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Quintal Metafísico

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Texto de Ruy Duarte de Carvalho

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RUY DUARTE DE CARVALHO (n. 1941), an-

golano de origem portuguesa, antropólogo douto-

rado pela École des Hautes Études en Sciences So-

ciales, Paris. Poeta e ficcionista é autor de, entre

outras obras, Os Papéis do Inglês (narrativa, 2000),

Observação Directa (poesia, 2000), Como se o mundonão tivesse Leste (contos, [1977]2003), Vou lá visi-tar pastores (narrativa, 1999), Actas da Maianga –Dizer da(s) guerra(s) em Angola (ensaio, 2003), Pai-sagens propícias (narrativa, 2005) e Lavra. Poesiareunida 1970/2000 (2006), todos publicados nos

Livros Cotovia.

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QUINTAL METAFÍSICO

Page 5: Quintal Metafísico

Título: Quintal Metafísico

© Ruy Duarte de Carvalho eEdições Cotovia, Lda., Lisboa 2006

ISBN 972-795-163-5

Page 6: Quintal Metafísico

Ruy Duarte de Carvalho

Quintal Metafísico

Cotovia

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Page 8: Quintal Metafísico

… tem um lugar, dizia eu, tem um

ponto no mapa do Brasil, tem um vérti-

ce que é onde os Estados de Goiás, de

Minas Gerais e da Bahia se encontram,

e o Distrito Federal é mesmo ao lado.

Aí, sim, gostaria de ir… é lá que se pas-

sa muita da acção do Grande Sertão: Ve-

redas… e depois descer para o alto São

Francisco, que é o resto das paisagens de

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Guimarães Rosa… e ao baixo São Fran-

cisco, podendo, ia também… porque

encosta aos Os Sertões euclidianos… sou

estrangeiro aqui e nada me impede de

incorrer no anacronismo de querer ir ver

Guimarães Rosa e Euclides de perto…

Era isto que eu dizia a duas senhoras

paulistanas, sentado à mesa delas numa

soberba fazenda de café do interior pau-

lista… Dizia sim, e assim, mas quase tu-

do, já, a pensar noutra coisa… porque

daquela exacta maneira quase sempre re-

ferida para descrever situações semelhan-

tes, talvez porque não há outra, é que fui

agarrado por certa ideia e envolvido nu-

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ma bolha de temporalidade e de veloci-

dade de pensamento dessas que não têm

nada a ver com as durações comuns. Du-

rante os escassos segundos em que dizia

esse pouco que disse, eu não estava ven-

do já nem as senhoras que tinha à minha

frente e nem a sala muito extensa e ilu-

minada, de pé direito altíssimo e de um

arranjo que restaurava uma construção

por certo muito antiga até, mas muito ao

gosto da arquitectura e da decoração res-

tauratórias de agora. Pensava noutra sala

de jantar, tão extensa e por certo tão an-

tiga como esta, porém numa fazenda en-

tão praticamente abandonada pela pro-

prietária, ausente durante mais de duas

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décadas, em França. Ela estaria sentada

agora ali também na companhia de duas

filhas suas, nascidas já em Paris, e de al-

guém verdadeiramente ilustre, Cendrars,

Blaise Cendrars, o escritor, o poeta am-

putado pela primeira guerra mundial e

aventureiro, brilhante e de cigarro, sem-

pre, no canto esquerdo da boca, talvez

mesmo até enquanto agora ali jantava…

e à volta havia mulheres a servi-los, ne-

gras e mulatas, algumas nascidas ainda

no tempo da escravatura. Porque tudo

isso se passava nos anos vinte do século

passado, depois de uma viagem transa-

tlântica que tinham feito juntos, com

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início em Bolonha e apontada ao porto

cafeeiro de Santos.

*

Estou a escrever, agora, alguns meses

depois de Cendrars me ter vindo à cabe-

ça enquanto jantava com aquelas senho-

ras numa fazenda do interior paulista.

É evidente que andei entretanto a infor-

mar-me sobre Cendrars no Brasil. Na-

quele momento talvez soubesse só, ou

sobretudo me ocorresse apenas de ime-

diato — porque alguma coisa vem dita

na introdução do D’Oultremer à Indigo

que trazia na algibeira — que Cen-

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drars, no Brasil, tinha estado em fazen-

das de café e que era aí que situava uma

boa parte daquilo que o Brasil o levaria a

escrever depois. Esteve algumas vezes em

propriedades de café da família Prado,

nomeadamente nas fazendas São Marti-

nho e Santa Veridiana, e foi aí que utili-

zou a seu bel-prazer o Marmon, viatura

de luxo, que entra na tal estória das se-

nhoras, e um pequeno Ford que Paulo

Prado colocava à sua inteira disposição

(Cendrars era um apaixonado por viatu-

ras automóveis e num período mais ou

menos próspero da sua vida chegou mes-

mo a ter um Alfa Romeo de desporto

com a cabina desenhada por Georges

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Braque). Mas esteve também, e nunca

deixou de referir isso como uma das gló-

rias da sua vida, numa outra fazenda de

café à medida exacta do seu desvario

imaginativo. Aí teria dormido, em

1886, o Imperador D. Pedro II, e impe-

rava nela agora, ou veio a imperar na fic-

ção de Blaise Cendrars, um mais que

mítico fazendeiro astrónomo, obstinada

e definitivamente apaixonado por uma

distante, quiçá jamais divisada, Sarah

Bernhard, a divina.

Cendrars situa essa estória, a das se-

nhoras vindas com ele de Paris, numa fa-

zenda então ensombrada por passados

obscuros, e roída por desgostos fundos, a

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desdobrar-se por dezenas de milhares de

hectares de cafeeiros sem seiva, sufoca-

dos pelo cupim, arbustos, ervas daninhas

e trepadeiras, e queimados pela geada

dos nevoeiros que a madrugada congela-

va, vindos de um lago ao lado, olho de

sáurio, na estória de Cendrars, injectado

e feroz, onde tudo quanto caía, até as nu-

vens do céu e a paisagem invertida — e

o próprio coração do narrador, doente

de amores sem esperança por uma das

senhoras mais novas, dona Maria —

era para aí apodrecer e servir de festim a

jacarés…

Não era o caso desta fazenda onde

eu agora me achava e me deixava alhear

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assim, possuído pelas minhas divaga-

ções, fulminantes, rápidas, ao ritmo des-

se tempo alterado que é o do desenrolar

de certas percepções, e de que aliás me

iria em breve ver recuperado pela con-

versa efectiva. Esta fazenda, onde eu

agora estava, produz muito, e um muito

valorizado café, servido como privilégio

nos melhores restaurantes de São Pau-

lo… Esta será antes uma fazenda como

a do Morro Azul, onde Cendrars situou

o seu fazendeiro sideral, milhões e mi-

lhões de pequenos arbustos uniforme-

mente verdes, do mesmo tamanho e ida-

de, alinhados a perder de vista, cada

planta tratada, cuidada, abrigada, nu-

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merada… Para quê procurar dizer o

mesmo de outra maneira se dito assim,

como Cendrars falou há mais de oitenta

anos, soa tão bem?…

*

…tem um lugar, dizia eu então, tem

um ponto no mapa do Brasil, tem um

vértice que é onde os Estados de Goiás,

de Minas Gerais e da Bahia se juntam, e

o Distrito Federal é mesmo ao lado, aí

sim, gostaria de ir… é lá que se passa

muita da acção do Grande Sertão : Vere-

das… e depois descer daí para o alto

São Francisco, que é o resto das paisa-

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Page 18: Quintal Metafísico

gens de Guimarães Rosa… e ao baixo

São Francisco, podendo, eu ia tam-

bém… porque encosta aos Os Sertões eu-

clidianos… sou estrangeiro aqui, nada

me impede de incorrer no anacronismo

de querer ir ver, de perto, Guimarães Ro-

sa e Euclides…

—E ao médio São Francisco, não?

Richard Burton também andou por

lá…, pergunta-me uma das senhoras,

a mãe, e suspende-se a olhar-me nos

olhos.

Richard Burton?… …Sir Richard

Burton, I presume — respondo eu sus-

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pendendo, pela minha parte, o manuseio

dos talheres —, o próprio Sir Richard

Burton, sim, o da descoberta das nascen-

tes do Nilo, o da viagem clandestina a

Meca, tradutor das Mil e Uma Noites e

dos Lusíadas, of course… andou pela

Índia, por Goa, Costa do Malabar, pela

Pérsia, Egipto, Harrar, Crimeia, Zanzi-

bar, África Central, Fernando Pó, Ca-

marões, Congo, Daomé, pradaria norte-

-americana, Salt Lake City, Paraguai, Sí-

ria, Trieste… aventureiro e homem de

letras, soldado, espião e diplomata…

que escreveu dúzias de crónicas de via-

gem e dezenas de livros, que foi etnólo-

go, conferencista e tradutor, fluente em

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Page 20: Quintal Metafísico

vinte e nove línguas. E que praticava,

para além disso, hipnotismo e poesia,

entre outras coisas…

A senhora suspende a suspensão

e olha para a filha… Não confundi com

o actor… Passei na primeira prova…:

— Pois também esse desceu o Rio das

Velhas, de Sabará a Pirapora, e o São

Francisco daí até à foz… E tudo quanto

escreveu, dessa viagem, é sempre a dizer

mal até que na Barra do Rio Grande, já

muito adiantado no Estado da Bahia,

entre a antiga cachoeira do Bom Jardim

e Xique-Xique, encontrou um parente

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nosso que lhe mostrou a sua colecção de

pedras…

Richard Francis Burton — que nas-

ceu na Inglaterra em 1821, viveu no Bra-

sil entre 1865 e 1868 e veio a morrer, de-

pois de ter sido feito sir, em Trieste com

79 anos — deixou mais de quarenta e

três narrativas de viagem, e no fim da vi-

da, em Trieste, trabalhava em onze livros

eróticos ao mesmo tempo.

E no entanto, enquanto esteve no

Brasil, Burton não publicou nada, ou

quase nada… Traduziu bastante (duran-

te a vida toda Burton escreveu ao ritmo

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de mil páginas por ano e nunca passou

dois anos sem publicar um livro) mas,

durante os anos do Brasil, artigos poucos

e livros nenhum… O tempo de Burton

no Brasil é visto pelos seus biógrafos co-

mo o da travessia de uma espécie de es-

pesso limbo… É um tempo, dizem eles,

em que Burton arrasta um penoso senti-

mento de derrota. Coisas a ver, sem dú-

vida, com lances recentes ligados à busca

das fontes do Nilo. John Hanning Spe-

ke, o seu companheiro, subalterno e rival

na corrida em que se tinham empenhado

juntos para ver se de uma vez por todas

assinalavam as nascentes do Nilo (era

uma questão que desde Alexandre e Cé-

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Page 23: Quintal Metafísico

sar mobilizava o imaginário e o espírito

inventivo de todos os que se implicavam

com a África), John Hanning Speke ti-

nha sido encontrado morto, estando já

os dois na Inglaterra depois dessa expe-

dição ter acabado, vítima de suicídio ou

de um assaz inexplicável acidente de ca-

ça, durante uma reunião, nos arredores

de Londres, da associação britânica para

o progresso da ciência em que Burton e

a mulher também participavam.

Já para o fim dessa viagem explorató-

ria acometida por ambos pelas grandes

plagas da África Central, é que Burton,

por fadiga, doença, abatimento, teimosia

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ou birra, ou simplesmente para se livrar

durante alguns dias da presença de Spe-

ke, de quem já estava farto, não atende

às insistências deste, sempre até aí o mais

frágil, indeciso e incapaz, para que se es-

forcem um pouco mais até alcançar uma

imensa vastidão de águas a dezasseis ridí-

culos dias de marcha, segundo os guias

árabes que levavam. Burton não quer ir

mas Speke decide ainda assim avançar

sozinho, atinge esse mar interior que é

o lago Nyanza, dá-lhe o nome de lago

Vitória, e três dias depois regressa ao

acampamento com a convicção absolu-

ta, apoiada em medições altimétricas, de

ter de facto acabado por achar as verda-

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Page 25: Quintal Metafísico

deiras e efectivas nascentes do Nilo. Vol-

tam juntos à costa e Speke não perde

tempo, agarra o primeiro navio para

Londres. Burton, sempre mal disposto e

ainda doente, parece não ter pressa ne-

nhuma e prefere prolongar a sua conva-

lescença em Adem. Ele lá sabia das suas

prioridades e só tomará o mesmo rumo

meses depois, tempo suficiente para que,

quando por sua vez atinge Londres, já

conste como válida a hipótese de Speke

ter chegado de facto às cabeceiras do Ni-

lo e Burton não.

Depois disso e de um tempo em que

esteve na Ilha de Fernando Pó como

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Page 26: Quintal Metafísico

cônsul e aproveitou para espreitar de no-

vo para dentro de África, a partir do rio

Congo e do reino do Daomé, é que foi

nomeado para cônsul também no porto

de Santos.

*

A mulher que o acompanha, odeia

logo Santos e queixa-se à mãe, a quem

escrevia com assiduidade, que o clima

ali é atroz, as pessoas avacalhadas, os

odores nauseabundos, que não dá para

passear sem se afundar em pântanos.

E os negros, tal como a bicharada e a

comida, é tudo, segundo a sua despa-

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Page 27: Quintal Metafísico

chada expressão, da mesma infecta e des-

prezível qualidade. Adoece mesmo, por

fim, e acabam por ir morar para São

Paulo. Burton partilha vagamente o seu

tempo entre Santos e São Paulo, manda

para Londres relatórios sobre a cultura

do algodão, a geografia do país e o co-

mércio em geral, e traduz, traduz muito.

Quando Isabel deixar o Brasil em julho

de 1868, levará consigo vários manuscri-

tos, entre eles duas traduções em inglês

de textos brasileiros (uma feita por ela,

Iracema, de Alencar, a outra feita pelos

dois, Manuel de Moraes, a chronicle of the

seventeenth century). Mais os cadernos de

onde Burton irá extrair o seu Lacerda’s

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Page 28: Quintal Metafísico

journey to Cazembe, que é a história das

aventuras de um explorador português

(paulista aliás, parece) na África Central,

mais a introdução para a tradução feita

por Albert Tootal da narrativa do alemão

Hans Staden, que foi cativo de índios do

Brasil entre 1547-55, e muito do que

Burton já tinha trabalhado sobre a obra

de Camões, que foi traduzindo ao longo

de mais de vinte anos e cuja vida tinha

como modelo.

O seu interesse por diamantes, entre-

tanto, atraía-o cada vez com maior fre-

quência ao interior do Brasil. E sempre

com falta de dinheiro, especulava forte

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Page 29: Quintal Metafísico

sobre as cotações do algodão, do café, do

chumbo, do ouro e dos diamantes. Esca-

pa por isso, por um triz, de ser demitido

das suas funções de consul. Começa en-

tão a dar-se à bebida e após dezoito me-

ses de funções pede três de licença para ir

viajar por Minas Gerais. Argumenta que

quer estudar os recursos mineiros e de-

terminar qual seria o melhor traçado pa-

ra uma linha férrea, mas tem é saudades

de abrir caminhos e não resiste à oportu-

nidade de explorar o curso de um gran-

de rio, o São Francisco.

Cai doente, na volta do São Francis-

co, e é a partir daí que vai deixar-se afun-

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Page 30: Quintal Metafísico

dar num dos maiores buracos da sua vi-

da. Declaram-lhe uma hepatite que vem

instalar-se sobre um quadro já grave de

afectação pulmonar. Beira a morte entre

sangrias, esculápios e água benta da ca-

pela que Isabel montou em casa, em São

Paulo. Emagrece e os seus cabelos em-

branquecem. Com 47 anos parece que

tem 60. Decide então dar por findo o

seu consulado no Brasil.

*

As senhoras recolhem. As viagens, a

de São Paulo até aqui e a do próprio jan-

tar, foram longas e tensas pelos asfaltos

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Page 31: Quintal Metafísico

das auto-estradas e por curvas e picadas

da memória. Parti apenas um copo, des-

ta vez, não parti a loiça toda, como há

quem tema que me aconteça sempre.

O pessoal doméstico já recolheu faz tem-

po e há um quintal imenso, cercado pe-

los pavilhões laterais da casa, com um

muro ao fundo, um muro alto, de que só

vejo lances do topo porque a noite brilha

é em cima no céu, luz em baixo é só a

que cintila do fundo da piscina e a de

lâmpadas escondidas nas folhagens dos

cantos. Posso fumar à vontade, agora que

estou sozinho, sem constrangimentos de

cortesia, nestes tempos de campanha an-

titabagística generalizada que o Brasil,

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Page 32: Quintal Metafísico

tão vizinho da América, vai adoptando

com ostentação e brio e se insinua por

toda a parte, mesmo em salões assim,

onde Cendrars terá ufanamente fumado

desses portentosos charutos de São Félix

a que em tal época o Brasil terá sem dú-

vida recorrido também para brandir e

para espantar o mundo de então. E fu-

ma-se tanto, no entanto, por toda a par-

te aqui. E de tudo, a bem dizer, por de-

trás dos biombos do decoro formal…

Posso enfim agora aqui, neste quintal

que declaro metafísico, basear a excita-

ção no labirinto pessoal das minhas pró-

prias derivas.

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Page 33: Quintal Metafísico

Se coisas destas ditas assim e agora,

com a evocação de Blaise Cendrars a tra-

balhar-me ainda a cabeça, não estivessem

condenadas a prevenir-me contra banali-

dades toscas quando as confronto a lan-

ces do que ele mesmo diz, ou com vagas

hipóteses do que então diria numa situa-

ção como é esta (mas cada um, afinal,

imagina como e até onde pode e à sua

própria medida…), a luz da piscina em

frente, que vem de um fundo azul e on-

dula em pregas mansas na superfície lim-

pa de uma água espessa, haveria de ser

um avantajado olho, não de sáurio e pu-

trescente como o do lago de Cendrars,

antes farol ciclópico que ao invés de as

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Page 34: Quintal Metafísico

ver iluminasse a lua e as estrelas… E ou-

so mais imaginar, ali à mão, um desses

dispositivos de controle para accionar e

pôr a deslizar, sobre os rebordos da pisci-

na, uma tela azul que avançasse e recuas-

se, fechando e abrindo, como uma pál-

pebra… O rasgo da minha idéia seria o

da surpresa, do inquietante choque, de

ver, de observar, em função do movi-

mento da pálpebra, a luz da lua e das es-

trelas, em cima, a se extinguir ou a rea-

luminar-se…

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Page 35: Quintal Metafísico

*

Terá sido num quintal metafísico as-

sim que Cendrars urdiu a ideia da sua

metafísica do café, titulo de um artigo

que publicou em O Jornal de 15 de ou-

tubro de 1927? Considerado por alguns

como um dos documentos mais expres-

sivos da euforia cafeeira paulista, exalta a

vontade, a determinação e a inteligência

do espírito genericamente humano em-

penhado em vencer, com ordem e har-

monia, a força da natureza selvagem.

Soava melhor então do que soa agora,

mas suspeito que ninguém, ainda hoje,

pode ficar indiferente ao espectáculo das

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Page 36: Quintal Metafísico

geometrias cafeeiras paulistas, milhões e

milhões de pés de café plantados em qui-

côncio e a descoberto. É de facto um mar

esmeralda, um oceano profundo, sombrio e

petrificado.

De pendências metafísicas tenho eu

também andado agora acometido, tenta-

do por refúgios metafísicos ou pela me-

tafísica como refúgio. E é assim que de

transposição em transposição, de pre-

ocupação em ruminação, de ruminação

para ideia, também aqui me vejo à beira

de enredar-me nessa questão maior, por

ser assim mesmo e ter neste momento,

por simpatia, muito boas razões para de-

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Page 37: Quintal Metafísico

ter-me nela, que é a de saber o que mais

há de temer quem se vê perante o escân-

dalo de ter a sua morte agendada: se é o

desconhecido ou o nada… Nem cedo

também à grata tentação de escrever um

texto para um filme que haveria de cha-

mar-se O Anjo Filmado no Fim do Mun-

do, título sem dúvida tributário de

O Fim do Mundo Filmado pelo Anjo Nos-

sa Senhora, escrito este por Cendrars, evi-

dentemente, mas de que me tinha lem-

brado em Paris precisamente antes de

rumar a São Paulo mas sem saber que

havia de me deter nele agora aqui, quan-

do cruzei com um anjo e o segui, fasci-

nado, durante não mais do que cinco ou

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Page 38: Quintal Metafísico

dez minutos pelas galerias dos impressio-

nistas do museu do Quai d’Orsay, aca-

bando por fugir depois para a rua, sa-

bendo enfim que na vida a gente cruza

um Anjo é quando, nem que seja só du-

rante um breve instante, fica a saber co-

mo agir na altura. Outras estórias.

Mas posto agora a debater-me com

as figuras de Cendrars e de sir Richard

Burton, após este jantar, acomete-me o

aperto de um outro nó que me tem an-

dado a deter a ideia. É uma vertigem de

datas e de idades. Nunca me senti muito

atraído nem pela literatura nem pela his-

tória da geração imediatamente anterior

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Page 39: Quintal Metafísico

à minha. Estarei mesmo tentado a admi-

tir que com o tempo, com a idade, qual-

quer um acabará por ser levado a admi-

tir que seu, também, terá sido afinal o

tempo do seu próprio pai. Daqui a cem

anos, para o mundo, os meus filhos e eu

teremos sido, pura e simplesmente, con-

temporâneos. Teremos vivido, grosso

modo, o mesmo tempo. Conheci um bi-

savô meu, de quem me lembro, que

morreu com 96 anos de idade, tinha

eu 5, e terá nascido em 1850. Se a mes-

ma coisa tivesse acontecido a esse meu

bisavô, se ele também tivesse tido um bi-

savô, etc, eu teria sido interveniente de

uma, como chamar-lhe… de uma arti-

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Page 40: Quintal Metafísico

culação de memórias vivas que remeteria

a 1754… pura pirotecnia… uma cosmo-

agonia… Mas não me larga… Olhando

agora, 2005, daqui, do interior de São

Paulo, para o tempo da chegada de Cen-

drars ao Brasil, 1924 (que foi o ano,

aliás, em que a minha mãe nasceu), faz

81 anos… Sentir-se-ia então Cendrars

tão próximo de 1843 como nós, como

eu me sinto neste momento distante de

1924? Não, Cendrars não tinha nessa al-

tura a mesma idade que eu tenho ago-

ra… Tenho antes a idade que Cendrars

viria a ter (consolação oportuna) no

princípio dos anos 50, quando andavam

a vir a público livros que dariam prova

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Page 41: Quintal Metafísico

da recuperação do seu vigor criativo, um

tanto por baixo, ao que consta, quando

veio pela primeira vez ao Brasil, a fugir

do cinema e ao encontro dos modernis-

tas… Cendrars nasceu em 1887, tinha

então Sir Richard Burton 66 anos de

idade… Que é quando, segundo uma ti-

pologia do próprio Burton, só resta, a

quem não se precata, fazer o luto da sua

juventude, depois de, cinquentão, ‘quan-

do os dentes escurecem e os cabelos em-

branquecem’, ter passado pela idade em

que se lamenta o tempo gasto e as opor-

tunidades que se perderam e desbarata-

ram. Dos quarenta aos cinquenta, diz

ele, um homem reconhece a sua própria

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Page 42: Quintal Metafísico

imensa ignorância, depois de ter achado,

entre os vinte e os trinta, que sabia tudo

e não tinha mais nada para aprender. Aos

trinta, com sorte e durante dez anos, po-

derá ter até chegado a pensar que é pos-

sível viver com confiança e fé na vida.

Mas corre então o risco de deixar pos-

suir-se por essa exaltação e mesmo com

calma é aproveitar porque também não

dura. A consciência de ver-se condena-

do a permanecer um consumado igno-

rante, que se lhe impõe a partir dos

quarenta, pode passar a revelar-se em

tudo, inclusive numa constante, sur-

preendente e sempre serôdia e arrasado-

ra surpresa perante as renovadas evidên-

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Page 43: Quintal Metafísico

cias, cada vez mais irrefutáveis, daquilo

que nunca quis admitir antes. Isto

acrescento eu.

E dou-me por fim conta, e não era

sem tempo, do que está de facto a acon-

tecer-me… E por que não ?

Um livro a insinuar-se? E por que

não? Um livro mais de “viagem”, mas

que também não fosse um desses registos

paraliterários de errâncias e de evasões a

puxar para o sério e para a auto-ajuda.

Que remetesse para os domínios em que

me movo mas admitisse derivas. Tentas-

se evitar aquilo que também poderia ser,

se a intenção fosse essa: a mais vigorosa

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Page 44: Quintal Metafísico

das penetrações analíticas, uma orgásmi-

ca exposição de evidências e de equações,

um desafio algébrico à plácida aritmética

do senso comum. Ensaiasse tão-só, tal-

vez, dizer do Brasil. A ver, a olhar e a ler,

da maneira como me cabe e se me im-

põe, sem deixar de garantir espaço à con-

dição pessoal de órfão parricida de impé-

rios, à cor da pele, mas que ainda assim,

e a partir daí, tivesse em conta que o Bra-

sil tem sido até agora, e desde o início da

expansão europeia, terreno privilegiado

para observadores e exploradores euro-

peus, ou originários do hemisfério norte,

e para brasileiros, naturalmente, mas tal-

vez não tanto para quem como eu esti-

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Page 45: Quintal Metafísico

vesse a vir de outro ponto do hemisfé-

rio sul.

*

Livros, sertões, viagens e famílias…

Um programa completo. Fazer do São

Francisco um itinerário de observações

e de leituras, de acercas e de a-propósi-

tos, uma articulação galopante de casos

e comentários, de ideias e de palavras.

Razões bastantes para fazer um livro e

aceitar um convite. Conquanto não per-

ca o pé… A conferência que Cendrars

fez em São Paulo durante a sua primeira

estadia aqui, foi promovida, consta, para

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Page 46: Quintal Metafísico

ver se lhe arranjavam maneira de ganhar

uns cobres. Por sugestão do próprio Pau-

lo Prado, seu anfitrião, é que as entradas

foram pagas e o dinheiro entregue ao

conferencista. Paulo Prado já estava fi-

cando sem jeito de lhe dar dinheiro a to-

da a hora para as suas pequenas despesas.

E a própria mulher de Paulo Prado viria

mais tarde a contar que um dia, quando

num restaurante, em Paris, Cendrars

achou que era a hora de oferecer-lhe uma

rosa, até para isso cravou, à sua frente,

duzentos francos ao marido dela e mece-

nas dele.

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Acabou de imprimir-seem Maio de 2006

na Tipografia Guerra (Viseu)numa tiragem de 1500 exemplares.

DEPÓSITO LEGAL 242383/06