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RAFAEL CESAR CIRICO GARCIA CRIÔNICA, UMA GUERRA FRIA UM MAPEAMENTO DE CONTROVÉRSIAS SOCIOTÉCNICAS Florianópolis 2015

RAFAEL CESAR CIRICO GARCIA CRIÔNICA, UMA GUERRA FRIA

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  • RAFAEL CESAR CIRICO GARCIA

    CRINICA, UMA GUERRA FRIA UM MAPEAMENTO DE CONTROVRSIAS SOCIOTCNICAS

    Florianpolis 2015

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    RAFAEL CESAR CIRICO GARCIA

    CRINICA, UMA GUERRA FRIA UM MAPEAMENTO DE CONTROVRSIAS SOCIOTCNICAS

    Trabalho de Concluso de Curso submetido ao Curso de Graduao em Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina para obteno do ttulo de Bacharel em Antropologia. Orientador Prof Dr Theophilos Rifiotis.

    Florianpolis 2015

  • Rafael Cesar Cirico Garcia

    CRINICA, UMA GUERRA FRIA UM MAPEAMENTO DE CONTROVRSIAS SOCIOTCNICAS

    Este Trabalho de Concluso de Curso foi julgado adequado para obteno do Ttulo de Bacharel em Antropologia, e aprovado em sua forma final pelo Curso de Graduao em Antropologia.

    Florianpolis, 15 de Maio de 2015.

    ________________________

    Prof. Dr. Gabriel Coutinho Barbosa Coordenador do Curso

    Banca Examinadora:

    ________________________

    Prof Dr Theophilos Rifiotis - Orientador Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

    ________________________

    Prof Dr Jean Segata Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

    ________________________ Prof Dr Oscar Calavia Sez

    Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

  • The first step to the knowledge of the wonder and mystery of life is the recognition of the monstrous nature of the earthly human realm as well as

    its glory, the realization that this is just how it is and that it cannot and will not be changed. Those who think they know how the universe could have been had they created it, without pain, without sorrow, without time,

    without death, are unfit for illumination. (Joseph Campbell)

  • AGRADECIMENTOS

    No penso que um obrigado ser suficiente desta vez para expressar o extremo agradecimento que sinto por todas as pessoas que participaram da minha jornada acadmica at hoje, considerando o quanto esta jornada teve impacto sobre quem eu sou.

    Agradeo a todos os colegas do curso que estiveram comigo em momentos de muita alegria e em momentos de muita dvida. Amo todos vocs. Agradeo aos servidores que sempre estiveram l para tomar um cafezinho comigo e trocar uma boa conversa enquanto me ajudavam a resolver problemas aparentemente insolveis.

    Agradeo a todos os professores do curso de graduao Antropologia por permitirem a existncia de um lugar to frutfero para a produo de conhecimento e discusses holsticas. Desejo agradecer os professores Alberto Groisman, Alcia Norma Gonzles de Castells, Edviges Marta Ioris, Evelyn Martina Schuler Zea, Gabriel Coutinho Barbosa, Ilka Boaventura Leite, Jos Antnio Kelly Luciani, Maria Eugenia Dominguez, Maria Regina Azevedo Lisba, Marnio Teixeira-Pinto, Miriam Furtado Hartung, Miriam Pillar Grossi, Rafael Jos de Menezes Bastos, Rafael Victorino Devos, Scott Correll Head, Snia Weidner Maluf, Vnia Zikn Cardoso, e especialmente ao professor Oscar Calavia Sez por ter sido integrante da banca de apresentao do TCC.

    Agradeo ao professor Jean Segata por ter me coorientado e pela inspirao que me deu para escolher um objeto de pesquisa to controverso. Um agradecimento especial vai ao professor Theophilos Rifiotis, no apenas por ter me orientado e ser extremamente paciente comigo, mas por ter confiado em mim ao me permitir expandir meus horizontes acadmicos, desde que o tema deste TCC era impensvel para mim at ter participado de sua disciplina de Redes Sociotcnicas em 2012.

    Agradeo a Universidade Federal de Santa Catarina por ter sido um local onde pude me aprimorar pessoalmente, viver, festar, sorrir, conversar, conhecer pessoas e passar tempo na biblioteca at que o sinal tocasse.

    Agradeo a Antropologia, pois mesmo quando ela parecia ter me abandonado completamente, ns sempre demos um jeito de nos reencontrarmos e fazermos esta relao voltar a florescer. Possivelmente, no apenas eu terei amadurecido com este trabalho.

  • RESUMO

    Esta pesquisa consiste em um mapeamento de controvrsias sociotcnicas sobre a prtica da crinica preservao de seres humanos a baixas temperaturas como realizada na organizao crionicista Alcor, sediada nos Estados Unidos. A pesquisa se deu na pgina online da organizao, onde algumas controvrsias fundamentais foram apontadas desde as proposies dos prprios crionicistas da Alcor. As trs controvrsias que guiam a pesquisa so as de que (1) a vida pode ser parada e recomeada se sua estrutura bsica humana preservada; (2) a tcnica da vitrificao pode preservar a estrutura biolgica contra os efeitos do tempo; (3) mtodos para reparar a estrutura biolgica a nvel molecular podem ser previstos por cientistas agora. Desta forma, esta uma prtica que implica uma srie de concepes das cincias biolgicas e da ciberntica com a inteno de lidar com o aparelho informacional humano as clulas do corpo e do crebro , uma vez que crionicistas apostam as suas vidas no desenvolvimento de tecnologias futuras que visam controlar a estrutura biolgica e transform-la para serem capazes de reverter o processo de morte e ento os descongelar em um futuro idealizado. Os conceitos de vida, morte, indivduo e tempo (futuro) tem local central na anlise.

    Palavras-chave: Teoria ator-rede. Mapeamento de controvrsias. Crinica. Criopreservao. Cincias da vida. Ciberntica. Tecnologias futuras. Vida e morte.

  • ABSTRACT

    This research consists of a socio-technical controversy mapping regarding the practice of cryonics the preservation of human being at low temperatures as it is done in the cryonicist organization Alcor, located in the United States. The research took place in the online page of the organization, where some fundamental controversies were pointed out from the assumptions of the Alcor cryonicists themselves. The three controversies that have guided the research are that (1) life can be stopped and restarted if its basic human structure is well preserved; (2) the vitrification technique can preserve the biological structure against the effects of time; (3) methods to repair the biological structure at molecular level can be foreseen by scientists today. Therefore, this is a practice that implies a series of conceptions of the biological sciences and cybernetics with the intention of dealing with the human information set the cells of the body and the brain , as long as cryonicists bet their lives on the development of future technologies that intend to control the biological structure and transform it to be able to reverse the process of death and then unthaw them in an idealized future. The concepts of life, death, individual and time (future) have a central position in the investigation. Key-words: Actor-network theory (ANT). Controversy mapping. Cryonics. Cryopreservation. Life sciences. Cybernetics. Future technologies. Life and death.

  • SUMRIO

    1. INTRODUO.......................................................................19 1.1 UM PRIMEIRO ENCONTRO.........................................20 1.2 ETNOGRAFIAS SOBRE A CRINICA.........................23 1.3 O CONTEXTO DA CRINICA NA IDEOLOGIA ESTADUNIDENSE....................................................................24 1.4 HISTRIA E MISSO DA ALCOR...............................26

    2. SEPARAO: OS PREPARATIVOS PARA A CRIOPRESERVAO..........................................................33

    2.1 UMA INTRODUO NOO DE MORTE.............33 2.2 A NOO DE MORTE DA ALCOR............................38 2.3 O CORPO CRINICO.....................................................42 2.4 AGNCIA E HIBRIDISMO............................................46 2.5 CONECTIVIDADE E VIDA...........................................51

    3. MARGEM: OS PROCEDIMENTOS DA CRIOPRESERVAO..........................................................55

    3.1 MORRER PARA VIVER.............................................55 3.2 OS PROCEDIMENTOS DA CRIOPRESERVAO NA ALCOR........................................................................................57 3.3 O CORPO MBIUS.........................................................63 3.4 A MORTE UM PROCESSO.....................................67 3.5 UMA GUERRA FRIA......................................................70

    4. AGREGAO: A REANIMAO DA CRIOPRESERVAO..........................................................74

    4.1 UM FUTURO DE ANTECIPAO................................74 4.2 O CORPO VIRTUAL.......................................................77 4.3 A REANIMAO NO FUTURO....................................82 4.4 A-VIDA-COMO-ELA-PODERIA-SER.......................87 4.5 HIBRIDISMO E O FUTURO PS-HUMANO...............91

    5. CONCLUSO: CADA UM COM O SEU FETICHE.........96 6. REFERNCIAS......................................................................99

  • LISTA DE TABELAS E FIGURAS

    Figura 1: Pgina Inicial da Alcor.........................................27 Figura 2: Tattoo for a coroner..............................................52 Figura 3: "Procedimentos da Crinica"...................................58 Figura 4: "Bigfoot Dewar"......................................................60 Figura 5: "Fita de Mbius"......................................................64

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    1. INTRODUO

    Nem vivo nem morto, o corpo crinico organiza um discurso monumental de manuteno e reparo; mesmo em sua morte, o corpo um vir a ser (...) A produo de um sujeito crinico vivo, morto, ou no misterioso espao de suspenso possvel apenas na base de um corpo Mbius, um corpo tanto dentro e fora da cpsula de nitrognio, dentro e fora do tempo (DOYLE, 2003:62 e 67, traduo minha).

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    1.1 UM PRIMEIRO ENCONTRO

    Esta pesquisa tem como fonte de inspirao inicial uma disciplina no curso de Graduao em Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, chamada de Redes Sociotcnicas e a Teoria Ator-Rede, ministrada no segundo semestre de 2012. Nesta disciplina, a proposta dos professores Theophilos Rifiotis e Jean Segata foi a de discutir proposies tericas e metodolgicas da Teoria Ator-Rede (ANT) e o mapeamento de controvrsias como uma maneira de realizar pesquisas no ciberespao, tendo como base obras de Bruno Latour, e incluindo autores como Tim Ingold, Marilyn Strathern e Donna Haraway. Pesquisas realizadas no ciberespao tiveram enfoque central nas discusses da disciplina, e do trabalho final da disciplina que surgiu a proposta de realizar esta perquisa no ciberespao. O livro mais utilizado nas discusses da disciplina foi o Reassembling the social (2005), livro em que Bruno Latour prope o mtodo de mapeamento de controvrsias como uma ferramenta para descrio de controvrsias e redes sciotcnicas (LATOUR, 2005). Das diversas discusses com os professores e os colegas do Grupo de Pesquisa em Ciberantropologia (GrupCiber) 1, parte do Programa de Ps Graduao em Antropologia Social (PPGAS)2, eu encontrei nas propostas de Latour um meio para trabalhar assuntos que eu imaginava no pesquisveis na antropologia anteriormente.

    Sob a orientao do professor Theophilos Rifiotis, eu comecei a seguir e descrever a organizao Alcor no primeiro semestre de 2013, tendo o ciberespao como meio privilegiado de informaes. Desta forma, deixo claro que a descrio dos procedimentos da Alcor e da vida dos membros da organizao precede de descries contidas no site da Alcor no ciberespao e em etnografias realizadas sobre crionicistas.

    A Alcor diz que a maior organizao especializada na aplicao das tcnicas da crinica. A crinica um procedimento experimental que implica a utilizao de tcnicas cientficas e mdicas para a preservao de corpos de seres humanos a temperatura de -196C em nitrognio lquido tcnica chamada por praticantes da crinica de criopreservao. Desde que as tcnicas da medicina no so suficientes para tratar e prevenir completamente a morte de pacientes por patologias hoje, a crinica praticada pelos crionicistas como uma forma de (1)

    1 GrupCiber. Grupo de Pesquisa em Ciberantropologia . 2 PPGAS. Programa de Ps Graduao em Antropologia Social .

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    preservar aqueles que a elam se submetem contra os efeitos do tempo, (2) esperar tecnologias mdicas serem desenvolvidas, e posteriormente (3) descongelar e reanimar os praticantes criopreservados em um futuro onde existam outras tecnologias que lidem com quaisquer patologias que possam causar a morte do indivduo. Devido importncia das noes de morte, vida e indivduo para os praticantes da crinica da Alcor, estas noes sero amplamente discutidas ao longo do trabalho e introduzidas logo a seguir. No obstante, o termo crionicista correntemente utilizado por praticantes da crinica para designar aqueles que tm a inteno de serem criopreservados e j se tornaram membros de uma organizao crionicista, como a Alcor Life Extension Foundation.

    A Alcor afirma em seu website que a lder mundial em crinica, pesquisa em crinica, e tecnologia da crinica3. Para a Alcor, a crinica a cincia de usar temperatura ultra-fria para preservar a vida humana com a inteno de reestabelecer pessoas a boa sade quando a tecnologia para faz-lo for criada4. Desta primeira afirmao apresentada pela Alcor sobre suas praticas, indispensvel questionar o que preservado pelas tcnicas da crinica aplicadas na Alcor quando um ser humano criopreservado ou, preservado atravs de tcnicas de controle de baixa temperatura? Tambm, o que significa reestabelecer uma pessoa a boa sade? O que uma pessoa para a Alcor? O que boa sade? De que tecnologia a Alcor est falando? E, de que tempo futuro a Alcor est falando que estas tecnologias podem ser criadas? Estas so controvrsias importantes e que sero descritas e analisadas ao longo do trabalho, tendo as noes de vida e de morte para a crinica da Alcor como aspecto central onde todas as questes apontadas acima confluem.

    Em um primeiro momento, possvel deduzir que a Alcor pretende reviver ou ressuscitar pessoas consideradas mortas pelas perspectivas mdicas atuais, com o intuito de utilizar tecnologias que ainda sero criadas por cientistas para que num futuro elas possam obter o tratamento necessrio. Ao levar em conta que a preservao da crinica a criopreservao considerada um processo fatal para a medicina atual, a Alcor prope que tal processo ainda no reversvel com a tecnologia atual, mas isso no diz nada sobre as habilidades de tecnologias futuras; e, a Alcor ainda aponta que o conceito de fatal varia de tempos em tempos e de lugar a lugar, dependendo da tecnologia

    3 ALCOR. Home. Disponvel em: . Acessado em Dezembro de 2014. 4 Idem.

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    mdica disponvel5. O argumento utilizado pela Alcor se centra em sua dependncia de tecnologias imaginarias ou imaginveis que surgiro em um futuro incerto. Apostar no futuro ao levar em considerao uma quantidade de tempo ilimitada para a produo destas tecnologias parece ser uma aposta certeira para os crionicistas da Alcor, desde que acreditam veemente em tcnicas cientficas futuras que possivelmente sero desenvolvidas. Desta forma, as pessoas que tiverem seus corpos congelados aguardam a criao de meios para reviv-las. A prtica da criopreservao justificada por crionicistas pela proposio de Robert Ettinger no livro que marcou a fundao da prtica da crinica, The prospect of immortality (1964), obra inaugural da crinica, que prope logo na introduo que:

    Portanto ns precisamos apenas nos preparar para ter os nossos corpos, aps ns morrermos, armazenados em refrigeradores adequados contra o tempo quando a cincia possa ser capaz de nos ajudar. No importa o que nos matar, seja por envelhecimento ou doena, e mesmo se tcnicas de refrigerao ainda sejam simples quando ns morrermos, mais cedo ou mais tarde os nossos amigos do futuro devero ser capazes de nos reviver e nos curar. Esta a essncia do argumento principal (ETTINGER, 1964:11, traduo minha).

    A proposio de Ettinger sugere ento que a criopreservao uma maneira de lidar com um problema imediato ao transplantar o problema para um futuro idealizado onde tecnologias existiro para lidar com circunstncias que agora no podem ser lidadas. O filsofo Richard Doyle, em seu trabalho sobre a crinica intitulado Disciplined by the future: the promising bodies of cryonics (2003), props comparar a crinica com os contratos futuros da bolsa de valores contratos que s possvel ser avaliados se daro lucro ou prejuzo em funo de tempo, em um futuro ainda incerto ; Doyle diz que o corpo crinico o pensamento de um sujeito em que o capital futuro articulvel. Ento, a crinica no apenas a exportao de um sujeito para o futuro, mas a constante avaliao de um capital que ainda est por vir (DOYLE, 2003:86). Desta forma, as controvrsias que tm sido distribudas sero analisadas na medida em que as prticas da Alcor forem sendo descritas ao longo dos captulos.

    5 ALCOR. FAQ: Isnt the preservation process fatal? Disponvel em: . Acessado em Setembro de 2014.

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    1.2 ETNOGRAFIAS SOBRE A CRINICA

    Existem duas etnografias e diversos artigos de vrias reas

    acadmicas escritos sobre a Alcor e a crinica. A primeira etnografia sobre a crinica foi realizada por Arlene Sheskin, com o nome de Cryonics: a sociology of death and bereavement (1981). Neste trabalho, Sheskin realizou diversas entrevistas com cerca de 30 praticantes de crinica no final dos anos 70 e incio dos anos 80. A pesquisadora fez um breve histrico da prtica da crinica a partir do livro The prospect of immortality (1964) de Robert Ettinger e das informaes dispostas pelos seus informantes. Ela descreveu as mecnicas da suspenso realizada por crionicistas e casos especficos de criopreservaes e o relacionamento e desentendimento entre membros. Seu foco foi o de trabalhar a noo de morte enquanto algo a ser combatido na cultura mdica e cientfica estadunidense.

    A segunda etnografia mais recente e foi realizada como trabalho de campo na Alcor por Tiffany Romain, e tem como nome Extreme life extension: investing in cryonics for the long, long term (2010). Romain realizou sua pesquisa em dois anos que permaneceu trabalhando na Alcor. Ela brevemente descreveu eventos e seminrios realizados por crionicistas da Alcor. O foco do seu trabalho foi o de analisar e propor que a prtica da crinica surgiu nos anos 60 durante um perodo de grande otimismo no desenvolvimento tecnolgico, mdico e computacional. Romain props que a crinica uma forma de investimento que est enraizada em uma cosmologia moral individualista, crena no livre mercado e no progresso biotecnocientfico (ROMAIN, 2010:211). Desta forma, a crinica um investimento de risco em terapias e curas futuras propostas pela medicina regenerativa e gentica. A autora tambm prope que, enquanto uma forma de investimento em um futuro (incerto), a crinica transporta a pessoa do presente para o futuro (ROMAIN, 2010:196), uma vez que crionicistas so consumidores que compram tempo como uma forma de lidar com problemas que no podem lidar com o auxlio da medicina e quaisquer tecnologias no presente. Por fim, Romain prope que diferentemente de outros campos de pesquisa biomdicos, a prtica da crinica recebeu poucos investimentos e permaneceu fria por ser uma inovao cientfica sem fins lucrativos.

    Arlene Sheskin e Tiffany Romain buscaram descrever a crinica enquanto um fenmeno estadunidense. No caso do Brasil, no h instituies que criopreservam seres humanos e no h suporte legal para

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    a prtica da crinica, o que dificulta a possibilidade de praticar a crinica no Brasil; no entanto, h entusiastas da crinica no Brasil, como o mdico psiquiatra que discute biotica, Claudio Cohen. Cohen props no seu artigo Bioethicists must rethink the concept of death: the idea of brain death is not appropriate for cryopreservation (2012), que o conceito de morte deve ser repensado quando levado em conta a criopreservao, ao considerar que a utilizao de baixas temperaturas na tcnica da vitrificao j utilizada para preservar rgos utilizados para transplante, assim como vulos, smen, plantas, animais e alimentos, com sucesso. Em contrapartida, no trabalho de concluso do mestrado em Direito intitulado Crinica: a incessante evoluo em busca da perpetuao da vida e a afronta ao Direito (2013), Eleonardo de Castro discute a extrema dificuldade que o sistema legal brasileiro encontra para lidar com inovaes tecnolgicas e experimentaes em humanos, desde que o autor questiona se o sistema legal brasileiro deveria se adaptar ao que ele chamada de processo de evoluo tcnico-cientfico, ou adaptar as inovaes tcnico-cientficas ao sistema legal. De Castro descreve a dificuldade de lidar com o caso da crinica uma vez que o meio legal conclui que a morte delimita o fim dos direitos da personalidade, entretanto, cabe aos parentes, em nome da famlia, proteger o prolongamento destes direitos observando sua aquisio quando em vida (DE CASTRO, 2013:13). Uma vez que o sistema legal se utiliza da noo clnica de morte como base para a sua prpria noo de morte, as pessoas que desejam serem criopreservadas so consideradas mortas. Portanto, De Castro conclui que o processo de crinica, quando da utilizao de corpos de pessoas, mesmo que j declaradas mortas, ofende a dignidade da pessoa humana quando da realizao de atividades e estudos que, apesar de contratados, no se garante a efetividade, o que, quando do insucesso, impediria qualquer confronto judicial para pleitear direitos, j que morto se encontra o indivduo (DE CASTRO, 2013:17). 1.3 O CONTEXTO DA CRINICA NA IDEOLOGIA ESTADUNIDENSE

    A crinica comeou a ser praticada nos Estados Unidos na dcada de 60, e ainda praticada principalmente neste pas com a exceo da existncia de uma nica organizao crionicista na Rssia. A dcada de sessenta tem uma importncia especial para a cultura estadunidense, pois o mundo ainda sentia os efeitos do ps-guerra, a guerra fria estava no auge com a crise dos msseis de Cuba, a contracultura, Woodstock e o rock and roll, a corrida espacial com a

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    descida de astronautas na lua, e a competio da produo cientfica e tecnolgica impulsionada pelo consumismo estadunidense. Em meio a este momento de grande furor e expectativa na cincia e tecnologia, a crinica comeou a ser praticada, tendo Robert Ettinger como fundador do primeiro centro especializado em crinica e o escritor do livro inaugural da crinica, The prospect of immortality (1964). Ettinger participou da Segunda Guerra Mundial, se feriu seriamente e passou anos se recuperando em hospitais. Nesta poca, ele descobriu o trabalho de Jean Rostand sobre o congelamento e descongelamento bem sucedido de esperma de sapos, e da inspirao nesta inovao cientfica, Ettinger considerou tambm a possibilidade de congelar seres humanos. No livro The prospect of immortality, Ettinger prope para a comunidade cientfica estadunidense repensar o que significa estar vivo ou morto ao considerar o congelamento de pessoas do corpo, da cabea ou crebro como um meio de preservar a vida de pessoas ao mant-las suspensas congeladas por um perodo de tempo indeterminado at que inovaes tecnolgicas futuras sejam capazes de reanim-los. Logo no incio do livro Ettinger escreve que:

    Suspenso animada, ento, ir se referir a condio de um corpo biologicamente morto que tenha sido congelado e armazenado a uma temperatura muito baixa, para que a degenerao seja interrompida e no progressiva. O corpo pode ser considerado como morto, mas no to morto assim; ele no pode ser revivido por mtodos atuais, mas a condio da maioria das clulas pode no diferir tanto daquela em vida (ETTINGER, 1964:14, traduo minha).

    Seu discurso se fundamenta na ideia de que a temperaturas

    muito baixas, possvel preservar o corpo de pessoas mortas indefinidamente sem que haja grande deteriorao nos tecidos humanos (ETTINGER, 1964:12). As cincias da criogenia estudo fsico do comportamento de materiais a baixas temperaturas , e a criobiologia ramo da biologia que estuda o efeito de baixas temperaturas sobre tecidos , tem se desenvolvido bastante, e atualmente as tcnicas que desenvolveram j so utilizadas para a preservao de rgos, embries, smen, animais, plantas, microorganismos, etc. Desta forma, estas tcnicas tm sido apropriadas e adaptadas para a crinica. Entretanto, ainda no existem quaisquer tecnologias que possam reviver pessoas j consideradas mortas pela medicina tradicional, e crionicistas assumem

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    que se o progresso da humanidade no caso, multiplicao das tecnologias e tcnicas cientficas continuar, as tcnicas da biomedicina e nanotecnologia sero eventualmente capazes de reparar quase qualquer dano causado ao corpo humano, assim como as prprias doenas que levaram o indivduo ao bito (MERKLE, 1992)6. No livro Celebrations of death: Anthropology of mortuary rituals (1991), Metcalf e Huntington apontam sobre a produo tecnolgica estadunidense que:

    Americanos tem grande f na medicina, uma f que est certamente em sintonia com o Iluminismo do progresso e humanismo. O desenvolvimento de novas drogas poderosas, e tcnicas cirrgicas confiveis e seguras, juntamente com aperfeioamento na dieta, tem possibilitado a inevitabilidade da morte ser redefinida (METCALF & HUNTINGTON, 1991:209-210, In KRUGER, 2010:10, traduo minha).

    Desta forma, a crena de crionicistas nos desenvolvimentos da medicina tem promovido questionamentos sobre a inevitabilidade da morte, e a crinica se mostra como uma resposta enquanto uma possibilidade de vencer a morte.

    1.4 HISTRIA E MISSO DA ALCOR

    O primeiro movimento para a escrita desta monografia foi

    no Google, e foi atravs deste mecanismo de pesquisa que eu conheci a Alcor Life Extension Foundation. Ao clicar para entrar no site, somos levados a um site com nome de www.alcor.org7 (Figura 1: Pgina Inicial da Alcor, p.27). Sites .org so sites de um domnio de alto nvel para organizaes sem fins lucrativos8. A Alcor aponta que ela ainda tem um status de startup mesmo j tendo cerca de 40 anos de idade, e que tem menos de uma dzia de empregados em Scottsdale, Arizona onde fica a sede da organizao , e aproximadamente 20

    6 No quarto captulo desta monografia ser descrito e analisado as expectativas da Alcor em tecnologias ainda a serem desenvolvidas, ao expandir a discusso que acabou de ser introduzida. 7 ALCOR. Home. Disponvel em: . Acessado em Setembro de 2014. 8 http://www.internetslang.com/.ORG-meaning-definition.asp

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    Figura 1: Pgina Inicial da Alcor.

    contratados independentes de meio perodo em vrios locais dos Estados Unidos em prontido para atuaes de emergncia9. Segundo a Alcor, falta capital para dar apoio ao maior crescimento da mesma. A falta de capital est atrelada ao fato de que a crinica no uma novidade tecnolgica capaz de gerar lucro, e desta forma, no recebeu muito investimento deste que comeou a ser praticada (ROMAIN, 2010:195). Entretanto, diferente de uma startup, improvvel que a Alcor entre em falncia por razes financeiras, uma vez que por ter tamanho reduzido, a

    9 ALCOR. Problems associated with cryonics. Disponvel em: . Acessado em Dezembro de 2014.

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    intimidade produzida entre os membros da Alcor faz com que muitos dos mais abonados deem presentes a organizao, e que pacientes podem ser preservados indefinidamente pela existncia de um fundo financeiro de cuidado dos pacientes. A questo financeira da Alcor ser descrita e analisada no quarto captulo da pesquisa.

    Ao continuar, a Alcor explica nas pginas Histria da Alcor10 e Misso da Alcor11 que em 1972, Linda e Fred Chamberlain, fundadores da Alcor, escolheram o nome da organizao se baseando na ideia de que um dia as pessoas viajariam para as estrelas com o advento da explorao espacial, e utilizariam da crinica para manter astronautas em suspenso animada; Linda e Fred procuraram em catlogos de estrelas e livros de astronomia, e encontraram na estrela Alcor, 80 Ursae Majoris, uma grande estrela com nome que pode servir de acrnimo para Resgate Aloptico Criognico (Allopathic Cryogenic Rescue)12. Desde que a Alcor prope tratar pacientes atravs da crinica, ela considera que sua prtica aloptica, ao pretender ser uma prtica baseada na medicina tradicional, enquanto que prticas homeopticas lidam com medicinas alternativas. Para a Alcor, propor que a sua medicina aloptica significa dizer que suas praticas e conhecimentos esto baseadas em conhecimentos sustentados pela cincia. Isso o que a Alcor pretende.

    A questo da cientificidade para crionicistas da Alcor de central importncia para a prtica da crinica, que tenta sustentar sua autoridade ao tratar da vida e morte de pacientes ao utilizar de tcnicas desenvolvidas por cientistas. A Alcor diz que suas proposies so consistentes com a teoria cientfica bem-estabelecida atualmente, ao seguir as leis da fsica, neurocincia, bioqumica, biologia, criobiologia e qumica13. E, acrescenta que a crinica no requer alterao nas leis da fsica e consistente com as mesmas, e que sobre condies razoveis provvel que funcione. A Alcor diz que a crinica no a crena de que pessoas inteiras possam ser congeladas e revividas com tecnologias produzidas logo, mas que se o crebro puder ser preservado bem o suficiente para reter memria e personalidade dentro dele, ento restaurar a sade de uma pessoa inteira vista como um problema tcnico de

    10 ALCOR. Alcors History. Disponvel em: . Acessado em Dezembro de 2014. 11 ALCOR. Alcors Mission. Disponvel em: . Acessado em Dezembro de 2014. 12 ALCOR. Frequently Asked Questions. Disponvel em: . Acessado em Setembro de 2014. 13 ALCOR. Scientists Cryonics FAQ. Disponvel em: . Acessado em Dezembro de 2014.

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    longo prazo. A questo da cientificidade da crinica da Alcor ser mapeada ao longo de todos os captulos da pesquisa, devido a ser uma matter of concern (LATOUR, 2004) central da Alcor.

    Na obra Why the critique run out of stream? From matters of fact to matters of concern (2004), Bruno Latour prope questionar temas que so de grande importncia para o debate entre diferentes atores sociais. Ao invs de considerar as proposies de atores enquanto sendo matters of fact (questes de fato), Latour prope consider-las enquanto matters of concern (questes de interesse), ou questes que os atores tm interesse de sustentar enquanto sendo considerados fatos. A Alcor deixa claro alguns de seus matters of concern quando explica o que pretende fazer em relao preservao da memria e personalidade dos seus pacientes na pgina Misso da Alcor14, ao apontar que o seu objetivo a preservao de vidas individuais, e que ela busca realizar este objetivo atravs de uma lista de fundamentos: 1) Manter os pacientes atuais em criopreservao15; 2) Colocar membros atuais e futuros em criopreservao; 3) Eventualmente, restaurar a sade e reintegrar todos os pacientes da Alcor na sociedade; 4) Financiar pesquisas para poder alcanar os itens 1-3; 5) Prover educao pblica como um meio de apoiar os objetivos 1-4. interessante notar que o objetivo da Alcor no apenas criopreservar pessoas, mas tambm reabilitar todos os seus pacientes vitrificados vida social. Paciente um termo utilizado pela Alcor para designar quando um crionicista ou membro da Alcor considerado pela biomedicina e pelo direito como morto trazido para a Alcor para ser criopreservado. Enquanto sobre os cuidados ou agenciados da Alcor, crionicistas so chamados de pacientes. O agenciamento da Alcor sobre os crionicistas ser descrito e analisado em todos os captulos da pesquisa.

    Quando a Alcor afirma que tem como objetivo a preservao de vidas individuais e o aspecto principal destas vidas individuais so suas memrias e personalidade, possvel perceber que a noo de vida da crinica da Alcor est atrelada a uma noo de pessoa que se centra no contedo mental individual. Discutir a noo de pessoa da Alcor se mostra fundamental para ser capaz de seguir com a anlise das controvrsias da Alcor. No caso dos estudos antropolgicos, Marcel Mauss o autor que props a noo de pessoa enquanto uma das

    14 ALCOR. Alcors mission statement. Disponvel em: . Acessado em Setembro de 2014. 15 Outros termos tambm utilizados pela Alcor para criopreservao so: biostasis, cryogenic internment, cryostasis, cryonic suspension, cryosuspension ou simplesmente suspension.

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    questes centrais para a anlise antropolgica no texto Uma categoria do esprito humano: a noo de pessoa, a noo de eu (1950). Neste trabalho, Mauss props analisar a noo de pessoa ao utilizar de relatos etnogrficos como meio para construir historicamente o desenvolvimento da noo de pessoa, partindo das noes de pessoa de sociedades indgenas at a persona romana, a pessoa moral e a pessoa enquanto ser psicolgico no ocidente.

    Ao debater a noo de pessoa em Mauss, o antroplogo Marcio Goldman diz que a especificidade do Ocidente poderia ser localizada na concepo de um ser uno e indiviso (...), que tem se dedicado h muito tempo em produzir e reiterar o par indivduo/sociedade enquanto realidade (GOLDMAN, 1996:16-17). A construo da noo de indivduo enquanto fato social em contraposio sociedade o par indivduo/sociedade , ou a pessoa social em oposio ao organismo individual pessoa (social)/indivduo (biolgico) , estes pares de oposio, assimtricos entre si, impossibilitam analisar muitas das implicaes do caso da crinica. Uma das implicaes , por exemplo, ao considerar a perspectiva mdica atual, como descrever e analisar a condio de corpos criopreservados quando j no so mais considerados pessoas sociais, mas apenas defuntos congelados? Mesmo para a Alcor, aqueles que esto criopreservados so considerados mortos, mas que ainda podem ser reanimados e reagregados a sociedade. Esta ltima questo apresenta um debate/embate entre diferentes atores sociais mdicos, legisladores, cientistas e crionicistas que buscam ter o poder de definir o significado de conceitos como o de indivduo, morte e vida. Esta arena de debates o que Bruno Latour prope chamar de uma controvrsia sociotcnica em sua obra Reassembling the social (2005).

    Bruno Latour apresenta a teoria ator-rede como um meio de observar e descrever controvrsias em relao a questes que envolvem assimetrias entre pares de oposies como indivduo/sociedade e morte/vida , sem reforar estas assimetrias, mas ao encontrar na descrio enquanto mtodo um meio para distribuir e mapear redes que produzem as controvrsias que so evocadas pelas descries de situaes que apresentem assimetrias (LATOUR, 2005). Ao invs de considerar a noo funcionalista que prope trabalhar com conceitos como vida e morte enquanto fatos sociais, Latour prope os questionar ao mapear como redes se constroem e se sustentam, atravs de mapear controvrsias em que atores e agentes disputam pela construo de (suas) verdades. Afinal, como diz Latour:

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    () em situaes em que inovaes proliferam, onde a fronteira de grupos incerta, quando a extenso de entidades a serem levadas em conta flutua, a sociologia do social no mais capaz de seguir as novas associaes dos atores (LATOUR, 2005:11, traduo minha).

    Portanto, como os corpos/indivduos criopreservados atuam e so agenciados por organizaes crionicistas como a Alcor?

    * * *

    Ao tomar as obras de Bruno Latour como Laboratory life:

    the construction of scientific facts (1986, com WOOLGAR, S.), Jamais fomos modernos (1994) e Reassembling the social (2005) como fonte de inspirao acadmica, assim como base terica e metodolgica para esta pesquisa, o objetivo do trabalho ser o de mapear controvrsias sociotcnicas observadas na crinica praticada na Alcor no ciberespao. No artigo Etnografia no ciberespao como repovoamento e explicao (2014), Theophilos Rifiotis prope a prtica etnogrfica do mapeamento de controvrsias nos seguintes termos:

    O foco etnogrfico deixa de ser os sujeitos como totalidades j dadas anlise, e passa a ser a ao, os agenciamentos. (...) Identificar os fluxos em que se d a ao, a emergncia de agentes (redes), os deslocamentos, etc., seria o objetivo da descrio na chave da teoria ator-rede (RIFIOTIS, 2014:16 e 14).

    Ao incorporar a perspectiva de Rifiotis e focar nas aes e agenciamentos dos atores envolvidos na criopreservao, a proposta ser a de seguir os atores atravs de descrever as suas aes e agenciamentos como dispostas no site da Alcor. Como meio de guiar a descrio, em Reassembling the social (2005), Bruno Latour prope que o pesquisador descreva controvrsias ao observar as redes que as constituem, e um meio de reconhecer tais controvrsias ao observar e descrever questes que so disputadas entre os prprios atores da controvrsia. Tommaso Venturini prope da obra de Latour que:

    () a palavra controvrsia refere aqui a cada pedao de cincia e tecnologia que no est ainda

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    estabilizada, fechada ou em uma caixa preta (...) ns a usamos como um termo genrico para descrever incerteza compartilhada (VENTURINI, 2009:260, traduo minha).

    Quando a Alcor afirma que o corpo criopreservado est vivo e no morto porque informaes contidas no crebro ainda podem ser recuperadas, desde que o crebro entendido enquanto um repositrio de informaes, ela est apresentando sua prpria noo de vida e morte, indivduo e corpo. Como se constri tal controvrsia enquanto uma arena de disputas pelo conhecimento cientfico? Como que acontece a disputa pelo poder de apontar o que estar vivo ou estar morto? A questo ento perguntar quais as redes que constituem as pessoas, indivduos, pacientes, membros, corpos, cabeas, crebros, clulas, mdicos, tcnicos, cientistas, meios de transporte, laboratrios, tecnologias, seringas, tubos, garrafas trmicas, coraes, pulmes, neurnios e contedos mentais que compem a crinica da Alcor? As descries das controvrsias se daro em trs captulos que apresentam como os corpos da crinica so compostos e compe o universo da crinica, atravs dos: (1) preparativos dos membros da Alcor para serem criopreservados; (2) procedimentos da Alcor para criopreservar seus membros e como os corpos so mantidos criopreservados; (3) procedimentos para a reanimao destes corpos no futuro.

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    2. SEPARAO: OS PREPARATIVOS PARA A CRIOPRESERVAO 2.1 UMA INTRODUO NOO DE MORTE

    No captulo Separao: os preparativos para a

    criopreservao ser descrito e analisado a principio a noo de morte e pessoa na antropologia desde as perspectivas propostas por Marcel Mauss em Antropologia e sociologia (1950), e de Louis-Vincent Thomas em Antropologa de la muerte (1983). Posteriormente, ser apresentado a noo de morte e pessoa para a Alcor, para da ento analisar antropologicamente estes conceitos centrais para a prtica da crinica na Alcor. Para introduzir a problemtica sugerida acima, na pgina O que a crinica16, a Alcor afirma que a prtica da crinica justificada por trs fatos:

    1) A vida pode ser parada e recomeada se sua estrutura

    bsica preservada; 2) Vitrificao (no congelamento) pode preservar a

    estrutura biolgica; 3) Mtodos para reparar a estrutura a nvel molecular

    podem ser previstos agora.

    Estas trs afirmaes so apresentadas pela Alcor como um resumo e justificao da prtica da crinica. Enquanto tais, elas sero as questes centrais de cada um dos trs captulos do desenvolvimento da monografia, uma vez que compreender o que elas significam para os crionicistas da Alcor requer distribuir estas afirmaes enquanto controvrsias, e ao mapear o que a Alcor faz, ser possvel apreender as implicaes destas justificaes. Desta maneira, este captulo ter como enfoque o mapeamento da primeira das trs justificativas apresentadas acima. Sendo assim, a Alcor afirma logo de incio que a vida pode ser parada e recomeada se sua estrutura bsica preservada. Ao tomar esta proposio como um ponto inicial da anlise, este primeiro matter of fact (LATOUR, 2004) reflete a possibilidade de apresentar uma controvrsia que segundo a Alcor fundamental para a sua prtica da crinica. No caso de tomar esta proposio inicial enquanto uma matter of concern, ou, uma questo de interesse central a ser analisada enquanto

    16 ALCOR. What is cryonics? Disponvel em: . Acessado em Setembro de 2014.

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    uma controvrsia e no enquanto um fato inquestionvel, esta afirmao um ponto de partida para a anlise da crinica da Alcor por apresentar uma primeira arena de debates onde h o encontro (gathering) (LATOUR, 2004:245-246) de diversos atores e agentes. Afinal, como a Alcor diz nas trs afirmaes citadas acima, o que a vida que pode ser parada e recomeada? O que a estrutura bsica da vida? O que a primeira afirmao implica para a as prticas da Alcor quando analisada enquanto um matter of concern? E, como outros atores se posicionam perante esta afirmao da Alcor? Afinal, se esta questo fosse considerada um fato inquestionvel para outros atores que possam se interessar pelo assunto, a Alcor no precisaria se esforar para justific-la, como ser descrito ao longo do captulo.

    Entretanto, antes de partir para uma descrio de maior densidade das prticas dos crionicistas da Alcor, necessrio realizar uma breve discusso dos conceitos centrais encontrados nas controvrsias apresentadas pela Alcor atravs de diferentes perspectivas antropolgicas. Ao tomar a noo de vida como o conceito inicial para o debate, possvel inferir que a noo de vida implica aquela de morte. Assim como com a noo de pessoa discutida na introduo deste trabalho (p. 29), Marcel Mauss tambm discute a noo de morte enquanto um paradigma antropolgico em seu ensaio Efeito fsico no indivduo da ideia de morte sugerida pela coletividade (1950). Neste ensaio, Mauss prope analisar a morte no apenas enquanto um fenmeno biolgico, mas tambm social, uma vez que a influncia que o social tem sobre o fsico/biolgico pode fazer com que o indivduo morra (MAUSS, 1950:349). Mauss aponta para o caso dos aborgenes australianos Wakelbure, que no caso de algum comer uma caa proibida, este adoece e provavelmente definha e morre, desde que o esprito da criatura entrou no seu corpo e acaba por mat-lo (MAUSS, 1950:353). Mauss prope analisar a morte na antropologia no enquanto um estudo da Tanatologia, ou, o estudo cientfico da morte, como no caso da cincia forense; mas sim, ao considerar a crena na eficcia das palavras (MAUSS, 1950:356-357), como neste caso em relao aos efeitos da feitiaria ou pecado mortal (MAUSS, 1950:364) por ingesto de alimentos proibidos. Mauss prope que a morte do indivduo pode ser causada por influncia de uma crena do coletivo (MAUSS, 1950:350). Nos estudos de cura e doena da antropologia da religio, o termo designativo deste efeito a eficcia simblica, termo cunhado por Claude Lvi-Strauss em seu artigo A eficcia simblica (1958). Mauss encerra seu ensaio sobre a morte do indivduo enquanto sugerida pela coletividade ao apontar que a morte pode ser estudada por antroplogos enquanto um fato social total, e

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    encontra no homo duplex de Emile Durkheim a designao deste fato, ou seja, uma morte por influncia totalmente social, em oposio morte do organismo como estudado pelas cincias naturais. Mauss toma de Durkheim o par de opostos social/biolgico ao tentar fundamentar um estudo da morte para a antropologia; com efeito, sua proposio teve a inteno de reforar a assimetria entre o par social/biolgico17.

    Numa perspectiva mais recente o antroplogo Louis-Vincent Thomas escreveu uma obra com a inteno nica de trabalhar a noo de morte, intitulado Anthropologie de la mort (1975). Thomas outro antroplogo da escola francesa, porm, diferentemente da perspectiva de morte social de Mauss, Thomas prope uma antropologia tanatolgica (THOMAS, 1983:11). Thomas sugere analisar a morte enquanto um fenmeno social que no implica somente o efeito da coletividade sobre o indivduo, mas sim, ele diz que a morte o acontecimento universal e incontestvel por excelncia: com efeito, o nico que estamos verdadeiramente certos (THOMAS, 1983:7). De Martin Heidegger, Thomas cita que o ser humano um ser-para-a-morte, e que da promessa da morte, o ser humano j um morto-em-potncia (THOMAS, 1983:7). Thomas v a morte enquanto uma lei universal [natural] da sociedade (THOMAS, 1983:11-12). Entretanto, apesar de propor analisar a morte para diferentes culturas atravs de uma perspectiva multiculturalista, ele acaba colocando em prtica uma perspectiva etnocntrica (ocidental) de morte, uma morte que determinada por mdicos e suas teorias organicistas. Thomas refora a assimetria entre o par natureza/cultura ao considerar a morte natural enquanto sendo uno e universal e a morte social enquanto sendo plural e particular de cada cultura.

    Desde que as fronteiras entre o natural e o social foram sistematicamente reforadas e ampliadas na antropologia de Durkheim, Mauss e Thomas, torna-se difcil realizar a descrio de prticas mdicas, cientficas e tecnolgicas que lidem com a noo de vida e morte, uma vez que a prtica do relativismo cultural ampliou e reforou fronteiras conceituais a um ponto em que ontologias se tornaram hiper-incomensurveis (LATOUR, 1994:58). Desta forma, a morte de um mesmo indivduo implica diferentes noes de morte, noes estas que tendem a ser incomensurveis. Um mesmo indivduo pode ser

    17 Emile Durkheim o autor que influenciou Marcel Mauss a reforar a separao entre o social e o biolgico enquanto uma forma de fundamentar as cincias sociais, e tem em sua obra O suicdio (1897) a proposio inicial de como uma pesquisa de cincias sociais deveria ser realizada.

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    considerado vivo atravs de uma perspectiva religiosa, morto atravs de uma perspectiva mdica e vivo atravs de uma perspectiva social. Dentre algumas noes de morte comumente utilizadas por diferentes atores esto as de: morte biolgica (pallor mortis, algor mortis, rigor mortis, livor mortis, putrefao, decomposio, esqueletizao), fsica, clnica (parada cardiorrespiratria, morte cerebral), celular (apoptose, autofagia, necrose, necroptose), extino, individual (suicdio: egosta, altrusta, anatmico18, ativo, passivo19), social (concebida, vivida, verdadeira, pseudomorte, dada, que se d, real, imaginria, inicitica, em um ponto, progressiva, suave, violenta, boa, m, fecunda, estril, fsica, espiritual20), falsificada, legal (natural, acidental, homicdio, suicdio, no determinada), crist (fsica, espiritual, escatolgica)... e provavelmente existem muitas outras noes de morte em agrupamentos humanos pelo mundo. Entretanto, quando termina esta lista de termos designativos? Louis-Vincent Thomas sintetiza a problemtica da morte para a antropologia ao dizer que a morte fsica e biolgica so as determinantes da morte de seres humanos, ao afirmar que:

    A morte clnica, [] impressionista, mas reversvel; a morte biolgica, que em ltima anlise a destruio da estrutura de equilbrio que constri um ser vivo superior, ou seja, a ruptura de sua unidade: um processo irreversvel, ligado a leso de um rgo fundamental; por ltimo, a morte celular, por erro de programao ou mutilao de origem acidental (...) (THOMAS, 1983:40, traduo minha).

    Thomas no poderia ter feito uma descrio mais precisa da morte em termos organicistas, clnicos, biolgicos e celulares, que concorda com o que um dicionrio mdico estadunidense diz sobre a morte21:

    Morte: O fim da vida; a cessao permanente das funes corporais vitais, como manifestada em humanos pela parada cardaca, a ausncia de

    18 DURKHEIM, Emile. O suicdio. 1897. 19 THOMAS, Louis-Vincent. Antropologa de la muerte. 1983, p.206. 20 Ibidem, 195-249. 21 death. (n.d.) The American Heritage Medical Dictionary. (2007). Retrieved June 28 2014 from http://medical-dictionary.thefreedictionary.com/death.

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    respirao espontnea, e morte cerebral (traduo minha).

    Ao tomar a noo de morte da medicina enquanto um matter of fact (LATOUR, 2004) deste campo cientfico, Louis-Vincent Thomas acaba tornando a perspectiva cientfica da biologia quela que define a noo de vida, morte, e at mesmo a noo de pessoa na sua antropologia tanatolgica. A definio de pessoa passa a ser a de um indivduo, que (1) um organismo (ou corpo) e um coletivo de clulas que codificam informaes, e que caso ocorra erro de programao, pode implicar em morte; e tambm, o indivduo (2) uma srie de funes corporais, que quando no funcionam mais como de forma esperada como atravs da parada cardaca, ausncia de respirao espontnea e morte cerebral , implicam no fenmeno da morte. Ao reiterar as palavras de Louis-Vincent Thomas, a morte biolgica a destruio da estrutura de equilbrio que constri um ser vivo, a ruptura de sua unidade (THOMAS, 1983:40), e o indivduo entendido enquanto informaes codificadas e uma srie de funes especficas para o funcionamento.

    Desta forma, uma vez que Louis-Vincent Thomas prope as teorias biolgicas enquanto sendo as definidoras da noo de indivduo e morte para a antropologia, se torna necessrio compreender o que so as estrutura[s] de equilbrio que constri[em] um ser vivo. O ser vivo um organismo, que constitudo de mltiplas clulas que trabalham conjuntamente para a manuteno/funcionamento do todo, que o organismo. Para melhor apresentar a teoria celular das cincias biolgicas, eminente a necessidade de buscar na obra de Georges Canguilhem como um ponto de partida para esta anlise terica, notada a importncia da sua obra para a compreenso da constituio da biologia enquanto cincia. No clebre livro O conhecimento da vida (1952/2012), o filsofo e mdico Georges Canguilhem afirma que a teoria celular o aspecto fundamental da epistemologia das cincias da vida. Canguilhem diz que o Trait dHistologie (1904) de Prenant, Bouin e Maillart, a primeira obra clssica que fez penetrar a teoria celular no universo acadmico (CANGUILHEM, 2012:71). Desde que este livro considerado uma obra inaugural e que antecipava noes atuais das cincias da vida, Canguilhem cita uma passagem de Prenant que diz que o carter de individualidade que domina na noo de clula, ele basta inclusive para a definio desta. Clulas so consideradas indivduos enquanto fechadas em si mesmas. Canguilhem seleciona como concluso para a definio de clula que:

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    As unidades individuais podem, por sua vez, ser de tal ou tal grau. Um ser vivo nasce como clula, indivduo-clula; depois, a individualidade celular desaparece no indivduo ou pessoa, formado de uma pluralidade de clulas, em detrimento da individualidade pessoal; esta, por sua vez, numa sociedade de pessoas, pode ser apagada por uma individualidade social. O que acontece quando se examina a srie ascendente dos mltiplos da clula, que so a pessoa e a sociedade, reencontrado para os submltiplos celulares: as partes da clula, por sua vez, possuem um certo grau de individualidade em parte absorvida por aquela mais elevada e mais potente da clula. De alto a baixo existe a individualidade. A vida no possvel sem individuao daquilo que vive (CANGUILHEM, 2012:71).

    Esta descrio disposta por Georges Canguilhem apresenta a perspectiva celular-organicista que fundamenta as noes das cincias da vida na atualidade, e at mesmo fundamenta a antropologia tanatolgica proposta por Louis-Vincent Thomas. Desde que a Alcor encontra nesta mesma perspectiva das cincias da vida um meio de fundamentar epistemologicamente sua prtica da crinica, como a Alcor explica a sua noo vida e morte?

    2.2 A NOO DE MORTE DA ALCOR

    Na pgina da Alcor O que a crinica, a Alcor diz que a

    morte real ocorre quando a estrutura da clula se torna to desorganizada que nenhuma tecnologia pode restaur-la ao seu estado original22. Nesta pgina, a Alcor envia o leitor a um site de publicaes de artigos mdicos diretamente obra do crionicista Ralph Merkle, intitulada The technical feasibility of cryonics (1992). Ralph Merkle um dos inventores da criptografia pblica e pesquisador da rea da nanotecnologia molecular. Este ensaio tido como uma das obras centrais para a fundamentao cientfica e tecnolgica das tcnicas utilizadas na crinica. A criopreservao na Alcor implica na preservao de corpos, cabeas e crebros a baixas temperaturas ao se utilizar da tcnica da 22 ALCOR. What is cryonics? Disponvel em: . Acessado em Setembro de 2014.

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    vitrificao23. Esta tcnica j utilizada na rea da criogenia, que a aplica na preservao do tecido biolgico a baixas temperaturas ao utilizar de solues crioprotetoras, lquidos especiais que so injetados no tecido para auxiliar na sua preservao. Duas das reas de pesquisa da criogenia so a crinica, em que baixas temperaturas so utilizadas para criopreservar pessoas, e a criobiologia, em que baixas temperaturas so utilizadas para criopreservar diversos organismos, como animais, plantas, rgos corporais, mas nunca pessoas. Tcnicas de vitrificao so amplamente utilizadas hoje na preservao de alimentos, bancos de sangue e transplante de rgos. Com o auxilio das solues crioprotetoras, a vitrificao tem a inteno de preservar tecidos biolgicos a baixas temperaturas sem que ocorra a formao de gelo no interior das clulas, e isto o que diferencia a vitrificao do congelamento.

    Ralph Merkle diz que no processo de criopreservao da crinica evita-se a formao de gelo devido ao rpido resfriamento do corpo e a alta concentrao de solues crioprotetoras. O intuito de realizar este procedimento o de evitar a deteriorao do tecido celular do crebro. No caso de congelamento, as clulas cerebrais so danificadas, e as informaes contidas no crebro so totalmente perdidas. Merkle diz que isso causa a morte do indivduo, que entendido enquanto informaes contidas nas clulas cerebrais. Esta exatamente a nica causa de morte de fato dos seres humanos para crionicistas: a perda das informaes contidas no crebro. Esta perspectiva de morte proposta por Ralph Merkle influenciada pela ciberntica clssica de Norbert Wiener, encontrada na obra Ciberntica e sociedade (1970), como ser discutido no quarto captulo da monografia. Logo, Merkle continua ao explicar que as clulas cerebrais podem ser danificadas no apenas ao serem congeladas, mas tambm no caso de morte cerebral, tumores no crebro, no prprio processo de envelhecimento, e tambm com a demncia e a doena de Alzheimer. Esta morte chamada por Merkle de critrio de morte de informao terica (information-theoretic criterion of death) (MERKLE, 1992). Portanto, Merkle diz que a destruio da informao contida no crebro decorrido da deteriorao do tecido cerebral no permitir que o indivduo possa ser reanimado no futuro. A subjetividade do indivduo entendida por Merkle enquanto sendo um ego, um ser que pensa, tem desejos e vontades prprias, e acima de tudo, agncia sobre a sua vida. Merkle aponta que preservar o contedo mental

    23 ALCOR. What is vitrification. Disponvel em: . Acessado em Setembro de 2014.

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    atravs da vitrificao do tecido celular o interesse central da prtica da criopreservao para os crionicistas. Ele ainda diz que caso ocorra deteriorao do tecido cerebral no processo de criopreservao de um indivduo, que pode acontecer pela demora que a empresa crionicista pode ter para poder tratar do corpo recm-morto, ao retira-lo do hospital e transportar para uma empresa crionicista, ou at mesmo no caso das tecnologias do futuro no serem capazes de lidar com os danos que so causados no crebro aps a morte do paciente no hospital, o critrio de morte de informao terica decretado pelos prprios crionicistas. Portanto, importante destacar a importncia da noo de informao para a Alcor, mas vez que informaes contidas no crebro definem o que o indivduo, e desta forma, fundamentam o que estar vivo ou morto para a crinica.

    Entretanto, a Alcor indica que necessrio levar em considerao o fato de que cada caso de criopreservao um caso especfico, e as variveis para uma preservao bem sucedida so muitas. Para ilustrar um caso de criopreservao, a primeira tentativa de criopreservar e manter algum criopreservado foi descrita pelo crionicista Michael Perry nas pginas da Alcor intituladas de Suspenses que falharam24 e A primeira suspenso25. Perry descreve que no ano de 1966 uma mulher foi criopreservada por uma organizao crionicista que no existe mais, a Cryonics Society of California. Ela havia sido criopreservada alguns dias aps ter morrido. Os crionicistas da poca no deixaram de observar que a mulher havia sido criopreservada sob condies adversas, desde que no houve a perfuso das solues crioprotetoras no corpo dela imediatamente aps a morte clnica ter sido decretada; assim sendo, eles decidiram que o tecido cerebral j havia sido muito danificado devido longa espera para a realizao da criopreservao, e no havia mais como recuperar as informaes cerebrais da mulher, pois suas clulas cerebrais j haviam sido danificadas26 27. De acordo com a noo de morte da Alcor cunhada pelo crionicista Ralph Merkle, o critrio de morte de informao terica, a 24 ALCOR. Suspension Failures. Disponvel em: . Acessado em Dezembro de 2014. 25 ALCOR. The first suspension. Disponvel em: . Acessado em Dezembro de 2014. 26 ALCOR Life Extension Foundation. Freeze-Wait-Reanimate. 1990. 27 ALCOR. The first suspension. Disponvel em: . Acessado em Dezembro de 2014.

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    mulher j estava morta, pois suas clulas cerebrais haviam sido severamente danificadas por ela ter permanecido dias sem tratamento adequado. Dentro de alguns meses aps ter sido criopreservada, a mulher foi descongelada e enterrada por parentes28.

    * * *

    Ainda na pgina Problemas da crinica29, a Alcor aponta

    que incapaz de verificar o resultado final das criopreservaes realizadas no presente, pois o desfecho dos procedimentos atuais s poder ser avaliado dcadas ou sculos no futuro. Por fim, a Alcor admite que a crinica uma prtica experimental; portanto, caso crionicistas cheguem concluso de que as informaes no crebro estejam definitivamente comprometidas e no haja mais um indivduo para ser reanimado no futuro, a Alcor ir simplesmente desligar suas garrafas trmicas e eliminar os corpos da maneira que os prprios pacientes criopreservados decidiram que seriam eliminados no contrato que firmaram com a Alcor, seja atravs de enterro, cremao, ou a doao do corpo para pesquisa cientfica.

    Desta forma, preservar as clulas cerebrais atravs da criopreservao tudo o que crionicistas podem fazer na esperana de voltarem a viver no futuro. A expectativa dos crionicistas nas tecnologias futuras justifica o fato de muitos crionicistas criopreservarem apenas sua cabea ou crebro, prtica chamada de neuropreservao. Ralph Merkle concluiu seu artigo ao dizer que: Se as estruturas no crebro que codificam memria e personalidade tiverem sido to quebradas que no mais possvel em princpio as recuperar, ento a pessoa est morta (MERKLE, 1992:9, traduo minha).

    Entretanto, necessrio assinalar que no apenas a criopreservao o aspecto definidor do sucesso da preservao do indivduo na Alcor, mas tambm, como descrito por Merkle anteriormente, os indivduos tambm morrem se a sade dos seus corpos no for preservada antes da morte. Como o autor havia assinalado acima, no caso de morte cerebral, tumores no crebro, demncia, doena de Alzheimer ou quaisquer danos ao crebro que comprometam a estrutura cerebral, o indivduo est morto. Desde que o corpo entendido enquanto (1) um conjunto de clulas e (2) realizam

    28 Idem. 29 ALCOR. Problems associated with cryonics. Disponvel em: . Acessado em Dezembro de 2014.

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    funes que sustentam o indivduo, quais so os cuidados que crionicistas tm de manter sobre seus corpos como forma de se prepararem para um dia serem criopreservados? 2.3 O CORPO CRINICO

    Ao retomar sinteticamente o que foi pontuado na literatura

    antropolgica que j foi analisada at ento, importante assinalar que Marcel Mauss props que o fenmeno da morte ocorre no apenas por razes clnicas, mas tambm em decorrncia da sugesto do social como no caso de feitiaria e dos pecados mortais. Em um segundo momento, Louis-Vincent Thomas tomou a morte fsica/biolgica como um fato universal e descreveu perspectivas sobre o fenmeno da morte em diferentes culturas.

    Em uma proposio mais recente, os antroplogos Annemarie Mol e John Law discutem a questo mdica de como corpos em tenso so mantidos coesos (hung together) pelas redes que os sustentam em seu artigo Embodied action, enacted bodies (2004). No artigo, eles questionam a noo de que seres humanos sabemos que temos e somos corpos ter enquanto categoria de objeto e ser enquanto categoria de sujeito (MOL & LAW, 2004:3). No entanto, eles prope que uma pessoa no se mantm coesa [de hang together, sustentar-se, unido, conectado, interligado] por via de regra: manter-se coeso algo que a pessoa incorporada (embodied person) precisa fazer. A pessoa que falha em fazer isso morre (MOL & LAW, 2004:2). O corpo que feito (done) um corpo que atuado (enacted) (MOL & LAW, 2004:5), ou, constitudo pela maneira como atua e interage com outros atores a todo momento. Portanto, para manter-se vivo, necessrio que o indivduo no apenas tenha um corpo e/ou seja um corpo, mas que faa (construa) seu corpo constantemente. Mol e Law propuseram esta perspectiva como uma maneira de descrever como se fazem os corpos de indivduos diabticos e como o uso regrado e preciso da insulina os mantm vivos. A aplicao bem sucedida da insulina depende de que os indivduos sejam capazes de medir (clinicamente) ou sentir (autoconscientemente) o nvel de acar no seu sangue a cada momento. Mol e Law dizem que eles fazem isso ao praticarem autoconscincia (practice self-awareness) de seus corpos e da situao em que se encontram a cada momento (MOL & LAW, 2004:7). Esses indivduos sentem seus corpos ao perceberem a atuao (ou tenso) de seus corpos a todo o momento. Portanto, o corpo atua (acts) ao demonstrar sintomas de que est em tenso e o corpo atuado (enacted) pelo prprio

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    indivduo, pela insulina ou pelos agentes clnicos e hospitalares (MOL & LAW, 2004:10).

    As proposies tericas de Mol e Law podem auxiliar na anlise das descries de como os crionicistas da Alcor mantm seus corpos coesos/vivos. Para os crionicistas da Alcor, estar preparado para ser criopreservado de extrema importncia para garantir uma preservao ideal. Portanto, o que um corpo ideal para ser criopreservado pela Alcor?

    As descries etnogrficas produzidas pela antroploga estadunidense Tiffany Romain durante os dois anos em que ela permaneceu na Alcor demonstram bem como crionicistas cuidam da sua sade e se preparam para a morte fsica/biolgica que pode acontecer a qualquer momento. Na etnografia Extreme life extension (2010), Tiffany Romain escreve que para os crionicistas, desde que a morte entendida enquanto uma doena a ser curada30, eles adotam vrias medidas para cuidar da sua sade antes de serem criopreservados, tanto para expandirem seu tempo de vida enquanto vivos, quanto para estarem saudveis para quando forem criopreservados. Um corpo saudvel um corpo que no causa ou causar a destruio das clulas cerebrais. Ento, uma vez que a morte vista como uma coleo de doenas que acabam por terminar com a vida do indivduo, crionicistas consideram que deve ser possvel curar a morte ou as vrias causas da morte clnica como todas as outras doenas que tm sido curadas pelos avanos da biomedicina e biotecnologia31.

    Romain aponta que preparar-se desde jovem para ser criopreservado faz parte da vida dos crionicistas. Um corpo ideal um corpo que pode viver por bastante tempo na espera do desenvolvimento de tecnologias que possibilitem a imortalidade fsica/biolgica; ou, que, caso o crionicista tenha que morrer, ele deve morrer em condies ideais para ser criopreservado com qualidade. Um corpo que morreu e demorou dias para ser criopreservado no um corpo ideal para ser reanimado no futuro devido aos vrios danos que foram causados ao tecido celular devido decomposio do corpo. Um corpo que morreu aps ter vivido anos sob o efeito da doena de Alzheimer tambm no um corpo ideal para ser criopreservado, pois grande parte das clulas cerebrais que codificam a personalidade do indivduo j foram

    30 ALCOR. Prospects of a cure for death. Disponvel em: . Acessado em Setembro de 2014. 31 Idem.

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    destrudas. Romain ainda diz que crionicistas se exercitam e se alimentam bem no apenas para estarem saudveis, mas para evitarem mortes prematuras, doenas e debilidades no corpo (ROMAIN, 2010:206). Muitos crionicistas tomam suplementos e vitaminas contra o envelhecimento e tambm praticam dietas de restrio de calorias, uma prtica que j mostrou ser eficaz no prolongamento da vida (ROMAIN, 2010:206). Entretanto, ser mesmo que possvel para os crionicistas da Alcor fazerem estes corpos ideais para serem criopreservados?

    Para a Alcor, desde que os efeitos do envelhecimento esto entre as principais causas da morte dos crionicistas, o corpo que envelhece morre por no ser capaz de manter sua estrutura informacional coesa. Assim como Mol e Law propem, o corpo doente um corpo em contnua tenso (MOL & LAW, 2004:16). Ao considerar a proposio de Heidegger que o ser humano um ser-para-a-morte, todos os seres humanos vivem a tenso de cuidar das prprias vidas ao evitar a morte e a tenso do corpo que se debilita no envelhecimento.

    Entretanto, o envelhecimento e morte enquanto doenas faz com que crionicistas tomem diferentes atitudes sobre os seus corpos e as suas vidas, como as descries da Tiffany Romain iro apontar logo adiante. Antes disso, o livro A solido dos moribundos (1982) de Norbert Elias pode ser um meio interessante de comparar a noo de morte da Alcor e noes de morte que so populares no Ocidente. Elias diz que no Ocidente a morte afastada do debate social, negada (ELIAS, 1982:48-49), e apenas discutida no ambiente mdico. Ele diz que as pessoas resistem ideia do envelhecimento e da morte, pois envelhecer ficar tutelado e potencialmente mais dependente dos outros, perdendo a agncia que possua outrora. Neste caso, a atitude dos crionicistas perante a morte oposta a esta perspectiva. Os crionicistas da Alcor no apenas discutem a morte como afirmam a necessidade de morrer para poderem ser criopreservados e trazidos de volta vida quando as tcnicas da medicina propiciarem a reanimao. Se para Elias a morte decorrida do envelhecimento aguardada pela pessoa, para os crionicistas a realizao do suicdio enquanto forma de ter uma morte sob condies ideais representa a possibilidade de vida no futuro. Acima de tudo, a tutela ou agncia da Alcor sobre os crionicistas de importncia vital para os mesmos, pois dependem da Alcor para sua vida ser preservada. E desta forma, possvel concluir que para os crionicistas, afirmar a morte tambm afirmar a vida. Ento, neste constante embate em prol de sustentar e preservar suas vidas, ser um crionicista estar constantemente se preparando para ser criopreservado.

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    Ainda em relao ao envelhecimento, corpos em constante tenso no podem ser corpos ideais para serem criopreservados; afinal, para a Alcor, o corpo que envelhece que o corpo humano , um corpo (que ) doente por estar em constante envelhecimento. Ento, ao tomar emprestado as palavras de Canguilhem novamente, o autor prope que:

    Achamos que a medicina existe como arte da vida porque o vivente humano considera, ele prprio, como patolgicos e devendo portanto serem evitados ou corrigidos certos estados ou comportamentos que, em relao a polaridade dinmica da vida, so apreendidos sob forma de valores negativos. Achamos que, desta forma, o vivente humano prolonga, de modo mais ou menos lcido, um efeito espontneo, prprio da vida, para lutar contra aquilo que constitui um obstculo a sua manuteno e a seu desenvolvimento tomado como normas (CANGUILHEM, 2012).

    Para que o corpo crinico permanea vivo, necessrio que o crionicista esteja perpetuamente praticando autoconscincia sobre a situao em que se encontra, pois, um crionicista precisa garantir a coeso de seu corpo na constante possibilidade de morte. De certa forma, a prtica da autoconscincia uma prtica de constante autodomesticao. a domesticao de um corpo que objetificado pelos crionicistas. tambm de suma importncia para a manuteno deste corpo que no momento em que a morte fsica/biolgica acontecer a equipe de apoio da Alcor j esteja preparada para iniciar os procedimentos de criopreservao. A morte deve ser mantida em vigilncia a todo o momento. De certa forma,

    Ao levar em conta a proposio de Heidegger de que o ser humano um ser-para-a-morte, um crionicista acima de tudo um ser que vive-proativamente-para-a-morte, desde que precisa preparar o seu corpo para a morte e a criopreservao a todo instante. Desde que os corpos dos crionicistas atuam envelhecimento, assim como os corpos diabticos atuam hipoglicemia (MOL & LAW, 2004:12), estes corpos no so um todo coerente; ao invs disso, so um agregado de tenses (MOL & LAW, 2004:14). Entretanto, Mol e Law apontam ainda que manter uma combinao equilibrada ideal para lidar com os efeitos da atuao do problema que no caso da crinica o envelhecimento que leva a

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    morte insustentvel (MOL & LAW, 2004:14). Um exemplo claro da insustentabilidade dos casos de mortes ideias da Alcor que mais de cinquenta por cento dos casos de morte de crionicistas acontecem sem que a equipe tcnica tenha sido enviada, e o efeito da deteriorao do corpo causa grave dano celular devido a horas de permanncia do corpo em temperatura ambiente. Ento, para ilustrar melhor estas situaes no ideais, a Alcor diz que crionicistas j se perderam no oceano, outros desapareceram completamente, e dois membros de organizaes crionicistas morreram em 2001 na queda dos prdios do World Trade Center, sendo que um deles era um policial realizando operaes de salvamento. Portanto, o corpo que feito no inteiro e nem fragmentado, mas ao invs disso, ele tem uma configurao complexa (MOL & LAW, 2004:17). Mol e Law concluem a sua proposio ao dizerem que:

    O que isto sugere que a suposio de que ns temos um corpo coerente ou somos um todo esconde muito trabalho. Este trabalho que algum tem que fazer. Voc no tem, voc no , um corpo-que-se-mantm-coexo, naturalmente, todo por si mesmo. Manter-se inteiro uma das tarefas da vida. Ela no dada mas deve ser alcanada, tanto abaixo da pele quanto alm, na prtica (MOL e LAW, 2004:16, traduo minha).

    2.4 AGNCIA E HIBRIDISMO A parte anterior foi finalizada com a afirmao de Mol e

    Law de que manter-se inteiro uma das tarefas da vida. Ela no dada mas deve ser alcanada, tanto abaixo da pele quanto alm, na prtica (MOL & LAW, 2004:16). A vida do crionicista s pode ser preservada pela Alcor se ela mantida coesa em meio tenso do ato de viver e envelhecer. A forma como a coeso praticada pelos crionicistas : (1) atravs de praticar a autoconscincia como forma de observar a tenso do corpo e cuidar do mesmo ou domestic-lo constantemente ao evitar a morte; e tambm, (2) atravs do suporte agenciamento que a Alcor d para os crionicistas aps a morte clnica e legal terem sido decretadas. Sem a existncia da Alcor, os crionicistas no poderiam ser preservados para serem reanimados no futuro; paralelamente, a Alcor tambm no existiria sem os crionicistas para utilizarem de seus servios. Desta forma, Tiffany Romain acrescenta na sua descrio que crionicistas no apenas se esforam para manter a sade dos seus corpos em dia, mas eles

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    tambm precisam buscar por meios de garantir que aps morrerem seus corpos sero agenciados pela Alcor para serem criopreservados. Os crionicistas necessitam de grandes cuidados no apenas antes da morte, mas aps a morte tambm. O momento em que a Alcor passa a agenciar os seus corpos legalmente quando a morte legal decretada, sempre em decorrncia da morte clnica j ter sido decretada por um mdico. Enquanto uma pessoa jurdica, a Alcor precisa utilizar diversos artifcios legais para poder agenciar os corpos dos crionicistas post-mortem. A prtica da crinica no de fato legitimada pelos meios legais, em decorrncia de ela no ser legitimada pela medicina tradicional tambm. A crinica no legitimada pela medicina por ser uma prtica que ainda desconhece do resultado final, mesmo sendo ela baseada em tcnicas da medicina. Portanto, quais so os conselhos que a Alcor d aos crionicistas para dar eficincia no agenciamento dos seus corpos aps a morte clnica e legal serem decretadas?

    A Alcor aponta na pgina Problemas da crinica32 que para um crionicista, os preparativos para a criopreservao devem ter maior impacto na suas vidas do que ter uma casa ou investimento em aes, por se tratar de uma questo vital33. Portanto, tornar-se um membro da organizao primordial para garantir que no momento em que a morte clnica ocorrer a Alcor j esteja acionada e preparada para realizar os procedimentos de criopreservao. A Alcor explica detalhadamente os meios legais que devem ser viabilizados pelos membros para que a organizao possa lidar com os seus corpos no link O status legal dos pacientes da crinica34. Ela aponta que para que o procedimento de obteno dos corpos pelos tcnicos em standby e o transporte at a organizao estejam de acordo com a lei vigente dos Estados Unidos ou no caso, do estado do Arizona, onde ela est situada , estes devem seguir o critrio legal do ato de presente anatmico (anatomical gift act)35. Este estatuto garante a habilidade individual e o direito de algum doar o seu corpo ou rgos para organizaes que realizem pesquisas mdicas. Os meios legais no estado do Arizona no possuem um cdigo de leis que regulamentem a prtica da crinica especificamente. Ento, para que a Alcor seja capaz de realizar os procedimentos de criopreservao da

    32 ALCOR. Problems associated with cryonics. Disponvel em: . Acessado em Dezembro de 2014. 33 ALCOR. ALCOR Membership Information and Enrollment Instructions. Disponvel em: . Acessado em Setembro de 2014. 34 ALCOR.The legal status of cryonics patients. Disponvel em: . Acessado em Setembro de 2014. 35 Idem.

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    melhor forma possvel, os crionicistas tem de se adaptar s leis vigentes nos Estados Unidos para poderem lidar com a situao legal dos membros da organizao quando mortos. A organizao depende da seguinte determinao:

    7150.5 (a) Um indivduo que tenha ao menos 18 anos de idade deve fazer uma doao anatmica por quaisquer propsitos declarados na subdiviso (a) da Seo 7153, limite um presente anatmico a um ou mais destes propsitos, ou recuse a fazer um presente anatmico36 (traduo minha).

    () 7153 (a) As seguintes pessoas podem se tornar doadoras de presentes anatmicos pelo propsito declarado: (1) um hospital, mdico, cirurgio, ou agncia de obteno de corpos, para transplante, terapia, educao mdica ou dental, pesquisa, ou avano de cincias mdicas ou dentais37 (traduo minha).

    Apenas atravs da doao do prprio corpo para a Alcor que um membro que aspira ser criopreservado consegue que seu corpo seja submetido s prticas da crinica. Outro aparato legal que a Alcor aponta que seja utilizado para apoiar o agenciamento dela sobre o crionicista o direito de controle e disposio de restos (right to control disposition of remains). Seja este firmado oralmente ou atravs da escrita, a pessoa ainda viva pode decidir o que ser feito com o seu corpo depois de morto. Enquanto ainda vivos, crionicistas assinam documentos que permitem que outros atores os agenciem aps mortos mediante documentos legais que representem qual era a sua vontade em vida. Desta forma, possvel notar que a noo de morte no unnime, mas ativada em determinados momentos por determinados atores. Quando um mdico percebe que um paciente apresenta todos os sintomas de morte clnica, como a ausncia de batimento cardaco, a parada da respirao e a morte cerebral, ele decreta a morte clnica. Desta determinao, o indivduo que

    36 Verso original da pgina da Alcor: 7150.5 (a) An individual who is at least 18 years of age may make an anatomical gift for any of the purposes stated in subdivision (a) of Section 7153, limit an anatomical gift to one or more of those purposes, or refuse to make an anatomical gift. 37 Verso original da pgina da Alcor: 7153 (a) The following persons may become donees of anatomical gifts for the purposes stated: (1) a hospital, physician, surgeon, or procurement organization, for transplantation, therapy, medical or dental education, research, or advancement of medical or dental sciences37.

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    antes era tido como vivo, agora tido como clinicamente morto. Isso faz com que as redes que o indivduo mantinha enquanto vivo sejam transformadas depois de o status de morto ter sido ativado, decorrente da determinao do mdico. O mdico, desde que imbudo de poder simblico (BOURDIEU, 1998), tem o poder de determinar a situao ontolgica de um indivduo ao escrever a sua assinatura em uma folha de papel. Como num passe de mgica, o indivduo passa de ser tratado como um sujeito-pessoa-humano-vivo para um objeto-corpo-no-humano-morto que pode (e deve) ser agenciado por outros atores. E, logo aps a morte clnica, a morte legal do indivduo automaticamente decretada. A atuao do indivduo perante suas redes muda aps morto. Um morto no fala atravs de palavras que saem da sua boca, mas pode apenas falar atravs de documentos que tenham sido deixados com alguma outra pessoa para agir em nome deste. Entretanto, importante assinalar que para a noo de morte da Alcor, mesmo aps a morte clnica e legal, o indivduo ainda no considerado morto. Ele pode ser mantido vivo atravs da tcnica que a Alcor chama de criopreservao, que ser descrita e analisada detalhadamente no prximo captulo.

    Portanto, ao fazer uma apropriao das proposies tericas de Bruno Latour em seu livro Jamais fomos modernos (1994), possvel considerar neste cenrio post-mortem da crinica que o corpo se torna um objeto (LATOUR, 1994), passvel de ser mobilizado e manuseado mediante papis que contm signos assinaturas que tem importncia simblica e agncia no meio legal. Um indivduo, enquanto corpo, s pode ser manuseado agenciado pela Alcor no exato momento em que considerado morto, afinal de contas, mortos no podem agir por vontade prpria, eles precisam ser agenciados por outrem. Em relao a esta questo, Annemarie Mol e John Law citam Mark Sullivan, que descreve a perspectiva de um mdico sobre a noo de corpo enquanto objeto e sujeito enquanto corpo, que diz que:

    Para [o doutor] Bichat, o sujeito mdico e o objeto mdico no eram duas substncias diferentes no mesmo indivduo, mas dois indivduos diferentes: um vivo e outro morto. Aquele que conhece e aquilo que conhecido so epistemologicamente distinguidos com o mdico assumindo a posio daquele que conhece e o paciente/defunto a posio daquele que conhecido (MOL e LAW, 2004:3, traduo minha).

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    Em relao a um paciente/cadver recm-decretado clinicamente morto, este sujeito-corpo um paciente e vivo, desde que um ser de natureza social. Entretanto, enquanto corpo-objeto, o paciente um cadver e morto, pois um ser de cultura natural. Desde que o mdico citado por Mol e Law distingue ontologicamente o universo natural e social atravs de sua epistemologia, um mesmo indivduo acaba sendo tratado pelo mdico enquanto duas entidades diferentes, uma de carter social e outra de carter natural, mesmo quando entendido enquanto sendo apenas um s indivduo. O corpo recm-morto um hbrido de natureza e cultura que mantm relaes incomensurveis com outros atores (LATOUR, 1994). Portanto, atravs desta perspectiva clnica que trata assimetricamente a existncia humana, o cadver, ser de ordem natural, pode ser manipulado/agenciado como um objeto por ser considerado um no-humano (LATOUR, 1994). No entanto, o paciente, ser de ordem cultural, ainda possui agncia sobre sua existncia por ser considerado um ser humano. Atores e agentes so mobilizados pela Alcor para permitir que crionicistas possuam agncia sobre suas vidas e a Alcor tenha agncia sobre suas mortes logo depois de serem considerados mortos por mdicos e legisladores.

    atravs desta atitude humana de organizar atores sociais ontologicamente enquanto sendo humanos ou no-humanos que permite a Alcor agenciar crionicistas; porm, a Alcor s pode agenciar crionicistas enquanto cadveres/mortos no-humanos, e no enquanto pessoas/vivas humanas. Desta forma, desde que a Alcor maneja apenas com cadveres, a crinica comumente considerada um ritual funerrio. Oliver Kruger, pesquisador de estudos sociais da religio, prope considerar a crinica uma prtica funerria alternativa em seu artigo The suspension of death (2010), pois os corpos vitrificados da crinica so de pessoas j consideradas mortas pela medicina atual. O autor segue ao dizer que enquanto prtica funerria, a crinica promete uma alternativa vida ps-morte pregada por religies como o cristianismo, s que atravs de uma concepo materialista, como apontam Bryant e Snizek, que a chamam de uma religio substituta, uma religio para os devotos da cincia e da fico cientfica (KRUGER, 2010:12; BRYANT & SNIZEK 1973:58). devido instabilidade ontolgica dos corpos humanos que possibilita a produo das redes que constituem os crionicistas criopreservados. Crionicistas encontram na crinica um meio de manter algumas de suas redes preservadas e agncia sobre sua vida mesmo depois de mortos.

    Portanto, ao considerar a crinica enquanto um ritual praticado pelos crionicistas entretanto, no apenas um ritual funerrio

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    como proposto por Oliver Kruger acima , caso a crinica seja analisada enquanto um ritual de passagem, nos termos de Arnold van Gennep, como proposto em seu livro Os ritos de passagem (1978), este captulo que tem descrito a preparao do crionicista para a criopreservao considerado a preparao para a separao, ou, quando agentes fornecem meios para retirar o indivduo do seu estado ontolgico atual e o colocar em um estado marginal, liminar. A permanncia do corpo em estado de vitrificao atravs das tcnicas de criopreservao considerada a margem ou a liminaridade, o momento em que a identidade do indivduo est em processo de transformao. E, por fim, a reanimao da criopreservao considerada a agregao, ou o momento em que o indivduo foi completamente transformado e agora existe em outro estado ontolgico.

    2.5 CONECTIVIDADE E VIDA

    Para concluir este captulo, a Alcor ainda prope outra estratgia legal que membros devem conduzir para garantir que seus corpos no sejam violados aps mortos. fortemente indicado que aqueles que pretendem ser criopreservados assinem um certificado chamado de objeo religiosa autpsia (religious objection to autopsy)38. Ao objetarem ser conduzidos a fazer autopsias depois de mortos, membros que pretendem ser criopreservados tentam impedir autopsias sobre seus corpos ao se utilizarem deste artifcio legal. A Alcor refora a importncia de que crionicistas impeam a autpsia de seus corpos a todo custo e assinem o documento mesmo no sendo de fato religiosos39. Autpsias podem demorar muito tempo para serem realizadas e podem causar danos ao corpo, e acima de tudo, retardar a aplicao das tcnicas de resfriamento sobre os corpos mortos.

    Tiffany Romain ainda assinalou em sua etnografia que na tentativa de impedir qualquer controle do governo sobre seus corpos, quase todos os crionicistas vestem uma medical identification tag uma etiqueta, um bracelete, uma corrente de pescoo ou algo na roupa , que comunica seu desejo de serem criopreservados40. Ela apontou o caso de um crionicista que encontrou uma forma inusitada de sinalizar o que

    38 ALCOR. The legal status of cryonics patients. Disponvel em: . Acessado em Setembro de 2014. 39 ALCOR. Protecting yourself in medical emergencies: legal options for Alcor members in the United States. Disponvel em: . Acessado em Setembro de 2014. 40 ROMAIN, Tiffany. Extreme life extension. 2010.

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    Latour (et al.) cita em seu artigo The whole is always smaller than its parts (2012) uma passagem de Gabriel Tarde, em que ele diz que:

    (...) no se pode dizer que agentes, falando francamente, interagem uns com os outros: eles so uns aos outros, ou, melhor, eles so donos uns dos outros para falar a verdade, uma vez que cada item listado para definir uma entidade pode tambm ser um item na lista definindo outro agente (Tarde, 1903; 1895/1999). Em outras palavras, associao no o que acontece depois de indivduos terem sido definidos com algumas propriedades, mas o que caracteriza entidades em primeiro lugar (Dewey, 1927). (LATOUR, 2012:7, traduo minha).

    A vida dos crionicistas depende que estes se mantenham conectados a outros atores. A ausncia de conectividade a morte. O filsofo Richard Doyle prope sobre o corpo crinico que:

    () qualquer subjetividade crinica est sempre j se tornando congelada. Ela entrou em uma relao com um futuro, uma organizao crionicista, e um domnio monumental de contingncias incalculveis que devem ser continuamente gerenciadas, at mesmo disciplinadas. Portanto o amuleto vestido ao redor do pescoo pelo membro crionicista um ndulo em uma rede de prticas monumentais: helicpteros para transporte corporal, a boa vontade prometida pelos parentes, o futuro mesmo, vazam para fora de um colar (DOYLE, 2003:66, traduo minha).

    Atravs do registro da tatuagem o crionicista busca ter alguma agncia aps sua morte. E, aps o que foi discutido neste captulo, possvel perceber que o momento da morte um momento de grande importncia para a prtica crionicista da Alcor. Durante toda uma vida, um crionicista se esfora para manter seu corpo coeso para estar preparado para o momento da morte. A organizao Alcor tambm se mobiliza para estar pronta para atuar no exato segundo em que a morte clnica for pronunciada pelo mdico. O que ser feito do corpo do crionicista nas horas logo aps a morte o que determinar a

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    possibilidade de sucesso para a sua reanimao no futuro, ento extrema destreza requisitada neste momento.

    Desta forma, no prximo captulo ser descrito os procedimentos realizados para a criopreservao de crionicistas na Alcor e o carter ontolgico liminar dos corpos vitrificados. Tambm, ser descrito como a Alcor agencia os corpos dos crionicistas logo aps as suas respectivas mortes.

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    3. MARGEM: OS PROCEDIMENTOS DA CRIOPRESERVAO

    Fear not death, for the sooner we die, the longer we shall be immortal (Benjamin Franklin).

    3.1 MORRER PARA VIVER

    No presente captulo ser descrito e analisado os procedimentos da criopreservao da Alcor e a questo da cientificidade da crinica. Ao retornar para a controvrsia que abriu a discusso no captulo anterior, essencial lembrar que a Alcor havia apontado trs questes que justificam a prtica da crinica na pgina O que crinica41:

    1) A vida pode ser parada e recomeada se sua estrutura

    bsica preservada; 2) Vitrificao (no congelamento) pode preservar a

    estrutura biolgica; 3) Mtodos para reparar a estrutura a nvel molecular

    podem ser previstos agora.

    A primeira assertiva informa que a vida pode ser parada e recomeada se sua estrutura bsica preservada e foi discutido no captulo passado enquanto um matter of concern (LATOUR, 2004) da Alcor. Ela tida como uma questo de interesse central para a crinica na Alcor. Para a Alcor, as suas prticas s podem ser realizadas se esta proposio sustentada por ela enquanto fato. J a segunda assertiva informa que a vitrificao [e no congelamento] pode preservar a estrutura biolgica. A estrutura biolgica que a Alcor tenta preservar a estrutura cerebral, como explicado pelo crionicista Ralph Merkle em seu artigo The technical feasibility of cryonics (1992). O que h de importante nas clulas cerebrais a considerao de que nelas so codificadas as informaes memrias, vontades, pensamentos que constituem o que o indivduo realmente para esta perspectiva da crinica.

    Para dar incio a discusso sobre a preservao das informaes contidas no crebro, na pgina O caso Thomas Donaldson, a Alcor descreve que em 1988, o crionicista Thomas Donaldson foi diagnosticado com astrocitoma, um tipo de tumor cerebral. Apesar da

    41 ALCOR. What is cryonics? Disponvel em: . Acessado em Setembro de 2014.