cooperação da

CPLP, órgão da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, realizada em Lisboa,

foi aprovado o “Projeto para Implementação de Rede de Bancos de Leite Humano

nos Países da CPLP”, que levaria a estratégia dos BLH à Comunidade, dando início à

cooperação fora dos limites da América. As ações desenvolvidas pela CPLP têm seus

objetivos direcionados para os setores prioritários, como a Saúde e a Educação. Com

o referido projeto, atendendo à área da Saúde, a CPLP busca apoiar o aleitamento

materno, coletar e distribuir leite humano devidamente processado, contribuindo para

35

FIOCRUZ. S. d. Disponível em:

<http://www.fiocruz.br/redeblh/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?useractivetemplate=redeblh%5fespanhol

&infoid=415&sid=372>. Acesso em: 01/12/2013.

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a redução da mortalidade infantil nos países-membros, por meio da instalação de

bancos de leite humano em todos os países da Comunidade. Isso ainda não é uma

realidade. Dos países da CPLP, apenas Angola, Cabo Verde, Moçambique e Portugal

possuem projetos bilaterais na área de BLH, conforme será detalhado mais adiante.

Outra iniciativa multilateral, lançada em 2009 e financiada integralmente pelo

Brasil, com recursos da ABC, foi o projeto “Apoio técnico para a implantação da

Rede Iberoamericana de Bancos de Leite Humano”. Nesse projeto, cujo objetivo é o

de criar as bases para o estabelecimento da Rede Ibero-Americana e integrar os

países que dela fazem parte, incluem-se a Argentina, a Bolívia, a Colômbia, a

Espanha (com financiamento próprio), o Paraguai, o Uruguai, a Venezuela e, como

prestador da cooperação e país coordenador da Rede, o Brasil. A Rede vem

proporcionar o intercâmbio de conhecimento e transferência de tecnologia no âmbito

do aleitamento materno como componentes estratégicos para atingir os ODM, com

ênfase na mortalidade infantil.

Como se pode notar, a essa altura, já existia uma ampla rede de cooperação

internacional na área de bancos de leite humano, que abrangia não só diversos países

como também distintos continentes. Era imperativo reunir todos esses atores para se

discutir o tema comum que os unia e estabelecer os rumos dessa cooperação. Foi

quando, em setembro de 2010, organizou-se, em Brasília, o V Congresso Brasileiro

de Bancos de Leite Humano/ I Congresso Ibero-Americano de Bancos de Leite

Humano/ I Fórum de Cooperação Internacional em Bancos de Leite Humano.

Estavam presentes no evento um total de 24 países, incluindo-se o Brasil,

demonstrando a abrangência da Rede BLH.

Durante o evento, foi elaborada nova Carta de Brasília (Carta de Brasília

201036

), ratificando os compromissos assumidos na Carta de Brasília 2005 e

acrescentando estratégias para a continuidade do trabalho. Segundo o Coordenador

da Rede Brasileira de BLH, a assinatura da primeira Carta de Brasília formalizou o

compromisso internacional na área. Concluída parte dessa etapa, era o momento de

seguir adiante, com o estabelecimento de novo acordo para enfrentar os desafios que

ainda se impunham.

36

Carta de Brasília 2010 (vide Anexo “B”).

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Nas palavras do Dr. João Aprígio Guerra de Almeida,

“[...] a Carta de Brasília 2010 concentra os esforços internacionais para o

enfrentamento da mortalidade infantil e aponta as estratégias para o

cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio até 2015,

conforme estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU)”37

.

O documento define como um importante foco o estabelecimento de

mecanismos que assegurem a expansão com consolidação da Rede de Bancos de

Leite Humano nas regiões dos países signatários, tendo sido firmado por

representantes do setor Saúde e de Proteção Social dos Governos e da sociedade civil

de países ibero-americanos e do continente africano.

4.2 Projetos bilateraiss

Nos anos 2000, começa a ser difundido o modelo brasileiro de bancos de leite

humano a outros países sul-americanos, como Venezuela, Uruguai e Equador, que

foram os primeiros países a se beneficiarem do modelo brasileiro de baixo custo. Em

seguida, a tecnologia se expande pela América Latina e Caribe, conformando a Rede

Ibero-americana de BLH. À exceção do Chile, todos os países da América Latina e

Caribe hispânico possuem, pelo menos, um banco de leite humano em

funcionamento.

Hoje, a intenção da Rede já ultrapassou o desenvolvimento regional,

chegando à África e mesmo à Europa, em um claro exemplo de Cooperação Sul-

Norte, contrariando o modelo clássico de cooperação internacional, que infere que o

desenvolvimento é transmitido sempre a partir dos países desenvolvidos do Norte aos

países pobres do Sul. Rendendo-se ao novo padrão Sul-Norte, Carmen Medina

López, do Hospital 12 de Octubre, em Madri, onde há um BLH instalado conforme o

padrão brasileiro, declara que “quando as coisas são verdadeiras e quando são bem

feitas, todo mundo tem que aprender com todo mundo e, de fato, quem não quer

aprender com o Brasil sobre os bancos de leite humano está equivocado”38

.

37

Vide Nota 14. 38

Vide Nota 14.

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O projeto “Apoio técnico para a implantação/implementação de bancos de

leite humano” é uma iniciativa da FIOCRUZ que, com o apoio, o financiamento e a

coordenação da ABC, leva o modelo brasileiro de BLH a outros países como

resultado de uma ação de cooperação técnica internacional, na maioria das vezes,

bilateral39

. Esse projeto, adaptado à realidade de cada país, tem por objetivo a

instalação e o funcionamento de, pelo menos, um banco de leite humano em cada um

dos países onde é implementado, que seja capaz de representar um centro de

referência em aleitamento materno e BLH no respectivo país, perseguindo o desafio

de contribuir para a redução da morbimortalidade infantil, com ênfase no

componente neonatal. Pode-se resumir a atuação desses projetos como o apoio à

preparação para a implementação de bancos de leite humano em um determinado

país, com a possibilidade de se trabalhar em rede. Para tanto, são capacitados

profissionais para atuar nos BLH do país, em seus diferentes níveis de complexidade.

Ademais, os projetos são desenvolvidos de forma a integrar todos os bancos de leite

humano da região em um sistema de informação da Rede de Bancos de Leite

Humano (rBLH).

Atualmente, são 25 os países que foram ou serão beneficiados com projetos

na área de bancos de leite humano40

. Esses países são: na África – África do Sul,

Angola, Cabo Verde e Moçambique; na América Latina e Caribe – Argentina,

Belize, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Cuba, El Salvador, Equador, Guatemala,

Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República

Dominicana, Uruguai e Venezuela; e na Europa - Espanha e Portugal. À exceção dos

dois países europeus, todos os demais países contaram com recursos financeiros do

Governo brasileiro para a implementação dos respectivos projetos de BLH.

A quase totalidade dos países recipiendários dessa cooperação partiram do

ponto zero, ou seja, não possuíam bancos de leite humano e desenvolveram todas as

etapas do projeto igualmente, considerando apenas a diferença de área para a

39

Exceção a essa regra é o projeto “Apoio técnico para a implementação de banco de leite humano no

Haiti”. Esse projeto é uma iniciativa da Agência Brasileira de Cooperação em triangulação com a

Agência Francesa de Desenvolvimento, que é responsável por aportar recursos para a adequação da

infraestrutura, para a aquisição dos equipamentos básicos, para a contratação de pessoal e para a

manutenção do BLH por um período de dois anos. 40

Estão aqui considerados os países que têm já seus bancos de leite humano implementados e em

funcionamento, aqueles que têm seus projetos em fase de implantação e, ainda, os que estão em fase

de negociação do documento.

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instalação do BLH, que, conforme disponibilidade de espaço, recebia uma indicação

diversa de layout. No entanto, todas as unidades de bancos de leite humano,

independentemente de tamanho ou disposição, respeitam uma estrutura mínima e

seguem normas rígidas específicas determinadas pela Agência Nacional de

Vigilância Sanitária (ANVISA) para sua montagem. Exceção a essa regra, por

exemplo, foi o México, que já dispunha de uma rede de bancos de leite humano, mas

que operava em um modelo distinto de BLH, o modelo anglo-saxão, anteriormente

citado. Nesse caso, o projeto tratou de adequar os bancos de leite humano já

existentes que participaram do projeto para que tivessem a mesma estrutura e

funcionassem nos mesmos moldes de um BLH brasileiro. O projeto de cooperação

técnica na área de bancos de leite humano elaborado para aquele país foi, então,

bastante diferente dos demais, considerando sua experiência anterior no assunto e a

estrutura já montada.

Fato incomum, porém determinante para a definição de implantação do

projeto, foi o ocorrido no Haiti. Como a matéria-prima dos BLH é o leite humano

proveniente de doações voluntárias, a sociedade tem que acreditar no sistema e aderir

à causa para que o processo funcione. Em culturas como a brasileira e outras latino-

americanas não se veem problemas para conquistar o público, que é composto não só

pelas doadoras, mas pelas usuárias (mães beneficiadas). No entanto, em certos

países, como o caso haitiano, de acordo com as crenças nacionais, podem-se

encontrar entraves culturais de aceitação das técnicas utilizadas porque nem sempre o

bebê prematuro alimenta-se do leite de sua própria mãe. Por isso, nesse caso, para

ponderar a aceitação do projeto BLH, foram realizadas, previamente, enquetes com a

população feminina para avaliar a concordância local.

As atividades dos projetos de bancos de leite humano iniciam-se com uma

missão técnica da FIOCRUZ ao país beneficiário para a realização de uma

sensibilização dos gestores da área e das autoridades de saúde no país quanto à

estratégia de bancos de leite humano. Nesse momento, realizam-se reuniões com

todos os níveis de profissionais envolvidos com o tema, a fim de esclarecer as

determinações do projeto e de capitanear apoio técnico e político para a causa, bem

como com o intuito de apoiar a elaboração da estratégia nacional de atuação dos

bancos de leite humano no país recipiendário.

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Ainda nesse primeiro momento, são visitados os hospitais indicados pelo

Governo do país beneficiário como possíveis receptores de um BLH, para que se

avaliem as condições para a instalação do banco. Uma vez eleita a instituição, a

equipe da FIOCRUZ elabora o projeto de infraestrutura do BLH e a responsabilidade

passa a ser do país estrangeiro que, como contrapartida ao investimento brasileiro,

assume a adequação das instalações físicas e a aquisição dos equipamentos básicos

necessários para o funcionamento de um banco de leite humano.

Por vezes, a depender da carência financeira do país, a ABC assume, também,

a compra dos equipamentos e o seu transporte até o país, como foi o caso da Bolívia,

de Cabo Verde, de El Salvador, da Nicarágua e do Paraguai, que colocará mais dois

BLH em operação na segunda fase do projeto, também com a aquisição de

equipamentos por parte do Brasil. Por vezes, a contraparte consegue os equipamentos

por meio de doação de organismos internacionais que atuam em seu país. Em Cuba,

os equipamentos dos bancos de leite humano são fornecidos pela UNICEF e, em

Costa Rica, a compra deveu-se à Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). A

instalação desses equipamentos, principalmente quando feita pelo Brasil, é

acompanhada pela equipe de técnicos da Rede Brasileira de BLH.

Após realizada a instalação dos equipamentos e a montagem do BLH, inicia-

se a cooperação técnica propriamente dita. São ministrados cursos de capacitação aos

profissionais estrangeiros em funcionamento de bancos de leite humano, bem como

em processamento e controle de qualidade do leite materno, realizado em duas fases

consecutivas: aulas teóricas e aulas práticas, com a duração de uma semana para cada

grupo de aulas. O curso teórico pode ser assistido por até 60 interessados. A parte

prática do curso, porém, é direcionada apenas à equipe básica que trabalhará

diretamente no processamento e no controle de qualidade do leite humano, podendo

contar com, no máximo, quinze participantes.

A respeito dessa aprendizagem, Magaly Marcela Hernández Sandoval, do

Ministério do Poder Público para a Saúde da Venezuela, afirma:

“Nós não tínhamos ideia de como se processava o leite. Simplesmente o

processávamos refrigerando-o e congelando-o. Você imagina, não?

Então, com o Brasil, aprendemos todo o processamento, a parte físico-

química, a parte de bacteriologia, toda a manipulação do leite e como se

deveria congelar, todos os procedimentos que nos garantem a qualidade

do leite. Se não houvesse essa relação com o Brasil desde aquela época,

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22

creio que continuaríamos fazendo o que já estávamos fazendo e realmente

não teríamos chegado onde estamos, porque é muito importante a

cooperação, a união de esforços”41

.

Em um segundo momento, cerca de seis meses depois, que é o tempo

correspondente à maturação do projeto, é realizada nova missão ao país estrangeiro

para adequar e implantar as ferramentas de gestão da informação (cadastro nacional

de BLH, sistema de controle da produção, sistema de monitoramento da qualidade e

BLH on line42

). Essa atividade é realizada em uma semana de trabalho,

conjuntamente com o treinamento das equipes técnicas que operam o banco de leite

humano na utilização dos softwares. Após mais seis meses da realização da última

capacitação, é enviada uma missão da FIOCRUZ ao país beneficiário para que as

atividades do BLH sejam monitoradas e para que sejam avaliados os resultados da

implementação do projeto de cooperação. É necessário que haja esse lapso de tempo

entre as missões para que haja suficiente prazo de operação que indique se o

funcionamento do banco de leite humano está adequado e se os resultados

alcançados estão conforme o esperado.

A primeira fase dos projetos de BLH tem duração relativa às adequações da

infraestrutura do BLH, dependendo do tempo necessário para que o país receptor as

realize, bem como à instalação física do banco de leite humano. Esse requisito varia

de acordo com a facilidade que o país tem para a aquisição dos equipamentos

básicos. Após a conclusão da primeira fase dos projetos de BLH, grande parte dos

países se interessa em manter a cooperação na área, estendendo o projeto a uma

segunda fase, que trabalha um processo de crescimento da Rede de Bancos de Leite

Humano do país baseado na descentralização e na implementação da competência

técnica nos estados e municípios, como acontece no Brasil. Já se encontram nessa

etapa Colômbia, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, México, Nicarágua,

Paraguai, República Dominicana e Uruguai43

.

41

Vide Nota 14. 42

Ferramenta para o acompanhamento do sistema de produção de leite humano na Rede. 43

A segunda fase dos projetos de El Salvador, Nicarágua e Paraguai está em fase de assinatura.

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O projeto “Apoio técnico para a expansão e consolidação da Rede de Bancos

de Leite Humano” visa assessorar os Ministérios da Saúde estrangeiros na

formulação de estratégias para a ampliação do número de BLH no país e para a

organização e estabilização desses bancos de leite em estrutura de rede, de forma a

otimizar o funcionamento e proporcionar um intercâmbio de experiências e mesmo

de produtos, numa plataforma organizada e coordenada. Além disso, os Ministérios

são assessorados quanto ao desenvolvimento de campanhas de estímulo à

amamentação e à doação de leite humano.

Nessa fase, também, os profissionais de saúde que operam nos bancos de leite

humano são capacitados em assistência em aleitamento materno, auxiliando-os no

aconselhamento às mães que buscam o BLH. Esses mesmos profissionais são

treinados para a realização de atividades de tutoria em cursos de processamento e

controle de qualidade em bancos de leite humano, propiciando que repassem os

conhecimentos adquiridos a outros técnicos do país ou que se envolvam em projetos

em benefício de terceiros países, em projetos bilaterais ou em triangulação com o

Brasil ou outro país que já tenha sido capacitado. Esse projeto apoia, ainda, a

implantação do sistema de informação, planejamento e gerenciamento de BLH em

todos os bancos de leite humano do país, interligando-os em rede. Por fim, nova

avaliação dessa fase do projeto é realizada, para medir a efetividade da cooperação

brasileira.

Vários são os apontados como beneficiários de toda essa cooperação,

desenvolvida em parceria entre os Ministérios da Saúde (executor) e das Relações

Exteriores (coordenador e financiador), por meio da ABC: os Governos dos países

participantes da cooperação técnica internacional, por meio dos Ministérios da Saúde

desses países; os profissionais de saúde em aleitamento materno, assim como os

técnicos em bancos de leite humano dos países da Rede BLH; as mulheres gestantes,

puérperas e lactantes dos países em questão; e os recém-nascidos prematuros, de

baixo peso ao nascer e/ou portadores de patologias do trato digestivo, como, por

exemplo, doenças crônicas não transmissíveis.

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Bastante expressivos são os resultados dessa cooperação, que podem ser

monitorados pelo Brasil, por meio do sistema de informação da Rede BLH

(BLHWeb). Os dados que alimentam esse sistema são fornecidos pelos países

cooperantes, com relação aos números obtidos nas respectivas redes nacionais. Essa

ferramenta auxilia no controle e na avaliação de todo o processo desde o

gerenciamento de rotas de coleta, passando pela captação das doações,

cadastramentos, controle de estoque, classificação e seleção do produto até escolha e

a distribuição do leite humano aos receptores.

Ainda não se dispõe de uma análise mais profunda, referente ao impacto

social causado pela cooperação em BLH nos países receptores, seria necessário obter

dados de mortalidade infantil anteriores à implementação dos bancos de leite humano

nesses países e confrontá-los com os números atuais. No entanto, disponibilizam-se

informações capazes de traduzir o efeito da implantação de bancos de leite humano

nos países beneficiários no que tange à quantidade de recém-nascidos beneficiados

com o leite humano processado pelos BLH e, também, quanto ao número de

mulheres assistidas pelas equipes dos bancos de leite resultantes da cooperação

internacional44

.

De posse dos indicadores fornecidos pelo Sistema BLHWeb, pode-se inferir a

diferença de morbimortalidade por causas precoces relacionadas à desnutrição nos

países recipiendários. Em termos de quantidade de população, nenhum desses países

se compara ao Brasil. Assim, é mais fácil alcançar resultados satisfatórios, obtendo

real impacto, principalmente se for considerado o fato de que a população desses

países, em grande maioria, é concentrada nas capitais, onde, geralmente, são

instalados os primeiros bancos de leite humano do país.

44

Dados referentes aos bancos de leite implantados nos países recipiendários da cooperação. Vide

Anexo “C”.

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25

5 CONCEITOS SOBRE A FORMAÇÃO DA REDE DE BANCOS DE LEITE

HUMANO

Ao acompanhar a trajetória da Rede de Bancos de Leite Humano (rBLH),

percebe-se um fato bastante curioso: o surgimento da referida Rede acontece de

forma não oficial, mesmo contando com atores governamentais, para, num segundo

momento, ser institucionalizada e formalizada como ação entre Estados. Essa

sistemática vem de encontro com o conceito acadêmico de relações transnacionais,

como um dos meios que propiciaram o estabelecimento e a expansão da rBLH para a

América Latina, o Caribe, a África e a Europa.

Redes transgovernamentais estabelecidas entre funcionários do Estado em

subunidades dos Governos nacionais e organizações internacionais, frequentemente,

definem sua própria agenda, às vezes até mesmo contrárias às políticas declaradas

por seus Governos nacionais. Os princípios normativos transnacionais decorrentes

dessas redes transgovernamentais têm sua emissão baseada no conhecimento e

parecem ter um impacto importante na difusão global de valores, normas e ideias. As

referidas redes são fundamentadas tanto em entendimentos informais quanto em

acordos formais. No entanto, o resultado das ações dos atores transnacionais45

depende da compatibilidade dos seus objetivos com as políticas de Estado. As

estruturas internas filtram, de acordo com os seus interesses, o impacto da política

das atividades transnacionais. Ao final do processo, para a definitiva internalização

das relações transnacionais, os atores transnacionais precisam de parceiros

governamentais, a fim de obterem apoio e ratificação para seus acordos (RISSE-

KAPPEN, 1999).

Essa composição pode ser claramente observada no âmbito dos bancos de

leite humano e na estrutura conformada pela influência da liderança brasileira nessa

área. Toda a articulação sobre a importância do aleitamento materno e a

disseminação do conhecimento e da experiência da FIOCRUZ, ou melhor, do

Instituto Fernandes Figueira dessa Fundação, é feita entre seus pares nos países

45

Para Rafael A. Duarte Villa, ator transnacional é o “agente societal que estabelece um tipo inovador

de vinculações extra-estatais, baseando-se em contatos, coligações e interações através das fronteiras

nacionais ante os quais os órgãos centrais da política externa estatal ou supranacional têm relativa, ou

nenhuma, capacidade regulatória.”

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correspondentes, com o apoio ou não de organizações internacionais. Depois de

implantada a ideia e determinados os alicerces para a implementação dos bancos de

leite humano são solicitadas as bases da instalação da estrutura física e,

conjuntamente, a regulamentação das políticas e normativas referentes à lactância

materna, com a devida institucionalização governamental que resguarde a ação já

discutida e formulada em bases inferiores.

A concepção dos BLH, de forma alguma, foi contrária aos preceitos

governamentais brasileiros, mas é notório que a Rede Brasileira ganhou mais espaço

e respeito, traduzidos em verbas adicionais, em consequência de sua atuação

internacional. Com o sucesso da Rede BLH no exterior, o Ministério de Saúde (MS)

solidificou a convicção da importância dos bancos de leite humano e implantou mais

vinte e dois bancos e onze postos de coleta no Nordeste brasileiro e na região da

Amazônia Legal até o final de 2010, devido aos altos índices de morbimortalidade

infantil46. Outra ação positiva em benefício da Rede Brasileira foi o anúncio do MS,

em maio de 2013, declarando que utilizaria R$ 11,6 milhões para reajustar os valores

pagos pelos procedimentos realizados pelos bancos de leite humano, reformar

unidades já existentes e construir cinco novos BLH até o fim daquele ano. O objetivo

desse investimento, segundo o então Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, foi

aumentar em 15% o total de leite coletado por meio de doações. 47

A estrutura em questão caracteriza a descentralização dos locais de ação dos

atores transnacionais em países distintos, formadores da Rede BLH, criando

subsistemas sobrepostos, que requerem coordenação e cooperação entre os vários

subsistemas e seus respectivos atores. No entanto, as iniciativas de ação são

centralizadas na Rede Brasileira de BLH, fundamentalmente, na pessoa do

Coordenador dessa Rede, Dr. João Aprígio Guerra de Almeida, que é o idealizador

de todo esse complexo internacional e a referência na área, tanto em âmbito interno

quanto externo. Ana Luísa Torres e Melo, da Maternidade Dr. Alfredo da Costa de

Lisboa, representante de Portugal no I Fórum de Cooperação Internacional em

Bancos de Leite Humano, confirma essa visão em sua declaração: "Foi muito

46

Apresentação de Franz Reis Novak. Disponível em:

<http://www.ibfan.org.br/documentos/outras/doc-492.pdf>. Acesso em: 08/02/2014. 47

Reportagem de Thaís Leitão para a Agência Brasil, de 22/05/2013. Disponível em:

<http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-05-22/ministerio-da-saude-vai-ampliar-

bancos-de-leite-materno>. Acesso em: 08/02/2014.

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importante para a nossa experiência ter alguém que falasse da sua experiência, ter

informação disponível e ter, sobretudo, alguém que soube transmitir a importância de

um banco de leite humano adaptado à realidade do nosso país".

A arquitetura desse sistema prevê, ademais, duas esferas de poder que se

inter-relacionam constantemente, conferindo-lhe dinamicidade: a esfera

estatocêntrica, cujos atores são os Estados nacionais soberanos, e a esfera

multicêntrica, composta de atores não soberanos. Esses atores soberanos e não

soberanos movimentam-se entre ambas as esferas, instituindo entre si uma relação ad

hoc (RIBAS, 2013).

Alguns atores transnacionais, como é o caso da Rede Brasileira de Bancos de

Leite Humano, não contam com recursos econômicos para exercer sua influência de

forma concreta (para o financiamento de um projeto de cooperação ou para a

instalação de um BLH no exterior), mas ganham sua força por meio do poder de

persuasão de ideias e valores. Logo, busca-se a complementação, em termos de

recursos financeiros, para a efetivação dessas ideias na institucionalização, na

participação governamental, quer seja do Brasil quer seja da contraparte. O apoio

político, logicamente, é mister que seja realizado por ambas as partes.

A Rede Latino-Americana de Bancos de Leite Humano, que passou à Rede

Ibero-Americana de BLH e, devido à sua atual amplitude, a simplesmente Rede

BLH, que congrega países da América Latina, Caribe, África e Europa, nasce,

também, na "informalidade" - informalidade no sentido da falta de necessidade de

um pré-consentimento por parte do Governo em apoiar a causa inicialmente (a causa

é absorvida, em primeira instância, tecnicamente, que é onde se concentra a força dos

BLH48

). Segundo Risse-Kappen, nem a institucionalização nem o poder econômico

por si só são decisivos para o impacto da política de atores transnacionais e os bancos

de leite humano, na formação de sua rede internacional, são o melhor exemplo dessa

máxima.

48

Segundo o Dr. João Aprígio Guerra de Almeida, Coordenador da Rede Brasileira de BLH, "a gente

consegue chegar a essa posição com o trabalho de muitos, com o trabalho desse exército de militantes

que acreditam que podem transformar a realidade da saúde pública e entendem que os bancos de leite

humano brasileiros são um produto SUS-Brasil de exportação". Essa mesma militância pode ser

observada nos técnicos e gestores dos BLH de todos os demais países. É uma característica

impressionante observada na área, como se fosse um pré-requisito de atuação (Nota do autor).

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Outro conceito que pode ser facilmente aplicado à Rede BLH, como

explicação alternativa e complementar para o estabelecimento e a expansão da Rede

de Bancos de Leite Humano, é o de comunidade epistêmica49

, ou comunidade da

política, desenvolvido pelo cientista político Peter M. Haas, da Universidade de

Massachussets, em 1992. Segundo ele, esse tipo de comunidade trata de uma rede de

profissionais com reconhecido conhecimento especializado e competência num

determinado domínio, além de autoridade para adquirir conhecimento relevante

sobre as políticas sob seu domínio.

Apesar de contar com indivíduos de formação distinta e trajetórias

profissionais diversas entre si, a comunidade epistêmica compartilha um conjunto de

crenças e princípios normativos, partilhando conhecimentos e argumentação; crenças

causais, inspiradas nas soluções para os problemas da área; formas de legitimação e

validação do conhecimento no seu domínio e empreendimento de políticas baseado

em valores comuns (MOTTA, 2006). Em outras palavras, “é um grupo de

profissionais que tem algo relevante para dizer sobre uma área específica”50

. Peter

Haas vem ampliar essa definição, que quase sempre é utilizada para referir-se a

cientistas e acadêmicos, no sentido de agregar os profissionais em geral.

Segundo Emanuel Adler, cientista político e professor da Universidade de

Toronto, podem-se observar comunidades epistêmicas em diferentes níveis,

nacionais ou trasnacionais, conforme o direcionamento de suas ações. Elas têm a

capacidade de desempenhar um papel importante na definição da agenda e mesmo no

processo decisório de um país ou de um grupo de países, a depender do seu raio de

atuação. Sua legitimidade de ação dá-se por seu conhecimento especializado. Essas

comunidades, ademais, têm um comprometimento com a produção e com a aplicação

de conhecimento em sua esfera de influência. No caso específico dos bancos de leite

humano, percebe-se, claramente, que a atuação em rede e a movimentação do

conhecimento são os mais importantes elementos de sustentação da Rede BLH. Seu

caráter, muitas vezes "informal", corrobora com a definição em tela, utilizando-se de

49

De acordo com Peter Haas, são características das comunidades epistêmicas: dispor de agenda

comum, estar integrada por redes, ter sistema de crenças e valores compartilhados, possuir tamanho

compacto, dar maior peso às relações informais que formais, contar com prestígio e credenciais

acadêmicas e possuir de diversidade profissional. 50

Disponível em:

<http://www.fflch.usp.br/.../seminariodiscentedcp_maio_2012_maria_Clara_Oliveira>. Acesso em:

11/12/2013.

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seu poder de persuasão extraoficial para impulsionar, conduzir ou frear o processo de

integração regional. Por meio desses canais, conduzem novas propostas e circulam

ideias inovadoras entre as sociedades e os governos e, também, de um país a outro

(SANTOS, 2009).

Trazendo esse conceito para o âmbito das políticas públicas, tem-se que,

conforme o professor Keith Dowding, da Universidade Nacional Australiana, a

comunidade de política é uma modalidade de rede de políticas públicas que se

caracteriza como uma cultura e um entendimento comuns sobre a natureza dos

problemas e do processo de decisão dentro de um domínio de política pública. Dessa

forma, a comunidade epistêmica coordena e promove o desenvolvimento de políticas

em quatro fases distintas: a inovação ou a introdução de novo tema na agenda

política, quando se definem os interesses do Estado e são fixados os critérios da

política pública; a divulgação, à medida em que as ideias e as recomendações da

comunidade se expandem pelo meio acadêmico, em congressos, publicações ou

reuniões, e ultrapassam as fronteiras, transcendendo o âmbito acadêmico para

introduzir-se em instituições governamentais e partidos políticos; a seleção de

políticas, quando realmente se estruturam as agendas políticas; e a persistência das

políticas, ao serem institucionalizadas, socializadas e internalizadas, nesse ponto já

obtendo o seu caráter formal ou oficial (SANTOS, 2009).

Em termos práticos, esse foi exatamente o percurso seguido pela Rede de

Bancos de Leite Humano. O caminho trilhado passou por estudos e pesquisas,

disseminação do conhecimento em nível acadêmico e técnico e, posteriormente,

institucionalização e apoio político. Pode-se, assim, aferir o caráter inabalável dessa

Rede e a construção das bases sólidas que a sustentam. Uma vontade política ou um

interesse efêmero, simplesmente, não são capazes de construí-la ou destruí-la. Os

BLH são hoje, no Brasil, uma política não somente de Governo, mas de Estado, que

perpassa mandatos e atravessa fronteiras. Essa foi uma grande conquista brasileira e

isso tem sido seguido, como todas as outras diretrizes da Rede, pelos demais países

que a conformam.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cooperação técnica brasileira tem sido uma ferramenta importante de

inserção do Brasil na política internacional. Nessa seara, inclui-se a cooperação

técnica na área de saúde que, segundo a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), é

tema predominante na agenda de cooperação técnica internacional nos âmbitos

multilateral e bilateral51

. Por sua vez, dentro da cooperação em saúde, pode-se

ressaltar a cooperação em bancos de leite humano, que corresponde ao maior número

de projetos da pauta do Ministério da Saúde (MS)52

. Não apenas quanto ao número

de iniciativas, mas a relevância desses projetos deve-se, mais ainda, ao caráter

humanitário e social desse tipo de cooperação. Trata-se de um tema bastante sensível

e que traz, além de tudo, resultados efetivos para uma questão prioritária. A

prioridade da diminuição da mortalidade infantil, ademais, já deixou de ser uma

questão específica de saúde, mas, figura, agora, entre as metas da Organização das

Nações Unidas (ONU) para o desenvolvimento.

No sentido de perseguir esse fim, o Brasil inicia sua trajetória de exportação

de uma tecnologia simples e barata, desenvolvida internamente, que já causava

impacto no cenário brasileiro. Os bancos de leite humano começam a ser levados a

outros países, principalmente em desenvolvimento, no intuito de contribuir com a

diminuição da morbimortalidade infantil, sobretudo neonatal. Os Bancos de Leite

Humano (BLH) propiciam, nos hospitais onde são instalados, a redução do tempo de

internação de recém-nascidos prematuros e de baixo peso ao nascer, diminuindo os

gastos hospitalares decorrentes e substituindo as fórmulas lácteas utilizadas na

alimentação desses bebês. Isso sem contar com a qualidade da nutrição das crianças

atendidas, que repercutem ao longo de seu crescimento. Por todos esses benefícios,

vários países decidiram pela implantação do modelo brasileiro de banco de leite

humano e já apresentam resultados concretos.

51

Disponível no periódico Via ABC, publicação da Agência Brasileira de Cooperação, edição de maio

de 2007. 52

Vide Nota 11.

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O conhecimento no tema de BLH foi introduzido em países de diferentes

partes do mundo, que começaram a seguir a experiência brasileira para a solução dos

seus problemas referentes à morbimortalidade infantil. Essas iniciativas isoladas

acabaram por formar uma rede de intercâmbio, que, hoje, funciona com mais de

vinte países. Nesse contexto, é possível identificar a formação de redes

transnacionais e o desenvolvimento de comunidades epistêmicas como meios que

propiciaram não apenas o estabelecimento e a expansão da Rede de Bancos de Leite

Humano (rBLH), mas também sua consolidação. Países da América Latina, Caribe,

África e Europa estão ligados por um objetivo comum e por um ideal consistente,

ainda capaz de ser ampliado, na luta por uma questão mundial. O combate à

mortalidade infantil é uma meta que todos querem cumprir e, cada vez mais, nações

do Sul e do Norte se convencem que os bancos de leite humano são a forma mais

simples e eficaz de atingir esse fim.

REFERÊNCIAS

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América Latina, Caribe e África. Relatório. Brasília, maio 2010.

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continente africano. Relatório. Brasília, abril 2012.

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saúde”. RECIIS, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 25-35, mar. 2010.

ALMEIDA, J. A. G. Amamentação: um híbrido natureza-cultura. Rio de Janeiro:

FIOCRUZ; 1999.

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funcionamento, prevenção e controle de riscos. Brasília: ANVISA, 2008.

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C. (Org.). Política Externa Brasileira: As práticas das políticas e a política das

práticas. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2012.

_____.; _____. Ensaio crítico sobre a cooperação internacional em saúde. RECIIS,

Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 93-105, mar. 2010.

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<http://pt.wikipedia.org/wiki/Coopera%C3%A7%C3%A3o_Sul-Sul>. Acesso em:

08/12/2013.

CORRÊA, M. L. Prática Comentada da Cooperação Internacional – Entre a

hegemonia e a busca de autonomia. Brasília: s.n., 2010.

DICIONÁRIO Online de Português. Disponível em: <http://www.dicio.com.br/>.

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FUNDAÇÂO OSWALDO CRUZ – FIOCRUZ. Programa Nacional de Qualidade

em Bancos de Leite Humano. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em:

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MOTTA, P. et al. Novas ideias em administração. FGV Editora, 2006.

MULLER, M. The baby killer: a war on want investigation into the promotion and

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Disponível em: <http://www.objectivo2015.org/mortalidadeinfantil/index.shtml>.

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RIBAS, E. C. O papel dos atores transnacionais na definição de políticas

internacionais. S. d. Disponível em:

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RISSE-KAPPEN, T. Bringing transnational relations back in: non-state actors,

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ANEXO “A” – Carta de Brasília

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ANEXO “B” – Carta de Brasília 2010

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39

ANEXO “C” – Resultados da Cooperação em Bancos de Leite Humano em

Funcionamento

País BLH em funcionamento

Doadoras LH coletado (litros)

Recém-nascidos

beneficiados

Mulheres assistidas

Argentina 5 4.759 6.877,57 10.497 95.041

Cabo Verde 1 336 176,67 300 1.900

Colômbia 7 297 529,88 513 33.654

Costa Rica 1 476 127,80 181 7.949

Cuba 7 3.458 930,97 1.200 16.157

El Salvador 3 334 84,71 20 523

Equador 7 36.390 7.935,85 15.566 100.243

Espanha 1 101 3.380,63 1.201 461

Guatemala 8 24.524 4.010,71 9.310 221.195

Honduras 2 485 82,10 NI 23.497

México 5 982 1.909,52 1.029 7.017

Nicarágua 1 4 8,10 NI 2.048

Panamá* 1 - - - -

Paraguai 1 1.075 862,43 972 5.499

Peru 1 5.388 2.983,70 661 NI

Portugal 1 NI NI NI NI

República Dominicana

1 658 108,87 896 2.423

Uruguai 3 3.846 11.515,36 4.819 37.580

Venezuela 9 47.073 5.958 53.726 127.831

* O banco de leite humano do Panamá foi instalado em 2013.

** NI = Não Informado

*** África do Sul, Angola, Belize, Bolívia, Haiti e Moçambique ainda não possuem Bancos de Leite

Humano (BLH).

Os dados apresentados na tabela acima foram coletados entre 2009 e 2012.

Há de se considerar que nem todos os Bancos de Leite Humano (BLH) foram

inaugurados ao mesmo tempo.

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40

Em 2009, nem todos os BLH estavam em operação, e nem todos os projetos

já chegaram à fase de implantação do sistema de informação, o que possibilita

organizar e disponibilizar os dados53

.

53

Disponível em:

http://www.iberblh.org/index.php?option=com_content&view=article&id=83&Itemid=67. Acesso

em: 25/12/2013.