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  ecensão de Presenças reais as artes do sentido STEINER, George. Presenças reais: as artes do sentido. Tradução e posfácio de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Presença, 1993, 219 p. Gerge Steiner é professor de literatura nas Universidades de Cambridge e Genebra. Autor de inúmeras obras incluindo três romances escreve também para publicações como New Yorker e Times Literary Supplement e é um dos pri nci pa s críticos literários da atualidade. No ensaio Presenças reais: s artes do sentido tradução portuguesa do original em inglês , o eclético autor exercita o mister de filósofo da linguagem em um texto entrelaçado de referências culturais. O livro de Steiner tem três capítulos: I) Uma cidade secundária; lI) O pacto quebrado; (IH) Presenças. Os capítulos são su bdivididos em seções acompanhando de forma encadeada as hipóteses do autor. No final da obra um posfácio do tradutor. Apesar de a tese central ser desenvolvida ao longo de todo o livro Steiner preocupa-se em enunciá-Ia de forma clara logo nas linhas iniciais do primeiro capítulo. O ensaio sustenta a hipótese: STEINER, George. Real Presences: s there nything in what you say? London: Faber and Faber, 1989. I

Recensão de Presenças reais: as artes do sentido

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Gerge Steiner é professor de literatura nas Universidades de Cambridge e Genebra. Autor de inúmeras obras, incluindo três romances, escreve também para publicações como New Yorker e Times Literary Supplement, e é um dos pri nci pa is críticos literários da atualidade. No ensaio Presenças reais: As artes do sentido, tradução portuguesa do original em inglês', o eclético autor exercita o mister de filósofo da linguagem, em um texto entrelaçado de referências culturais. O livro de Steiner tem três capítulos: (I) Uma cidade secundária; (lI) O pacto quebrado; (IH) Presenças. Os capítulos são su bdivididos em seções, acompanhando de forma encadeada as hipóteses do autor. No final da obra há um posfácio do tradutor.

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  • Recenso de Presenas reais: as artes do sentido

    STEINER, George. Presenas reais: as artes do sentido. Traduo e posfcio de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Presena, 1993, 219 p.

    Gerge Steiner professor de literatura nas Universidades de Cambridge e Genebra. Autor de inmeras obras, incluindo trs romances, escreve tambm para publicaes como New Yorker e Times Literary Supplement, e um dos pri nci pa is crticos literrios da atualidade. No ensaio Presenas reais: As artes do sentido, traduo portuguesa do original em ingls', o ecltico autor exercita o mister de filsofo da linguagem, em um texto entrelaado de referncias culturais. O livro de Steiner tem trs captulos: (I) Uma cidade secundria; (lI) O pacto quebrado; (IH) Presenas. Os captulos so su bdivididos em sees, acompanhando de forma encadeada as hipteses do autor. No final da obra h um posfcio do tradutor.

    Apesar de a tese central ser desenvolvida ao longo de todo o livro, Steiner preocupa-se em enunci-Ia de forma clara logo nas linhas iniciais do primeiro captulo. O ensaio sustenta a hiptese:

    STEINER, George. Real Presences: Is there anything in what you say? London: Faber and Faber, 1989.

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  • (...] que qualquer compreenso coerente do que a linguagem e do modo como funciona, que qualquer exame coerente da capacidade que a linguagem humana possui de comunicar sentido e sentimento assenta, em ltima anlise, na suposio da presena de Deus. (P.IS]

    Fundamental no exame dessa conjetura que ela traz a noo de uma "presena real" no encontro com o "outro": no texto, na obra de arte e na forma musical. Uma aposta, como a que foi feita, segundo o autor, por Descartes e Kant em uma "substanciao" no mbito da linguagem e da forma, "uma aposta na transcendncia" (p. 16).

    A seguir, Steiner observa que se deve reaprender sobre o "enigma da criao [artstica] tal como se nos depara no poema, na pintura, na afirmao musical" (p. 16); para essa reflexo desenvolve a idia de lima "comunidade imaginria" em que prevalece o "imediato em relao aos textos, obras de arte e composies musicais" (p. 18). Uma sociedade com o maior desprendimento possvel de "meta-textos", ou seja,"textos sobre textos (ou quadros, Oll msica)" (p.18). Entretanto, a interpretao "filolgica" (colocada em destaque no ensaio de Steiner), que tem o objetivo de "analisar e situar a obra no contexto histrico" est autorizada nessa sociedade fictcia; mesmo enfrentando o desafio apontado pelo autor, de ser tambm "valorativa e crtica" em algum grau, como toda explicao (p. 17).

    Prosseguindo em seu racioCnio, Steiner quer esclarecer sua viso de hermenutica "como actualizao de uma inteleco responsvel, de uma apreenso activa" e que podem ser extensivas "s leituras de quadros, escultu ras ou sonatas" (p. 18). O autor cita como exemplos dessa interpretao que "passou a ser vivida" (p. 22): um ator ao interpretar uma pea teatral, um bailarino executando uma coreografia Oll um violinista ao tocar uma composio musicaI. Essas interpretaes so compreenses "em aco", ao mesmo tempo analticas e crticas, so tradues imediatas, que colocadas ao lado de outras referentes mesma obra introduzem na "vida da com preenso" (p. 19). importante observar o "aspecto moral" implcito nessa argumentao, o

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de ForJ, v. 7, n. I, p.169-180

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  • autor faz uso do conceito U responsabilidade" [answerablity no original, conforme informa o tradutor] para designar a atitude diante do escrito, quadro ou pea de msica (p. 19), que envolve um aspecto trplice: concomitantemente umoral, espiritual e psicolgico"; os modelos individuais devem ser os Uintrpretes" na busca de usentido e de valor artsticos" (p. 20).

    Logo adiante, Steiner desenvolve a idia de que toda a forma de arte, por um lado, uma reao ou ucontraafirmao" crtica, por umeios estticos", ao mundo que o artista percebe; por outro lado, essas reaes vo tambm significar uum juzo de valor da herana e do contexto a que pertencem" (p. 22). E aqui, o autor chama a ateno para a inteligncia crtica do artista no que diz respeito s suas obras e tambm em relao a outras criaes precedentes; uma crtica que emana do Uinterior da arte", com uma uau_ toridade penetrante", dificilmente igualada pela crtica que vem de fora, da uobra do no-criador": Uo autor de recenses, o crtico, o universitrio" (p. 22). Um exemplo dessa crtica, dentre vrias apresentadas pelo ensasta, sobre o Ulisses de ]oyce, que seria uuma experincia crtica da Odissia" de Homero; uma uleitura digna desse nome",uresponsvel" [answerable] diante da obra original, porque coloca u em alto risco a dimenso e o destino da sua prpria obra" (p. 23-24).

    Outra forma de leitura uresponsvel" a traduo, ucrtica do modo mais criador" e Steiner exemplifica citando a traduo da clogas de Virglio por Valry, que ele considera uuma criao crtica" (p. 25). Particularmente no caso das crticas de arte e nas crticas musicais, Udignas de ateno", essa leitura uresponsvel" esbarra com a uessncia do seu objetou. A linguagem cambaleia ao falar da ufenomenologia da pintura, da escultura ou da organizao musicai", preponderando um upalavreado instrudo e o pathos de um absurdo fundamental (ontolgico)" (p. 25-26).

    A cidade idealizada pelo autor, para desenvolver seu racioCnio, se mostra impossvel. No se pode preceituar u em benefcio do imediato" no campo da esttica e nem mesmo as mais elementares uformas de recepo literria ou musicalu podem abrir mo da interveno ucrtica ou

    Numerr. revista de estudos e pesquisa ela religio, Juiz de Fora, v. 7, n. I, p. 169-180

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  • didtica". Ao lado de tudo isso, Steiner indica outros argumentos que podem refutar sua "fico censria": a existncia de estudos, exegeses, crticas literrias, musicais e artsticas, e inclusive recenses, que "podem legitimamente reivindicar a dignidade de criaes", mas ressalva que a maior parte desses trabalhos crticos esquecida rapidamente (p. 30-1). O objetivo da "fantasia de abstinncia" (p. 32) "dos discursos segundos sobre a literatura e as artes" (p. 30), criada pelo ensasta na sua coletividade fantstica, destacar o que caracteriza o defrontar-se com a "criao esttica" na atualidade; sem esquecer o questionamento sobre o que seria "0 estatuto ontolgico das artes" "na cidade de hoje" (p. 32). Nesse sentido, Steiner aponta para uma multiplicao, no mundo ocidental, "do discu rso segu ndo" em detrimento do "imediato" e menciona tambm o crescimento de uma "produo esttica" preponderantemente acadmica, executada pela e para a academia. O autor vai assumir que o questionamento sobre a "origem fundamental do triunfo do que segundo" est no mago da sua proposio neste ensaio (p. 44).

    A partir disso, o escritor desloca a ateno da "presena real" ou"ausncia real dessa presena", no encontro sem intermedirio com a "experincia esttica responsvel", para uma procura pela "imunidade do indireto": na crtica que consegue "domesticar, secularizar o mistrio e as exigncias da criao" (p. 44). Assim Steiner vai colocar em questo a inevitabilidade da propagao do discurso secundrio, do "comentrio sem fim", onde o "texto primeiro" , por vezes, unicamente uma origem remota. Alm disso, o autor vai levantar outra questo que aparece pelo menos trs vezes ao longo da histria ocidental: a legitimidade de se pensar uma "imagem do primordial", ou seja, uma busca nos textos pela origem das "nascentes vivas do ser primeiro" (p. 45). No que diz respeito ltima questo, interessante mencionar os trs "modos de experincia interpretativa" em que se discutem profundamente"as relaes entre o original e o derivado" (p. 47).

    A primeira referncia o judasmo, j que a nota crtica sem fim e o "comentrio do comentrio" so noes indispensveis na hermenutica do Talmude. Steiner identifica o "infinito hermenutico" com a "sobrevivncia no exlio";"a

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de FOfa, Y. 7, n. I, p.169-IBO

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  • leitura sem fim" o pice da identificao do povo judeu (p. 45-46). Na hermenutica judaica o objetivo alcanar os sentidos internos, traduzidos em normas, nas "mltiplas antecipaes da mensagem sagrada" do texto examinado, em que palavras ou letras adquirem uma "presena tangvel" numa exegese em constante renovao, marcada pela "responsabilidade que impe a aco". Do mesmo modo, a interpretao na leitura do cabalista fundamental, porm, contrastando com a anterior, ato de "pura receptividade", de assentimento ilimitado e silencioso; ambas interpretaes trazem a noo de "encontro com a presena" (p. 47).

    Uma segunda referncia a escolstica medieval, que caracterizada pelo "apetite enciclopdico do esprito medieval" que aspira a "summa summarum do mundo escrito", com os devidos comentrios e notas que no deixam de provocar interpretaes sem fim. Nessas possibilidades de novas exegeses estaria o risco, percebido pelos representantes do poder da Igreja catlica medieval, de o "texto revelado" ceder ao peso de comentrios infindveis. Aqui est a diferena entre os textos catlicos e judaicos. O texto catlico est inserido em um tempo determinado: "no advento e no ministrio de Cristo"; da a tentativa de estabelecer um "termo final de sentido" para no cair na heresia, ou seja, uma recusa de um ponto final na interpretao que pode dar origem a cisma. J no texto judaico no existe o tempo especfico e nem o problema com o histrico, a Tor permanece em "sincronia indeterminada em relao a qualquer vida individuaI ou coletiva" (p. 48-49).

    Por fim, a terceira referncia, "resolutamente secular", apesar de receber certa influncia da "exegese talmdica", a psicanlise com sua "lgica e motor da associao livre" originando correntes sem fim, onde cada elo pode ser o elo inicial de uma nova corrente, com todos os elos enredados reciprocamente. Steiner argumenta, fazendo eco crtica de Wittgenstein psicanlise, que o problema do mtodo psicanaltico est na arbitrariedade da interrupo do tratamento pelo analista. Sempre se teria "camadas mais profundas a escavar", o que caracterizaria a no preocupao de Freud com a "natureza problemtica da linguagem em si

    Numen: revista de estudos e pesqui5J dJ religio, Juiz de FOfa, v. 7, n. I, p. 169-180

  • prpria". J que a linguagem "ao mesmo tempo a matriaprima e o nico instrumento de qualquer anlise freudiana" (p. 49-51). Ao final do captulo I, a partir dessa ltima referncia, o autor vai falar de um "eclipse das humanidades", "na cultura e na sociedade de hoje", onde as interpretaes no vivenciam um sentido frente "criao autntica", atingindo"um grau zero de confiana" que levaria ao"eclipse da humanidade". Ento, indispensvel uma aproximao s"exigncias imediatas do mistrio" na criao artstica e um retorno, ou "re-conhecimento", para alm "das imposies da imanncia", ou seja, experimentando a "vida do sentido no texto escrito, na msica, na arte" (p. 52-53).

    No captulo 11, Steiner vai explorar os "limites da linguagem" concernentes a determinadas "ordens de sentido", com o objetivo de alcanar uma compreenso nova do "encontro com a experincia imediata" e da "transcendncia da dimenso esttica", atravs de "uma reflexo sobre o Logos e sobre a palavra" (p. 53). Nesse sentido, Steiner vai criticar o posicionamento de Wittgenstein de "que os limites da linguagem so os [limites] does) nosso(s) mundo(s)", considerando que este filsofo utiliza "tautologicamente a palavra limites". A linguagem, para o ensasta, no tem qualquer linha de demarcao, pode alcanar infindveis "suposies visadas e sonhadas", pode enunciar "qualquer verdade e qualquer falsidade"; cria a mensagem do futuro e tambm revela o passado de onde originria, questiona "at mesmo a morte" (p. 58-60).

    Por outro lado, esse ilimitado potencial dos discu rsos tem um aspecto negativo: pode desembocar numa lgica niilista. E o exemplo do autor a questo da existncia de Deus, porque todas as afirmaes e provas da existncia ou no-existncia de Deus so linguagem e, portanto, passveis de contradio. Por isso a proibio judaica de enunciar o nome, ou o"Nome do Nome", de Deus, pois, uma vez declarado, teria entrado no ilimitado e incerto mundo dos jogos lingsticos: desconstrutivistas, retricos ou metafricos (p. 61). Aqui est um ponto interessante da argumentao do ensasta. A capacidade de compreenso e julgamento, o caminho da hermenutica e da crtica esto "enredados na

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 7, n. I, p. 169-180

  • questo metafsica e teolgica ou anti-teolgica" dessa cadeia sem fim dos signos, que tambm pode ser chamada de transcendente,ou ainda sem sentido, pois igualmente o"caos livre e ilim itado" (p. 62).

    Steiner argumenta, em seguida, sobre os modelos de interpretao e avaliao da literatura ou "o corpus de expresso interpretativa e crtica". O discurso segundo tem uma retrica prpria, desenvolvida ao longo de sua histria, do mesmo modo que a literatura. Essas construes, feitas por "escritores, filsofos, psiclogos, historiadores da cultura e da sensibilidade", so fundadas em hipteses prprias ao campo da ao da linguagem e especulam sobre as "origens internas, qualidades e funes do potico", mas no superam "o seu prprio meio de expresso". Outra posio defend ida pelo autor que esses modelos interpretativos e avaliativos no podem pleitear uma universalidade abstrata ou serem consideradas teorias cientficas; somente estas so portadoras "de um poder de previso". Uma conseqncia disso que nenhuma "anlise interpretativo-crtica" no campo da literatura e das artes superada ou anulada "por uma construo posterior", diferentemente das teorias cientficas: um dos exemplos do autor a superao da teoria de Ptolomeu pela de Coprnico (p. 70-76). importante ainda atentar, segundo o ensasta, que esses modelos so na maior parte das vezes escolhas e exposies, que manifestam uma preferncia ou controvrsia do comentador, diante de um "corpus literrio ou artstico"(p. 79). No conseguem preencher a la-cuna "entre a anlise lingstica e a teoria lingstica" enunciadas com preciso de um lado, com o "processo de compreenso" do outro lado; no tm xito ao tentar "formalizar o sentido" ou ultrapassar a fronteira do "fontico,do lexical e do gramatical", ao entrar nos domnios do "semntico e do esttico" (p. 80). As frases e as palavras significam "mais" na incomensurabilidade da significao, com um"potencial de inovao inesgotvel" (p. 81). Mas o discurso "hermenutico-crtico", explicativo e valorativo, que assume o papel secund rio, su bjetivo e intuitivo, que no se curva ao desejo de assumir um "estatuto terico", necessrio e compensador (p. 83).

    De especial interesse na tese de Steiner o conceito de

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Foraj Y. 7, n. I, p. 169-[80

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  • Deus como "acto de linguagem" e "absoluto gramatical" em toda a extenso da "experincia ocidental e tico-hebraica". Na linguagem existe uma coexistncia imprescindvel "com a presena e a alteridade do ser e do mundo", e aqui central "o conceito e o alcance metafrico do Logos". Alm disso, o autor fala de um "teor de confiana" subentendido, difcil de formalizar, que afirma o substrato da linguagem e do discurso; presente no mago da prpria lgica, j que esta tem a sua origem e estrutura no "Logos" (p. 86). Essa confiana na correspondncia entre o mundo e a palavra na histria ocidental, uma "histria do sentido", tem dois momentos principais. O primeiro o "do Logos", que se inicia com os pr-socrticos e vai at o final do sculo XIX, o momento "do dizer do ser". Interessante nesse momento histrico o ceticismo que coloca em questo a significao semntica, mas aceita "o pacto com a linguagem". O segundo momento, "depois da palavra", que abrange as ltimas trs dcadas do sculo XIX e as trs primeiras do sculo XX, caracterizado pela ruptura da harmonia entre linguagem e mundo, uma poca identificada parcialmente com o chavo "da morte de Deus" (p. 86-90).

    As questes levantadas no ensaio, de valorizao (crtica, julgamento esttico), interpretao (hermenutica) e responsabilidade diante do texto, derivam diretamente da ruptura supracitada. E a pergunta mais geral de Steiner pelo "estatuto e o sentido do sentido, da forma de comunicao, no tempo do ps-Palavra" (p. 90). Assim, na parte final do segundo captulo, o ensasta vai fazer referncia s "rejeies teolgicas e metafsicas", presentes na empresa desconstrutiva em geral, mas com conscincia das mltiplas correntes envolvidas: "marxista, freudiana, heideggeriana, do culto do absurdo". Os desconstrutivistas e ps-estruturalistas trazem baila a ilegitimidade do inteligvel", assumem uma "ausncia (do ser in absentia do Logos)", proposies contrrias "autoridade do potico" (p. 108). Negam uma "face de Deus" para a qual apontaria o "marcador semntico", rompendo assim com o "postulado do sagrado", na escurido da opo niilista (p. 121-122). Cabe uma ltima pergunta quanto a este captulo: seria possvel uma herme-

    Numen: revistJ de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 7, n. I, p. 169-180

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  • nutica, uma atribuio de valores crticos e uma busca de sentido em um texto, ou seja, obter uma resposta inteligvel, mesmo um ureflexo" provisrio, sem estar subentendido um upostulado de transcendncia"? (p. 122)

    No terceiro e ltimo captulo, Steiner examina a questo tica no encontro com a da obra de arte (p. 134). A linguagem e a arte s existem porque existe a upresena do outro", o Uporqu do outro"; e mesmo criaes artsticas no partilhadas com outrem pelo autor so actos de coU municao e experincias de confronto" (p. 127). O encontro com o outro assimilao, simultaneamente medo e percepo. Entre estes existe um U continuum", e uma U modulao" que esto una origem da poesia e das artes" (p. 129). Nesse sentido, a esttica, discurso crtico e hermenutico, uma tentativa de esclarecer as contradies aparentes e as sombras desse encontro, tambm da usua mltipla felicidade" (p.128). Aqui est um ponto interessante a mencionar: uma grande poro das artes tem em mira uencantar", mas uma outra grande poro quer evidenciar a Uestranheza", quer ensinar u com o enigma inviolado da alteridade das coisas e presenas vivas" (p. 129). Na viso do ensasta, esse encontro com o texto, e com a obra de arte em geral, uen_ quanto instrumento de comunicao" admite uma moral, assim como qualquer interpretao de uma mensagem destinada ao outro envolve uma tica (p. 131). Todas as obras tratam do bem e do mal, nenhum uescritor, compositor ou pintor srio" tem dvida disso (p. 133).

    Steiner discute, em seguida, o ato de recepo. Os maIlLlais orientais de boas maneiras e os livros de etiqueta do Renascimento so exemplos do autor. Detalham as variaes da palavra e do gesto para uma upercepo recproca", em vrios graus e intensidades, nas diversas classes sociais, geraes e sexos; esses atos so ucerimnias" de onde partem eixos que alcanam a metafsica e a teologia. Assim, outros exemplos de recepo encontram-se no tradutor, que quando exerce seu ofcio com maestria o anfitrio por excelncia, e no filsofo, que se ocupa de sistematizar o encontro, como Levinas e Buber citados pelo autor, que sustentam uuma teoria do sentido" determinada no encontro ufrente-a-

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religiJo, Juiz de Fora, v. 7, n. I, p. 169-180

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  • ce que um ser humano ao se deparar com a "impenetrabilidade aberta" do rosto de outro ser humano, que reflete estranheza, confirma ao mesmo tempo seu prprio rosto. Particularmente na recepo da literatura, so concernentes essas percepes e formas rituais do encontro que se verificam na prtica social, na transposio lingstica e na discusso filosfica e religiosa. A "vida das significaes estticas da obra" tem como endereo o outro, exige "eco e presena" e depende da aptido de dar as "boas-vindas" ou de recusar, responder ou ignorar (p. 134-135].

    A par disso, Steiner argumenta sobre uma percepo moral clara em conexo com o exerccio de compreenso do texto, obra de arte ou composio musical. O autor enuncia uma "tica do senso comum", na qual os conceitos de "cortesia" e de "liberdade" vo estar em destaque, j que tornam possvel o reconhecimento do outro. No encontro das liberdades que acontece na "experincia esttica autntica" a "cortesia" ou "tacto do corao" essencial. o encontro entre a "liberdade" do ser humano,de acolher ou recusar, com a "liberdade" da promessa de sentido de um texto, de um quadro ou sinfonia. Essa ltima, uma possibilidade de ausncia ou presena, de existir ou no existir, de ser ou "no ser" no mbito das formas artsticas. Nesse sentido, o texto primrio " um fenmeno de liberdade" que tem uma prioridade temporal e ontolgica sobre o que segundo; transio da autonomia dependncia. O crtico .Iivre em sua resposta obra, mas uma "liberdade" rigorosamente "secundria" (p.136-142].

    Por outro lado, o exerccio de recepcionar e aprender uma obra literria, artstica ou musical, fundamenta-se em um ato de confiana. uma "aposta no acolhimento", uma busca pela escuta mais apropriada, levada a cabo pela filologia em trs nveis. O primeiro desses nveis a"cortesia lexical", caracterizado pela freqente pesquisa nos grandes dicionrios, genricos ou especficos. A nfase nesse nvel na capacidade de "ouvir" os contnuos desdobramentos e transformaes, ao longo da histria, no interior das palavras e nas estruturas textuais, dentre as quais "organicamente" as palavras tm pertinncia. Assim, por exemplo, o lxico que pode dizer em

    Numen: revist,l de estudos e pesquisJ dJ religiJo, Juiz de Fora, v. 7, n. I, p. 167-178

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  • quais entroncamentos a palavra "conscincia" mudou de "freqncia, intensidade e eco" depois de Freud. O segundo nvel desse acolhimento filolgico demanda uma suscetibilidade s gramticas, filamento dos tecidos estticos constitudos, e em particular s sintaxes. interessante notar como as lnguas assinalam de forma diferente as experincias, temporalmente e espacialmente, segundo as culturas e as pocas (p. 143-148).

    O terceiro nvel o semntico, o qual coloca em questo a possibilidade de um "produto global" inteligvel, ou seja, um somatrio de significados "de todos os recursos lexicais, gramaticais e formais", com o objetivo final de analisar e compreender o sentido de um texto. Mas uma passagem dos recursos aos sentidos imensurvel e ilimitada, pois o texto, ao ser expresso, participa de imediato em um contexto: o de toda uma lngua, dia cronicamente e sincronicamente, como tambm do ambiente e da estrutura social. Assim, um contexto pode abrir-se em inumerveis crculos concntricos. Apesar disso, no se deve chegar a um "sofisma niilista" como concluso, ou seja, pensar "que a inteligibilidade seja totalmente arbitrria", ou ainda que ela anule a si mesma. Esse ponto de vista, que quer duvidar radicalmente, o da desconstruo. Justifica-se, parcialmente, quando no acha possvel: uma "hermenutica sistemtica" e completa,uma interpretao que quer acessar um ponto fixo de chegada e uma demonstrao de um s sentido.

    Porm, entre a iluso do absoluto, que recusa a essncia da "liberdade", e a atividade ldica da desconstruo, que quer impor o "sem-sentido hermenutico", encontra-se "0 terreno rico e legtimo da filologia" (p. 148-150). Pode-se dizer, pois, que possvel, perseverantemente, chegar compreenso de um texto: uma manifestao"de ordem intuitiva" (p. 178) e "sem pre a ttulo provisrio" (p. 160).

    Por fim, Steiner vai sugerir a hiptese principal do livro. Ela pressupe a impossibilidade de, convenientemente, refutar as aspiraes niilistas na esfera do secular. A "presena real e livre do sentido no interior da forma" no pode alcanar uma definio devida e nem se tornar aceitvel metafisicamente em uma discusso que se desenrola unicamente dentro dos limites da imanncia. Assim, o ensasta,

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio} Juiz de Fora, v. 7, n. I, p. 169-180

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  • no enxergando outra vereda, vai propor "um passo mais", uma aposta, "ao mesmo tempo maneira de Descartes e de Pascal" (p. 191), "para alm do bom senso meTal e da existncia emprica". Uma passada que pode ser nomeada, quase tecnicamente,"de transcendncia" (p. 179). N-;sse sentido Steiner considera que a totalidade das manifestaes artsticas de qualidade, incluindo toda a literatura de excelncia, tem incio na imanncia, mas no permanece estacionria nela. A experincia esttica manifesta a presena que ilumina o contnuo entre c temporal e o eternc, entre o material e o espiritual e tambm entre "0 homem e o outro". Em outras palavras: a abertura da "poiesis" [criao artstica] dimenso religiosa e metafsica (p.201).

    Convm apontar, ao termo desta resenha, qual a contribuio de Presenas reais: as artes do sentido, de George Steiner, para os estudos da relao entre religio e literatura. Essa rea de conhecimento est particularmente ligada questo interpretativa, e faz uso das reflexes sobre literatura e crtica literria. Nesse sentido, o ensaio de Steiner desbrava caminhos e faz pensar, sem deixar de levantar questes abissais. O grande nmero de referncias culturais, utilizadas pelo autor para subsidiar suas reflexes, pode ser um roteiro til de autores e obras para aprofundar, ou levantar contrapropostas, s hipteses apresentadas. No que se refere especificamente s interpretaes, peculiar o seu ~)osicionamento em relao s teorias historicamente mais recentes, centradas na desconstruo ~ no ps-estruturalismo. A ttulo de concluso, cabe dizer que seria interessante testar os mtodos interpretativos de Steiner, no todo ou em parte, com o propsito de alcanar uma aproximao dos significados religiosos, em leituras no usuais de obras literrias expressivas.

    Paulo Roberto Cardinelli Webler Mestre em Cincias da Religio

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    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de ~OrJ, v. "/, 11. 1, p. 169-160

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