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Histórias de agentes de campo que trabalham com prevenção às DST/Aids entre profissionais do sexo
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Secretaria Municipal de Saúde de Campinas
Programa Municipal de DST/Aids
Que campo é esse?
Histórias de agentes de campo que trabalham com
prevenção às DST/Aids entre profissionais do sexo
Campinas, SP
2013
4
Prefeitura Municipal de Campinas
Jonas Donizette
Secretário Municipal de Saúde de Campinas
Dr. Cármino Antônio de Souza
Coordenadora do Programa Municipal de DST/Aids de Campinas
Dra. Cláudia Barros Bernardi
Idealização
Rosilene Slaviero
Organização e Revisão
Rosilene Slaviero
Daniela Quevedo
Nilva Ferreira Pereira
Capa
Almir da Silva Pinheiro
Projeto Gráfico
Núcleo de Comunicação da Secretaria Municipal de Saúde
É permitida a reprodução parcial ou total deste texto, desde que citada a fonte.
5
Agradecimentos
A todos que contribuíram direta ou indiretamente para que este sonho
se transformasse em realidade.
6
SUMÁRIO
Apresentação
Introdução
Como foi?
Quem colaborou na organização
Quem participou do encontro
Capítulo 1
Relatos
Capítulo 2
Rodada de Perguntas e Respostas
Capítulo 3
E tem fim? Comentários e Sugestões
7
APRESENTAÇÃO
Muita história já rolou desde que nos reunimos em 2008, para uma roda de conversa sobre o conceito de campo,
com os principais protagonistas das ações realizadas com as (os) profissionais do sexo no município de
Campinas.
Passamos por mudanças, transformações, crises e adaptações, porém, a compreensão da atualidade das
reflexões e debates ali produzidos, nos mobiliza a publicar cinco anos depois este material. Consideramos que os
relatos apresentados poderão contribuir para o desdobramento deste debate em outros locais de trabalho deste
nosso imenso país.
Foram mantidas as apresentações e os locais de trabalho referidos à época para dar continência à proposta e aos
resultados aqui apresentados. Muitos colaboradores encontram-se em outras Instituições, Municípios ou Estados,
caso o leitor queira o contato para realizar uma interlocução, encontrará nos créditos finais nosso e-mail
atualizado.
Por fim, a insistência na publicação é para nós trabalhadores do Programa Municipal Dst/Aids de Campinas,
ponto de honra! Fizemos parte desta história de pequenas conquistas, de gestos solidários, de igualdade e
fraternidade, através da troca de saberes, do aprendizado e da ação na busca de nossos ideais por uma vida
mais saudável para todos.
Cláudia Barros Bernardi Coordenadora do Programa Municipal de DST/AIDS
Rosilene Slaviero Psicóloga - Programa Municipal de DST/Aids de Campinas
8
INTRODUÇÃO
Como foi a idealização deste trabalho
Muitas pessoas nos procuravam, e ainda nos procuram, pedindo informações ou até mesmo “receitas
prontas” de como trabalhar no campo com profissionais do sexo. O que dá certo? Como devo me
apresentar? Será que vou ser aceito?
As respostas a essas questões sempre partiram da perspectiva de que não existe um só olhar, mas
vários olhares, várias referências para o mesmo assunto, para o mesmo campo, pois cada pessoa
chega de um lugar, de uma vida diferente...
Então não dá para dar uma única receita. Além disso, queríamos transmitir algumas experiências que
são atemporais.
Foi assim que resolvemos reunir, no dia 26 de agosto de 2008, um grupo de pessoas que fazem ou
fizeram campo de prevenção às DST/Aids entre profissionais do sexo.
Convidamos enfermeiras, técnicas de enfermagem, psicólogas, assistentes sociais, redutores de danos
(funcionários do Centro de Referência em DST/Aids), parceiros do movimento social LGBT (Grupo
Identidade) e da associação de mulheres profissionais do sexo (Associação Mulheres Guerreiras).
A metodologia proposta para esse encontro foi complementada por Vivian Bearzotti Pires (pedagoga
lingüista da Unicamp), que coincidiu com a sugestão que tivemos do supervisor Guilherme do Val
Toledo Prado (doutor em Lingüística e professor da Faculdade de Educação da Unicamp). Por ocasião
da supervisão, ele sugeriu registrar alguns “causos” e, a partir das experiências singulares de cada
história, generalizar o aprendizado.
A primeira parte da reunião consistiu numa rodada de perguntas e respostas, e a segunda com cada
participante contando uma história curta, respondendo o que é campo para ele, como ele se apresenta
e o que ele oferece.
Esta publicação reúne relatos deste encontro, que foram gravados, transcritos, organizados e
adaptados à linguagem escrita, de forma a trazer uma contribuição para a atuação de agentes de
campo a partir desta troca de experiências e produção de conhecimento em serviço.
Para um melhor aproveitamento do leitor, apresentamos as histórias no primeiro capítulo, a rodada de
perguntas e respostas no segundo e encerramos com os comentários e discussão.
Esperamos que os leitores possam se identificar com alguma história ou pessoa que estamos trazendo
nesta pequena contribuição.
Rosilene Slaviero
Psicóloga
Programa Municipal de DST/Aids de Campinas
9
Quem colaborou na organização deste texto:
Gravação da Reunião:
Daniela Quevedo - Jornalista e Assessora de Comunicação do Núcleo de
Educação e Comunicação Social (NECS)
Transcrição:
Juliana Onofri - Jornalista
Primeira Versão:
Daniela Quevedo e Rosilene Slaviero
Versão Final:
Nilva Ferreira Pereira - Médica Sexóloga do Núcleo de
Educação e Comunicação Social (NECS)
Rosilene Slaviero
Capa:
Almir da Silva Pinheiro - Artista Plástico e Arte-educador do Núcleo de
Educação e Comunicação Social (NECS)
De quem são os depoimentos aqui contidos
Bete (Elisabete G. Zuza)
César Gomes
Cidinha (Maria Aparecida Leal)
Elaine Maria Esteves
Herval Luiz Azevedo
Janaína Lima
Maria Regina Ramos da Silva
Miriam Passiani
Rodrigo Braga do Couto Rosa
Rosalice Carvalho de Castro
Susy Santos
10
Capítulo 1
RELATOS
Vivian abre a sessão “ Relatos” , orienta sobre a metodologia e solicita que os
participantes se apresentem, contem sua história e respondam às questões:
O que você oferta no campo?
Como você se apresenta?
O que é campo pra você?
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RELATOS
“Eu acredito num campo feito
entre pares”
A história que eu quero trazer é a de
entrar em uma das boates mais caras de
Campinas, na época, o que era um tabu e
pra gente foi muito simples. Todo mundo
queria fazer aquele campo, porque a
boate era um campo, assim como a rua é
um campo, dentro das casas também... Campo, para mim, é onde as pessoas estão.
O pessoal falava: Ah, vocês não vão conseguir entrar. Ninguém consegue entrar nessa boate. A
Cidinha se apresentou, por telefone, como assistente social de um serviço de saúde. Falamos com o
gerente da casa e ele marcou com o dono. Ele foi super-receptivo no nosso primeiro encontro. A gente
se apresentou como pessoas que trabalham com a questão da saúde, principalmente das DST e Aids,
e que gostaríamos de poder levar informações e ter acesso às meninas que trabalhavam na casa;
perguntamos qual seria o melhor dia e horário pra fazer aquilo.
Ele falou o melhor dia e horário e o que ele achava das meninas: que elas não sabiam guardar dinheiro,
gastavam dinheiro como água e que a família as explorava. Falou também que queria por uma máquina
de camisinha lá na casa.
No dia marcado, a gente foi à uma hora da tarde, horário que elas estavam acordando; tinham umas
dez meninas. A conversa foi no bar. Nós nos apresentamos e dissemos que a gente estava lá pra falar
sobre saúde, sobre DST, Aids... mas as meninas queriam discutir a ética de fazer programa grávida.
Então, a conversa foi pra esse tema: das meninas não usarem camisinha, acreditando no príncipe
encantado, e o príncipe encantado é alguém que frequenta aquele lugar. Ela engravida pra ver se casa
e, não casando, faz programa grávida.
O que a gente aprendeu de interessante é que não houve dificuldade para entrar no local, falando de
onde a gente estava, porque a gente não era uma ameaça: ser da saúde, levar a proposta de saúde,
não é ameaça pro traficante, pra quem quer continuar usando droga, não é ameaça pras pessoas que
fazem programa. A gente não compete, a gente vai oferecer algo que todo mundo quer. Então somos
muito bem-vindos, quando não usamos mal esse instrumento.
Outro aprendizado é que nem sempre a necessidade que a gente observa é a demanda das pessoas.
A gente achava que precisava falar de prevenção, de camisinha, de DST, de Aids, mas não era essa a
necessidade daquelas meninas, naquele momento, naquela hora.
Rosilene Slaviero, psicóloga no NECS1, do pro-
jeto de prevenção às DST/Aids com profissionais
do sexo
12
CAPÍTULO 1
“O grande avanço do trabalho
de prevenção é a escuta”
O Redução de Danos, quando entra em
um bar diferente, procura primeiro o
proprietário do estabelecimento. A gente
não chega abordando diretamente as
pessoas. Explica sobre o trabalho, fala de
onde é, se identifica. Então, pede um
baleiro pra deixar preservativo para as
pessoas pegarem durante o final de semana, porque a gente só vai uma vez por semana no local.
Pra mim, todo lugar onde a gente está indo e levando informação é um campo.
Eu tive vários plantões em Centros de Saúde onde a gente trabalha com os profissionais que recebem
usuários de drogas: como vão ser atendidos, como vai ser a abordagem; tem que ser com carinho, com
respeito, como se fosse qualquer outro usuário.
Eu entro no Centro de Saúde e vou pra cozinha, que é onde os profissionais ficam. Um dia, eu estava
lá, e de repente me chamaram, porque tinha chegado uma menina que havia feito um teste de HIV há
algum tempo atrás e o resultado deu positivo. A enfermeira que entregou esse resultado me chamou na
sala dela. Cheguei lá e me deparei com a menina chorando, se acabando em prantos. Eu pedi pra
enfermeira me deixar um minuto a sós com a menina. Eu não sabia de que maneira esse resultado foi
falado pra ela, se ela foi preparada pra receber esse resultado. Da maneira que foi falado pra ela, ela
tomou um choque. Parece que ninguém estava preparado pra entregar esse exame pra menina.
Então, em que momento é você, profissional de saúde? Em que momento é você, pessoa? Como lidar
com aquilo?
Hoje, eu estou fazendo parte do Centro de Referência (CR-DST/Aids2). Sou buscada pra entregar um
exame. Como me preparar? Eu fui pega de surpresa, também, naquele momento. Aí, eu pedi um
minuto, me sentei com a menina e comecei a conversar. Conversei, conversei e quando eu saí com a
menina, ela parou de chorar. Trouxe ela aqui pro CR, vim conversando muito. Ela é de uma ala de
profissionais do sexo também, é uma menina que não é da cidade, fazia dez dias que estava em
Campinas. Eu expliquei que a vida não acabou. E comecei a trazer reflexões, que não é por conta
daquilo que ela vai se acabar, que ela tem a vida toda. Ela tem 18 anos!
Passados uns quatro meses, um dia, ela veio aqui na sala do PRD3 me convidar pra tomar um suco.
Tudo que conversamos naquela época deu força pra ela contar pra mãe, buscar apoio, e hoje está se
cuidando.
Susy Santos, redutora de danos do Progra-
ma de Redução de Danos do Centro de Refe-
rência em DST/Aids e do Grupo Identidade
13
Então, eu acho que a escuta é muito importante pra quem faz prevenção, porque nem sempre aquilo
que você vai oferecer é aquilo que a pessoa quer.
Como fazer, naquele momento, pra mostrar aquela bagagem que você não trouxe? O que, na hora,
você vai tirar da sua mala pra oferecer para aquela pessoa? Se ela quer um vestido, não quer um
shortinho, como vai fazer? Aí, você vai manejando o seu trabalho e tentando oferecer aquilo que a
pessoa precisa pra que se sinta bem e acolhida.
Você tem que ter ouvido, tem que ter a sensibilidade de escuta, estar realmente ali, porque se só o
corpo estiver ali e sua mente estiver em outro lugar, às vezes você fala uma besteira e acaba até não
ajudando a pessoa.
Então, para mim, a capacitação que a gente fez do “Entre Pares” (Aconselhamento entre Pares) foi um
aprendizado muito grande, não só como experiência de vida, mas de tudo, que pude aplicar quando me
deparei com aquela menina na sala. A conduta, conversar, ouvir, respeitar o momento dela chorar, dar
o ombro, dar água, esperar o momento que ela quisesse falar... A menina podia ter saído de lá, nem ter
vindo se tratar e só Deus sabe por onde andaria!
RELATOS
14
“O que facilita é já ser identificado”
Eu sempre cheguei ao campo com o discurso dos
direitos humanos antes da saúde. Eu nunca
consegui ver o campo diferente dos outros espaços
que eu estava, porque eu me entendo como
alguém sujeito de direitos, enquanto movimento
social e pela igualdade de direitos pra todos.
O mesmo medo que eu sinto no campo, eu sinto
quando estou no Sucão (bar localizado no centro de Campinas), no bar ou na boate. E o que eu levo?
No momento, eu levo a minha vivência, a minha experiência. Pra mim, cada momento que eu estou no
campo serve como fortalecimento, pelo meu histórico de vida, pelos meus fantasmas. Então, estar tanto
no campo como em outros espaços específicos, pra mim é dizer: eu sou um guerreiro, eu venci. Na
verdade, campo pra mim é uma posição meio egoísta. Eu vou pra receber e não pra dar, porque eu
preciso desse fortalecimento.
Uma história? Eu poderia citar duas. O trabalho que ainda está sendo feito com uma travesti
adolescente aproveitando dois pontos nela: o desejo da glória, de brilhar entre as outras, e o medo
devido à perseguição que ela está sofrendo. A gente conseguiu ter um olhar, uma escuta e tirar
vantagens disso, pra trazer ela mais pra perto da militância, da rede. Ainda não dá pra dimensionar o
impacto disso pra essa adolescente travesti, mas dá pra gente saber que, nesse momento, ela tem
certo conforto, de estar com iguais que vão proteger. Espero que futuramente a gente chegue no
estágio que todos nós sonhamos.
A outra história é de quando nós tivemos uma reunião na RNP+5 pra fazer uma conversa com as
pretensas candidatas pra homenagem 100% Guerreiras e sobre o trabalho de Cidadania na Pista. A
reunião foi dividida em dois tempos por questão de horário. Em um momento teve bastante gente e no
outro só apareceu a Susy. Aí eu pensei assim: essa aí não volta mais, porque só ela aqui, e totalmente
desestimulada... E não! Acho que, naquele momento, nós conseguimos ter a fala e a escuta também, e
ela acabou ficando por aqui, essa “encrenca” boa que hoje perturba a gente.
CAPÍTULO 1
César Gomes (Lola) – Grupo Identidade, parceria com o
PMDST/Aids4 no projeto de prevenção às DST/Aids com
travestis, transexuais e michês (garotos de programa)
15
“Quando a gente chega lá,
se transforma”
Quando eu comecei a fazer campo, eu
tinha uma certa cisma de fazer na
região da boca do lixo. Aqui nas
praças era tranquilo, mas lá eu sempre
ficava um pouco cismada, porque tinha
muitos clientes, todo mundo bebendo.
Hoje eu prefiro fazer campo lá nos
hotéis. Primeiro, porque acho que o
campo é, na verdade, uma aprendizagem: buscamos mais do que levamos. A gente vai como
profissional de saúde e também como mulher. Eu lembro sempre da nossa sociedade machista. Sei
que um dos maiores problemas das mulheres é a submissão histórica nas relações de gênero. Então,
quando a gente chega lá, se transforma. Agora, que a gente vai a cada 15 dias, acaba entrando
naquela coisa da alteridade, nem tanto como um antropólogo, mas se comporta conforme o lugar.
Antes, a gente ia e as mulheres perguntavam: o que você trouxe? Um dia a gente levava camisinha,
outro dia levava pra agendar consultas. Hoje não, nós é que queremos saber como elas estão. E a
gente é muito carente também. Então, é muito bom quando se chega e de longe elas gritam: ah, quem
vem vindo! Vem uma, abraça, chama e já entra nos botecos; a gente senta, relaxa e quase vai pegando
um copo, porque esquece...
Aí vem outra: ah, essa aqui é minha amiga lá do COAS7. Quando você precisar vai lá. E mistura tudo:
uma precisa de médico, outra traz o raio X da mãe, pede pra dar uma olhadinha, falam de roupa, de
cabelo. Elas sentem saudades: ah, você não veio mais aqui, faz tanto tempo! Eu digo: a gente faz a
cada 15 dias uma região.
É uma experiência muito rica, gostosa, muito cheia de afeto. É por isso que digo que a gente vai lá
aprender e realmente ouvir. Elas são mulheres como nós. É muito legal termos conquistado esse
carinho, independente do que se leva no campo.
RELATOS
Maria Regina Ramos da Silva – auxiliar de
enfermagem, cientista social – CTA6 e proje-
to de prevenção com profissionais do sexo
16
“A gente não está ali à toa”
Eu faço campo com a Regina. É atraente
esse campo porque é uma coisa que nunca
vivenciei, mas acabei entrando e
conhecendo. Elas passam bastante da vida
delas pra gente, contam suas histórias,
seus problemas de família e isso é muito
legal. É uma coisa que chama atenção.
Parece que é um mundo diferente e, na
verdade, não é. São pessoas comuns, com amores, dores, como a gente. Simplesmente têm essa
profissão. E isso me deixa emocionada. Conquistar a confiança delas é uma coisa difícil, é complicado
entrar, mas depois que se conquista, é só benefício que se recebe.
A gente chega conversando com elas, pergunta como foi o dia, como está a clientela; depois é que
vamos fazer a prevenção. É uma outra abordagem.
Sempre tem uma profissional do sexo de referência, que é aquela com quem se cria um vínculo maior.
Você chega nela e as outras vão chegando também. Aí já vão pedindo explicação de uma doença, de
outra, como é que pega, como é que não pega, como é que trata, onde ela pode ir, que médico ela
precisa pra resolver aquele problema. E a gente orienta.
O campo é uma coisa muito vasta, não é só chegar lá, entregar o preservativo e mandar usar pra não
pegar uma doença sexualmente transmissível. Não é isso, é uma coisa muito mais ampla, mais
demorada, tem que dispor de tempo. Entregar preservativo é o básico.
O que eu aprendi com tudo isso? Faz um ano que eu estou fazendo campo, é pouco tempo, mas acho
que foi a melhor experiência da minha vida, onde eu aprendi muito, principalmente a economizar.
Depois que eu ouvi tanta reclamação delas, aquele desespero de não ter dinheiro, não ter como pagar
aluguel, eu peguei meu dinheiro e coloquei na poupança. Era isso que faltava na minha vida.
Eu precisava dessa experiência pra me recolocar e pra ter mais ouvido também, coisa que eu não
tinha. Eu não tinha tempo, e agora eu consigo ouvir o que a pessoa está falando. Pra mim foi tudo de
bom, foi maravilhoso ter entrado nesse projeto.
CAPÍTULO 1
Miriam Passiani – almoxarife, formada em Ci-
ências Sociais – Centro de Referência DST/
Aids, projeto de prevenção com profissionais do
sexo na região central de Campinas, advocacy
à Associação Mulheres Guerreiras
17
“É uma prioridade pra gente lidar com
tudo”
Estou aqui há dois anos, fazendo um recorte com esse
trabalho para profissionais do sexo. No Campo Belo, a
gente trabalha com os profissionais de saúde que estão
construindo a assistência integral aos profissionais do sexo, Elaine, Denise (da Associação Mulheres
Guerreiras) e outros agentes que estão em campo. A gente se reúne semanalmente discutindo com os
profissionais de saúde. Eu não atuo diretamente em campo. A velocidade de demandas do campo não
é a mesma dos profissionais de saúde. A gente tem que estar lá compatibilizando esses tempos.
Levam-se ofertas, pactuam-se as demandas com os trabalhadores. E isso é um exercício. Tenho 18
anos no SUS8, eu faço o tempo inteiro esse olhar enquanto enfermeira e trabalhadora, que tem uma
missão de acordo com as metas estabelecidas pelo PAM9. Então, para mim, a nossa reunião com os
trabalhadores é um campo também.
Nós tivemos uma experiência que eu tive muito medo. Uma moradora que tem barraca lá e tem oito
filhos, por questões sociais seríssimas, o pessoal do CRAS10 queria entrar com denúncia no Conselho
Tutelar. Isso ia abalar nossa relação de confiança com aquela população. O Conselho Tutelar tem uma
linha de atuação de denúncia, policialesca, de tirar crianças e tchau. E a gente, da saúde, não trabalha
com denúncia; procura outras saídas, dar uma assistência, trazer políticas públicas. Elaboramos um
projeto terapêutico, sentamos junto com as agentes de campo, tendo como referência a Elaine,
pensando desde cesta básica, aluguel de casa, atuação do Centro de Saúde com a família. Foi um
desgaste pra todos nós e a gente ainda está com essa situação lá.
RELATOS
Rosalice Castro - enfermeira do NECS, prevenção às DST/Aids
na região do Campo Belo junto aos profissionais do Centro de
Saúde, experiência em assistência e gestão de serviço
18
“A gente tem uma equipe que conversa
muito, e isso funciona, o debate”
O que eu queria contar não é bem um caso. É um fluxo de
lembranças da minha trajetória com a travestilidade. A
primeira coisa que me vem é um medo imenso, quando eu
era pequeno, de uma figura chamada Paulinho Chinelo,
que tinha lá em Franca e que batia nas pessoas na rua. Ele era o mais próximo de travesti que eu
conseguia ver durante o dia, porque eu, burguês, riquinho da cidade, não saía à noite, só andava
durante o dia; e durante o dia eu encontrava Paulinho Chinelo e morria de medo dele. Medo também de
que qualquer proximidade com ele denunciasse a minha “viadagem”.
Quando cheguei no Identidade, aqui em Campinas, que é um grupo misto, na minha primeira reunião
apareceram a Janaína e a Beda Landau, que são travestis. Eu fiquei completamente congelado e
pensei: ai, meu Deus, eu não vou ficar aqui, não, com esse povo!
O Paulo percebeu isso e me propôs fazer campo com as meninas (travestis). Eu nem sabia de onde
saía aquela camisinha que a gente ia distribuir. Eu não sabia nada, mas eu ia. Aí eu comecei a
entender: se ele é gay e conseguia dialogar com elas na rua, eu também podia ter um espaço. Ele tem
aquela facilidade pra falar e também tinha um histórico de direitos humanos que o aproximava delas.
Eu não tinha muito a oferecer, até que comecei a perceber que, por ser um pouquinho “bofe”, bem mais
do que eu sou hoje, tinha uma sedução com elas. Então, porque não me aproximar delas pela via da
sedução? Mas como a gente acabou ficando muito amigos, não rolava nada. As coisas foram pra um
outro nível, quando passei a ser identificado como alguém que pode ofertar outras coisas.
Aí veio outro choque: conheci duas pessoas que tinham acabado de chegar à cidade; me apresentei,
dei as boas vindas, falei da cidade e como funcionavam as casas de cafetinas; também falei do
Identidade, das oficinas. Depois de uma semana, a Jana veio dizer: aquelas pessoas que chegaram
estão barbarizando, são as novas cafetinas, estão colocando uma outra ordem na rua e começou uma
guerra. E a gente está no meio dessa guerra. Vamos reunir todo mundo e entrar em quarentena, um
mês sem ir pra rua. Eu fiquei com tanto medo, fiquei um mês sem sair de casa, de medo de... sei lá o
quê. Um mês depois, aquela travesti foi assassinada e as coisas se resolveram.
Do medo do Paulinho Chinelo, lá na infância, a hoje ter um acesso tranquilo à casa de várias travestis,
ser convidado pra aniversários, pra passar fim de semana na praia, é uma outra relação; é ter gente
que hoje considero da minha família.
CAPÍTULO 1
Rodrigo Braga do Couto Rosa, do Grupo Identidade, na pre-
venção das DST/Aids com travestis, transexuais e michês há seis
anos, antes do convênio com o Programa Municipal DST/Aids
19
“Uma dica da abordagem é
você ouvir o outro e respeitar”
Eu tenho várias histórias que acho importantes.
Acho que o campo é feito quando as pessoas
estão em busca de promover uma transformação
social, seja o contexto que for. Eu acredito que
redutor de danos não é só aquele que trabalha com a prevenção das DST e uso de drogas. É também
o que faz redução de violência doméstica e exploração sexual comercial de criança e adolescente.
Quando eu vou para o campo falar de prevenção de DST, eu também posso estar com um olhar mais
abrangente pra aquela pessoa, para a situação ou problemática em que ela está inserida.
No PRD, o que me chamou bastante atenção foi no campo do Bandeira Dois. A gente foi lá uma, duas,
três, quatro, cinco vezes e depois a gente ficou uns meses sem ir. Quando voltamos, o pessoal falou:
depois que vocês vieram aqui, nunca mais a gente compartilhou o canudo. Isso me marcou, porque foi
difícil chegar um a um e dar folhetinho, trocar idéia, dar preservativo. Então, quando uma pessoa chega
e fala que ali ninguém mais compartilha canudo, quer dizer que o meu trabalho não foi em vão! A minha
rápida passagem por ali teve um significado importante naquela comunidade. Hoje, eles mesmos fazem
redução, orientam outros, pedem folhetinhos para aqueles que ainda não pegaram. Isso mostra que
eles têm interesse de levar adiante a nossa idéia. Eu acredito que eles estão sendo parte dessa
transformação social.
Como a Suzy disse, até os traficantes que estão ali juntam um grupo e fazem oficina de preservativo,
de canudo, antes mesmo de a gente chegar. Começam a oficina, e às vezes entram usuários de
drogas, até usando. É o momento só deles ali. Então, isso acontece mesmo nas ações de redução de
danos.
As pessoas que estão no campo são protagonistas da transformação social. A partir do momento que
eu vou até elas, coloco uma semente lá, aí é com o tempo. Deixa o sol bater pra começar a brotarem
as flores. As pessoas assimilam o que a gente fala, mesmo que elas estejam naquele contexto e não
queiram sair. Elas sabem o que é o certo, o que é errado e como fazer.
RELATOS
Herval Luiz Azevedo – redutor de danos, arte-educador,
professor de violão, dança e grafitagem - Centro de Refe-
rência em DST/Aids, Redução de Danos
20
“O que deu certo foi a
presença da Susy no
Programa de Aids”
A gente tem uma noção de campo que
depende muito do espaço que se trabalha.
Quando se fala em profissionais do sexo, é o
espaço em que eles estão inseridos. E o
campo é uma coisa muito deles mesmos, de quem está ali.
Eu me sinto muito bem dentro do campo de profissionais do sexo, porque vivi isso na minha vida um
bom tempo. É um lugar onde me sinto muito à vontade. Trabalhar com os michês não é muito diferente,
porque é trabalhar com os iguais. Como iguais, eu não considero travesti com travesti, michê com
michê, mas iguais por estarem inseridos no mesmo espaço, no mesmo contexto.
Por ser travesti, eu tenho facilidade de estar no campo dos michês, porque a grande maioria deles é
envolvida com travestis, já namoraram, namoram ou querem namorar travestis.
Eu nem preciso me apresentar, porque já me apresentam como aquela que fazia programa, que é do
Identidade, que ajuda em algum momento. Ofereço um leque de possibilidades, que vai depender da
necessidade daquela hora, e é muito interessante.
Teve um dia que houve um desencontro entre Rodrigo e eu, e ele não podia fazer campo comigo. Aí
pensei: e agora, vou embora? Eu estou aqui, faço campo ou não faço? Acabei descendo para dar uma
volta e um dos garotos michês que já me conhecia me acompanhou... e acabou fazendo campo
comigo. Ele ia fazendo a apresentação, ia falando, conversando com os outros, quando tinha alguém
novo ele apresentava. Isso foi muito rico.
Eu queria apontar uma dificuldade muito grande: a gente está sempre cuidando, olhando, ouvindo...
Mas a gente não tem quem cuide de nós, e eu sinto muito essa necessidade. Tem horas que eu tenho
vontade de interromper o convênio com o Programa, porque meio que enlouquece. Não tem um olhar
de fora pra estar acolhendo, cuidando mesmo da gente.
CAPÍTULO 1
Janaína Lima, do Grupo Identidade, projeto de
prevenção há cinco anos, em parceria com o Pro-
grama Municipal DST/Aids
21
RELATOS
“É tudo de bom, isso: as pessoas vão me
procurar em casa”
Depois que comecei a trabalhar no campo, percebi que uma
travesti amiga minha sempre estava com algum problema de
saúde. Eu sempre tentava trazer ela aqui no COAS pra fazer
o teste de HIV, mas ela não vinha, acho que pela dificuldade
de sair do bairro. Fui com ela até o Centro de Saúde, mas
eles marcaram retorno em 30 dias para ela fazer o exame.
Então consegui trazer ela aqui, mas ela só fez a testagem
porque eu também me propus a fazer. Eu uso bastante disso
pra estar ofertando o teste, pra incentivar a pessoa. Eu falo:
eu vou fazer e você não? Mas é naquela situação em que não dá pra chegar direto e falar. Isso é bem
interessante. Às vezes eu pego até um pouquinho pesado, mas é pra poder ajudar. Eu não ia entrar
junto pra pegar o resultado, porque ela estava com aquela desconfiança de mim. Deu positivo... e ela
me contou. Hoje ela se trata, com autoconfiança. Não confiava na gente e hoje não! Até a mãe dela,
esses dias, foi em casa com problema.
Esses dias teve um grupinho de adolescentes que estavam no barzinho e foram me chamar pra pedir
preservativo. Então fui pegar uma caixa lá no Centro de Saúde. Pra mim, isso é tudo de bom, as
pessoas me procurarem em casa, pedindo preservativo.
“O que deu certo: esse momento!”
Eu queria contar uma experiência de uma vez que
fomos fazer uma intervenção num campo próximo
ao centro da cidade. A gente tinha a proposta de
levar informações a respeito da camisinha feminina.
Quando chegamos na boate, fomos abordadas pelo
gerente da casa. Na nossa conversa, ele colocou que gostaria que todas as mulheres fizessem o teste
de HIV. Nós tivemos que explicar a questão da ética, do sigilo, da testagem voluntária, tudo isso. Por
fim, a gente conseguiu fazer um trabalho dentro desse campo, mas precisou ter todo um jogo de cintura
pra continuar acessando essas mulheres, conversar com elas sobre direitos, saúde e cuidados que elas
tinham que ter.
Campo, pra mim, é todo lugar onde a gente pode estar inserida, seja a rua, uma boate, uma casa, um
motel, qualquer lugar. O campo é todo lugar onde houver necessidade de um trabalho de prevenção.
Elaine Maria Esteves - agente de campo de prevenção às DST/Aids
do Centro de Saúde Campo Belo e da Associação Mulheres Guerrei-
ras, de profissionais do sexo.
Cidinha - Maria Aparecida Leal - assistente social do Cen-
tro de Referência em DST/Aids
22
CAPÍTULO 2
RODADA DE PERGUNTAS E RESPOSTAS
A rodada de perguntas e respostas teve a finalidade de aquecer o grupo e colocar para os participantes
algumas questões que sempre surgiam quando novos serviços em campo eram propostos.
A dinâmica consistia em sortear uma questão entre as dez que estavam em uma cestinha, no centro da
sala, respondê-la e escolher alguém do grupo para responder a mesma questão. Em seguida, esta
pessoa sorteava uma nova questão, respondia e repassava para outro, e assim por diante.
Eis as questões:
Como você se apresenta no campo?
Qual seu maior medo no desenvolvimento do trabalho de campo?
O que é campo pra você?
O que facilita ou contribui na abordagem?
O que você oferece?
O que funciona pra você no trabalho de campo?
O que não funciona ou dificulta o trabalho?
Comente duas dificuldades ou decepções no trabalho de campo.
Em que você acredita, ou o que dá certo?
O que você acha importante ensinar, qual a dica de sua experiência que não pode manter em
segredo?
Miriam
A minha questão é o que funciona para você neste trabalho?
Eu acho que esse lance do vínculo que a gente cria com as meninas profissionais do sexo funciona
bastante. Elas se sentem acariciadas pelo que a gente passa pra elas no campo, e isso é legal. E elas
acreditam no que a gente faz também, né? Eu acredito nisso, que elas estão sabendo que a gente está
ali pra cuidar da prevenção, da saúde delas, a gente não está ali à toa.
Minha nova questão é: comente duas dificuldades ou decepções no trabalho de campo.
Eu ainda sou nova no projeto, estou aprendendo ainda. Mas minha grande decepção foi quando a
gente montou a associação das profissionais do sexo e a adesão foi muito baixa. Acreditei que a gente
ia chegar e arrebentar, mas não foi bem assim. Apesar de tudo, tem duas pessoas que cresceram
bastante na associação, e isso é legal. Já no campo, não tem decepção.
César, comente duas decepções.
CAPÍTULO 2
23
César
Eu acho que uma decepção, que não é tão grande pra mim, é a gente não ter conseguido ainda um
meio de fazer reuniões com os garotos de programas como a gente faz com as travestis. A segunda,
talvez seja a dificuldade que a equipe tem para se reunir fora do campo. No campo a gente tem aquilo
certo, consegue cumprir as propostas, mas nas nossas reuniões, às vezes fica difícil sistematizar,
organizar. Nem todo mundo tem agenda, então sempre falta um e, por ser um trabalho voluntário, não
dá pra exigir a presença constante das pessoas.
Agora, a outra questão: o que facilita a abordagem?
No nosso caso específico, do Identidade, o que facilita muito a abordagem é já ser reconhecido, tanto
entre as travestis, porque já tem travestis fazendo esse trabalho de prevenção, como entre os garotos
de programa. Com eles, também não tem dificuldade, porque somos vistos como gays, assim como a
maioria da clientela deles.
Outra coisa que contribui é a nossa conversa antes de irmos pro campo, como chegar, que linguagem
usar; a gente debate muito isso. Se estamos com as meninas, procuramos falar na linguagem delas; se
estamos com os meninos, tentamos ser mais próximos da linguagem deles, pra não ficar uma coisa
muito distanciada: de um lado, nós, os profissionais, e do outro, os abordados no campo. É como uma
coisa de amigo que está se importando, e depois disso vem o segundo momento, que é o objetivo do
nosso trabalho.
Passo pra Maria Regina.
Maria Regina
Pra mim, o que facilita a abordagem é ser do serviço de saúde. Como anteriormente já tinha sido feito
um trabalho bastante longo pela Cidinha e Rosi em nome do COAS, quando eu chego, eu sou a Regina
do COAS. Eu nem preciso falar porque todo mundo já sabe, elas confiam muito na gente. Além disso,
elas pegam camisinha no serviço todo mês. Acho que a saúde sempre é bem recebida.
Em que você acredita nesse trabalho?
Eu acredito que esse trabalho é muito bom, a gente obteve bastante resultado. Eu sempre trabalhei
com formação de lideranças, e quando comecei nesse projeto da associação de profissionais do sexo,
parecia que ia ser muito difícil, porque as meninas mudam muito de cidade. Mas hoje a gente tem um
resultado tão bom, a gente vê as pessoas mudando, vê as meninas voltando a estudar, as pessoas
falando que não bebem há três meses só por causa desse projeto. É um resultado que a gente não
esperava. Estávamos lá pra fazer prevenção, mas acabamos recebendo muito mais. Começamos a
perceber coisas que achávamos impossíveis, pelo menos pra mim. Eu falo que a gente tem que
acreditar nessas meninas. Essa nossa associação fica parecendo pequenininha, mas não é; ela é muito
importante, já está fazendo a diferença aqui em Campinas. Então, estou meio emocionada, porque
acho que é um trabalho que vale a pena ser feito.
Pra Cidinha...
PERGUNTAS E RESPOSTAS
24
Cidinha
Quando a gente iniciou, em 1996, o trabalho de campo era muito difícil. Hoje, conversando com elas e
vendo o que acontece, a gente vê que melhorou muito: as pessoas, as profissionais do sexo, as
travestis e alguns garotos de programa. Houve um crescimento muito grande. Hoje eles têm mais
conhecimento dos seus direitos, do que podem buscar, do que podem fazer. Em 96, eles não sabiam o
que fazer. Achavam que não tinham direitos, que eram culpados. Pra mim é muito gratificante ver esse
crescimento, essa troca de experiências, a mudança de comportamento.
O que você considera que deu certo?
Pra mim, o que deu certo é estar acontecendo este encontro hoje, estar aqui e ver quantas pessoas
agora estão inseridas nesse trabalho. No começo, as pessoas desconfiavam: quem são essas da área
da saúde que estão chegando aqui? Pra mim e para a Rosi foi muito difícil abrir os campos, chegar,
abordar, conversar, tanto de dia quanto à noite...
Deixa eu perguntar pra Janaína: o que você considera que deu certo?
Janaína
Eu acho que o que deu certo foi principalmente a adesão das travestis ao serviço. A gente percebe isso
estando lá com elas. Vejo o quanto aumentou a busca pelo preservativo, pela testagem e pelo
tratamento. O fato tanto de se prevenir quanto de se cuidar deu certo dentro do projeto. Ter meninas
trabalhando no PMDST/Aids também é fruto desse trabalho. Quando se tem a Susy, que é travesti,
fazendo campo de redução de danos, sinto que isso é mais um resultado das ações que começaram no
“Cidadania na Pista” (projeto do Grupo Identidade junto a travestis profissionais do sexo).
Dê uma dica de experiência para os que fazem campo?
Eu acho que uma dica é não chegar lá falando de DST e de camisinha. Quando a gente vai falar de
prevenção, de DST, de HIV, não deve colocar isso como prioridade; isso vem num segundo momento.
A gente traz sempre outros assuntos, como falar do dia-a-dia, da polícia, da clientela, se está ganhando
ou se não está, até chegar ao HIV, à camisinha, à prevenção. Eu acho que a dica é essa.
Vou perguntar pro Herval.
Herval
Uma dica da abordagem é ouvir o que o outro tem a dizer e respeitar. Mesmo que isso esteja em
desacordo com o que a gente pensa, tem que respeitar.
O que não funciona, dificulta o trabalho?
Tem coisas que às vezes funcionam e às vezes dificultam o trabalho. O que não dá certo pra uns pode
dar certo pra outros; depende da realidade do momento e do grupo. Então eu acho que o que não
funciona é ficar preso a técnicas, não ouvir, ser prático demais, não ter paciência, ir ao campo e achar
que a prevenção é feita de uma única vez. No campo a gente tem que ir muitas vezes, e às vezes fugir
CAPÍTULO 2
25
da prevenção, conversar outros assuntos, pra depois inserir o tema. A transformação social se dá
através disso, da paciência.
E pra você, Susy o que não funciona ou dificulta o trabalho?
Susy
Eu acho que o que mais dificulta é não acreditar naquilo que se está fazendo. Se você não acredita no
que faz, não tem como chegar no próximo. E se você não tem disponibilidade de escuta, aí não
consegue nada, porque o grande avanço do trabalho de prevenção é a escuta. É como o Herval falou,
mesmo que você não pense daquela maneira, tem que ter o respeito ao direito de escolha do outro, o
momento daquela pessoa, seja ela quem for. Pode ser que naquele momento ela não queira conversar
de HIV, mas queira falar de uma perda familiar, de um relacionamento. Então você também tem que
ouvir e acolher. O primeiro passo é acreditar naquilo que faz e o segundo é ter a escuta.
Agora, a próxima questão: Qual o seu maior medo no desenvolvimento do trabalho?
Hoje eu não tenho medo. Eu tenho expectativas. Posso falar que tive medo quando eu cheguei pra
trabalhar no Redução, porque vim de um grupo onde eu me identificava, eu fazia prevenção com
pessoas do mesmo gênero que o meu. Na minha primeira ida pro campo, eu fui morrendo de medo,
não porque eu ia trabalhar com usuários de drogas, mas por não saber como seria vista e tratada.
Então, eu tinha um receio de como iam me receber nos bairros, abordando as pessoas dentro do
espaço delas. Aí, nessa primeira vez, percebi que eu fui ótima. Naquele dia, acabou o medo e comecei
a ter expectativas de como atuar, aprendendo mais, buscando mais...
Um dia no campo, num bar, conversando com um rapaz, ele olhou bem pra mim e perguntou: você é
homem ou você é mulher? Naquele dia, eu falei: eu não sou nem homem nem mulher, eu sou travesti.
Mas faz diferença para você nesse momento? A gente não pode falar sobre o trabalho? E então ele se
desculpou. Se fosse nos velhos tempos, eu já tinha armado um barraco, já ia gritar. Mas foi uma coisa
que fui superando, isso eu já consigo trabalhar.
Vindo pro Redução de Danos tive muitos ganhos, e com a minha vinda pra cá, as “meninas” (travestis)
se identificam mais. Hoje, quando elas chegam ao CR, já vão direto lá pro fundo, na sala onde eu
estou. O caminho está aberto.
Pra Elaine: qual o seu maior medo no desenvolvimento do trabalho?
Elaine
O meu medo foi quando eu comecei, lá no Campo Belo, por ser o bairro onde eu moro e ter pessoas
que eu conheço. E aqui no Centro, por ser uma profissional do sexo e trabalhar com elas, tive
dificuldade de falar da prevenção e de me disponibilizar pra estar junto, acompanhar a vinda ao serviço,
dar assistência, por medo delas estarem confundindo a agente de prevenção com a colega de trabalho.
Passo para o Rodrigo: O que não funciona, dificulta o trabalho?
PERGUNTAS E RESPOSTAS
26
Página 26
Rodrigo
O que não funciona e dificulta o trabalho, pra mim, é lidar com o tráfico e a relação do dinheiro do
tráfico ou do dinheiro da prostituição. O tempo inteiro me parece que isso está contra o nosso trabalho.
É difícil acessar um menino que está na “nóia” (drogado), e ter uma conversa um pouco mais
prolongada. Quando a conversa está engatando, chega um “carrão” e acaba com a conversa da
rodinha. Eu fico me lembrando disso: do quanto o dinheiro e o vício pesado nos levam a um
distanciamento deles. É claro que depois a gente volta e no outro dia é diferente, mas pra mim é um
pouco complicado lidar com essa frustração. Eu olho pros nossos ganhos, pra tudo que conseguimos
acessar, mas não consigo me esquecer do quanto se perde todo dia. Acho que, se botar no papel, a
gente perde muito mais do que ganha. Tem dias que eu estou mais frágil e tenho mais dificuldade de
lidar com isso. Felizmente, temos uma equipe que conversa muito e isso funciona, no debate. Um dia
um chora, outro dia um levanta o outro...
Eu queria fazer uma pergunta pra Rosalice a partir disso que eu coloquei.
Como é que você lida com as frustrações? Você reconhece que elas existem, quais são?
Rosalice
Além desses atravessamentos do tráfico que você citou, tem outros, como o do Conselho Tutelar,
quando a gente opera com os trabalhadores de saúde. Minha frustração e dificuldade é concorrer com
as outras prioridades das equipes dos Centros de Saúde. Pra nós, a prioridade é a prevenção e para
eles podem ser outras, como a dengue, por exemplo.
Quando eu vou pra campo, no Projeto Fluxus, eu parto do princípio que o uso abusivo de drogas está
posto. Então, quando eu atuo especificamente com os meninos e eles estão na “nóia”, a gente fala um
pouquinho. Quando volta, eles já nos reconhecem. E às vezes dizem: “naquele dia eu tava muito louco,
né, tia?” A gente já é reconhecida, mas é muito difícil; talvez precise tomar uma “vacininha” antes do
trabalho.
Quero voltar à primeira pergunta: O que funciona? Eu pergunto pra Rosi.
Rosi
Eu acho que o que funciona são as pessoas trabalharem com os seus iguais. Não acredito mais em
técnico na rua. Já acreditei. Teve uma fase que isso era necessário, hoje não. Então, eu acredito que
existe uma escuta diferenciada entre semelhantes. Por mais que eu tente falar a linguagem da menina
que está fazendo programa, quando eu não sou uma delas, a escuta é diferente pra mim. Acho que o
que funciona é ter lá, no campo, as pessoas que são ouvidas.
Outra coisa que eu acho que funciona é o investimento da gestão na prevenção. A gente sempre perde
pessoas para a assistência, porque a assistência tem suas urgências e a prevenção vai ficando pra
trás, como se fosse menos importante. Por isso, fiquei muito feliz da Maria Regina ser liberada da
assistência no meio da campanha Fique Sabendo, justamente por causa de toda essa discussão.
CAPÍTULO 3
27
CAPÍTULO 3
E tem fim?
Comentários Finais
“Dá pra gente ir longe com
esta história!”
Enquanto a conversa circulava eu fiz
algumas anotações e teci meus
comentários a partir delas.
Acompanhando as histórias aqui
narradas, os diferentes momentos das
pessoas, das equipes, dos parceiros,
fomos nos deparando com os desafios desta construção, das idas e vindas, das coisas que começaram
e não tiveram continuidade sendo fundamental analisá-las e entender os entraves, como também de
todas as experiências que estão dando certo, dentro dos seus limites e das suas possibilidades.
Sobre a organização política, queria comentar que participei da Consulta Nacional Sobre DST/ AIDS,
Direitos Humanos e Prostituição1, quando foram discutidas questões de saúde e prevenção com
mulheres, travestis e transexuais profissionais do sexo; não estavam os michês, creio que é um grupo
que não está organizado e provavelmente tem pouco interesse no momento por visibilidade.
É animador ver o quanto por esse país afora as pessoas estão mobilizadas, lutando por seus direitos,
pelo reconhecimento da prostituição como profissão embora, quanto a esta questão, existam muitas
controvérsias e diferentes posicionamentos. Fiquei bastante sensibilizada para discutir e achar
caminhos para apoiar o movimento das Mulheres Guerreiras aqui em Campinas. Ainda temos muito o
que caminhar. Me tocou ver e ouvir as mulheres na faixa etária de 60 anos, lá do Belém do Pará, que
tem a filha e às vezes a neta na mesma profissão, fortemente organizadas, percorrendo as
comunidades ribeirinhas de barco para discutir direitos e propostas. Ao mesmo tempo constatamos
que Campinas, embora seja uma cidade rica, com uma experiência governamental de intersetorialidade
e parceria com a sociedade civil, com uma boa cartografia dos territórios (qualquer pessoa que
encontra-se nesta sala hoje é capaz de dizer onde podemos contatar as travestis, as transexuais, as
mulheres e os michês), ainda assim, o apoio na organização por direitos é bastante incipiente - este é
um fator que vulnerabiliza socialmente e subjetivamente esta população.
Estamos colaborando a partir do nosso núcleo de atuação com a iniciativa da Associação das Mulheres
Guerreiras, que congrega inclusive as profissionais travestis. Quando a Míriam, que está
acompanhando pelo campo as Mulheres Guerreiras, comentou sobre sua experiência de abrir uma
COMENTÁRIOS FINAIS
Elisabete G. Zuza, psicóloga, coordenadora
do NECS – Núcleo de Educação e Comunica-
ção Social do Programa Municipal DST/Aids
28
poupança a partir da percepção de um nó critico, de um problema apresentado durante uma reunião e
essa escuta a levou a agir sobre sua própria vida, temos aí um bom exemplo de como o próprio
problema, ao ser analisado, traz em si a dica de sua solução. Como é que a gente resolve a situação?
Quando as 'meninas' trouxeram a questão da gestão financeira para a roda, ou seja, como para elas é
difícil administrar o dinheiro que ganham, quanto e como gastar? Como poupar? Está aí um tema
gerador. Por que não transformá-lo em uma pauta nas reuniões da associação? É o cotidiano que diz
como e por onde caminhar na direção da organização política local. O movimento e a organização não
se sustentam somente com as bandeiras do movimento social, com as questões gerais.
Do que fui anotando sobre o que é o campo: O campo é uma rede relacional, de diálogos, de trocas.
Não é só um território físico. O espaço geográfico é o lugar onde as pessoas se situam, trabalham e a
partir dele protagonizam suas relações mas as redes que ali são produzidas e que permitem a
circulação de informações, contratos, conhecimentos, desejos, conflitos, transcendem a geografia, o
lugar físico. O campo é um espaço de produção. A gente erra quando tende a tratar o campo só como
um local de contato. Quando a coisa está chata, modorrenta, não caminha, você vai lá todo dia
repetindo as mesmas coisas burocraticamente, quando nada ali te desperta ou desperta o usuário para
uma produção de vida, é o momento de repensar as nossas práticas, o que estamos de fato ofertando.
Vocês foram produzindo o conceito de campo como uma rede de afetos, de escuta, de intimidade, da
construção de relações de confiança, de vínculos. Estes movimentos demandam um tempo, uma
entrega, permanência, então não pode haver pressa. Trabalho de campo é uma coisa muito artesanal;
o campo é uma vastidão. O campo precisa fazer sentido, ter um significado pra quem faz e pra quem
está lá. O campo é uma construção conjunta.
Gostaria de assinalar a fala do Herval de que “as pessoas que estão no campo são protagonistas da
transformação social”. As ações de cuidado relatadas por ele fizeram sentido para todos os envolvidos,
com impacto importante para as mudanças de atitude das pessoas naquele contexto.
Na questão da identidade, vocês dizem que às vezes é por identificação que as pessoas se aproximam
mas às vezes é pela diferença, por exemplo, quando quem está em campo é um técnico, um
profissional de saúde. Se a postura do profissional não é a de polícia sanitária, ou se o profissional
resiste aos argumentos de autoridade, partindo de uma escuta “qualificada” e horizontal, as pessoas
não costumam se fechar. Em alguns momentos as relações ficam tensas no campo independente da
“identidade” do agente, mas temos que buscar compreender o que 'se passa' antes de reagir ou de
oferecer receitas de prevenção. Precisamos avançar nas discussões de como as pessoas se apropriam
dessa política de proteção à saúde e de cuidado no próprio campo.
E falando sobre o cuidado, os agentes de campo também precisam ser cuidados, ouvidos em suas
dificuldades, angustias, contradições. Precisam de profissionais que de fato os ajudem a sustentar a
complexidade deste trabalho pois só assim poderemos avançar no conhecimento e na prestação de
cuidados aos usuários.
Acho importantíssimo referendarmos os arranjos que nossos agentes de campo inventam como ofertas
em campo que vão muito além da entrega dos “ insumos de prevenção” . Podemos levar o violão,
o grafite, a contação de histórias, a dança, o canto, a produção de um Zine, a capoeira, enfim,
aproveitar os talentos do grupo ou agenciar parceiros para o trabalho. Tornar o campo um lugar de
produção de vida. “O que a gente leva não é uma coisa só”, são inúmeras.
Enfim, existem caminhos interessantes, dá pra ir longe com essa história. Podemos produzir muitos
saberes sobre o campo e sobre nossas práticas e diversificá-las a partir das experiências
compartilhadas.
CAPÍTULO 3
29
Legenda de Siglas:
1 NECS - Núcleo de Educação e Comunicação Social do Programa Municipal de DST/
Aids
2 CR-DST/Aids - Centro de Referência em DST/Aids
3 PRD - Programa de Redução de Danos do Programa Municipal de DST/Aids
4 PMDST/Aids - Programa Municipal de DST/Aids
5 RNP+ - Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids
6 CTA - Centro de Testagem e Aconselhamento
7 COAS – Centro de Orientação e Apoio Sorológico
8 SUS - Sistema Único de Saúde
9 PAM - Plano de Ações e Metas
10 CRAS – Centro de Referência da Assistência Social
E-mail: