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A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa [email protected] www.marcador.pt facebook.com/marcadoreditora © 2015 Direitos reservados para Marcador Editora uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena © 2010 Arnoldo Mondadori Editore S.p.A., Milano Título original: Mi Piaci Ancora Cosi Título: Se Estivesses Aqui Autor: Francesco Gungui Tradução: Alexandra Cardoso Revisão: Sérgio Fernandes Paginação: Maria João Gomes Capa:Vera Braga / Marcador Editora Imagem de capa: © Lara Zankoul Photography Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda. ISBN: 978-989-754-150-6 Depósito legal: 393 942/15 1.ª edição: julho de 2015

Queluz de Baixo Título: Se Estivesses Aqui Autor ...FRANCESCO GuNGuI – Desculpa, mas é o que quero fazer… A Alice permanece em silêncio, contemplando o lago onde uma criança

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A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

[email protected]/marcadoreditora

© 2015Direitos reservados para Marcador Editorauma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 Barcarena

© 2010 Arnoldo Mondadori Editore S.p.A., Milano

Título original: Mi Piaci Ancora CosiTítulo: Se Estivesses AquiAutor: Francesco GunguiTradução: Alexandra CardosoRevisão: Sérgio FernandesPaginação: Maria João GomesCapa: Vera Braga / Marcador EditoraImagem de capa: © Lara Zankoul PhotographyImpressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.

ISBN: 978-989-754-150-6Depósito legal: 393 942/15

1.ª edição: julho de 2015

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Luca

E se o fim do mundo estivesse prestes a chegar? E se nos encontrás-semos perante uma nova glaciação? Esta seria a primeira cena do

filme: um rapaz e uma rapariga, que passeiam tranquilamente por um parque, de mãos dadas, conversando sobre eles, sobre o futuro, não sa-bendo que o tempo de que dispõem está prestes a terminar… embora, geralmente, nos filmes, os personagens sintam que o fim do mundo se está a aproximar para poderem fazer, em vinte e quatro ou quarenta e oito horas, tudo aquilo a que nunca se atreveram.

– Luca, pode-se saber em que é que estás a pensar? – pergunta- -me a Alice. – E porque é que me trouxeste ao parque?

– Já sabes que não gosto de falar sentado.– Então fala, estou aqui.– O que farias se te dissesse que o mundo está prestes a acabar?A Alice ergue os olhos para o céu e sorri. A seguir olha para mim,

abanando a cabeça. Sabe que não darei o braço a torcer até ter obtido uma resposta.

– Está bem… Acho que tentaria passar o tempo que me resta com as pessoas de quem gosto; é o que todos dizem, não é? Mas o que é que isso tem que ver com o que me queres dizer?

– Nada, nada. Estava apenas a divagar.– Está bem… E, então, qual é a novidade?– Ali, já decidi. Quero tentar.Caminhamos à volta do lago do parque Sempione, um dos meus

lugares favoritos de Milão. As árvores já começaram a perder as suas folhas e eu já me comecei a questionar como é que o raio dos patos fazem para não terem frio, já que passam o dia todo de molho.

A Alice não diz nada, nem sequer me olha nos olhos. Limita-se a continuar a andar, mas afrouxa um pouco a mão que está entrelaçada na minha.

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FRANCESCO GuNGuI

– Desculpa, mas é o que quero fazer…A Alice permanece em silêncio, contemplando o lago onde uma

criança dá de comer a uns patinhos.– Então, decidiste? – pergunta-me. Nota-se, porém, que outros

pensamentos se agitam na sua cabeça.– Sim, acho que sim. Ainda não contei a ninguém. És a primeira

a saber.– E quando é que te dizem se foste admitido?– Talvez em fevereiro… Então, se me puder matricular, terei de lá

voltar no verão.– E como é que vais fazer com os documentos, o visto, todas essas

coisas…? E onde vais morar? – pergunta-me ela. Mas é evidente que isto não é o que me queria perguntar.

– Alugo um apartamento. Já vi um site que tem um monte de anúncios. Para os papéis, tiro o visto de turista, que dura três meses; depois, se me aceitarem na faculdade, dão-me o visto de estudante.

A Alice sorri com amargura e abana a cabeça, como sempre faz quando um pensamento triste toma forma na sua mente.

– O que se passa? – pergunto-lhe.– E se não te aceitarem?– Se não me aceitarem, volto para cá e inscrevo-me em alguma

coisa. Mas quero tentar. Ali, eu sei que depois vai ser mais difícil, mas tu também vais terminar a escola e depois será tudo mais fácil; podes vir visitar-me, ou talvez possas estudar lá. O que quero dizer é que, no final, tu também vais ter de decidir o que queres fazer.

– Sim, mas não tenho nenhuma intenção de me ir embora, nem sequer sei o que quero fazer.

– É exatamente por isso que não faz sentido fecharmos agora as portas. É melhor que cada um siga o seu caminho, e depois… depois logo nos havemos de lembrar de alguma coisa.

– Luca, agora o problema não sou eu, nós não somos o problema. O que acontece é que não entendo o que é que te fez mudar de opi-nião. Porque é que queres ir para tão longe? Qual é a necessidade? Aqui, em Milão, podias fazer o mesmo, ou não?

– Não quero estar em Milão e nem sequer em Itália. Aqui… tudo me dá nojo, os políticos, as pessoas, tudo.

– O que queres dizer? Do que falas? – pergunta-me a Alice, com uma voz esganiçada, que trai o seu nervosismo.

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– Os fascistas, as trivialidades, tanto palavreado… Ali, juro que es-tou a começar a odiar as pessoas… Sei que isso é errado, mas não o consigo evitar.

Inexplicavelmente, ela sorri perante as minhas palavras, o que me demonstra que nunca a irei entender.

– Luca, eu concordo contigo em muitas dessas coisas e, além dis-so… além disso, gosto do modo como te explicas… Mas porque tens de fugir? Porque não ficas aqui e tentas mudar as coisas?

– Não estou a fugir. Só quero fazer alguma coisa na vida, algo de diferente; por isso, como primeiro passo, quero sair daqui.

– E para ti a solução para tudo é ir para os Estados unidos? Para estudar Economia? Não te percebo. Dizias que querias… Falavas-me de cinema, de literatura, havia um monte de coisas que te entusiasmavam. O que é que te fez mudar de ideias? Tu não és assim.

Alice para e, desta vez, larga-me a mão. Olha para o lago, como se existisse um horizonte infinito. um novo grupo de patos avança em direção à criança, que continua na margem a atirar pedaços de pão seco. Mas há também um patinho que permanece afastado, alheio à comida.

– Olha, aquele és tu – diz a Alice, apontando para o patinho com um gesto de cabeça. – Ficaste sempre assim, afastado. Olhaste sempre para o mundo a partir das laterais e era por isso que eu gostava de ti, foi por isso que me apaixonei por ti. Tinha a certeza de que, quando de-cidisses fazer alguma coisa… não sei, tinha a certeza de que inventarias algo incrível, tinha a certeza de que me surpreenderias. E agora vês de repente uma criança a atirar pão seco à água, atiras tudo ao ar e vais a correr apanhar o teu pedaço com os outros…

– Ali, mas é exatamente para evitar tudo isso que me vou embora. Se ficar aqui, isso significa que… Pronto, é inútil, tu também não me entendes.

– Não, Luca, eu procuro compreender-te, tento mesmo, mas o que es-tás a fazer parece-me absurdo. Queres ir-te embora, dizes que queres partir, e, portanto, vais matricular-te em Economia nos Estados unidos. O que é que isso significa? Queres tornar-te um empresário? Desde quando?

A Alice para de falar e baixa a cabeça. O telemóvel toca-lhe no bolso, mas ela ignora-o.

– O incrível – continua – é que até mesmo os teus pais te apoiam e te dizem para fazeres aquilo de que mais gostas, o que tiver mais que ver contigo, e tu…

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– Não percebes que o pior é exatamente isso? Não entendes que é essa vida que eu não quero? Os meus pais tomaram as suas próprias decisões, eu quero tomar as minhas.

– E fugir seria uma decisão?– Ali, tu recusas-te a compreender, e, se ainda fosses minha amiga,

estou convencido de que estarias neste momento do meu lado.– Luca, eu sou tua amiga… mas também sou a tua namorada e se

decidires ir viver para outro continente tenho de o aceitar. Mas pergunto--te uma coisa: como é que achas que podemos continuar juntos?

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Alice

E é por uma história à distância que estás a ficar tão stressada? Querida, acorda, estamos no século xxi!

– Precisamente. Ainda não inventaram o teletransporte.– Alice, há o Skype e o Facebook, há tarifas para o estrangeiro…– Que bom, então não há problema, convenceste-me. Sou uma

tonta, há o Facebook, uau… Vá, lá, Mary…O cappuccino com a Mary no bar em frente à escola é um dos

meus rituais favoritos. Todas as quartas-feiras, quando tenho Religião à primeira hora, encontramo-nos no bar às oito e meia para tomar o pequeno-almoço juntas. Ela põe-me ao corrente das suas histórias com os seus namorados e eu conto-lhe os meus problemas.

– Além disso, existem os voos low cost. Vocês não vão deixar de se ver.

– Se não fosse o facto de eu ter de ir à escola e de não poder apa-nhar um avião quando me apetece…

– Mas então já se decidiu? – pergunta-me, abandonando por um instante o seu trabalho de persuasão ao estilo «As relações à distância são a coisa mais bela do mundo».

– Sim, ia hoje falar com o pai. O que eu não consigo entender é o que o fez mudar de ideias. Deve ter acontecido alguma coisa.

– uma pessoa pode mudar de ideias, mesmo sem ter acontecido nada, não pode?

– Sim, claro que pode, mas decidir de um dia para o outro fazer o oposto do que queria fazer dá que pensar…

– Céus, olha que tu e o Luca são complicados.Fico alguns segundos em silêncio, enquanto dois homens de casaco

e gravata entram no bar e avançam rapidamente em direção ao balcão. Vestem-se do mesmo modo, com um fato cinzento-escuro e sapatos cas-tanhos, ambos têm alguns quilos a mais e, quando fecham o seu peque-no guarda-chuva, parece que estou a testemunhar um espetáculo de

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natação sincronizada. Tento imaginar o Luca com mais uns quilos, um pouco menos de cabelo e de casaco e gravata. Não, a ideia é definitiva-mente inaceitável.

– O que tens? – questiona-me a Mary. Devo ter feito uma cara estranha.

– Não quero que o Luca fique como aqueles – digo, indicando com a cabeça os dois tipos.

A Mary vira-se para os ver, mas eles já estão a olhar para onde nós estamos. Fazem-no pelo canto do olho e continuam a falar como se nada fosse… A verdade é que a Mary nunca passa despercebida. Esta manhã está com uma camisola branca muito decotada e um colar de pérolas, enquanto debaixo da mesa se veem perfeitamente as suas per-nas, envoltas em meias pretas. Teoricamente traz também uma espécie de minissaia, mas que quase não se vê. A cada pestanejar faz com que dez rapazes se voltem. Para que dez rapazes se voltassem para olhar para mim num bar, eu teria de mergulhar de cabeça do balcão.

– Eu também não me vejo num relacionamento à distância! – ex-clamo, nesse momento, para esclarecer bem a situação.

– Bem, eu sim – responde a Mary, com um sorriso malicioso –, um relacionamento por webcam… Sabes as coisas que se podem fazer?

– Como o quê?A Mary não responde. Limita-se a lançar-me um olhar cúmplice.– Não estás a pensar naquilo que imagino… – afirmo, apesar de

saber que na sua cabeça não existe outra coisa.– Oh, Alice, mas tu és mesmo puritana! – diz-me, em tom de gozo.– Claro, na tua opinião devia dedicar-me ao striptease.– E porque não?– Como «porque não»? Porque não sou como tu; se fosse como tu

fá-lo-ia, mas como não sou…– Vais pôr-te a dizer o quanto o amas e como sentes saudades dele?…– Sim, temperando tudo com alguma choraminguice e umas ceni-

nhas de ciúmes.A Mary termina o cappuccino. Depois olha para mim com calma,

altura em que devemos começar a temê-la.– De que é que tens medo? – pergunta-me.Sim, de que tenho medo?Tenho medo de que o Luca conheça uma jeitosa estrangeira e

vá para a cama com ela, tenho medo de que descubra uma vida mais

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divertida e gratificante e de que se lembre com aborrecimento da sua antiga vida em Milão, tenho medo de que me esqueça, tenho medo de perder a nossa intimidade, tenho medo de que os nossos caminhos se se-parem, tenho medo de que esse distanciamento nos afaste para sempre.

– Tenho medo de o perder – admito.– Ali, o Luca é apaixonado por ti. Há quantos anos é que vocês

estão juntos?– Há dois.– Dois? – repete a Mary, quase com incredulidade.– Começámos a namorar há dois verões, por isso, sim, estamos jun-

tos há pouco mais de dois anos.– E continuas a ter dúvidas?– Não tenho dúvidas sobre nós, mas estou com medo de que acon-

teça alguma coisa. Tenho medo de que corra mal; além disso, já sabes, entre nós foi sempre tudo complicado…

– Porque vocês são complicados! É por isso que gostam um do outro…

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Luca

Q uando chego ao restaurante, a porta principal continua fechada, por isso vou até às traseiras para entrar pela cozinha. No pátio

encontro o Ahmed, o ajudante de cozinha marroquino que está a fumar um cigarro. Olha para mim, intrigado.

– O meu pai está lá dentro? – pergunto, embora saiba a resposta.Acena afirmativamente e indica a cozinha com um gesto de

cabeça.Assim que abro a porta de serviço, sou assaltado pelo aroma da

carne a fritar na frigideira. O mesmo cheiro que há em casa quando o meu pai cozinha para toda a família.

O meu pai está ao fogão, bastante atarefado. Sorri, feliz, agarrando nas pegas de duas grandes frigideiras de alumínio onde estão vários pe-daços de carne. Ouve-se o rádio em fundo.

– Filho! – exclama, quando me vê à porta. – O que fazes aqui?– Tenho de falar contigo – respondo, prometendo mentalmente a

mim mesmo manter um tom sereno e limitar-me a comunicar-lhe a minha decisão.

O meu pai deixa o que está a fazer, seca as mãos com um pano e olha para mim, franzindo a testa com um ar preocupado.

– O que aconteceu?– Nada – respondo, embora saiba que não é exatamente nada. –

Decidi que vou tentar.Nesse momento uma chama eleva-se no fogão, o meu pai nota-o e,

com um gesto seco, retira a frigideira e baixa o lume. Quando se vira de novo para mim, a deceção é mais do que evidente no seu rosto. E, infeliz-mente, faz-me lembrar a expressão da Alice quando lhe contei as minhas intenções.

– Achava que tinhas pensado melhor – diz-me. – Avaliámos isso durante muito tempo… Também tinhas falado com aquele meu amigo da editora…

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– Tu avaliaste – interrompo-o bruscamente. – Por outro lado, o que é que isso tem que ver com esse teu amigo?

– Não, tudo bem, desculpa, sabes que não te quero condicionar. Só estou a dizer que no teu lugar eu teria pensado um pouco mais.

– Já pensei. E está decidido.– Não sei se pensaste o suficiente – rebate, enquanto retira os pe-

daços de carne das frigideiras, passando-os em seguida para um tacho. Nas frigideiras fica um arquipélago de restos colados.

– Pai, eu sei que não é o que tu terias feito, mas é o que eu quero fazer.

– Eu não quero nada, Luca. O que eu quero é que faças o que achares bem.

Aqui vamos nós outra vez: é certo fazer o que queremos sem pen-sarmos nas consequências? Ou o que é certo é pensarmos nas conse-quências antes de sacrificarmos os nossos sonhos?

– Não queria que te arrependesses depois – prossegue, regando com abundante vinho tinto as frigideiras queimadas. A seguir, começa a raspar os fundos com uma colher de pau. Já o vi fazer a mesma operação milhares de vezes e nunca me lembro para que serve.

– És sempre uma grande ajuda – atiro-lhe, com um tom ao qual sei que não está habituado.

De facto, olha-me intrigado.– O que queres dizer com isso? – pergunta-me, interrompendo o

que estava a fazer.– Quero dizer que me fartei das palavras, das reflexões, de todas as

coisas razoáveis que dizes, porque, no final, nada é verdade.– Luca, não entendo esse tom agora, nem porque tens de me dizer

tudo isso.– Não é o tom que não entendes. O que não entendes é que eu

estou a tomar uma decisão, e a única coisa que me sabes dizer é que estou enganado.

– Não te disse que estás enganado.– Mas é o que pensas!– Bolas, Luca, o que queres que faça se não concordo contigo? Se

acho que estás a desistir dos teus sonhos?…– Os meus sonhos não me importam para nada! – respondo, er-

guendo a voz e abandonando definitivamente as minhas boas intenções. – Estou até aos cabelos com as tuas conversas…

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– Luca, fala como quiseres, eu tenho a minha maneira de me ex-pressar. Agora, vamos tentar acalmar-nos.

Dito isto, apaga o fogo.– Luca – continua, medindo as palavras com cuidado –, tudo o

que sei é que sou alguns anos mais velho do que tu e tenho um pouco mais de experiência. Já vivi há muitos anos o momento pelo qual estás a passar. Fiz as minhas escolhas e, por isso, acho que te posso dar alguns conselhos.

– E quais foram as tuas escolhas? Estudaste Filosofia, percorreste o mundo, fizeste o que querias, até escreveste dois livros quando tinhas 30 anos… e depois? Nada. E agora és ajudante de cozinha e o dinheiro nunca chega. Alcançaste os teus sonhos? Certo, se este é o resultado, eu não o quero. Não quero esta vida. Não quero a tua vida!

O meu pai fica em silêncio por uns segundos. Os olhos baixos, os lábios crispados. Não consigo ler a sua expressão. Não sei dizer se é de raiva ou apenas de deceção, mas arrependo-me imediatamente das mi-nhas palavras. Passei-me.

– Ouve, pai, espera, o que quero dizer…– Faz o que quiseres – interrompe-me, com a voz alterada. – Mas

nunca mais me voltes a perguntar nada. Decide sozinho. Eu não quero saber.

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Alice

L uca, guardaste o gorro de lã? Olha que em São Francisco faz frio.

– Guardei, guardei.– Quando chegares, envia-me uma mensagem a dizer que chegaste

bem; por favor, lembra-te.– Mando-te assim que sair do avião.– E o que vais comer por lá? Não te podes alimentar todos os dias

no McDonald’s.– Porque não?– Luca, estou a falar a sério. O que vais comer?– Contando com os empanturramentos que temos sempre, estava

a pensar em não comer nada até voltar no Natal.O grande dia chegou. O avião vai descolar daqui a pouco mais de

uma hora e, para evitar confusões, convém que se saiba desde já que a pessoa que lhe está a dar os últimos conselhos antes de partir não sou eu, mas sim a sua mãe. Sim, ela também veio, acompanhada pela irmã do Luca, a qual, contudo, parece ainda não entender o que está a acontecer. O seu pai, no entanto, teve de trabalhar, mas receio que o motivo real da sua ausência seja outro.

– Mãe, agora podes deixar-nos a sós por dois minutos?A sua mãe olha para ele com os olhos marejados e uma expressão

de completo desconsolo.– Mãe, não vou para a guerra! Também apresentei um pedido para

me juntar ao Exército, mas eles rejeitaram-me, por isso…Ela não o deixa terminar a frase e abraça-o com força, enquanto a

sua irmã observa a cena, impassível.Finalmente afastam-se e ficamos sozinhos.– Adeus, idiota.– Porquê idiota?– Porque armas-te em engraçadinho mesmo até ao fim.

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– Sabes que não gosto destas cerimónias todas.– És uma peste.– Estás com vontade de me insultar?– Sim, um pouco, estou a antecipar-me.– A antecipar-te a quê?– A todas as vezes que não me vais ligar, que não vais responder

imediatamente às minhas mensagens, que me vais deixar furiosa por me ligares bêbado de uma festa para me dizer que te estás a divertir à grande…

– Ah, então já sabes tudo?– Jura que não te vais divertir. Jura-me que te vais aborrecer imen-

so e que vais passar as noites em casa a chorar e a gritar o meu nome.– Olha, vais achar incrível, mas isso era mesmo o que eu pensava

fazer. Ia agora mesmo dizer-to.– Tu e eu somos incapazes de falar a sério, não é?Ficámos a olhar um para o outro em silêncio.Fizemos as pazes. Não voltámos a falar sobre os motivos da sua de-

cisão. Não queria que nos despedíssemos assim. Por isso, tentei esquecer o assunto e concentrei-me apenas no facto de nos amarmos e de sermos felizes por estarmos juntos. Além disso, ele vai voltar no Natal e pode ser que entretanto já tenha mudado de ideias ou se tenha desencantado… Não vale a pena preocupar-me agora.

– Adeus, meu amor – diz-me, finalmente.Abraça-me e beija-me longamente, sem nos movermos. Quero le-

var para casa o peso dos seus lábios sobre os meus, o seu sabor. Só que agora, na realidade, parece que sou eu quem se está a despedir do namo-rado que vai para a guerra.

– Manda-me uma mensagem quando chegares – digo-lhe, contendo as emoções. – E lembra-te do gorro de lã.

Depois de um último olhar, o Luca afasta-se em direção à zona de embarque. Vejo-o a entrar no labirinto que conduz ao detetor de metais.E nesse instante ouço um grito.

– Lucaaa! – explode uma vozinha estridente. É sua irmãzinha. – Lucaaa! – grita de novo.

Escapa-se dos braços da mãe e desata a correr. Passa por baixo de todas as barreiras e lança-se contra ele, a chorar. O Luca baixa-se e abraça-a, esboçando um sorriso tranquilizador. Olho primeiro para ele e depois para a sua mãe, que observa a cena de longe. Sim, não vai para

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a guerra, tudo bem, mas que importa isso? Deixo de lado o meu sentido de pudor e dirijo-me para o Luca, primeiro a andar e, depois, impro-visando um trote ridículo, já que não tenho coragem suficiente para desatar a correr. Também eu o abraço e ficamos assim, unidos, os três.

– Promete-me que não vais mudar – sussurro-lhe ao ouvido. – Não quero que mudes.

– Alice, serei sempre eu, independentemente do que fizer.

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Luca

As rodas do avião tocam no solo exatamente quando chego à úl-tima palavra do livro que estou a ler. Adoro estas coincidências.

Fazem com que tudo pareça perfeito e arrumado. Agora, assim que sair do avião, uma gaivota errante vai agarrar no meu blusão e, sobrevoando desajeitadamente a cidade, transportar-me-á até ao meu apartamento, onde o apito da chaleira me indicará que o chá está pronto.

– Goodbye – diz-me a hospedeira, a sorrir, quando passo por ela a caminho da saída.

Assim que entro na zona principal do aeroporto, sou atingido por uma mistura de cheiros, ruídos, vozes e luzes, que me desconcentram momentaneamente. Pelo altifalante, um indivíduo anuncia os voos, e dá várias informações, que entendo melhor do que esperava, apesar de o sotaque ser completamente diferente do inglês britânico que aprendi durante os verões.

Olho em volta, tentando descobrir para onde devo ir, até ver a in-dicação do metro e decidir dirigir-me para lá.

Entro numa carruagem meio vazia, já que o fim da linha fica pre-cisamente no aeroporto, mas na primeira paragem o comboio enche-se de gente. No trajeto até union Square escrevo as duas mensagens, para a minha mãe e para a Alice, e observo a diversificada composição étnica que me rodeia. Mas o que me chama mais a atenção é a juventude dos passageiros; a idade média não deve exceder os 30 anos.

A primeira coisa que vejo quando saio do metro é um mendigo, que me pede dinheiro. É um miúdo, deve ter a minha idade e não pa-rece, como dizê-lo, um infeliz, mas sim alguém que fugiu de casa. Digo apenas «No, I’m sorry», e ele não insiste. Mas antes de dar dois passos a cena repete-se com duas miúdas um pouco hippies, seguidas por vários cães. Volto a dizer «No, I’m sorry», e as miúdas afastam-se; uma até sorri, como se me tivesse perguntado as horas e eu tivesse respondido alegre-mente: «Claro, é meio-dia e um quarto!» Levanto a cabeça.

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Olho em redor.São Francisco corresponde exatamente às imagens que tinha visto

no Google. Lá estão as ruas muito íngremes que sobem pelo meio dos prédios, os arranha-céus que compõem o skyline da cidade e, em algum lugar, ainda que neste momento não a veja, estará a Golden Gate.

Maldita Internet… Se amanhã tivesse de ir para o deserto do Sara, estaria a pensar na mesma coisa: «Ah, sim, claro, a areia, os camelos… aqui está tudo».

Mas o Google não contava com o facto de a cidade estar envol-ta em neblina, o que inicialmente me surpreendeu. Não por causa da neblina em si (que, como milanês, me é bastante familiar), mas porque estava convencido de que na Califórnia o sol brilhava constantemente e toda a gente andava em fato de banho e com uma prancha de surf debaixo do braço.

Estou a ver para onde vão os autocarros nas placas das paragens, quando passa à minha frente um elétrico alaranjado, igual aos de Milão. Observo-o, espantado pela coincidência, mas fico ainda mais surpre-endido quando vejo que na lateral se encontra o símbolo da Câmara Municipal da minha cidade e que, por cima da porta da frente, se pode ler «descer» e, na de trás, «subir».

Em italiano.Certo, parece que me enganei no avião.Não só não estou em São Francisco, como, aparentemente, conti-

nuo em Milão. Numa Milão mais luminosa e com muito menos sem- -abrigo do que me lembrava (e, escusado será dizer, uns sem-abrigo ex-tremamente simpáticos e, especialmente, jovens). Mas esta não pode ser a lendária São Francisco, penso, ainda que, supondo que o seja, constato que, quer queira quer não, se parece espantosamente com um bairro da periferia da minha cidade.

Determinado a ignorar estas estranhíssimas primeiras coincidên-cias, apanho um autocarro que segue para Castro, transportando a mi-nha enorme mala às costas. Aqui também ninguém parece ter mais de 30 anos.

O autocarro percorre umas paragens de Market Street, depois se-gue por uma rua íngreme (embora não tão íngreme como se vê nas fo-tos na Internet) e cheia de curvas. Aqui, a paisagem muda radicalmente. Em vez dos edifícios altos do centro (entretanto descobri que estou, de facto, no centro da cidade), existem casas baixas e deterioradas, de dois

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FRANCESCO GuNGuI

ou três andares, no máximo, com um emaranhado de lojas à beira do passeio repletas de letreiros coloridos. Nas calçadas vejo amontoados de pessoas por todo o lado.

Chego finalmente ao meu destino, Clayton Street, 1421, um pré-dio delapidado, cheio de antenas parabólicas e cabos aéreos. A porta da rua está aberta, portanto entro e vou diretamente até ao terceiro andar. Há apenas uma porta, por isso não há como me enganar. Toco à cam-painha. A porta abre-se no mesmo instante, como se alguém estivesse à espera mesmo ao pé da maçaneta.

– Hi, guy! – exclama um tipo de cerca de 30 anos, com um enorme charro pendurado nos lábios. – Luca? – pergunta, apontando para mim com o indicador.

– Muito prazer – digo, estendendo a mão, que ele observa como se fosse uma cobra que me tivesse acidentalmente saltado do ombro.

– Okay, fly in, I’ll show you your nest – diz-me, mastigando essas poucas palavras como se fossem um enorme bocado.

Voa para dentro e eu mostro-te o teu… ninho? Nest significa «ninho», não é?

Enquanto continuo a tentar traduzir a sua linguagem codificada, ele começa a agitar os braços como um pássaro em voo, dando voltas pela casa, enquanto se ri bem alto. Entendi bem, portanto, o que me alivia. Tal como no aeroporto, demoro um instante a reconstruir o que ouço, preciso de alguns segundos para traduzir mentalmente, mas acabo por compreender.

A casa é composta por: uma kitchenette malcheirosa com os azulejos partidos e uma bancada ferrugenta, uma casa de banho um pouco maior do que uma box com chuveiro e um quarto com visíveis manchas de humidade nas paredes e no qual há uma cama, um armário e uma porta de vidro que dá para uma varanda com vários vasos cheios de terra, mas sem plantas.

Sem dúvida, as fotos da Internet eram mais prometedoras.Nisto, um gato salta para cima da cama e olha para nós.– Este é o Luca – diz o homem ao gato. – Ele vai tratar de ti.O gato diz «miau», mas parece realmente um «sim, tudo bem».– E, além disso, tens de regar as plantas – continua ele –, duas vezes

por semana.– Está bem, mas… que plantas?O homem olha para mim e acena, enquanto exala fumo pela boca.

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– As plantas – diz-me, baixando a voz – crescerão.O tipo pede-me o pagamento da primeira semana em dinheiro, diz-

-me que nos voltaremos a ver em breve e deixa o apartamento, agitando novamente os braços como um pássaro em voo.

Sento-me na cama ao lado do gato e olho em redor, tentando reestruturar mentalmente o quarto. Talvez pintando as paredes… ou ateando fogo ao armário…

Mas estou em São Francisco, digo a mim mesmo. A quem é que interessa que a casa seja uma porcaria? No momento em que formulo esta reflexão reconfortante, sinto o chão a vibrar. uma vibração longa, seguida por um par de toques de tambor e por dois apitos. Fico à es-cuta por alguns segundos, até o silêncio regressar. Levanto-me da cama e espreito à janela, mas não vejo nada de anormal, a não ser o tipo que me alugou o apartamento: acaba de subir para uma furgoneta pintada de mil cores, que se vai embora deixando para trás uma fumarada cinzenta.

De repente, o chão começa a tremer outra vez, e volta-se a ouvir os toques de tambor, seguidos por um repicar de pratos, ao qual não demora a juntar-se uma guitarra desafinada.

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Alice

S erei sempre eu, independentemente do que fizer.» O Luca deixou-me com esta minhoca na cabeça. Será assim? Será

verdade? um canalizador que escreve um livro será sempre um ca-nalizador, um padeiro que leva o neto ao parque não se transforma numa ama e um jornalista que pinta uma parede não se converte num pintor de paredes. Embora… Pronto, é oficial: o Luca partiu há menos de vinte e quatro horas, e já estou a montar um filme com-pleto.

Escreveu-me uma mensagem assim que chegou.Diz que já se instalou e que esta noite vai tentar ligar-me pelo

Skype. Tenho de admitir que mal posso esperar para ver o seu aparta-mentozinho. Já o imaginei até aos mínimos detalhes: um loft grande de tijolos vermelhos, uma coluna no centro, uma janela com persianas com vista para uma rua inclinada e, ao fundo, a praia. uma kitchenette, a luz sempre difusa e um vizinho gay.

Estou perdida nesses pensamentos quando entro em casa, um pou-co antes das oito, tal como prescrito, já que em minha casa vigora uma legislação extremamente rigorosa em matéria de horários de refeições. No entanto, mal abro a porta, percebo logo que há alguma coisa errada. A casa está em silêncio e, sobretudo, não há nenhum aroma que possa sugerir um jantar iminente.

Todas as portas do corredor estão fechadas e ouve-se apenas uma voz alterada vinda do quarto dos meus pais. A minha mãe está em pé, no meio do corredor, com os olhos fechados.

Deixo cair a mala no chão e aproximo-me dela rapidamente.– O que aconteceu? – pergunto.Enquanto lhe faço essa pergunta, o volume da voz no quarto dos

meus pais sobe de repente. É o meu pai. Está a gritar, mas não consigo entender o que está a dizer.

– Mãe, podes explicar-me o que está a acontecer? É o Federico?

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Ela sacode a cabeça no exato instante em que a porta do quarto do Federico se abre e ele aparece na soleira, com aquela cara de gelo que faz quando não quer deixar transparecer nenhuma emoção.

– O pai perdeu o emprego – diz a minha mãe entre dentes.– O quê? Como é possível? Assim, de repente?– De repente, não, mas não vos tínhamos dito nada. Agora é oficial.– Porque não nos tinham dito nada? Não o podem despedir assim,

não podem…– Podem fazer o que quiserem, Alice. A fábrica está prestes a falir e

neste momento ninguém sabe o que vai acontecer.No quarto, o meu pai continua a gritar e agora já consigo decifrar

algumas palavras: «Despedido»; «Desemprego»; «Subsídio»; «Todos em casa»; e muitos, muitos «Que vão levar no traseiro».

– Eu posso ajudar – diz o Federico, da porta. – Posso arranjar um trabalho…

A minha mãe abana a cabeça e nesse gesto vejo, por um instante, a mãe do Luca, e penso que é bastante frequente a dor provocar a mesma expressão num rosto, ainda que os problemas sejam diferentes. Pergunto--me para onde vai toda a dor que não aparece no rosto.

– Tu tens de estudar – diz a minha mãe.– Tenho 14 anos, posso trabalhar.– Não, não podes trabalhar! – responde a minha mãe, bruscamente.

– O pai vai encontrar outro emprego, vai encontrá-lo em breve, não há necessidade de nos desesperarmos.

Tenho dificuldade em acreditar nela, porque a tranquilidade que nos quer transmitir reduz-se às palavras.

– Mãe, é verdade que ele vai encontrar outro emprego… não é?A minha mãe não diz nada e receio que esta seja a sua verdadeira

resposta.Nesse momento, o meu pai saiu da sala. Tem as feições tensas e o

rosto completamente vermelho.– Meninos – diz, com a voz quebrada –, a partir de hoje as coisas

vão mudar um pouco. Muitas coisas.– O que é que te disseram? – pergunta a minha mãe.– uma treta. Foi isso que me disseram – responde, erguendo nova-

mente a voz. O meu pai nunca levanta a voz e nunca pragueja.O Federico volta para o quarto, enquanto eu observo a cena,

espantada.

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– Querido, vais ver que … – murmura a minha mãe. Mas ele já não a ouve.

Passa por mim, tira o casaco do cabide e dirige-se para a porta da entrada.

– Vou para a fábrica – diz, quase para si mesmo, sacudindo a cabeça. – Santo Deus…

– Espera, explica-me – insiste a minha mãe, tentando retê-lo, mas sem êxito.

Ficámos assim, os três, de pé, imóveis e em silêncio. Agora o Fe-derico parece assustado, enquanto na minha cabeça fervilham mil pen-samentos. O meu pai não é o primeiro nem será o último a perder o emprego. ultimamente, tem acontecido a um monte de pessoas que conheço: amigos dos meus pais, parentes, pais dos nossos colegas de tur-ma. Na televisão só falam da crise económica e ouvem-se mil histórias como esta. Sei que é estupidez, mas sempre achei que estas histórias nunca me iriam afetar.

Vou arranjar um emprego, decido. O Federico não pode trabalhar, mas eu posso. Vou ser uma trabalhadora-estudante; o que é que isso tem de mal? Muitos fazem-no. É possível trabalhar e continuar a estudar. É mais difícil, é verdade, mas pode ser feito. Tal como se pode ser ao mesmo tempo escritor e canalizador, jornalista e pintor, como se pode ser o Luca, o meu Luca, aquele que dizia que ia viver para uma quinta, fazer um filme e abrir um restaurante, e que depois decidiu arrumar a cabeça e ir estudar Economia. Ou não?

Enquanto penso nisto tudo, sinto a primeira pontada real e intensa de saudades. Entro no meu quarto, ligo o computador e conecto-me ao Skype. Tenho uma necessidade urgente de falar com o Luca.