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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 1 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php QUASE-DIGITAIS: anseios e visões dos jovens universitários cariocas usuários de multiplataformas 1 QUASI-DIGITAL: the young college students of Rio de Janeiro and their media multiplatform use Anderson de Almeida Cano Ortiz 2 Fátima Cristina Regis Martins de Oliveira 3 Resumo: O artigo discute sobre as adoções jovens das multiplataformas conectadas à internet e de que maneira essas práticas dialogam com os conceitos da cognição inventiva. A discussão teórica sobre cognição, comunicação e juventude é confrontada com os achados de pesquisa de campo qualitativa realizada, via técnica de grupos focais, quando 59 jovens estudantes universitários da Comunicação, divididos em oito sessões, foram ouvidos por mais de 20 horas de conversas. Revela-se um jovem “quase digital”, altamente afeito aos usos das tecnologias, mas carregando uma espécie de culpa por tamanha adesão. São pesquisadas as visões dos jovens sobre juventude e tecnologias; práticas com as mídias tradicionais e digitais; as adoções digitais em definitivo; as ações empregando a lógica digital conectada; as habilidades e as competências que os jovens reconhecem ter desenvolvido; as perspectivas desses jovens sobre aparatos e corpos conectados; as visões sobre liberdade e inteligência nos tempos atuais. Palavras-Chave: Cognição. Estudos de Internet e Cibercultura. Juventude. Tecnologias de Informação e Comunicação Abstract: The article discusses the young adoptions of multiplatforms connected to the Internet and how these practices dialogue with the concepts of inventive cognition. The theoretical discussion about cognition, communication and youth is confronted with qualitative field research findings, through focus group technique, when 59 young university communication students were heard about 20 hours of chating, divided into eight focus sessions. The young group heard reveals himself to be an "almost digital" person, highly affectionate to the uses of technology, but carrying a kind of guilt for such adherence. Youth visions on youth and technologiesare researched; practices with traditional and digital media; the digital adoptions in definitive; the actions employing the connected digital logic; the skills and competencies that young people recognize to have developed; the perspectives of these young people on connected gadgets and bodies; the visions of freedom and intelligence in our times. Keywords: Cognition. Internet Studies. Youth. Information and Communication Technologies 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cibercultura do XXVIII Encontro Anual da Compós, PUC-RS, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2018. 2 PPGCOM-UERJ, Doutor em Comunicação, [email protected]. 3 PPGCOM-UERJ, Doutora em Comunicação, [email protected]

QUASE-DIGITAIS: anseios e visões dos jovens universitários ......técnica de grupos focais, quando 59 jovens estudantes universitários da Comunicação, divididos em oito sessões,

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1 www.compos.org.br

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QUASE-DIGITAIS: anseios e visões dos jovens

universitários cariocas usuários de multiplataformas1 QUASI-DIGITAL: the young college students of Rio de

Janeiro and their media multiplatform use Anderson de Almeida Cano Ortiz2

Fátima Cristina Regis Martins de Oliveira3

Resumo: O artigo discute sobre as adoções jovens das multiplataformas conectadas à

internet e de que maneira essas práticas dialogam com os conceitos da cognição

inventiva. A discussão teórica sobre cognição, comunicação e juventude é

confrontada com os achados de pesquisa de campo qualitativa realizada, via

técnica de grupos focais, quando 59 jovens estudantes universitários da

Comunicação, divididos em oito sessões, foram ouvidos por mais de 20 horas de

conversas. Revela-se um jovem “quase digital”, altamente afeito aos usos das

tecnologias, mas carregando uma espécie de culpa por tamanha adesão. São

pesquisadas as visões dos jovens sobre juventude e tecnologias; práticas com as

mídias tradicionais e digitais; as adoções digitais em definitivo; as ações

empregando a lógica digital conectada; as habilidades e as competências que os

jovens reconhecem ter desenvolvido; as perspectivas desses jovens sobre aparatos

e corpos conectados; as visões sobre liberdade e inteligência nos tempos atuais.

Palavras-Chave: Cognição. Estudos de Internet e Cibercultura. Juventude. Tecnologias de

Informação e Comunicação

Abstract: The article discusses the young adoptions of multiplatforms connected to the

Internet and how these practices dialogue with the concepts of inventive cognition.

The theoretical discussion about cognition, communication and youth is confronted

with qualitative field research findings, through focus group technique, when 59

young university communication students were heard about 20 hours of chating,

divided into eight focus sessions. The young group heard reveals himself to be an

"almost digital" person, highly affectionate to the uses of technology, but carrying a

kind of guilt for such adherence. Youth visions on ‘youth and technologies’ are

researched; practices with traditional and digital media; the digital adoptions in

definitive; the actions employing the connected digital logic; the skills and

competencies that young people recognize to have developed; the perspectives of

these young people on connected gadgets and bodies; the visions of freedom and

intelligence in our times.

Keywords: Cognition. Internet Studies. Youth. Information and Communication Technologies

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cibercultura do XXVIII Encontro Anual da

Compós, PUC-RS, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2018. 2 PPGCOM-UERJ, Doutor em Comunicação, [email protected].

3 PPGCOM-UERJ, Doutora em Comunicação, [email protected]

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1. Introdução

A presente reflexão se baseia na tese Jovem e cognição multiplataforma: relatos dos

pioneiros de uma vida quase digital, com pesquisa qualitativa realizada entre 2017 e fins de

fevereiro de 2018, para apresentar de forma problematizada as competências cognitivas que

são colocadas em jogo com a adoção das multiplataformas de comunicação.

Ao contrário do que se assume em muitos círculos (acadêmicos, políticos, midiáticos

e outros), a aproximação com os grupos de jovens cariocas pesquisados na fase de campo da

pesquisa demonstra que a adoção das tecnologias de informação e comunicação (TIC) é feita

de forma negociada. Em linhas gerais, há uma aceitação da ideia de ambientes conectados,

dentro dos quais esses jovens estariam tranquilamente inseridos, a ponto de admitirem estar

sob um vício prazeroso; por outro lado, há enorme resistência desses mesmos jovens à ideia

de tornar os próprios corpos como parte da rede conectada. Essa objeção leva os

pesquisadores a assumirem o termo “quase-digitais” para descrevê-los. Se, em opinião, esses

jovens cariocas pesquisados sentem-se participantes plenos do contexto digital, percebe-se

que o corpo com próteses digitais de comunicação ainda é encarado pela perspectiva moderna

(‘meu corpo, meu templo’), rechaçando a ideia das próteses conectadas. Em ato, portanto, o

conectado digital encontra a barreira nos limites do próprio corpo. Ficções distópicas são

mobilizadas pelos jovens para defender que o corpo conectado está mais para a prisão do que

para os benefícios vários sinalizados, por exemplo, pelos avanços da nano e biotecnologia.

O artigo remonta, assim, a fundamentação teórica, sem qualquer pretensão de esgotá-

la, apenas situá-la. Evidencia como os hábitos oriundos do uso dos meios de comunicação

não-digitais4 ainda compõem o cotidiano (e imaginário) dos jovens cariocas contemplados na

pesquisa. E, por fim, as negociações que os jovens estabelecem entre ambientes conectados

como algo natural, usos arraigados de tecnologias a ponto de encará-los como ‘prisão com

prazer’ e rechaço à possibilidade de ter o próprio corpo como parte de uma rede social de

inteligência ampliada no seu cariz mais moderno filosoficamente.

Ao fim e ao cabo, evidencia-se a tessitura que os jovens usuários – apresentados ainda

na infância à lógica TIC – buscam estabelecer nas suas práticas ‘nem tanto ao mar, nem tanto

à terra’ do contexto atual do meio urbano imerso nas tecnologias multiplataformas.

4 Usaremos o termo “tradicional” para referir aos meios anteriores à internet: impresso, rádio e TV.

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2. Fundamentação teórica

A pesquisa toma por base três linhas de reflexão: cognição; comunicação; estudos

sobre juventude. Os conteúdos desdobram a pesquisa bibliográfica da tese sobre as ciências

da cognição, com ênfase na cognição inventiva; os estudos da comunicação pelos conceitos

de cibercultura, enredamento sociotécnico, relação homem-máquina; e os estudos teóricos e

empíricos sobre o recorte demográfico específico da juventude.

2.1 O domínio dos estudos da cognição

De maneira específica, a pesquisa identifica como os repertórios de atenção,

percepção e memória se apresentam nas práticas cotidianas; a cultura conectada e multitarefa

presente no meio jovem em contato com os modelos cognitivos estudados; as apropriações

híbridas dos meios tradicionais de comunicação e dos meios digitais multiplataforma,

explicadas por meio das teorias da Comunicação.

A revisão bibliográfica apresenta alguns dos paradigmas dos estudos da cognição.

Revisitam-se conceitos sobre atenção, percepção e memória, escolhendo-se a proposta de

cognição inventiva presente nos estudos de Kastrup (2004) como conceito operatório central

para explicar os tipos de atenção manifestados pelas práticas no meio digital.

O conceito de habilidades e competências cognitivas tendo a atenção-percepção-

memória como fio condutor é tratado em variadas perspectivas nas reflexões de autores como

Hutchins (1995); Perrenaud (1999); Kastrup (2004; 2009); Stoltz (2005); Schmidt e

Vandewater (2008); Sodré e Paiva (2010); Brasel (2011); Regis et al (2012); Ferreira (2014);

Jenkins et al (2014), dentre muitos outros.

As competências estão relacionadas com o processo de construção de conhecimento

que demanda o uso dos sentidos corpóreos e da experiência concreta, distinto do aprendizado

formal abstrato, concentrado e fora do contexto. A uma cultura escrita adiciona-se outra,

transformada pelo digital, que faz convergir repertórios anteriores de símbolos, imagens,

sons, movimento e oralidade que, longe de ser algo inovador, ao contrário, resgata e

transforma o humano ancestral que, na ausência da expressão textual, empregava a oralidade,

o símbolo e as imagens como elementos de aprendizado, culto e memória. O uso humano dos

conteúdos e seus suportes leva a uma ambiência integrada já apontada pelas ciências da

cognição – corrente da cognição atuada (VARELA, 1990) – e evidenciada nesse tópico como

aquilo que exige um repertório transformado de atitudes relativas à atenção.

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Como explica Kastrup (2004), na tradição da Psicologia Cognitiva, os elementos

psicológicos envolvidos com a aprendizagem preceituam que a atenção compõe o cardápio

daquilo que há a ser aprendido. Trata-se de tirar a atenção do seu estado natural, aprendendo

a concentrar-se para que um indivíduo possa condicionar-se para perceber e memorizar.

Nesse sentido, elementos como foco e concentração tornam-se variáveis importantes a

modular o processo atencional e o respectivo aprendizado, não apenas retendo o objeto que se

aprende, mas também imaginando usos inovadores desse objeto. A cognição inventiva leva a

outro nível o processo de construção de competências. Nesse processo se apresenta a

causalidade circular de Varela (1990), que envolve a problematização e a solução, mas indo

além, “como invenção de si e do mundo. (...) Ela é uma prática de invenção de regimes

diversos, co-engendrando, ao mesmo tempo, o si e o mundo” (KASTRUP, 2004, p.8).

O repertório envolvido com a atenção faz desembocar no consumo midiático, à

medida que os estímulos cresceram de forma vertiginosa para indivíduos que ainda são

formalmente preparados pela escola segundo um cardápio de atenção racionalizante, cuja

focalização é exigida para aprender. O que não impede que um aprendizado informal com os

meios de comunicação disponíveis na vida cotidiana altere essa capacidade cognitiva. Por

exemplo, mais de uma pesquisa (Rede Brasil Conectado e qualitativa da tese) corroboram

que o único meio de comunicação que a maior parte dos jovens dedica atenção exclusiva –

focada e concentrada – é o livro. Todos os demais meios são usados em conjunto com outros,

raramente isolados. O que seria equivocado fazer supor que tantos estímulos provocam

desatenção. O que positivamente se revela é que há uma redistribuição de um ‘estoque de

atenção’, que difere daquele repositório que um indivíduo dispunha há 30 anos.

Nesse ponto, os ambientes midiáticos, conectados à profusão, estão paulatinamente

assumindo funções variadas de memorização, com a preocupação crescente entre educadores

sobre as competências a ser desenvolvidas pelas crianças. Até há pouco, formava-se o

indivíduo para abstrair e aplicar, cuja ênfase era “conteudista” para ser arquivada na memória

humana. Agora, também se torna necessário prepará-lo para buscar, julgar sobre a fonte,

empregar o conteúdo de acordo com princípios intelectuais éticos e criar a partir de tudo o

que está à disposição nos suportes técnicos. Isso com as crianças imersas em uma infinidade

de estímulos midiáticos em paralelo, na maior parte das vezes mais atraentes do que qualquer

outro repertório educativo disponível.

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As evidências levantadas com a pesquisa revelam que as práticas de consumo

midiático atual dos jovens contam com novos repertórios de atenção, que se organizam a

partir de dinâmicas inventivas. De início, revela-se uma tolerância cada vez menor aos

formatos tradicionais do conteúdo audiovisual e impresso.

2.2 Cognição, comunicação e conexão às TIC

No entrecruzamento dos estudos das Ciências Cognitivas com os da Comunicação,

discute-se sobre a interação entre homens e aparatos em ambientes conectados à internet.

Conforma-se um paradigma em que homens, máquinas e ambientes co-engendram uma

inteligência que mobiliza a mente e o corpo, os objetos técnicos e os ambientes digitais

conectados. Algo diferente da concepção moderno-iluminista de cognição como um cultivo

da mente superior, que aprende com a qualidade do que é capaz de abstrair, na qual o corpo

tem atuação secundária. Isso se dá de acordo com a lógica das associações complexas, o que

significa admitir que nem sempre o homem será o protagonista nesses arranjos.

O corpo teórico que reflete a cibercultura tende a encarar o espaço oferecido pela

lógica digital e seus componentes como plataforma de aprendizado coletivo e individual,

desenvolvimento de práticas culturais em rede, nos mais variados campos, em autores como

Latour (2012); Benkler (2006); Lemos (2002); Parente (2013); Primo (2013); Jenkins et al

(2014); Castells (2015); Lopes et al. (2017); Recuero (2014), dentre muitos outros.

É certo que o repertório tradicional de habilidades é demandado dos usuários

multiplataformas, como capacidade de ler e escrever, entender a simbologia de ícones,

noções de língua inglesa, movimentos do corpo para interagir com os aparatos, entre outros.

Essas habilidades passam por um refinamento a partir dos usos atuais dos conteúdos

interativos digitais. Não à toa, pesquisas recentes tornam evidente que o abismo na adoção

das tecnologias encontra lugar na atualidade com fortes barreiras à incorporação nos públicos

com menor renda, menor nível de instrução, tipos de trabalho menos qualificados, mais

idosos, residentes no interior ou cidades de menor porte (BRASIL; SECOM, 2015).

Usos convergentes de tecnologias tornam-se hábitos cada vez mais assumidos pelos

públicos que estão se relacionando com as TIC. Não apenas conteúdos que se complementam

passam a ser distribuídos por múltiplas plataformas, mas especialmente conteúdos que

suplementam certa obra podem ser encontrados em distintos canais e formatos. Outro olhar e

outra forma de se concentrar em tais conteúdos tornam-se necessários. Apesar dos avanços

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feitos nesse sentido, os dados da pesquisa revelam que o tradicional televisivo e o digital

estão dividindo espaço no gosto do público (LOPES et al., 2017), embora a migração de

quase todos os demais suportes para o digital indique que a televisão provavelmente também

vá conhecer o mesmo destino.

Isso reforça que, para lidar com os novos suportes, é preciso ter acumulado

competências do modo de uso anterior das mídias tradicionais e que esse desenvolvimento de

habilidades não se distribui igualitariamente entre todos os estratos da sociedade.

Também são mobilizados os conceitos dos estudos de internet que oferecem um

quadro teórico da rede sociotécnica, tanto nos seus aspectos filosóficos quanto nos

sociológicos. Faz-se uma breve explanação das ambições que desde o século XVIII envolvem

a ideia de rede e como essa metáfora vai ser empregada no presente para caracterizar a

sociedade conectada. Explica-se nos termos da teoria ator-rede (LATOUR, 2012) a lógica das

associações, que se estrutura a partir de redes rizomáticas, cuja ausência de hierarquias

prévias tende a ser a tônica, o que não deve ser confundido, contudo, com a ausência de

padrões. Fundamenta-se o conceito de redes sociotécnicas e a formação de subjetividades,

indicando variáveis que servem de operadores interpretativos, tais como heterotopia,

pantopia, rizoma, multitemporalidade, redes de transformação, ideografia dinâmica, entre

outras (PARENTE, 2013).

Ainda nessa fase são revisados os conceitos relacionados à conversação em rede e as

formas de relacionamento que se estabelecem nos espaços das redes sociais na internet. As

variáveis que tradicionalmente definem a ideia de capital social – confiança, reciprocidade,

proximidade – ganham contornos diferenciados dentro dos espaços digitais, que serve de base

para interpretar os diversos comportamentos dos jovens, revelados tanto nas fontes

secundárias quanto na pesquisa de campo. Daí que são buscadas informações que expliquem:

a predileção dos jovens pelos produtos seriados de TV agora distribuídos em plataformas

streaming; a lógica da cultura da participação tendo os produtos culturais do entretenimento

como direcionadores; os motivadores que levam os jovens à ação nas redes sociotécnicas

organizadas em torno dos assuntos de entretenimento.

Aborda-se também a questão da junção homem-máquina, tendo à frente a figura

ficcional do ciborgue. Busca-se entender a condição humana a partir das teorias que explicam

as visões presentes e futuras sobre o enredamento complexo de homens, máquinas e

ambientes. Essa discussão estrutura uma experiência no campo qualitativo em que os jovens

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imaginam o futuro das TIC a partir dos conceitos de internet das coisas, próteses de

comunicação, as ideias dicotômicas de liberdade–vigilância e como a inteligência se define

dentro dessa dinâmica em que a conexão ganha valor.

Schmidt e Vandewater (2008, p.64) discutem, a partir de resultados empíricos de

variadas pesquisas, as competências cognitivas que jovens usuários de meios de comunicação

eletrônicos costumam apresentar. Os resultados apontam que competências ligadas a

execução de tarefas, sistemas de linguagens, símbolos, visão, habilidades espaciais,

capacidade de resolução de problemas, atenção e hipertextualidade apresentam ganhos com

os recursos dos meios de comunicação. E que o formato audiovisual de conteúdos, quando

considerado relevante pelos jovens, é memorizado em níveis superiores àqueles repassados

em outras plataformas.

A capacidade de atenção engajada aumenta com o hábito de consumo das plataformas

eletrônicas, o videogame inclusive, ao contrário da impressão no senso comum de que solapa

o foco e a atenção. Propõe-se que quanto mais compreensível for um conteúdo, maior será

seu índice de retenção na memória, incluindo os conteúdos ficcionais (Idem, p.71-72).

Segundo as pesquisadoras, as técnicas de edição do audiovisual, consagradas por

décadas de exposição, também influenciam no engajamento de atenção, com recursos já

incorporados nas narrativas midiáticas, tais como o corte de imagens, mudanças repentinas de

enquadramento de câmera, movimentos e efeitos sonoros, o que remete ao conceito de media

literacy, proposto por Thomas Bauer (apud MARTINO, 2014, p. 230). Nesse sentido, a

presença de aparatos de comunicação em quase todos os ambientes cotidianos produz

sentido, a ponto de ser impossível separar linguagens, significados e dispositivos ao se

elaborar qualquer análise sobre eles.

Em especial no caso de videogames, destaca-se neste inventário a capacidade que seus

usuários desenvolvem de concentração, motivação em alcançar objetivos, propensão para

vencer desafios intelectuais e lúdicos, tudo isso em um estado positivo de ‘fluxo’ (flow nos

termos das pesquisadoras), “que se caracteriza pelo estado no qual uma pessoa se perde numa

atividade profundamente prazerosa” (SCHMIDT; VANDEWATER, 2008, p.73).

Também se verifica na lógica dos hipertextos ganhos cognitivos relevantes devido ao

consumo interessado do usuário quando ele próprio torna-se capaz de hierarquizar o conteúdo

preferido à medida que pula de um documento a outro no seu trajeto de navegação.

Características como liberdade de tempo para consumo no ritmo do usuário, arquitetura

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aberta e ilimitada de informação disponível, possibilidade de escolha, condições de participar

ativamente na própria construção do conteúdo, são alguns dos atributos que aumentam a

sensação de controle do consumidor de hipertextos, que por sua vez aprende paulatinamente

a refinar suas pesquisas e desenvolve uma complexa capacidade de garimpar dados usando

visão e leitura (Idem, p.74).

Essas características vão aparecer claramente nos três resultados de pesquisa

aplicados – CGI; Rede Brasil Conectado; rodada qualitativa – revelando um jovem

consumidor de conteúdo digital que valoriza a liberdade de escolha de seus conteúdos, a

ponto de refutar qualquer forma de programação que o tente condicionar a datas e horários

específicos.

Ao mobilizar extensa referência bibliográfica, Brasel (2011) propõe o conceito de

tunnel vision5 para explicar que um novo padrão de visão com os artefatos de mídia se

estabelece na atualidade, em ambientes cuja interatividade, telepresença e consumo por busca

e pesquisa se confirmam como hábitos crescentes. O tipo de visão aqui proposto difere

daquele exigido para consumir meios tradicionais, que ainda permitia algum tipo de flutuação

do olhar. As plataformas interativas demandam que o usuário alterne sua presença em

distintos ambientes de mídia estando previamente orientado sobre o que buscar, daí a ideia de

‘túnel’, constatando-se que esse foco altera a capacidade de percepção do ambiente.

Nos moldes anteriores de mídia, a atenção poderia se desviar e retornar ao centro da

mensagem proposta, com perda irrelevante de sentido. Característica que ainda se reconhece

para alguns dos jovens que adiante serão apresentados nos grupos focais, que manifestam

apreciar o modelo anterior. No modelo presente, essa distração pode provocar a perda de

alguma informação importante, como por exemplo no caso de um videogame. Mesmo o

repertório de atenção periférica diminui a capacidade de retenção, uma vez que a entrada nos

ambientes interativos já vem motivada por um interesse prévio.

Para abordar o tema do engajamento exigido do indivíduo para lidar com os objetos

da cibercultura, mobiliza-se uma vez mais o conceito de ‘competências’ elaborado por

Perrenaud (1999). De acordo com o autor, supera-se a fase anterior de desenvolvimento das

capacidades de retenção do cérebro, a cognição depende do engajamento do aprendiz. Trata-

se do elemento fundamental na construção de competências, que se descola da concepção de

5 Optamos por manter o conceito em seu rótulo original, tunnel vision, uma vez que a tradução literal parece

pouco adequada para explicitá-lo.

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que aprender seria memorizar abstratamente, passando a articular saberes prévios,

habilidades e atitudes. Regis et al (2012) explicam que a experiência de engajamento da

ambiência TIC propicia a ativação de sentidos físicos, tais como a visão, a audição e o tato,

além das capacidades da mente abstrata. Mas também ativa a habilidade de participação

social, a descoberta de novas linguagens e suportes materiais para a consecução de tarefas

interativas que ativam toda uma rede sociotécnica. É nesse processo que a atenção se

transforma, pois emergem novas práticas em um modelo cognitivo que contempla humanos e

não-humanos num ambiente digital, conectado, distribuído. Essa ordem das coisas apresenta

valores que desafiam a defesa da prática dedutivo-racional na produção do conhecimento que

vigorou nos períodos anteriores.

Os dados empíricos evidenciam que a passagem de uma audiência que ‘apenas

prefere assistir’ para outra ‘atuante a partir do conteúdo midiático’ ainda se encontra em

estágio bastante inicial. O sentimento de que há potencial ampliação na base de produtores de

conteúdo é sentido como um valor entre os jovens da pesquisa qualitativa que, ao analisar o

que é inteligência hoje, percebe positivamente a ampliação do acesso à informação graças às

bases digitais.

Admite-se atualmente que a interação com os objetos técnicos, plataformas e suportes

permite o aprendizado humano baseado em uma ‘ambiência cognitiva’ (HUTCHINS, 1995).

Tal interação recoloca a comunicação como espaço privilegiado. Para Sodré e Paiva (2010), a

comunicação participa do contexto na criação de códigos comuns, compartilhados cultural e

coletivamente, assim como na dimensão subjetiva de interpretação de tais códigos, operação

realizada por cada indivíduo cuja formação de visões e valores oscila de maneira dinâmica

entre as esferas privada e pública do cotidiano.

O componente de incerteza na conformação das redes de relacionamento é a chave

para que muitos pesquisadores, entre eles Lévy (2013), Santaella (2013), Primo (2013) e

Castells (2015), vejam o contexto atual como promissor na criação de uma esfera pública

conversacional na qual os indivíduos dentro dos seus grupos sociais podem agir formando

novas mentalidades sobre assuntos cívicos, aí contemplado o entretenimento. Jenkins et al.

empregam o termo ‘datasfera’ ou ‘midiaespaço’, baseados nos estudos de Douglas Rushkoff

(1994, p.4 apud JENKINS et al, 2014, p.43), que a define como “um novo território para

interação humana, expansão econômica e, especialmente, maquinações sociais e políticas”.

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Propõe-se a partir desses autores que o ato de passar adiante os conteúdos, portanto, deve ser

encarado como uma prática social que qualifica a esfera pública.

Isso porque os conteúdos prontos para serem compartilhados cumprem um papel de

qualificadores desse fluxo informativo transformado. O ato de encaminhar um conteúdo para

um grupo de amigos, por exemplo, denota uma série de cálculos de posicionamento do

remetente que desvelam uma lógica cuidadosa na escolha daquilo que se compartilha.

Considerando os aspectos cognitivos envolvidos não somente com os conteúdos

midiáticos, mas também do contexto, das instituições e dos objetos técnicos, interessa

entender como os produtos midiáticos conformam um repertório cognitivo, com os

respectivos conhecimentos e habilidades verificados. Nesse processo, parece que algumas das

variáveis, como a percepção, a atenção e o foco também passam por adaptações e mudanças.

Dentro dessa perspectiva de cognição, os conteúdos de entretenimento ganham

proeminência. No caso do público jovem entrevistado, o produto cultural seriado é apontado

como o preferido. O suporte para consumi-lo é o streaming digital, que pode ser acessado no

notebook, no desktop ou no celular. Enquanto assiste ao seriado, boa parte dos jovens troca

mensagens com suas redes de contato em mensageiros instantâneos ou redes sociais,

repercutindo os conteúdos do que estão assistindo.

2.3 Juventude Conectada

O apanhado teórico que explica a situação do jovem brasileiro apresenta a inserção

desse segmento no quadro social a partir de perspectivas diversas. Caracteriza-se o segmento

jovem a partir da pluralização do termo “juventudes”; a percepção da idade pelo recorte

biológico; a condição jovem para além dos recortes etários; a formação da mentalidade dos

jovens entre meados do século XX e os tempos atuais; as divisões de classe que conformam

segmentos de jovens com ‘moratória social’ e jovens com necessidade de ingressarem

precocemente no mundo do trabalho; as questões de identidade; o desejo de conquistar

liberdade e experimentar o mundo; a entrada da tecnologia como uma variável importante a

caracterizar os hábitos culturais dos segmentos jovens contemporâneos.

Para estudar a temática da juventude e suas relações com a tecnologia, chega-se ao

recorte jovem a partir de autores como Feixa (1999); Abramo (1997, 2003); Reguillo (2003);

Freitas (2010); Toaldo e Jacks (2013); Pappámikail (2012); Ferreira (2014); Ortiz (2012),

dentre outros.

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Ainda na fase de fundamentação são trazidas duas fontes secundárias relevantes para

a triangulação metódica que o trabalho propôs-se realizar: o relatório TIC Domicílios 2016:

Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios

Brasileiros, organizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil; e a pesquisa Jovens e

Consumo Midiático em Tempos de Convergência, realizada pela Rede Brasil Conectado.

Os resultados da pesquisa TIC Domicílios 2016, organizada pelo CGI, traz um retrato

demográfico dos mais completos sobre as adoções de TIC no contexto brasileiro. Interessante

nessa fonte é a segmentação do estrato de usuários com idade entre 16 e 24 anos, o que

oferece uma base comparativa valiosa nas análises da pesquisa qualitativa sobre o perfil

demográfico do jovem internauta brasileiro. Uma bateria do roteiro de entrevista focal

aplicada no campo assume a lista de práticas pesquisada pelo CGI, nela baseando-se para

entender as percepções subjetivas que estão relacionadas com ações como: “comunicar-se”;

“buscar informação”; “usar multimídia” “usar para educação e trabalho”; “download, criação

e compartilhamento de conteúdo”.

São apresentados também os dados quantitativos da pesquisa Jovens e Consumo

Midiático em Tempos de Convergência, realizada pela Rede Brasil Conectado, sob

coordenação central da pesquisadora doutora Nilda Jacks, da UFRGS, à frente de uma rede

nacional de pesquisadores de mais de 40 universidades públicas e privadas em 26 estados e

no Distrito Federal, grupo do qual um dos autores do artigo fez parte como coordenador da

equipe do estado do Rio de Janeiro desde 2013. Tomou-se os resultados da terceira fase dessa

pesquisa, quando ocorreu a aplicação de formulário online, pontuando-se de maneira

comparativa os índices dos jovens do estado do Rio de Janeiro ante as médias nacionais. A

amostra de 9.072 questionários válidos traz um retrato das práticas convergentes de mídia dos

jovens de 18 a 24 anos em todo o Brasil relativas a: formas de acesso à internet; práticas para

circulação de conteúdos; hábitos de uso de redes sociais na internet; posse e emprego de

dispositivos tradicionais e digitais com seus respectivos usos; e, ao fim, dados de perfil. Parte

do roteiro de entrevista dos grupos focais baseia-se nos levantamentos teóricos e

instrumentos de campo dessa pesquisa.

De ambos os retratos nacionais, depreende-se um jovem usuário dos aparatos e

ambientes TIC que acompanha as curvas de adoção da população brasileira em níveis

superiores, em boa parte dos casos, incluindo-se os hábitos adquiridos de consumo

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convergente de dois ou mais meios de comunicação ao mesmo tempo, normalmente pelos

direcionadores do relacionamento social conectado, do entretenimento e do lazer.

Nota-se que todas as práticas propostas pelo formulário do CGI são adotadas em

níveis elevados pelos jovens e, em muitos casos, todos os outros estratos etários. Tanto a

pesquisa da Rede Brasil Conectado quanto a pesquisa qualitativa ratificam essa alta adesão

aos usos dos smartphones. Confrontados com os resultados de 2014, por exemplo, momento

que a pesquisa adotou o relatório para fundamentar o roteiro de entrevista, os indicadores de

adoção do celular já eram altos. Em 2016, de alto a baixo nos indicadores demográficos

segmentados, a lógica de uso dos smartphones como plataforma midiática se ampliou.

Como os dados comprovam, do ponto de vista da formação do hábito, divertir-se,

informar-se, encontrar pessoas via redes TIC, entre outras práticas são comportamentos que

estão incorporados pelo segmento jovem.

3. Métodos de pesquisa aplicados

O trabalho de campo consistiu na aplicação de oito grupos focais, somando mais de

20 horas de conversas, ao reunir 59 jovens universitários da Comunicação, residentes na

região metropolitana do estado do Rio de Janeiro, majoritariamente entre 18 e 24 anos,

estudantes de uma instituição pública e outra instituição privada na cidade do Rio de Janeiro.

O trabalho tem por objetivo revelar os hábitos multiplataforma dos jovens

universitários da Comunicação, buscando entender, nas visões do próprio jovem, quais são as

competências cognitivas oriundas de suas práticas nas plataformas digitais.

Na fase metódica, ao adotar o método qualitativo e a escolha pela técnica do grupo

focal, as oito sessões cumprem as etapas recomendadas para o devido processo de pesquisa,

tais como: a definição do perfil desejado dos participantes; a estruturação do roteiro de

entrevista; o pré-teste do instrumento de campo (roteiro de entrevista); a organização

administrativa dos grupos focais; os desafios com o recrutamento dos entrevistados dentro do

perfil traçado; a efetiva aplicação das sessões de grupos focais em ambientes preparados para

tal finalidade; a produção do relatório de pesquisa.

O roteiro semi-estruturado de entrevistas, composto de seis blocos, é orientado a:

permitir a apresentação dos participantes e suas visões sobre o que é ser jovem atualmente até

desembocar na relação com as tecnologias; conhecer as práticas com os aparatos tradicionais

de comunicação (TV, TV a cabo, Rádio, Jornal, Revista, Livro, Gibis, entre outros); mapear a

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presença dos aparatos TIC (acesso e posse de aparelhos) entrelaçados com as práticas

remanescentes do contexto anterior; identificar os usos atualmente feitos por esses jovens

mobilizando as TIC, em especial smartphones; relatar possíveis habilidades transformadas

pelo emprego das tecnologias, reconhecidas e assumidas pelos próprios jovens; compreender

o sentimento desses jovens em relação aos ambientes totalmente conectados à internet por

meio de aparatos e do próprio corpo humano.

4. Jovem confortável com os ambientes TIC, mas avesso ao corpo conectado

Propõe-se que os jovens estão com o corpo no digital, mas a alma ainda presa ao

mindset anterior, pois sentem-se culpados pela adesão desmedida aos hábitos conectados. Daí

defini-los como “quase digitais”. Enxergam-se como “digitais” em suas práticas ao terem

migrado de vez para o contexto comunicativo das plataformas digitais. As evidências

mostram, contudo, que se estabelece um comportamento híbrido de consumo que reúne

conteúdos tradicionais e digitais. O processo de migração para o digital parece irreversível,

embora ainda se verifique apreço aos produtos culturais da televisão, destaque para os

seriados, agora consumidos em plataformas streaming, com experiências narrativas mais

complexas, interativas e extensões de tramas.

O entrecruzamento dos dados apurados pelas pesquisas quantitativas – CGI (2017) e

Rede Brasil Conectado (2015) – com os achados dos grupos focais, revela um quadro

transformado de práticas tendo por base os meios de comunicação em multiplataformas, seja

para marcar presença, para entreter, para trabalhar ou para lidar com situações pontuais. Um

código de convívio vai paulatinamente se desenvolvendo entre o que é aceitável ou não nos

comportamentos dentro desses espaços de permanente presença.

Stoltz (2005) apresenta o conceito de estruturas operacionais para explicar o processo

de desenvolvimento do conhecimento, teoria oriunda de Piaget. As práticas que são

desenvolvidas por esses jovens envolvendo ambientes técnicos, pessoas e aparatos

conectados ajudam a produzir novas subjetividades. Delineiam-se nesses processos os

fatores apontados por Piaget (apud STOLTZ, 2005, p.151) como ‘maturação’, ‘experiência’,

‘transmissão e interação social’, ‘processo de equilibração’, todos encontrados na construção

do conhecimento no processo de mediação que foi descrito.

É possível identificar a proeminência que o smartphone vai ter nos usos do jovem,

quais são as plataformas digitais onde o público normalmente tem se relacionado com seus

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diferentes grupos, as formas criativas de uso dos aparatos conectados à internet, a maneira

como o consumo noticioso se estabelece a partir desses ambientes em que os jovens dizem

que preferem estar.

A pesquisa de campo revela que o repertório de atenção básico do usuário de

plataformas digitais se altera. O campo da pesquisa confirma um jovem atento aos valores

cognitivos da cultura conectada às plataformas digitais. Esse jovem compreende que a lógica

digital, em tese, facilita os relacionamentos a partir da aproximação e da co-presença, acelera

o tempo e diminui as distâncias, oferece um universo de fontes para o conhecimento que

transforma a formação subjetiva, repertório esse que pode ser acessado em qualquer ponto da

rede, por meio de quase qualquer aparato, cabendo até mesmo na palma da mão.

Por outro lado, essas vantagens são relativizadas por sentimentos que revelam um

condicionamento à lógica moderno-iluminista anterior, que é crítica aos hibridismos corpo-

técnica; sujeito-objeto. Revelam-se angústias ligadas: à complexidade que os

relacionamentos adquirem com os códigos de conduta que estão sendo criados nos espaços

digitais, muitas vezes tendo o conflito como carro-chefe e o afastamento como resultado; ao

cansaço mental do jovem, cuja atenção está sendo mais exigida, isso pelo viés do prazer e da

recompensa psicológica; ao excesso de tempo que dedica à internet, sempre imaginando que

poderia empregá-lo de forma mais proveitosa; ao sentimento de que sua relação com os

aparatos e ambientes técnicos o torna mais prisioneiro das tecnologias e das redes do que um

agente que pode transformá-las a partir da sua livre e criativa atuação; ao uso acomodado que

as pessoas tendem a fazer da internet, calcada em um automatismo que desencoraja o espírito

crítico e investigador do usuário. Resultado no mínimo curioso, pelo viés crítico e ainda

ligado a uma lógica anterior que separa homem e técnica. Os jovens se sentem como os

pioneiros ao chegar na vida digital, mas fazem isso com um sentimento de culpa. Revela-se

um jovem que compõe um segmento especial de consumidor de mídia, apresentado ainda na

infância à lógica digital, com seus aparatos e ambientes conectados, mas que ainda lança

questões desconfiadas para o contexto atual de crescente digitalização. Daí o “quase digital”:

ainda se posiciona calcada nos valores antigos da concepção cognitiva.

Em síntese, os principais achados das práticas jovens revelam que: as visões de

juventude compartilhadas pelos participantes desembocam sem sobressaltos na ideia de que o

jovem é afeito à tecnologia; as mídias digitais são usadas com ênfase, mas carregando

conteúdos baseados nas fórmulas de sucesso dos meios tradicionais; a televisão é a principal

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agenciadora dos hábitos de consumo de mídia digital, via seriados em streaming; o rádio de

transmissão aberta foi abandonado, mas o hábito da música se mantém; impressos de jornais

e revistas são desprezados, mas as notícias em meio digital ainda guardam importância; o

livro impresso é consumido com afeto enquanto o texto digital na forma de livro (livro,

apostilas e outros formatos) serve para a leitura de ordem prática (textos acadêmicos, tutoriais

etc.).

Dentro dos resultados dos grupos focais são analisadas as circunstâncias que motivam

a migração para o digital. Direcionadores como mobilidade e conveniência são revelados

pelo jovem, ganhando valor a possibilidade de consumo em qualquer plataforma, no

momento preferido e dedicando o tempo que julgar necessário ao conteúdo. Confirma-se o

consumo sob demanda coroado pela lógica dos bancos de dados em lugar dos modelos de

transmissão. A existência de infraestrutura de banda larga, configurada por redes de acesso

sem fio (wi-fi), torna-se um serviço tão essencial quanto luz e água para o jovem, cuja

interrupção por período prolongado produz desconforto.

O apanhado qualitativo da pesquisa, entrecruzado com os resultados da pesquisa

Jovem e consumo midiático em tempos de convergência, traça um cenário que indica que é

nesta geração de jovens que se dá a passagem entre o consumo tradicional e a forma de

recepção digital, que vai moldando competências diferenciadas para que esses indivíduos

possam usufruir plenamente essas tecnologias. É o que se discute, por exemplo, em Stoltz

(2005), Regis et al. (2012), Ferreira (2014), quando se aborda as habilidades de busca,

armazenamento, consumo, interação, criação e distribuição dos conteúdos midiáticos.

Em Kastrup (2004, 2009), delineia-se uma perspectiva de que há a demanda por

novos repertórios de atenção que também se transformam nessa dinâmica. Isso se dá num

ambiente permeado pela tecnologia, com a consequente disposição humana em interagir com

ela (e interagir com outros humanos a partir dela). A cognição inventiva advém, portanto, da

capacidade de criar novos contextos e distintas soluções partindo desses ambientes que

exigem múltiplas atenções e condicionamentos (mentais e corpóreos) em níveis distintos dos

anteriores, cujos resultados dificilmente serão definidos com antecedência, podendo ser

melhor entendidos a posteriori com os métodos cartográficos.

O que passa com os meios tradicionais é bastante sintomático desse momento híbrido

vivido com as competências que se desenvolvem com as TIC. Enquanto as plataformas vão

sofrendo rápidas migrações de consumo para o digital, talvez com exceção do livro que toca

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o coração, é possível observar que os conteúdos produzidos e que recebem atenção ainda

estão fortemente calcados na lógica dos meios tradicionais, tanto o conteúdo audiovisual

quanto o impresso. Tanto faz se no entretenimento ou no interesse pelos assuntos cívicos. Os

preceitos das redes sociotécnicas se revelam aqui, tais como a acumulação, a justaposição, a

coexistência de múltiplas espacialidades, a aceleração e a autoafecção (PARENTE, 2013).

Prova disso é que em nenhum dos grupos a conversa se direcionou para diferentes

conteúdos em novas plataformas, mas em geral as conversas giravam em torno de produtos

midiáticos tradicionais, já consagrados, que migravam para os meios digitais, plataformas

essas que dão a sensação de controle da programação nas mãos dos usuários. Mas, a despeito

dos ajustes que são tecnicamente feitos, os repertórios tradicionais vão sendo ajustados ao

digital, aparentemente com grande sucesso.

O smartphone é eleito o aparato principal, com a mobilidade sendo o direcionador

mais forte desse apreço. Revela-se um conjunto de práticas com o uso dos aparatos digitais,

smartphone à frente, mas não o único, também se refletindo sobre notebooks e computadores

de mesa. Identificam-se os principais sites de redes sociais usados pelos jovens, com seus

diferentes empregos e estratégias de posicionamento, assim como as avaliações de apreço e

rejeição. Reflete-se sobre as práticas cognitivas que são desenvolvidas com os usos de

mensageiros instantâneos e sites de redes sociais, cujas conversações produzem sentidos

distintos mediante a negociação de contextos de comunicação e normas de comportamento

que se estruturam de grupo a grupo, de plataforma em plataforma. O smartphone se

transforma no instrumento que auxilia o jovem a resolver demandas variadas ao longo do dia,

cujas práticas inventivas são destacadas, a principal delas, soluções criativas de

posicionamento e comunicação. No consumo de informações noticiosas, em que o abandono

ao impresso se confirma em índices elevados, a notícia online ganha relevância, com

confiança nos algoritmos das plataformas digitais.

Do ponto de vista das competências cognitivas, constata-se um jovem mais atento e

menos focado. Como tem o repertório de atenção central recondicionado pelos estímulos

digitais, esse usuário mostra-se altamente propenso a atender nas vezes em que é demandado

pelos aparatos, via sons, imagens ou tremidos. Porém, uma vez que mergulha nas telas, uma

atenção distribuída pode levá-lo a consumos erráticos de várias plataformas digitais de uma

só vez. O sentimento expresso é de que aumenta a distração, inclusive a que se dedica aos

ambientes físicos. Admitem isso em tom de lamento, registre-se.

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Visões do presente e do futuro na pesquisa focal mostram que os jovens estão

confortáveis com a conexão dos aparatos aos ambientes, naquilo que propõe a internet das

coisas. Mas mostram-se resistentes à ideia de ter próteses de comunicação enxertadas aos

corpos, a despeito da relação estreita que já mantêm com os seus smartphones, perspectiva

que admitem rever caso seja usado para melhorar as condições de vida e saúde; ou se toda a

sociedade também já estiver conectada, aceitando essa condição para nela se integrar.

Enxergam os aparatos e ambientes conectados pelo viés da vigilância e do controle, embora

percebam que essa dinâmica se estrutura pelo prazer e pelo entretenimento. A inteligência,

assim, vai ser percebida de acordo com um viés crítico, com a metáfora mais recorrente da

ficção científica distópica do seriado Black Mirror, que propõe a condição humana limitada

pelas tecnologias.

Vale lembrar que a ideia de inteligência se alimenta na atualidade dos valores da

conexão de seres humanos em uma escala sem precedentes, agenciados por infraestrutura,

máquinas e plataformas descentralizadas – cujos códigos de programação costumam ser

abertos e compartilhados em rede – com uma potencial capacidade de coordenação em ampla

escala transformada, que inclusive extrapola a ideia de Estado-nação. Nesse sentido, a

esperança é que essa potencialidade seja usada para fins nobres ao projeto de civilização.

Outras perspectivas atuais de inteligência vão propor que ela está ligada às

competências de operação e criação, de posse dos recursos disponíveis dentro dos ambientes

conectados. Trata-se do condicionamento do sujeito para operar essa tecnologia. Assim como

também há uma vertente ligada às operações de inteligência nas trocas que se estabelecem

entre os ambientes maquínicos, fazendo emergir na troca entre as próprias máquinas e redes

padrões de inteligência que mesmo para a imaginação humana pode ser difícil especular.

Essa é uma discussão central no trabalho, a questão da inteligência. Tome-se, por

exemplo, a questão que está em jogo com a capacidade de memorização, que o campo revela

que os jovens terceirizam cada vez mais os dados utilitários a suportes tecnológicos como

discos rígidos ou espaços de armazenamento na nuvem de informação. O que está disponível,

no limite, torna desnecessária a tarefa de memorização que anteriormente se exigia na

formação intelectual do indivíduo. Se algo está lá, supostamente ao alcance da mão, a

qualquer tempo e hora, por que investir energia decorando?

Obviamente, há uma série de operações lógicas incontornáveis para o indivíduo que

correm o risco de caírem na complacência fiada na disponibilidade de próteses de memória.

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O que ocorreria, nesta hipótese, caso essas próteses por alguma razão ficassem indisponíveis

e o humano incapaz de pensar a lógica que embala tal tecnologia? E como ficam as operações

inventivas em um contexto no qual a imaginação se rende somente ao que está disponível em

um banco de dados qualquer? Neste debate, entram em jogo conceitos que lidam com a

expansão do conhecimento, os meios de comunicação e os estudos sobre os agrupamentos

jovens nos seus mais distintos hábitos e comportamentos. Nesse ponto, buscou-se entender

qual era a perspectiva do jovem usuário das TIC quanto à presença dos objetos conectados

formando os ambientes de convívio. O que a eles parece adequado e exequível.

Condição que não se confirma quando a proposta é ter as tecnologias conectadas

implantadas no corpo. Perspectiva estranha, contudo, se nas etapas anteriores os jovens

afirmam que evitam passar o dia inteiro afastados de algum aparelho que dê acesso à internet,

principalmente o smartphone; que aceitam a pressão de amigos e familiares quando eles por

alguma razão estão incomunicáveis; que se sentem cada vez menos propensos a passar horas,

dias ou semanas distantes da internet. Ainda que estranha a possibilidade de ter uma prótese

implantada, a relação com os aparatos já é de tal monta, cuja ausência é sentida de forma

angustiada. Os cuidados com a saúde e a melhoria das condições de vida são possibilidades

que podem fazer essa perspectiva se alterar. Para demonstrar a distopia dessa possibilidade de

implantar o aparelho, os entrevistados evocavam a analogia com o seriado britânico de ficção

científica chamado Black Mirror.

Em grandes linhas, essas tecnologias de conexão digital são sentidas como aparatos

de vigilância e controle de forma mais ampla do que suas possibilidades de intervenção

criativa. Esse controle, contudo, se dá pela via do entretenimento, do consumo e da

comodidade, tornando tudo muito conveniente para o indivíduo, mas pouco reflexivo e

transformador. Passa ao largo da visão desses jovens as perspectivas de uma dimensão

potencialmente transformadora das práticas midiáticas coordenadas, mesmo que de pequenas

proporções.

Enfim, as visões sobre uma sociedade mais inteligente com o uso das tecnologias

conectadas à internet ainda estão longe de ser um consenso. No lugar disso, há uma

dificuldade em caracterizar inteligência na época atual, havendo a convicção, contudo, de que

variáveis como disponibilidade de conteúdos, ampliação do acesso, diminuição do tempo de

busca e produção, entre outras variáveis são valores que o contexto atual representa e isso

está colocado a favor das sociedades no presente.

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5. Considerações finais

A temática está na ordem do dia: hábitos multiplataforma de uso das TIC compõem

processos cognitivos diferenciados. Usuários desenvolvem competências na associação com

as tecnologias, a partir de regras de interação inovadoras. Variáveis humanas e técnicas

incidem, sem hierarquias prévias. Identificam-se os atributos com os quais os jovens

negociam quando passam a interagir por meio de tais próteses de comunicação. Tais escolhas

afetam a subjetividade dos jovens usuários.

Os valores de uma cultura conectada estão incorporados em alto grau nesses jovens

que vivem a remediação entre as duas lógicas – tradicional e digital. Essa passagem produz

um novo tipo de cognição que mobiliza humanos, aparatos técnicos e ambientes tecnológicos

em conexão.

Essa cognição remete aos repertórios de atenção, percepção e memória produzindo

novas plasticidades, tanto no nível consciente (autobiográfico) quanto no nível não-

consciente (automatizado). Emerge daí um usuário jovem das tecnologias que se sente

racionalmente distraído, mas altamente atento aos pedidos de atenção dos equipamentos de

acesso à internet, especialmente o smartphone, o que a altera no seu nível central (básico), a

ponto de produzir angústia na impossibilidade de atender às notificações.

A cognição inventiva, portanto, reside na capacidade de mobilizar na prática os

recursos disponíveis nos ambientes repletos de pessoas e objetos técnicos de maneira criativa.

A digitalização tem sido um facilitador dessa competência, quando dota de informações e

capacidade de processamento conteúdos produzidos nesta época e em outras.

Quanto à maneira como esses jovens universitários enxergam esse ambiente cognitivo

transformado, as visões ainda estão calcadas nos quadros racionais da modernidade. Grata

surpresa se apresenta aos autores quando Lemos (2018), partindo de outra abordagem

metódica, também verifica essa possibilidade em suas reflexões sobre o seriado Black

Mirror, tantas vezes recordado pelos jovens entrevistados para encerrar ideia apocalíptica

sobre a sociedade conectada. O seriado, ele mesmo, faz perguntas modernas para um

contexto que já se encontra aparentemente para além daquela perspectiva filosófica.

Certamente, reflexões futuras dos autores do artigo terão condições de cotejar e assimilar o

trabalho do referido pesquisador com mais profundidade.

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