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1 Reconstrução da memória de Agostinho Neto em Portugal Ana T. Rocha (FLUC/mestranda) [email protected] 27 de setembro de 2011 Agostinho Neto é uma figura que dispensa apresentações; no entanto, curiosamente, não estou certa de que ao nomeá-lo estejamos todos a pensar no mesmo homem, tal é a diversidade de discursos, opiniões e artigos que divergem na visão sobre ele. Para aqueles que agora iniciam o seu percurso no estudo e investigação em literaturas africanas de língua portuguesa, foi deixado um legado de reconstrução da imagem deste poeta. As opiniões publicadas, até hoje, dizem respeito a um defender, por uns, e a um denegrir, por outros, a vida de Agostinho Neto, através de dados, muitas vezes, incertos, ambíguos e parciais. Além deste panorama que nos dificulta o conhecimento da verdadeira biografia e carácter daquele que foi o primeiro presidente de Angola, acrescentamos, ainda, a dificuldade de acesso à obra literária do mesmo. Espanha e Angola usufruíram recentemente de uma edição dos três livros do poeta - Sagrada Esperança, Renúncia Impossível e Amanhecer - compilados num único volume, que, por isso mesmo, mereceu a classificação de trilogia poética (2009/2010). Em Portugal, a última edição do livro Sagrada Esperança, pela Sá da Costa, data de 1987. Quase duas décadas e meia depois, interrogamo-nos acerca do motivo que leva a tal desmerecimento de um nome tão importante da poesia de língua portuguesa que permanece, ainda hoje, uma das figuras históricas mais valoradas pelo povo angolano. A razão é obscura: os motivos e as consequências da tentativa de golpe de Estado ocorrido a 27 de Maio de 1977, cujo objectivo era remover Agostinho Neto do poder, permanecem por aclarar. A memória deste episódio terrível da História angolana continua a denegrir o papel político de Neto. Consequentemente, o preconceito, a deturpação dos factos e mesmo falsos depoimentos prestados à imprensa por personalidades influentes na opinião pública, como o escritor angolano José Eduardo

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Reconstrução da memória de Agostinho Neto em Portugal

Ana T. Rocha

(FLUC/mestranda)

[email protected]

27 de setembro de 2011

Agostinho Neto é uma figura que dispensa apresentações; no entanto,

curiosamente, não estou certa de que ao nomeá-lo estejamos todos a pensar no mesmo

homem, tal é a diversidade de discursos, opiniões e artigos que divergem na visão sobre

ele.

Para aqueles que agora iniciam o seu percurso no estudo e investigação em

literaturas africanas de língua portuguesa, foi deixado um legado de reconstrução da

imagem deste poeta. As opiniões publicadas, até hoje, dizem respeito a um defender,

por uns, e a um denegrir, por outros, a vida de Agostinho Neto, através de dados, muitas

vezes, incertos, ambíguos e parciais.

Além deste panorama que nos dificulta o conhecimento da verdadeira biografia e

carácter daquele que foi o primeiro presidente de Angola, acrescentamos, ainda, a

dificuldade de acesso à obra literária do mesmo. Espanha e Angola usufruíram

recentemente de uma edição dos três livros do poeta - Sagrada Esperança, Renúncia

Impossível e Amanhecer - compilados num único volume, que, por isso mesmo,

mereceu a classificação de trilogia poética (2009/2010). Em Portugal, a última edição

do livro Sagrada Esperança, pela Sá da Costa, data de 1987. Quase duas décadas e

meia depois, interrogamo-nos acerca do motivo que leva a tal desmerecimento de um

nome tão importante da poesia de língua portuguesa que permanece, ainda hoje, uma

das figuras históricas mais valoradas pelo povo angolano.

A razão é obscura: os motivos e as consequências da tentativa de golpe de

Estado ocorrido a 27 de Maio de 1977, cujo objectivo era remover Agostinho Neto do

poder, permanecem por aclarar. A memória deste episódio terrível da História angolana

continua a denegrir o papel político de Neto. Consequentemente, o preconceito, a

deturpação dos factos e mesmo falsos depoimentos prestados à imprensa por

personalidades influentes na opinião pública, como o escritor angolano José Eduardo

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Agualusa, promovem uma intencionável incapacidade em conseguir separar do homem

político o poeta que foi Agostinho Neto. A discordância no que diz respeito a ideais

políticos e aos meios que os concretizam, prolonga-se, preconceituosamente, na má

apreciação e negligenciar dos versos.

Agostinho Neto é a figura histórica e o poeta por excelência de Angola. Assim o

sentem, pensam, dizem e escrevem os angolanos. Em Portugal, os intelectuais não

podem recusar este que é o motivo essencial que faz de um poeta um clássico da

literatura do seu país. Compreende-se que se goste muito de Ruy Duarte de Carvalho,

Paula Tavares, Ondjaki, etc., mas, Neto é já um poeta canónico. Entendemos o cânone

como instituído a partir do próprio país de origem. As campanhas anti-MPLA e anti-

Neto, promovidas pelos média portugueses e por certos historiadores e outros

intelectuais, têm por objectivo único o encobrimento do papel que foi o de libertador do

seu povo e fundador da pátria angolana. Os poemas dos seus três livros – muitos deles

escritos na prisão – que demonstram a preocupação com o seu povo, a luta pela

igualdade, a defesa dos direitos humanos e a elevação do povo e território africanos,

ressalvam o humanismo do homem que muitos, hoje, continuam obscurecendo, na

tentativa de fazer prevalecer na História a ideia deste poeta como um duro e impiedoso

ditador.

Naturalmente, estes conflitos dificultam o papel das instituições de ensino.

Leccionar Agostinho Neto pode ser comum em várias Universidades, mas nada indica

que haja resultados em teses de mestrado e doutoramento. A controvérsia gerada tende

para o silenciamento do escritor. Caberá, evidentemente, às universidades, a imposição

de uma atitude diferente. Estamos certos de que unidades curriculares relativas às

literaturas africanas de língua portuguesa são leccionadas no ensino superior. O

percurso que se iniciou com Manuel Ferreira, em 1975, na Faculdade de Letras da

Universidade de Lisboa, foi continuado por Salvato Trigo na Universidade do Porto, por

Mário António Fernandes de Oliveira na Universidade Nova de Lisboa, por Pires

Laranjeira na Universidade de Coimbra e, hoje, no século XXI, tem o seu espaço em

várias instituições, tais como as Universidades de Évora, do Minho, Católica de Braga,

Católica de Lisboa, da Beira Interior, entre outras. Todavia, todos estes passos são uma

insuficiência. O encurtamento dos anos de licenciatura e o pouco tempo de aulas não

permitem grandes ambições nos programas de ensino. Ensinar Agostinho Neto, neste

contexto, será sempre redutor, pois não permite espaço para complementos que, até pela

polémica instalada em torno da vida desta personalidade, farão dele, para muitos, de

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bom grado, um poeta evitável. Conhecer Agostinho Neto implica ultrapassar estes

limites. O que quer dizer que, para o estudante, somente se continuar o percurso

académico, para além do 1º Ciclo universitário, poderá ter o espaço e o tempo

necessários para se dedicar ao estudo do poeta. No entanto, é aquando da licenciatura

que o aluno deve ser instigado a fazê-lo. Uma atitude passiva face ao sabido preconceito

político e à dificuldade que o ensino da sua poesia, por isso, levanta, não pode continuar

a recusar o facto de que Neto ocupa um lugar de preponderância, um lugar central na

literatura angolana.

Perceberemos melhor esta falta se compararmos o ensino de Agostinho Neto, em

Portugal, com o ensino dos poetas Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire, em França.

Para os franceses, estas duas figuras da Négritude são tidas como grandes poetas de

língua francesa, sendo mesmo leccionados, com especial atenção, no ensino médio. São

poetas incluídos nos programas dos exames finais e, por isso mesmo, merecedores de

edições de pequenos livros ou manuais auxiliares, nos quais o estudante pode consultar

as suas biografias e obras. Em Portugal, para conhecermos Agostinho Neto, o contexto

escasso de algumas aulas numa licenciatura não basta. Tudo isto se relaciona com outras

questões, como a natural sobrevalorização de autores canónicos portugueses nas

escolhas dos programas para os manuais escolares, em Portugal, que negligenciam,

apagam e retiram outros tantos. Atitude legítima esta, em consequência da vontade de

fazer vingar a importância, o respeito e a memória de autores como Camões, Gil

Vicente, Eça, Pessoa ou Saramago, numa sociedade fascinada pelas tecnologias e pelo

materialismo.

Porém, não é minha pretensão expandir-me, nesta comunicação, acerca da

certeza de que os programas de ensino têm espaço para mais autores e de que é errado

sobrecarregar o tempo de aulas com análises meticulosas de versos dos Lusíadas, ao

invés de promover nos alunos a consciência de que a língua portuguesa foi utilizada por

nomes importantes de escritores além fronteiras. As tentativas feitas neste sentido

falham, devido às escolhas, fundamentadas no facilitismo, dos autores que integram os

programas escolares e de promoção da leitura.

Todavia, interessa-me, aqui, antes, mostrar a diferença de trato que França e

Portugal atribuem aos poetas negros que escreveram nas duas línguas europeias e agora

também assumidamente africanas.

É sabido que o ensino secundário, em França, é mais exigente e, sobretudo, mais

abrangente, do que o ensino da literatura em Portugal. Contudo, não será tão fácil

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perceber e aceitar que universidades que apresentam e promovem cursos de literaturas

de língua portuguesa, não consigam fornecer os dados para que os alunos conheçam tão

bem o maior poeta angolano, quanto os alunos do ensino médio francês conhecem

Césaire e Senghor.

O carinho com que estes autores de língua francesa são acolhidos, em França,

contrasta drasticamente com a repulsa que os portugueses mantêm, ainda hoje, no que

diz respeito a Agostinho Neto. De tal forma assim o é, que, ao apercebermo-nos da

mesquinhez de atitudes anti-Neto e anti-MPLA, além da inquietação, não podemos

deixar de achá-las, muitas vezes, risíveis. Fica-nos a incerteza sobre certas intenções.

Serão ignorância ou, por outro lado, pura vontade de deterioração da imagem de

Agostinho Neto, com o fim, último, de apagar da memória colectiva a vida deste, que

foi, quase exclusivamente, dedicada à luta de libertação de Angola e à estabilidade do

país, já quando Presidente do mesmo?

Tal como o consentimento, a más horas, da existência de uma literatura

angolana, virá também, lamentavelmente tarde, o reconhecimento do mérito de

Agostinho Neto, que será, então, falado, ensinado e publicado como figura histórica

compreendida, finalmente, no seu contexto e como poeta que tem, no panorama da

literatura angolana, o mesmo lugar de um Álvaro de Campos, em Portugal, ou, de um

Carlos Drummond de Andrade, no Brasil.

Creio já ter passado tempo suficiente para que muitos alcancem o

distanciamento necessário para a leitura e valoração da obra netiana, sem o preconceito,

a mágoa ou a incompreensão da reacção de Neto, na altura presidente, à tentativa de

golpe de Estado promovida pelo fraccionista Nito Alves.

Não quero, aqui, tomar qualquer postura defensiva em relação aos meios

utilizados por Agostinho Neto na condenação dos nitistas. Pretendo, apenas, frisar que

este episódio sempre foi e continua a ser abusivamente utilizado como pretexto de

opositores vários, incluindo simpatizantes da UNITA e também membros da direita e da

esquerda política portuguesa, para obscurecer todo o percurso de Neto na luta pela

libertação do seu povo. Sabemos hoje, através do livro de Irene Neto, sua filha, quão o

primeiro presidente de Angola negligenciou a própria família e a sua vida pessoal em

prol da missão independentista que o tornou, para os angolanos, então oprimidos e

colonizados, numa espécie de guia político, militar, espiritual e simbólico. Uso o termo

simbólico no sentido de Pierre Bourdieu, que Leonel Cosme refere, isto é, era através

das mensagens, da presença e da luta de Neto que o povo angolano projectava a

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construção de um país social, construído a partir da valorização e esforço do povo

colonizado. Quando digo espiritual refiro-me, claro, aos apelos, em poemas e não só,

que Agostinho Neto fez à coragem, ao incentivo, à não desistência, à resistência face à

cultura de colonização e assimilação, promovendo, assim, no próprio povo, uma

consciência de identidade nacional, de angolanidade. Estou certa de que é aqui que

Neto se distingue de outros grandes autores e poetas angolanos, como Viriato da Cruz e

António Jacinto, e se desloca para o lugar central daquele a que podemos chamar o

cânone da literatura angolana e, mesmo, da literatura de língua portuguesa. A poesia de

Agostinho Neto permite-nos apreender a força e a revolta que impulsionam o

movimento de um povo, ou até mesmo do negro, que, há quatro séculos ostracizado,

finca o pé contra chicotes, miséria e fome na luta pela liberdade e independência que só

um líder forte e respeitado poderia travar. Por tudo isto, a obra poética de Neto ganha

um valor de documento histórico - como já o fez salientar, por diversas vezes, Pires

Laranjeira - ao encontrarmos nos seus poemas, como o “A renúncia impossível – da

negação à afirmação”, a denúncia lúcida e humanista das acções bárbaras e desumanas

levadas a cabo pela colonização branca em toda a África. Cometo a ousadia de afirmar,

aqui, que, para Agostinho Neto ser considerado o maior poeta angolano e um dos

maiores poetas de língua portuguesa, bastaria ter escrito, apenas, esse longo e virulento

poema que se aproxima do manifesto cultivado no início do século XX português e que,

em nada, deve aos autores de então.

A tentativa de Golpe de Estado de 27 de Maio de 1977 começou com uma

violência que atingiu mortalmente, pelo menos, sete figuras da mais alta hierarquia do

Estado, entre as quais Saidy Mingas (Ministro das Finanças), Eurico Gonçalves

(Membro do Estado Maior General) e Eugénio Veríssimo da Costa (Chefe de segurança

das FAPLA), dois deles membros do Comité Central do MPLA. Estávamos, portanto,

num cenário de sobrevivência. Hoje, Agostinho Neto é tido, por muitos, como ditador

sangrento, ao passo que os golpistas são descritos, por historiadores como Dalila

Cabrita Mateus, como vítimas, como aqueles que organizaram uma revolução pacífica,

para, exactamente na página seguinte, do mesmo livro, a mesma historiadora, se

contradizer em relação ao suposto pacifismo dessa mesma suposta revolução nitista.

Difícil é compreender como tal imagem de Neto trespassa todos estes anos,

quando é certo que os que se opunham a ele, quando não era por «doença infantil do

comunismo» - como é o caso de Nito Alves e de Sita Valles -, ou por quererem

enveredar por uma linha diferente – como é o caso de Mário Pinto de Andrade -, era,

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antes, por Neto defender uma sociedade em que brancos e negros pudessem coexistir,

enquanto os opositores, por sua vez, procuravam um país a partir de posições

insustentáveis, algumas delas de carácter racista. A luta anti-racista e anti-tribalista foi

sempre uma dura batalha para Neto, não só por ser casado com uma trasmontana e ter

filhos mestiços (o que gerava desconfiança dentro do próprio movimento), mas pela

consciência de que a sociedade angolana tinha herdado influências do país colonizador

que deveria aproveitar, tais como a língua portuguesa, que Neto sempre utilizou nos

seus discursos, nunca tendo sentido a necessidade de recorrer ao uso de línguas

regionais para cativar a confiança do povo, como fez, por exemplo, Savimbi. Neto sabia

que, nesse diálogo com os brancos e, particularmente, com Portugal, Angola poderia

tirar vantagens para o seu crescimento e desenvolvimento, até a nível tecnológico.

Deste modo, torna-se incompreensível o espaço que a imprensa portuguesa

fornece, desde então, a artigos que tentam vilipendiar o MPLA, contribuindo para a

culpabilização do partido e de Neto em relação ao destino de alguns camaradas, tais

como o caso de Felisberto Lemos, do qual apenas dizem que trabalhava na Lello de

Luanda e que morreu miseravelmente em Coimbra, sem que ninguém perceba que

miséria foi essa, pois aposentou-se como empregado de livrarias nessa cidade. Ou, por

exemplo, ainda, a maneira subtil como tentam insinuar que supostas divergências

internas do partido, ainda aquando da presença de Agostinho Neto no poder, estarão na

origem do suicídio de Carlos «Dilolwa», 18 anos depois. Tal é essa a intenção

manipuladora dos que, descurando os limites da semântica, escrevem e publicam textos

mal escritos que se tornam tragicamente cómicos, como aquele que continha a seguinte

frase noticiando esse suicídio: “Carregado de frustrações, sempre recusou a pompa e a

glória, mesmo no funeral”.

José Eduardo Agualusa insiste em dar entrevistas à imprensa nas quais apenas se

refere a Neto para o classificar de poeta medíocre ou para deturpar discursos do ex-

presidente, tentando fazê-lo passar por pessoa ignorante e incapaz. Deturpações essas

que, podendo apenas evidenciar a incapacidade interpretativa de Agualusa, Leonel

Cosme viria a aclarar no seu livro. A maneira errada ou perversa como Agualusa

interpreta os discursos de Agostinho Neto, atribuindo-lhes sentidos que estes não

permitem, são suficientes para retirar, ao escritor, a importância de palavras suas, ainda

no jornal Angolense deste mês de Setembro, que definem os versos de Agostinho Neto

como frágeis, chegando a afirmar, mesmo, que Neto tão-pouco foi um poeta.

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O gosto pelo mediatismo e o imediatismo promovido pelos média tem de ser

combatido através de mais edições da obra poética de Neto, em Portugal, passando,

também, por mais incentivo aos estudantes para lerem, conhecerem e trabalharem a sua

obra, com vista à publicação de livros a juntar aos trabalhos escritos, até hoje, que,

sendo importantes, se mostram insuficientes.

Comparando, novamente, a situação do estudo de Agostinho Neto, em Portugal,

com o estudo de Césaire e Senghor, em França, apercebemo-nos que apenas existem

três livros relevantes dedicados ao angolano: A Voz Igual, organizado por Salvato Trigo

(1989), Agostinho Neto e o seu tempo, de Leonel Cosme (2004) e Agostinho Neto, uma

vida sem tréguas, 1922/ 1979, organizado por Acácio Barradas (2005). Quanto a Aimé

Césaire, esse e a sua obra foram já merecedores, pelo menos, numa pesquisa rápida, de

21 livros publicados em francês, oito obras colectivas e três filmes. No que diz respeito

a Senghor, são incontáveis as edições que dele e sobre ele se publicam em França.

Em 2011, temos já a distância suficiente para compreendermos as atitudes anti-

Neto e anti-MPLA e, por isso mesmo, reavaliá-las. Os depoimentos que menosprezam

Neto, como têm sido os de Agualusa, servem, hoje, apenas, para que todos percebam

que ele é o poeta maior para os angolanos: em resposta a estes ataques de Agualusa, o

jornal Angolense publicou, este mês, depoimentos de Pires Laranjeira, Jomo Fortunato,

Barros Neto, Celso Malavoloneke e João Maimona, que, em quatro páginas do

periódico, teceram duras críticas, salientando, uns, o «pedantismo ou arrogância» de

Agualusa e, outros, a sua negligência interpretativa, ressalvando todos, sempre, a

imagem e dignidade do poeta. O jogo partiu então do próprio jornal, que procurou

organizar um ringue de combate no qual Agualusa, certamente, perderia, ou não fosse o

facto de este nunca argumentar ou explicar cientificamente as suas opiniões literárias.

Episódios como este passam ao lado da sociedade portuguesa e mesmo da

Universidade, mantendo Agualusa no estatuto de escritor e intelectual que contribui

para formar a opinião pública e constituir lóbis cuja acção se reflecte, depois, na escolha

de autores a integrar os programas de ensino médio e o Plano Nacional de Leitura, onde

há um peso excessivo de escritores, justamente, como Ondjaki, Agualusa e Mia Couto.

Em Angola, o cenário é outro. O valor de Agostinho Neto é tal que, como escreve Salas

Neto, no mesmo jornal Angolense, «blasfemar» contra Agostinho Neto é «blasfemar»

contra um povo. Talvez, por isso, Salas Neto considere Agualusa mais como um «luso-

brasileiro» do que como um angolano, pois, ao atacar Agostinho Neto, Agualusa

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demonstra a distância a que se encontra do povo, fazendo com que os cidadãos

angolanos se sintam, nas palavras de Salas Neto, «compatriotas de terceira».

Em suma, 32 anos após a sua morte, Agostinho Neto ainda não se conseguiu ver

livre de preconceitos contra os quais lutou. O nome de Neto não pode ser mencionado

em plano secundário nas literaturas africanas de língua portuguesa. É o tempo de

atribuir a Agostinho Neto o lugar que ele merece nos circuitos do ensino e da leitura em

Portugal.

Referências

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Angolê.

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11. FERREIRA, Manuel (org.), (1980), África, literatura – arte e cultura, nº 7,

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12. GUIBERT, Armand (org), (1969), Léopold Sédar Senghor, Poètes

d’aujourd’hui, Paris, Seghers.

13. LARANJEIRA, Pires (2009), «O valor da poesia de Agostinho Neto para as

novas gerações», comunicação lida no Colóquio internacional sobre a vida e

obra do Dr. António Agostinho Neto, Luanda, Centro de Convenções de

Talatona.

14. LARANJEIRA, Pires (2011), «Agostinho Neto: novas edições», Jornal de

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15. LARANJEIRA, Pires e XAVIER, Lola Geraldes (org.), (2009), Santa

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língua portuguesa, Universidade da Califórnia, Santa Barbara.

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