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Raça e história Claude Lévi-Strauss Tradução e notas de René Decol Nota do tradutor Escrito para uma série da Unesco de dicada a combater o racismo e pu blicado em 1952, Raça e história foi logo reconhecido como um dos textos mais importantes de Lévi-Strauss . Neste ensaio são discutidas questões fundamentais sobre a história, as culturas e as civilizações, na visão privilegiada do grande antropólogo francês. Leitura obrigatória em cursos de ciências sociais, foi publicado no Brasil em 1970 em traduçã o que contem muitos erros . 1 A versão que se segue é uma tradução integralmente nova, feita a partir do original franc ês, e da versão para o inglês. Além de corrigir vários erros de tradução e revisão, foi feito um esforço para tornar a lei tura mais fácil, se m no entanto comprometer a ma gistral prosa do autor. Nos momentos onde foi necessário optar entre a fidelidade e a clareza, no entanto, optou-se pela úl tima, seguindo-se assim a concepção da edição em inglês. Há muitas maneiras atr avés das quais este ensaio pode ser li do. Uma del as é como guia para um passeio pela história das civili zaç ões (no plural). Poucos pensadores, fora Lévi-Strau ss, estariam capac itados para uma tarefa dessa e nvergadura em pouco mais de 60 páginas. Para facilitar este ti po de le itura, foram acrescentadas na da menos do que quarenta notas explicativas e links para recursos na internet. Por fim, a seção Recursos na internet traz referências a mapas e linhas do te mpo que podem tornar a sua leitura mais rica, principalmente para os alunos do Ensino Médio. 1  Race et Histoire foi publica do na coleção Le racisme devant La Science, © Un esco 1960. Publicado no Brasi l na coletânea em dois volumes Raça e ciência, Ed. Perspectiva, 1970. Além de ss a, atual mente há outra edição disponível, publicada por uma editora portuguesa (que é a mesma da coleção Pensadores da Abril). Como a intenção da coleção era atingir um público amplo, a própria Unesco preparou as traduções. A versão em português é muito acidentada, para dizer o mínimo: há erros crassos de tradução e de revisão. 1

Raça e história

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  • 5/28/2018 Raa e histria

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    Raa e histria

    Claude Lvi-Strauss

    Traduo e notas de Ren Decol

    Nota do tradutor

    Escrito para uma srie da Unesco dedicada a combater o racismo e publicado em 1952, Raa e histria

    foi logo reconhecido como um dos textos mais importantes de Lvi-Strauss. Neste ensaio so

    discutidas questes fundamentais sobre a histria, as culturas e as civilizaes, na viso privilegiada

    do grande antroplogo francs. Leitura obrigatria em cursos de cincias sociais, foi publicado no

    Brasil em 1970 em traduo que contem muitos erros .1

    A verso que se segue uma traduo integralmente nova, feita a partir do original francs, e da

    verso para o ingls. Alm de corrigir vrios erros de traduo e reviso, foi feito um esforo para

    tornar a leitura mais fcil, sem no entanto comprometer a magistral prosa do autor. Nos momentos

    onde foi necessrio optar entre a fidelidade e a clareza, no entanto, optou-se pela ltima,

    seguindo-se assim a concepo da edio em ingls.

    H muitas maneiras atravs das quais este ensaio pode ser lido. Uma delas como guia para um

    passeio pela histria das civilizaes (no plural). Poucos pensadores, fora Lvi-Strauss, estariam

    capacitados para uma tarefa dessa envergadura em pouco mais de 60 pginas.

    Para facilitar este tipo de leitura, foram acrescentadas nada menos do que quarenta notas

    explicativas e links para recursos na internet.

    Por fim, a seo Recursos na internet traz referncias a mapas e linhas do tempo que podem tornar a

    sua leitura mais rica, principalmente para os alunos do Ensino Mdio.

    1Race et Histoirefoi publicado na coleo Le racisme devant La Science, Unesco 1960. Publi cado no Brasi l na

    coletnea em dois volumes Raa e cincia, Ed. Perspectiva, 1970. Alm dess a, atual mente h outra edio

    disponvel, publicada por uma editora portuguesa (que a mesma da coleo Pensadoresda Abril ). Como a

    inteno da coleo era atingir um pblico amplo, a prpria Unesco preparou as tradues. A verso em

    portugus muito acidentada, para dizer o mnimo: h erros crassos de traduo e de reviso.

    1

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fwww.archive.org%2Fdetails%2Fracehistory00levi&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNEDqus-WFKPo-zTKy4V9B87y6KmIghttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FClaude_L%25C3%25A9vi-Strauss&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNGw0zZ1dI0V02d9Oebcfn5N6aSk8Qhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fwww.archive.org%2Fdetails%2Fracehistory00levi&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNEDqus-WFKPo-zTKy4V9B87y6KmIghttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Febookbrowse.com%2Flevi-strauss-claude-race-et-histoire-pdf-d204869615&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNHtLDEdUHHl7TJ6D2Z9HVGXjnTIJghttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FClaude_L%25C3%25A9vi-Strauss&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNGw0zZ1dI0V02d9Oebcfn5N6aSk8Q
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    Raa e histria

    Claude Lvi-Strauss

    Copyright 1960: Unesco

    Copyright 2012 da traduo: Ren Decol

    Sumrio

    1. Raa e cultura

    2. Diversidade das culturas

    3. O etnocentrismo

    4. Culturas arcaicas e culturas primitivas

    5. A ideia de progresso

    6. Histria estacionria e histria cumulativa

    7. Lugar da civilizao ocidental

    8. Acaso e civilizao

    9. A colaborao das culturas

    10. O duplo significado do progresso

    11. Bibliografia

    Recursos na internet

    HiperHistory

    World History Tiimeline

    2

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fwww.fincher.org%2FHistory%2FWorldBC.shtml&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNGTJE1pjpZCnxrWesubHKVnG4a-AQhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fwww.hyperhistory.com%2Fonline_n2%2FHistory_n2%2Fa.html&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNH3jV9-H6AHZ7PSyVo7-T5_4wv6wA
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    Human Evolution Research

    Linha do tempo da histria - Wikipedia

    Portal de Antropologia

    Cultures.com

    Heilbrunn Time Line of Art History

    Arte da Caverna de Chauvet - Bradshaw Foundation

    Galeria de arte pr-histrica

    1. Raa e cultura

    Falar da contribuio das raas para a civilizao mundial poderia assumir

    um aspecto surpreendente em uma coleo de textos destinados a lutar contra o

    preconceito racial. Teria sido intil consagrar tanto tempo e esforo para

    demonstrar que, no estado atual das cincias, nada permite afirmar a

    superioridade ou a inferioridade intelectual de uma raa em relao a outra, para

    depois restituir a importncia da noo de raa, demonstrando que os grandes

    grupos tnicos trouxeram, enquanto tais, contribuies especficas para o

    patrimnio comum da humanidade.

    Nada mais longe do nosso objetivo, o que apenas conduziria a formulao

    da doutrina racista ao contrrio. Quando procuramos caracterizar as raas

    biolgicas mediante propriedades psicolgicas particulares, afastamo-nos da

    cincia, quer essa relao seja feita de maneira positiva ou negativa. No

    devemos esquecer que Gobineau , para quem a histria haveria de guardar o2

    2Joseph Arthur de Gobineau(1816-1882): intelectual e escr itor francs, ficou famoso por desenvolver a teoria da

    3

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FGobineau&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNHczGVv4wGDph61Ww8HDcCnaeJhLAhttp://www.google.com/url?q=https%3A%2F%2Fdocs.google.com%2Fdocument%2Fd%2F1y-X3ftWhx1tyHBrr-9JJcm6ftR5l5sz3VEHXyA0BF5M%2Fedithttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fwww.bradshawfoundation.com%2Fchauvet%2Findex.php&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNFX9LmJjF2UY8mDZCcSq-9K5w8PPQhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fwww.metmuseum.org%2Ftoah%2F&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNHPk2ChhqneXK-YUlofvVgDm_oLgQhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fwww.cultures.com&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNFlpCX32Cuvjs1lmsB7tGr_8eSfUAhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FPortal%3AAntropologia&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNFLlsw8lhmjrXqoGmnjToATU0PGCghttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fen.wikipedia.org%2Fwiki%2FTimeline_of_world_history&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNHfwaCHA92aR21qRzLyL4OsTNKlYwhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fhumanorigins.si.edu%2Fresearch&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNFzcCPuUIZEPzASpHek09GjpDwmzg
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    lugar de pai das teorias racistas, no concebia a pretensa "desigualdade das raas

    humanas" de uma maneira quantitativa mas sim qualitativa. Para ele, as grandes

    raas primitivas que formavam a humanidade nos seus primrdios branca,

    amarela, negra no eram s desiguais em valor absoluto, mas tambm diversas

    nas suas aptides particulares. O efeito negativo da degenerescncia estava,

    segundo ele, mais ligado ao fenmeno da mestiagem do que a posio de cada

    uma delas numa escala de valores comum; e destinada, portanto, a atingir a

    humanidade inteira, condenada ao processo crescente de miscigenao . Mas o3

    pecado original da antropologia consiste na confuso entre a noo puramente

    biolgica da raa (supondo, por outro lado, que mesmo neste campo limitado

    esta noo possa ter qualquer objetividade, o que contestado pela gentica) e

    as produes sociolgicas e psicolgicas das culturas humanas. Bastou Gobineau

    ter cometido este pecado para ficar preso ao crculo infernal que conduz de um

    erro intelectual, no necessariamente de m-f, legitimao involuntria de

    todas as tentativas de discriminao e de explorao.

    Por outro lado quando falamos de contribuio das raas humanas para a

    civilizao no queremos dizer que as manifestaes culturais da sia ou da

    Europa, da frica ou da Amrica, extraiam sua originalidade do fato destes

    superioridade racial aria na em seu livro Um ensaio sobre a desigualdade das raas. Para uma his tria das teorias

    raci ais e seu impacto no Bras il ver O espetculo das raas: cientistas, instituies e a questo racial no Brasil,1870-1930de Lilia Moritz Schwarcz (Cia das Letras, 1993).

    3Processo que est l igado ao das migraes, por sua vez, to antigo quanto as pri meiras civil izaes. A era das

    navegaes e a grande migrao para as Amricas teve com consequncia uma intensificao ainda maior do

    encontro de culturas, sem falar da globali zao nas ltimas dcadas. Enfim, seria poss vel deduzir das palavras

    de Lvi-Strauss que o intercmbio e o cruzamento de povos e culturas da prpria natureza da his tria em geral ,

    e ainda mais no caso da Civili zao Ocidental, o que coloca sob outra luz a questo das migraes.

    4

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    continentes serem, na sua maioria, povoados por habitantes de troncos raciais

    diferentes. Se a originalidade da sua contribuio existe e no h dvidas sobre

    isso ela est mais relacionada com circunstncias geogrficas, histricas e

    sociolgicas do que com aptides distintas ligadas a constituio anatmica ou

    fisiolgica de negros, amarelos ou brancos. Mas no se pode deixar para

    segundo plano um aspecto igualmente importante da histria: esta no se

    desenvolve uniformemente, mas atravs dos extraordinariamente diversos

    modos de sociedades e civilizaes. Esta diversidade intelectual, esttica e

    antropolgica no est ligada por nenhuma relao de causa e efeito quela que

    existe no plano biolgico entre determinados aspectos observveis dos grupos

    humanos apenas correm paralelas, mas em terrenos diferentes. E ao mesmo

    tempo distingue-se dela por dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, a

    diversidade sociolgica situa-se numa outra ordem de grandeza: existem muito

    mais culturas humanas do que raas . Enquanto as culturas podem ser contadas4

    aos milhares, as raas contam-se pelas unidades; por outro lado duas culturas

    pertencentes a uma mesma raa podem diferir tanto ou mais que duas culturas

    provenientes de grupos raciais diferentes. Em segundo lugar, ao contrrio da

    diversidade entre as raas, que apresentam como principal interesse a sua

    origem histrica e a sua distribuio no espao, a diversidade entre as culturas

    coloca uma srie de problemas.

    Por fim e sobretudo devemos perguntar em que consiste esta

    diversidade, com o risco de ver os preconceitos raciais apenas arrancados da sua

    4O s ite www.cultures.com dedicado documentao de culturas, antigas e modernas.

    5

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fwww.cultures.com&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNFlpCX32Cuvjs1lmsB7tGr_8eSfUA
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    base biolgica para voltarem em novo campo. Seria intil conseguir que o

    homem comum deixe de atribuir um significado intelectual ou moral ao fato de5

    algum ter a pele negra ou branca, ou o cabelo liso ou crespo, para permanecer

    em silncio face a uma outra questo. Se no existem aptides raciais inatas,

    como explicar que a civilizao desenvolvida pelo homem branco tenha feito os

    imensos progressos que conhecemos, enquanto as outras permanecem

    atrasadas, umas a meio do caminho, e outras submetidas a um atraso de

    milhares ou dezenas de milhares de anos? 6

    No podemos, portanto, pretender resolver negativamente o problema da

    desigualdade racial se no nos debruarmos tambm sobre o da desigualdade

    ou melhor, da diversidade das culturas humanas, que o pblico em geral

    relaciona com a racial.

    2. Diversidade das culturas

    Para compreender como, e em que medida, as culturas humanas diferem

    entre si, devemos, em primeiro lugar, catalog-las. Mas aqui que comeam as

    dificuldades , porque as culturas humanas no diferem entre si do mesmo modo,

    nem no mesmo plano. Estamos, primeiro, diante de sociedades justapostas no

    5Homem de rua, no original. Nos anos 50 ainda estava fresca a lembrana dos horrores da Segunda Guerra

    Mundial, quando em muitos pases, principalmente na Alemanha e na Itlia, o racismo foi abraado por enormes

    parcelas da popul ao, enfim, pelo homem de rua.6Referncia a maioria dos pases da frica e da sia, em grande desvantagem econmica em relao aos pases

    industrializados nos anos 50 quando este ensaio foi redigido. O extraordinrio desenvolvimento econmico

    alca nado por alguns pases da sia nas ltimas dcadas, principal mente Coreia do Sul e China, no prejudica o

    argumento.

    6

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    espao, umas ao lado das outras, umas prximas, outras mais afastadas, mas

    contemporneas, compartilhando o mesmo tempo cronolgico. Depois,

    devemos levar em conta as formas de vida social que se sucederam no passado e

    que no podemos conhecer por experincia direta. Qualquer homem pode se

    transformar em etngrafo e ir partilhar a existncia de uma sociedade que o

    interesse; mas, mesmo que se transforme em historiador ou arquelogo, nunca

    poderia entrar em contato direto com uma civilizao desaparecida; s poderia

    ter um acesso indireto, atravs dos documentos escritos a seu respeito, ou dos

    objetos, ferramentas, obras de arte e outros registros que esta sociedade

    porventura tiver deixado . Enfim, no devemos esquecer que mesmo as7

    sociedades contemporneas que continuam a ignorar a escrita, aquelas a que

    chamamos de selvagens ou primitivas, foram, tambm elas, precedidas por

    outras formas, cujo conhecimento praticamente impossvel, mesmo de maneira

    indireta; um catlogo cuidadoso, portanto, deveria reservar um nmero de itens

    em branco infinitamente maior do que aqueles em que somos capazes de

    escrever qualquer coisa. Impem-se uma primeira constatao: a diversidade

    das culturas no presente, e tambm foi no passado, muito maior e mais rica

    que tudo o que pudermos dela conhecer.

    Mas, mesmo se tomados por um sentimento de humildade e convencidos

    desta limitao, encontraremos outros problemas. Que devemos entender por

    culturas diferentes? Algumas assim parecem, mas quando fazem parte de um

    tronco comum, no diferem da mesma forma que duas sociedades que em

    7 o caso, por exemplo, das tri bos de caa dores col etores que habitavem o continente sul -americano antes da

    chegada dos europeus. Ver Os ndios antes do Brasil, de Carl os Fausto (Jorge Zahar Editor, 2000).

    7

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    nenhum momento mantiveram relaes. Assim, o antigo imprio Inca do Peru, e

    o Daom na frica, diferem entre si de maneira mais absoluta do que, por

    exemplo, a Inglaterra e os Estados Unidos de hoje, se bem que estas duas

    sociedades tambm devam ser tratadas como sociedades distintas.

    Inversamente, sociedades que estabeleceram contato recentemente parecem

    oferecer a imagem de uma mesma civilizao, ainda que tenham seguido

    caminhos diferentes. Operam simultaneamente, nas sociedades humanas, foras

    que atuam em direes opostas, umas tendendo para a manuteno, e mesmo

    para a acentuao dos particularismos, outras agindo no sentido da convergncia

    e da afinidade. O estudo da linguagem oferece exemplos surpreendentes de tais

    fenmenos. Assim, ao mesmo tempo que as lnguas de uma mesma raiz

    apresentam tendncias para se diferenciar umas das outras (tais como o russo, o

    francs e o ingls ), lnguas de origens diversas, mas faladas por povos que8

    vivem prximos, desenvolvem caractersticas comuns; por exemplo, o russo

    diferenciou-se, sob determinados aspectos, de outras lnguas eslavas para se

    aproximar, pelo menos por determinados traos fonticos, das lnguas urlicase

    turcas faladas na sua vizinhana geogrfica.

    Quando estudamos tais fatos e poderamos achar exemplos similares em

    outros domnios, tais como instituies sociais, arte, religio acabamos por

    perguntar se as sociedades humanas no se definem, face as suas relaes

    mtuas, por um determinado grau timo de diversidade para alm do qual elas

    no poderiam ir, mas abaixo do qual tambm no podem ficar. Este grau timo

    de diversidadevariaria em funo do nmero das sociedades, do seu tamanho

    8As trs l nguas provm do mesmo tronco lingustico indo-europeu.

    8

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FL%25C3%25ADngua_protoindo-europeia&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNF1mhtlpj8O9V2BGxbU9dTaFK4x-Ahttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FL%25C3%25ADnguas_ur%25C3%25A1licas&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNHIOSc1Ypx9qTpAmWy9V57AD8tIYwhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FDaom%25C3%25A9&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNExGvdaoCHSRLUQXuQgKp0nqPNkmAhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FImp%25C3%25A9rio_Inca&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNHGMfI1aoiM5re_NN8RgEFYhLjORw
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    demogrfico, do seu afastamento geogrfico, e dos meios de comunicao

    (materiais e intelectuais) de que dispem. Com efeito, o problema da diversidade

    no se pe apenas a nvel das relaes entre sociedades diferentes, como

    tambm dentro de cada sociedade em particular, entre os grupos que a

    constituem: classes sociais, categorias profissionais, grupos religiosos, e assim

    por diante; cada grupo atribui uma extrema importncia a essas diferenas que

    os distinguem uns dos outros. Podemos perguntar se esta diversificao interna

    no tende a aumentar quando a populao cresce, ou por outro lado, quando se

    torna mais homognea; esse talvez tenha sido o caso da ndia antiga, com o

    aparecimento de um sistema de castas aps o estabelecimento da hegemonia

    ariana .9

    Vemos, portanto, que a noo da diversidade das culturas humanas no

    deve ser concebida de uma maneira esttica, como a que encontramos em um

    catlogo de amostras dissecadas. indubitvel que os homens elaboram culturas

    diferentes em funo do afastamento geogrfico, das propriedades particulares

    do seu meio, e do maior ou menor grau de isolamento em relao ao resto da

    humanidade; mas isso s seria rigorosamente verdadeiro se cada cultura ou cada

    sociedade no tivesse nenhuma ligao com as demais, se tivessem se

    desenvolvido isoladas umas das outras. Ora, isso nunca aconteceu, salvo talvez

    em casos excepcionais como o dos aborgenes tasmanianos(e mesmo assim,

    apenas por um perodo limitado de tempo).

    9A civi li zao que floresceu no vale do rio I ndus entre 3.000 e 1.300 AC, aproxi madamente, constituiu uma das

    grandes ci vil izaes da Antiguidade. No seu auge, entre 2.600 e 1.900 AC, pode ter chegado a abri gar uma

    populao de mais de cinco milhes de habitantes, maior, portanto, do que a de muitos pases da Europa no

    incio do sculo 21.

    9

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FAbor%25C3%25ADgene_tasmaniano&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNEbIh6e5q3CzH_KjMt_Tt2IlAn_Zg
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    As sociedades humanas nunca se encontram isoladas; quanto mais

    separadas parecem, ainda sob a forma de grupos ou de agrupamentos que

    vamos encontr-las. Assim, no exagero supor que as culturas

    norte-americanas e as sul-americanas tenham permanecido separadas de todo

    contato com o resto do mundo durante um perodo cuja durao se situa entre

    10 e 25 mil anos. Mas este enorme fragmento por tanto tempo separado da

    humanidade, consistia, na verdade, numa multido de sociedades, grandes e

    pequenas, que mantinham entre si contatos estreitos. E a par com as diferenas

    devidas ao isolamento, existem aquelas, tambm importantes, devidas a

    proximidade: do desejo de oposio, de se distinguir, de serem elas prprias.

    Muitos costumes nascem no de qualquer necessidade interna ou acidente

    favorvel, mas apenas da vontade de no ficar para trs em relao a um grupo

    vizinho que submeteu a determinadas regras um domnio da vida social sobre a

    qual o primeiro nunca havia pensado instituir normas. Portanto, a diversidade

    das culturas humanas no deve induzir a uma observao fragmentria ou

    fragmentada. Ela menos funo do isolamento dos grupos, do que das relaes

    entre eles.

    3. O etnocentrismo

    A atitude mais antiga e que repousa, sem dvida, sobre fundamentos

    psicolgicos slidos, pois tende a reaparecer em cada um de ns quando somos

    colocados numa situao inesperada, consiste em repudiar pura e simplesmente

    10

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    as formas culturais, morais, religiosas, sociais e estticas mais afastadas daquelas

    com que nos identificamos. Costumes selvagens, isso no nosso, no

    deveramos permitir isso: so expresses que fazem parte de um sem-nmero

    de reaes grosseiras que traduzem este mesmo calafrio, esta mesma repulsa,

    em presena de maneiras de viver, de crer ou de pensar que nos so estranhas.

    Deste modo, a Antiguidade designava tudo o que no participava da cultura

    grega, (depois greco-romana) com o nome de brbaro; em seguida, a civilizao

    ocidental utilizou o termo selvagem no mesmo sentido. Ora, por detrs destes

    termos dissimula-se um mesmo juzo: provvel que a palavra brbarotenha

    origem etimolgica na confuso e desarticulao do canto das aves em oposio

    ao valor significante da linguagem humana ; e selvagem, que significa da10

    floresta, evoca tambm um gnero de vida animal, por oposio a cultura

    humana. Recusa-se, tanto num como no outro caso, a admitir o prprio fato da

    diversidade cultural, preferimos jogar para fora da cultura tudo o que no esteja

    de acordo com as normas sociais existentes.

    E, no entanto, parece que a diversidade das culturas raramente apareceu

    aos homens tal como : um fenmeno natural, resultante das relaes diretas ou

    indiretas entre as sociedades; sempre se viu nela, pelo contrrio, uma espcie de

    monstruosidade ou de escndalo; em termos de diversidade cultural, o

    progresso do conhecimento no consistiu tanto em dissipar esta iluso em

    proveito de uma viso mais exata, mas em aceit-la, ou em encontrar um meio de

    a ela se resignar.

    10Alguns sugerem que a pal avra venha depa-pa-ro, uma i mitao li ngustica onomatopica do sons e erros

    gramaticais feitos pelos no-gregos ao tentar falar o grego.

    11

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    Este ponto de vista ingnuo, mas profundamente enraizado na maioria

    dos homens, no necessita ser discutido uma vez que a coletnea de textos do

    qual este faz parte precisamente a sua refutao. Bastar observar aqui que ele

    encobre um paradoxo bastante significativo. Esta atitude do pensamento, em

    nome da qual se colocam os selvagens (ou todos aqueles que escolhemos

    considerar como tais) para fora da humanidade, justamente a atitude mais

    marcante e a mais distintiva destes mesmos selvagens. Sabemos, na verdade,

    que a noo de humanidade, englobando, sem distino de raa ou de civilizao,

    todas as formas da espcie humana, teve um aparecimento muito tardio e uma

    expanso limitada . Mesmo onde ela parece ter atingido o seu mais alto grau de11

    desenvolvimento, no existe qualquer certeza, tal como a histria recente o

    prova, de estar estabelecida ao abrigo de equvocos ou de regresses . Mas,12

    para vastas parcelas da espcie humana, e durante dezenas de milnios, esta

    noo parece estar totalmente ausente. A humanidade acaba nas fronteiras da

    tribo, do grupo lingustico, por vezes mesmo, da aldeia; a tal ponto que um

    grande nmero de populaes ditas primitivas se designam por um nome que

    significa os homens (ou, por vezes, com menos discrio, os bons, os

    excelentes, os perfeitos), implicando assim que as outras tribos, grupos ou

    aldeias, no participam das virtudes ou mesmo da natureza humana, mas so,

    quando muito, compostos por maus, perversos, macacos de terra, ou

    11O autor se refere ao Iluminismo no plano das idias, e a era das Revolues no plano poltico, com seu ideal

    igualitrio sintetizado no clebre lema liberdade, igualdade e fraternidade. O ideal iluminista acreditava que a

    razo venceria a irracionalidade e o preconceito. As duas guerras mundiais na primeira metade do sculo 20

    foram vri as vezes interpretadas como uma evidncia de que esse ideal teve um al cance muito li mitado.12Referncia Alemanha, onde o iluminismo parecia ter alcanado seus voos mais altos, mas onde no entanto, o

    nazismo floresceu.

    12

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    13/63

    ovos de piolho . Chegando-se mesmo, na maior parte das vezes, a privar o13

    estrangeiro do ultimo grau de realidade, fazendo dele um fantasma ou uma

    apario. Assim acontecem curiosas situaes onde os interlocutores tem

    atitudes simtricas. No Caribe, alguns anos aps a descoberta da Amrica,

    enquanto os espanhis enviavam comisses de investigao para indagar se os

    indgenas possuam ou no alma, estes dedicavam-se a afogar os brancos feitos

    prisioneiros para verificar se o cadver estava sujeito a putrefao... Esta

    anedota, simultaneamente barroca e trgica, ilustra bem o paradoxo do14

    relativismo cultural que vamos encontrar mais adiante revestido de outras

    formas: na prpria medida em que pretendemos estabelecer uma

    discriminao entre as culturas e os costumes que nos identificamos mais

    completamente com aqueles que tentamos negar. Recusando a humanidade

    queles que identificamos como selvagens ou brbaros, no fazemos mais

    que copiar-lhes as suas atitudes. O brbaro , antes de mais nada, o homem que

    cr na barbrie.

    verdade que os grandes sistemas filosficos e religiosos da humanidade,

    sejam eles o budismo, o cristianismo ou o islamismo; as doutrinas estoica,

    kantiana ou marxista, se insurgiram constantemente contra esta aberrao. Mas

    a simples proclamao da igualdade natural entre todos os homens, e da

    fraternidade que os deve unir, sem distino de raa ou cultura, tem qualquer

    coisa de enganador para o intelecto, porque negligencia uma diversidade de fato,

    13Grave ofensa em francs equivalente a chamar a lgum de parasi ta.

    14Barroca aqui no sentido de bizarra.

    13

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    que se impe observao, e em relao a qual no basta dizer que no vai ao

    mago do problema, para fingir que no existe. O que convence o homem

    comum da existncia das raas, como reconhece a declarao da Unesco sobre a

    questo das raas , a evidncia imediata dos seus sentidos, quando v juntos15

    um africano, um europeu, um asitico e um ndio americano.

    As grandes declaraes dos direitos do homem tem, tambm elas, esta

    fora e esta fraqueza de, ao enunciar um ideal grandioso, esquecer que o homem

    no realiza a sua natureza numa humanidade abstrata, mas nas culturas

    tradicionais onde mesmo as mudanas mais revolucionrias deixam intactos

    enormes setores da vida em sociedade ; essas declaraes se explicam tambm16

    em funo de uma situao bem definida no tempo e no espao. Preso entre a

    dupla tentao de condenar experincias que o chocam afetivamente e de negar

    as diferenas que ele no compreende intelectualmente, o homem moderno

    entregou-se a toda a espcie de especulaes filosficas e sociolgicas para

    estabelecer vos compromissos entre estes polos contraditrios; e para perceber

    a diversidade das culturas procurando suprimir o que ela contem, para ele, de

    escandaloso e de chocante.

    15Declarao da Unesco s obre a questo das raas , redigida e publi cada em 18 de julho de 1950, primeira de

    uma srie de quatro proposies sobre o tema. Lvi-Strauss participou da elaborao deste primeiro documento.Novas verses foram publicadas em 1951, 1967 e 1978.

    16Apesar do enorme prestgio dos ideais revolucionrios no ps-Guerra, Lvi-Strauss aqui j parece desiludido

    com a possibilidade de transformao das revolues polticas. A Unio Sovitica, por exemplo, ainda tinha

    muito prestgio entre intelectuai s quando da publi cao deste ensaio. A queda do Muro de Berl im, no entanto,

    mostrou o quanto muitas caractersticas da s ociedade russa permaneceram inalterados, apesar da revoluo de

    1917.

    14

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fen.wikipedia.org%2Fwiki%2FThe_Race_Question&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNE_306CiKD5mda0uzBr0pvnpTStswhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fen.wikipedia.org%2Fwiki%2FThe_Race_Question&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNE_306CiKD5mda0uzBr0pvnpTStsw
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    Mas, por mais diferentes e, por vezes, bizarras que possam ser, todas

    estas especulaes se reduzem a uma mesma receita, de que o termofalso

    evolucionismo, sem duvida, o mais adequado para caracterizar. Em que

    consiste ela? Trata-se de uma tentativa para suprimir a diversidade das culturas

    fingindo conhec-las completamente. Por que, se tratarmos os diferentes

    estados em que se encontram as sociedades humanas, tanto antigas como

    longnquas, como estadosou etapasde um desenvolvimento nico que, partindo

    do mesmo ponto, deve convergir para o mesmo fim, deduzimos que a

    diversidade apenas aparente. A humanidade torna-se una e idntica a si

    mesma, s que esta unidade e esta identidade no se realizam seno

    progressivamente, e a variedade das culturas ilustra os momentos de um

    processo que dissimula uma realidade mais profunda, ou retarda a sua

    manifestao.

    Esta definio pode parecer sumria quando temos presentes as imensas

    conquistas do darwinismo . Mas no o darwinismo que est em causa,17

    porque evolucionismo biolgico e o pseudo-evolucionismo que aqui tratamos so

    duas coisas muito diferentes. A primeira nasceu como uma vasta hiptese de

    trabalho, baseada em observaes em que havia pouca necessidade de

    interpretao. Os vrios tipos que constituem a genealogia do cavalo podem ser

    ordenados numa srie evolutiva por duas razes; primeiro, necessrio um

    cavalo para engendrar outro cavalo; segundo, as camadas de terreno

    17Ressalva que s se tornou ainda mais importante desde a publicao deste ensaio, com os enormes avanos

    ocorridos na gentica e na biologia, e que tomam o evolucionismo biolgico como paradigma fundamental. Os

    avanos nas chamadas cincias da vida tiveram enorme impacto tambm na antropologia. Ver M. Susan Lindre,

    Alan Goodman, e Deborah Heath, Anthropology in an Age of Genetics : Practice, Discourse, and Cri tique em

    Genetic Nature/Culture, Goodman et al. University of Californa Press, 2003. (Reunio de trabalhos apresentados

    no si mpsio da Fundao Wenner-Gren real izado em Terespoli s, RJ, entre 11 e 19 de junho de 1999).

    15

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    16/63

    sobrepostas historicamente contm esqueletos que variam gradualmente desde

    a forma mais arcaica at a mais recente. Torna-se assim altamente provvel que

    o Hipparionseja o verdadeiro antepassado do Equus caballus. O mesmo

    raciocnio provavelmente pode ser aplicado a espcie humana e s raas que a

    constituem. Mas quando passamos dos fatos biolgicos para os fatos culturais as

    coisas complicam-se de uma maneira singular. Podemos recolher em stios

    arqueolgicos objetos materiais e constatar que a forma ou a tcnica de produzir

    um determinado objeto varia progressivamente de acordo com a profundidade

    das camadas geolgicas. E, no entanto, um machado no d fisicamente origem a

    outro machado, tal como acontece com o animal. Dizer que um machado evoluiu

    a partir de um outro apenas uma metfora, desprovida do rigor cientifico da

    expresso quando aplicada aos fenmenos biolgicos. O que verdadeiro para

    os objetos materiais, ainda mais para as instituies, as crenas, os gostos, cujo

    passado geralmente desconhecemos. A noo de evoluo biolgica uma

    hiptese das mais provveis nas cincias naturais, enquanto a noo de evoluo

    social ou cultural no constitui, quando muito, um processo algo sedutor, mas

    perigosamente cmodo, de apresentar os fatos.

    Alis, esta diferena, a maior parte das vezes negligenciada, entre o

    verdadeiro e o falso evolucionismo, explica-se pelas suas respectivas pocas de

    aparecimento. O evolucionismo sociolgico recebeu um vigoroso impulso do

    evolucionismo biolgico, mas anterior a ele. Sem remontar s concepes da

    Antiguidade, retomadas por Pascal, comparando a humanidade a um ser vivo

    que passa por fases sucessivas da infncia, da adolescncia e da maturidade, foi

    no sculo XVII I que assistimos ao florescimento dos esquemas fundamentais que

    16

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FHipparion&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNGO2NP404SqggSW4JcGDwI9gHtQlQ
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    viriam a ser depois objeto de tantas manipulaes: as espirais de Vico, as suas

    trs idades, j anunciando os trs estados de Comte, a escada de

    Condorcet. Os dois fundadores do evolucionismo social, Spencere Tylor,

    elaboraram e publicaram a sua doutrina antes do aparecimento da Origem das

    espcies,ou sem a ter lido. Anterior ao evolucionismo biolgico, teoria cientifica,

    o evolucionismo social no , na maior parte das vezes, seno a maquiagem

    falsamente cientfica de um velho problema filosfico para o qual no h

    qualquer certeza de soluo atravs da observao e da induo.

    4. Culturas arcaicas e culturas primitivas

    Sugerimos que qualquer sociedade pode, segundo o seu prprio ponto de

    vista, dividir as culturas em trs categorias: as que so suas contemporneas,

    mas situadas em outro lugar do globo, as que se manifestaram aproximadamente

    no mesmo lugar, mas que a precederam no tempo e, finalmente, as que existiramnum tempo anterior e num lugar diferente.

    Vimos que estes trs grupos podem ser conhecidos de forma desigual. No

    ltimo caso e quando se trata de culturas sem escrita, sem ter deixado algum tipo

    de construo, e com tcnicas rudimentares (e que so a enorme maioria), nada

    podemos saber sobre elas, e tudo o que tentamos saber a seu respeito nopassam de hipteses. Por outro lado, extremamente tentador procurar

    estabelecer, entre as diversas culturas do primeiro grupo, relaes que

    correspondem a uma ordem de sucesso no tempo. Como que sociedades

    17

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FEdward_Burnett_Tylor&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNEoPz0gQpe5aKDu0DLhcRJUbwOUGwhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FHerbert_Spencer&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNETqnvwJiZQ8WKXJCVL1vuv1rl2Kwhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FEvolucionismo_social&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNF83M5zwOhAOf77d5c27nCYiPHTkghttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FCondorcet&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNH8SL-aGIK38bW5vInA314eOsW7fQhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FComte&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNF5MtNF6TgKqPf3mR_oFW2ScooelQhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FGiambattista_Vico&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNEBZAKPi5N1L4uAGpP0hEBT_TXqcQ
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    18/63

    contemporneas, que continuam a ignorar a eletricidade e a mquina a vapor,

    no evocariam a fase correspondente do desenvolvimento da civilizao

    ocidental? Como no comparar as tribos indgenas, sem escrita e sem metalurgia,

    gravando figuras nas paredes das rochas e fabricando utenslios de pedra, com

    as formas antigas da nossas civilizao, cuja semelhana atestada pelos

    vestgios encontrados nas grutas da Frana e Espanha? Foi a sobretudo que o18

    falso evolucionismo se propagou. E, no entanto, este jogo sedutor a que nos

    entregamos quase irresistivelmente todas as vezes que temos ocasio para isso

    (no se compraz o viajante ocidental em encontrar a idade mdia no Oriente, o

    sculo de Lus 14 na Pequim de antes da Primeira Guerra Mundial, a idade da

    pedra entre os indgenas da Austrlia ou da Nova Guin?) extraordinariamente

    pernicioso. Das civilizaes desaparecidas, conhecemos apenas alguns aspectos

    e estes diminuem medida que so mais antigas, pois os aspectos conhecidos

    so os nicos que puderam sobreviver destruio do tempo. O processo

    consiste pois em tomar a parte pelo todo, em concluir que, a partir do fato de que

    duas civilizaes (uma atual, a outra desaparecida) ofeream semelhanas em

    alguns aspectos, pode-se estender a analogia todos os aspectos. Ora, esta

    maneira de raciocinar no s logicamente insustentvel, mas ainda, num bom

    nmero de casos, desmentida pelos fatos.

    At uma poca relativamente recente, os tasmanianose os patagnios

    possuam ferramentas de pedra lascada, e certas tribos australianas e

    18As pinturas nas cavernas de Chauvet, no sul da Frana, constituem o tema do premiado filme de 2010 do

    cineas ta al emo Werner Herzog Cave of Forgotten Dreams. No YouTubeh trechos deste documentrio, inclusive

    o trailer oficial.

    18

    http://www.youtube.com/watch?v=kULwsoCEd3ghttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FTehuelches&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNE2J8LBXOL34P5011ZsXQV5VXVWkwhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FAbor%25C3%25ADgene_tasmaniano&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNEbIh6e5q3CzH_KjMt_Tt2IlAn_Zghttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FPintura_rupestre&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNFDUG89K3cVynU4CjVjbIZcT9AcWA
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    americanas ainda os fabricam. Mas o estudo destes instrumentos ajuda-nos

    muito pouco a compreender o seu uso no perodo paleoltico. Como eram, ento,

    usados os famosos machados de pedra oval, cuja utilizao devia, no entanto,

    ser de tal forma precisa, que a sua forma e tcnica de fabricao permaneceram

    padronizadas de maneira rgida durante cem ou duzentos mil anos, e num

    territrio que se estendia da Inglaterra frica do Sul, da Frana China? Para

    que serviam as extraordinrias peas feitas com a tcnica Levallois, pedras

    lascadas de formato triangular que encontramos s centenas nos jazigos e que

    nenhuma hiptese consegue explicar completamente? O que eram os pretensos

    bastes de comando em osso de rena? Qual poderia ser a tecnologia da19

    cultura tardenoisense que deixou para trs um nmero inacreditvel de

    minsculos pedaos de pedra polida, com formas geomtricas infinitamente

    diversificadas, mas muito poucos utenslios na escala da mo humana? Todas

    estas incertezas mostram que entre as sociedades paleolticas e determinadas

    sociedades indgenas contemporneas existe uma semelhana serviram-se de

    utenslios de pedra polida. Mas mesmo no plano da tecnologia, torna-se difcil ir

    mais longe; o emprego dos materiais, os tipos de instrumentos, e portanto o

    propsito com que eram usados, eram diferentes, e mesmo neste aspecto

    limitado um grupo nos ensina muito pouco em relao ao outro. Como

    poderamos ento aprender qualquer coisa sobre linguagem, instituies sociais

    ou crenas religiosas?

    Uma das interpretaes mais populares inspiradas pelo evolucionismo

    19Nome dado pelos arquelogos a um artefato pr-histri co, feito de osso e perfurado. No se sabe exatamente

    sua funo, e por isso o termo basto de comando, tem si do subs titudo por basto perfurado (oupierced rod

    em ingls).

    19

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fen.wikipedia.org%2Fwiki%2FB%25C3%25A2ton_de_commandement&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNEKtdXqh0Eoc7kAkbuo7Ctc86EYcAhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FMesol%25C3%25ADtico&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNEonS0n08YjMqpor4qt8D2326ZXHQhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FT%25C3%25A9cnica_Levallois&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNFk310yIJw6hklcgAre7OY-c_BqCQ
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    20/63

    cultural trata as pinturas rupestres legadas pelas sociedades do paleoltico mdio

    como figuraes mgicas ligadas a rituais de caa. O raciocnio o seguinte: as

    populaes primitivas atuais tm rituais de caa, que a maior parte das vezes,

    nos aparecem desprovidos de valor utilitrio; as pinturas rupestres

    pr-histricas, tanto pelo seu nmero como pela sua localizao, bem no fundo

    das cavernas, no aparentam ter qualquer valor utilitrio; os seus autores eram

    caadores, logo podemos concluir que eram usadas em rituais de caa. Basta

    enunciar esta argumentao para se perceber sua inconsequncia. Alm disso,

    sobretudo entre os no-especialistas que ela ganha fora, porque os etngrafos

    esto de acordo em afirmar que nada, nos fatos observados, permite formular

    qualquer hiptese sobre a natureza destas pinturas. E, j que falamos das

    pinturas rupestres, sublinharemos que, exceo das sul-africanas

    (consideradas por alguns como obras recentes ), as artes primitivas esto to20

    afastadas da arte do Paleoltico como da arte europeia contempornea. Porque21

    esta se caracteriza por um elevado grau de estilizao, indo at s deformaes

    mais extremas, enquanto a arte pr-histrica oferece um realismo

    surpreendente. Poderamos cair na tentao de ver nesta ltima a origem da arte

    europeia, mas isso seria inexato, uma vez que, no mesmo territrio, a arte

    paleoltica foi seguida por outras formas que no apresentam as mesmas

    caractersticas; a continuidade do lugar geogrfico no muda o fato de que sobre

    o mesmo solo se sucederam diferentes populaes, alheias obra dos seus

    antecessores, e trazendo cada uma consigo crenas, tcnicas e estilos diferentes.

    20Lvi-Strauss se refere aqui arte da cultura san(tambm chamados de bushmen, sho, barwa, kung, ou khwe),

    tribos de caadores-coletores que viveram no sul da frica por milhares de anos, e dos quais restam poucos

    remanescentes.

    21Veja a galeria de arte pr-histrica.

    20

    https://docs.google.com/document/d/1y-X3ftWhx1tyHBrr-9JJcm6ftR5l5sz3VEHXyA0BF5M/edithttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fen.wikipedia.org%2Fwiki%2FBushmen&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNE5geDKXHrwRxJNgOYsmtXAnAD8Gghttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FArte_do_Paleol%25C3%25ADtico&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNHh0SOI4XB07ynG6LnB6zNhf5Z7Zw
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    O ponto que as civilizaes da Amrica pr-colombiana atingiram na

    vspera da descoberta evocam o perodo neolticoeuropeu. Mas tambm esta

    comparao no resiste a um exame mais atento; na Europa, a agricultura e a

    domesticao de animais caminham de mos dadas, enquanto na Amrica, um

    desenvolvimento excepcional da agricultura acompanhado pela quase completa

    ignorncia (ou, de qualquer modo, por uma extrema limitao) do criao de

    animais domsticos. Na Amrica, o uso de utenslios de pedra convive com uma

    economia agrcola que na Europa est associada ao incio da metalurgia. intil

    multiplicar os exemplos. Porque a tentativa de conhecer a riqueza e a

    originalidade das culturas humanas, s para tom-las como rplicas atrasadas da

    civilizao ocidental, choca-se com uma outra dificuldade que muito mais

    profunda. De uma maneira geral (e excetuando a Amrica, a qual voltaremos)

    todas as sociedades humanas tm atrs delas um passado aproximadamente da

    mesma ordem de grandeza. Para considerar determinadas sociedades como

    etapas do desenvolvimento de outras, seria preciso admitir que enquanto com

    umas se passava qualquer coisa, com outras no acontecia nada, ou muito

    pouco. E, na verdade, falamos dos povos sem histria (para dizer, por vezes,

    que so os mais felizes). Esta forma elptica significa apenas que sua histria e

    continuar a ser desconhecida, no a sua inexistncia. Durante dezenas e mesmo

    centenas de milnios, tambm nesses povos existiram homens que amaram,

    odiaram, sofreram, inventaram, combateram. Na verdade, no existem povos

    crianas, todos so adultos, mesmo aqueles que no deixaram um dirio de

    infncia e da adolescncia. Poderamos, na verdade, dizer que as sociedades

    humanas utilizaram desigualmente um tempo passado que, para algumas, teria

    21

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FNeolitico&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNHtttkeWtRA_Z3zWr8SrwmB5NUCHwhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fwww.mesoweb.com%2F&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNELfU6lDT7yzt5t9FHVepWq0tS18g
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    sido mesmo um tempo perdido; que umas andavam rapidamente, enquanto

    outras divagavam ao longo do caminho. Seramos assim conduzidos a distinguir

    duas espcies de histrias: uma progressiva, aquisitiva, que acumula os achados

    e as invenes para construir grandes civilizaes; e uma outra histria, talvez

    igualmente ativa e empregando outros dons, mas a que faltasse o talento da

    sntese. Cada inovao em vez de acrescentar s anteriores, e orientadas no

    mesmo sentido, dissolver-se-ia numa espcie de onda que nunca consegue se

    afastar por muito tempo da direo original. Esta concepo parece muito mais

    flexvel e matizada que as vises simplistas descritas anteriormente. Podemos

    guardar um lugar para ela na nossa tentativa de interpretao da diversidade das

    culturas sem sermos injustos com as demais. Mas, antes, necessrio que

    examinemos vrias questes.

    5. A ideia de progresso

    Devemos considerar, em primeiro lugar, as culturas pertencentes ao

    segundo grupo, quelas que precederam a cultura do observador. A sua situao

    mais complicada que nos outros casos. Porque a hiptese de uma evoluo,

    que parece to incerta e to frgil quando a utilizamos para hierarquizar

    sociedades contemporneas afastadas no espao, parece aqui dificilmentecontestvel, e mesmo diretamente evidenciada pelos fatos. Sabemos pelo

    testemunho da arqueologia, da pr-histriae da paleontologia, que a Europa

    atual foi habitada por vrias espcies do gnero Homo, que se serviam de

    22

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fwww.hyperhistory.com%2Fonline_n2%2FHistory_n2%2Fa.html&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNH3jV9-H6AHZ7PSyVo7-T5_4wv6wA
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    utenslios de pedra grosseiramente laminados; que a estas primeiras culturas se

    sucederam outras, em que o talhar da pedra aperfeioado, pois

    acompanhado pelo polir e pelo aperfeioamento do trabalho em osso e em

    marfim; que a cermica, a tecelagem, a agricultura, a criao de animais ento

    aparecem, associadas progressivamente metalurgia, onde tambm podemos

    distinguir etapas. Estas formas sucessivas sugerem uma ordem no sentido de

    uma evoluo e de um progresso, sendo umas superiores s outras. Mas, se isso

    verdade, como que estas distines no iriam inevitavelmente reagir sobre o

    modo como tratamos as formas contemporneas, mas que apresentam entre si

    afastamentos anlogos? As nossas concluses anteriores correm, deste modo, o

    risco de ser novamente postas em cheque.

    Os progressos realizados pela humanidade desde as suas origens so to

    claros e to gritantes que qualquer tentativa de contest-la nada mais seria que

    um exerccio de retrica. E, no entanto, no to fcil, como se pensa, ordenas

    as conquistas da humanidade numa srie regular e contnua. No incio do sculo

    20 os estudiosos utilizavam esquemas de uma simplicidade admirvel para

    representar esta evoluo: idade da pedra lascada seguiam-se a idade da pedra

    polida, as idades do cobre, do bronze e do ferro. Tudo isto muito cmodo. Hoje

    sabemos que, por vezes, o polir e o lascar da pedra coexistiram; e quando a esta

    eclipsa completamente aquela, isto no acontece como resultado de um

    progresso tcnico espontneo, mas como uma tentativa para copiar em pedra as

    armas e os utenslios de metal que possuam as civilizaes teoricamente mais

    avanadas mas, de fato, contemporneas. Inversamente, a cermica, que se

    pensava que ocorria junto com a idade da pedra polida, est associada a pedra

    23

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    24/63

    lascada em algumas regies do norte da Europa.

    Para considerar apenas o perodo da pedra lascada, tambm chamada de

    paleoltico, pensava-se h ainda muito pouco tempo que as diferentes formas

    desta tcnica caracterizando respectivamente a produo de hastes, de lascas, e

    de lminas, correspondiam a um progresso histrico em trs etapas designadas

    por paleoltico inferior, mdio e superior. Admite-se hoje que estas trs formas

    tenham coexistido, constituindo no etapas de um progresso em sentido nico,

    mas aspectos ou, como se diz tambm, faces de uma realidade no esttica, mas

    submetida a variaes e transformaes muito complexas. De fato o perodo

    levalloisense, e cuja pice se situa entre 250 e 70 mil anos antes da Era Comum,

    atinge uma perfeio na tcnica do corte que s viria a se encontrar novamente

    no fim do neoltico e que hoje teramos muita dificuldade em reproduzir.

    Tudo o que foi dito sobre as culturas igualmente vlido no plano das

    raas, sem que se possa estabelecer (devido s diferentes ordens de grandeza)

    qualquer correlao entre os dois processos. Na Europa, o homem de Neandertal

    no apareceu antes das mais antigas formas do Homo sapiens, mas foram seus

    contemporneos. E possvel que os tipos mais variados de homindeos

    coexistiram no tempo, mesmo que no na mesma parte do mundo: pigmeus na

    frica do Sul, gigantes na China e na Indonsia etc.

    Mais uma vez, tudo isto no visa negar a realidade de um progresso da

    humanidade, mas convida-nos a conceb-lo com mais prudncia. O

    desenvolvimento dos conhecimentos pr-histricos e arqueolgicos tende a

    24

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FNeandertal&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNHMZgeI641XeialMmHaJv7ychWGpw
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    espalhar no espao as formas de civilizao que ramos levados a imaginar como

    escalonadas no tempo. Isso significa duas coisas. Em primeiro lugar que o

    progresso (se este termo ainda adequado) no necessrio nem contnuo;

    procede por saltos, ou, como diriam os bilogos, por mutaes. Estes saltos no

    consistem em ir sempre mais longe na mesma direo; so acompanhados por

    mudanas de orientao, um pouco maneira dos cavalos do xadrez que podem

    efetuar vrias formas de movimento, mas nunca no mesmo sentido. A

    humanidade em progresso nunca se assemelha a uma pessoa que sobe uma

    escada, acrescentando para cada um dos seus movimentos um novo degrau a

    todos aqueles j anteriormente conquistados; antes, uma metfora mais

    adequada seria o jogador que aposta em vrios dados e que, a cada vez que os

    lana, os v se espalharem no tabuleiro formando combinaes diferentes. O que

    ganha em um, arrisca a perder no outro, e s de vez em quando que a histria

    cumulativa, isto , que os dados se adicionam para formar uma combinao

    favorvel.

    Que esta histria cumulativa no seja privilgio de uma civilizao ou de

    um perodo da histria, convincentemente mostrado pelo exemplo da Amrica.

    Este imenso continente v chegar o homem, em pequenos grupos de nmades

    atravessando o estreito de Beringfavorecido pelas ltimas glaciaes, numa

    poca talvez no muito anterior a 20 mil anos atrs. Em 20 ou 25 mil anos, estes

    homens conseguiram uma das mais admirveis demonstraes de histria

    cumulativa: explorando as fontes do novo meio natural, domesticaram as

    espcies vegetais mais variadas para a alimentao (bem como algumas espcies

    animais), e tambm para a produo de drogas, promovendo substncias

    25

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FEstreito_de_Bering&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNG7JnPDALS3SZgvCh1jqBn5nZsp_w
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    26/63

    venenosas, como a mandioca , ao papel de alimento base, e outras ao de22

    estimulante ou de anestsico; colecionando certos venenos ou estupefacientes

    em funo das espcies animais sobre as quais exercem ao efetiva; finalmente,

    levando determinadas tcnicas, como a tecelagem, a cermica e o trabalho em

    metais preciosos, ao mais alto grau de perfeio. Para apreciar esta obra imensa,

    basta medir a contribuio da Amrica para as civilizaes do Velho Mundo: a

    batata, a borracha, o tabaco e a coca (base dos anestsicos modernos), que, em

    planos diversos, constituem quatro pilares da cultura ocidental; o milho e o

    amendoim, que iriam revolucionar a economia africana antes de se tornar

    comum no regime alimentar da Europa; o cacau, a baunilha, o tomate, o abacaxi,

    a pimenta, vrias espcies de feijo, de algodes e de cucurbitceas. E finalmente

    o zero, base da aritmtica e, indiretamente, da matemtica moderna, era

    conhecido e utilizado pelos maiaspelo menos meio milnio antes da sua

    descoberta pelos indianos, de quem a Europa o recebeu por intermdio dos

    rabes. Talvez por esta mesma razo o seu calendrio fosse mais exato que o do

    Velho Mundo. A questo de saber se o regime poltico dos incasera socialista ou

    totalitrio j fez correr muita tinta . Era baseado, de qualquer maneira, em23

    formas que lembram as sociedades modernas, e estava vrios sculos a frente

    dos regimes polticos europeus de ento. A ateno renovada, de que o curare24

    foi recentemente objeto, lembraria, se necessrio, que os conhecimentos

    22Para tornar a mandioca comestvel preciso extrair dela o venenoso cido ciandrico.23Referncia a toda uma literatura que floresceu nos anos 40 na Amrica Latina, atravs de artigos com ttulos

    como Fue social is ta o comunista el i mperio incai co? ou El imperio s ocial is ta de los incas (Citados por

    Enrique Peregall i em AAmrica que os europeus encontraram, Editora Atual , 2004).

    24Nome comum dado a vrios compostos orgnicos venenosos extrados de plantas da Amrica do Sul. Possuem

    intensa e letal ao paralisante, embora sejam utilizados medicinalmente como relaxante muscular ou

    anestsico.

    26

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FIncas&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNElkRor19A9CJ_b7dKx4ymXx6h4MAhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FMaias&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNE5-XxgaeQZjTIR3WtAvlpdHcRGgA
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    cientficos dos indgenas americanos, que se aplicam a tantas substncias

    vegetais no utilizadas no resto do mundo, podem ainda fornecer importantes

    contribuies.

    6. Histria estacionria e histria cumulativa

    A discusso do exemplo americano convida-nos a levar mais longe a nossa

    reflexo sobre a diferena entre histria estacionria e histria cumulativa.

    Se concedemos Amrica o privilgio da histria cumulativa, no ser porque

    reconhecemos que ela a fonte de um certo nmero de contribuies que

    aproveitamos, ou que se assemelham s nossas? Mas qual seria a nossa posio,

    em presena de uma civilizao que se tivesse dedicado a desenvolver valores

    prprios, dos quais nenhum fosse capaz de afetar o observador? No seria este

    levado a qualificar esta civilizao de estacionria? Em outras palavras, a

    distino entre duas formas de histria depende da natureza intrnseca das

    culturas a que se aplica, ou resulta, antes, da perspectiva etnocntrica que

    sempre adotamos para avaliar uma cultura diferente da nossa? Consideraramos

    assim como cumulativa toda a cultura que se desenvolvesse num sentido anlogo

    ao nosso, isto , cujo desenvolvimento fosse dotado de significado para ns.

    Enquanto as outras nos pareceriam estacionrias, no porque necessariamente o

    sejam, mas porque a sua linha de desenvolvimento nada significa para ns, no

    mensurvel nos termos do sistema de referncia que adotamos.

    Podemos comprovar isso atravs de um exame, mesmo sumrio, das

    condies em que aplicamos a distino entre os dois tipos de histria, no para

    caracterizar sociedades diferentes da nossa, mas no prprio interior desta. Esta

    27

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    28/63

    distino muito mais frequente do que poderamos pensar. As pessoas idosas

    consideram geralmente como estacionria a sua histria de vida durante a

    velhice, em oposio histria cumulativa da juventude. Uma poca onde j no

    esto ativamente comprometidos, onde j no desempenham papel importante,

    deixa de ter sentido, nela nada acontece; ou, se acontece, apresenta aos seus

    olhos apenas um carter negativo, enquanto seus netos vivem o mesmo tempo

    com todo o fervor que os avs j esqueceram. Os adversrios de um regime

    poltico no reconhecem de bom grado a sua evoluo; o condenam em bloco, o

    rejeitam da histria, como uma espcie de entreato monstruoso depois do qual a

    vida recomear. Completamente diferente a concepo dos partidrios do

    regime, e tanto mais quanto mais estreitamente participarem do seu

    funcionamento. A historicidade, ou mais precisamente, a eventualidade de25

    uma cultura ou de um processo assim funo, no das suas propriedades

    intrnsecas, mas da situao em que nos encontramos em relao a ela, do

    nmero e da diversidade dos interesses envolvidos.

    A oposio entre culturas progressivas e culturas estagnadas parece assim

    resultar, primeiro, de uma diferena de foco. Para o observador de um

    microscpio, os corpos aqum ou alm do foco sobre a lmina, mesmo que

    apenas alguns centsimos de milmetro, parecem confusos e embaralhados, at

    mesmo sequer chegam a aparecer. Uma outra comparao permitir descobrir a

    mesma iluso. a que se utiliza para explicar as bases da teoria da relatividade.

    Com o fim de demonstrar que a dimenso e a velocidade do deslocamento dos

    corpos no so valores absolutos, mas dependem da posio do observador,

    25Ou dito de outra forma, a significao dos eventos, o valor que a eles atribuimos.

    28

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    29/63

    lembramos que, para um viajante sentado janela de um trem, a velocidade e o

    comprimento dos outros trens variam conforme estes se deslocam no mesmo

    sentido ou em sentido inverso. Ora, cada membro de uma cultura to presa a

    ela quanto o o viajante ao trem. Porque, desde o nosso nascimento, o ambiente

    que nos cerca faz penetrar em ns, mediante milhares de processos conscientes

    e inconscientes, um sistema complexo de referncias que consistem em juzos de

    valor, motivaes, interesses, e at mesmo a viso reflexiva que a educao nos

    impe do processo histrico da nossa civilizao, e sem a qual esta se tomaria

    impensvel, ou apareceria em contradio com a realidade. Deslocamo-nos

    carregando este sistema de referncias, e as realidades culturais de fora s so

    observveis atravs das deformaes por ele impostas; isso quando ele no nos

    coloca na impossibilidade de perceber delas o que quer que seja.

    Em grande parte, a distino entre culturas que se movem e culturas

    que no se movem explica-se por uma diferena na posio do observador, a

    mesma que faz com que para o nosso viajante, um trem, na realidade em

    movimento, parea no se mover. verdade que, com uma diferena cuja

    importncia ficar evidente quando tivermos uma teoria da relatividade aplicada

    no s fsica como tambm s cincias sociais; tudo parece se passar de

    maneira idntica, mas inversa. Para o observador do mundo fsico (tal como o

    mostra o exemplo do viajante) so os sistemas que evoluem no mesmo sentido

    que o seu que parecem imveis, enquanto aqueles que vo em sentido diferente

    parecem mais rpidos. Com as culturas se passa o contrrio: nos parecem tanto

    mais ativas quanto mais se deslocam no sentido da nossa, e estacionrias

    quando a sua orientao oposta. Mas, no caso das cincias do homem, o fator

    29

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    30/63

    velocidade tem apenas um sentido metafrico. Para tornar a comparao vlida,

    devemos substitui-la pelo conceito de informao e de significao. Sabemos ser

    possvel acumular muito mais informaes a respeito de um trem que se move

    paralelamente ao nosso, e a uma velocidade prxima (por exemplo, podemos

    nesse caso examinar os viajantes, conta-los etc.) do que sobre um trem que nos

    ultrapassa ou que ultrapassamos a grande velocidade, e que some ainda mais

    rapidamente quando circula na direo contrria. Nesse caso ele passa to

    depressa que guardamos dele apenas uma impresso, na qual aparentemente a

    prpria noo de velocidade est ausente; logo se reduz a uma perturbao

    momentnea do campo visual, j no um trem, j no significa nada. H, pois,

    segundo parece, uma relao entre a noo fsica de movimento aparente e uma

    outra noo, que depende no s da fsica como tambm da psicologia e da

    sociologia, a da quantidade de informao capaz de ser trocada entre dois

    indivduos ou grupos, em funo da maior ou menor diversidade das suas

    respectivas culturas. Todas as vezes que somos levados a qualificar uma cultura

    humana de inerte ou de estacionria devemos, pois, nos perguntar se este

    imobilismo aparente no resulta da nossa ignorncia sobre os seus verdadeiros

    interesses, conscientes ou inconscientes, e se, tendo critrios diferentes dos

    nossos, esta cultura no , em relao a ns, vtima da mesma iluso. Ou melhor,

    aparecemos um ao outro como desprovidos de interesse, muito simplesmente

    porque no nos parecemos.

    A civilizao ocidental voltou-se inteiramente, h cerca de dois ou trs

    sculos, no sentido de pr disposio do homem meios mecnicos cada vez

    mais poderosos. Se adotamos este critrio podemos pensar na quantidade de

    30

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    31/63

    energia disponvel por habitante como expresso do maior ou menor grau de

    desenvolvimento das sociedades humanas. A civilizao ocidental, encabeada

    pelos norte-americanos, ocuparia, ento, o primeiro lugar, seguidos pelas

    sociedades europeias, arrastando atrs de si uma massa de sociedades asiticas

    e africanas. Ora estas centenas ou mesmo milhares de sociedades que

    designamos por subdesenvolvidas ou primitivas, quase se fundem num

    conjunto indiferenciado quando as encaramos sob esta relao (e que no

    prpria para as qualificar, uma vez que baseada numa linha de desenvolvimento

    nelas ausente ou secundrio), veem-se como diametralmente opostas umas s

    outras; de acordo com o ponto de vista escolhido, chegaramos, portanto, a

    classificaes diferentes .26

    Se o critrio adotado tivesse sido o grau de aptido para triunfar nos

    meios geogrficos mais inspitos, no havia qualquer dvida de que os esquims

    , por um lado, e os bedunospor outro, levariam o prmio mximo. A ndia27

    soube, melhor do que qualquer outra civilizao, elaborar um sistema filosfico

    religioso, e a China, um gnero de vida capaz de reduziras consequncias

    psicolgicas de um enorme desequilbrio demogrfico . H treze sculos, o Isl28

    26O raciocnio seguido por Lvi-Straus acabar ia por se tornar s enso-comum nas cincias socia is . O Produto

    Nacional Bruto per capi ta, durante muito tempo considerado o ni co indi cador do gra u de desenvolvi mento de

    um pas, hoje frequentemente constestado, e novos i ndicadores tem sido usados, como por exemplo o I DH,

    ndi ce de Desenvolviemnto Humano. Os resul tados di ferem em muito de acordo c om o ndice adotado.27

    Os esquims tambm tem sofrido as consequencias da integrao com a civilizao ocidental. O filme Nanookof the North, feito pelo antroplogo Robert Flaherty em 1922, mostra uma cul tura ai nda bas tante preservada na

    poca, e sua sofisticada maneira de lidar com o ambiente inspito a que Lvi-Strauss se refere. Este filme est

    dis ponvel na i nternet e frequentemente citado como um cl ss ico do cinema antropolgico.28A sia sempre teve uma populao gi gantesca, com a Chi na frente. Estima-se que por volta da metade do

    sculo 18 a populao da sia j chegasse a a lgo prximo aos 500 milhes de habitantes, enquanto a populao

    da Europa mal ultrapassava os 100 milhes (Mass imo Livi-Bacci,A Concise History of World Population,

    Blackwell, 3a edio, 2001).

    31

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FDemografia_da_Rep%25C3%25BAblica_Popular_da_China&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNHZtpddwlxSAncSRpGEgbjkQ7akcghttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FBedu%25C3%25ADnos&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNFnU94J1wfk3B8y8R2gPrULk1ag8whttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FEsquim%25C3%25B3s&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNFcPCt4Z84n7du4x_2hAeuByAr_Ig
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    32/63

    formulou uma teoria onde todos os aspectos da vida humana tcnica,

    economia, sociedade, vida espiritual esto intimamente relacionados, algo que

    o Ocidente s muito recentemente voltaria a reencontrar, com certos aspectos

    do pensamento marxista e o nascimento da etnologia. Sabemos o lugar

    proeminente que esta viso proftica permitiu aos rabes ocupar na vida

    intelectual da Idade Mdia. O Ocidente, apesar de todo seu domnio sobre as

    mquinas, exibe conhecimentos muito elementares sobre a utilizao e os

    recursos desta mquina suprema que o corpo humano. Neste domnio, pelo

    contrrio, tal como no das relaes entre o fsico e o mental, o Oriente e o

    Extremo Oriente parecem estar milnios a frente; produziram essas vastas

    acumulaes tericas e prticas que so o iogana ndia, as tcnicas de respirao

    chinesas ou a ginstica visceral dos antigos maoris. A agricultura sem terra,

    desde h muito pouco tempo na ordem do dia entre ns, foi praticada durante

    vrios sculos por certos povos polinsios, que poderiam ensinar tambm ao

    mundo a arte da navegao, e que o surpreendeu profundamente no sculo 18,

    revelando um tipo de vida social mais livre e mais generosa do que se poderia

    imaginar.

    Em tudo o que diz respeito organizao da famlia e harmonizao das

    relaes entre o grupo familiar e o grupo social, os aborgenes australianos,

    atrasados no plano econmico, ocupam um lugar to avanado em relao ao

    resto da humanidade que necessrio, para compreender os seus sistemas de

    regras de parentesco, por eles elaborados de maneira consciente e refletida,

    apelar para as formas mais refinadas da matemtica moderna. Na verdade,

    foram eles que descobriram que o casamento forma a trama sobre a qual as

    32

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FAbor%25C3%25ADgenes_australianos&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNHJFnYnAee3Y-tJC1dU0NVqLzPKjghttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FPovos_polin%25C3%25A9sios&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNGBUbrkNdVhzMwHDCcD37PF4sbc9Ahttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FMaoris&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNFWnqTJG5YueHF_zNZFUhr0oglqAAhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FIoga&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNEOztm1GSRDjdxH4a5ACIt7tLxtAwhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FIdade_M%25C3%25A9dia&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNF6zU8RY7BRuMm0FI6g29FmnyY4Lg
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    outras instituies sociais so apenas rendilhados, mesmo porque nas

    sociedades modernas, onde o papel da famlia tende a diminuir, a importncia

    dos laos familiares no menor, atuando apenas num crculo mais estreito, em

    cujos limites, outros laos, outras famlias, vm imediatamente substitui-la. A

    articulao social atravs do casamento pode conduzir formao de fortes

    laos entre um pequeno nmero de grupos ,ou de laos mais estreitos entre um

    grande nmero de grupos. Com uma lucidez admirvel, os aborgenes

    australianos elaboraram a teoria deste mecanismo e inventaram os principais

    mtodos que permitem realiza-la, com as vantagens e os inconvenientes de cada

    uma. Ultrapassaram assim o plano da observao emprica para se elevarem ao

    conhecimento das leis matemticas que regem o sistema. De tal modo que no

    de maneira nenhuma exagerado saudar neles, no apenas os fundadores de toda

    a sociologia geral, mas ainda os verdadeiros introdutores da medida nas cincias

    sociais .29

    A riqueza e a audcia da inveno esttica dos melansios, o seu talento

    para integrar na vida social os produtos mais obscuros da atividade inconsciente

    do esprito, constituem um dos pontos mais altos que os homens alguma vez

    atingiriam. A contribuio da frica mais complexa, mas tambm mais obscura,

    porque s muito recentemente comeamos a imaginar a importncia do seu

    papel como melting pot cultural do Velho Mundo, lugar onde todas as30

    29A estrutura das relaes de parentesco foi um dos temas s obre o qual Lvi-Strauss mais se debruou. Uma

    sntese dirigida ao pblico no-especializado encontra-se emA famlia, captulo XII I da col etnea Homem,

    Cultura e Sociedade organizada por Harry L. Shapiro (Martins Fontes, 1982).

    30Melting pot (ou caldeiro de mistura, em ingls) uma metfora para uma sociedade que se torna mais

    homognea, onde os di ferentes elementos so fundidos e misturados. uma expresso muito usada nos Estados

    Unidos, numa referncia a suposta capacidade da sociedade americana de integrar todas as culturas e grupos

    33

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FMelan%25C3%25A9sia&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNF9CVAQ6zzmj43Iqs4VLG0hCBewvQ
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    influncias vieram se fundir para se transformar ou conservar, mas sempre se

    renovando. A civilizao egpcia, cuja importncia para a humanidade

    conhecemos, s inteligvel como obra comum da sia e da frica, e os grandes

    sistemas polticos da frica antiga, as suas construes jurdicas, as suas

    doutrinas filosficas durante muito tempo escondidas dos Ocidentais, as suas

    artes plsticas e a sua msica, que exploram metodicamente todas as

    possibilidades oferecidas para cada meio de expresso, so outros tantos

    indicadores de um passado extraordinariamente frtil. O que pode ser

    diretamente testemunhado pela perfeio das antigas tcnicas do bronze e do

    cobre, que ultrapassam de longe tudo o que o Ocidente praticava nesses

    domnios na mesma poca.

    Alis, no so de maneira nenhuma estas contribuies fragmentadas que

    devem reter a nossa ateno, porque cometeramos o risco de ficar com a ideia,

    duplamente falsa, de uma civilizao mundial composta maneira de uma colcha

    de retalhos. Muitas vezes tomamos uma parte desta sociedade pelo todo: a

    fencia pela escrita; a chinesa pelo papel, a plvora e a bssola; a indiana no que

    se refere ao vidro e ao ao . Estes elementos tomados individualmente tm31

    menos importncia do que a maneira como cada cultura os agrupa, os retm ou

    os exclui. A originalidade de cada uma delas reside antes na maneira particular

    como resolvem os seus problemas de colocar em perspectiva os valores, que so

    imigrantes que vieram para o pas ao longo de cinco sculos de histria em um todo harmonioso. Aqui, o autor a

    utiliza para designar a fuso de culturas no continente europeu ao longo de milhares, ou dezenas de milhares de

    anos.

    31H evidncias de que tecnologias rudimentares de fabricao do ao j eram conhecidas no sub-continente

    indiano ainda no primeiro milnio da Era Comum.

    34

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    35/63

    aproximadamente os mesmos para todos os homens, porque todos os homens

    sem exceo possuem linguagem, tcnica, arte, conhecimentos do tipo cientfico,

    crenas religiosas, organizao social, econmica e poltica. Mas a dosagem

    destes elementos no a mesma em cada cultura, e a antropologia dedica-se

    cada vez mais a desvendar as origens destas opes, ao invs de catalogar suas

    diferentes caractersticas.

    7. Lugar da civilizao ocidental

    possvel que tal argumentao seja refutada por seu carter terico.

    possvel, algum poderia dizer, no plano de uma lgica mais abstrata,

    simplesmente que cada cultura seja incapaz de emitir um juzo verdadeiro sobre

    outra, pois uma cultura no pode se evadir de si mesma e a sua apreciao sobre

    as demais permanece, portanto, prisioneira de um inevitvel relativismo. Mas ao

    olharmos em volta, atentos ao que se passa no mundo, todas as especulaes

    sero desfeitas. Longe de permanecer isoladas, todas as civilizaes reconhecem

    a superioridade de uma delas, a civilizao ocidental. No vemos o mundo inteiro

    buscar nela cada vez mais as suas tcnicas, o seu estilo de vida, as suas formas

    de lazer e at o seu vesturio? Tal como Digenes provava o movimento

    andando, o prprio progresso das culturas humanas que, desde as imensas

    populaes da sia at s tribos perdidas na selva brasileira ou africana, provam,

    por uma adeso unnime sem precedentes na histria, que uma das formas da

    civilizao humana superior a todas as outras: o que os pases menos

    desenvolvidos reprovam aos outros nas assembleias internacionais no o fato

    de estarem sendo levados ao mesmo tipo de desenvolvimento, mas o fato de que

    35

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    isto ocorre lentamente demais.

    Tocamos aqui no ponto mais sensvel do nosso debate; de nada valeria

    querer defender a originalidade das culturas humanas contra si mesmas. Alm do

    mais, extremamente difcil para o etnlogo fazer uma justa apreciao de um

    fenmeno como a universalizao da civilizao ocidental, e isso por vrias

    razes. Primeiro, a existncia de uma civilizao mundial um fato

    provavelmente nico na histria e cujos precedentes deveriam ser procurados

    numa pr-histria longnqua, sobre a qual no sabemos quase nada. Em seguida,

    existe uma grande incerteza sobre a consistncia do fenmeno em questo. Na

    verdade, desde h sculo e meio, a civilizao ocidental tende, quer na totalidade,

    quer para alguns dos seus elementos-chave como a industrializao, a

    expandir-se no mundo; e, na medida em que as outras culturas procuram

    preservar alguma coisa da sua herana tradicional, esta tentativa reduz-se

    geralmente s superestruturas, isto , aos aspectos mais frgeis e que podemos

    supor que sero varridos pelas profundas transformaes que se verificam em

    camadas mais profundas. Mas o fenmeno est em pleno curso, no

    conhecemos ainda o seu resultado. Acabar numa ocidentalizao integral do

    planeta com variantes russa ou americana? Aparecero formas sincrticas cuja

    possibilidade se percebe j no mundo islmico, na ndia e na China? Ou, antes, o

    movimento est perto de seu fim e vai recrudescer, estando o mundo ocidental

    prestes a sucumbir, como monstros pr-histricos, com uma expanso fsica

    incompatvel com a sua estrutura? Nos esforaremos para avaliar o processo que

    se desenrola aos nossos olhos e do qual somos, consciente ou

    inconscientemente, agentes, auxiliares ou vtimas, tenhamos conscincia disso ou

    36

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    no.

    Comearemos por observar que esta adeso ao gnero de vida ocidental,

    ou a alguns dos seus aspectos, est longe de ser to espontnea quanto os

    ocidentais gostariam que ela fosse. Resulta menos de uma deciso livre do que de

    uma falta de opo. A civilizao ocidental espalhou seus soldados, engenhos,

    feitorias, plantaes e missionrios pelo mundo todo; interveio, direta ou

    indiretamente, na vida das populaes africanas; revolucionou de alto a baixo o

    seu modo de vida, quer impondo o seu, quer instaurando condies que

    engendrariam o desmoronar dos modos de vida tradicionais sem os substituir

    por outra coisa. Aos povos subjugados ou desorganizados no lhes restava

    seno aceitar as solues de substituio que lhes eram oferecidas ou, caso no

    estivessem dispostos a isso, esperar uma aproximao suficiente para estarem

    em condies de os combaterem no mesmo campo. Na ausncia desta

    desigualdade na relao de foras, as sociedades no se entregam com tal

    facilidade; o seu Weltanschauung aproxima-se mais do dessas pobres tribos do32

    Brasil oriental, onde o etngrafo Curt Nimuendaju soube se fazer adotar, e em

    que os indgenas, todas as vezes que ele voltava dos centros urbanos civilizados,

    choravam de piedade s de pensar nos sofrimentos que ele devia ter

    experimentado, longe do lugar na aldeia onde eles julgavam que a vida valia a

    pena ser vivida.

    Todavia, formulando esta reserva, mais no fizemos que deslocar a

    questo. Se no o consentimento que fundamenta a superioridade ocidental,

    32Expresso al em muito usada na filos ofia, si gnifica viso de mundo.

    37

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FCurt_Nimuendaj%25C3%25BA&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNFBvy37zYxjzd9xBY_Esgt-2x3A7Ahttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FWeltanschauung&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNEIJYEW9v6dJkRaCN2a0OiQGDu0mQ
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    no ser ento essa maior vitalidade e energia de que dispe, e que lhe permitiu

    precisamente forar o consentimento dos outros? Atingimos aqui o ponto

    crucial. Porque esta desigualdade de fora no depende da atitude subjetiva.

    um fenmeno objetivo que s pode ser explicado por causas objetivas.

    No se trata de empreender aqui um estudo de filosofia das civilizaes ;33

    volumes e mais volumes poderiam ser dedicados a uma discusso sobre a

    natureza dos valores professados pela civilizao ocidental. Mencionaremos

    apenas os mais manifestos, aqueles que esto menos sujeitos a controvrsia.

    Reduzem-se, segundo parece, a dois: a civilizao ocidental procura, por um lado,

    segundo Leslie White, a aumentar continuamente a quantidade de energia

    disponvel por habitante; mas, por outro, procura proteger e prolongar a vida

    humana e, se quisermos ser breves, podemos considerar que o segundo aspecto

    uma modalidade do primeiro, pois que a quantidade de energia disponvel

    aumenta, em valor absoluto, com a durao e com a sade dos indivduos. Para

    afastar qualquer discusso, admitiremos tambm que estes caracteres podem

    ser acompanhados de fenmenos compensadores que sirvam, de algum modo,

    de freio; por exemplo, as grandes chacinas que constituem as guerras mundiais,

    e a desigualdade na diviso da energia disponvel entre os indivduos e entre as

    classes sociais.

    33E no entanto fil osofia das ci vili zaes parece ser a expresso mais adequada para clas si ficar este tipo de

    discusso. Numa poca que consagrou a micro-histria (focada num aspecto especfico) parece que temos

    poucos autores dedicados a uma macro-histria, ou a uma histria das civilizaes em seu conjunto. Um bem

    conhecido, que no seu cls si co Um estudo em histria faz uma anl is e comparada das ci vili zaes, o

    historiador ingls Arnold Toynbee, a quem Lvi-Strauss cita na bibliografia.

    38

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fen.wikipedia.org%2Fwiki%2FLeslie_White&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNGE3QmIvQi0fyywvxp3sN_g3uBrBA
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    Posto isto, constatamos imediatamente que, se a civilizao ocidental se

    engajou nestas tarefas, com prejuzo das demais, talvez estando a mesmo a sua

    fraqueza, ela no foi certamente a nica. Todas as sociedades humanas, desde

    os tempos mais antigos, agiram no mesmo sentido; e foram sociedades muito

    longnquas e muito arcaicas, que igualaramos com os povos selvagens de hoje,

    que realizaram, neste domnio, os progressos mais decisivos. Mesmo

    atualmente, estes avanos constituem o grosso daquilo que designamos por

    civilizao. Dependemos ainda das imensas descobertas que marcaram aquilo a

    que chamamos, sem qualquer exagero, da revoluo neoltica: a agricultura, a

    criao de gado, a cermica, a tecelagem. Para todas estas conquistas da

    civilizao apenas contribumos, desde h oito ou dez mil anos, com

    aperfeioamentos relativamente pequenos.

    Alguns tm uma tendncia para reservar o privilgio do esforo, da

    inteligncia e da imaginao s descobertas recentes, enquanto as realizadas pela

    humanidade no seu perodo brbaro seriam fruto do acaso, e haveria a, em

    suma, apenas um pouco de mrito. Esta aberrao parece-nos to grave e to

    difundida, e presta-se tanto a impedir uma viso exata da relao entre as

    culturas, que julgamos indispensvel esclarec-la da maneira mais ampla

    possvel.

    8. Acaso e civilizao

    Lemos nos tratados de etnologia, e no s nos piores, que o homem deve

    39

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    o conhecimento do fogo ao acaso de uma fasca ou de um arbusto casualmente

    em chamas; que ao achar uma caa acidentalmente assada nestas condies

    descobriu como cozinhar os alimentos, que a inveno da cermica resulta do

    aquecimento de um punhado de argila perto do fogo. Seria assim possvel supor

    que o homem teria vivido numa espcie de idade de ouro tecnolgica, onde as

    invenes eram colhidas com a mesma facilidade que se colhem os frutos e as

    flores... S ao homem moderno estariam reservadas a fadiga do trabalho e os

    insights geniais...

    Esta viso ingnua resulta de uma total ignorncia da complexidade e da

    diversidade das operaes que esto implicadas nas tcnicas mais elementares.

    Para fabricar um utenslio eficaz de pedra lascada no basta bater numa pedra

    at que esta rache em duas; percebemos isso no dia em que tentamos reproduzir

    os principais tipos de utenslios pr-histricos. Ento e observando tambm a

    mesma tcnica nos indgenas que ainda a possuem descobrimos a complicao

    dos processos indispensveis e que vo, em alguns casos, at a produo

    preliminar de verdadeiras ferramentas de corte: martelos com contrapeso para

    controlar o impacto e a sua direo; dispositivos amortecedores para evitar que a

    vibrao faa rachar a lmina. preciso tambm um vasto conjunto de noes

    sobre a origem, os processos de extrao, a resistncia e a estrutura dos

    materiais utilizados, uma preparao muscular apropriada, o conhecimento dos

    movimentos exatos das mos, entre outras habilidades; numa palavra, uma

    verdadeira liturgia correspondendo, mantidas as devidas propores, aos

    diversos estgios da metalurgia.

    40

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    Do mesmo modo, os incndios naturais podem por vezes grelhar ou assar,

    mas muito difcil conceber (exceto no caso dos fenmenos vulcnicos de

    distribuio geogrfica restrita) que eles faam ferver a gua, ou cozinhar ao

    vapor. Ora estes mtodos de cozinhar no so menos universais do que os

    outros. Logo, no temos razo para excluir do seu aparecimento o dom da

    inveno.

    A produo de objetos de cermica oferece um excelente exemplo, porque

    uma crena muito difundida quer fazer crer que no haja nada de mais simples

    que cavar um punhado de argila e endurece-la ao fogo . Pois que tentem ento.34

    preciso em primeiro lugar descobrir argilas prprias. Depois, so necessrias

    muitas condies naturais, e nenhuma delas por si s suficiente; apenas a

    presena dos minerais precisos na argila, escolhidos em funo do destino que se

    quer dar ao recipiente, resulta num objeto passvel de utilizao. Tcnicas da

    modelagem elaboradas so necessrias para manter um corpo de argila que no

    suporta o seu prprio peso em equilbrio durante um tempo aprecivel,

    enquanto seca, sendo ainda malevel o suficiente para ser moldado; preciso

    finalmente descobrir o combustvel apropriado, as caractersticas do forno, o tipo

    de calor, e a durao do tempo de aquecimento que permitiro torn-la slida e

    34O antroplogo Gordon Childe parece ir ao ponto quando diz: A produo de um pote de cermica no to

    fci l quanto parece. Claro que um vaso pequeno ou objeto em forma de um prato pode ser feito de maneira bemsimples a partir de um punhado de barro [...] Mas se alguma coisa mais complexa o que se quer, esses

    procedimentos elementares so i nsufi cientes. Segundo ele, a confeco de vasos e potes de cermica talvez a

    primeira utilizao consciente pelo homem de uma transformao qumica. A transformao no caso a

    combinao de silica e xido de alumnio (tambm conhecido como alumina) que acontece quando se leva ao

    forno a argil a. As primeiras peas desse tipo aparecem no perodo gravetiano(29.000 a 25.000 AC), mas

    apenas no neoltico que essa complexa tecnologia passa a ser dominada em todos os seus aspectos. No Brasil, a

    cermica marajoara, um exemplo desta arte.

    41

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FMarajoaras&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNGNaA3665HEHiMjBkTjegTu62DkHQhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fen.wikipedia.org%2Fwiki%2FGravettian&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNEydwl5HYbyJaNv1IaMJ8eWDtiQ7w
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    impermevel, evitando o risco de lascar, quebrar ou deformar . Poderamos35

    multiplicar os exemplos. Todas estas operaes so muito numerosas e

    demasiado complexas para que o acaso possa explica-las. Cada uma delas

    tomada isoladamente nada significa, s a sua combinao imaginada, desejada,

    procurada e experimentada permite o xito. O acaso existe, sem dvida, mas por

    si s no permite alcanar qualquer resultado. Durante dois mil e quinhentos

    anos, o mundo ocidental conheceu a existncia da eletricidade, descoberta, sem

    dvida, por acaso; mas este acaso permaneceria estril at os esforos

    intencionais e dirigidos pelas hipteses de Ampre e de Faraday. O acaso no

    desempenhou grande papel na inveno do arco, do bumerangue ou da

    zarabatana, no nascimento da agricultura e da criao de gado, tal como no

    desempenhou na descoberta da penicilina da qual, como sabemos, no esteve

    totalmente ausente. Devemos, pois, distinguir cuidadosamente a transmisso de

    uma tcnica de uma gerao para outra, feita sempre com uma facilidade relativa

    graas observao e preparao cotidiana, e a criao ou melhoramento das

    tcnicas no meio de cada gerao. Estas supem sempre o mesmo poder

    imaginativo e os mesmos esforos encarniados da parte de alguns indivduos,

    qualquer que seja a tcnica particular que tenhamos em vista. As sociedades a

    que chamamos primitivas no tm menos homens como um Pasteur ou um

    35Para a produo dos potes impermeabilizados atravs de vitrificao que comeam a aparecer no perodo

    neoltico necessrio aquecer a pea de argila a que se quer dar forma de maneira controlada a umatemperatura de 600 C. Curiosamente no h em portugus uma palavra especfica para esta arte, denominada

    poterieem francs, epotteryem ingls. Ambas tem a mesma rai z que a pal avra em portuguspote. Mas enquanto

    o francs e o ingls preservam uma palvra especial para esta a tividade to i mportante na histria da

    humanidade, em tradues para o portugus muito como o uso do temo olaria, o que impreciso j que este se

    refere tambm fabricao do tijolo. So coisas diferentes, que embora tenham uma relao (as duas tcnicas

    surgiram no neoltico), tem histrias bem diferentes. Ver V. Gordon Chil de, Man Makes Himself (Spokesman,

    2003).

    42

    http://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FPenicilina&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNElWjkm8iAiIRgLemxRxkcUN7olsAhttp://www.google.com/url?q=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FMichael_Faraday&sa=D&sntz=1&usg=AFQjCNHiIlWnA9EF-HwMnSzkDDOYODAShA
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    Palissy do que as outras.36

    Voltaremos a encontrar o acaso e a probabilida