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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
BIANCA R. V. GARCIA
Quanto mais cedo melhor (?):
uma anlise discursiva do ensino de ingls para crianas
(exemplar revisado)
So Paulo 2011
BIANCA R. V. GARCIA
Quanto mais cedo melhor (?):
uma anlise discursiva do ensino de ingls para crianas
(exemplar revisado)
Dissertao apresentada ao programa de Ps-Graduao em Estudos Lingusticos e Literrios em Ingls do Departamento de Letras Modernas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Letras. rea de Concentrao: Estudos Lingusticos e Literrios em Ingls Orientadora: Profa. Dra. Deusa Maria de Souza Pinheiro-Passos
So Paulo 2011
AUTORIZO A DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL
DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO
TRADICIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE
ESTUDO OU PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Folha de Aprovao
Bianca R. V. Garcia
Dissertao apresentada ao programa
de Ps-Graduao em Estudos Lingusticos
e Literrios em Ingls do Departamento de
Letras Modernas, da Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas da Universidade
de So Paulo, para a obteno do ttulo de
Mestre em Letras
Aprovada em:
Banca Examinadora
Profa Dra _____________________________________________________
Instituio: ___________________ Assinatura: _______________________
Profa Dra ______________________________________________________
Instituio: ___________________ Assinatura: _______________________
Profa Dra ______________________________________________________
Instituio: ___________________ Assinatura: _______________________
Ao C, meu amor e companheiro de aventuras, com
muita gratido por seu apoio, carinho e incansvel
f no meu trabalho.
Resumo
GARCIA, B. R. V. Quanto mais cedo melhor (?): uma anlise discursiva do ensino de ingls para crianas. 2011. 216 p. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, 2011.
Atualmente, notvel a expanso do oferecimento de aulas de ingls para
crianas pequenas no Brasil. As modalidades disponveis no mercado so variadas
e os pais que se interessam por elas podem optar por cursos especficos de lngua
estrangeira, escolas internacionais, bilngues, ou at mesmo escolas regulares que
ofeream aulas de ingls includas em suas grades curriculares. De qualquer
maneira, todas elas so acessveis quase que exclusivamente por meio do ensino
privado. Ancorados nos pressupostos da Anlise do Discurso desenvolvidos na
Frana (Pcheux, 1975), e no Brasil (Orlandi, 2001; Coracini, 1998),analisamos as
representaes de criana, lngua estrangeira e ensino de lngua estrangeira
presentes nos dizeres da legislao brasileira, da mdia (reportagens e sites
institucionais) e de coordenadoras da rea, buscando compreender de que forma as
justificativas da incluso desse componente curricular se materializam e com quais
sentidos se relacionam. Esta anlise nos permitiu depreender certas regularidades
nos sentidos: em primeiro lugar, as representaes de criana veiculam duas
perspectivas dominantes: a de um ser passivo, que aprende rpido por no realizar
processos mentais complexos e uma outra relacionada ideia de um trabalhador em
potencial. Em segundo lugar, quanto s representaes de ensino de LE, h dizeres
que referem o processo de aprendizagem como absoro, ou, ento, modelagem de
comportamentos. As representaes de LE, por sua vez, remetem majoritariamente
a um sentido de garantia de sucesso da vida profissional. Finalmente, pudemos
concluir que a prtica do ensino de ingls para crianas emerge de uma cadeia
discursiva cujos sentidos esto maciamente alinhados com os dizeres do mercado
neoliberal. A anlise das justificativas pedaggicas do ensino de ingls para crianas
tornou-se, uma anlise das projees da criana no mercado de trabalho e da
naturalizao da lgica capitalista para a formao e preparao das crianas de
elite. Assim, parece que o mais cedo do aprendizado lingustico coincide com o
mais cedo da aceitao das prticas do mercado na educao e tambm da
euforizao da produtividade, excluindo, at da mais precoce infncia, o acesso ao
cio ou a no-obrigatoriedade da produo.
Palavras-chave: ensino de lngua estrangeira, educao infantil, Anlise do
Discurso, escolas bilngues, mercantilizao da educao.
Abstract
GARCIA, B. R. V. The earlier, the better (?) a discoursive analysis of
English teaching to children.2011. 216 p. Dissertation (MastersDegree) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, 2011.
Currently there is a remarkable expansion of English courses for young
children in Brazil. There are several modalities available and among them parents
may choose from foreign language courses, international and bilingual schools up to
schools where English classes are provided in their curricula. Nevertheless, they are
all available almost exclusively through private education. Relying on Discourse
Analysis assumptions (Pcheux, 1975; Orlandi, 2001; Coracine, 1998), we have
analyzed the representations of children, foreign language and foreign language
teaching in the utterances of Brazilian legislation, in the media (reports and
institutional sites) as well as in pedagogical coordinators talk, aiming at
understanding how the justifications for the inclusion of this curricular component
materialize in the discourse, and what senses they relate to. The analysis enabled us
to identify certain sense regularities. Firstly, representations of children point to two
dominant meanings: one which refers to the belief that they learn fast because they
do not perform complex mental processes, and another related to the fact that they
are potential workers. Regarding the representations of English teaching, the sayings
refer to the learning process as absorption or behavior modeling. The second one
concerns representations of English that refer mostly to its sense as a guarantee of
success in professional life. Finally, we concluded that the practice of teaching
English to children emerges from a discursive chain whose senses are
overwhelmingly aligned with the utterances of the neoliberal market. Our analysis of
the justifications for teaching English to school children has revealed itself the
analysis of projections of the child into the labor market and the naturalization of
capitalist logic in the education and the upbringing of elite children. Thus, it seems
that the "early" language learning coincides with the "early" acceptance of market
practices in education, as well as the valorization of productivity, preventing, from the
earliest childhood, access to idleness or the right to non-compulsory production
engagements.
Keywords: foreign language teaching, early education, Discourse Analysis,
bilingual schools, market practices in education.
Agradecendo...
CAPES, pelo financiamento de minha pesquisa.
minha orientadora Deusa, por sua infindvel pacincia e apoio durante
todos os momentos deste percurso. Obrigada por acreditar em minhas inquietaes,
e me instigar constantemente com perguntas que me levariam mais alm. Obrigada
pelo bom humor e pelas deliciosas horas de debate e descoberta que tivemos ao
longo dessa pesquisa. Obrigada por me deixar mais atenta aos exageros e s
panfletagens excessivas, e por nunca me deixar perder de vista as questes
relativas ao sentido.
A todos os docentes que me inspiraram e desestabilizaram durante minha
(iniciante) carreira acadmica. Obrigada Anna Maria Carmagnani e Maria Jos
Coracinni por sua cuidadosa leitura e valiosas contribuies quando de meu exame
de qualificao. A Marisa Grigoletto por me ajudar a organizar minhas ideias iniciais
no formato que hoje assumiram.
Ao Departamento de Letras Modernas, representado por seu corpo tcnico-
administrativo: Edite, Romilda e Cleide, obrigada por sempre serem eficientes na
resoluo das questes burocrticas e por colaborar com sua dedicao e bom
humor para o andamento dos aspectos institucionais deste trabalho.
A Carlos, meu companheiro de longa jornada, por sua inabalvel f em meu
potencial. Obrigada por me dar a mo em todos os momentos de dvida, cansao e
impacincia que vivemos durante o tempo desta pesquisa. Obrigada por sua
generosidade ao sempre compartilhar comigo sugestes de bibliografia que
pudessem enderear minhas inquietaes, e obrigada por sempre me lembrar de
manter o foco na finalizao deste trabalho.
Ao Z, meu incansvel e irremedivel amigo.
s colegas de Grupo de Estudo, que sempre me estimularam com suas
prprias pesquisas e com a agradvel convivncia. Em especial s amigas Ingrid Del
Greco, Daniela Reyes e Renata Matsumoto, pelo companheirismo e pelos ombros
amigos nas horas de saltar e de chorar.
A minha famlia por sempre me fazer acreditar em meu potencial. Agradeo
especialmente minha tia Rosani, que mostrou a todos ns que a busca da
realizao acadmica era possvel, e que pode ser feita de maneira brilhante.
Agradeo a minha me por realizar todos os esforos que estavam a seu alcance
para que eu pudesse finalizar meus estudos. A meu irmo, Pablo, por existir e me
inspirar a lutar sem me deixar abater. E aos meus tios Rosngela e Reinor, por
sempre terem um punhado de pulgas para me colocar atrs das orelhas.
A todos os amigos que debateram comigo, me fizeram perguntas e me
ajudaram a desdobrar minhas questes e minhas respostas: Leonardo, Renata,
Rosi, Isabelle, Rogrio, Ren, Nicole, Joo e Kelly. Obrigada por nunca perderem o
interesse em meu trabalho.
Especialmente, agradeo ao Kiko, que no perdeu uma oportunidade de
contribuir em minha vida, tanto sendo um coordenador inspirador, quanto um
arguidor instigante ou um amigo fiel.
J, que me abriu as portas para essa aventura que o Ensino de Ingls
para crianas na Educao Infantil, e a todos os colegas das escolas onde trabalhei,
que me receberam de braos abertos (e cheios de pacincia), me ensinando sobre
esse lugar que a escola. Obrigada por me deixarem curiosa e intrigada!
Finalmente, mas no menos importante, a todos os meus alunos e alunas,
fonte primordial de inspirao para este trabalho. Obrigada por me apresentarem
fantstica aventura que dar aula para vocs!
SUMRIO
INTRODUO: ENSINANDO INGLS PARA CRIANAS ........................... 14
Modalidades do Ensino de Ingls para Crianas .................................... 16
Recorte Epistemolgico .......................................................................... 19
Justificativa ............................................................................................. 24
Objetivos e Perguntas de Pesquisa ........................................................ 25
Constituio do Corpus .......................................................................... 27
Normas para a Transcrio das Entrevistas ........................................... 31
Lista de Abreviaturas .............................................................................. 32
CAPTULO 1: SILENCIANDO OS SENTIDOS DO INGLS COMO LE: UM
PERCURSO HISTRICO ATRAVS DAS LEIS ........................................... 33
CAPTULO 2: LEGITIMANDO OS SENTIDOS DO ENSINO DE INGLS
PARA CRIANAS: OS DIZERES DA MDIA ................................................. 65
2.1 A criana como aprendiz mais favorecido por suas caractersticas
psiconeurolgicas ................................................................................... 69
2.2 A criana como aprendiz para a insero no mercado de trabalho 83
2.3 Absorvendo e trabalhando... .......................................................... 96
CAPTULO 3: A PRODUTIVIDADE DO ENSINO DE INGLS PARA
CRIANAS E A VONTADE DE LEI: OS DIZERES DAS COORDENADORAS
........................................................................................................................ 99
3.1 A escola particular como lugar sem lei ........................................... 101
3.2 Lngua Estrangeira como Produtividade ....................................... 113
3.3 Disforizaes do Ensino de Lngua Estrangeira ........................... 120
3.4 As vantagens da criana-aprendiz .............................................. 125
Consideraes Finais: quanto mais cedo, melhor? ................................ 130
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................ 142
ANEXO A REPORTAGENS E WEBSITES ............................................... 152
ANEXO B - ENTREVISTAS ......................................................................... 166
14
INTRODUO
Ensinando Ingls para Crianas
Nos ltimos anos, pudemos assistir expanso e consolidao do lugar de
mercado dos cursos de ensino de lnguas estrangeiras. Tal movimento pode ser
creditado, em parte, ao imaginrio existente com relao eficcia da educao
oficial. A constituio do currculo ensinado, a preparao de docentes e a estrutura
das escolas pblicas so frequentemente desvalorizadas pelos dizeres das
instituies privadas, da mdia e dos agentes desse contexto (professores e alunos),
como pontua, dentre outros estudos, o de Silva (2007). No caso do ensino de lngua
estrangeira, o descrdito com relao eficcia do aparelho oficial de ensino se
estende tambm maioria das escolas particulares, tendo como consequncia a
repetio de um pr-construdo1 que afirma lugar de LE no na escola regular,
um aspecto explorado no trabalho de Uechi (2006) e Sousa (2006). Da o frtil
terreno para a expanso do mercado livre do ensino de LE, no qual muitos
professores (como eu) tm suas primeiras experincias prticas antes de
completarem as respectivas formaes acadmicas2.
Ao longo de dez anos de (sobre)vivncia nesse mercado, mantive contato
com uma tendncia que vem se intensificando com o decorrer do tempo: o ensino de
ingls para crianas. Por conta da natureza de nossas caractersticas (a maioria dos
professores ainda estava em formao, e nenhum tinha experincia na rea de
1Podemos compreender os pr-construdos como enunciados provenientes de discursos anteriores,
que emergem nos discursos como ideias consolidadas (PCHEUX, 1975). 2 E muitos ali se mantm, mesmo depois de terminada sua formao universitria.
15
pedagogia, nos diversos institutos em que trabalhei durante esse perodo), as turmas
de crianas eram sempre evitadas (quando no temidas) por ns. Aliava-se a isso a
grande dificuldade que as coordenaes tinham para lidar com as questes de
aprendizado, convivncia e disciplina que as referidas turmas introduziam naquele
ambiente, uma vez que a maioria habitual de nosso pblico-alvo era de
adolescentes e adultos. Em escolas de idiomas, por sua vez, as crianas eram, sem
dvida, estranhas no ninho. Para nossa maior inquietao, o movimento no apenas
aumentava em grandeza (cada vez mais nossas manhs e tardes eram preenchidas
com turmas cheias de alegres aluninhos e aluninhas), como tambm a idade dos
alunos, inversamente, diminua cada vez mais, at ao ponto - confesso - de
desespero, em que tivemos de elaborar um curso para crianas que no sabiam
ainda ler ou escrever.
Depois de alguns anos aprimorando minhas habilidades instintivas de ensino
de ingls para crianas (doravante EIC), e temendo um pouco menos as aulas com
os pequenos, recebi um desafio que acabou irremediavelmente me aliciando para a
turma deles: fui convidada para ministrar aulas de LE em uma escola particular de
educao infantil. Apesar de relutante, decidi abraar a oportunidade, e acabei
entrando em contato com as inquietaes que me motivaram a dar incio a esta
pesquisa. Por estar em um ambiente com maior grau de formalidade, decidi que era
hora de aprofundar as leituras tericas especficas e aprender mais com o que
estava sendo feito em EIC. Minha primeira grande surpresa foi a (ento) inexistncia
de materiais para professores nessa rea. A literatura nacional tratava apenas de
aspectos especficos de educao infantil, mas, como no fazia parte do escopo
nacional nesse segmento, no havia meno ao ensino de LE. Os trabalhos
acadmicos que encontrei no se ajustavam ao meu contexto, pois, em sua quase
16
totalidade, debatiam aspectos do EIC a partir do ensino fundamental I (faixa etria
com caractersticas e necessidades bastante diferentes da educao infantil), e as
expectativas de pais, colegas, coordenao e direo da instituio em questo no
pareciam apontar para os mesmos lugares. O contato com os agentes desse cenrio
revelou dvidas existentes a respeito do papel da LE na escola, da relao que as
crianas desenvolveriam com essa nova lngua e de que maneira esta afetaria as
relaes j existentes com a lngua materna, das possibilidades de aprendizado, da
escolha apropriada de contedos e abordagens, enfim, percebi que, mesmo em um
panorama bastante especfico e restrito, havia pouqussimas certezas e saberes
estabelecidos. Foi ento que decidi investigar, partindo de uma perspectiva dos
estudos discursivos, os sentidos veiculados sobre o EIC, e observar de que maneira
os aspectos constitutivos dessa prtica (em nosso recorte, a criana, a lngua
estrangeira e o ensino/aprendizagem de lngua estrangeira) so representados nos
discursos veiculados em diversas instncias sociais.
Modalidades do Ensino de Ingls para Crianas
Apesar do crescente interesse das classes mdias e altas pelo EIC e o
consequente aumento de seu oferecimento, em nosso pas, essa prtica no
sujeita a nenhuma regulamentao3, da a inexistncia de qualquer dado oficial
nesse mbito. Alm da falta de informaes por parte do Estado, outros fatores
complicam a pesquisa, como a natureza do registro das escolas bilngues junto s
3 Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, o oferecimento de aulas de lngua
estrangeira moderna obrigatrio, a partir da primeira srie do ensino fundamental II, o sexto ano do ensino fundamental.
17
secretarias municipal e estadual de educao4 e de no ser possvel utilizarmos o
nome delas como critrio de seleo5. Apesar das dificuldades, por meio de
participao em eventos e de cursos na rea, alm de leitura dos trabalhos
desenvolvidos a respeito do assunto, pude ampliar meus conhecimentos sobre esse
mercado.
Nossas observaes empricas do EIC nos levaram identificao das
seguintes modalidades de oferecimento:
a) Cursos livres de idiomas: a modalidade mais flexvel de EIC. O nmero de
horas-aula pode variar de 2 at 5 horas/semana. O currculo geralmente
desenhado em consonncia com o mtodo/abordagem do instituto em
questo e independe das expectativas de aprendizagem e dos temas
trabalhados na escola regular. Nesses cursos, a lngua de instruo
geralmente o ingls.
b) Escolas bilngues6: nesta modalidade encontramos as escolas que se
autodenominam bilngues. Englobam os colgios que seguem os
Parmetros Curriculares Nacionais (doravante PCNs) e oferecem um
nmero grande de aulas de LE. A carga horria de ingls varia bastante,
podendo se estender entre 25% at 100%7 do tempo total. Nessas
4 Em virtude da inexistncia de uma categoria especial de registro para as escolas particulares
bilngues nos rgos oficiais, estas so registradas como escolas de educao infantil (na secretaria municipal de educao) e/ou escolas de ensino fundamental (na secretaria estadual de educao), em outras palavras, elas so registradas como escolas comuns. 5 Muitas escolas bilngues no incluem a designao bilngue no nome da escola. Assim sendo, na
listagem do Censo Escolar de 2009 (acessado em www.educacao.gov.br), uma busca por escolas bilngues resultou em apenas seis instituies. Segundo a pesquisa emprica de Selma Moura (2009), temos hoje cerca de quarenta e seis escolas dessa modalidade. 6 Estas so tambm chamadas de escolas bilngues de prestgio (MOURA, 2009, p.57).
7 Observamos que prtica comum nas escolas bilngues de educao infantil adotar um currculo totalmente baseado na LE, o chamado currculo de imerso. (cf. entrevista de C3).
18
escolas, h graus variveis de dominncia entre os idiomas, podendo a
instruo majoritria ser em lngua portuguesa ou em lngua inglesa.
c) Aulas de ingls no currculo regular: muitas escolas monolngues optam
tambm por incluir aulas de ingls no currculo antes do exigido por lei.
Observamos, neste mbito, que h tambm grande variabilidade do
nmero de horas-aula oferecidas, de 1 a 5 horas-aula por semana8.
Nessas escolas, o oferecimento de LE no altera sua adeso aos PCNs,
podendo o contedo da rea estar vinculado ou no s expectativas de
aprendizagens e prticas curriculares da escola. Em nosso contato com
professores, pudemos concluir que o currculo de LE geralmente isolado
do currculo geral das escolas, tratando de temas selecionados pelos
professores da rea ou presentes nos materiais didticos.
d) Escolas internacionais9: este o segmento mais elitizado de oferecimento
de EIC, sendo acessvel apenas s famlias mais abastadas, por conta de
seu alto custo10. Nessas escolas, o currculo seguido o do pas de
origem, podendo ou no haver conformidade com os PCNs. Essas escolas
oferecem certificao internacional e so reconhecidas por rgos como a
International Schools Association ou o European Council of
InternationalSchools. A instruo ocorre predominantemente no idioma do
pas de origem e a lngua portuguesa tratada como estrangeira.
8 Segundo nossas observaes, quando a carga horria excede cinco horas semanais, as escolas
passam a se denominar bilngues, mesmo utilizando o portugus de maneira majoritria para a instruo. 9 Por conta do foco destas escolas em parmetros internacionais e do pblico extremamente restrito
atendido por elas, no trabalharemos com dizeres referentes a escolas internacionais em nossa pesquisa. 10
Alm das altas mensalidades (as mais baratas custam aproximadamente R$ 2,000.00), as escolas internacionais cobram uma taxa de matrcula (endowement fee) que varia de R$ 4.500,00 a R$ 30.000,00, dependendo da escola(SCHLZ, 2006).
19
Apesar da heterogeneidade observada na carga horria de LE oferecida e no
currculo trabalhado, todas as modalidades de EIC mantm uma caracterstica
comum: esto presentes apenas no mbito privado de ensino, o que confere a elas
uma grande dependncia do mercado para sua sustentao. Essas instituies no
apenas desenvolvem prticas pedaggicas, mas tambm as justificam e so
responsveis por sua venda.
com esse espao discursivo multifacetado em vista que nossa pesquisa
investigar as representaes de criana, lngua estrangeira e ensino/aprendizagem
de lngua estrangeira.
Recorte Epistemolgico
O recorte epistemolgico e metodolgico norteador das reflexes e anlises
desta pesquisa a Anlise de Discurso (doravante AD), campo do conhecimento
que procura problematizar a lngua e seu acontecimento, apoiando-se no apenas
no aparato terico proporcionado pela lingustica clssica, mas tambm em outras
reas, tais como a psicologia, as cincias sociais, a histria e a filosofia. Tal
abordagem objetiva anlise e interpretao da lngua em seus constituintes
formais e estruturais, assim como em sua realizao contextual, ou seja, em sua
realidade scio-histrica. A preocupao com a produo da lngua como um
acontecimento que tem motivaes e significados scio-histricos o que diferencia
a AD de outros estudos lingusticos.
20
A AD prope uma articulao entre o estruturalismo, o marxismo e a
psicanlise, trabalhando por entre a tensa interseco das reas, como afirma
Gregolin (2004, p. 193):
Por meio dessa articulao, h uma relao tensa que se estabelece entre uma teoria de lngua (Saussure), uma teoria de histria (Marx), uma teoria do sujeito (Freud) que vai concretizar-se a partir de releituras feitas por Althusser, Lacan, Pcheux, Foucault.
Essa articulao opera por meio da adoo da linguagem como objeto de
estudo, mas sob uma perspectiva que inclui em sua concepo as condies de
produo11. A crtica materialista proporciona a essa investigao lingustica a
ateno aos aspectos circundantes da realidade: econmicos, polticos e sociais,
tidos aqui no como complementos da cena enunciativa, mas como elementos
constitutivos da linguagem e do discurso. Segundo Pcheux, todo processo
discursivo se inscreve em uma relao ideolgica de classes (1975, p. 92),
carregando, por consequncia, marcas da tenso a presente. Neste contexto, a
ideologia, que age no sentido de naturalizar as contradies, de exercer fora no
movimento dos sentidos, afeta tanto a interao entre as classes quando entre os
sujeitos e o discurso. Para Althusser (1969 [2003], p. 94)12, a transparncia da
linguagem tambm um efeito da ideologia:
Como todas as evidncias, inclusive as que fazem com que uma palavra designe uma coisa ou possua um significado (portanto inclusive as evidncias da transparncia da linguagem), a evidncia de que voc e eu somos sujeitos e at a no h problema um efeito ideolgico, o efeito ideolgico elementar.
11 Para Pcheux (1975), essa noo engloba no apenas o contexto scio-histrico da produo do
discurso, como tambm as posies-sujeito construdas por meio desse. 12
Nota sobre as referncias: em obras cuja data de publicao for diferente da data da edio consultada, adotaremos o seguinte padro (data da publicao [data da edio consultada])
21
A ideologia naturaliza o j-l da linguagem e do sujeito e afeta o discurso
produzindo dois esquecimentos que operam em sua produo (PCHEUX, 1975). O
esquecimento nmero um relativo no-possibilidade da exterioridade do sujeito
com relao sua formao discursiva dominante, ou seja, a iluso de ser origem
dos sentidos que produz. Essa iluso constitutiva de nosso assujeitamento pelas
formaes discursivas e ideolgicas, isto , no conseguimos observar de fora os
sentidos que edificamos no momento de sua produo, e nem identificar as
formaes ideolgicas que mobilizamos a fim de constru-los, sendo afetados,
assim, pela iluso de autoria.
O segundo esquecimento da ordem da enunciao, e consiste na iluso da
univocidade da formulao, ou seja, ao dizermos algo, desconsideramos as outras
vrias possibilidades de construo que veiculariam um sentido similar. Segundo
Pcheux: todo sujeito-falante selecionar no interior da formao discursiva que o
domina (...) um enunciado, e no outro. (1975, p. 173), e, ao faz-lo, oculta os
outros enunciados possveis. Em outras palavras, os dois esquecimentos operam no
sujeito fazendo-o crer que a origem do que diz, e que seu dizer tem apenas o
sentido que ele busca expressar.
Segundo Coracini (2007), o sujeito para a AD, como concebido por Lacan,
comea a existir ao se inscrever na linguagem. Alm disso, a concepo de si
tambm articulada por meio da identificao do sujeito com representaes
produzidas socialmente. Ao identificar-se, traz para dentro o que est fora,
construindo sua autoimagem por meio do que lhe dito sobre si prprio. Segundo
Woodward (2000, p.17), as representaes nos fornecem possibilidades de
existncia, lugares, a partir dos quais podemos nos posicionar e a partir dos quais
podemos falar.
22
Em nosso contexto imediato, o Brasil, podemos observar a crescente
penetrao do que Harvey (1989 [2007]) chama de capitalismo de acumulao
flexvel, que se caracteriza essencialmente pela ruptura com o fordismo, apoiando-
se na flexibilizao dos processos, dos mercados e dos padres de consumo. Por
flexibilidade, compreendemos a possibilidade de deslocamento e movimentao
tanto do capital quanto dos processos de produo que foram possibilitados pelas
mudanas tecnolgicas ocorridas principalmente na segunda metade do sculo XX.
Tal sistema econmico tambm gerou reflexos na maneira de compreenso das
prticas sociais, pois evidenciou-se a caracterstica efmera e transitria das
relaes, o que fez com que a fragilidade e a condio eternamente provisria das
identidades no possa mais ser escondida" (BAUMAN, 2005, p. 22). Acreditamos
que, na sociedade brasileira atual, a penetrao do sistema econmico seja mais
visvel do que a liquidez das relaes e das identidades.
Nesse contexto, a unidade do sujeito cartesiano comea a ser deslocada e
substituda pela multiplicidade e heterogeneidade do sujeito ps-moderno, que se
divide em vrios eus. Consideramos que as identidades se constituem no e pelo
discurso, podendo sobrepor-se e coexistir, no sendo fragmentadas entre si ou
existindo de maneira independente.
Tal heterogeneidade relacionada s identidades do sujeito ps-moderno pode
ser demonstrada no dizer de uma das coordenadoras de escola bilngue que
entrevistamos13. Ao ser perguntada a respeito das vantagens ou desvantagens do
ensino bilngue, ela se desdobra em trs posies-sujeito e enuncia:
13 Trataremos mais detalhadamente dessas entrevistas ao descrevermos o corpus, pgina 27.
23
eu sou perigosa para responder essa questo... porque eu tenho trs
vises... eu tenho a minha viso como me... tenho minha viso
como coordenadora e tenho minha viso como pesquisadora
A ps-modernidade nos permite o desdobramento em um sujeito mltiplo, o
que at ento no nos era possvel, mas, por outro lado, a fluidez das identidades
pode mascarar a rigidez das leis que controlam e regem o que pode ou no ser dito
a partir de um determinado lugar (FOUCAULT, 1970 [2003]). Ao mesmo tempo em
que o sujeito pode desdobrar suas identidades, ainda sofre a presso dos
mecanismos de controle que cerceiam a normalidade dos dizeres e selecionam
quais sentidos so passveis de produo por esta ou aquela posio discursiva. Em
outras palavras, a multiplicidade de identidades no muda o fato de a posio-me
poder produzir determinados sentidos que so vetados s posies de
coordenadora e pesquisadora.
Neste jogo de esquecimento e memria que a produo dos discursos,
podemos compreender tanto o sujeito quanto o sentido como efeitos voltados para
as possibilidades de realizao e (re)produo. Ambos deslizam de acordo com as
posies ideolgicas sustentadas tanto nos dizeres quanto pelos dizeres, e,
portanto, o sentido no est colado s palavras e o sujeito no est colado ao ente
biolgico. O primeiro construdo por meio das relaes de poder entre os
elementos da enunciao, e o segundo, a posio-sujeito, se constitui na relao
com o outro e com a linguagem. Quando abordamos sentido e sujeito, tratamos de
lugares e regies possveis no espectro do dizvel, no os considerando fora das
relaes discursivas:
(...) sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo, na articulao da lngua com a histria, que entram no imaginrio e na ideologia.
24
Se, na Psicanlise temos a afirmao que o inconsciente estruturado como linguagem, na AD considera-se que o discurso materializa a ideologia, constituindo-se no lugar terico em que se pode observar a relao da lngua com a ideologia. (ORLANDI, 2005, p.99)
Na articulao entre a linguagem e suas condies de produo, buscaremos
analisar as posies-sujeito e os sentidos sobre o EIC, problematizando, dessa
maneira, a relao da ideologia da flexibilizao e globalizao com as
representaes de criana, lngua estrangeira e ensino de lngua estrangeira que
circulam em diversas instncias discursivas. Em uma delas, com poucos sentidos
cristalizados, procuraremos investigar de que maneira determinados sentidos so
privilegiados em detrimento de outros.
Justificativa
Nos dias atuais notvel a expanso do oferecimento de aulas de lngua
estrangeira para crianas. H vrias modalidades para os pais interessados, que
podem optar por cursos especficos de lngua estrangeira em institutos de idiomas,
escolas bilngues de educao infantil, ensino fundamental, escolas regulares que
oferecem aulas de ingls dentro de suas grades curriculares e, por fim, escolas
internacionais. No Brasil, o nmero de escolas bilngues aumentou de 145 para 187
entre 2007 e 2009, um crescimento de quase 30% em um perodo de dois anos14.
Nesse contexto de expanso, os trabalhos acadmicos atualmente
produzidos com relao ao EIC esto, em sua grande maioria, concentrados na
lingustica aplicada ao ensino de lnguas e tratam de assuntos especficos da prtica
docente, como o desenvolvimento de parmetros para o ensino de ingls (ROCHA,
14 Fonte: AGNCIA ESTADO, 2010.
25
2006), a formao de docentes em escolas bilngues (WOLFFOWITZ-SANCHEZ,
2009), e, tambm, a utilizao da LE como ferramenta mediadora de educao
(CORTEZ, 2007). H, ainda, estudos na rea da psicologia que relacionam o
bilinguismo ao desenvolvimento infantil (FLORY, 2009) e os da educao, que
buscam definies e investigam as prticas pedaggicas de escolas bilngues
(MOURA, 2009; ROSA, 2009;). Outros tambm problematizam a questo das
escolas de elite (CANTURIA, 2005; ALMEIDA, 1999). Esto ausentes estudos
discursivos a respeito desta rea, envolta em condies de produo que se
caracterizam pela instabilidade dos sentidos produzidos nas diversas instncias,
como j mencionamos anteriormente.
Acreditamos que a problematizao desses sentidos pode ser de interesse
aos profissionais que atuam na rea de ensino de lngua estrangeira e de educao,
por contribuir para sua prtica ao fornecer um recorte interpretativo e crtico desse
cenrio.
O percurso que realizamos tambm diz respeito a todos aqueles que buscam
compreender, de maneira mais complexa, o movimento atual de valorizao do
ensino precoce de lngua estrangeira e das prticas que o circundam, auxiliando na
reflexo de pais, professores e agentes envolvidos nesse processo de modo geral.
Objetivos e Perguntas de Pesquisa
No desenvolvimento de nossa pesquisa, apoiamo-nos nas teorias sobre a
globalizao, suas caractersticas econmicas e sociais (cf. HARVEY, 1989;
BAUMAN, 1989) e nas noes de sujeito, linguagem, ideologia e condies de
produo, a fim de compreendermos os dizeres a respeito do ensino de ingls para
26
crianas e, assim, propormos reflexes em torno de seus possveis efeitos de
sentido. Pressupondo que o EIC uma modalidade acessvel apenas por meio do
ensino privado e, portanto, do consumo, levantamos a hiptese de que os sentidos
associados a ele se alinham mais com caractersticas do mercado globalizado do
que com os benefcios pedaggicos.
Norteiam nosso trabalho as seguintes perguntas de pesquisa:
a) Quais as representaes de criana e aprendizado de lngua estrangeira que
podem ser depreendidas da legislao, dos textos de mdia e dos dizeres das
coordenadoras?
b) De que forma as escolas justificam a necessidade do ensino de lngua inglesa
a crianas pequenas por meio de seu discurso institucional?
Ao refletir sobre tal cenrio, temos como objetivos gerais:
Contribuir com as investigaes acerca da educao brasileira mediante a
discusso dos aspectos relacionados ao aprendizado de LE e de seu papel
na formao dos aprendizes brasileiros, assim como sua participao na
relao com nossa prpria lngua e cultura;
Problematizar a necessidade/os efeitos do aprendizado de ingls como LE
nos ciclos iniciais da educao, contribuindo, assim, para o debate acadmico
a esse respeito.
Como objetivos especficos pretendemos:
27
Investigar as representaes de criana, lngua estrangeira e ensino de lngua
estrangeira advindos da legislao educacional brasileira, de materiais
miditicos, de materiais institucionais e do discurso de coordenadoras
pedaggicas de escolas regulares e bilngues;
Identificar, neste espao especfico, traos discursivos a respeito da
aprendizagem de ingls que venham a contribuir para uma reflexo crtica
sobre seu ensino para crianas;
Problematizar as semelhanas e diferenas encontradas entre os dizeres
analisados, relacionando-os com o cenrio da globalizao e da ps-
modernidade.
Constituio do Corpus
A fim de podermos observar o movimento dos sentidos do EIC em diferentes
instncias discursivas, fizemos uso de textos que remetem a vrios nveis de
estabilizao de sentidos. Quando nos referimos a sentidos estveis, consideramos
formaes discursivas que, por meio dos mecanismos de controle e excluso
(FOUCAULT, 1970 [2003]), produzem sentidos aparentemente mais uniformes,
mais controlados, como o caso da legislao, por exemplo. Podemos considerar
que, nessas regies supostamente estveis, o efeito ideolgico faz parecer que os
conflitos e tenses entre as diferentes potencialidades de sentido e as lutas de poder
envolvidas na materializao discursiva de cada uma delas so silenciadas pelo
peso da autoria de um enunciador (DUCROT, 1984 [1987]) que goza de um status
hegemnico, concentrando, dessa forma, um poder maior. As formaes discursivas
menos estabilizadas se encontram margem, podendo produzir sentidos de maneira
28
menos controlada (o que no garante que eles escapem da lgica estabelecida
pelas instncias mais centrais).
No captulo 1, demos incio anlise observando decretos e leis produzidos
desde a Repblica Velha at os dias atuais, selecionados por sua relao com o
tema LE. Por meio da anlise dessas leis e decretos, buscamos traar um panorama
analtico do ensino de lnguas no Brasil ao investigar de que maneira as condies
de produo ecoam nos textos.
A seguir, no captulo 2, selecionamos cinco reportagens produzidas entre
2001 e 2007 em diversas publicaes: duas reportagens advindas de uma revista de
grande penetrao nacional, duas de um jornal dirio que circula no estado de So
Paulo e, a ltima, de uma revista mensal especializada em crianas e
adolescentes15. Decidimos investigar os dizeres da mdia por considerarmos que
constituem uma instncia discursiva atuante no processo de criao de
necessidades de consumo (CORACINI, 2006, p. 137) que relaciona-se diretamente
com o EIC em nosso pas, por se tratar de um tipo de ensino apenas acessvel por
meio das escolas particulares, e, portanto, que apresenta relao direta com a lgica
do mercado.
Posteriormente investigamos os dizeres das escolas fornecedoras de EIC
veiculados em seus sites. Realizamos um levantamento em sites de
aproximadamente 34 instituies, a fim de poder identificar os elementos comuns,
nos quais a instituio produzia sua descrio, sua designao e,
consequentemente, atribua sentidos s categorias que estamos analisando. Aps a
identificao de aproximadamente 30 elementos distintos que figuravam na
construo dos sites, optamos por selecionar as sees em que a escola falava
15 Coletamos as reprodues integrais das reportagens dos websites dos jornais e da revista.
29
sobre si. Decidimos selecionar os sites que figuravam nas reportagens16, com o
objetivo de analisar os sentidos presentes em seus dizeres.
Finalmente, no captulo 3, analisamos as entrevistas realizadas com
coordenadoras pedaggicas de escolas particulares regulares e bilngues. A seguir,
descrevo resumidamente o perfil das coordenadoras entrevistadas:
Formao Tipo de escola onde trabalha
Localizao e Perfil Socioeconmico (aproximado) da clientela17
C1 Superior completo em Pedagogia e Especializao em Gesto Escolar
Escola particular regular, com incluso de aulas de ingls a partir da educao infantil
Zona Oeste de So Paulo, regio de grande concentrao de classes A2, B1 e B218
C2 Mestrado em Educao Escola bilngue de educao infantil e ensino fundamental I
Zona Oeste de So Paulo, regio de grande concentrao de classes A2, B1 e B2
16 Apesar de nossa lista inicial incluir oito sites, dois deles foram construdos de modo a no permitir a
cpia e gravao de seus textos, o que impossibilitou a coleta dos enunciados, reduzindo nosso nmero de sites. 17
Distribuio da populao com base no estudo de PAIVA (2010). 18
Esta classificao segue o chamado Critrio Brasil, critrio criado pela Associao Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP), com a finalidade de estimar o poder de compra da populao em termos de classes sociais. Segundo a ABEP, as faixas de renda familiar de acordo com a renda seguem a seguinte tabela:
(fonte: abep.org.br, acesso em 10/03/2010)
30
C3 Superior completo em
Pedagogia
Escola confessionria de educao infantil a ensino mdio que est passando por processo de bilingualizao por meio da implantao de um sistema de ensino produzido por empresa especializada.
Zona Leste de So Paulo, com maior concentrao de classe C, D e E.
Todas as coordenadoras foram entrevistadas nas escolas onde trabalhavam
mediante agendamento de entrevistas. Com exceo de C1, elas no conheciam a
entrevistadora e no tiveram contato com seu trabalho. As entrevistas foram
gravadas em udio e transcritas posteriormente. As perguntas selecionadas foram:
1) Como organizado o currculo do fundamental I/da educao infantil aqui na
escola?
2) De que maneira esse currculo se articula com a legislao da secretaria
estadual/municipal de ensino?
3) H algum tipo de presso por parte dos rgos de fiscalizao quanto
organizao e distribuio das aulas?
4) De que forma as competncias lingusticas das crianas so
estimuladas/observadas/avaliadas nas aulas de lngua inglesa?
5) Qual , em sua opinio, a vantagem de iniciar o aprendizado na educao
infantil ou no ensino fundamental?
6) Em sua opinio, porque os pais procuram uma escola bilngue para os filhos?
7) De que maneira voc acredita que as crianas que estudam em escolas
bilngues no contexto brasileiro estabelecem relaes com sua cultura e com
a cultura do outro?
As entrevistas foram semiguiadas com as perguntas-base adaptadas s
respostas das entrevistadas, assim como ao contexto imediato da enunciao.
31
Nosso objetivo com essa estratgia foi evitar influenciar as respostas das
coordenadoras.
Normas para a Transcrio das Entrevistas
Para a transcrio das entrevistas realizadas, nos baseamos no trabalho de
Dino Pretti (2000), cujas normas reproduzimos a seguir, com exemplos retirados de
nosso trabalho:
OCORRNCIA SINAL EXEMPLO
Incompreenso de
palavras ou segmentos
( ) geralmente quem tem
mais domnio da lngua
fala porque ( ) falar
primeiro e o outro copia
Entoao enftica Maiscula TUdo dado em
ingls...
Truncamento / obrigatrias/vamo
pensar no fund 1
Prolongamento de
vogal e consoante
(como s, r)
:: podendo aumentar
para :::
mas na verdade o
mi::nimo e bem menor
do que...
Interrogao ? e tem alguma
fiscalizao... a
supervisora vai... ?
32
Qualquer pausa ... deliberaes... ::: da diretoria de ensino... ento
Comentrios
descritivos do
transcritor
(( )) ((risos))
Citaes literais ou
leituras de textos,
durante a gravao
texto de repente voc leva um
projeto e fala isso aqui
pode ela tambm pode
te orientar nisso
Lista de Abreviaturas
AD Anlise do Discurso
C1,2,3 Coordenadora1, 2, 3
EIC Ensino de Ingls para Crianas
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional
LE Lngua Estrangeira
PCNs Parmetros Curriculares Nacionais
R1,2 Reportagem
S1,2 Site
33
CAPTULO 1
Silenciando os Sentidos do Ingls como LE: um percurso
histrico atravs das leis
A fim de compreendermos o aumento na oferta de ingls para crianas nos
dias atuais e investigarmos as representaes que cercam essa prtica,
buscaremos, neste captulo, traar um panorama do ensino de lngua estrangeira no
pas do ponto de vista legal e estabelecer um paralelo entre a legislao que regula
a educao infantil, o primeiro ciclo do ensino fundamental e o oferecimento de LE.
Nosso objetivo investigar as condies de produo (PCHEUX, 1975 [1988]) dos
discursos oficiais sobre a educao no Brasil. A tessitura de uma anlise histrica
possibilitar uma compreenso mais ampla sobre a produo de sentidos a respeito
da prtica que focal: o ensino de ingls para crianas de zero a dez anos, em
escolas particulares na cidade de So Paulo.
Cabe ressaltar que o oferecimento de ingls para crianas nessa faixa etria,
embora tenha sofrido um substancial aumento nos ltimos anos, no
regulamentado em mbito federal, estadual ou municipal (no caso de So Paulo),
exceto apenas a partir do terceiro ciclo do ensino fundamental (que se inicia no
sexto ano). Tal sombra legal, ou seja, a inexistncia de reconhecimento desse tipo
de prtica por parte do Estado, tambm se aplica s escolas bilngues e
internacionais, cujos registros junto s diretorias de ensino no apresentam
diferenciao aparente em classificao legal. Esses estabelecimentos so
considerados escolas regulares tanto de educao infantil (as quais no precisam
seguir qualquer orientao oficial em seus currculos) quanto de ensino fundamental,
34
devendo cumprir o currculo mnimo obrigatrio veiculado pela secretaria estadual de
educao, com um nmero estipulado de aulas a serem ministradas em lngua
nacional, e cujo trabalho em lngua estrangeira categorizado como parte
diversificada do currculo, indistinta para rgos responsveis. No caso das escolas
internacionais, elas podem tambm funcionar em regime experimental, conforme
explicitado no artigo 81 da lei 9394 de 20/12/9619. Dessa maneira, possvel afirmar
que as escolas bilngues de educao infantil e ensino fundamental no so
reconhecidas por lei e seus currculos especficos de LE no so registrados pelos
rgos competentes. A exceo neste panorama so as escolas indgenas e de
fronteira, consideradas as nicas escolas bilngues legais no pas, mas cuja
regulamentao e processos avaliativos tambm no parecem levar em conta os
contedos especficos das culturas indgenas envolvidas no processo educativo,
embora diversos estudos estejam em trmite nessa rea da educao20.
Frente a esse contexto, optamos por uma anlise da legislao relativa ao
ensino de lngua estrangeira em determinados momentos da histria brasileira,
buscando, para isso, sentidos e lugares referentes prtica e os relacionando
legislao federal, no que diz respeito Educao Infantil e ao Ensino Fundamental
vigentes nos dias atuais.
19 Art. 81. permitida a organizao de cursos ou instituies de ensino experimentais, desde que obedecidas as disposies desta Lei. 20
No podemos ignorar os esforos feitos no sentido de ampliar o acesso dos povos indgenas preservao de suas culturas e s novas tecnologias. Entretanto, observamos que, no nvel estadual, essa diferena intercultural parece no ser muito levada em conta pelos parmetros de avaliao. Tal considerao se baseia no fato de que no h diferenciao de participao dessas escolas em sistemas compulsrios de avaliao de rendimento, tais como o SARESP (Sistema de Avaliao de Rendimento do Estado de So Paulo). H tambm o projeto das escolas bilngues de fronteira, que tm como objetivo a troca de experincias entre alunos da rede pblica no Brasil e Argentina. A lngua ensinada nessas escolas o espanhol, e esseprograma uma iniciativa do governo federal para uma rea especfica, e sobre a qual no encontramos legislao referente ou orientaes curriculares.
35
O ensino de lnguas estrangeiras modernas ganhou prestgio significativo com
a vinda da famlia real para o Brasil, em 1808, a qual trouxe consigo as tendncias
que essa modalidade de ensino j gozava na Europa e nos Estados Unidos
(VIDOTTI e DORNELAS, 2006). De modo geral, o ensino do francs ocupava um
lugar de destaque no currculo oficial, observada a grande influncia poltica, cultural
e cientfica que a Frana exercia sobre o Brasil. Segundo as autoras, a quase
totalidade dos materiais utilizados nos cursos superiores e de formao militar eram
em lngua francesa. A partir de 1837, o currculo oficial, materializado pelas prticas
do Colgio Pedro II, servia como modelo de qualidade para todas as escolas, as
quais requeriam a legitimao por meio da equiparao dos currculos ao do
Colgio, a fim de que seus alunos obtivessem o reconhecimento dos diplomas. O
ensino no Pedro II era de nvel secundrio, acessvel apenas elite existente no
pas, j o ensino primrio (as primeiras letras) era em sua maioria de carter
privado ou domstico.
Tal panorama foi pouco alterado at o final da Repblica Velha, levando-se
em considerao que o pas mantinha uma caracterstica de povoamento
predominantemente rural e o acesso educao formal continuava restrito elite,
que, por sua vez, enviava preferencialmente os filhos para serem educados na
Europa.
O regulamento do Colgio apresenta detalhamento quanto s disciplinas
ministradas, o nmero de aulas e os procedimentos adotados na abordagem dos
conhecimentos. A respeito do ensino de LE, o documento postula que:
[E.1] b) Ao estudo das linguas vivas ser dada feio eminentemente pratica. Os
exercicios de conversao e os de composio versaro sobre assumptos
scientificos, artisticos e historicos; as dissertaes sobre themaslitterarios
36
reclamaro cuidado dos docentes e uma parte desenvolvida nos programmas
das ultimas series em que as lnguas forem leccionadas. No fim do curso os
alumnos devero estar habilitados a fallar e a escrever duas lnguas
estrangeiras e familiarizados com a evoluo litteraria dellas. (artigo 7.o, item
b Decreto 8660 de 05 de abril de 1911)
O excerto acima, retirado do regimento do colgio Pedro II, representa o
documento que mais se aproxima da legislao educacional da poca e trata do
ensino de lnguas estrangeiras modernas (as lnguas vivas) de modo bastante
detalhado. O trecho traz os objetivos relativos rea, nfase pedaggica,
metodologia a ser adotada e, por fim, temtica a ser tratada. O esquema abaixo
relaciona esses elementos:
estu
do
das
ln
guas
viv
as
objetivos
falar
escrever
compreender evoluo literria
nfase prtica
metodologia
exerccios de conversao
exerccios de composio
temtica a ser desenvolvida
(assuntos)
cincia
arte
histria
37
Em apenas um pargrafo, diversas prescries a respeito dessa prtica de
ensino so estabelecidas, ou seja, a lei no trata somente do ensino de lngua
estrangeira, como tambm dos parmetros a serem seguidos, de maneira bastante
especfica. Compreendemos que o excerto remete a um alto nvel de controle sobre
as prticas, na medida em que os passos que devem ser seguidos so descritos
com um certo nvel de detalhe de maneira imperativa e categrica. As afirmaes
categricas so transmitidas por uma voz absolutamente objetiva que fala de um
lugar de autoridade explcito, criando, dessa forma, um efeito de sentido capaz de
relegar, tanto professores quanto alunos ao lugar de meros seguidores de ordens:
ao estudo das lnguas vivas ser dada feio eminentemente prtica, os exerccios
versaro, as dissertaes reclamaro cuidado dos docentes.
A nica modalizao explcita no trecho se refere aos alunos, e se
caracteriza como um dever, uma ordem: os alunos devero estar habilitados a falar
e escrever duas lnguas. Recai sobre o professor ou sobre o colgio a obrigao de
preparar os alunos a fim de que ao final do curso estes atinjam o nvel de habilidade
descrita no documento.
A feio eminentemente prtica a ser dada ao ensino de LE se refere ao
mtodo direto, que se apresentava como uma alternativa mais moderna ao mtodo
de gramtica e traduo, adotado em vrios lugares do mundo. Tal ensino inovador
era, como veremos adiante, acessvel apenas para uma pequena parte da
populao.
Durante os primeiros 300 anos da histria do pas, assim como no sculo XIX,
a educao secundria (e consequentemente o acesso ao ensino de LE) constituiu
um bem para poucos. Segundo Marclio (2005, p.88):
38
No havia nenhuma ligao nem continuidade com a escola popular elementar. O ensino primrio e secundrio eram duas instituies que se desenvolviam paralela e autonomamente uma da outra. Cada uma delas respondia a fins diversos: o ensino primrio era feito para o povo. O secundrio para a elite.
interessante notar que a elitizao dessa prtica (e, portanto, do ensino de
lngua estrangeira) dialogava com um elemento bastante presente no imaginrio da
poca: o de que a produo nacional no era de boa qualidade e que, portanto,
devia-se consumir a produo estrangeira. A mesma autora cita Mario Pinto Serva,
que, em seu livro A Educao Nacional (de 1924), critica a instruo do povo
brasileiro e a misria mental das publicaes em lngua portuguesa:
(...) o brasileiro quando sabe ler conhece apenas o portugus. Quem entra em uma livraria brasileira qualquer, em qualquer cidade de nosso pas, e constata os livros que se encontram em lngua portuguesa, fica horrorizado na misria mental a que est condenado nosso povo em geral. (...) Em lngua portuguesa, no h publicado o que fez a civilizao humana, o pensamento moderno. (SERVA, 1924, p. 149)
Os sentidos de cultura e pensamento presentes tanto na crtica de Serva
quanto no estatuto do colgio Pedro II apresentam uma relao de regularidade, de
conformidade com a produo intelectual da poca (que at ento consistia em
adaptaes de modelos europeus na produo artstica e com a supervalorizao da
produo estrangeira). Os contedos descritos para as atividades de conversao e
redao do Colgio materializavam a preocupao de colocar os alunos em contato
com essas produes em suas aulas de LE por meio do estudo dos assumptos
scientificos, artisticos e histricos. Esses dizeres so materializaes do que
Calligaris (1996), em sua interpretao a respeito da construo imaginria
brasileira, denomina figura do colonizador. Segundo o autor, as figuras do
colonizador e do colono so as figuras retricas predominantes no discurso dos
39
brasileiros, e se referem relao que estabelecemos com nossa origem portuguesa
e com nosso pas. Ele compara o colonizador a algum que busca o gozo em um
corpo, que no o corpo interditado da me. Ao explor-lo com uma voracidade sem
limites e sem leis, ele se d conta que goza com um corpo que no o que
realmente desejava, e se desilude, projetando sua falta no corpo que possui,
menosprezando-o:
Ele tem com o pas enquanto corpo uma cobrana que lhe permite dizer este pas no presta, quer seja porque ele deveria ser o outro (aquele que deixou), quer seja porque ele no goza como deveria. (CALLIGARIS, 1996, p. 19)
Assim, a elite que produzia culturalmente no Brasil acabava por reescrever
(mesmo que com algumas breves rupturas) o discurso do colonizador exilado, que,
no se satisfazendo na nova terra, almeja voltar civilizao que o antecede. Essa
mesma civilizao o interpela e concomitantemente, desdenha daquilo que ele
encontrou na colnia. Nesse contexto, a LE um instrumento que possibilitava a
volta, pois fazia-se necessria para a comunho com a metrpole. A misria
mental qual, segundo Serva, o povo brasileiro est condenado por no ter acesso
em lngua portuguesa ao que a civilizao humana realizou e, consequentemente,
ao pensamento moderno, relega nossa lngua materna a um lugar de completa
inferioridade, como se a civilizao humana e o pensamento moderno no
existissem seno por meio de uma outra lngua. Enquanto a(s) outra(s) lngua(s)
figuram como lugar da civilizao humana e do pensamento moderno, a lngua
portuguesa o lugar da misria, da no civilizao, e, portanto, da barbrie, de
pensamentos ultrapassados, ou at mesmo da irracionalidade.
O incio do sculo XX trouxe uma srie de mudanas econmicas no cenrio
mundial que afetaram duramente a economia exportadora brasileira. A crise na
40
chamada poltica do caf-com-leite (acordo firmado entre Minas Gerais e So Paulo,
as potncias econmicas da poca, para a alternncia entre representantes mineiros
e paulistas no governo do pas), as diversas revoltas de carter separatista e uma
crescente mobilizao das foras armadas no sentido de organizar o cenrio poltico
nacional eram as preocupaes das elites da poca, que viam seu poder ameaado
pelo iminente desmembramento da unidade nacional. Ao mesmo tempo em que a
grande maioria da populao brasileira no possua representatividade poltica, nem
acesso s condies satisfatrias de sobrevivncia, evidenciou-se a crise no modelo
de administrao adotado at ento, gerando um movimento de cultivo da
brasilidade e de sua inveno como elemento unificador e pacificador das
inquietaes brasileiras, que tinha como objetivos principais a suavizao das
diferenas regionais e a manuteno da unidade territorial. Tal estratgia j havia
sido utilizada na formao dos estados nacionais europeus, e descrita por Hall (
1992 [2004],p. 59):
(...) no importa quo diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gnero ou raa, uma cultura nacional busca unific-los em uma identidade cultural, para represent-los todos como pertencendo grande famlia nacional.
Acreditamos que, no Brasil, esse movimento particularmente observvel.
Com o governo de Getlio Vargas, em 1930 (resultado de uma aliana de
representantes das classes dominantes para reprimir o levante poltico e os
movimentos armados estimulados pela crise da Repblica Velha), e o subsequente
Golpe em 1942, d-se a criao do Estado Novo, que, de uma maneira autoritria e
ditatorial, investe na criao de um pas de identidade uniforme, sob a gide da
ordem que levaria ao progresso e possibilitaria recuperar o atraso do pas com
41
relao aos pases desenvolvidos. Para tal objetivo, alinha-se uma poltica
educacional que almeja a unidade e a identidade nacionais. (AQUINO et al, 2000).
A poltica de Vargas para a educao era chefiada por Gustavo Capanema
Filho, o qual ganhou notoriedade graas s suas metas nacionalizantes, ao
bastante marcada na direo de uma escola que atingisse os ideais de
uniformidade, padronizao e organizao em voga. Segundo Aquino ET AL. (2000,
p. 386), sua atuao representou uma relao com a cultura erudita e contou com
nomes como Carlos Drummond de Andrade, Oscar Niemeyer, Vincius de Morais e
Cndido Portinari. Criou-se a Comisso Nacional do Livro Escolar, visando reforma
das obras didticas, as quais passaram a ressaltar as virtudes do povo brasileiro, o
ufanismo e as qualidades de Vargas. Em 1939, torna-se obrigatrio o ensino de
Educao Fsica com moldes na educao militar. Em detrimento de uma concepo
de cultura e lngua estrangeiras (notadamente europeias, francesa e inglesa) como
modelos de civilidade a serem seguidos, emerge uma viso que visa ao reforo da
identidade nacional:
Paralelamente formao do Homem Novo preconizado pelo Estado Novo, o Ministrio da Educao atacou as escolas consideradas desnacionalizantes, caracterizadas por uma ligao com outros pases, a exemplo das escolas alems no Sul do Pas. Tendo seus registros cassados, foram obrigadas a fechar suas portas e ceder o espao para a criao de escolas pblicas. Na verdade, com o pano de fundo desta questo, encontrava-se o tema da imigrao, cada vez mais polmico diante da proposta de integrao nacional. (AQUINO [ET AL] 2000, p. 389)
Uma caracterstica interessante desse movimento o seu incio, que se d
por meio da alterao da estrutura do Colgio Pedro II, onde, em 1931, teve extintos
os cargos de professores de LE modernas, e cuja instruo passou a ser fiscalizada
pelo Estado (cf. Decreto 20.833 de 21 de dezembro de 1931). Em 1939, promulga-
se uma lei que obriga a utilizao da lngua portuguesa nas escolas (cf. Decreto-lei
42
n. 1.545 de 25 de agosto de 1939) [E.2], e outra que probe o uso de quaisquer
materiais em LE, assim como sua produo em territrio nacional (cf. Decreto-lei n.
3.580 de 3 de setembro de 1941) [E.3] .
[E.2] Art. 1 Todos os rgos pblicos federais, estaduais e
municipais, e as entidades paraestatais so obrigados, na esfera de
sua competncia e nos termos desta lei, a concorrer para a perfeita
adaptao, ao meio nacional, dos brasileiros descendentes de
estrangeiros. Essa adaptao far-se- pelo ensino e pelo uso da
lngua nacional, pelo cultivo da histria do Brasil, pela incorporao
em associaes de carter patritico e por todos os meios que
possam contribuir para a formao de uma concincia comum.
[E.3] Art. 4 Fica proibida a importao de livros didticos, escritos
total, ou parcialmente em lngua estrangeira, se destinados ao uso de
alunos do ensino primrio, bem como a sua produo no territrio
nacional.
Nota-se, em E2, o esforo realizado para a construo da uniforme identidade
nacional por meio da preocupao do Estado em adaptar de maneira perfeita os
brasileiros descendentes de estrangeiros. O objetivo do processo de adaptao
promover a formao de uma conscincia comum nesses descendentes. O emprego
do substantivo adaptao remete a leituras sociais da teoria de Charles Darwin,
segundo a qual as espcies devem adaptar-se ao seu meio ambiente a fim de
garantir a sobrevivncia. A adaptao, no contexto do decreto, pode ser considerada
como a substituio de valores estrangeiros por valores brasileiros. O carter
totalitrio da formulao pode ser observado no apenas pela utilizao da
modalidade categrica expressa em so obrigados e far-se-, mas tambm pelo
43
investimento em um produto ideal do processo de adaptao: a perfeita adaptao,
e, de uma conscincia comum (uniforme), o que caracteriza a identidade nacional.
O investimento em um ideal de brasilidade pura tambm se torna visvel na
disposio sobre a comisso nacional do livro didtico, que no somente motiva a
produo nacional, como tambm promove a erradicao de didticos em LE
destinados ao ensino primrio, por meio da proibio de sua importao e da
produo em territrio nacional. Pode-se afirmar, portanto, que esses dois
movimentos de construo da brasilidade promovidos pela Era Vargas foram
operacionalizados empregando-se um forte investimento contra as prticas correntes
de instruo pblica em lngua estrangeira e que, segundo alguns autores, levou
sua quase extino.
Assim, consideramos que a Era Vargas institui um momento de silenciamento
da LE e sua prtica como elemento constitutivo do processo de construo da
identidade nacional. As leis promulgadas no perodo parecem colocar a cultura
estrangeira imigrante em confronto com a cultura nacional como se fosse uma
ameaa ao almejado sentimento de brasilidade. As polticas de Vargas apontam
para um alinhamento com as concepes totalitaristas vigentes na poca, tais como
o nazismo na Alemanha e o fascismo na Itlia. Bastante irnico o fato de a
veemente rejeio s prticas que pudessem motivar o florescimento de culturas
no nacionais ser inspirado pelos discursos totalitaristas atuantes na Europa.
Com a popularizao da instruo pblica ocorrida durante o Estado Novo,
diversos debates entram na cena nacional, muitas mudanas ocorrem no cenrio
poltico, e, em 1961,aps mais de dez anos de negociaes, promulgada a
primeira lei de diretrizes e bases da educao nacional (doravante LDB), inspirada
nos princpios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana (cf. LDB 4024 de
44
20 de dezembro de 1961). At ento, a regulamentao da educao no Brasil era
feita majoritariamente pelos decretos esparsos, que declaravam a adoo de
modelos ideais, no entanto, raramente aplicados. Segundo Casemiro dos Reis Filho
(1981, p. 45):
O decreto, a regulamentao, a norma codificadora constituem, nos pases de origem colonial, o instrumento por excelncia para a reforma. Tal fato decorre do processo colonizador que , antes de tudo, um processo de transplante cultural.
Consequentemente, a educao por decreto pode ser compreendida como
uma herana de nosso passado colonial e nossa relao com a metrpole
reguladora. Da ruptura com esse modelo (e depois de muita discusso) produzida
a primeira LDB, a qual sistematiza as regras para a educao no pas. O documento
no faz meno alguma ao ensino de LE, deixando a critrio das instituies a
escolha das disciplinas opcionais a serem ministradas21. Apesar de todas as
discusses e grupos sociais envolvidos na elaborao da LDB, aparentemente o
apagamento da LE nos documentos oficiais promovido na Era Vargas ainda surtia
algum efeito.
Com o golpe militar em 1964, observa-se o recrudescimento das prticas, o
que se materializa, em termos de legislao educacional, mediante volumosos
decretos de restries e punies, mas que, de maneira geral, pode ser observado
na LDB produzida em 1971, durante os chamados Anos de Chumbo da histria
brasileira, no governo de Emlio G. Mdici, parte da linha dura do governo militar.
21 Segundo Cunha (1979), a estrutura geral do currculo nacional no era centralizada, permitindo que
cada regio o adaptasse s suas necessidades. O currculo era dividido em disciplinas obrigatrias (Portugus, Histria, Geografia, Matemtica e Cincias), disciplinas complementares e optativas (Organizao Social e Poltica do Brasil, LE Moderna, Lngua Clssica, Desenho, Fsica, Qumica, Biologia, Filosofia).
45
A poca do regime militar e os macios investimentos estrangeiros
decorrentes de acordos inspirados por meio da dinmica de foras instituda pela
guerra fria levaram criao de acordos internacionais, que, como condio de
parceria, exigiam adaptao a uma srie de padres (em sua maioria unificadores,
indo de encontro s polticas anteriores propostas pelos governos civis). Segundo
Marclio (2005, p.151): A regra era a unidade nacional e, junto com a doutrina da
segurana nacional, produziu instrumentos rgidos de controle na educao. A
busca pelo desenvolvimento da educao nos moldes do desenvolvimento
tecnolgico levaram criao de acordos que ficaram conhecidos como Acordos
MEC-Usaid"22, os quais privilegiaram as camadas mais abastadas da populao. E,
ainda segundo a autora, beneficiaram predominantemente os Estados Unidos, que
ficavam com o investimento de 93% dos fundos, e enviavam materiais e produtos
aos pases parceiros em troca da conformidade aos padres estabelecidos pela
agncia. Novamente, podemos observar que a construo da identidade nacional
recebia uma ajuda externa de um grande irmo do Norte que ditava a direo a
ser seguida por essa identidade.
Em acrscimo mudana de foco da educao oficial, a nova LDB tambm
instituiu o amparo financeiro de instituies privadas de ensino por parte do Estado,
com o redirecionamento de fundos destinados educao. No documento, a LE
merece meno em carter complementar:
[E.4]Art. 8 A ordenao do currculo ser feita por sries anuais de disciplinas ou
reas de estudo organizadas de forma a permitir, conforme o plano e as
possibilidades do estabelecimento, a incluso de opes que atendam s
22 United States Agency for International Development
46
diferenas individuais dos alunos e, no ensino de 2 grau, ensejem variedade de
habilitaes.(...)
2 Em qualquer grau, podero organizar-se classes que renam alunos de
diferentes sries e de equivalentes nveis de adiantamento, para o ensino de
lnguas estrangeiras e outras disciplinas, reas de estudo e atividades em que tal
soluo se aconselhe.
Em um momento de reconhecido recrudescimento da poltica nacional que
promoveu a ascenso de polticas autoritrias de controle por parte do governo,
assim como a grande influncia estadunidense na constituio (e manuteno) do
governo militar, notvel o fato de o ensino de LE gozar de relativa liberdade, j que
sua meno, expressa no texto pela utilizao do verbo modal podem, se d apenas
em termos de uma sugesto de organizao de turmas. O prprio oferecimento da
disciplina no estipulado pelo documento, uma vez que a parte variada do
currculo includa conforme o plano e as possibilidades do estabelecimento. Esta
clusula da lei permite ao estabelecimento escolher e adaptar o oferecimento de
determinado componente curricular s necessidades de sua comunidade.
Uma nova LDB foi promulgada em 1996, no governo civil de Fernando
Henrique Cardoso. Em suas caractersticas gerais, esse documento se aproxima
bastante do produzido em 1961, entretanto, apresenta um carter mais flexvel com
relao regulamentao escolar. De maneira bastante interessante, todavia, as
proposies referentes ao ensino de LE parecem ter sido mantidas de maneira
quase idntica, pois dispem a disciplina em um lugar de um componente curricular
que pode gozar de prticas diferenciadas:
47
[E.5] Art. 24. A educao bsica, nos nveis fundamental e mdio, ser organizada
de acordo com as seguintes regras comuns:
(...)IV - podero organizar-se classes, ou turmas, com alunos de sries distintas,
com nveis equivalentes de adiantamento na matria, para o ensino de lnguas
estrangeiras, artes, ou outros componentes curriculares; (cf. Lei n. 9394 de 20
de dezembro de 1996).
E, pela primeira vez, garante LE carter de obrigatoriedade no ensino
fundamental e mdio:
[E.6] Art. 26. Os currculos do ensino fundamental e mdio devem ter uma base
nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e
estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas
caractersticas regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da
clientela.
5 Na parte diversificada do currculo ser includo, obrigatoriamente, a partir da
quinta srie, o ensino de pelo menos uma lngua estrangeira moderna, cuja
escolha ficar a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da
instituio. (idem)
Quanto poltica de ensino de LE, o ltimo acrscimo que pudemos observar
foi a lei 11.161 de 5 de agosto de 2005, que torna obrigatrio o oferecimento do
espanhol no ensino mdio:
[E.7] Art. 1o O ensino da lngua espanhola, de oferta obrigatria pela escola e
de matrcula facultativa para o aluno, ser implantado, gradativamente, nos
currculos plenos do ensino mdio.
48
Nesse percurso, percebemos que, apenas em 1996, o Estado se compromete
com o oferecimento gradativo de LE no ensino oficial (o que no necessariamente
garante o acesso e o sucesso dos alunos do ensino oficial LE), mas parece
apontar na direo de uma fixao legal do lugar da LE na escola pblica por meio
da instituio de sua obrigatoriedade (isto expresso linguisticamente por ser
includo obrigatoriamente [E6] e oferta obrigatria [E7]), ao mesmo tempo que
retoma a adaptao do currculo escola ao condicion-la a estar dentro das
possibilidades da instituio. Assim, o efeito de obrigatoriedade diludo pelo
condicionamento do oferecimento s condies da instituio.
Tal reforma no currculo, mediante regulamentao legal, aparentemente
representa o primeiro passo em direo ao aumento no acesso das populaes de
baixa renda LE, o que desestabilizaria o lugar de exclusividade que a elite at
ento possua. Insistimos na questo da aparncia desse acesso, pois o
oferecimento condicionado s possibilidades da instituio [E.6]. Em termos
prticos, isso significa que se a instituio no puder (por questes de falta de
recursos, de profissionais ou de interesse dos dirigentes da escola) a comunidade
escolar no encontrar na legislao o respaldo para exigir seu direito do Estado. O
sentido se encontra, portanto, difuso entre o direito garantido e a condio
preexistente da escola, deslizando de ser includo obrigatoriamente para dentro das
possibilidades da instituio, movimento que anula a direo de obrigatoriedade.
Observamos que quanto mais se populariza o ensino, menos o Estado se
compromete com o oferecimento de determinados componentes curriculares.
Passamos de um discurso prescritivo e autoritrio sobre LE a ser oferecida s elites
[E1] para dizeres difusos quanto a real posio do Estado com relao ao seu
oferecimento s classes populares [E6]. Parece-nos que a oferta de LE consta da lei
49
de maneira pro forma nos documentos mais recentes, como se fosse uma incluso
mascarada desse elemento no currculo, uma incluso que no encontra respaldo
na lei quando da necessidade de ser acessada pelas populaes mais vulnerveis
cujos entornos no possibilitam o alcance a esse produto elitista. Dessa forma, a lei,
ao mesmo tempo em que apresenta a LE como desejvel, no garante o direito
popular ao seu acesso, pois prioriza as possibilidades da instituio, constituindo-se,
assim, em um discurso de desestabilizao apenas aparente e funcionando,
paradoxalmente, de maneira a garantir a manuteno das condies j existentes.
A Educao Infantil e ao Ensino Fundamental, no perodo relatado, sofreram
uma srie de reformas e tentativas de implantao. O Ensino Fundamental (que
tambm j foi primeiras letras e ensino primrio), a exemplo de todas as polticas
educacionais que analisamos, teve carter descentralizado e descontnuo. A
legislao federal esteve, em grande parte dos documentos, direcionada em obrigar-
se e desobrigar-se quanto ao oferecimento dessa instruo, assim como estipular a
faixa etria das crianas que deveriam frequentar cada segmento. At a
promulgao do Estatuto da Criana e do Adolescente, em 1990, podemos afirmar
com segurana que h um silncio macio nos documentos federais a respeito da
figura e do lugar da criana na sociedade, um apagamento completo das
caractersticas e do papel desses seres sociais.
A Educao Infantil teve, at meados do sculo passado, um atributo
assistencialista e foi direcionada principalmente s mes pobres que no podiam
cuidar de seus filhos durante a jornada de trabalho. A primeira legislao que
garante a educao infantil como direito da populao a de 1988, que tem sua
organizao detalhada pela LDB de 1996, nos seguintes termos respectivamente:
50
Art. 208. O dever do Estado com a educao ser efetivado mediante a garantia de:
I - ensino fundamental, obrigatrio e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele no tiveram acesso na idade prpria;
(...)
IV - educao infantil, em creche e pr-escola, s crianas at 5 (cinco) anos de idade;
(Constituio de 1988, Captulo III)
Seo II
Da Educao Infantil
Art. 29. A educao infantil, primeira etapa da educao bsica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criana at seis anos de idade, em seus aspectos fsico, psicolgico, intelectual e social, complementando a ao da famlia e da comunidade.
Art. 30. A educao infantil ser oferecida em:
I - creches, ou entidades equivalentes, para crianas de at trs anos de idade;
II - pr-escolas, para as crianas de quatro a seis anos de idade.
Art. 31. Na educao infantil a avaliao far-se- mediante acompanhamento e registro do seu desenvolvimento, sem o objetivo de promoo, mesmo para o acesso ao ensino fundamental.
( LEI N 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996.)
Mas de que maneira essa legislao constri a relao Estado-criana? Em
primeiro lugar, observamos uma representao da criana como um ser em
desenvolvimento que deve ser garantido (em seus aspectos diversos) pela educao
infantil, e, portanto, pelo Estado:
[E.8] A educao infantil, primeira etapa da educao bsica, tem como finalidade
o desenvolvimento integral da criana at seis anos de idade, em seus
51
aspectos fsico, psicolgico, intelectual e social (...) (Lei n. 9394 de 20 de
dezembro de 1996)
Ao tratar das atribuies do Estado frente ao desenvolvimento
infantil,estipula-se o raio de ao esperado, ou seja:
Aparentemente, ao objetivar o desenvolvimento integral da criana,
apresenta-se um discurso normativo, descritivo dos aspectos, incluindo a avaliao:
[E.9] Na educao infantil a avaliao far-se- mediante acompanhamento e
registro do seu desenvolvimento, sem o objetivo de promoo, mesmo para o
acesso ao ensino fundamental.
Nos excertos [E.8] e [E.9], a descrio das responsabilidades do Estado
estabelecida pelo uso dos substantivos desenvolvimento e avaliao, ambos
derivados de verbos. Esse processo, denominado nominalizao, discutido sob a
Des
envo
lvim
ento
inte
gral
da
cria
na
aspecto fsico
aspecto psicolgico
aspecto intelectual
aspecto social
52
tica discursiva por Fairclough(1992, p. 223). Sob tal perspectiva, o processo em si
relegado ao segundo plano, o tempo e a modalidade so ocultos e, tanto o agente
quanto o paciente tornam-se implcitos. O emprego das categorias abstratas
desenvolvimento e avaliao tem o efeito de apagar as aes envolvidas em sua
concretizao, tornando o sentido menos discutvel. Segundo o trabalho de Osakabe
(1979) sobre a argumentao no discurso poltico, o emprego de noes vagas para
a referncia de processos aponta para o esvaziamento da funo informativa do
texto e para intensificao de sua funo argumentativa, pois toma como
pressuposto uma srie de noes que so discutveis, fixando, portanto, o
significado, e dificultando a visibilidade das aes implicadas, o que colabora para o
efeito persuasivo:
Elas constituem um conjunto plenamente satisfatrio de noes que o locutor pressupe que sejam aceitas pelo prprio ouvinte, e que o so, na medida em que so utilizadas no seu carter mais genrico e mais confuso. Isso explica o fato de elas ocorrerem sempre como instncias ltimas (dominantes ou interessadas) e jamais ocorram (...) enquanto objeto de discusso. (OSAKABE, 1979, p. 67)
Tais noes vagas, ao dificultarem sua discusso, tm como efeito
pragmtico o enfraquecimento da garantia do direito de acesso da populao aos
processos descritos. A prestao de direitos resvala na frouxido do favor prestado
quele que no consegue ser autossuficiente. Podemos tambm notar essa posio
acerca do excerto no qual se estabelece a relao entre o Estado e a criana:
[E.10] (...) complementando a ao da famlia e da comunidade. (Lei n. 9394 de 20
de dezembro de 1996)
Ao nomear sua funo como complementar ao da famlia e da
comunidade [E.10], novamente o dizer do Estado aponta para uma regio de
53
obscurecimento dos processos envolvidos nas responsabilidades das instncias
participantes, que nos parece fruto da tenso entre os dizeres pastorais e neoliberais
que interagiram quando da produo da legislao.
Em primeiro lugar, retomaremos a referncia ao da famlia e da
comunidade. De que maneira caberia famlia agir? Alimentando a criana?
Ensinando noes bsicas de higiene? Ensinando rudimentos de linguagem? Sobre
qual parmetro de cuidados e conhecimentos caberia escola ser complementar?
H, nesse excerto, um espao de deslizamento de praticamente todos os referentes
(ao, famlia, comunidade), que aponta para uma volatilidade das expectativas de
ao de ambas as instncias, pois, nem a famlia pode cobrar o Estado quanto a
resultados especficos da educao infantil, nem o Estado pode delimitar seu escopo
de interveno, j que as aes que complementa no esto designadas de maneira
especfica. Como veremos adiante, a maleabilidade nas representaes de ao
tambm se encontra relacionada s questes de qualidade da educao pblica no
Brasil.
Novamente, vemos a responsabilidade de uma das partes (a famlia) ser
referida por meio de uma nominalizao. A criana, que se encontra entre a esfera
pblica e a privada, tem duas instncias de formao: a famlia e a escola, cujas
funes especficas no tm seus sentidos discutidos ou suas aes explcitas no
texto. No acreditamos que o Estado deva assumir primazia na educao das
crianas pequenas, entretanto, cremos que, ao contrrio do reconhecimento da
importncia formativa da famlia e da comunidade, tal indeterminao de papis na
lei aponta para a tenso entre duas formaes discursivas que tiveram forte
participao na gnese do documento legal: a pastoral e a neoliberal.
54
As pastorais catlicas tiveram presena bastante significativa nas discusses
que produziram nossa legislao educacional e cujas vozes ressoam principalmente
na delimitao do papel da educao estatal com relao funo da igreja.
Segundo Oliveira (2002), ao perder a luta pelo financiamento das escolas
confessionais pelos poderes pblicos, as pastorais catlicas lutaram para definir a
primazia da famlia e a comunidade na instruo das crianas. Tal delimitao indica
a resistncia das pastorais catlicas a cederem o lugar da educao, que, segundo
Foucault (1974 [1975]), um dos pilares da ao pastoral em sua relao com as
tcnicas de governabilidade. Marcando a primazia da famlia e da comunidade
(instncias de socializao nas quais a igreja ainda encontraria legitimidade de ao
na esfera pblica), busca-se manter a arte do pastorado. O autor afirma que o
pastorado age de maneira bastante prxima dos indivduos, acompanhando-os a
cada passo:
O pastorado deu lugar, no cristianismo a toda uma arte de conduzir, de dirigir, de levar, de guiar, de controlar, de manipular os indivduos, uma arte de segui-los e de empurr-los passo a passo, uma arte que tem a funo de encarregar-se dos homens coletiva e individualmente ao longo de toda a vida deles e a cada passo de sua existncia.(FOUCAULT, 1974 [1975], p. 219)
No podendo exercer tal arte dentro das escolas pblicas, os grupos
pastorais marcaram na lei a primazia da famlia sobre o Estado, para que ela
pudesse optar por servios de carter pastoral, os quais, a partir da instaurao da
lei em 1963, s poderiam ser prestados na esfera privada. Mas, no acreditamos
que apenas a fora pastoral tenha exercido presso no momento das deliberaes
da LDB. Mais que manter o espao aberto para as comunidades e famlias poderem
optar por uma educao confessional, acreditamos que a voz mais pungente na
55
delimitao da relao de complementaridade estado/famlia e respectivamente
pblico/privado a da orientao neoliberal da economia de mercado.
Ao colocar-se em segundo plano na ao educacional infantil, notamos que o
Estado parece apresentar caractersticas do que Bueno (2003) define como
pedagogia neoliberal. Tal pedagogia inclui princpios de mercado nos mecanismos
de ao do Estado, e os aproxima da lgica de competitividade. Segundo o autor:
Trata-se de uma pedagogia que ultrapassa os muros escolares, pois utiliza-se tambm dos meios de comunicao de massa, neles divulgando insistentemente os benefcios da lgica empresarial em oposio lerdeza burocrtica do Estado. A nova direita, ao privilegiar a tica de livre mercado, objetiva desvincular a noo da educao pblica de sua dimenso historicamente constituda de direito social e conquista democrtica. Em seu lugar, a educao afirmada como mercadoria a ser livremente consumida por usurios no mercado (BUENO, 2003, p.83)
Assim, a educao pblica coloca-se, desde seu incio, de modo tmido,
objetivando apenas complementar a ao da famlia enquanto que a educao
privada trata de definir e veicular suas metas, parmetros e resultados. Segundo
Nunes (2003), em nosso pas, as aes advindas do Estado para as crianas so
geralmente rotuladas como polticas sociais ou assistenciais. Isto indica uma
dificuldade que as prticas governamentais tm para tratar das questes privadas.
Como as crianas dizem respeito aos pais e famlia mais prxima, as esferas em
que pode haver influncia externa so a sade e a educao. Enquanto as elites
tm alcance aos servios privados, os pobres tm de se utilizar de servios pblicos,
que geralmente apresentam qualidade inferior. Assim, o que de direito acaba
sendo taxado como assistencialismo, um favor que o Estado faz aos pobres. A
prpria organizao poltica do Estado evidenciava essas representaes. Segundo
Marclio (2005, p. 250):
56
At 1963, as creches estavam na rbita do Estado, no Servio Social de Menores, de assistncia ao menor carente, e eram internatos, obras assistenciais, proteo ao menor abandonado, sem famlia.
Embora o desenvolvimento urbano tenha gerado as condies para a
multiplicao de instncias exteriores de socializao infantil, at 1963 as creches e
escolas para crianas pequenas eram destinadas a outra categoria: a dos menores,
o que fez com que a educao infantil se ampliasse como atividade de
desenvolvimento apenas no mbito privado de ensino. Na esfera pblica, su