Upload
livros-cotovia
View
265
Download
9
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Texto de Ruy Duarte de Carvalho
Citation preview
RUY DUARTE DE CARVALHO (n. 1941), an-
golano de origem portuguesa, antropólogo douto-
rado pela École des Hautes Études en Sciences So-
ciales, Paris. Poeta e ficcionista é autor de, entre
outras obras, Os Papéis do Inglês (narrativa, 2000),
Observação Directa (poesia, 2000), Como se o mundonão tivesse Leste (contos, [1977]2003), Vou lá visi-tar pastores (narrativa, 1999), Actas da Maianga –Dizer da(s) guerra(s) em Angola (ensaio, 2003), Pai-sagens propícias (narrativa, 2005) e Lavra. Poesiareunida 1970/2000 (2006), todos publicados nos
Livros Cotovia.
QUINTAL METAFÍSICO
Título: Quintal Metafísico
© Ruy Duarte de Carvalho eEdições Cotovia, Lda., Lisboa 2006
ISBN 972-795-163-5
Ruy Duarte de Carvalho
Quintal Metafísico
Cotovia
… tem um lugar, dizia eu, tem um
ponto no mapa do Brasil, tem um vérti-
ce que é onde os Estados de Goiás, de
Minas Gerais e da Bahia se encontram,
e o Distrito Federal é mesmo ao lado.
Aí, sim, gostaria de ir… é lá que se pas-
sa muita da acção do Grande Sertão: Ve-
redas… e depois descer para o alto São
Francisco, que é o resto das paisagens de
7
Guimarães Rosa… e ao baixo São Fran-
cisco, podendo, ia também… porque
encosta aos Os Sertões euclidianos… sou
estrangeiro aqui e nada me impede de
incorrer no anacronismo de querer ir ver
Guimarães Rosa e Euclides de perto…
Era isto que eu dizia a duas senhoras
paulistanas, sentado à mesa delas numa
soberba fazenda de café do interior pau-
lista… Dizia sim, e assim, mas quase tu-
do, já, a pensar noutra coisa… porque
daquela exacta maneira quase sempre re-
ferida para descrever situações semelhan-
tes, talvez porque não há outra, é que fui
agarrado por certa ideia e envolvido nu-
8
ma bolha de temporalidade e de veloci-
dade de pensamento dessas que não têm
nada a ver com as durações comuns. Du-
rante os escassos segundos em que dizia
esse pouco que disse, eu não estava ven-
do já nem as senhoras que tinha à minha
frente e nem a sala muito extensa e ilu-
minada, de pé direito altíssimo e de um
arranjo que restaurava uma construção
por certo muito antiga até, mas muito ao
gosto da arquitectura e da decoração res-
tauratórias de agora. Pensava noutra sala
de jantar, tão extensa e por certo tão an-
tiga como esta, porém numa fazenda en-
tão praticamente abandonada pela pro-
prietária, ausente durante mais de duas
9
décadas, em França. Ela estaria sentada
agora ali também na companhia de duas
filhas suas, nascidas já em Paris, e de al-
guém verdadeiramente ilustre, Cendrars,
Blaise Cendrars, o escritor, o poeta am-
putado pela primeira guerra mundial e
aventureiro, brilhante e de cigarro, sem-
pre, no canto esquerdo da boca, talvez
mesmo até enquanto agora ali jantava…
e à volta havia mulheres a servi-los, ne-
gras e mulatas, algumas nascidas ainda
no tempo da escravatura. Porque tudo
isso se passava nos anos vinte do século
passado, depois de uma viagem transa-
tlântica que tinham feito juntos, com
10
início em Bolonha e apontada ao porto
cafeeiro de Santos.
*
Estou a escrever, agora, alguns meses
depois de Cendrars me ter vindo à cabe-
ça enquanto jantava com aquelas senho-
ras numa fazenda do interior paulista.
É evidente que andei entretanto a infor-
mar-me sobre Cendrars no Brasil. Na-
quele momento talvez soubesse só, ou
sobretudo me ocorresse apenas de ime-
diato — porque alguma coisa vem dita
na introdução do D’Oultremer à Indigo
que trazia na algibeira — que Cen-
11
drars, no Brasil, tinha estado em fazen-
das de café e que era aí que situava uma
boa parte daquilo que o Brasil o levaria a
escrever depois. Esteve algumas vezes em
propriedades de café da família Prado,
nomeadamente nas fazendas São Marti-
nho e Santa Veridiana, e foi aí que utili-
zou a seu bel-prazer o Marmon, viatura
de luxo, que entra na tal estória das se-
nhoras, e um pequeno Ford que Paulo
Prado colocava à sua inteira disposição
(Cendrars era um apaixonado por viatu-
ras automóveis e num período mais ou
menos próspero da sua vida chegou mes-
mo a ter um Alfa Romeo de desporto
com a cabina desenhada por Georges
12
Braque). Mas esteve também, e nunca
deixou de referir isso como uma das gló-
rias da sua vida, numa outra fazenda de
café à medida exacta do seu desvario
imaginativo. Aí teria dormido, em
1886, o Imperador D. Pedro II, e impe-
rava nela agora, ou veio a imperar na fic-
ção de Blaise Cendrars, um mais que
mítico fazendeiro astrónomo, obstinada
e definitivamente apaixonado por uma
distante, quiçá jamais divisada, Sarah
Bernhard, a divina.
Cendrars situa essa estória, a das se-
nhoras vindas com ele de Paris, numa fa-
zenda então ensombrada por passados
obscuros, e roída por desgostos fundos, a
13
desdobrar-se por dezenas de milhares de
hectares de cafeeiros sem seiva, sufoca-
dos pelo cupim, arbustos, ervas daninhas
e trepadeiras, e queimados pela geada
dos nevoeiros que a madrugada congela-
va, vindos de um lago ao lado, olho de
sáurio, na estória de Cendrars, injectado
e feroz, onde tudo quanto caía, até as nu-
vens do céu e a paisagem invertida — e
o próprio coração do narrador, doente
de amores sem esperança por uma das
senhoras mais novas, dona Maria —
era para aí apodrecer e servir de festim a
jacarés…
Não era o caso desta fazenda onde
eu agora me achava e me deixava alhear
14
assim, possuído pelas minhas divaga-
ções, fulminantes, rápidas, ao ritmo des-
se tempo alterado que é o do desenrolar
de certas percepções, e de que aliás me
iria em breve ver recuperado pela con-
versa efectiva. Esta fazenda, onde eu
agora estava, produz muito, e um muito
valorizado café, servido como privilégio
nos melhores restaurantes de São Pau-
lo… Esta será antes uma fazenda como
a do Morro Azul, onde Cendrars situou
o seu fazendeiro sideral, milhões e mi-
lhões de pequenos arbustos uniforme-
mente verdes, do mesmo tamanho e ida-
de, alinhados a perder de vista, cada
planta tratada, cuidada, abrigada, nu-
15
merada… Para quê procurar dizer o
mesmo de outra maneira se dito assim,
como Cendrars falou há mais de oitenta
anos, soa tão bem?…
*
…tem um lugar, dizia eu então, tem
um ponto no mapa do Brasil, tem um
vértice que é onde os Estados de Goiás,
de Minas Gerais e da Bahia se juntam, e
o Distrito Federal é mesmo ao lado, aí
sim, gostaria de ir… é lá que se passa
muita da acção do Grande Sertão : Vere-
das… e depois descer daí para o alto
São Francisco, que é o resto das paisa-
16
gens de Guimarães Rosa… e ao baixo
São Francisco, podendo, eu ia tam-
bém… porque encosta aos Os Sertões eu-
clidianos… sou estrangeiro aqui, nada
me impede de incorrer no anacronismo
de querer ir ver, de perto, Guimarães Ro-
sa e Euclides…
—E ao médio São Francisco, não?
Richard Burton também andou por
lá…, pergunta-me uma das senhoras,
a mãe, e suspende-se a olhar-me nos
olhos.
Richard Burton?… …Sir Richard
Burton, I presume — respondo eu sus-
17
pendendo, pela minha parte, o manuseio
dos talheres —, o próprio Sir Richard
Burton, sim, o da descoberta das nascen-
tes do Nilo, o da viagem clandestina a
Meca, tradutor das Mil e Uma Noites e
dos Lusíadas, of course… andou pela
Índia, por Goa, Costa do Malabar, pela
Pérsia, Egipto, Harrar, Crimeia, Zanzi-
bar, África Central, Fernando Pó, Ca-
marões, Congo, Daomé, pradaria norte-
-americana, Salt Lake City, Paraguai, Sí-
ria, Trieste… aventureiro e homem de
letras, soldado, espião e diplomata…
que escreveu dúzias de crónicas de via-
gem e dezenas de livros, que foi etnólo-
go, conferencista e tradutor, fluente em
18
vinte e nove línguas. E que praticava,
para além disso, hipnotismo e poesia,
entre outras coisas…
A senhora suspende a suspensão
e olha para a filha… Não confundi com
o actor… Passei na primeira prova…:
— Pois também esse desceu o Rio das
Velhas, de Sabará a Pirapora, e o São
Francisco daí até à foz… E tudo quanto
escreveu, dessa viagem, é sempre a dizer
mal até que na Barra do Rio Grande, já
muito adiantado no Estado da Bahia,
entre a antiga cachoeira do Bom Jardim
e Xique-Xique, encontrou um parente
19
nosso que lhe mostrou a sua colecção de
pedras…
Richard Francis Burton — que nas-
ceu na Inglaterra em 1821, viveu no Bra-
sil entre 1865 e 1868 e veio a morrer, de-
pois de ter sido feito sir, em Trieste com
79 anos — deixou mais de quarenta e
três narrativas de viagem, e no fim da vi-
da, em Trieste, trabalhava em onze livros
eróticos ao mesmo tempo.
E no entanto, enquanto esteve no
Brasil, Burton não publicou nada, ou
quase nada… Traduziu bastante (duran-
te a vida toda Burton escreveu ao ritmo
20
de mil páginas por ano e nunca passou
dois anos sem publicar um livro) mas,
durante os anos do Brasil, artigos poucos
e livros nenhum… O tempo de Burton
no Brasil é visto pelos seus biógrafos co-
mo o da travessia de uma espécie de es-
pesso limbo… É um tempo, dizem eles,
em que Burton arrasta um penoso senti-
mento de derrota. Coisas a ver, sem dú-
vida, com lances recentes ligados à busca
das fontes do Nilo. John Hanning Spe-
ke, o seu companheiro, subalterno e rival
na corrida em que se tinham empenhado
juntos para ver se de uma vez por todas
assinalavam as nascentes do Nilo (era
uma questão que desde Alexandre e Cé-
21
sar mobilizava o imaginário e o espírito
inventivo de todos os que se implicavam
com a África), John Hanning Speke ti-
nha sido encontrado morto, estando já
os dois na Inglaterra depois dessa expe-
dição ter acabado, vítima de suicídio ou
de um assaz inexplicável acidente de ca-
ça, durante uma reunião, nos arredores
de Londres, da associação britânica para
o progresso da ciência em que Burton e
a mulher também participavam.
Já para o fim dessa viagem explorató-
ria acometida por ambos pelas grandes
plagas da África Central, é que Burton,
por fadiga, doença, abatimento, teimosia
22
ou birra, ou simplesmente para se livrar
durante alguns dias da presença de Spe-
ke, de quem já estava farto, não atende
às insistências deste, sempre até aí o mais
frágil, indeciso e incapaz, para que se es-
forcem um pouco mais até alcançar uma
imensa vastidão de águas a dezasseis ridí-
culos dias de marcha, segundo os guias
árabes que levavam. Burton não quer ir
mas Speke decide ainda assim avançar
sozinho, atinge esse mar interior que é
o lago Nyanza, dá-lhe o nome de lago
Vitória, e três dias depois regressa ao
acampamento com a convicção absolu-
ta, apoiada em medições altimétricas, de
ter de facto acabado por achar as verda-
23
deiras e efectivas nascentes do Nilo. Vol-
tam juntos à costa e Speke não perde
tempo, agarra o primeiro navio para
Londres. Burton, sempre mal disposto e
ainda doente, parece não ter pressa ne-
nhuma e prefere prolongar a sua conva-
lescença em Adem. Ele lá sabia das suas
prioridades e só tomará o mesmo rumo
meses depois, tempo suficiente para que,
quando por sua vez atinge Londres, já
conste como válida a hipótese de Speke
ter chegado de facto às cabeceiras do Ni-
lo e Burton não.
Depois disso e de um tempo em que
esteve na Ilha de Fernando Pó como
24
cônsul e aproveitou para espreitar de no-
vo para dentro de África, a partir do rio
Congo e do reino do Daomé, é que foi
nomeado para cônsul também no porto
de Santos.
*
A mulher que o acompanha, odeia
logo Santos e queixa-se à mãe, a quem
escrevia com assiduidade, que o clima
ali é atroz, as pessoas avacalhadas, os
odores nauseabundos, que não dá para
passear sem se afundar em pântanos.
E os negros, tal como a bicharada e a
comida, é tudo, segundo a sua despa-
25
chada expressão, da mesma infecta e des-
prezível qualidade. Adoece mesmo, por
fim, e acabam por ir morar para São
Paulo. Burton partilha vagamente o seu
tempo entre Santos e São Paulo, manda
para Londres relatórios sobre a cultura
do algodão, a geografia do país e o co-
mércio em geral, e traduz, traduz muito.
Quando Isabel deixar o Brasil em julho
de 1868, levará consigo vários manuscri-
tos, entre eles duas traduções em inglês
de textos brasileiros (uma feita por ela,
Iracema, de Alencar, a outra feita pelos
dois, Manuel de Moraes, a chronicle of the
seventeenth century). Mais os cadernos de
onde Burton irá extrair o seu Lacerda’s
26
journey to Cazembe, que é a história das
aventuras de um explorador português
(paulista aliás, parece) na África Central,
mais a introdução para a tradução feita
por Albert Tootal da narrativa do alemão
Hans Staden, que foi cativo de índios do
Brasil entre 1547-55, e muito do que
Burton já tinha trabalhado sobre a obra
de Camões, que foi traduzindo ao longo
de mais de vinte anos e cuja vida tinha
como modelo.
O seu interesse por diamantes, entre-
tanto, atraía-o cada vez com maior fre-
quência ao interior do Brasil. E sempre
com falta de dinheiro, especulava forte
27
sobre as cotações do algodão, do café, do
chumbo, do ouro e dos diamantes. Esca-
pa por isso, por um triz, de ser demitido
das suas funções de consul. Começa en-
tão a dar-se à bebida e após dezoito me-
ses de funções pede três de licença para ir
viajar por Minas Gerais. Argumenta que
quer estudar os recursos mineiros e de-
terminar qual seria o melhor traçado pa-
ra uma linha férrea, mas tem é saudades
de abrir caminhos e não resiste à oportu-
nidade de explorar o curso de um gran-
de rio, o São Francisco.
Cai doente, na volta do São Francis-
co, e é a partir daí que vai deixar-se afun-
28
dar num dos maiores buracos da sua vi-
da. Declaram-lhe uma hepatite que vem
instalar-se sobre um quadro já grave de
afectação pulmonar. Beira a morte entre
sangrias, esculápios e água benta da ca-
pela que Isabel montou em casa, em São
Paulo. Emagrece e os seus cabelos em-
branquecem. Com 47 anos parece que
tem 60. Decide então dar por findo o
seu consulado no Brasil.
*
As senhoras recolhem. As viagens, a
de São Paulo até aqui e a do próprio jan-
tar, foram longas e tensas pelos asfaltos
29
das auto-estradas e por curvas e picadas
da memória. Parti apenas um copo, des-
ta vez, não parti a loiça toda, como há
quem tema que me aconteça sempre.
O pessoal doméstico já recolheu faz tem-
po e há um quintal imenso, cercado pe-
los pavilhões laterais da casa, com um
muro ao fundo, um muro alto, de que só
vejo lances do topo porque a noite brilha
é em cima no céu, luz em baixo é só a
que cintila do fundo da piscina e a de
lâmpadas escondidas nas folhagens dos
cantos. Posso fumar à vontade, agora que
estou sozinho, sem constrangimentos de
cortesia, nestes tempos de campanha an-
titabagística generalizada que o Brasil,
30
tão vizinho da América, vai adoptando
com ostentação e brio e se insinua por
toda a parte, mesmo em salões assim,
onde Cendrars terá ufanamente fumado
desses portentosos charutos de São Félix
a que em tal época o Brasil terá sem dú-
vida recorrido também para brandir e
para espantar o mundo de então. E fu-
ma-se tanto, no entanto, por toda a par-
te aqui. E de tudo, a bem dizer, por de-
trás dos biombos do decoro formal…
Posso enfim agora aqui, neste quintal
que declaro metafísico, basear a excita-
ção no labirinto pessoal das minhas pró-
prias derivas.
31
Se coisas destas ditas assim e agora,
com a evocação de Blaise Cendrars a tra-
balhar-me ainda a cabeça, não estivessem
condenadas a prevenir-me contra banali-
dades toscas quando as confronto a lan-
ces do que ele mesmo diz, ou com vagas
hipóteses do que então diria numa situa-
ção como é esta (mas cada um, afinal,
imagina como e até onde pode e à sua
própria medida…), a luz da piscina em
frente, que vem de um fundo azul e on-
dula em pregas mansas na superfície lim-
pa de uma água espessa, haveria de ser
um avantajado olho, não de sáurio e pu-
trescente como o do lago de Cendrars,
antes farol ciclópico que ao invés de as
32
ver iluminasse a lua e as estrelas… E ou-
so mais imaginar, ali à mão, um desses
dispositivos de controle para accionar e
pôr a deslizar, sobre os rebordos da pisci-
na, uma tela azul que avançasse e recuas-
se, fechando e abrindo, como uma pál-
pebra… O rasgo da minha idéia seria o
da surpresa, do inquietante choque, de
ver, de observar, em função do movi-
mento da pálpebra, a luz da lua e das es-
trelas, em cima, a se extinguir ou a rea-
luminar-se…
33
*
Terá sido num quintal metafísico as-
sim que Cendrars urdiu a ideia da sua
metafísica do café, titulo de um artigo
que publicou em O Jornal de 15 de ou-
tubro de 1927? Considerado por alguns
como um dos documentos mais expres-
sivos da euforia cafeeira paulista, exalta a
vontade, a determinação e a inteligência
do espírito genericamente humano em-
penhado em vencer, com ordem e har-
monia, a força da natureza selvagem.
Soava melhor então do que soa agora,
mas suspeito que ninguém, ainda hoje,
pode ficar indiferente ao espectáculo das
34
geometrias cafeeiras paulistas, milhões e
milhões de pés de café plantados em qui-
côncio e a descoberto. É de facto um mar
esmeralda, um oceano profundo, sombrio e
petrificado.
De pendências metafísicas tenho eu
também andado agora acometido, tenta-
do por refúgios metafísicos ou pela me-
tafísica como refúgio. E é assim que de
transposição em transposição, de pre-
ocupação em ruminação, de ruminação
para ideia, também aqui me vejo à beira
de enredar-me nessa questão maior, por
ser assim mesmo e ter neste momento,
por simpatia, muito boas razões para de-
35
ter-me nela, que é a de saber o que mais
há de temer quem se vê perante o escân-
dalo de ter a sua morte agendada: se é o
desconhecido ou o nada… Nem cedo
também à grata tentação de escrever um
texto para um filme que haveria de cha-
mar-se O Anjo Filmado no Fim do Mun-
do, título sem dúvida tributário de
O Fim do Mundo Filmado pelo Anjo Nos-
sa Senhora, escrito este por Cendrars, evi-
dentemente, mas de que me tinha lem-
brado em Paris precisamente antes de
rumar a São Paulo mas sem saber que
havia de me deter nele agora aqui, quan-
do cruzei com um anjo e o segui, fasci-
nado, durante não mais do que cinco ou
36
dez minutos pelas galerias dos impressio-
nistas do museu do Quai d’Orsay, aca-
bando por fugir depois para a rua, sa-
bendo enfim que na vida a gente cruza
um Anjo é quando, nem que seja só du-
rante um breve instante, fica a saber co-
mo agir na altura. Outras estórias.
Mas posto agora a debater-me com
as figuras de Cendrars e de sir Richard
Burton, após este jantar, acomete-me o
aperto de um outro nó que me tem an-
dado a deter a ideia. É uma vertigem de
datas e de idades. Nunca me senti muito
atraído nem pela literatura nem pela his-
tória da geração imediatamente anterior
37
à minha. Estarei mesmo tentado a admi-
tir que com o tempo, com a idade, qual-
quer um acabará por ser levado a admi-
tir que seu, também, terá sido afinal o
tempo do seu próprio pai. Daqui a cem
anos, para o mundo, os meus filhos e eu
teremos sido, pura e simplesmente, con-
temporâneos. Teremos vivido, grosso
modo, o mesmo tempo. Conheci um bi-
savô meu, de quem me lembro, que
morreu com 96 anos de idade, tinha
eu 5, e terá nascido em 1850. Se a mes-
ma coisa tivesse acontecido a esse meu
bisavô, se ele também tivesse tido um bi-
savô, etc, eu teria sido interveniente de
uma, como chamar-lhe… de uma arti-
38
culação de memórias vivas que remeteria
a 1754… pura pirotecnia… uma cosmo-
agonia… Mas não me larga… Olhando
agora, 2005, daqui, do interior de São
Paulo, para o tempo da chegada de Cen-
drars ao Brasil, 1924 (que foi o ano,
aliás, em que a minha mãe nasceu), faz
81 anos… Sentir-se-ia então Cendrars
tão próximo de 1843 como nós, como
eu me sinto neste momento distante de
1924? Não, Cendrars não tinha nessa al-
tura a mesma idade que eu tenho ago-
ra… Tenho antes a idade que Cendrars
viria a ter (consolação oportuna) no
princípio dos anos 50, quando andavam
a vir a público livros que dariam prova
39
da recuperação do seu vigor criativo, um
tanto por baixo, ao que consta, quando
veio pela primeira vez ao Brasil, a fugir
do cinema e ao encontro dos modernis-
tas… Cendrars nasceu em 1887, tinha
então Sir Richard Burton 66 anos de
idade… Que é quando, segundo uma ti-
pologia do próprio Burton, só resta, a
quem não se precata, fazer o luto da sua
juventude, depois de, cinquentão, ‘quan-
do os dentes escurecem e os cabelos em-
branquecem’, ter passado pela idade em
que se lamenta o tempo gasto e as opor-
tunidades que se perderam e desbarata-
ram. Dos quarenta aos cinquenta, diz
ele, um homem reconhece a sua própria
40
imensa ignorância, depois de ter achado,
entre os vinte e os trinta, que sabia tudo
e não tinha mais nada para aprender. Aos
trinta, com sorte e durante dez anos, po-
derá ter até chegado a pensar que é pos-
sível viver com confiança e fé na vida.
Mas corre então o risco de deixar pos-
suir-se por essa exaltação e mesmo com
calma é aproveitar porque também não
dura. A consciência de ver-se condena-
do a permanecer um consumado igno-
rante, que se lhe impõe a partir dos
quarenta, pode passar a revelar-se em
tudo, inclusive numa constante, sur-
preendente e sempre serôdia e arrasado-
ra surpresa perante as renovadas evidên-
41
cias, cada vez mais irrefutáveis, daquilo
que nunca quis admitir antes. Isto
acrescento eu.
E dou-me por fim conta, e não era
sem tempo, do que está de facto a acon-
tecer-me… E por que não ?
Um livro a insinuar-se? E por que
não? Um livro mais de “viagem”, mas
que também não fosse um desses registos
paraliterários de errâncias e de evasões a
puxar para o sério e para a auto-ajuda.
Que remetesse para os domínios em que
me movo mas admitisse derivas. Tentas-
se evitar aquilo que também poderia ser,
se a intenção fosse essa: a mais vigorosa
42
das penetrações analíticas, uma orgásmi-
ca exposição de evidências e de equações,
um desafio algébrico à plácida aritmética
do senso comum. Ensaiasse tão-só, tal-
vez, dizer do Brasil. A ver, a olhar e a ler,
da maneira como me cabe e se me im-
põe, sem deixar de garantir espaço à con-
dição pessoal de órfão parricida de impé-
rios, à cor da pele, mas que ainda assim,
e a partir daí, tivesse em conta que o Bra-
sil tem sido até agora, e desde o início da
expansão europeia, terreno privilegiado
para observadores e exploradores euro-
peus, ou originários do hemisfério norte,
e para brasileiros, naturalmente, mas tal-
vez não tanto para quem como eu esti-
43
vesse a vir de outro ponto do hemisfé-
rio sul.
*
Livros, sertões, viagens e famílias…
Um programa completo. Fazer do São
Francisco um itinerário de observações
e de leituras, de acercas e de a-propósi-
tos, uma articulação galopante de casos
e comentários, de ideias e de palavras.
Razões bastantes para fazer um livro e
aceitar um convite. Conquanto não per-
ca o pé… A conferência que Cendrars
fez em São Paulo durante a sua primeira
estadia aqui, foi promovida, consta, para
44
ver se lhe arranjavam maneira de ganhar
uns cobres. Por sugestão do próprio Pau-
lo Prado, seu anfitrião, é que as entradas
foram pagas e o dinheiro entregue ao
conferencista. Paulo Prado já estava fi-
cando sem jeito de lhe dar dinheiro a to-
da a hora para as suas pequenas despesas.
E a própria mulher de Paulo Prado viria
mais tarde a contar que um dia, quando
num restaurante, em Paris, Cendrars
achou que era a hora de oferecer-lhe uma
rosa, até para isso cravou, à sua frente,
duzentos francos ao marido dela e mece-
nas dele.
45
Acabou de imprimir-seem Maio de 2006
na Tipografia Guerra (Viseu)numa tiragem de 1500 exemplares.
DEPÓSITO LEGAL 242383/06