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PUBLICAÇÃO QUADRIMESTRAL EDITADA PELO

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)Diretoria Nacional

Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ)Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 3882-9140, 3882-9141Cel.: (21) 9695-7663 – Fax.: (21) 2270-1793E-mail: [email protected] page: http://www.ensp.fiocruz.br/parcerias/cebes/cebes.html

DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2000-2002)

PresidenteSarah Escorel (RJ)1O Vice-PresidenteArmando de Negri Filho (RS)2O Vice-PresidenteEduardo Freese de Carvalho (PE)3O Vice-PresidenteCarlos Botazzo (SP)4O Vice-PresidenteAlcides Silva de Miranda (CE)1O SuplenteRogério Renato Silva (SP)2O SuplenteMaria José Scochi (PR)

CONSELHO FISCAL

Anamaria Testa Tambellini (RJ), Paulo Duarte de Carvalho Amarante (RJ) &Ary Carvalho de Miranda (RJ)

CONSELHO CONSULTIVO

Antônio Ivo de Carvalho (RJ), Antônio Sérgio da Silva Arouca (RJ),Emerson Elias Merhy (SP), Lia Giraldo da Silva Augusto (PE),Luiz Augusto Facchini (RS), Gastão Wagner de Souza Campos (SP),Gilson de Cássia M. de Carvalho (SP), Jorge Antônio Zepeda Bermudez (RJ),José Ruben de Alcântara Bonfim (SP), Roberto Passos Nogueira (DF),José Gomes Temporão (RJ), Luíz Carlos de Oliveira Cecilio (SP) &Paulo Sérgio Marangoni (ES)

CONSELHO EDITORIAL

CoordenadorPaulo Duarte de Carvalho Amarante (RJ)

Ana Maria Malik (SP), Célia Maria de Almeida (RJ), Francisco de Castro Lacaz (SP),Guilherme Loureiro Werneck (RJ), Jairnilson da Silva Paim (BA),José da Rocha Carvalheiro (SP), Lígia Giovanella (RJ), Luis Cordoni Jr. (PR),Maria Cecília de Souza Minayo (RJ), Naomar de Almeida Filho (BA),Nilson do Rosário Costa (RJ), Renato Peixoto Veras (RJ),Ronaldo Bordin (RS) & Sebastião Loureiro (BA)

SECRETARIA EXECUTIVA

Ana Cláudia Gomes GuedesRenata Machado da Silveira

RESPONSÁVEL PELA EDIÇÃO

Ana Cláudia Gomes Guedes

REVISÃO DE TEXTO

Carlos Frederico Manes Guerreiro – portuguêsJuliana Monteiro Samel – inglês

FOTOS DA CAPA

Alvaro Funcia Lemme

CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Adriana Carvalho & Carlos Fernando Reis da Costa

IMPRESSÃO E ACABAMENTO

Armazém das Letras Gráfica e Editora

TIRAGEM

3.000 exemplares

Apoio:

Indexação:

Literatura Latino-Americana e do Caribe

em Ciências da Saúde (LILACS)

A Revista Saúde em Debate é associada à

Associação Brasileira de Editores Científicos

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Rio de Janeiro v.25 n.58 maio/ago. 2001

ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

ISSN 0103-1104

CONCEITUALMENTE A CAPA EXPRESSA A RICA PRODUÇÃO POLÍTICA,ARTÍSTICA E CULTURAL DO MOVIMENTO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA

FONTE – LABORATÓRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM SAÚDE MENTAL (LAPS/FIOCRUZ)

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2 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999

SUMÁRIO

EDITORIAL ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 3

ARTIGOS ORIGINAIS

Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergenteDeinstitutionalization in Mental Health: considerations on the emergent paradigmJacileide Guimarães, Soraya Maria de Medeiros, Toyoko Saeki &Maria Cecília Puntel de Almeida ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 5

As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as premissas do Modo PsicossocialThe National Conferences of Mental Health and the premises of the psychosocial wayAbílio da Costa-Rosa,Cristina Amélia Luzio & Silvio Yasui ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 12

A constituição de novas práticas no campo da Atenção Psicossocial: análise de doisprojetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no BrasilThe forming of new practices in the Psychiatric-social care: review of two pioneer projects in thePsychiatric Reform in BrazilPaulo Duarte de Carvalho Amarante & Eduardo Henrique Guimarães Torre ○ ○ ○ ○ ○ ○ 26

Da avaliação em saúde à avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximaçõesteóricas e questões atuaisFrom health assesment to mental Health Assesment: birth, theoretical approaches andcurrent issuesPatty Fidelis de Almeida & Sarah Escorel

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 35

Ambiente construído e comportamento espacial na instituição psiquiátrica: questõeséticas em Observação ParticipanteBuilt environment and spatial behaviour in psychiatric institution: ethical issues inParticipative ObservationMirian de Carvalho

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 48

Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidadeSheltered Homes: a political-clinical apparatus in the locked relationship with the cityRegina Benevides de Barros & Silvia Josephson

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 57

O usuário de psicofármacos num Programa Saúde da FamíliaThe psycopharmic user in a Family Health ProgramMaria Célia F. Danese & Antonia Regina F. Furegato

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 70

A construção da diferença na assistência em Saúde Mental no município: aexperiência de São Lourenço do Sul – RSThe construction of difference in Mental Health assistance in municipalities: the experience ofSão Lourenço do Sul – RSChristine Wetzel & Maria Cecília Puntel de Almeida ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 77

Qualidade de vida de pessoas egressas de instituições psiquiátricas:o caso de Ilhéus – BAQuality of life in patients discharged from psychiatric institutions: the Ilhéus – BA, caseRozemere Cardoso de Souza & Maria Cecília Morais Scatena ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 88

Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substutivos deSaúde MentalClinical ptractice: denied words – on clinical practices in Mental Health substitutive servicesRosana Onocko Campos ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 98

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999 3

EDITORIAL

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 3, maio./ago. 2001 3

Este número da Saúde em Debate é dedicado à Saúde

Mental e será lançado por ocasião da III Conferên-

cia Nacional de Saúde Mental, em Brasília, no período

entre 11 e 15 de dezembro de 2001.

Desde os primórdios da Reforma Sanitária, no iní-

cio do CEBES que completa 25 anos, o campo da Saúde

Mental têm sido vanguarda e integrante do movimento

sanitário, resguardando suas especificidades que in-

tegram o Movimento da Reforma Psiquiátrica no Bra-

sil e, ao mesmo tempo, inserindo objetos, teorias,

temas, atores e arenas no movimento mais geral que

luta pela transformação das condições de saúde da

população brasileira.

Desnecessário enfatizar a importância da III Confe-

rência Nacional de Saúde Mental, desejada há mais de

uma década e que se realiza num contexto nacional e

internacional auspicioso. Há cerca de dez anos vêm

sendo implantados serviços substitutivos e novas prá-

ticas assistenciais e este é um bom momento para ava-

liar avanços e impasses. Depois de muitos anos tra-

mitando no congresso, e de muita luta do movimento

social por uma sociedade sem manicômios, foi apro-

vada a Lei da Reforma Psiquiátrica abrindo possibili-

dades de inovação e de regulação. A OMS declarou 2001

o ano da Saúde Mental com a proposta “cuidar sim,

excluir não”. Mas, estas boas novas inserem-se no velho

e conhecido cenário de pobreza e extremas desigual-

dades sociais. Portanto, há que se pensar nas necessi-

dades específicas de proteção social dos portadores de

sofrimento psíquico no interior do contexto de recons-

trução de um efetivo sistema de proteção social.

Este número é a contribuição do CEBES aos importan-

tes debates da III Conferência Nacional de Saúde Men-

tal. Desinstitucionalização, novas práticas, práticas clí-

nicas nos serviços substitutivos, avaliação, relações dos

lares abrigados com a cidade, uso de psicofármacos no

PSF, experiências municipais de assistência em saúde

mental e qualidade de vida dos egressos de instituições

psiquiátricas são os temas abordados além do artigo

que recupera as conferências anteriores na área de Saú-

de Mental que nos lembra e relembra que a Reforma

Sanitária em geral, e a Reforma Psiquiátrica em parti-

cular, são processos, nem contínuos nem lineares e que

dependem da participação de todos os segmentos para

alcançar efetivamente os objetivos desejados: inclusão,

solidariedade e cidadania emancipada.

A Diretoria Nacional

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4 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999

QUEM SOMOS

Desde a sua criação, em 1976, o CEBES tem como centro de seu projeto a

luta pela democratização da saúde e da sociedade. Nesses 25 anos, como

centro de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espaço esteve

assegurado como produtor de conhecimentos com uma prática política concreta,

seja em nível dos movimentos sociais, das instituições ou do parlamento.

Durante todo esse tempo, e a cada dia mais, o CEBES continua empenhado

em fortalecer seu modelo democrático e pluralista de organização; em orientar

sua ação para o plano dos movimentos sociais, sem descuidar de intervir nas

políticas e práticas parlamentares e institucionais; em aprofundar a crítica e

a formulação teórica sobre as questões de saúde; e em contribuir para a

consolidação das liberdades políticas e para a constituição de uma sociedade

mais justa.

A produção editorial do CEBES tem sido fruto de um trabalho coletivo. Estamos

certos que continuará assim, graças a seu apoio e participação.

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Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 5

ARTIGOS ORIGINAIS

Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre oparadigma emergente1

Deinstitutionalization in Mental Health: considerations on the emergent paradigm

Jacileide Guimarães2

Soraya Maria de Medeiros3

Toyoko Saeki4

Maria Cecília Puntel de Almeida5

1 Trabalho elaborado a partir da disciplina

Seminários de Saúde Mental do Mestrado

de Enfermagem Psiquiátrica e Saúde

Mental da Escola de Enfermagem de

Ribeirão Preto da Universidade de São

Paulo – EERP/ USP, 1999.

2 Mestranda em Enfermagem Psiquiátrica

e Saúde Mental na Escola de Enfermagem

de Ribeirão Preto da Universidade de São

Paulo – EERP/USP.

3 Professora Doutora do Departamento de

Enfermagem da Universidade Federal do

Rio Grande do Norte.

e-mail: [email protected]

4 Professora Doutora do Departamento de

Enfermagem Psiquiátrica e Ciências

Humanas da EERP/USP.

e-mail: [email protected]

5 Professora Doutora do Departamento

de Materno Infantil e Saúde Pública da

EERP/USP.

e-mail: [email protected]

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar a pós-modernidade

epistemológica, social e política do saber/fazer psiquiátrico no Brasil. Para

tanto partimos dos pressupostos do Paradigma Emergente no âmbito

epistemológico e dos Novos Movimentos Sociais (NMS) no âmbito social e

político ambos segundo Santos (1997a, 1998), acrescido das experiências

práticas da assistência em saúde mental no Brasil nas duas últimas décadas

(1979-1999). Verificamos a congruência existente entre os movimentos de

mudança da atenção psiquiátrica e as prerrogativas do paradigma

emergente, podendo-se destacar a complexidade e complementariedade

exigida por esse paradigma e defendida pelas experiências brasileiras de

desinstitucionalização de orientação basagliana.

PALAVRAS-CHAVE: desinstitucionalização; saúde mental; paradigma emergente.

ABSTRACT

This essay aims to analyze the epistemological, social and political post-

modernity of psychiatric knowledge/performance in Brazil. With that objective,

we started from the presuppositions of the Emergent Paradigm in the

epistemological level and of the New Social Movements in the social level,

both according to Santos (1997a, 1998), in addition to practical experience

on mental health care in Brazil in the past two decades (1979-1999). We

observed the congruence that exists between both movements related to

psychiatric health care change and the prerogatives of the emergent

paradigm. The complexity and complementarity required by such paradigm,

which is defended by the Brazilian deinstitutionalization experiences based

on the theories of Basaglia, can be highlighted.

KEY WORDS: deinstitutionalization; mental health; emergent paradigm.

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GUIMARÃES, J. et al.

6 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como ob-

jetivo analisar a pós-modernida-

de epistemológica, social e políti-

ca do saber/fazer psiquiátrico no

Brasil nas duas últimas décadas

(1979 - 1999).

Santos (1998: 37) define as

transformações epistemológicas no

modo de se fazer/ver ciência ou o

Paradigma Emergente como um

“paradigma de um conhecimento

prudente para uma vida decente”

assim atestando a novidade de que

a ciência comporta, simultaneamen-

te ao aspecto estritamente investi-

gativo, o aspecto social da vida das

pessoas. Com base neste pensamen-

to tecido como um discurso sobre

as ciências e introdução a uma ci-

ência pós-moderna, este autor de-

fende um conjunto de teses que têm

em comum a superação do paradig-

ma dominante1, sobre o que nos in-

teressa citar sucintamente:

1. Todo o conhecimento científico-

natural é científico-social;

2. Todo o conhecimento é local

e total;

3. Todo o conhecimento é autoco-

nhecimento;

4. Todo o conhecimento cientí-

fico visa constituir-se em sen-

so comum.

A primeira tese – Todo o conhe-

cimento científico-natural é cientí-

fico-social – fudamenta-se na su-

peração das dicotomias na não-du-

alidade do conhecimento, abolin-

do-se assim o sentido que continha

interpretações estanques como, por

exemplo, natureza/cultura, natural/

artificial, observador/observado,

saúde/doença, razão/desatino. A

segunda tese – Todo o conhecimen-

to é local e total – visa a um co-

nhecimento interdisciplinar que

una ao que estudamos” (SANTOS,

1998: 53). A quarta tese – Todo o

conhecimento científico visa cons-

tituir-se em senso comum –, por

fim, visa ao diálogo entre o conhe-

cimento científico e o senso comum

enquanto possibilidade qualitativa

de ampliação do fenômeno obser-

vado e em detrimento do autorita-

rismo e dominação de um sobre o

outro, ou seja, do primeiro sobre

o segundo.

Ressalta-se a importância deci-

siva do desvelamento pelo paradig-

ma emergente, da chamada neutra-

lidade científica – preconizada pelo

paradigma dominante – na qual o

observador separado, cindido do

observado atuava sobre este sem

no entanto responsabilizar-se so-

cialmente, enquanto que o obser-

vado por sua vez, possuía um lu-

gar passivo e coisificado no proces-

so de investigação.

No âmbito social e político, San-

tos (1997a) atesta um estado pós-

moderno dos acontecimentos atra-

vés dos denominados Novos Mo-

vimentos Sociais (NMSs), presen-

tes em todo o mundo, principal-

mente nas décadas de 70 e 80, de

forma mais ou menos intensa con-

forme o estágio de desenvolvimen-

to econômico local.

Os NMSs são os movimentos ti-

picamente pós-industriais que de-

1 Dentre vasta bibliografia sobre o paradigma científico dominante, pode-se consultar o próprio Santos (1989, 1998).

perceba a totalidade dos aconteci-

mentos específicos, complexifican-

do-os e assim enriquecendo-os. A

terceira tese - Todo o conhecimen-

to é auto-conhecimento - refere-se

a integração e intencionalidade en-

tre sujeitos e não entre ‘um sujeito

e um objeto’, assim trata-se de “um

conhecimento compreensivo e ín-

timo que não nos separe e antes nos

NO ÂMBITO SOCIAL E POLÍTICO,SANTOS (1997A) ATESTA UM ESTADO

PÓS-MODERNO DOS ACONTECIMENTOS

ATRAVÉS DOS DENOMINADOS NOVOS

MOVIMENTOS SOCIAIS (NMSS)

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Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 7

nunciam as formas de opressão

cotidianas contidas na violência,

na poluição, no sexismo, no racis-

mo e no produtivismo, dentre ou-

tras formas de exclusão. Para San-

tos (1997a: 258), os NMSs trazem

como “novidade maior tanto uma

crítica da regulação social capita-

lista como uma crítica da emanci-

pação social socialista tal como

foi defendida pelo marxismo”.

Assim denunciando ‘com uma ra-

dicalidade sem precedentes os ex-

cessos de regulação da moderni-

dade’ e contribuindo para a cons-

trução, no dizer deste autor, de

uma equação que comungue si-

multaneamente ‘subjetividade, ci-

dadania e emancipação’.

Segundo Santos (1997a: 257), a

América Latina destaca-se dos de-

mais países periféricos e semiperi-

féricos com relação a atuação dos

NMSs, sendo que aqui estes movi-

mentos são peculiarmente ‘nutridos

por inúmeras energias’ que compi-

lam desde reivindicações pós-ma-

terialistas a lutas por condições bá-

sicas de sobrevivência, diferente-

mente do que se passa nos países

centrais onde os movimentos são

‘puros’ ou bem definidos.

Com relação ao Brasil particu-

larmente, tem-se na ‘década de se-

tenta e de oitenta um notável flo-

rescimento de NMSs’ (Santos,

1997a), atente-se para o momento

político de luta pela transição de-

mocrática pós-ditadura que se de-

lineava. Vale situar esse momento

crucial para a transformação da

sociedade brasileira, denominado

por Sader (1990) como ‘entre o ve-

lho e o novo’. Segundo Sader (1990:

48), o ponto de partida da transi-

ção é claro: uma ditadura militar

permeada por uma ideologia de se-

gurança nacional favorável ao

grande capital monopolista e finan-

ceiro nacional e internacional. Já o

ponto de chegada é menos claro:

um regime híbrido, em que deixaram

de existir as leis de exceção, em que

pacote de medidas que revogava dis-

posições que limitavam os direitos

políticos estabelecidos pela ditadu-

ra militar (Sader, 1990: 48).

Mas, à revelia da menor clareza

do ponto de chegada da transição,

não se pode negar o surgimento de

algo novo que se podia dizer germe

da redemocratização do país:

A chamada Nova República foi

sendo instaurada assim como uma

mistura híbrida entre o velho e o

novo. Inegavelmente se trata de um

novo regime. A forma de domina-

ção política foi modificada, subs-

tituindo as instâncias militares

por formas parlamentares: a nova

Constituição fortaleceu o papel do

Congresso, as liberdades individu-

ais foram ampliadas, o direito de

organização política foi explicita-

do, introduziram-se direitos da ci-

dadania que antes não constavam

de nosso sistema jurídico, tem vi-

gência, ao menos teoricamente, um

Estado de direito, baseado em leis

votadas por um Parlamento eleito

pelo voto universal e direto (Sader,

1990: 54).

Assim finalizamos a década de

70 e adentramos a década de 80 com

um Brasil efervescente, manifesta-

das as contradições e reduzido o

poder ditatorial das elites dirigen-

tes. A sociedade civil despertava de

um pesadelo que durara vinte e um

anos e havia muito o que ser ques-

tionado. Emergem denúncias e in-

dignação acerca da questão psiqui-

átrica no âmbito da saúde.

os partidos políticos, as associações

civis e a grande imprensa não en-

contram limitações do ponto de vis-

ta legal. Os próprios militares se re-

tiraram do centro da cena política

para um lugar mais discreto. Dei-

xou de haver presos políticos, os ór-

gãos de segurança tiveram seu pa-

pel diminuído, foram restabelecidos

os mecanismos eleitorais na sua ple-

nitude. Antes mesmo da nova Cons-

tituição, o Congresso já havia remo-

vido o que considerou como ‘entu-

lhos autoritários’, aprovando um

PARA SANTOS (1997A: 258),OS NMSS TRAZEM COMO “NOVIDADE

MAIOR TANTO UMA CRÍTICA DA REGULAÇÃO

SOCIAL CAPITALISTA COMO UMA CRÍTICA DA

EMANCIPAÇÃO SOCIAL SOCIALISTA TAL

COMO FOI DEFENDIDA PELO MARXISMO”

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GUIMARÃES, J. et al.

8 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001

O PROCESSO SAÚDE/DOENÇA MENTAL:A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO SOB O SIGNO

DO PARADIGMA EMERGENTE

Feita esta breve localização teó-

rico-metodológica à luz do Paradig-

ma Emergente e dos Novos Movi-

mentos Sociais conforme Santos

(1997a, 1998), retomamos o recor-

te das duas últimas décadas no Bra-

sil no âmbito das políticas e práti-

cas em saúde mental.

A saúde mental brasileira nas

duas últimas décadas, mais precisa-

mente de 1979 a 1999, passou por

transformações através de avanços

que constituíram e constituem o pro-

cesso contemporâneo desta prática.

Em 1979, o Brasil recebe a visi-

ta do psiquiatra italiano Franco Ba-

saglia, cujo discurso sobre a desins-

titucionalização do aparato psiqui-

átrico repercute no meio social e

político que passa por contestações

e desejos de mudança em uma soci-

edade que vivencia um processo de

abertura após anos de regime mili-

tar ditatorial. Surge o Movimento

dos Trabalhadores em Saúde Men-

tal – então um NMS – que fortaleci-

do pela sociedade civil organizada

e pelas primeiras experiências de

desinstitucionalização, destacada-

mente a experiência santista, cul-

mina em 1989 com o movimento de

Reforma Psiquiátrica, a criação do

Projeto de Lei 3657 de autoria do

deputado federal Paulo Delgado (PT-

MG) – que dispõe sobre a supera-

ção do manicômio e a construção

de assistência substitutiva – e com

a Luta Antimanicomial. Em janeiro

de 1999, o referido projeto foi apro-

vado no Senado, devendo, para tor-

nar-se lei, ser aprovado em nova

votação na Câmara. Em abril deste

ano (2001) foi aprovado e sancio-

nado pelo Presidente da República,

tornando-se lei. Temos passado

pouco mais de duas décadas (1979

– 1999), marcadas por indignação,

contestação, lutas e conquistas sig-

nificativas de um processo que se

Amarante (1999: 48) destaca a

dualidade do processo epistêmico

científico dominante onde

a natureza de um conceito ou teoria

científica significa uma determinada

forma pela qual o homem se relacio-

na com a natureza. A ciência moder-

na, de base predominantemente po-

sitivista, vem exercitando um proces-

so de objetivação da natureza, em que

a relação que se estabelece é entre

sujeitos epistêmicos, de um lado, e

de coisas e objetos de outro.

Esse autor ressalta o pensamen-

to de Franco Basaglia, que diz que é

preciso pôr a doença, e não o homem,

entre parênteses, assim invertendo

a tradição psiquiátrica e cientifica-

mente moderna de objetivação do

sujeito. Com tal inversão, se estabe-

lece uma ruptura operada pela Luta

Antimanicomial e pela Reforma Psi-

quiátrica brasileira, de orientação

basagliana, com o método da ciên-

cia moderna. No dizer de Amarante

(1999: 48), podemos conferir:

Neste sentido, o que vimos deno-

minando como Luta Antimanicomial,

ou como Reforma Psiquiátrica, tem

como princípio básico uma ruptura

com essa tradição científica [a ciên-

cia moderna ou paradigma dominan-

te]. Em primeiro lugar, por romper com

o processo de objetivação da loucura

e do louco (inscrevendo a questão ho-

mem-natureza ou a questão do nor-

mal-patológico em termos éticos, isto

é, de relação e não de objetivação). Em

segundo lugar, por romper com o pro-

cesso de patologização dos comporta-

inspira em um conhecimento que

pressupõe o diálogo como instru-

mento da contratualidade estabe-

lecida nos inter-relacionamentos,

sendo assim, um processo delibe-

radamente contra a opressão, onde

é seguro afirmar a presença decisi-

va dos pressupostos deste estudo

– ou seja, do Paradigma Emergen-

te e da atuação dos Novos Movi-

mentos Sociais segundo Santos

(1997a, 1998) – no âmbito da saú-

de mental brasileira.

A SAÚDE MENTAL BRASILEIRA NAS DUAS

ÚLTIMAS DÉCADAS, MAIS PRECISAMENTE

DE 1979 A 1999, PASSOU POR

TRANSFORMAÇÕES ATRAVÉS DE AVANÇOS

QUE CONSTITUÍRAM E CONSTITUEM OPROCESSO CONTEMPORÂNEO DESTA PRÁTICA

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Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 9

mentos humanos, com base em um

pressusposto teleológico ou ontológi-

co de normalidade. Daí advém o prin-

cípio de colocar a doença mental en-

tre parênteses, como forma de inver-

ter a tradição psiquiátrica, que é a de

colocar o homem entre parênteses para

se ocupar da doença, como ressaltou

Basaglia (Amarante, 1999: 48).

E relembrando as quatro teses de

Santos (1998), vejamos o que ain-

da nos diz Amarante (1999: 49) so-

bre a démarche de colocarmos a

doença entre parênteses:

Colocar um ‘fenômeno’ entre pa-

rênteses representa uma importante

demarcação epistemológica no âmbi-

to da tradição do pensamento filosó-

fico existencial: consiste na idéia de

que o ‘fenômeno’ não existe em si,

mas é construído pelo observador, é

um constructo da ciência, e só existe

enquanto inter-relação com o obser-

vador. E, portanto, se o observador,

sujeito do conhecimento, constrói o

‘fenômeno’, este é parte do primeiro,

é parte de sua cultura e de sua sub-

jetividade (Amarante, 1999: 49).

Daí a complexidade e a comple-

mentariedade da mudança em saú-

de mental acentuada por Amaran-

te (1999: 50), em pelo menos qua-

tro campos: a) o teórico-conceitu-

al; b) o técnico-assistencial; c) o

jurídico-político e d) o sócio-cultu-

ral. Ou seja, trata-se de uma inter-

relação de reconstrução de concei-

tos; de espaços substitutivos de

sociabilidade de possibilidades plu-

rais e singulares concretas para

sujeitos concretos; de direito ao tra-

balho, à família, aos amigos, ao

cotidiano da vida social e coletiva;

de solidariedade e inclusão de su-

jeitos em desvantagem social.

Assim o processo de desinstitu-

cionalização da psiquiatria brasilei-

ra, enquanto conhecimento e práti-

ca centrados no paradigma emer-

gente, inscreve-se na contra-mão do

(1997b: 117), as “imagens desesta-

bilizadoras” são os veículos, no tem-

po presente, portadores das “inter-

rogações poderosas” – “tomadas de

posições apaixonadas, capazes de

sentidos inesgotáveis”. As imagens,

potencializam as interrogações ao

flagrarem o fato de que “tudo de-

pende de nós e tudo podia ser dife-

rente e melhor”.

PARA UM CONCEITO EMERGENTEDE SAÚDE MENTAL

Para um conceito de saúde men-

tal assentado no paradigma emer-

gente é seguro indicar a necessida-

de fundamental de se conhecer a

historicidade da chamada psiquia-

tria moderna, resguardando as suas

conquistas e superando os limites

por ela determinados, atendo-se no

dizer de Santos ao “paradigma de

um conhecimento prudente para

uma vida decente”. Aqui faz-se

oportuno reiterarmos a necessida-

de de uma vigilância constante con-

tra o atavismo manicomial real ou

travestido na psiquiatrização do

cotidiano ou no institucionalismo

sutil, sobre o qual Amarante (1999:

49) ressalta a importância de estar-

mos atentos e munidos com estra-

tégias de enfrentamento capazes de

identificar e propugnar “um certo

olhar que classifica desclassifican-

2 Sobre esta questão confira por exemplo: FERNANDES, M. I. A.; SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S. (Orgs.), 1999. Fim de século: aindamanicômios? São Paulo: IPUSP.

projeto científico, político e econô-

mico dominante: o neoliberalismo2.

Uma novidade fruto da concepção

epistemológica que “se assenta na

idéia de que não há só uma forma

de conhecimento, mas várias, e de

que é preciso optar pela que favore-

ce a criação de imagens desestabi-

lizadoras e a atitude de inconformis-

mo perante elas”. Para Santos

“...NÃO HÁ SÓ UMA FORMA DE

CONHECIMENTO, MAS VÁRIAS,E DE QUE É PRECISO OPTAR PELA QUE

FAVORECE A CRIAÇÃO DE IMAGENS

DESESTABILIZADORAS E A ATITUDE DE

INCONFORMISMO PERANTE ELAS”

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GUIMARÃES, J. et al.

10 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001

do, que inclui excluindo, que nomeia

desmerecendo, que vê sem olhar”.

Não seria fácil a luta e manu-

tenção de um tal paradigma emer-

gente. No entanto, a saúde mental

brasileira, nas duas últimas déca-

das, tem demonstrado que é possí-

vel. Hoje, embora o projeto neolibe-

ral seja dominante e pululem trans-

tornos/sofrimentos mentais e o gas-

to público com internações psiquiá-

tricas – que conforme dados do Mi-

nistério da Saúde em apenas seis

anos aumentou de 224 milhões de

dólares em 1991 para aproximada-

mente 370 milhões de dólares em

1996 (Ministério da Saúde apud

Daúd Júnior, 1999: 65-6) – vemos a

redução palpável do hospitalocen-

trismo psiquiátrico e a implemen-

tação de serviços substitutivos em

26 dos 27 Estados do Brasil (Alves,

1999). Serviços substitutivos, ou

seja, serviços que, mais do que al-

ternativas, preconizam a substitui-

ção do modelo manicomial, notoria-

mente iatrogênico. Serviços substi-

tutivos pautados numa nova cidada-

nia e numa nova ética, que superem

a cidadania social e a ética política

da responsabilidade liberal voltada

apenas para a reciprocidade entre

direitos e deveres, buscando uma ci-

dadania que, somada à subjetivida-

de emancipatória, seja nova e esteja

atenta às novas formas de exclusão

social (Santos, 1997a).

Apontamos como possibilidade

de ampliação das estratégias de

enfrentamento em prol desta nova

cidadania, as ‘imagens desestabili-

zadoras’ e as ‘interrogações pode-

rosas’ de que fala Santos (1997b:

117-8), que, além de comprometi-

das com a transformação do real,

lançam um desafio que potencializa

a indignação, o inconformismo e a

ação qualitativamente emancipató-

ria. As ‘interrogações poderosas’

são as que nos fazem refletir sobre

realidade que poderia ser melhor.

Imagens desestabilizadoras não nos

falta no âmbito da saúde mental

brasileira e as interrogações pode-

rosas, felizmente, estão em nosso

meio, pelo menos, há duas décadas.

De tais imagens e interrogações nas-

ce o vértice do tripé: a realização de

uma nova prática.

Retomando as teses de Santos

(1998: 37-58) sobre o paradigma

emergente, podemos inferir que:

• todo o conhecimento científico

transmitido nos órgãos forma-

dores, reproduzido e (re)criado

nas instituições e entidades que

atuam com o processo saúde/

doença mental, é essencialmen-

te um conhecimento científico-

social e como tal, não é neutro,

resulta de escolhas cotidianas

e prática política;

• sendo o conhecimento local e to-

tal, quando apreendemos e so-

cializamos através das experi-

ências e vivências de trabalhos

em saúde mental, estamos

(re)criando esse conhecimento,

e contribuindo para a mudança

ou a reprodução do “discurso

competente”3 sobre a saúde, a

doença e o doente mental;

• que todo o conhecimento técni-

co-científico e ético-político so-

bre saúde mental, com o qual

atuamos, na cotidianidade de

3 Confira CHAUÍ, M. de S., 1989. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 4 ed. São Paulo: Cortez.

o motivo, a causa dos acontecimen-

tos e trazem em si o traço de serem

mais relevantes do que as próprias

respostas – “como interrogar de

modo que a interrogação seja mais

partilhada do que as respostas que

lhe forem dadas?” – As ‘imagens

desestabilizadoras’ são as que su-

primem do presente a característica

de inculpável, trazendo à tona uma

SERVIÇOS SUBSTITUTIVOS PAUTADOS NUMA

NOVA CIDADANIA E NUMA NOVA ÉTICA, QUE

SUPEREM A CIDADANIA SOCIAL E A ÉTICA

POLÍTICA DA RESPONSABILIDADE LIBERAL

VOLTADA APENAS PARA A RECIPROCIDADE

ENTRE DIREITOS E DEVERES

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 11

nossa prática no âmbito das ins-

tituições de ensino, nos servi-

ços de saúde e movimentos so-

ciais, constituem-se como par-

te do autoconhecimento de nos-

sas subjetividades e das respec-

tivas interlocuções entre socie-

dade e indivíduo; entre a vida no

âmbito público e no privado; en-

tre os sujeitos sociais e estrutu-

ras de micro e macro poder polí-

tico. Dessa forma, podemos in-

tervir nesse processo, na pers-

pectiva de melhorá-lo, a partir de

nossas contribuições cotidianas

individuais e coletivas;

• considerando que todo o conhe-

cimento científico visa consti-

tuir-se em senso comum, a pers-

pectiva de mudança do paradig-

ma emergente na saúde mental,

caminha no sentido da pro-

posta de uma visão do ser

doente mental como sujeito,

como cidadão, respeitado em

sua alteridade, abandonando a

visão do doente como ‘um ser

perigoso’, anormal, excluído. En-

fim, contribuindo para a gera-

ção de um imaginário coletivo

onde o ‘trem dos doidos de Bar-

bacena’, o ‘beribéri do São João

de Deus’, a ‘imensidão lotada do

Juquery’, e tantos outros emble-

mas/realidades similares cruas

ou maquiadas que conhecemos

na assistência ao sofrimento psí-

quico, não sejam mais toleradas

na sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, D. S., 1999. O “Ex” – tentando

ver o futuro. Cadernos IPUB / Ins-

tituto de Psiquiatria da UFRJ,

NO 14: p.21-30.

AMARANTE, P., 1999. Manicômio e

loucura no final do século e do

milênio. In: FERNANDES, M. I. A.;

SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S. (Orgs.)

Fim de século: ainda manicô-

mios? São Paulo: Instituto de

Psicologia da Universidade de São

Paulo, p. 47-53.

CHAUÍ, M. de S., 1989. Cultura e

Democracia: o discurso competen-

te e outras falas. 4 ed. São Paulo:

Cortez, 309p.

DAÚD JÚNIOR, N., 1999. Neoliberalismo,

luta antimanicomial e pós-

neoliberalismo. In: FERNANDES, M.

I. A.; SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S.

(Orgs.) Fim de século: ainda

manicômios? São Paulo: Instituto

de Psicologia da Universidade de

São Paulo, p. 57-73.

FERNANDES, M. I. A.; SCARCELLI, I. R. &

COSTA, E. S. (Orgs.) Fim de século:

ainda manicômios? São Paulo:

Instituto de Psicologia da Univer-

sidade de São Paulo, 208p.

SADER, E., 1990. A transição no Brasil:

da ditadura à democracia? 6 ed.

São Paulo: Atual, 92p. (Série

história viva).

SANTOS, B. de S., 1989. Introdução a

uma ciência pós-moderna. Rio de

Janeiro: Graal, 176p.

SANTOS, B. de S., 1997a. Pela mão de

Alice: o social e o político na pós-

modernidade. 3 ed. São Paulo:

Cortez, 348p.

SANTOS, B. de S., 1997b. A queda do

Angelus Novus: para além da

equação moderna entre raízes e

opções. NOVOS ESTUDOS –

CEBRAP. No 47: p.103–124. Pu-

blicacão quadrimestral do Centro

Brasileiro de Análises e Planeja-

mento (CEBRAP).

SANTOS, B. de S., 1998. Um discurso

sobre as ciências. 10 ed. Porto:

Afrontamento, 58p.

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ARTIGOS ORIGINAIS

As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as premissas doModo Psicossocial

The National Conferences of Mental Health and the premises of the psychosocial way

Abílio da Costa-Rosa1

Cristina Amélia Luzio2

Silvio Yasui3

1 Professor assistente-doutor do

Departamento de Psicologia Clínica da

Universidade Estadual Paulista, campus

Assis, doutor em Psicologia Clínica pela

Universidade de São Paulo; psicanalista e

analista institucional.

e-mail: [email protected]

2 Professora assistente do Departamento de

Psicologia Clínica da Universidade

Estadual Paulista, campus Assis,

doutoranda em Saúde Coletiva na

Universidade de Campinas.

e-mail: [email protected]

3 Professor assistente do Departamento de

Psicologia Evolutiva, Social e Escolar da

Universidade Paulista, campus Assis,

doutorando em Psicologia Social na

Universidade de São Paulo.

e-mail: [email protected]

RESUMO

O presente artigo pretende analisar as proposições básicas e os marcos

conceituais das duas conferências nacionais de saúde mental ocorridas até

o momento, à luz dos parâmetros do Modo Psicossocial construídos por

Costa-Rosa. Pretende-se, também, indicar a sua exeqüibilidade nos

dispositivos construídos pelas práticas de Atenção Psicossocial, que têm

proposto superar a lógica manicomial, observar os avanços e retrocessos do

processo de estratégia de hegemonia na saúde mental. Finaliza apresentando

alguns pontos para uma proposta de agenda de discussão.

PALAVRAS-CHAVE: atenção psicossocial; políticas públicas; conferências nacionais

de saúde mental.

ABSTRACT

The present article intends to analyze the basic propositions and the

conceptual marks of the two Mental Health National Conferences that have

occurred up until now, under the light of the Psychosocial Way parameters

built by Costa-Rosa. It is intended, also, to indicate its feasibility in devices

built by Psychosocial Attention's practices, that intend to overcome the

manicomial logic, to observe the progresses and setbacks of the hegemony

strategy process in mental health. It concludes presenting a few points for a

proposed discussion.

KEY WORDS: psychosocial attention; public politics; national conferences of

mental health.

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 13

INTRODUÇÃO

Neste artigo retomamos os ‘mar-

cos conceituais’ e as proposições

básicas das duas conferências na-

cionais de saúde mental ocorridas

até o momento, a fim de efetuar-

mos uma análise à luz dos parâ-

metros do Modo Psicossocial (Cos-

ta-Rosa, 2000:141-168). Pretende-

mos, ao mesmo tempo, indicar a

sua exeqüibilidade nos dispositivos

construídos pelas práticas de Aten-

ção Psicossocial que têm proposto

superar a lógica manicomial.

PRIMEIRA CONFERÊNCIA NACIONALDE SAÚDE MENTAL (CNSM)

Proposições gerais: concepção

de saúde, participação popular, ci-

dadania e interesses dos usuários.

Em junho de 1987, como des-

dobramento da histórica 8a Confe-

rência Nacional de Saúde de 1986,

ocorreu, na cidade do Rio de Janei-

ro, a I Conferência Nacional de Saú-

de Mental (CNSM).

A Conferência foi realizada em um

clima de intensas discussões e o seu

relatório final ficou para a história

do movimento da reforma psiquiátri-

ca, que fez prevalecer suas teses em

praticamente todos os temas.

No tema I – Economia, Socieda-

de e Estado: impactos sobre a saú-

de e doença mental, o relatório ana-

lisa o modelo econômico altamen-

te concentrador brasileiro, apontan-

do para a necessidade de se ampli-

ar o conceito de saúde, consideran-

do em seus determinantes as con-

dições materiais de vida. Destaca-

mos o seguinte trecho:

Situando a saúde mental no

bojo da luta de classes, podemos

afirmar que seu papel tem consis-

tido na classificação e exclusão dos

‘incapacitados’ para a produção

(...) É urgente pois o reconhecimen-

to da função de dominação dos tra-

balhadores de saúde mental e a sua

Único de Saúde, com garantia da

participação popular. No plano as-

sistencial, aponta para os mesmos

princípios já consagrados, tais

como reversão da tendência hospi-

talocêntrica, com prioridade para o

sistema extra-hospitalar.

Por fim, no tema III – Cidada-

nia e Doença mental: direitos, de-

veres e legislação, o relatório rea-

firma, também, teses do Movimen-

to Sanitário, sugerindo inclusões

no texto constitucional no que se

refere ao direito à saúde e propon-

do reformulações da legislação or-

dinária que trata especificamente

da saúde mental, ou seja: Código

Civil; Código Penal e legislação sa-

nitária; propõe, ainda, modifica-

ções na legislação trabalhista,

considerando a interface trabalho/

saúde mental.

O texto do relatório demonstra

uma estreita vinculação entre o

Movimento Sanitário e o Movi-

mento da Reforma Psiquiátrica.

Ambos tratam a saúde como uma

questão revolucionária, no eixo da

luta pela transformação da socie-

dade. Aponta, especificamente,

aos trabalhadores de saúde men-

tal, a necessária revisão de seu

papel de agentes de exclusão e de

dominação, para reorientá-lo na

direção de uma identidade com os

interesses da classe trabalhadora.

Estão presentes nesse documento

oficial, não apenas propostas téc-

nicas, mas argumentos e proposi-

ções que engajam o processo de

revisão crítica, redefinindo seu pa-

pel, reorientando a sua prática e

configurando a sua identidade ao

lado das classes trabalhadoras.

(BRASIL/MS, 1992:15)

No tema II – Reforma Sanitária

e reorganização da assistência à

saúde mental, o relatório reafirma

as teses do Movimento Sanitário,

introduzindo a especificidade da

saúde mental no contexto de suas

diretrizes e princípios, apontando

para a constituição de um Sistema

EM JUNHO DE 1987, COMO

DESDOBRAMENTO DA HISTÓRICA

8A CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE

DE 1986, OCORREU, NA CIDADE DO

RIO DE JANEIRO, A I CONFERÊNCIA

NACIONAL DE SAÚDE MENTAL (CNSM)

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14 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001

transformação de um setor espe-

cifico da saúde, a saúde mental,

em uma luta que transcende essa

especificidade, vinculando-a à

luta pela transformação da socie-

dade. Mas foi apenas mais um do-

cumento oficial, talvez o primeiro

que colocou a questão da saúde

mental nessa perspectiva da luta

entre os interesses de classes.

O Modo Psicossocial e a I ConferênciaNacional de Saúde Mental

Costa-Rosa (2000:151-164),

conceitua o Modo Psicossocial de

acordo com quatro parâmetros fun-

damentais, que podemos definir, su-

cintamente, nos seguintes termos:

• em relação à concepção do ‘ob-

jeto’ e dos meios de trabalho

preconiza a implicação subje-

tiva do usuário, o que pressu-

põe a superação do modo de

relação sujeito-objeto caracte-

rístico do modelo médico e das

disciplinas especializadas que

ainda se pautam pelas ciênci-

as positivas. Preconiza-se, ao

mesmo tempo, a horizontali-

zação das relações interprofis-

sionais como condição básica

para a horizontalização das

relações com os usuários e a

população da área;

• no que diz respeito às formas

de organização das relações in-

trainstitucionais preconiza-se a

sua horizontalização, com a

distinção obrigatória entre as

esferas do poder decisório, de

origem política e as esferas do

poder de coordenação, de natu-

reza mais operativa. Esta reo-

rientação das relações intrains-

titucionais vai na mesma dire-

ção das relações especificamen-

te interprofissionais e faz parte

dos requisitos necessários para

o exercício da subjetivação sin-

gularizada que é meta cara ao

Modo Psicossocial;

• quanto à forma como a insti-

tuição se situa no espaço geo-

gráfico, no imaginário e no

simbólico o Modo Psicossocial

preconiza antes de tudo a in-

tegralidade das ações no terri-

tório. Além disso ao preconizar

o posicionamento da institui-

ção como espaço de interlocu-

ção, como instância de ‘supos-

to saber’ e, ao fazer dela um

espaço de absoluta e intensa

porosidade em relação ao ter-

ritório, praticamente subverte

a própria natureza da institui-

ção como dispositivo. A natu-

reza da instituição como orga-

nização fica modificada e o lo-

cal de execução de suas práti-

cas desloca-se do antigo inte-

rior da instituição para tomar

o próprio território como refe-

rência. A instituição, enquan-

to equipamento, posiciona-se

num foco em que se entrecru-

zam as diferentes linhas de

ação no território e para onde

podem remeter-se as primeiras

pulsações da Demanda;

• destacando a ética dos efeitos

das práticas em saúde mental,

o Modo Psicossocial preconiza a

superação da ética da adapta-

ção, que tem seu suporte nas

ações de tratamento como rever-

sibilidade dos problemas e na

adequação do indivíduo ao meio

e do ego à realidade. Ao propor

suas ações na perspectiva de

uma ética de duplo eixo, que

considera por um lado a relação

sujeito-desejo e por outro a di-

mensão carecimento-Ideais1,

deixa firmada a meta da produ-

1 Carecimento, por oposição ao conceito de carência ou de necessidade, abarca uma dimensão do homem que inclui o desejo (como propõe a

psicanálise) e toda a abertura do homem para os Ideais, possíveis ou não de imediato. Mas inclui também a abertura para a produção e usufruto

de todos os bens da produção social, muito além do preenchimento de necessidades, e que, muito mais que estas, correspondem à especificida-

de humana. Pode-se considerar que aqui estão incluídas também as criações da Filosofia, da Arte, da Ciência, e até da Religião, mas não sem

passar pela aspiração pertinente ao usufruto das comodidades socialmente produzidas no mais alto grau da sua evolução histórica, tal como

encontrado em Marx nos Manuscritos de 1844. Quanto aos Ideais, na mesma perspectiva do conceito de desejo, é preciso sublinhar seu caráter

além da dimenção teleológica. (Costa-Rosa, 2000:162)

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 15

ção de subjetividade singulari-

zada, tanto nas relações imedi-

atas com o usuário propriamen-

te dito, quanto nas relações com

toda a população do território.

Retornando às proposições da I

CNSM, em primeiro lugar merece

destaque a proposta de ampliação

do conceito de saúde, incluindo em

seus determinantes as condições

gerais de vida. Além de sua sintonia

com os princípios gerais da Refor-

ma Sanitária, podemos indicar, ain-

da, o alinhamento dessa preocupa-

ção com as do campo da Atenção

Psicossocial, que insistem, de mo-

dos diversos, na reformulação da

concepção do ‘objeto’ das práticas em

saúde mental. Essa ampliação da

definição é sem dúvida um bom pon-

to de partida para tal reformulação.

Outra proposição que deve ser

sublinhada diz respeito à exigência

da ‘participação popular’ na saúde

mental. Além de uma proposta co-

erente com a ética da participação

geral do cidadão na vida social, é

fundamental percebermos sua coe-

rência com a ética da Atenção Psi-

cossocial. Uma série de evidências

apontam as relações diretas exis-

tentes entre as formas da organi-

zação intrainstitucional e as formas

como essa instituição (através de

seus agentes) se dirige e se relacio-

na com a clientela e a população de

sua área de ação. Se nas práticas

da Atenção Psicossocial a exigên-

cia da superação do paradigma su-

jeito-objeto é um objetivo funda-

mental, parece mais do que justifi-

cado que a participação popular nas

instituições seja elevada à catego-

ria de dispositivo necessário, não

apenas contingente. Por outro lado,

o Modo Psicossocial propõe que a

ética da implicação subjetiva e so-

ciocultural dos usuários das insti-

tuições de saúde mental nos con-

flitos e contradições que os atraves-

sam, fazendo-os procurarem ajuda,

seja um componente essencial da

Atenção. Essa implicação do sujei-

exclusão e dominação, ao mesmo

tempo propondo sua reorientação

na direção dos interesses da classe

trabalhadora. Esta é mais uma pro-

posição que ultrapassa os interes-

ses ético-políticos globais. Sua tra-

dução nos pressupostos do Modo

Psicossocial exige um percurso um

pouco mais complexo. Antes de

tudo é preciso firmarmos uma con-

ceituação de Sociedade como arti-

culação de interesses contraditóri-

os, num processo político-social que

Gramsci denominou Processo de

Estratégia de Hegemonia (PEH). A

seguir temos de recorrer a uma das

proposições importantes do Modo

Psicossocial, que conceitua as prá-

ticas em saúde mental neste mo-

mento histórico, como conjunto ar-

ticulado (nos mesmos termos do

PEH), podendo aí designar-se dois

pólos bem configurados e com ló-

gicas contraditórias: o Modo Asilar

e o Modo Psicossocial. (Costa-Rosa,

2000:141-168).

Uma vez colocados na situação

de trabalhadores de saúde mental

não há como escapar ao alinhamen-

to com uma dessas lógicas. É fácil

demonstrar que a lógica asilar é

perfeitamente congruente com a do

Modo Capitalista de Produção, na

qual os interesses dos usuários são

inequivocamente subordinados aos

interesses do Hospital. A proposi-

ção de se alinhar com os interesses

dos usuários é, portanto, uma exi-

gência inadiável dos que pretendem

fazer das práticas em saúde men-

to na sua situação específica nun-

ca poderia ser realizada se, no con-

texto mais amplo da sua existên-

cia, o exercício dessa implicação lhe

fosse negado. No Modo Psicossoci-

al o engajamento subjetivo e socio-

cultural são indissociáveis da defi-

nição de saúde mental.

Um terceiro aspecto, que é opor-

tuno sublinhar, refere-se à concla-

mação dos trabalhadores da área a

reverem os riscos, ou mesmo, a efe-

tivação do seu papel de agentes de

RETORNANDO ÀS PROPOSIÇÕES

DA I CNSM, EM PRIMEIRO LUGAR

MERECE DESTAQUE A PROPOSTA DE

AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE SAÚDE,INCLUINDO EM SEUS DETERMINANTES

AS CONDIÇÕES GERAIS DE VIDA

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16 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001

tal dispositivos alternativos ao

Modo Asilar; ou seja, práticas ca-

pazes da produção de subjetivida-

de singularizada, em que os lucros

principais das ações de produção de

saúde sejam apropriados pelos usu-

ários das instituições, como pólo

socialmente subordinado.

Observamos, de modo geral, como

parece justo esperar por tratar-se da

I CNSM, uma ênfase em proposições

na esfera político-ideológica e no

âmbito jurídico. Pode-se notar clara-

mente, agora, como ali se tratava de

produzir bases para as propostas e

experiências práticas que viriam, na

seqüência, exercitar outras lógicas

contrárias à asilar. Deve-se registrar,

ainda, que a proposição antimanico-

mial, que vai atravessar os passos de

boa parte das práticas da Reforma

Psiquiátrica, até os dias de hoje, já

se apresenta aí bem clara e plena-

mente afirmada.

A SEGUNDA CONFERÊNCIA NACIONALDE SAÚDE MENTAL

Proposições gerais: Atenção IntegralTerritorializada, direitos e terapêutica cidadã

Quatro anos depois, em dezem-

bro de 1992, foi realizada a II Con-

ferência Nacional de Saúde Mental

(II CNSM) com uma organização di-

ferente da anterior. Precedida de

etapas municipais, regionais e es-

taduais, que contaram com o envol-

vimento direto de cerca de vinte mil

pessoas, a etapa nacional contou

com a participação de quinhentos

delegados eleitos nas conferências

estaduais, com composição paritá-

ria dos dois segmentos: usuários e

sociedade civil, governo e prestado-

res de serviços.

Diversos pontos do relatório,

aprovados na plenária final, tive-

ram a defesa emocionada e firme

dos usuários.

Foram discutidos três grandes

temas: crise, democracia e reforma

visão integrada das várias dimensões

humanas da vida do indivíduo, em

diferentes e múltiplos âmbitos de in-

tervenção (educativo, assistencial e de

reabilitação). (Brasil-MS,1994:13)

Reafirma os princípios da uni-

versalidade, integralidade, eqüida-

de, descentralização, participação

popular e municipalização, propon-

do a substituição do modelo hospi-

talocêntrico por uma rede de servi-

ços, diversificada e qualificada, e a

intensificação da desospitalização

através dos programas públicos de

lares e pensões protegidas. Propõe,

também, a articulação com os recur-

sos existentes na comunidade e a

necessária transformação das rela-

ções cotidianas entre trabalhadores

de saúde mental, usuários, famílias,

comunidade e serviços, em busca da

desinstitucionalização, bem como da

humanização das relações no campo

da saúde mental. (Idem:16)

Chama a atenção para uma ne-

cessária construção coletiva de prá-

ticas e saberes cotidianos que con-

sidere: o trabalho em equipe, ou-

tros campos de conhecimento e os

saberes populares. Por fim, desta-

ca a relação entre cidadania, Esta-

do e Sociedade, propondo estimu-

lar a organização dos cidadãos em

associações comunitárias, altera-

ções na legislação e ações no cam-

po da informação e educação.

Em sua segunda parte, o relató-

rio apresenta inúmeras propostas

relativas à atenção em saúde men-

psiquiátrica; modelos de atenção

em saúde mental; direitos e cida-

dania. O relatório final subdivide-

se em três partes: marcos conceitu-

ais; atenção à saúde mental e mu-

nicipalização; direitos e legislação.

Em sua primeira parte, o relató-

rio aponta a atenção integral e cida-

dania como conceitos direcionado-

res das deliberações da Conferência.

A atenção integral deverá propor

um conjunto de dispositivos sanitári-

os e socioculturais que partam de uma

EM DEZEMBRO DE 1992,FOI REALIZADA A II CONFERÊNCIA

NACIONAL DE SAÚDE MENTAL

(II CNSM) COM UMA ORGANIZAÇÃO

DIFERENTE DA ANTERIOR

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 17

tal e municipalização. No capítulo

sobre as recomendações gerais, além

de reafirmar o princípio da munici-

palização, acrescentou a proposta de

utilização dos conceitos de território

e responsabilidade como dispositivos

para uma ruptura com o modelo hos-

pitalocêntrico. Finaliza essa segun-

da parte com propostas para a capa-

citação dos trabalhadores de saúde,

sobre as relações no trabalho em ter-

mos de organização e conquista de

direitos, e sobre a promoção de pes-

quisas voltadas para a investigação

epidemiológica e sócio-antropológi-

cas e para a avaliação da rede de

atenção em saúde mental.

A terceira parte do relatório apre-

senta propostas referentes ao tema

Direitos e Legislação. São cinco ca-

pítulos abrangendo os seguintes te-

mas: questões gerais sobre uma ne-

cessária revisão legal; direitos civis

e cidadania; direitos trabalhistas;

drogas e legislação; direitos dos usu-

ários. Talvez tenha sido a parte do

relatório na qual os usuários parti-

ciparam de forma mais ativa, espe-

cialmente na plenária final.

Realizada em circunstâncias

históricas distintas da I CNSM, cujo

relatório apresentava diversas pro-

posições de caráter político, o texto

da II CNSM não foi tão contunden-

te na crítica ao modelo econômico

nem ao momento político que se

estava vivendo. Embora aquelas

questões estivessem como pano de

fundo, o relatório era muito mais

extenso e específico nas questões

da saúde mental.

A II CNSM foi realizada em um

momento em que diversas experi-

ências já estavam consolidadas e

espalhando-se pelo país;2 já exis-

tia uma lei, aprovada na Câmara

dos Deputados e tramitando no Se-

nado, e leis estaduais aprovadas ou

em tramitação; já existiam dispo-

sitivos institucionais (portarias mi-

O Modo Psicossocial e a II ConferênciaNacional de Saúde Mental.

Podemos considerar como de

significativa relevância o fato de

que os ‘marcos conceituais’ do RE-

LATÓRIO DA SEGUNDA CONFE-

RÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE

MENTAL, realizada em 1992, este-

jam perfeitamente em sintonia com

as premissas gerais do Modo Psi-

cossocial para os tratamentos psí-

quicos na Saúde Coletiva.

Ainda que se possa considerar

que tais marcos conceituais este-

jam muito mais na perspectiva de

transformações na esfera político-

ideológica, eles podem ser tradu-

zidos em dispositivos teórico-prá-

ticos, capazes de fazerem de pre-

ceitos gerais, verdadeiros instru-

mentos de transformação das prá-

ticas cotidianas nas instituições

de saúde mental, sobretudo das

relações destas com os usuários e

com a população das suas áreas

de referência.

Senão vejamos:

1. “I. ATENÇÃO INTEGRAL E CI-

DADANIA são conceitos direciona-

dores das deliberações da II Confe-

rência Nacional de Saúde Mental”.

(Brasil/MS,1994:11)

Definir a integralidade da con-

cepção e do exercício dos programas

e ações implica operar uma série de

2 Como exemplo, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Luiz Cerqueira já era uma realidade consolidada, o Programa de Saúde Mental de

Santos já era reconhecido internacionalmente como experiência modelar, inclusive pela Organização Pan-americana de Saúde (OPAS).

nisteriais) que possibilitavam a im-

plantação de novos serviços e au-

mentavam a fiscalização dos hos-

pitais; já existiam diversas associ-

ações de usuários atuando ativa-

mente pelo país. Ou seja, estava em

curso um processo de transforma-

ção da saúde mental no campo teó-

rico, no campo assistencial, no cam-

po jurídico e no campo cultural.

ESTAVA EM CURSO UM PROCESSO

DE TRANSFORMAÇÃO DA SAÚDE MENTAL

NO CAMPO TEÓRICO, NO CAMPO

ASSISTENCIAL, NO CAMPO JURÍDICO

E NO CAMPO CULTURAL

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18 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001

transformações no modo de traba-

lho. Estas transformações é que são

condição para o exercício de ações

integrais, e ao mesmo tempo cons-

tituem a base para a efetivação de

um princípio de cidadania nas prá-

ticas dos trabalhadores de saúde

mental que seja coerente com a

meta da singularização.

Na perspectiva do Modo Psicos-

social é de fundamental importân-

cia que se tenha proposto a aten-

ção integral e a cidadania como

conceitos direcionadores, mas não

se pode perder de vista, por outro

lado, o conjunto dos passos concre-

tos que ainda precisam ser dados

para estar no exercício efetivo de

ações integrais em Saúde e de cida-

dania singularizada. Também não

podemos esquecer que a integrali-

dade, supondo o conceito de Terri-

tório, deve ocorrer simultaneamen-

te em extensão e profundidade, su-

perando as mazelas da Atenção es-

tratificada por níveis (primário, se-

cundário e terciário).

2. “II. A democratização do Es-

tado com o controle da sociedade ci-

vil é fundamento do direito à cida-

dania e da transformação da legis-

lação de saúde mental”. (idem:11)

Esta diretriz, colocada em âm-

bito de análise política da Forma-

ção Social global é muito pertinen-

te, porém é necessário aproximá-

la das nossas esferas cotidianas

de ação. Desse modo, ao preconi-

zar a democratização das institui-

ções e de suas relações com os

usuários e com a população, e a

partir da condição de trabalhado-

res da Saúde, cuida-se da aplica-

ção daquela diretriz. Uma das

maneiras mais eficazes de cumprir,

nesta esfera de atuação, a diretriz

de controle social, pela sociedade

civil, é pondo em prática disposi-

tivos como os conselhos ‘gestores

de unidades de saúde’ e como os

‘conselhos comunitários de saú-

3. “III. O processo saúde/doença

mental deverá ser entendido a par-

tir de uma perspectiva contextuali-

zada, onde qualidade e modo de vida

são determinantes para a compre-

ensão do sujeito, sendo de impor-

tância fundamental vincular o con-

ceito de saúde ao exercício de cida-

dania, respeitando-se as diferenças

e as diversidades”. (idem, idem)

3.1. Contextualizar o processo

saúde/doença exige várias opera-

ções articuladas:

Primeira: o Modo Psicossocial

preconiza uma definição de saúde

numa perspectiva que a contextua-

lize em relação a uma concepção de

sociedade, entendida como conjun-

to de interesses contraditórios arti-

culados, possíveis de serem descri-

tos e compreendidos através do con-

ceito de Processo de Estratégia de

Hegemonia (PEH). Essa contextua-

lização, nos termos do PEH, obriga

a considerar a própria luta por saú-

de, tanto entendida como estado

das condições de vida, quanto en-

tendida como reivindicação de cui-

dados de saúde, como componente

da própria definição de saúde.

Segunda: no Modo Psicossocial

define-se a especificidade da saúde

mental, de tal modo que se visualiza

a participação da dimensão sociocul-

tural como intrínseca ao próprio pro-

cesso de subjetivação. Desse modo a

própria forma de atravessamento da

dimensão sócio-simbólica pode ser

parte constitutiva dos problemas que

de’, aliás, instrumentos já garan-

tidos na constituição do país. Além

disso devemos lembrar que as

metas de livre trânsito dos usuá-

rios pelas instituições e de sua

participação direta na instituição,

preconizadas pelo Modo Psicosso-

cial, podem ser implementadas cri-

ando condições para que os con-

selhos e comissões de usuários e

população participem em esferas

da instituição relacionadas com o

poder decisório.

NA PERSPECTIVA DO MODO

PSICOSSOCIAL É DE FUNDAMENTAL

IMPORTÂNCIA QUE SE TENHA

PROPOSTO A ATENÇÃO INTEGRAL

E A CIDADANIA COMO CONCEITOS

DIRECIONADORES

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 19

tendem a apresentar-se como típicos

ou preponderantes numa determina-

da conjuntura histórico-social.

Terceira, o Modo Psicossocial

inclui em sua caracterização a

consideração da especificidade da

saúde mental com a inclusão da

própria noção de ‘crise’ como seu

componente estrutural. Ou seja,

dada a concepção de saúde que

inclui em sua definição a partici-

pação ativa do homem na busca

de melhores condições de vida e

de melhor atendimento à saúde, e

dada a circunstância histórica de

que a sociedade liberal - ainda

mais gravemente nos contextos

chamados de capitalismos depen-

dentes - é conjunção de interes-

ses contraditórios, portanto um

processo que envolve luta e confli-

to entre esses interesses, então só

é possível conceber a saúde men-

tal como um certo modo do posici-

onamento subjetivo e sociocultu-

ral dos indivíduos na conjuntura

conflitiva particular que os atra-

vessa e pela qual são atravessados.

3.2. Vincular o conceito de saúde

ao exercício de cidadania, no âmbito

das práticas em Saúde, é possível

apenas em decorrência da própria

contextualização da definição de saú-

de nos termos acima propostos. Nes-

te sentido também é importante não

perder de vista algumas nuances in-

cluídas na questão, que podem ser

capciosas se tomadas em sentido

muito estrito ou muito genérico.

Dizer que o exercício de cidada-

nia é resolutivo e preventivo de

problemas psíquicos e mentais

pode ser muito pertinente, porém

isto está longe de significar que

prevenção em saúde mental e tra-

tamento psíquico em Saúde Cole-

tiva possam ser reduzidos ao exer-

cício de ações de cidadania, qual-

quer que seja a definição em que

se tome esta última.

Disso resulta que o mais impor-

tante é especificar quais são as con-

prisma, não ignoramos as dramá-

ticas condições de vida dos usuári-

os do hospital psiquiátrico, cuja re-

vogação há muito tarda.

4. “IV. A vida exige uma aborda-

gem abrangente no campo da saú-

de mental, capaz de romper com a

usual e ainda hegemônica concep-

ção compartimentalizada do sujei-

to, com as dissociações mente/cor-

po e trabalho/prazer ...”. Refletida

em: a) “Mudança no modo de pen-

sar a pessoa com transtornos men-

tais em sua existência-sofrimento,

e não apenas a partir do seu diag-

nóstico”; b) “Diversificação das re-

ferências conceituais e operacionais,

indo além das fronteiras delimita-

das pelas profissões clássicas em

saúde mental”; c) “uma ética da

autonomia e singularização que

rompa com o conjunto de mecanis-

mos institucionais e técnicos em

Saúde, que têm produzido, nos últi-

mos séculos, subjetividades proscri-

tas e prescritas.” (idem:11-12)

Este talvez seja, entre todos os

outros, o marco conceitual mais

complexo. Isto se deve ao fato de aí

se mesclarem, como veremos, as-

pectos teórico-técnicos e éticos:

4.1. Para mudarmos nossa ati-

tude asilar, reformista e tecnicista

diante da pessoa com transtornos

psíquicos ou mentais, e considerá-

la a partir de sua existência-sofri-

mento, faz-se necessário especificar

dições das próprias práticas em

saúde mental, capazes de criar os

meios de exercício de cidadania nas

relações das instituições e dos tra-

balhadores com os usuários e a po-

pulação, e, ao mesmo tempo, mos-

trar como essas condições podem

estar em sintonia com a ética da ci-

dadania singularizada e da produ-

ção de subjetividade singularizada,

explicitadas no Modo Psicossocial.

É importante sublinhar, ainda, que,

ao tomarmos a questão por esse

É IMPORTANTE SUBLINHAR, AINDA,QUE, AO TOMARMOS A QUESTÃO

POR ESSE PRISMA, NÃO IGNORAMOS

AS DRAMÁTICAS CONDIÇÕES DE VIDA

DOS USUÁRIOS DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO,CUJA REVOGAÇÃO HÁ MUITO TARDA

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20 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001

uma concepção de subjetividade e

de saúde psíquica que deixem cla-

ro qual é o lugar e o estatuto das

crises e dos diferentes desencadea-

mentos problemáticos.

É necessário dar às crises um

lugar estrutural (depois de extirpa-

das de sua porção indesejável e evi-

tável). As crises só terão uma aco-

lhida como efeitos estruturais e,

portanto, também estruturantes, se

elas forem concebidas como inte-

grantes do modo de o sujeito se po-

sicionar em relação às conjunturas

conflitivas (subjetivas e sociocultu-

rais) que os atravessam. Apenas

numa concepção de saúde psíquica

assim formulada será possível con-

siderar seriamente os indivíduos

como ‘existência-sofrimento’.

Também já sabemos que esta

diretriz da II Conferência Nacional

de Saúde Mental sai explicitamen-

te do modelo italiano. Sobre isso,

Rotelli et al. (1990:28), afirmam

que para considerar, de fato, o in-

divíduo como existência-sofrimen-

to é ‘preciso começar a desmontar

a relação problema-solução, renun-

ciando a perseguir aquela solução

racional (tendencialmente ótima)

que no caso é a normalidade ple-

namente restabelecida’.

O modelo italiano, do qual tam-

bém é tributário o Modo Psicosso-

cial, proclama que

o mal da Psiquiatria está em haver

separado um objeto fictício, a ‘doen-

ça’, da existência global complexa e

concreta dos pacientes e do corpo so-

cial. Sobre essa separação artificial

se construiu o conjunto de aparatos

científicos, legislativos, administra-

tivos (precisamente a ‘instituição’),

todos referidos à ‘doença’. É este con-

junto que se pretende desmontar (de-

sinstitucionalizar) para retomar o

contato com aquela existência dos

pacientes, enquanto existência-sofri-

mento. (idem, idem).

O problema não é cura (a vida

produtiva) mas a produção de vida

sentir o sofrimento do ‘paciente’ e

que, ao mesmo tempo, se transforme

sua vida concreta e cotidiana, que ali-

menta esse sofrimento (...) Por isso a

festa, a comunidade difusa, a recon-

versão contínua dos recursos insti-

tucionais, e por isso solidariedade e

afetividade se tornarão momentos e

objetivos centrais... ( idem:30).

Esta diretriz está perfeitamen-

te em sintonia com o que, no Modo

Psicossocial, se define em termos de

implicação subjetiva e sociocultu-

ral dos indivíduos que recorrem às

instituições de saúde mental.

4.2. Para superarmos as referên-

cias conceituais e operacionais,

para além das profissões clássicas,

serão necessárias pelo menos duas

operações articuladas.

Primeira, será preciso rever e

modificar a concepção de saúde e

doença e dos meios de tratamento

decorrentes dos postulados psiqui-

átricos, como detentores exclusivos

ou preponderantes do saber sobre

o psíquico e o humano neste con-

texto. Isso só poderá ser feito rela-

tivizando a importância das con-

tribuições desse campo de saber,

agregando-lhe de modo bastante

radical (não apenas como acessó-

rios) uma série de conceitos e téc-

nicas geradas no campo da Psica-

nálise e do Materialismo Históri-

co, além de contribuições da Filo-

sofia (filosofia da Diferença), da

Arte e da Estética.

e de sentido, de sociabilidade, a uti-

lização das formas (dos espaços co-

letivos) de convivência dispersa

(idem:30).

Assim, o modelo italiano assen-

ta-se em uma redefenição do tra-

balho terapêutico voltado para a re-

constituição de pessoas enquanto

pessoas que sofrem, como sujeitos

(idem:33). Fala-se menos em cura

do que em cuidado.

Cuidar significa ...fazer com que

se transformem os modos de viver e

O MAL DA PSIQUIATRIA ESTÁ

EM HAVER SEPARADO UM OBJETO

FICTÍCIO, A ‘DOENÇA’, DA EXISTÊNCIA

GLOBAL COMPLEXA E CONCRETA DOS

PACIENTES E DO CORPO SOCIAL

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As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 21

A segunda operação deverá con-

sistir numa crítica à divisão do tra-

balho tal qual ela está em ação des-

de o primeiro momento em que se

congregaram diferentes disciplinas

no campo do saber e das práticas

em saúde mental. Essa crítica terá

que passar pela demonstração

(como via para a superação) de que

o modo da divisão do trabalho aí

atuante é o mesmo que vige no con-

texto da produção em geral e que

tem sido chamado de modo taylo-

rizado ou ‘linha de montagem’,

(Costa-Rosa, 1987:222-252).

Nesta linha de raciocínio é pos-

sível demonstrar que essa frag-

mentação do cliente e da própria

subjetividade são os meios através

dos quais se reproduzem as rela-

ções sociais dominantes no contex-

to social (as relações sociais de

produção e de poder). Ao mesmo

tempo será possível demonstrar

que essas relações sociais domi-

nantes (já conhecidas nossas com

as seguintes fisionomias: como

trabalho intelectual e decisório

versus trabalho de execução, e sob

a forma da própria cisão fragmen-

tadora do processo de trabalho, por

exemplo, em termos da separação

entre momento diagnóstico e mo-

mento terapêutico, mas não apenas)

são alguns dos modos de expropria-

ção, tanto de trabalhadores quanto

de usuários, do excedente precioso,

que é o equivalente da “mais-valia”

no contexto das práticas em saúde

mental. Ou seja, onde há muita re-

produção há pouca produção; onde

há subjetividade serializada falta

subjetividade singularizada.

Em suma, esta segunda opera-

ção inclui a superação teórico-téc-

nica e ideológica do modelo taylo-

rista no processo de trabalho na

saúde mental, e sua substituição

por outro modo capaz de permitir

que o saldo mais precioso do pro-

cesso de trabalho ( a implicação

subjetiva e a singularização) seja

apropriado pelos trabalhadores e

ciais em sintonia com o agencia-

mento dos interesses sociais subor-

dinados (intersubjetividade hori-

zontal singularizada).

4.3. Para sustentar na prática

uma ética da autonomia e da sin-

gularização também será necessá-

rio realizar no mínimo outras duas

operações conjugadas.

A primeira diz respeito à auto-

nomia. A autonomia dos usuários

só pode estar associada à autono-

mia dos trabalhadores. A autono-

mia dos trabalhadores e dos usuá-

rios por sua vez associa-se à supe-

ração dos modos de existência e

funcionamento das instituições que

são características do Modo Asilar.

A organização da instituição de

saúde mental como dispositivo se-

gundo a mesma lógica das institui-

ções típicas do Modo Capitalista de

Produção (MCP) produz uma série

de efeitos refletidos na sua ‘produ-

ção’, que são desastrosos e às ve-

zes letais. Há muito que teorizar e

transformar a fim de driblar esse

intermediário necessário (já que

não dá para escapar neste momen-

to histórico da intermediação da

instituição nas práticas de Atenção)

da relação dos trabalhadores de

saúde mental e dos usuários. Mas

o melhor começo será, sem dúvida,

reconhecer essa intermediação e

desvendar-lhe a anatomia para des-

cobrir as operações que são neces-

sárias para fazer esse intermediá-

rio trabalhar a favor da ética que

pelos usuários e posto a seu servi-

ço – ao contrário do que acontece

no Modo Asilar, em que é o inter-

mediário, dono dos meios de pro-

dução e das decisões do quê e como

produzir, quem dele se apropria.

Convém não perdermos de vista que

a natureza desse excedente muda

conforme o seu destinatário. Num

caso dá-se como reprodução das

relações sociais dominantes (sub-

jetividade capitalista), no outro dá-

se como recriação de relações so-

A ORGANIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO DE SAÚDE

MENTAL COMO DISPOSITIVO SEGUNDO AMESMA LÓGICA DAS INSTITUIÇÕES TÍPICAS

DO MODO CAPITALISTA DE PRODUÇÃO

(MCP) PRODUZ UMA SÉRIE DE EFEITOS

REFLETIDOS NA SUA ‘PRODUÇÃO’, QUE SÃO

DESASTROSOS E ÀS VEZES LETAIS

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22 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001

preconizamos para nossas práticas

de Atenção. Quanto a este aspecto

também propomos retomar as di-

retrizes de Modo Psicossocial em

relação à instituição como disposi-

tivo, e quanto ao modo de ela se

situar em relação à clientela e ao

território que lhe correspondem.

A segunda operação a respeito

da singularização inclui justamen-

te a nossa capacidade de criar uma

mínima sintonia (ainda que com

concessões táticas inevitáveis) en-

tre a forma de conceber e atuar as

definições de saúde e doença e dos

meios de tratamento; a forma das

relações intrainstitucionais; a for-

ma da relação da Instituição como

equipamento com seus usuários e

com o território; e, finalmente,

como se concebe o estatuto de nos-

sas ações em termos de performan-

ce e de ética.

A meta da singularização, no

Modo só poderá ser almejada por

uma concepção do ‘objeto’ e dos

meios, e da relação dos dois, que

seja capaz de atender à especifici-

dade da subjetividade humana, e

que inclua a própria ação e autode-

terminação como constitutivas do

homem. Ninguém trabalhará na

subjetividade à revelia do sujeito,

a não ser para a produção de efei-

tos de destituição subjetiva.

Para ser almejada e alcançada, a

singularização dependerá de que a

forma das relações sociais e huma-

nas na instituição parta da horizon-

talização como meta e, em alguma

medida, seja vivida como exercício.

Sem isto não há a menor plausibili-

dade em propor a implicação subje-

tiva e sociocultural do usuário e do

trabalhador; sem estas parece-nos

que não pode haver terapêutica na

perspectiva da singularização.

Apenas poderá ser meta realis-

ta, na medida em que a instituição

seja capaz de desfazer seu imagi-

nário repressivo e segregador (pa-

trimônio que neste momento histó-

rico não é exclusividade do Hospi-

so aos usuários e da população do

território a todos os espaços insti-

tucionais; criar modelos de recep-

ção e de escuta das primeiras de-

mandas, que sejam capazes de der-

rogar os atuais balcões e filas de

espera, construindo uma relação di-

reta que permita à instituição situ-

ar-se no imaginário e no simbólico

como ‘sujeito-suposto-saber’, ou

seja, que lhe permita funcionar como

primeiro interlocutor e até como te-

rapeuta, se for o caso, ali onde a ins-

tituição está acostumada a pensar e

agir apenas como ‘natureza morta’

ou, na melhor das hipóteses, como

suporte das relações sociais da sua

produção ali atualizadas.

Finalmente, a singularização só

poderá ser almejada como meta éti-

ca realista se formos capazes de

superar o modo da ética vigente

nas práticas atuais do Modo Asi-

lar. A atitude ética de uma prática

em saúde mental pode ser decifra-

da a partir de uma análise de seus

efeitos de tratamento e cura e tam-

bém através das finalidades socio-

culturais para que concorrem es-

ses efeitos. A ética da singulariza-

ção terá que superar os modelos

funcionalistas das práticas que tra-

balham nos eixos da adequação do

indivíduo ao meio e do ego à reali-

dade, e no eixo da relação entre

carências e suprimentos da mais

variada natureza.

Essa superação só poderá ser

alcançada na perspectiva de uma

prática que seja capaz de propor,

tal Psiquiátrico). Isto, por sua vez,

só será possível se os seus agentes

forem capazes de fazer prevalecer

ações que tendam a transformá-la

em espaço privilegiado de interlo-

cução para questões subjetivas e

socioculturais. Para isso será neces-

sário que tais agentes sejam capa-

zes de rever, de forma drástica, sua

representação da sintaxe e da se-

mântica em termos lingüísticos e

em termos dos conjuntos do arqui-

tetônico e do mobiliário; abrir aces-

A ATITUDE ÉTICA DE UMA PRÁTICA EM

SAÚDE MENTAL PODE SER DECIFRADA APARTIR DE UMA ANÁLISE DE SEUS EFEITOS

DE TRATAMENTO E CURA E TAMBÉM

ATRAVÉS DAS FINALIDADES SOCIOCULTURAIS

PARA QUE CONCORREM ESSES EFEITOS

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As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 23

como efeito principal das suas

ações de tratamento, a implicação

subjetiva como meta radical, na re-

lação do sujeito com o desejo (por

oposição ao ego-realidade) e na re-

lação carecimento-Ideais (por opo-

sição à carência-suprimento); dese-

jo e carecimento considerados como

o que mais essencialmente define

a especificidade do homem.

O PROCESSO DE ESTRATÉGIADE HEGEMONIA NA SAÚDE MENTAL:

AVANÇOS E RETROCESSOS

Muitas das propostas apresen-

tadas nas duas Conferências se con-

cretizaram, como, por exemplo, a

criação de lei federal, leis estadu-

ais e municipais, que incorporaram

as propostas apresentadas no rela-

tório e a criação da Comissão Naci-

onal de Reforma Psiquiátrica que

teve, posteriormente, a sua deno-

minação mudada para Comissão

Nacional de Saúde Mental. Nesse

sentido, o relatório da II CNSM

apontou para a consolidação das

conquistas e para onde avançar. Os

avanços, entretanto, parecem ter

sido mais difíceis num dos eixos

centrais e mais importantes da luta:

a Lei Paulo Delgado.

A II CNSM consolidou também

a conquista dos espaços institucio-

nais. A posição oficial do aparato

estatal estava alicerçada pelas di-

retrizes propostas e pelos conceitos

do Movimento da Reforma Psiqui-

átrica. Utilizando-se da mesma es-

tratégia do Movimento Sanitário, a

Reforma Psiquiátrica instituciona-

lizou-se enquanto política oficial (se

é que, pelo menos desde os anos

setenta, em algum momento deixou

de ser política oficial, ao menos no

discurso). Na ‘guerra de posições’

no interior da construção de um

processo de hegemonia, o Movi-

mento da Reforma Psiquiátrica con-

quistou territórios no interior do

aparelho estatal.

Primeira inflexão: as críticas ao

manicômio e à sua lógica. Esta é

identificada a do Estado autoritá-

rio naquele momento em uma de

suas faces mais evidentes; nesse

momento também o modelo econô-

mico excludente é colocado em pa-

ralelo com o paradigma excludente

da saúde mental e vice-versa. Até

este momento, as lutas contra o

hospital psiquiátrico se mesclam

inteiramente com as lutas sociais,

podendo-se dizer que elas se auto-

reforçam. Até aqui parecia reagir-

se contra um adversário que insis-

tia em ficar impassível, embora

para olhos mais avisados fosse ine-

quívoco tratar-se sempre das ações

da contraface hegemônica que, na

seqüência, ficariam mais evidentes.

Segunda inflexão: os movimen-

tos da Reforma Psiquiátrica se am-

pliam, ganhando um novo eco so-

cial. Agora pode se dizer que a pró-

pria sociedade se envolve na luta

contra o manicômio e sua lógica;

firma-se o Movimento da Luta An-

timanicomial, cujo lema, ‘por uma

sociedade sem manicômios’, ajuda

a definir com clareza um preceito

central das ações dos interesses até

aí subordinados: os trabalhadores

das instituições de saúde mental e

seus usuários. Na mesma seqüên-

cia vão se firmando várias experi-

ências e práticas, exercitando no-

vas lógicas e demonstrando sua ca-

pacidade de substituir o hospital

psiquiátrico; firmam-se novos sig-

nificantes sociais antimanicômiais:

Finalmente, poderia ser útil subli-

nharmos que esse processo de lutas

e conquistas pontuado pelas duas

CNSM transcorre atravessado por um

movimento de sinal contrário, que se

processa, neste caso, muito mais

como reação às ações da Reforma

Psiquiátrica, do que como movimen-

to deliberado capaz de desfraldar sua

própria bandeira. No transcurso his-

tórico dessa luta podemos ver dese-

nhadas algumas inflexões maiores

que vale a pena sublinhar.

A II CNSMCONSOLIDOU TAMBÉM

A CONQUISTA DOS

ESPAÇOS INSTITUCIONAIS

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COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.

24 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001

Centros de Atenção Psicossocial

(CAPS) e Núcleos de Atenção Psi-

cossocial (NAPS). Assistimos a al-

gumas manifestações oficiais,

mesmo que ainda tímidas no sen-

tido de subtraírem espaço e pode-

rio ao hospital psiquiátrico. Aqui

as forças contra-hegemônicas mos-

tram sua face bem configurada;

força que poderíamos flagrar na

sua maior visibilidade se nos deti-

véssemos na observação dos avan-

ços e retrocessos de uma das pe-

ças mais notáveis da luta antima-

nicomial: a Lei Paulo Delgado. Pa-

rece-nos que nada poderia ser mais

indicativo da intensidade e virulên-

cia das forças contra-hegemônicas

à Reforma Psiquiátrica do que a di-

ferença entre o que se propunha

como objetivos dessa lei e o que se

conseguiu transformar em Lei.

Terceira inflexão: podemos ver

esboçado um momento, de aparên-

cia mais serena, em que se vão se-

dimentando novos conceitos e no-

vos significantes, novas práticas e

novos movimentos; momento em

que se destacam os movimentos de

usuários, dentro da perspectiva da

participação popular. Também ve-

mos tentativas cada vez mais fre-

qüentes de teorização das novas

práticas e de sua lógica teórico-téc-

nica e ética, a ponto de visualizar,

sem maiores dificuldades, a perti-

nência e a possibilidade de novos

serviços na perspectiva de uma te-

rapêutica cidadã.

Quanto a esta terceira inflexão

nas lutas pela Reforma Psiquiátri-

ca, às reações contra-hegemônicas,

do tipo que nos é familiar, devemos

acrescentar outras de ordem micro-

física; uma espécie de patrimônio

sinistro herdado da constância do

lugar de subordinado no Processo

de Estratégia de Hegemonia.

PONTOS PARA UMA PROPOSTADE AGENDA DE DISCUSSÃO.

1. Refletir sobre as atuais estra-

tégias de fortalecimento do

movimento de usuários e pro-

por avanços.

2. Avançar nas propostas de acom-

panhamento e avaliação da rede

de serviços substitutivos por

comissões paritárias de usuári-

os e gestores e trabalhadores.

3. Discutir o surgimento de uma

nova demanda – dependência

química – que apresenta uma

interface com assistência soci-

al e judiciária.

4. Discutir a demanda dos usuá-

rios – ex-internos – que acabam

desassistidos sofrendo com

processo de marginalização.

5. Discutir a transinstitucionaliza-

ção – criação de outras institui-

ções menores de segregação –

em que são abandonadas as es-

truturas asilares mas não a pos-

sibilidade da cronicidade e de

medicalização da demanda.

6. Criação de dispositivos que ga-

rantam a transferência dos re-

cursos financeiros das interna-

ções para os serviços substitu-

tivos em saúde mental.

7. Discussão sobre a revisão da

formação profissional, com pro-

posta para a reforma curricular

dos profissionais da saúde con-

siderando os parâmetros da re-

forma psiquiátrica.

8. Construção de espaços de aco-

lhimento e cuidado, flexíveis e

que façam uma ponte com ou-

tros setores, principalmente as-

sistência social, educação, cul-

tura. Trabalho na perspectiva

de uma rede intersetorial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA-ROSA, A., 1987. Saúde Mental

Comunitária: análise dialética de

um movimento alternativo. Tese

de mestrado, São Paulo: Instituto

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As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 25

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Conferência Nacional de Saúde

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de Mestrado, Assis: Faculdade

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26 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001

ARTIGOS ORIGINAIS

A constituição de novas práticas no campo da AtençãoPsicossocial: análise de dois projetos pioneiros na ReformaPsiquiátrica no Brasil

The forming of new practices in the Psychiatric-social care: review of two pioneerprojects in the Psychiatric Reform in Brazil

1 Médico, Doutor em Saúde Pública,

Pesquisador Titular da ENSP/FIOCRUZ

2 Psicólogo, Especialista em Saúde

Mental, Mestrando em Saúde Pública na

ENSP/FIOCRUZ

Paulo Duarte de Carvalho Amarante1

Eduardo Henrique Guimarães Torre2

Endereço para correspondência:

Av. Brasil, 4036/506

CEP 21040-361 – Manguinhos – RJ.

e-mail: [email protected]

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar documentos históricos de dois

serviços pioneiros no âmbito da Reforma Psiquiátrica no Brasil num contexto

específico de transformações no campo da saúde mental. Busca-se captar os

principais conceitos e dados históricos contidos nos projetos originais a fim de

entender a constituição deste novo campo de intervenção em saúde mental e de

estudar a produção teórica que dá base às novas formas de atenção e cuidado

aos sujeitos em sofrimento mental e situações de crise. Também é destacada a

necessidade de discussão sobre as portarias ministeriais que instituíram a

regulamentação dos novos serviços. Neste sentido, as reflexões aqui presentes

podem servir como subsídio para o trabalho de técnicos, profissionais,

pesquisadores e gestores na produção de novos conhecimentos, políticas e ações

de saúde mental no momento atual de implementação da Reforma Psiquiátrica.

PALAVRAS-CHAVE: atenção psicossocial; serviços substitutivos; Modelo Assistencial

em Saúde Mental

ABSTRACT

This paper aims to review historical documents from two pioneer services of

the Psychiatric Reform in Brazil within a specific context of transformations in

Mental Health. We seek to capture the main concepts and historical data found

in the original projects so as to understand the development of this new field on

Mental Health intervention and to study the theoretical production that supports

new ways of providing attention and care to individuals in psychiatric suffering

or crisis situations. We also highlight the need for discussion over ministerial

decrees which regulate the new services. In that way, the reflections put forward

here can be used as a source of work for technicians, professionals, researchers

and managers in producing new knowledge, politics and Mental Health actions

as the Psychiatric Reform is implemented today.

KEY WORDS: psychiatric-social care; substitutive services; assistance model in

mental health

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001 27

INTRODUÇÃO

A partir da segunda metade dos

anos 80, no Brasil, o movimento de

transformação no campo da saúde

mental passa por importantes mu-

danças, caracterizadas pelo surgi-

mento de novos serviços num con-

texto histórico, político e conceitu-

al emergente. A realização de duas

Conferências Nacionais de Saúde

Mental em 1987 e 1992, somada à

inscrição da proposta do Sistema

Único de Saúde (SUS) na Carta Cons-

titucional de 1988, abrem novos ca-

minhos para a saúde pública no Bra-

sil da “redemocratização”. Junto a

esses movimentos, profissionais da

saúde mental, articulados por todo

o país em torno do lema “Por uma

sociedade sem manicômios” (ado-

tado no II Congresso Nacional de

Trabalhadores de Saúde Mental em

dezembro de 1987), promovem dis-

cussões e produzem uma série de

novas experiências em suas inter-

venções junto à loucura e ao sofri-

mento psíquico.

Dentre estas novas experiênci-

as, destacam-se a criação do Cen-

tro de Atenção Psicossocial (CAPS)

Prof. Luis da Rocha Cerqueira, em

março de 1987 em São Paulo, e do

primeiro Núcleo de Atenção Psicos-

social (NAPS) em Santos, no bojo

das transformações mais gerais

ocorridas naquele município no

âmbito da saúde mental, após a

histórica intervenção na Clínica An-

chieta em 03 de maio de 1989.

Neste contexto de transforma-

ções e eventos sociais, políticos, téc-

nicos e ideológicos, são promulga-

das as Portarias Ministeriais 189/91

e 224/92, que instituem novos gru-

pos de procedimentos nas tabelas

dos Sistemas de Informações Hos-

pitalares (SIH) e Sistemas de Infor-

mações Ambulatoriais (SIA)/ Siste-

ma Único de Saúde (SUS), viabili-

zando a criação de muitos novos ser-

viços de atenção em saúde mental.

Assim, torna-se essencial refletir so-

pla sobre os novos serviços de saú-

de mental no Brasil, indicada na

bibliografia ao final deste texto.

O Centro de Atenção Psicossocial

Prof. Luiz da Rocha Cerqueira e o

Núcleo de Atenção Psicossocial de

Santos são pioneiros enquanto ser-

viços alternativos à internação e ao

tratamento psiquiátricos convencio-

nais. Apesar de existirem outros ti-

pos de dispositivos alternativos à

internação psiquiátrica (como hos-

pitais-dia, pensões protegidas, etc.),

alguns talvez até mesmo anteriores

à criação do CAPS e do NAPS, os pro-

jetos destes serviços foram escolhi-

dos como objeto de análise deste es-

tudo devido ao fato de tais experiên-

cias serem consideradas referências

para se pensar o contexto atual da

problemática existente no campo da

saúde mental. Sabemos que os ser-

viços evoluíram, incorporaram novas

questões e sofreram transformações,

mas seus projetos de origem marca-

ram um certo campo de intervenção,

e estas experiências primárias vêm

ainda influenciando a criação de

novos serviços, na medida em que

serviram de referência para as refe-

ridas portarias ministeriais.

A análise dos projetos não visa

estabelecer uma comparação entre

os serviços, mas captar as singula-

ridades e especificidades dos mes-

mos, procurando identificar suas

bases teóricas, suas estratégias e

tendências, com o objetivo de ser-

vir de instrumento para o planeja-

mento e invenção de novas possibi-

bre os chamados “novos serviços”,

considerando fazerem parte de um

processo importante na construção

de uma nova praxis da área.

HISTÓRICO

Este artigo foi escrito a partir da

reformulação de trabalho produzi-

do anteriormente em colaboração

com outros autores (Amarante et al.,

1999). Este, por sua vez, surge no

âmbito de uma pesquisa mais am-

DENTRE ESTAS NOVAS EXPERIÊNCIAS,DESTACAM-SE A CRIAÇÃO DO CENTRO DE

ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (CAPS) PROF.LUIS DA ROCHA CERQUEIRA, EM MARÇO

DE 1987 EM SÃO PAULO, E DO

PRIMEIRO NÚCLEO DE ATENÇÃO

PSICOSSOCIAL (NAPS) EM SANTOS

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AMARANTE, P. D. de C. & TORRE, E. H. G.

28 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001

lidades para muitas outras experi-

ências que venham a surgir. Cum-

pre ressaltar que, para um maior

aprofundamento acerca destes ser-

viços pioneiros existem as disserta-

ções de Goldberg (1992), A doença

mental e as instituições – a perspec-

tiva de novas práticas, e Yasui (1999)

sobre o CAPS, e Nicácio (1994), O

processo de transformação da saú-

de mental em Santos: desconstrução

de saberes, instituições e cultura,

sobre o NAPS, dentre outras referên-

cias, algumas das quais indicadas

nas referências bibliográficas.

METODOLOGIA E ADVERTÊNCIAS

No presente trabalho, utilizamos

a análise de conteúdo que consiste

em “um método de tratamento e

análise de informações, colhidas por

meio de técnicas de coleta de dados,

consubstanciadas em um documen-

to” (Chizzotti, 1995, 98). Analisa-

mos os documentos referentes aos

projetos originais do Centro de Aten-

ção Psicossocial Prof. Luiz da Ro-

cha Cerqueira e do Núcleo de Aten-

ção Psicossocial de Santos, desta-

cando “unidades de registro” como

palavras, expressões e conceitos que

possibilitam analisar o conteúdo de

sua mensagem, além de “unidades

de contexto” (Minayo, 1994, 75),

procurando situá-los dentro de um

contexto específico.

Os projetos analisados são do-

cumentos de natureza distinta: o

projeto do Centro de Atenção Psicos-

social Prof. Luiz da Rocha Cerquei-

ra (Coordenadoria de Saúde Mental,

1987), criado em São Paulo; e o tex-

to de apresentação do Núcleo de

Atenção Psicossocial (Nicácio et al.,

1990), criado em Santos em 1989.

Embora os documentos tenham

sido elaborados com objetivos de

divulgação ou de tramitação admi-

nistrativa, e apesar de oferecerem

algumas limitações enquanto ins-

trumentos de análise, possuem

tificar conceitos e noções que pa-

recem ser próprios à equipe, e ter

nascido da própria experiência do

serviço e de sua reflexão sobre ela.

Além disso, se faz necessário aten-

tar ao fato de que tais serviços evo-

luíram radicalmente em determina-

dos aspectos. O objetivo da presen-

te análise não é, mais uma vez,

compará-los, mas subsidiar o de-

bate sobre a construção de novas

formas de atenção e cuidado no

campo da saúde mental.

O PROJETO ORIGINAL DO CAPS

O CAPS é inaugurado em março

de 1987, em meio a um processo de

redemocratização do país e num

contexto de transição de uma fase

sanitarista (de reformas que tinham

como princípio a inversão de uma

política nacional de privatizante

para estatizante e a implementação

de serviços extra-hospitalares), para

a chamada “desinstitucionalização”

ligada, por um lado, à idéia de de-

sospitalização (influência do mode-

lo americano), e por outro à idéia

de transformação cultural (influên-

cia do movimento italiano). O pro-

jeto, de autoria da Coordenadoria de

Saúde Mental, define a estrutura de

seu funcionamento e a clientela pri-

oritária a que se propõe a atender,

descrevendo-a como aquela “soci-

almente invalidada”, com “formas

diferentes e especiais de ser”, com

“patologias de maior complexida-

conceitos e noções que lhes confe-

rem representatividade. A nature-

za destes deve ser levada em con-

sideração, sendo importante ressal-

tar que o documento do CAPS é um

projeto escrito antes da montagem

do serviço, com o objetivo de obter

recursos para sua implementação,

portanto, sem uma preocupação de

fundamentação teórica; enquanto

que o documento do NAPS é um

texto preparado a partir da criação

do serviço, no qual podemos iden-

ANALISAMOS OS DOCUMENTOS REFERENTES

AOS PROJETOS ORIGINAIS DO CENTRO DE

ATENÇÃO PSICOSSOCIAL PROF. LUIZ DA

ROCHA CERQUEIRA E DO NÚCLEO DE

ATENÇÃO PSICOSSOCIAL DE SANTOS

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001 29

de”, de “pessoas que tenham enve-

redado por um circuito de cronifica-

ção”, de “pessoas com graus variá-

veis de limitações sociais” e com

“graves dificuldades de relaciona-

mento e inserção social” (Coordena-

doria de Saúde Mental, 1987, 01).

Tratando-se de um documento

de natureza eminentemente admi-

nistrativa, não cita explicitamente

autores de referência, nem define

um marco teórico específico.

O projeto define o CAPS como “es-

trutura intermediária” entre o hospi-

tal e a comunidade, que oferece às

pessoas “um espaço institucional que

buscasse entendê-las e instrumenta-

lizá-las para o exercício da vida civil”.

Neste contexto, pensa-se, portanto,

numa rede assistencial externa inter-

mediária, não-cronificante e não-bu-

rocratizada, ligada à sociedade e à

comunidade, quando é ressaltada a

cronificação do hospital e a burocra-

tização dos serviços externos. O CAPS

corresponde, então, a um “filtro de

atendimento entre o hospital e a co-

munidade com vistas à construção de

uma rede de prestação de serviços

preferencialmente comunitária”

(idem: 02), de cunho desburocratizan-

te e de caráter multiprofissional, for-

mando uma “estrutura de continên-

cia multiprofissional que busque es-

timular múltiplos aspectos necessá-

rios ao exercício da vida em socieda-

de respeitando-se a singularidade dos

sujeitos”. (idem, ibidem).

O serviço propõe um funciona-

mento de 8 h/dia, 5 dias por sema-

na, tendo como núcleo organizador

a assistência, a reflexão sobre suas

práticas e a transmissão de suas ex-

periências a outros profissionais.

Trata-se de uma dinâmica docente-

assistencial que pretende uma dupla

instrumentalização: a dos profissio-

nais que atuam neste campo, a fim

de que possam lidar melhor com as

“patologias de maior complexidade”

(idem: 01), e a dos usuários, para a

vida em sociedade. A assistência é

definida como de atenção integral

culturais. O serviço deve buscar um

“cuidado personalizado” a quem

atende, através de um “tratamento

de intensidade máxima”, funcionan-

do como um núcleo de reflexão dos

serviços, de sistematização de infor-

mações e experiências, gerando uma

tecnologia capaz de ser transmitida

aos profissionais de saúde mental,

realizando investigações epidemio-

lógicas, clínicas e institucionais na

construção desta rede de serviços

preferencialmente comunitária.

O PROJETO ORIGINAL DO NAPS

O primeiro Núcleo de Atenção

Psicossocial nasce em setembro de

1989, na Zona Noroeste de Santos,

vinculado à Secretaria de Higiene e

Saúde, no contexto do processo de

transformação da Saúde Mental que

se desenrola em Santos, a partir da

intervenção municipal na Casa de

Saúde Anchieta.

O projeto foi elaborado após a

criação do serviço, e fundamenta-

se em determinados autores, a co-

meçar por Basaglia, do qual é to-

mada a noção de utopia para pen-

sar a ação prática de transformar a

realidade, entendendo que “abrir o

manicômio não é apenas abrir as

suas portas, mas ao abri-las, abrir

as nossas cabeças para a realidade

de vida dos pacientes” (Basaglia

apud Nicácio et al., 1990, 02).

O NAPS tem como eixo “a des-

construção do manicômio”, produ-

(no sentido psicossocial), personali-

zada, exercida através de “progra-

mas de atividades psicoterápicas,

socioterápicas de arte e de terapia

ocupacional” (idem: 02), dentro de

um enfoque “multidisciplinar” e

“pluri-institucional”. A doença men-

tal deve ser pensada no campo da

saúde coletiva, levando-se em conta

os contextos micro e macro social,

como a família, o trabalho e seu con-

texto histórico, tentando produzir

uma reinterpretação de elementos

O PROJETO DEFINE O CAPS COMO

“ESTRUTURA INTERMEDIÁRIA” ENTRE OHOSPITAL E A COMUNIDADE, QUE OFERECE

ÀS PESSOAS “UM ESPAÇO INSTITUCIONAL

QUE BUSCASSE ENTENDÊ-LAS EINSTRUMENTALIZÁ-LAS PARA O

EXERCÍCIO DA VIDA CIVIL”

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30 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001

zindo um novo projeto de Saúde

Mental que se constitua numa ins-

tituição que não segregue e não ex-

clua. Tendo o manicômio como lu-

gar de violência, sua desconstrução

implica uma ética que permeia o tra-

balho. Este é um ponto-chave no

NAPS que visa superar a lógica da

assistência em direção à lógica da

produção de saúde: “A ética, en-

quanto o buscar realizar pratica-

mente a utopia é seu maior impul-

so; utopia como ação prática de

transformar a realidade (Basaglia)

e a clareza de que a negação do

manicômio como lugar de violência

não se realiza no sonho das idéias”

(Nicácio, 1990: 02).

A partir de Rotelli, outro autor

referido no texto, entende-se que, ao

contribuir com um processo de ação

e reflexão para a transformação da

estrutura manicomial, possibilita-se

uma nova e complexa realidade no

campo da saúde mental:

“(...) sair do manicômio (e esta saí-

da não é aquela triunfal, românti-

ca, mas um processo cotidiano, téc-

nico, político, cultural, legislativo)

abre um campo de possibilidades e

como tal incerto, rico, contraditório,

por vezes extremamente difícil, novo,

e belo (...) A complexidade desta

nova realidade implica instituições

em movimento, (...) em ‘aceitar o

desafio da complexidade dos múlti-

plos planos da existência não redu-

zindo o sujeito à doença ou a comu-

nicação ‘perturbada’, ou e apenas a

pobre, ou autonomizando o corpo e

ou o psíquico, mas reinscrevendo-o

no corpo social’.” (idem: 02-03).

Este desafio, acredita-se, é o da

construção de algo que não é dado,

o que requer uma certa abertura no

enfrentamento de incertezas e con-

flitos, além da necessidade de envol-

vimento de diferentes atores sociais.

Algumas estratégias da estrutu-

ra e ação do NAPS são considera-

das fundamentais para a realiza-

ção de seus objetivos. A estratégia

tar o real acesso ao serviço e do ser-

viço às pessoas que implica superar

a lógica da assistência como repara-

ção do dano para a lógica de produ-

ção de saúde (...)” (idem: 03).

Outra estratégia consiste na

abertura do debate aos cidadãos, no

dialogar com a comunidade através

das associações, Sindicatos, Igrejas.

Este debate, “não mais compreen-

dido como de domínio exclusivo dos

técnicos”, deve abordar

“(...) o significado social do manicô-

mio e de uma instituição aberta (...),

as diferentes formas de compreender a

loucura, sobre a exclusão social, a ques-

tão da cidadania. Este é um trabalho

constante (...) na prática concreta na

região: são as visitas domiciliares, a

conversa com a vizinhança quando

alguém está em crise, o diálogo no lo-

cal de trabalho (...)” (idem: 03-04).

Mais uma estratégia na ação do

NAPS é a de ter um projeto terapêu-

tico, que envolve o “cuidar de uma

pessoa”, “fazer-se responsável”,

“evitar o abandono”, “atender à cri-

se” e “responsabilizar-se pela de-

manda”, através de diferentes ins-

trumentos técnicos:

“O ‘cuidar de uma pessoa’, ou

seja a construção do projeto terapêu-

tico implica a existência daquele su-

jeito para além da remissão do sin-

toma, reparação do dano ou o olhar

para a doença. (...) Este projeto co-

loca em ação os diferentes instru-

mentos técnicos de conhecimento: a

medicação, o estar junto, os grupos,

a reunião de familiares, o atendi-

de regionalização, compreendida

como o ponto de partida para a

mudança de perspectiva, visando

uma ação de transformação cultu-

ral, e não como uma divisão admi-

nistrativa da cidade:

“(...) ou seja, o trabalho na região,

conhecer as necessidades, a deman-

da, o percurso da demanda psiqui-

átrica, conhecer e intervir nas orga-

nizações institucionais que tecem

esta Região, no sentido do NAPS ser

um ponto de referência, de possibili-

MAIS UMA ESTRATÉGIA NA AÇÃO DO NAPSÉ A DE TER UM PROJETO TERAPÊUTICO, QUE

ENVOLVE O “CUIDAR DE UMA PESSOA”,“FAZER-SE RESPONSÁVEL”, “EVITAR O

ABANDONO”, “ATENDER À CRISE” E“RESPONSABILIZAR-SE PELA DEMANDA”

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A Constituição de Novas Práticas no Campo da Atenção Psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001 31

mento individual, o atendimento

familiar, a assembléia, o grupo de

mulheres, os núcleos de trabalho, o

passeio na cidade e na praia, a visi-

ta domiciliar.” (idem: 04).

O projeto terapêutico requer res-

ponsabilidade pela demanda, que

tem dois aspectos. Primeiro, a não-

separação entre prevenção/trata-

mento/reabilitação. Segundo, o

atendimento à crise, que não se li-

mita ao atendimento das emergên-

cias que chegam ao Pronto-Socor-

ro, mas também no NAPS e nas ca-

sas. Em síntese, “(...) a presença e

intervenção ativas do serviço em

diferentes momentos e situações

numa ação de transformação cul-

tural” (idem,ibidem).

É a partir destes princípios que

o NAPS pretende tornar-se um ser-

viço substitutivo ao modelo mani-

comial: “Esta compreensão e a real

possibilidade do atendimento à cri-

se são fundamentais para as insti-

tuições que se pretendem ser subs-

titutivas ao manicômio.” (idem: 05-

06). Com fundamento nesta estra-

tégia, a proposta do NAPS é de fun-

cionamento integral, isto é, de fun-

cionamento de 24 horas, 07 dias

na semana, com um conjunto de re-

cursos que incluem a existência de

seis leitos.

A transformação da equipe (as-

sim como o conceito de equipe) é

outra estratégia importante:

“A equipe é aqui compreendida

como o trabalhar junto, como o es-

paço coletivo de ação e reflexão das

práticas profissionais, do confronto,

das ‘crises’ e do pensar e repensar o

próprio serviço. (...) A transformação

do papel do técnico, as crises gera-

das na construção de um serviço

aberto, o se perceber sem as conheci-

das grades, chaves e muros na rela-

ção com a loucura, são alguns dos

temas nas reuniões diárias da equi-

pe. (...) além dos prontuários de cada

paciente, escreve-se no ‘livrão’, de

forma a ter informações mais imedi-

atas, registro do que é necessário ser

mismo da prática, serve de inspi-

ração para a proposta de dois ei-

xos fundamentais de discussão:

“ – a construção de uma política de

saúde mental a partir de experiênci-

as locais e de transformação do inte-

rior das estruturas institucionais em

particular o manicômio;”

“ – no desenvolvimento desse proces-

so a construção de estruturas exter-

nas que busquem ser totalmente subs-

titutivas à internação.” (idem: 08-09)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos projetos dos dois

serviços demonstra, por um lado,

uma riqueza de concepções e uma

multiplicidade de estratégias no

enfrentamento do modelo assis-

tencial psiquiátrico tradicional.

Por outro lado, existem várias

distinções entre os mesmos, o

que vem a indicar sua natureza

diversa. Tanto a multiplicidade

do conjunto de suas contribui-

ções, quanto suas diferenças, fa-

zem de tais projetos documentos

fundamentais de referência para

auxiliar a reflexão e a constru-

ção das novas experiências no

campo da Saúde Mental.

As portarias 189/91 e 224/92 do

Ministério da Saúde instituíram e re-

gulamentaram a estrutura dos novos

serviços em saúde mental. Embora

tenham viabilizado a construção de

muitos novos serviços, produziram

feito, do que está sendo realizado,

uma comunicação informal; as reu-

niões e o ‘livrão’ são a base da orga-

nização do trabalho. (...) Talvez a fra-

se que mais expresse todo esse pro-

cesso seja a de Rotelli, dos profissio-

nais que ‘aprendem a aprender’; e

fundamentalmente que as relações de

poder e de saber possam ser coloca-

das em discussão (...)” (idem: 06)

Gramsci é o outro autor citado

no texto, do qual a premissa con-

tra o pessimismo da razão o oti-

AS PORTARIAS

189/91 E 224/92DO MINISTÉRIO DA SAÚDE

INSTITUÍRAM E REGULAMENTARAM

A ESTRUTURA DOS NOVOS

SERVIÇOS EM SAÚDE MENTAL

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32 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001

uma homogeneização das experiên-

cias originais, uma vez que as pio-

neiras, porém distintas, experiências

do CAPS e do NAPS, são considera-

das sinônimos em tais portarias1.

Na medida em que a utilização

dos “nomes próprios” de ambas as

instituições tornou-as modelos ou

modalidades de serviços, e ainda,

modelos idênticos, perdeu-se a plu-

ralidade das questões por elas intro-

duzidas. Uma das contradições im-

portantes está no fato de que, em-

bora esteja previsto o funcionamen-

to de NAPS/CAPS por 24 horas, sua

definição é a de serviço intermediá-

rio entre o regime ambulatorial e a

internação hospitalar, não sendo uti-

lizado o conceito de serviço substi-

tutivo introduzido pelo Núcleo de

Atenção Psicossocial de Santos.

Os documentos analisados dese-

nham serviços distintos que surgi-

ram da crítica prático-teórica ao tra-

tamento psiquiátrico convencional,

não correspondendo a qualquer tipo

de prática em saúde mental, a prin-

cípio, até então desenvolvida no Bra-

sil. A presente preocupação com este

tipo de análise se deve à grande im-

portância desses serviços no contex-

to das transformações ocorridas na

área, que buscam construir não uma

modernização ou humanização do

modelo anterior, mas uma superação

efetiva do mesmo. Estes têm sido, ao

menos, os princípios explícitos do

amplo e plural movimento no cam-

po denominado de antimanicomial

ou de reforma psiquiátrica.

Serem denominados de “novos”

não garante que os serviços de saú-

de mental criados sejam mediadores

e operadores de novas formas de in-

Neste sentido, acreditamos existirem

algumas questões e noções de base

que necessitem de maior debate, a

fim de oferecerem um aprofunda-

mento e uma clareza acerca da pro-

blemática dos novos serviços, num

contexto de construção do campo da

saúde mental e suas práticas.

Mais importante que os termos

são os seus significados. Por exem-

plo, ocorre que sob a denominação

“antimanicomial”, são realizadas

práticas bastante conservadoras, e

sob a de “Reforma Psiquiátrica”

muitas inovadoras. O fundamental

é precisamente esta clareza com que

os princípios são postos em discus-

são, assim como as estratégias cons-

cientes que visam, e tornam possí-

vel ou não, a superação do modelo

tradicional. A reflexão sobre os no-

vos serviços só é realizada de forma

consistente quando se coloca um

questionamento dos princípios que

norteiam a relação com a loucura. É

a partir deste aspecto central que a

inovação pode ser analisada. Isso

envolve, portanto, uma abordagem

histórica que oriente o enfrentamen-

to do processo de desconstrução do

manicômio e que funcione para ana-

1 A Portaria 189/91 introduz dois códigos de NAPS/CAPS na Tabela SIA/SUS, um para serviço de um turno e outro para serviço de dois turnos.

A Portaria 224/92 define os NAPS/CAPS como “unidades de saúde locais/regionalizadas, que contam com uma população adscrita definida pelo

nível local e que oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em um ou dois turnos

de 4 horas, por equipe multiprofissional”, e que “podem constituir-se também em porta de entrada da rede de serviços para as ações relativas

à saúde mental, considerando sua característica de unidade local e regionalizada. Atendem também a pacientes referenciados de outros

serviços de saúde, dos serviços de urgência psiquiátrica ou egressos de internação hospitalar. Deverão estar integrados a uma rede descentra-

lizada e hierarquizada de cuidados em saúde mental”. E ainda: “São unidades assistenciais que podem funcionar 24 horas por dia, durante os

sete dias da semana ou durante os cinco dias úteis, das 8:00 às 18:00 h, segundo definições do Órgão Gestor Local. Devem contar com leitos

para repouso eventual”. (MS, PM 224;91). Grifo nosso.

tervenção no trato com a loucura ou

que sejam substitutivos do modelo

manicomial. “Novo” implica certa

direção, que deve ser explicitada.

OS DOCUMENTOS ANALISADOS DESENHAM

SERVIÇOS DISTINTOS QUE SURGIRAM DA

CRÍTICA PRÁTICO-TEÓRICA AO TRATAMENTO

PSIQUIÁTRICO CONVENCIONAL, NÃO

CORRESPONDENDO A QUALQUER TIPO DE

PRÁTICA EM SAÚDE MENTAL

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A Constituição de Novas Práticas no Campo da Atenção Psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001 33

lisar a reprodução do modelo psiqui-

átrico, risco considerável com o qual

todos os novos serviços lidam ao ten-

tar se constituir. Para o trabalho no

campo da saúde mental, hoje, estas

idéias são decisivas.

O objetivo dos novos serviços,

caso procurem inscrever-se no pro-

cesso de rupturas – aqui entendi-

das no sentido epistemológico ou ar-

queológico, de rompimento radical

com determinado paradigma, ou de

construção de um novo paradigma

– com o modelo anterior, é o de pro-

duzir estruturas ou recursos que

efetivamente não reproduzam as

bases teórico-práticas do modelo

psiquiátrico clássico, que fundou a

noção de doença mental como sinô-

nimo de desrazão e patologia, que

fundou o manicômio como lugar de

cura e que fundou a cura como or-

topedia e normalização.

É importante que o Ministério da

Saúde, que normaliza as ações e

princípios do SUS, assim como o seu

financiamento, enriqueça as deno-

minações CAPS e NAPS com outras

tipificações que digam mais respei-

to à natureza dos serviços, o que

não significa que a terminologia

CAPS e NAPS deixaria de ser impor-

tante. Talvez ainda mais importan-

te, e isto não compete apenas ao

Ministério, é a formação de técni-

cos, de profissionais, nas questões

conceituais e práticas que envolvem

os novos serviços, para que os mes-

mos não sejam atualizações da psi-

quiatria, não sejam reformas, no

sentido mais precário do termo, e

sim rupturas. E como rupturas fun-

damentais entende-se, aquelas ope-

radas com:

• método epistêmico da psiquiatria,

centrado nas ciências naturais;

• conceito de doença mental, en-

quanto erro, desrazão, periculo-

sidade; e como doença, patolo-

gia, desordem;

• princípio da instituição asilar

como recurso terapêutico (o

princípio pineliano do isolamen-

to terapêutico), ainda hoje mui-

to presente em nossas velhas e

“novas” instituições e serviços;

• os princípios do tratamento

moral, atualmente presentes

nas bases das terapêuticas

normalizadoras.

Isto é, se não existirem ruptu-

ras, não existirão os novos (sem

aspas) serviços, existirão não mais

que metamorfoses, roupagens ‘no-

vas’ para velhos princípios. Assim,

cumpre verificar como se organi-

zam os novos serviços no sentido

de produzir uma instituição com

caráter substitutivo, assumindo a

demanda real dos portadores de

sofrimento psíquico e assumindo

os recursos financeiros e o pesso-

al atualmente destinado ao siste-

ma hospitalar, ao invés de seguir

criando uma nova demanda, for-

mando uma rede paralela, talvez

medicalizante/ psicologizante, tal-

vez cronicizante.

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Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 35

ARTIGOS ORIGINAIS

Da avaliação em saúde à avaliação em Saúde Mental:gênese, aproximações teóricas e questões atuais1

From health assesment to Mental Health assesment: birth, theoretical approachesand current issues

Patty Fidelis de Almeida1

Sarah Escorel2

1 As autoras agradecem às pertinentes

observações do parecerista.

2 Mestranda em Saúde Pública – ENSP/

Fiocruz.

Endereço: Avenida Maracanã 617, bloco 1,

apt. 203 – Tijuca – Rio de Janeiro – RJ

CEP: 20511 000

Fone: (21)2567-0803 / (21)9853-9103

e-mail: [email protected]

3 Pesquisadora Titular – DAPS/ENSP/Fiocruz.

Endereço: Rua Almirante Alexandrino,

3051– Santa Teresa – Rio de Janeiro – RJ

CEP: 20241 262

Fone: (21) 2270-6937

e-mail: [email protected]

RESUMO

A avaliação em saúde apresenta-se como um dos processos capazes de

fornecer subsídios importantes à tomada de decisão no setor e de responder

demandas por maior transparência no uso de recursos públicos por parte da

sociedade civil organizada. Elegendo como ponto de partida as principais

mudanças ocorridas na assistência em Saúde Mental em curso a partir do

movimento pela Reforma Psiquiátrica no país, o presente artigo discute

questões pertinentes às definições de avaliação, ao desenvolvimento de estudos

em outros países, além de expor algumas especificidades relativas à atenção

psicossocial. A seguir são apresentadas algumas considerações sobre impasses

e perspectivas pertinentes à avaliação em saúde, com ênfase em metodologias

de avaliação participativas.

PALAVRAS-CHAVE: avaliação em saúde, avaliação em Saúde Mental, serviços

substitutivos

ABSTRACT

Health evaluation comes forward as one of the processes capable of

providing important foundations for decision making in the field and of

satisfying demands of the organized civil society for more transparency in

the use of public resources. Using as a start point the main changes in

Mental Health assistance due to the Psychiatric Reform in this country, the

present paper discusses the issues pertinent to the definitions of evaluation,

development of studies in foreign countries, as well as presenting a few

specificities of psychiatric-social care. Then a few considerations over the

obstacles and perspectives pertinent to health care evaluation, focusing on

collaborative evaluation methods are presented.

KEY-WORDS: health evaluation, mental health evaluation, substitutive services

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ALMEIDA, P. F. de & ESCOREL, S.

36 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001

INTRODUÇÃO

Em termos históricos, foi só a

partir da década de 80 que o movi-

mento pela Reforma Psiquiátrica1 no

Brasil ganhou importância, tanto

política como social. Para a sua im-

plementação foi preciso inventar

novos locais, instrumentos técnicos

e terapêuticos, como também novos

modos sociais de estabelecer rela-

ções com a loucura.

Nos anos 90, assistimos à cria-

ção e à consolidação de propostas

como Centros de Atenção Psicosso-

cial (CAPS), Núcleos de Atenção Psi-

cossocial (NAPS), Lares Abrigados,

etc., embora desde a década de 80

algumas experiências já estivessem

sendo desenvolvidas (Venancio,

1990). O desafio atual parece ser efe-

tivar as propostas da Reforma Psi-

quiátrica no sentido de implementar

novos dispositivos, embora os hos-

pitais tradicionais ainda absorvam

a maior parte das verbas destinadas

ao atendimento em psiquiatria.

Tendo em vista a reforma da as-

sistência psiquiátrica e a mudança do

paradigma asilar/hospitalocêntrico de

tratamento, o campo da atenção psi-

cossocial na última década foi grada-

tivamente delineando-se como um

espaço marcado pela diversidade de

linhas teóricas, de propostas terapêu-

ticas e de objetivos. Contudo, ainda

são escassos os estudos que priori-

zam a avaliação dos serviços substi-

tutivos, tanto em relação à qualida-

de, quanto ao acompanhamento dos

resultados que permitam auxiliar nas

mudanças estratégicas. Buscando for-

necer elementos para o debate sobre

os desafios e possibilidades que ca-

racterizam o campo da avaliação de

políticas, programas e serviços de

saúde, enfatizando as especificidades

da área de Saúde Mental, o presente

artigo apresenta uma breve revisão

da literatura pertinente ao tema, para

cebe-se que as definições são nume-

rosas e, de certa forma, construídas

a partir do referencial do próprio

avaliador. Guba e Lincoln (1989)

identificam na história da avaliação

quatro gerações. Cabe ressaltar que

a passagem de uma a outra não re-

presentou o desaparecimento da

etapa anterior, sendo a categoriza-

ção por gerações um elemento di-

dático. A primeira geração caracte-

rizou-se pelas técnicas de medida

como testes de inteligência e avali-

ação de desempenho escolar. O ava-

liador era um técnico que deveria

saber construir e/ou utilizar instru-

mentos de medida. Entre os anos 20

e 30 desenvolveu-se a segunda ge-

ração preocupada em identificar e

descrever como os programas edu-

cacionais atingiam seus resultados

e, para tanto, concentraram-se na

análise de currículo. Para a terceira

geração a avaliação permitiria não

só descrever e mensurar, mas tam-

bém julgar o mérito de uma inter-

venção a partir de referenciais ex-

ternos. Atualmente, segundo os au-

tores, estaríamos vivendo a quarta

geração, momento em que a avalia-

ção é caracterizada por um proces-

so de negociação entre avaliado e

avaliador, com propostas de caráter

participativo e inclusivo.

Contandriopoulos et al. (1997)

consideram que o processo de ava-

liação é caracterizado por estabele-

a seguir tecer considerações sobre os

impasses, além de discutir propostas

de metodologias de avaliação.

(IN) DEFINIÇÕES DE AVALIAÇÃO:NOTAS INTRODUTÓRIAS

Quando empreende-se a tarefa

de tentar conceituar ‘avaliação’, per-

1 Sobre esse assunto ver Amarante, 1995 e 1996; Birman e Costa, 1994; Desviat, 1999.

O DESAFIO ATUAL PARECE SER EFETIVAR AS

PROPOSTAS DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO

SENTIDO DE IMPLEMENTAR NOVOS

DISPOSITIVOS, EMBORA OS HOSPITAIS

TRADICIONAIS AINDA ABSORVAM A MAIOR

PARTE DAS VERBAS DESTINADAS AO

ATENDIMENTO EM PSIQUIATRIA

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Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 37

cer um julgamento de valor sobre

uma determinada intervenção ou

qualquer um de seus elementos,

com o objetivo de auxiliar a toma-

da de decisões. Para a OMS avalia-

ção é um processo importante para

o planejamento estratégico na me-

dida em que permite a formulação

de juízos apoiados em análises de

situações específicas, com o objeti-

vo de chegar a conclusões bem fun-

damentadas que subsidiem ações

futuras. Os julgamentos formados

não devem pressupor uma senten-

ça final, ao contrário, devem ser

pertinentes, sensíveis e acessíveis a

todos os que deles possam fazer uso

(OMS, apud Aguilar e Ander-Egg,

1994). Dessa forma, a avaliação só

justifica-se quando permite uma re-

troalimentação dos processos em

curso, a fim de corrigir, sanar ou

evitar eventuais ‘erros’, estabelecen-

do estratégias para melhorar a qua-

lidade da assistência prestada.

Os objetivos de um processo ava-

liativo serão distintos em função do

que se pretende avaliar. A análise

de políticas, programas ou serviços

exige diferenciações na escolha das

variáveis, dos atores e do locus so-

bre o qual incidirá a avaliação. Ape-

sar disso, ainda é recente na litera-

tura o esforço para destacar as es-

pecificidades da avaliação no cam-

po das políticas sociais e da avalia-

ção de programas e serviços, espe-

cialmente no campo da saúde.

Toda perspectiva de avaliação

está comprometida com formas de

conceber e interpretar a realidade.

Tentativas de tornar crenças e valo-

res do pesquisador menos tenden-

ciosos passam pela compreensão de

que o modelo adotado é somente

uma das possibilidades de interpre-

tar a realidade, mas não a contem-

pla em sua plenitude. O objetivo de

um processo avaliativo é “(...) rea-

limentar ações buscando aferir re-

sultados e impactos na alteração da

qualidade de vida da população be-

neficiária, ou ainda, mais precisa-

entre avaliador e contexto avaliado

sobre a forma por meio da qual os

resultados obtidos nesta interação

poderiam ser utilizados.

Para Donabedian (1990) seriam

três os enfoques possíveis para um

processo de avaliação. Na avaliação

de estrutura analisam-se os recur-

sos utilizados (físicos, humanos,

materiais, etc.) e organizacionais da

atenção. Vuori (1991) considera que

o pressuposto principal da aborda-

gem estrutural é que boas pré-con-

dições, ou boa disponibilidade de

recursos como força de trabalho,

instalações, equipamentos, entre

outros, tendem a gerar resultados

mais favoráveis.

A avaliação de processo enfoca

as atividades desenvolvidas em ter-

mos de utilização de recursos, qua-

litativos e quantitativos, pela equi-

pe em benefício do usuário. Inclui

também o que os pacientes fazem

por si próprios (Donabedian, 1990).

A avaliação de resultados em

saúde corresponderia à análise das

conseqüências na saúde de indivídu-

os e populações da atenção ofereci-

da pelo serviço ou por um profissio-

nal específico. Para Vuori (1991) se

os objetivos da atenção forem curar

ou evitar a progressão de doenças,

restaurar o estado de saúde ou alivi-

ar a dor e o sofrimento, pode-se con-

siderar o êxito da assistência quan-

do são alcançados esses resultados.

O ‘resultado’ supõe uma mudança no

estado de saúde, para melhor ou pior,

que possa ser atribuída à atenção

mente, repensar as opções políticas

e programáticas” (Carvalho, 1999).

A imparcialidade e independên-

cia dos dados obtidos na avaliação

ganham ainda mais destaque na

avaliação interna, ou seja, quando

se quer julgar uma realidade da qual

o pesquisador faz parte. Em qualquer

caso, alguns fatores poderiam garan-

tir a qualidade e a utilidade da ava-

liação como, por exemplo, uma boa

qualificação dos profissionais envol-

vidos e as estratégias construídas

AINDA É RECENTE NA LITERATURA

O ESFORÇO PARA DESTACAR AS

ESPECIFICIDADES DA AVALIAÇÃO NO

CAMPO DAS POLÍTICAS SOCIAIS E DA

AVALIAÇÃO DE PROGRAMAS E SERVIÇOS,ESPECIALMENTE NO CAMPO DA SAÚDE

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38 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001

recebida. Pode incluir outros elemen-

tos como conhecimento sobre a en-

fermidade, mudanças de conduta

que promovam saúde, produção de

indicadores ou índices do nível de

saúde de determinada população e

satisfação do paciente.

As críticas sobre a avaliação de

resultados recaem sobre a dificul-

dade em atribuir determinada mu-

dança no estado de saúde da popu-

lação à intervenção específica pois

os ‘resultados’ sofrem influência de

inúmeras variáveis. Para Vuori

(1991) os impasses apresentam-se

também na definição de padrões,

por meio dos quais possam ser men-

surados os resultados observados.

Defensores desse enfoque argumen-

tam que a melhoria nas condições

de saúde do paciente seria a prova

final de que a atenção foi positiva

(Donabedian,1990).

Não existe qualquer tipo de ava-

liação que possa ser definida como

instrumental, técnica ou neutra vis-

à-vis as opções valorativas de quem

empreende esse processo. Entretan-

to, conforme ressalta Arretche: “(...)

o uso adequado dos instrumentos

de análise e avaliação são funda-

mentais para que não se confundam

opções pessoais com resultados de

pesquisa” (1999:30). Dessa forma,

uma questão que deve estar sem-

pre presente, refere-se ao ambiente

político ou ao lugar ocupado pelo

programa ou serviço em análise

dentro do campo das políticas pú-

blicas em determinado contexto.

Lobo (1999) destaca que as forças

políticas que apoiam ou sabotam

um determinado programa, a lógi-

ca econômico-financeira que norteia

a alocação do gasto público, as cren-

ças sobre a maior ou menor neces-

sidade de democratização do Esta-

do, bem como as concepções de efi-

ciência, efetividade e eficácia das

ações governamentais na área soci-

al, fazem parte da reflexão mais

ampla que ajudam a definir de fato

o que está sendo avaliado. Para Hartz

Guerra Mundial, com o objetivo de

tornar mais eficiente a distribuição

de recursos pelo Estado. Segundo

Contandriopoulos et al. (1997) tais

abordagens logo mostraram-se in-

suficientes quando aplicadas a pro-

gramas sociais e educacionais.

Nos EUA, desde os anos 50, de-

senvolveram-se pesquisas de avali-

ação que utilizavam inquéritos e

análises estatísticas sob uma pers-

pectiva pluridisciplinar, tendo como

base conhecimentos das ciências

sociais. No mesmo país, a imple-

mentação de políticas sociais gover-

namentais de nível federal nos pe-

ríodos Kennedy e Johnson reforça-

ram a importância de pesquisas

avaliativas (Perez, 1999). Na déca-

da de 70, a necessidade de avaliar

ações sanitárias impôs-se como um

meio de controlar os custos do sis-

tema de saúde. Desde então, em um

número significativo de países

(EUA, Canadá, França, etc.) a avali-

ação sanitária detém grande prestí-

gio e investimentos.

Na França a função avaliação de

programas/políticas públicas está

institucionalizada, funcionando, ao

mesmo tempo, como um dispositi-

vo analítico e de gestão, moldado

como uma política. Um importante

marco da institucionalização foi a

fundação do Office Parlementaire

d’Evaluation des Choix Scientifiques

et Technologiques (1983), inspira-

do no Office of Technology Assess-

ment, órgão ligado ao congresso

norte-americano. O modelo francês

(1999) seria importante considerar

também as orientações ideológicas

que atravessam os programas sob

análise, ressaltando o fato de que,

mesmo para abordagens teórico-

metodológicas da mesma natureza,

os valores podem ser contrastantes.

AVALIAÇÃO EM SAÚDE: ALGUMAS EXPERIÊNCIAS

A avaliação de programas públi-

cos surgiu logo após a Segunda

CONFORME RESSALTA ARRETCHE:“(...) O USO ADEQUADO DOS

INSTRUMENTOS DE ANÁLISE EAVALIAÇÃO SÃO FUNDAMENTAIS

PARA QUE NÃO SE CONFUNDAM

OPÇÕES PESSOAIS COM RESULTADOS

DE PESQUISA” (1999:30)

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é caracterizado por sua abordagem

setorial, que apresenta resultados

promissores vis-à-vis modalidades

mais tradicionais e centralizadas

(Hartz, 1999 a).

Em relação aos países latino-

americanos criou-se, em 1944, na

Argentina, com financiamento do

Banco Mundial, o Sistema de Infor-

mação, Avaliação e Monitoramento

de Programas Sociais (SIEMPRO).

Os objetivos do sistema são acom-

panhar gastos na área social, pro-

duzir diagnósticos sobre a alocação

de recursos públicos, fornecer à Se-

cretaria de Desenvolvimento Social

recursos e instrumentos necessári-

os à operação de um sistema de in-

formação social, monitoramento,

avaliação e capacitação em gestão

social. A meta é integrar os siste-

mas de informação social aos pro-

cessos de avaliação, democratizan-

do as informações geradas. Apesar

de ter atingido um grau de institu-

cionalidade no país, a implementa-

ção da função avaliação ainda está

muito limitada aos programas fo-

calizados dirigidos às populações

pobres e grupos vulneráveis (Silva

e Costa, 2000).

No Chile, a função avaliadora

está relacionada à criação do Comi-

tê Intersetorial de Modernização da

Gestão Pública, instituído com o

objetivo de fornecer subsídios à

modernização das instituições pú-

blicas. Embora nesse país esteja

explícita uma orientação normati-

va à incorporação de instrumentos

de responsabilização e desempenho

para a administração pública, os

resultados da avaliação acabam por

tornar-se difusos na medida em que

não está claramente definida a ins-

tância operacional da gestão públi-

ca que será alvo de avaliação (Silva

e Costa, 2000).

Uma exploração inicial sobre o

campo da avaliação no Brasil de-

monstra que grande parte das aná-

lises existentes priorizam a racio-

nalização de gastos por meio de

nuidade, falta de documentação e

de sistematização dos resultados

obtidos. Duas características predo-

minantes no planejamento governa-

mental do Brasil seriam responsá-

veis pela situação: “a ênfase na for-

mulação de planos e elaboração de

programas e projetos; e, baixo de-

senvolvimento das etapas de acom-

panhamento e de avaliação dos pro-

cessos, resultados e impactos” (Sil-

va e Costa, 2000: 10).

Atualmente, organismos inter-

nacionais como o Banco Mundial,

provedor de assistência técnica e fi-

nanceira de reconhecida importân-

cia nos países em desenvolvimen-

to, incorporaram a “capacidade em

avaliação” como uma das priorida-

des para a gestão do setor público,

com o objetivo de garantir a sus-

tentabilidade dos programas (Pic-

cioto, 1997 apud Hartz, 1999). Ou-

tra consideração importante rela-

ciona-se à necessidade corrente-

mente apontada de uma pluralida-

de de abordagens metodológicas,

em que análises qualitativas agre-

gam tanto valor quanto julgamen-

tos de cunho estatístico.

O cenário atual coloca em evi-

dência também o interesse social

pelo processo de avaliação, em par-

ticular dos segmentos definidos

como stakeholders de alguns pro-

gramas governamentais. De acordo

com Silva e Costa, uma das exigên-

cias feitas aos programas sociais

seria “ (...) a definição de mecanis-

mos de acompanhamento e avalia-

abordagens de custo-benefício, le-

gitimam ações sanitárias muitas

vezes questionáveis ou estão inti-

mamente relacionadas a enfoques

pessoais de técnicas ou programas

(Pitta, 1992). Segundo Silva e Cos-

ta (2000), o país apresenta grande

diversidade e amplitude de concei-

tos e abordagens no campo da ava-

liação, embora as experiências de-

senvolvidas sejam consideradas in-

suficientes e insatisfatórias, princi-

palmente pela dispersão, desconti-

SEGUNDO SILVA E COSTA (2000),O PAÍS APRESENTA GRANDE DIVERSIDADE

E AMPLITUDE DE CONCEITOS EABORDAGENS NO CAMPO DA AVALIAÇÃO,

EMBORA AS EXPERIÊNCIAS DESENVOLVIDAS

SEJAM CONSIDERADAS INSUFICIENTES

E INSATISFATÓRIAS

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40 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001

ção que facilitem a comunicação do

governo com os beneficiários e aten-

dam aos requisitos de responsabili-

zação perante a sociedade” (2000: 9).

AVALIAÇÃO NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL

A avaliação de serviços em Saú-

de Mental ainda é um campo de es-

tudos bastante recente no Brasil,

embora alguns trabalhos já estejam

sendo desenvolvidos (Pitta et al.,

1997; Silva Filho et al., 1996, Li-

bério, 1999). Tais propostas procu-

ram criar novos instrumentos de

avaliação capazes de superar os

tradicionalmente utilizados pela

clínica psiquiátrica como número

de altas, diagnóstico e remissão de

sintomas. Contudo, apesar da his-

tória também recente dos modelos

substitutivos no país, a necessida-

de de um processo de avaliação tor-

nou-se um imperativo tanto para a

superação de modelos tradicionais,

incapazes de estabelecer fluxos

entre a implementação de determi-

nadas políticas ou programas e

seus resultados, quanto para o con-

trole e participação da sociedade

civil organizada. É consenso entre

os estudos realizados na área que

os parâmetros avaliativos de que

dispomos no campo da atenção

psicossocial são insuficientes, prin-

cipalmente no que diz respeito aos

indicadores produzidos no interior

dos serviços, que possam refletir o

dia-a-dia desses serviços.

Amarante e Carvalho (1996)

chamam a atenção para o proble-

ma de utilizar “técnica-pura” como

solução para questões cotidianas

sob o risco de homogeneização e

mecanização da realidade. A cons-

trução de novos parâmetros deve-

ria ter como fonte o interior dos

serviços permitindo, dessa forma,

a interação pesquisador-institui-

ção na construção de “(...) indica-

a ser apreendido como processo

em construção.

Em trabalho realizado em servi-

ços substitutivos da cidade do Rio

de Janeiro, Rietra (1999) destacou

a ausência de indicadores qualita-

tivos e quantitativos que possibili-

tem mensurar o alcance ou não das

metas estipuladas pelos serviços.

Embora ressalte que o trabalho de-

senvolvido seja de difícil medição,

reafirma a necessidade da elabora-

ção de indicadores específicos que

possibilitem o acompanhamento

dos resultados. Na perspectiva de

Saraceno e Bologaro (apud Silva Fi-

lho, 1996), que têm como referenci-

al a experiência da “Instituição Ne-

gada”2, o modelo a ser construído

para avaliação de serviços de Saú-

de Mental não deve considerar so-

mente a supressão ou redução dos

sintomas. Deve-se analisar também

a inserção familiar, no trabalho e na

vida cotidiana, captadas por meio

do que os autores denominaram

como variáveis soft, em função de

sua difícil mensurabilidade por en-

volver motivação de técnicos, expec-

tativas e satisfação da equipe com

o serviço. Neste sentido, haveria

“eventos sentinela”, fatos que seri-

am inadmissíveis no cotidiano dos

serviços substitutivos de Saúde

Mental, como ausência de projeto

terapêutico para o usuário. Ainda

assim, os autores não negam a im-

portância de variáveis hard como

tivos que possuam como fonte

principal as relações exercitadas

na instituição, principalmente no

que elas possam construir enquan-

to ética de inclusão e produção de

vida, tais como o conceito de au-

tonomia” (Amarante e Carvalho,

1996:81). Esses princípios impli-

cam a superação da dicotomia

quantitativo-qualitativo e elegem

as relações do cotidiano como algo

2 Sobre este assunto ver Basaglia, 1981.

A AVALIAÇÃO DE SERVIÇOS EM

SAÚDE MENTAL AINDA É UM CAMPO DE

ESTUDOS BASTANTE RECENTE NO BRASIL,EMBORA ALGUNS TRABALHOS JÁ ESTEJAM

SENDO DESENVOLVIDOS (PITTA ET AL.,1997; SILVA FILHO ET AL.,1996, LIBÉRIO, 1999)

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número de técnicos, número de sa-

las, carga horária, entre outras. Su-

gerem que a identificação de um

problema relevante, definição dos

critérios e padrões de qualidade,

construção de indicadores a partir

das informações coletadas na reali-

dade sob avaliação, posterior con-

fronto entre dados obtidos e critéri-

os previamente definidos, bem como

a discussão dos resultados são eta-

pas fundamentais a serem observa-

das (apud Silva Filho, 1996).

Com o objetivo de desenvolver

instrumentos de avaliação em Saú-

de Mental, O Laboratório de Inves-

tigação em Saúde Mental do Depar-

tamento de Medicina Preventiva da

USP3 empreendeu uma pesquisa

cujo objetivo foi caracterizar a po-

pulação atendida em um ambulató-

rio de Saúde Mental, no município

de São Paulo, dando ênfase aos as-

pectos epidemiológicos clássicos

(idade, sexo, diagnóstico, etc.) e in-

vestigando entre os usuários a pre-

sença ou ausência de autonomia.

Esta pesquisa fez parte de um estu-

do multicêntrico de Avaliação de

Qualidade de Programas e Serviços

de Saúde Mental desenvolvido e es-

timulado em diversos países4 pela

OMS. O instrumento básico de ava-

liação foi a Ficha de Caracterização

da Clientela (FCC). A pretensão da

pesquisa foi testar este instrumen-

to, verificando sua aplicabilidade

para estendê-lo posteriormente à

avaliação de outros serviços. A

questão da autonomia na pesquisa

citada, considerou os critérios prag-

máticos de autonomia para higie-

ne, alimentação, medicação, ir e vir,

trabalho e relações sociais (família,

amigos, grupos sociais).

Também considerando a produ-

ção de autonomia como uma das

vias possíveis para pensar a avalia-

ção da qualidade de serviços em Saú-

idéia de que o sujeito possa falar al-

guma coisa e ser entendido naquilo

que está dizendo. Assim, quando o

sujeito psicótico expressa-se, ainda

que tudo não tenha sido compreen-

dido, “algo da ordem de uma subje-

tividade se dá”. Ao mesmo tempo, o

tratamento proporcionaria também

a aquisição de habilidades de ordem

pragmática, como capacidade de ge-

rir dinheiro, ir e vir, cuidados com a

higiene entre outras habilidades ne-

cessárias à gestão do cotidiano, au-

mentando com isso a “qualidade de

vida” (Santos e Almeida, 2000).

Em trabalho que vem sendo rea-

lizado em um CAPS do município do

Rio de Janeiro pode-se apontar que

algumas iniciativas de avaliação do

serviço começam a ser implemen-

tadas. Para tal, vem sendo empre-

endida ampla discussão sobre quais

os objetivos de alguns dispositivos

terapêuticos utilizados, como as ofi-

cinas, redefinição de contratos dos

usuários e porta de entrada do ser-

viço. Em meio a essas discussões,

alguns critérios podem ser aponta-

dos nas discussões de equipe como

indicativos importantes a serem

atingidos pelo serviço: participação

de familiares no tratamento, parti-

cipação dos usuários em atividades

geradoras de renda, estabelecimen-

to de vínculos entre usuários e ou-

tros dispositivos da rede social do

3 Sobre a pesquisa ver Pitta et al. (Org.), 1997.

4 No Brasil, esse estudo envolveu o município de Niterói no estado do Rio de Janeiro e os municípios de Santos, Campinas e São Paulo, em

São Paulo.

de Mental, um estudo realizado em

um CAPS no estado de Minas Gerais

viabilizou a percepção de que, para

os técnicos, autonomia relaciona-se

à melhoria da “qualidade de vida”.

Neste sentido, os usuários passari-

am a estabelecer “laços sociais” não

verificados antes do início do trata-

mento. Esse conceito traduz-se pela

UM ESTUDO REALIZADO EM UM

CAPS NO ESTADO DE MINAS GERAIS

VIABILIZOU A PERCEPÇÃO DE QUE, PARA OS

TÉCNICOS, AUTONOMIA RELACIONA-SE ÀMELHORIA DA “QUALIDADE DE VIDA”

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42 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001

bairro como locais de lazer e cursos

profissionalizantes, e desenvolvi-

mento da capacidade de reivindicar

direitos. Para a consecução desses

objetivos, iniciativas relacionadas

ao incremento de oficinas produti-

vas, estabelecimento de contato com

outras instâncias da rede social da

área, busca de vagas em cursos de

informática, marcenaria, entre ou-

tros, além de um trabalho de cunho

político com a associação de usuá-

rios e familiares, começam a ser in-

tensificadas e discutidas com mai-

or profundidade (Almeida, 2001).

A Gerência de Programas de Saú-

de Mental do município do Rio de

Janeiro, com o objetivo de acompa-

nhar a qualidade da assistência pres-

tada pelos CAPS vem desenvolven-

do o Programa de Acompanhamen-

to da Qualidade dos Centros de Aten-

ção Psicossocial, propondo o moni-

toramento de alguns indicadores

como: perfil da clientela atendida,

índices de internação, abandono do

tratamento e adesão de famílias ao

tratamento, número de usuários do

serviço que retornam à escola, ao

trabalho ou a atividades da vida co-

munitária. Neste sentido, avaliações

periódicas da assistência prestada

vem sendo compreendida pela Gerên-

cia como um dever ético dos gesto-

res públicos, mas principalmente

como um instrumento de reflexão

para os atores diretamente envolvi-

dos na assistência (Libério, 1999).

A necessidade de apontar os re-

sultados da assistência no campo da

Saúde Mental é um tema controver-

tido. Como desenvolver um proces-

so de avaliação e quais instrumen-

tos utilizar que considerem a sin-

gularidade da atenção à loucura e

que respondam às exigências de re-

solutividade de um serviço público?

A adoção apenas de critérios prag-

máticos não parece suficiente para

abarcar a complexidade da experi-

ência de uma clientela específica

como os portadores de sofrimento

psíquico. De acordo com Pitta (1997)

vidas no cotidiano dos serviços

substitutivos, talvez seja uma estra-

tégia para caracterizar os pontos

que distinguem as novas modalida-

des terapêuticas dos velhos dispo-

sitivos manicomiais, além de cons-

tituir um instrumento analítico pri-

vilegiado, sem o qual corre-se o ris-

co de reproduzir hegemonias e no-

vos enclausuramentos.

DILEMAS DA AVALIAÇÃO EM SAÚDE: DOSIMPASSES ÀS SOLUÇÕES POSSÍVEIS

Nesta breve tentativa de delimi-

tar conceitualmente as diversas nu-

ances que o pensar a avaliação nos

impõe, pode-se apontar também

impasses que fazem parte de um

contexto mais geral, externo à ava-

liação stricto sensu, mas que po-

dem funcionar ora como facilitado-

res e ora como dificultadores des-

se processo.

Uma dificuldade arrolada refe-

re-se à institucionalidade da função

avaliação. No Brasil, a avaliação de

políticas e de programas públicos

ainda não está conformada como

parte da administração pública, que

pressupõe, segundo Hartz, “(...) in-

tegrá-la em um modelo orientado

para ação, ligando atividades ana-

líticas às de gestão, constituindo

assim uma formulação da política

de avaliação para avaliação de po-

líticas” (1999a:229). Para Cotta

(1998) tal dificuldade é gerada em

parte pela complexidade de algumas

os impasses tornam-se prementes

nas áreas em que julgamentos de-

vem ser construídos singularmen-

te, como no caso da loucura e por

tratar-se de uma atividade humana

caracterizada por trocas intersubje-

tivas entre alguém que precisa de

ajuda e aquele que se coloca no lu-

gar de proporcionar essa ajuda. O

desenvolvimento de metodologias

de avaliação mais participativas,

que envolvam um conhecimento

mais amplo das práticas desenvol-

A NECESSIDADE DE

APONTAR OS RESULTADOS

DA ASSISTÊNCIA NO

CAMPO DA SAÚDE MENTAL

É UM TEMA CONTROVERTIDO

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metodologias de avaliação e tam-

bém por desinteresse dos policy

makers e receio dos gestores dos

programas públicos. Dessa forma,

deixa-se de utilizar um importante

instrumento gerencial, capaz de for-

necer elementos tanto para o pro-

cesso decisório como para a lógica

de funcionamento de intervenções

em realidades sociais.

A ausência de um modelo teóri-

co definido em relação aos progra-

mas e serviços públicos de saúde, e

especialmente para os serviços de

Saúde Mental, traz outras importan-

tes dificuldades para o campo da

avaliação. O modelo teórico preco-

niza e define de que forma deveria

funcionar um programa ou um ser-

viço, de modo a explicitar o proble-

ma, a população e o contexto alvos

da intervenção, os efeitos a curto,

médio e longo prazo que se preten-

de atingir, bem como os recursos e

atributos do programa necessários

ao alcance dos objetivos propostos.

Sua importância é tão significativa

que, para Hennessy (apud Hartz,

1999), somente as políticas e pro-

gramas que tivessem um modelo

teórico bem definido, assim como as

medidas e indicadores pertinentes,

deveriam ser alvo de avaliações.

Na área de Saúde Mental, para

que um modelo teórico possa ser

produzido, algumas questões mere-

cem reflexão: sob que aspectos deve-

se intervir, ou melhor dito, sob que

parâmetros éticos pode-se construir

um novo modelo de intervenção

médico-social? Parece que os dispo-

sitivos de Saúde Mental, que evolu-

em do interesse em contextualizar

socialmente vidas humanas por trás

das crises vislumbradas de forma

reducionista pela psiquiatria, trans-

formou-se em um amálgama de dis-

ciplinas que unem-se por um discur-

so que, ora está ligado à psicanáli-

se, ora ao assistencialismo, ora a

um retorno à própria psiquiatria,

mas que, de certo modo, ainda não

conseguiu vislumbrar uma coerên-

vias; experiências, idéias e perspec-

tivas de diversos grupos de interes-

se (avaliadores e gestores); e, por

meio de conhecimento produzido

pelas ciências sociais (Hartz, 1999;

Chen, 1990 apud Furtado, 2001).

Sugere-se que o modelo teórico a ser

construído deva incorporar elemen-

tos das diversas fontes de geração

de dados e conhecimentos disponí-

veis no momento de implementação

de determinado programa ou servi-

ço, a fim de incorporar tanto a par-

ticipação dos grupos de interesse

quanto a possibilidade de releitura

da realidade a partir de contribui-

ções externas.

Contudo, apesar da inegável im-

portância da definição de um mo-

delo teórico como etapa prévia da

implementação de programas e ser-

viços públicos, iniciativas de ava-

liação não podem estar condicio-

nadas a sua existência, mesmo por-

que a tradição brasileira não incor-

pora esta fase como parte da im-

plementação de projetos. Nesse

sentido, um processo de avaliação

pode incluir também a construção

de um modelo teórico da realidade

a ser estudada, a partir dos objeti-

vos implícitos e explícitos existen-

tes, de modo que o produto final

seja discutido e legitimado pelos

atores sociais envolvidos.

Pode-se afirmar que para reali-

zar qualquer tipo de avaliação é pre-

ciso que estejam disponíveis indi-

cadores capazes de quantificar e/ou

qualificar de forma o mais próxima

cia transdiciplinar unificadora. O

objetivo não é construir um pensa-

mento único dominante no campo,

mas apontar a necessidade de uma

certa coerência teórica entre os di-

versos saberes que o constituem, até

para que seja possível estabelecer

práticas de intervenção social e de

cuidados que possam ser avaliados

de forma mais clara e sistemática.

O modelo teórico pode ser cons-

truído a partir de diversas fontes

como: resultados de pesquisas pré-

A AUSÊNCIA DE UM MODELO TEÓRICO

DEFINIDO EM RELAÇÃO AOS PROGRAMAS

E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE, EESPECIALMENTE PARA OS SERVIÇOS DE

SAÚDE MENTAL, TRAZ OUTRAS

IMPORTANTES DIFICULDADES PARA

O CAMPO DA AVALIAÇÃO

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44 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001

possível do real fatos, processos e

situações. Avaliações de determina-

dos tipos de programas e serviços

envolvem geralmente situações

complexas que não podem ser apre-

endidas sem mediações. Dessa for-

ma, “(...) o indicador é, simplesmen-

te, uma forma de nos aproximarmos

do conhecimento de algo que não

podemos captar diretamente” ou

então podemos compreendê-lo como

“(...) medidas específicas (explícitas)

e objetivamente verificáveis das

mudanças ou resultados de uma

atividade” (Aguilar & Ander-Egg,

1994: 123-124). Cabe ressaltar que

por mais numerosos que sejam os

indicadores utilizados, estes não

refletem totalmente um conceito.

Como já mencionado anterior-

mente, o campo da atenção psicos-

social carece ainda de indicadores

capazes de traduzir a nova realida-

de da assistência. A quantidade e

qualidade das informações disponí-

veis sobre o que se pretende avaliar

tem importância fundamental para

a escolha ou elaboração dos indica-

dores. Para Aguilar e Ander-Egg

(1994) o ideal seria produzir indi-

cadores que utilizem os dados já

existentes ou disponíveis. Além dis-

so, para a avaliação de processos

sociais que guardam em si maior

complexidade pode-se optar pelo

uso de indicadores consensuais, que

parece ser o caso de algumas inter-

venções em Saúde Mental.

Cabe destacar ainda algumas

críticas aos processos tradicionais,

mesmo porque o campo do sofri-

mento psíquico e das suas formas

de cuidado traz em si especificida-

des de ordem subjetiva e social que

não devem ser ignoradas. Alguns

dos questionamentos sobre as tra-

dicionais formas de avaliar recaem

sobre o caráter externo desses pro-

cessos, busca de objetividade como

sinônimo de significância quantita-

tiva, preocupação exclusiva com a

eficiência, incapacidade de incorpo-

rar dados contextuais e baixa rele-

aos serviços substitutivos em Saú-

de Mental que já incorporam em sua

lógica de funcionamento o desenvol-

vimento de estratégias e espaços

produzidos coletivamente.

A metodologia da avaliação par-

ticipativa surgiu no rastro da cha-

mada pesquisa-ação e, por esse

motivo, faz uso de princípios, pro-

cedimentos e estratégias corrente-

mente utilizadas pela mesma. Essa

abordagem justifica-se na medida

em que se tem como objetivo incor-

porar técnicos, usuários, familiares

ou gestores como atores das ações

públicas, de forma a auxiliar as to-

madas de decisão. Parte-se do prin-

cípio de que a participação dos im-

plicados na assistência sob análise

“(...) retira o avaliador da posição

solitária de único agente valorati-

vo” (Carvalho, 1999:91). Pretende-

se, dessa forma, que o processo de

avaliação ganhe em confiabilidade

e legitimidade entre os atores soci-

ais envolvidos.

Nessa perspectiva, ganham

destaque os estudos de caso, que,

de acordo com Hartz, são recomen-

dados com ênfase quando “(...) o

objeto de investigação é de gran-

de complexidade, a tal ponto que

o fenômeno de interesse não se

distingue facilmente das condições

contextuais, necessitando infor-

mações de ambos” (1999:344).

São indicados também quando o

alvo da avaliação é uma interven-

ção inovadora, da qual ainda não

se tenha muitas informações. Uma

vância dos resultados para os ato-

res envolvidos na intervenção. Tal-

vez em função de um ou mais dos

fatores acima mencionados, a ava-

liação seja associada, em muitas

ocasiões, a auditorias ou controles

externos com o objetivo de controle

de produtividade.

Metodologias de avaliação par-

ticipativas, somadas à pluralidade

metodológica, possibilitam superar

esses impasses. Tais estratégias

parecem ser bastante pertinentes

PARA A AVALIAÇÃO DE PROCESSOS

SOCIAIS QUE GUARDAM EM SI

MAIOR COMPLEXIDADE PODE-SE]OPTAR PELO USO DE INDICADORES

CONSENSUAIS, QUE PARECE SER OCASO DE ALGUMAS INTERVENÇÕES

EM SAÚDE MENTAL

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Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 45

das técnicas que vêm sendo cada

vez mais utilizadas são os grupos

focais, instrumento de pesquisa

que permite ao investigador cap-

tar aspectos normativos e valora-

tivos presentes em um determina-

do grupo. Na área das ciências

sociais, tal metodologia tem sido

utilizada como uma das formas

para apreender atitudes, opiniões,

motivações e preocupações dos in-

divíduos. Um dos grandes benefí-

cios do grupo focal é a geração de

dados por meio da interação entre

os atores envolvidos e a facilida-

de em combiná-lo a outros instru-

mentos de pesquisa, como questi-

onários, entrevistas e observação.

Apesar disso, o grupo focal pode ser

a única metodologia de uma pes-

quisa, visto que seus resultados

apresentam sustentação própria.

Embora seja possível apreender

o que é ‘avaliação’ por diversos ân-

gulos e objetivos implícitos ou ex-

plícitos, seu papel fundamental

como instrumento de auxílio no

processo de tomada de decisões

parece ser um traço comum entre

as várias conceituações. Por essa

mesma razão, avaliar adquire sen-

tido se e quando pactuado entre

os atores envolvidos na ação sob

‘julgamento’. Um processo de ava-

liação perde sua razão quando não

se presta ao objetivo de melhorar

a qualidade do serviço oferecido,

aliado à maior efetividade e efici-

ência possíveis.

O que se pretendeu discutir no

presente artigo é que o campo da

Saúde Mental enfrenta os mesmos

desafios da avaliação em saúde de

forma geral, e ainda outras especi-

ficidades que tornam complexo o

processo. Os serviços substitutivos

apresentam-se como uma realida-

de muito recente e não hegemôni-

ca em termos de destinação de re-

cursos relativos à assistência psi-

quiátrica no país. A produção de in-

dicadores adequados ainda é bas-

tante incipiente e a assistência ao

louco envolve determinantes soci-

ais complexos. Apesar disso, as for-

mas coletivas de organização e ges-

tão dos serviços substitutivos po-

dem ser elementos facilitadores da

implementação de processos ava-

liativos mais participativos em seu

cotidiano que contribuam para a

sustentabilidade e manutenção

desses projetos.

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CARVALHO, M. de

48 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001

ARTIGOS ORIGINAIS

Mirian de Carvalho1

1 Doutora em Filosofia. Leciona Filosofia e

Estética da Arquitetura no PROARQ:

Programa de Pós-Graduação em Arquitetura

da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ambiente construído e comportamento espacial na instituiçãopsiquiátrica: questões éticas em Observação Participante

Built environment and spatial behaviour in psychiatric institution: ethical issues inparticipative observation

RESUMO

Este artigo é uma reflexão de base ética – fundamentada no pensamento

de Enrique Dussel – quanto à relevância do procedimento de observação

participante utilizado numa pesquisa que está em desenvolvimento, tendo

como objeto a relação entre ambiente construído e comportamento espacial

na instituição psiquiátrica. Tal aproximação envolve uma epistemologia e

uma poética do espaço, centradas, respectivamente, na psicologia de Robert

Sommer e na filosofia de Gaston Bachelard, incluindo no trabalho de campo

outros procedimentos metodológicos além da observação. Os resultados até

agora obtidos indicam problemas relativos ao espaço construído, suscitando

questões éticas pertinentes à metodologia.

PALAVRAS-CHAVE: espaço; ambiente; comportamento.

ABSTRACT

An ethical reflection – based on Enrique Dussel's thought – concerning

the relevance of the participative observation procedure employed in a

research under development, aiming at the relation between the built

environment and e the spatial behavior in the psychiatric institution. Such

approach involves an epistemology and a space poetics, according to Robert

Sommer's psychology and Gaston Bachelard's philosophy, respectively,

including in the field work other methodological procedures. Results obtained

up to now indicate that there are problems related to built environment,

raising ethical issues related to the methodology.

KEY-WORDS: space; environment; behavior.

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Ambiente Construído e Comportamento Espacial na Instituição Psiquiátrica: questões éticas em Observação Participante

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001 49

INTRODUÇÃO

Há cinco anos, juntamente com

quatro arquitetos1, vimos desenvol-

vendo estudos em instituições psi-

quiátricas no Rio de Janeiro, partin-

do da hipótese de que o espaço cons-

truído interfere no comportamento

dos usuários – definindo-se por usu-

ários todas as pessoas que se relaci-

onam com a instituição (Sommer,

1973:X). Além dos procedimentos de

observação, utilizamos vários ou-

tros, comuns à pesquisa de campo.

Valorizando a fala e o comportamen-

to do usuário-alvo, registramos tam-

bém comportamentos espaciais ob-

servados em todos os segmentos de

usuários da instituição, bem como

entrevistamos - em etapas diversas

- usuários igualmente representati-

vos de todos os segmentos afetos às

instituições psiquiátricas estudadas.

A avaliação desses procedimentos

nos revelou que a demanda de trans-

formação desses ambientes não só é

verbalizada por eles, como se eviden-

cia através de vários índices compor-

tamentais registrados durante o tra-

balho de observação.

A fala do usuário-alvo se refere

com clareza às dependências insti-

tucionais, sugerindo e descrevendo

com detalhes ambientes íntimos e

de convivência. Mas ressaltamos

que, embora considerando todos

aqueles que estão afetos à institui-

ção, voltamo-nos primordialmente

para o usuário assistido, tendo por

meta avaliar e recomendar espaços

construídos que possam facilitar as

metas da Reforma Psiquiátrica e da

Reabilitação Psicossocial. No pre-

sente texto, teceremos reflexões de

cunho ético sobre a importância da

técnica de observação participante,

resguardando-nos de mencionar o

nome das instituições estudadas.

O corpus teórico de nosso estu-

do tem por base a psicologia de

aos elementos da imaginação ati-

nentes à espacialidade desejada,

indicando espaços de atração, espa-

ços habitáveis, abrigos e refúgios

(Bachelard, 1998:25), onde o indi-

víduo deseja ser e estar.

O trabalho de Sommer implicou

técnicas de observação; do mesmo

modo, em nosso estudo, constata-

mos que a obtenção de certos da-

dos relevantes só seria viável atra-

vés da observação – em alguns ca-

sos, participante; em outros, dire-

ta. Esse tipo de estudo, por circuns-

crever relações sociais, comporta-

mento humano e políticas espaciais

no âmbito do ambiente construído,

envolve questões éticas, pois se re-

fere ao homem no espaço instituci-

onal e na urbe, considerando as hi-

erarquias e invasões espaciais a que

estamos submetidos todos nós, em

maior ou menor escala.

Em lugares públicos ou coletivos,

torna-se difícil ou impossível demar-

car espaços pessoais. Com freqüên-

cia, na instituição psiquiátrica, o pa-

ciente, mais que qualquer outro usu-

ário, está sujeito à invasão espacial

(Sommer, 1973:40-41) e o pesquisa-

dor pode identificar esses dados atra-

vés do trabalho de campo: “A melhor

maneira para conhecer as fronteiras

invisíveis é continuar andando, até

que alguém reclame.” (id., ibid.:33).

Registramos que nessas instituições

a demarcação do espaço pessoal é

1 Colaboram nesta pesquisa os arquitetos Andréa Borges, Marcos Fávero, Naylor Vilas Boas e Wanda Vilhena Freire.

Sommer, da qual utilizamos a no-

ção de espaço pessoal, e a filosofia

de Bachelard, a partir da qual con-

sideramos as abordagens do espa-

ço poético. Em Sommer, “o espaço

pessoal refere-se a uma área com

limites invisíveis que cercam o cor-

po da pessoa, e na qual os estra-

nhos não podem entrar” (id.,

ibid.:33). O espaço poético refere-se

O CORPUS TEÓRICO DE NOSSO ESTUDO TEM

POR BASE A PSICOLOGIA DE SOMMER,DA QUAL UTILIZAMOS A NOÇÃO DE ESPAÇO

PESSOAL, E A FILOSOFIA DE BACHELARD,A PARTIR DA QUAL CONSIDERAMOS AS

ABORDAGENS DO ESPAÇO POÉTICO

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CARVALHO, M. de

50 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001

dificultada pelo ambiente construído,

refletindo precariedades e lacunas que

podem afetar inclusive os serviços al-

ternativos ao sofrerem interferência

das formas manicomiais. Quanto a

isso, deparamos com uma situação

básica: usuários convivendo simulta-

neamente com os espaços hospitala-

res e/ou asilares e com formas alter-

nativas de assistência. Tal situação

ocorre algumas vezes no mesmo pré-

dio e/ou no mesmo terreno. Outra si-

tuação não-favorável é a existência

de serviço alternativo em bairro di-

verso do hospital, porém preservan-

do atendimento hospitalar tradicio-

nal, quando - necessitando por algum

tempo de cuidados especiais - o usu-

ário volta à tradicional enfermaria.

Registramos igualmente problemas

básicos de conforto ambiental, sem

mencionar as questões estéticas re-

ferentes à visualidade dos espaços,

bem como ambientes alternativos mal

projetados ou impropriamente refor-

mados, e ainda uma situação afeta

ao patrimônio histórico: prédios, tom-

bados ou não-tombados – mas repre-

sentando significativos estilos de Ar-

quitetura –, descaracterizados por in-

terferências arquitetônicas inadequa-

das, ou em ruínas.

Percebemos que os ambientes

construídos funcionam muitas vezes

como regiões limítrofes, não permi-

tindo vias de transversalidade (Car-

valho, 2000b:337-358). Esses luga-

res são freqüentemente demarcados

por recortes espaciais (Carvalho,

1998:77), reproduzindo funcional-

mente espacialidades de natureza

panóptica com áreas de fechamento

e retração que os subordinam à visi-

bilidade controlada. Eles são diversos

dos espaços poéticos, que ensejam a

criação de outros ambientes, imagi-

nados pelo usuário, incentivando vá-

rios níveis de contratualidade. Mui-

tos dos locais observados refletem

mecanismos de controle pelo espaço

– ou seja, evidenciam uma política es-

pacial geradora de invasões de domí-

nio no sentido sommeriano, em que

violados por visitantes bem intenci-

onados que ignoram os avisos de ‘vi-

sitas proibidas’. (Sommer, 1973:35)

Esse autor constatou vários níveis

de invasão espacial, comuns em hos-

pitais psiquiátricos (id., ibid.:40-44).

Do mesmo modo, na hierarquia es-

pacial, percebemos sobretudo a im-

possibilidade de caracterização de um

espaço próprio do usuário, que, em

face ao impedimento de posicionar-

se pessoalmente, o faz através do cor-

po, acrescentando objetos às vestes,

usando roupas bizarras, ou de várias

outras formas, podendo chegar até à

nudez (Carvalho, 2000b:354), indi-

cando síndromes espaciais que po-

dem estar relacionadas com certas pa-

tologias (id., ibid.:354).

O trabalho de observação parti-

cipante nos revelou indicativos de

espaços precários e demandas por

espaços humanizados. A poética do

espaço nos leva ao plano estético, ao

plano sensível de realização dos es-

paços pessoais expressos pela ima-

ginação e pelo desejo de mudanças

ambientais. Na maioria das vezes,

esses ambientes são descritos como

a casa (Carvalho, 2000a:123), com

todas as parcialidades da intimida-

de protegida (Bachelard, 1998:21).

DESENVOLVIMENTO: A ÉTICA NOCAMPO DA METODOLOGIA

No Brasil, sendo relativamente

recente e progressiva a implantação

das formas alternativas de assistên-

o espaço pessoal não pode ser ‘habi-

tado’ (Carvalho, 2000a:121), não fun-

cionando como o desejado abrigo (Ba-

chelard, 1998:21).

Em relação a hospitais em geral,

diz Sommer:

Os pacientes de hospital se quei-

xam, não apenas do fato de seu es-

paço pessoal ser continuamente vio-

lado por enfermeiras, internos e mé-

dicos, que sequer se preocupam em

apresentar-se ou explicar suas ativi-

dades, mas que seus territórios são

DEPARAMOS COM UMA SITUAÇÃO BÁSICA:USUÁRIOS CONVIVENDO SIMULTANEAMENTE

COM OS ESPAÇOS HOSPITALARES

E/OU ASILARES E COM FORMAS

ALTERNATIVAS DE ASSISTÊNCIA

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Ambiente Construído e Comportamento Espacial na Instituição Psiquiátrica: questões éticas em Observação Participante

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001 51

cia, torna-se necessário o desenvol-

vimento de pesquisas sobre proble-

mas pertinentes à relação entre

ambiente construído e comporta-

mento espacial, para que se alcan-

cem as metas da Reforma Psiquiá-

trica e da Reabilitação Psicossocial.

O hospital-dia, a oficina comunitá-

ria, o centro de atenção psicossoci-

al, as residências protegidas e ou-

tros ambientes assistenciais teriam

maior eficácia quanto a suas metas

se essa relação fosse observada com

mais cuidado. Por outro lado, se se

oferecem meras adaptações de ser-

viços manicomiais, tais metas ficam

prejudicadas em função da precari-

edade dos ambientes. Mas é natu-

ral que existam tais problemas, em

sendo esta uma área nova do saber,

que, por falta de conhecimentos se-

dimentados e pela constante emer-

gência de dúvidas, vem destacar a

necessidade de pesquisas.

Em nosso estudo, deparamos

com várias situações que suscita-

ram este texto. No plano teórico, a

carência de bibliografia indicando

questões específicas da instituição

psiquiátrica. No plano da práxis, ti-

veram relevância as dificuldades e

dúvidas suscitadas pelo trabalho de

campo, mediante temática e mate-

rial inusitados, sobretudo quanto à

técnica de ‘observação participante’,

que requer muito tempo do pesqui-

sador, fornecendo-lhe, porém, um

material de inestimável riqueza, não

suprido por outro procedimento e

merecendo uma reflexão filosófica

no plano da ética voltada para os

procedimentos metodológicos, tan-

genciando o projeto arquitetônico.

Em Arquitetura, o projeto deve

ser realizado segundo metodologia

própria (Cf. Del Rio, 1998:201-214).

O projeto arquitetônico não pode ser

considerado meramente por seu as-

pecto estético, ou como fruto da

imaginação do projetista. Quanto a

essa questão, ressaltamos que há

métodos de avaliação do ambiente,

que vêm sendo desenvolvidos no

presidente da associação de bairro,

da direção do clube ou de um diri-

gente de instituição como a escola,

o hospital, o posto de saúde.

O projeto e sua avaliação inclu-

em conhecimento de tecnologias e

domínio das ciências do espaço,

envolvendo levantamentos e ques-

tões complexas no âmbito dos obje-

tivos, compreendendo funcionalida-

de, conforto ambiental, aspectos

estéticos. Tais dimensões se tornam

indissociáveis na realização de um

ambiente que atenda às necessida-

des e às aspirações dos usuários em

sentido amplo. A avaliação do am-

biente construído, visando as boas

condições de atendimento do usuá-

rio, nos conduz ao terreno da ética.

No tocante à instituição psiquiátri-

ca, a ética tangencia um compromis-

so fundamental com o usuário-alvo,

já que a escolha do espaço em que

ele é atendido raramente é opção

sua. Aqui o termo ‘ética’ tem igual-

mente alcance profissional e políti-

co, porque diz respeito à participa-

ção do pesquisador também en-

quanto cidadão, capaz de emitir ju-

ízo de valor quanto à espacialidade

do entorno institucional e urbano.

Quanto à cidade e à instituição,

é dever e direito do cidadão zelar

pelo ambiente em que vive, estuda,

trabalha, ou de alguma forma é as-

sistido, seja conservando-o, aprimo-

rando-o ou cobrando das autorida-

des o zelo pelos espaços em que ‘vi-

vemos’. Assim, é tarefa do cidadão

observar qualquer ambiente que

Brasil por profissionais com traba-

lhos de pesquisa em vários campos

da Arquitetura.

O ambiente construído deve ser

observado e reavaliado em qualquer

circunstância – da casa à escola, do

lar à cidade, e em qualquer institui-

ção de assistência, seja ela pública

ou privada. Em se tratando princi-

palmente de espaço público e/ou

institucional, o ambiente construí-

do não pode depender da decisão e

do gosto do prefeito da cidade, do

TORNA-SE NECESSÁRIO O DESENVOLVIMENTO

DE PESQUISAS SOBRE PROBLEMAS

PERTINENTES À RELAÇÃO ENTRE AMBIENTE

CONSTRUÍDO E COMPORTAMENTO ESPACIAL,PARA QUE SE ALCANCEM AS METAS

DA REFORMA PSIQUIÁTRICA E DA

REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL

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CARVALHO, M. de

52 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001

diga respeito à população, em esca-

la urbana, ou a um segmento da po-

pulação, em escala reduzida, através

de um serviço que lhe é prestado.

Esta observação inclui problemas ou

acertos relativos à malha viária da

cidade, à iluminação das ruas ou a

qualquer outro lugar onde estejamos

inseridos; assim, a instituição se si-

tua como espaço observável.

Em qualquer instituição, a obser-

vação dos espaços por profissionais

que ali atuam, ou por qualquer pes-

soa afeta a esse ambiente, pode ser

vista como prática do exercício da

cidadania. Nesse sentido, na vigên-

cia da legislação que rege novas

metas de assistência, torna-se ne-

cessário avaliar periodicamente os

atuais espaços – novos ou reforma-

dos – com vistas aos objetivos a se-

rem alcançados, sem que se repro-

duzam espaços manicomiais. Vamos

agora encaminhar esta questão, dos

pontos de vista ético e metodológi-

co, valorizando a técnica da obser-

vação participante, que em certas

circunstâncias é insubstituível no

caso da instituição psiquiátrica.

É pensamento comum entre pes-

quisadores e estudiosos de metodo-

logia que a presença do observador,

quando este é identificado como tal,

tende a interferir no comportamen-

to das pessoas ou dos grupos ob-

servados. Notamos, em situações de

entrevista, uma certa ‘ansiedade’

diante dos pesquisadores por parte

de alguns profissionais quando sa-

bedores dos objetivos do estudo,

mostrando comportamentos que

não foram notados na observação

participante. Principalmente no caso

do profissional da instituição, essa

interferência pode levar, em maior

escala, à distorção e à camuflagem

de dados e de resultados.

Por outro lado, “Pode-se aceitar

como certo que, se os membros ‘des-

conhecem’ os propósitos do cientis-

ta, seus comportamentos tenderão a

ser menos influenciados. Assim po-

deremos registrar o comportamento

volvida por Apel, centrada na ar-

gumentação do indivíduo capaz de

uma formulação enunciativa como

membro da comunidade (Apel,

1995:44-68), até o campo da prá-

xis, há uma distância por vezes in-

transponível. Essa distância é ana-

lisada pelo pensamento de Dussel:

quando se trata de questões ético-

políticas devemos, em primeira

instância, direcionar-nos à práxis

e não à argumentação, evitando

assim o distanciamento e a distor-

ção do objeto pelo discurso. Enfa-

tizando a questão da práxis, e ci-

tando Hinkelammert, Dussel con-

sidera nas questões sociais a im-

portância do corpo:

El acceso a la realidad corporalcorporalcorporalcorporalcorporal –

esto es, el estado corporal incólume

en la relación social entre los seres

humanos –, y el acceso a los valores

de uso en la relación del ser humano

con la naturaleza, es el criterio de

validez ética de las normas en el caso

concreto. (Apud Dussel, 1995:77).

No trabalho de observação parti-

cipante, percebemos matizes dos

problemas espaciais pertinentes ao

corpo. Esse critério de validade ética

que considera os valores de uso na

relação homem/natureza supera as

hierarquias e dicotomias da mente

com reação ao e do conhecimento

com relação à práxis, buscando por-

tanto uma validade concreta – numa

unidade – pertinente aos espaços que

acolhem ou excluem o corpo – o in-

divíduo e o cidadão – nos ambientes

natural do grupo” (Goode & Hatt,

1972:158). Nesse sentido, é desejá-

vel a não-identificação da situação

de pesquisa, viabilizando-se a técni-

ca da observação participante, con-

siderando-se suas vantagens e des-

vantagens, que estamos avaliando

no andamento de nosso estudo.

Quanto à referida técnica, nas

duas acepções mencionadas – na di-

mensão ética e na metodológica –

há relevantes questões a ser consi-

deradas. Da ética do discurso desen-

TORNA-SE NECESSÁRIO AVALIAR

PERIODICAMENTE OS ATUAIS

ESPAÇOS – NOVOS OU

REFORMADOS – COM VISTAS AOS

OBJETIVOS A SEREM ALCANÇADOS,SEM QUE SE REPRODUZAM

ESPAÇOS MANICOMIAIS

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001 53

em que circulamos e/ou nos aloja-

mos. A relação corpo-espaço mos-

tra, em certas situações observa-

das, a necessidade urgente de pro-

jetos adequados e de um estudo

para avaliação dos espaços existen-

tes, sobretudo no tocante à conco-

mitância de ambientes manicomi-

ais e de formas alternativas.

A avaliação dos espaços institu-

cionais objetiva políticas espaciais

que busquem a inserção do homem

na urbe – consideradas suas limita-

ções –, começando pela inserção do

corpo nos ambientes comunitários,

da rua ao quarteirão, e deste ao bair-

ro e à pólis. Para isso, é necessário

um posicionamento do pesquisador,

questionando ‘os mitos da neutrali-

dade científica’, para ultrapassar os

limites do discurso. Nessa perspec-

tiva, o pesquisador se insere nos

ambientes através da observação

participante, que pode assim ter al-

cance ético, além de metodológico.

Se tomarmos por base a ética de

Dussel, o simples ‘reconhecimento’

de precariedades espaciais não é

motivo para modificá-las. Articula-

do somente ao plano da linguagem,

o reconhecimento da diferença ou

da exclusão não implica ação ou

tomada de consciência de um fato

significativo de alcance social. O ‘co-

nhecimento’ dos novos espaços se

inicia pela inserção do pesquisador

na instituição. É no trabalho de

campo que o observador percebe

invasões espaciais e formula os pa-

râmetros de transformação espaci-

al; para isso, ele se torna um mem-

bro daquele grupo, vivendo na prá-

xis o dia-a-dia dos ambientes, ao

circunscrever-se nesses espaços

através das atividades que permei-

am a observação participante.

Sobre este procedimento metodo-

lógico, vejamos o que dizem alguns

autores: “Este procedimento é usa-

do quando o investigador pode dis-

farçar-se e ser aceito como membro

do grupo” (Goode & Hatt, 1973:157).

Esta mesma questão é tematizada e

Esse procedimento tem sido uti-

lizado em larga escala em pesqui-

sa social e em Antropologia, tendo

sido adotado por cientistas ao es-

tudarem sociedades tribais, operá-

rios, seitas religiosas, pacientes ou

grupos sociais, e foi utilizado no

estudo dos hobo (Anderson, 1923).

Diz respeito também ao arquiteto

e ao estudioso do espaço, que, em

certa escala, lidam com questões

comportamentais, em que a obser-

vação é imprescindível.

Na observação participante afe-

ta à instituição psiquiátrica, o dis-

farce do pesquisador pode ocorrer de

vários modos. Ele pode participar de

uma atividade cotidiana, como a vi-

sita a um paciente. Pode freqüentar

lugares de convívio, usar a cantina,

a biblioteca, o jardim, o banheiro ou

qualquer outra dependência da ins-

tituição, ou ainda participar como

expositor ou como ouvinte em con-

ferências, seminários e grupos de

estudo. O pesquisador pode também

participar da inauguração de um ser-

viço, do festejo de uma data, ou fa-

zer um curso na instituição. Como já

foi dito, outros pesquisadores agem

da mesma forma: “O grupo inglês

Mass Observation, ao estudar a opi-

nião de eleitores, utilizou-se de téc-

nicas de camuflagem. Um observa-

dor pode confundir-se com operári-

os entre outros operários ou traba-

lhar como porteiro numa barbearia.”

(Goode & Hatt, 1972:158).

No procedimento de observação

participante, uma dentre as vanta-

endossada por outros teóricos men-

cionando esses dois pesquisadores:

Para esses autores, a observa-

ção participativa é um procedimen-

to usado quando o investigador se

disfarça ou pede para ingressar em

um grupo com o objetivo de inves-

tigá-lo. Na observação participan-

te, o pesquisador assume no grupo

dois papéis: o de estranho ao gru-

po [observador] e o de participante

[membro aceito pelo grupo].

(Denker & Da Viá, 2001:147)

O ‘CONHECIMENTO’DOS NOVOS ESPAÇOS

SE INICIA PELA INSERÇÃO

DO PESQUISADOR NA INSTITUIÇÃO

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CARVALHO, M. de

54 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001

gens apontadas se refere à espon-

taneidade dos comportamentos: “se

os membros ‘desconhecem’ os pro-

pósitos do cientista, seus compor-

tamentos tenderão a ser menos in-

fluenciados.” (id., ibid.:158). Ao

participar, por exemplo, de um gru-

po de estudos ou de um seminário,

ou ao dar aula nas dependências de

um hospital ou de um serviço alter-

nativo, caso o pesquisador seja tam-

bém professor - situações comuns

em nossa pesquisa - tais eventos

devem ser ressaltados como vanta-

gem dessa técnica: “Assim ele [o

pesquisador] tem acesso a um cor-

po de informações que não seria

facilmente obtido somente olhando

de maneira desinteressada. [...].

Obtém assim uma experiência mais

profunda, enquanto registra o com-

portamento dos outros participan-

tes.” (id., ibid.:158).

Outra vantagem, dentre outras,

é relativa ao tempo da pesquisa:

“Como seu período de participação

pode continuar durante meses, a

variação do material obtido será

muito mais ampla do que aquela

obtida através de uma série de en-

trevistas, embora longas” (id.,

ibid.:158). Nossos primeiros conta-

tos duraram, em média, de um a

dois anos, tendo sido breves em

outras instituições.

Expostas as vantagens deste pro-

cedimento, vamos às desvantagens.

Uma das desvantagens aponta-

das pelos estudiosos da metodolo-

gia enfatiza a questão da hierarquia

do pesquisador diante do grupo: “À

medida que o investigador se torna

um participante real, paradoxal-

mente ele restringe a amplitude da

experiência. Ele assume uma deter-

minada posição dentro do grupo,

com um determinado grupo ou cír-

culo de amigos” (id., ibid.:159). Isto

pode colocá-lo numa situação de

hierarquia, favorável ou não, fe-

chando vias de informação.

Há outro senão mencionado pe-

los teóricos, quanto ao envolvimen-

como na não participante o proble-

ma do controle da observação não

está resolvido. À medida que o obser-

vador se torna um participante, suas

experiências tendem a ser únicas,

próprias, e assim, nesse caso, um

segundo pesquisador não seria ca-

paz de anotar os mesmos fatos. Exis-

tirá, pois, menor padronização dos

dados (id., ibid.:159).

Tais desvantagens não pesaram

para o cômputo de nossos dados, le-

vando-nos a concluir que elas ope-

ram com maior ou menor intensida-

de, dependendo do tipo de pesquisa,

do objeto pesquisado e da avaliação

constante do viés que possa intervir

em cada etapa do estudo na fase de

sistematização do conhecimento.

RESULTADOS PARCELARES

Os dados obtidos na observação

participante foram relacionados e

entrecruzados com os demais, obti-

dos por outros procedimentos. Por

outro lado, o espaço construído tem

uma objetividade no plano físico ou

estético, que nos permite filtrar ele-

mentos informativos e sistematizá-

los em categorias. O comportamen-

to espacial tem sempre a possibili-

dade de ser igualmente dimensio-

nado de modo objetivo, como, por

exemplo, os efeitos de um aposento

sem janelas, a padronização das en-

fermarias, ou os conflitos ocasiona-

dos durante as refeições pela dis-

posição das mesas, gerando inva-

to emocional e afetivo por parte do

cientista: “Assim também, à medi-

da que participa emocionalmente,

perde a objetividade, que é a sua

grande virtude” (id., ibid.:159). Pode

ele reagir com carinho ou raiva,

buscar apoio e prestígio, simpatizar

com as tragédias de um grupo, par-

ticipar de suas alegrias e tristezas.

Outro problema apontado é do

controle dos dados:

Finalmente, como é natural, é cla-

ro que na observação participante

“COMO SEU PERÍODO DE PARTICIPAÇÃO

PODE CONTINUAR DURANTE MESES, AVARIAÇÃO DO MATERIAL OBTIDO SERÁ MUITO

MAIS AMPLA DO QUE AQUELA OBTIDA

ATRAVÉS DE UMA SÉRIE DE ENTREVISTAS,EMBORA LONGAS” (ID., IBID.:158)

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001 55

sões espaciais. São também objeti-

vamente observáveis questões de

conforto ambiental, do ponto de vis-

ta do asseio, da conservação, da ae-

ração, da temperatura dos interio-

res e exteriores, da poluição visual

e sonora etc. Tais dados podem ser

observados em seus efeitos sobre o

usuário na relação corpo/ambiência.

Os lugares observados podem

ser enquadrados nas categorias

atração, neutralidade e hostilidade.

Finalmente, utilizando-nos de um

entrecruzamento de dados, foi pos-

sível agruparmos as referências es-

paciais por suas características ou

predominantemente subjetivas, ou

predominantemente objetivas, ou

expressivas, através da imaginação

de espaços desejados. Para classifi-

car esta ordem de dados, nós os

descrevemos respectivamente como

espaços imagético-simbólicos, ma-

terialidade espacial e espaços idea-

lizados. Embora valendo-nos de

outras técnicas de sondagem, res-

saltamos como fundamental o acer-

vo de dados obtidos pela observa-

ção participante, pelos motivos ex-

postos do ponto de vista ético-me-

todológico, visando critérios de

transformação dos espaços.

Para isso são necessários novos

paradigmas (Kuhn, 1982:13), que

recusem os modelos da ciência nor-

mal (id., ibid.:43), daquela que é

aceita a priori pela comunidade ci-

entífica. Aqui o cientista deverá en-

frentar desafios. Deverá questionar

modelos e até conceber espaços

sem modelo (Carvalho, 2000b:356).

Do contrário, corremos o risco de

dominar teorias sobre o espaço e

na prática reproduzir os mecanis-

mos manicomiais, mudando ape-

nas as ‘cores’ ou a ‘fachada’. E é

através da experiência do espaço

que o pesquisador pode se posicio-

nar na instituição, enquanto cor-

po, inserido numa atividade inte-

grada ao trabalho de campo.

Os dados obtidos pela observa-

ção participante podem ser analisa-

Em nossa pesquisa, não partimos

da argumentação para estabelecer-

mos uma práxis. Ao tomarmos par-

te de algumas atividades nas insti-

tuições em que realizamos observa-

ção participante, nosso objetivo foi

colher dados, optando por uma pos-

tura ética que privilegia nossa expe-

riência nos espaços institucionais,

caracterizando uma perspectiva vol-

tada para os problemas da pólis:

Participar de una ‘comunidad de

productores’ o ‘comunidad de vivien-

tes’ es condición primera del sujeto ar-

gumentante ‘como viviente’. . . . . La Ética

de la Liberación por su parte considera

como el criterio y punto de partida, la

corporalidad sufriente del dominado o

excluído: la alteridad del Outro nega-

do en su dignidad (Dussel, 1995:77).

O pesquisador nesse caso realiza

sua própria inserção no campo de

estudo, como indivíduo e teórico,

mas, em primeira instância, como

membro da comunidade valorizan-

do todas as possibilidades de alteri-

dade (Dussel, 1992), considerando

do ponto de vista ético uma referên-

cia às raízes históricas da América

Latina, quando se inicia aqui o en-

cobrimento do outro (Dussel,1993).

Isto nos leva a considerar o sofrimen-

to dentro de uma dupla exclusão.

Esta é a meta que nos permite

dar continuidade à nossa pesqui-

sa, desvencilhando-nos a cada pas-

so das teorias dos espaços vazios,

construídas sobre o ermo dos lu-

gares preenchidos por neutralida-

de e indiferença.

dos, confrontados e posteriormente

trabalhados, numa busca de cate-

gorias que os sistematize e corrija

as distorções advindas desta técni-

ca. Esta prática propiciou a elabo-

ração de resultados gerais e parce-

lares na referida pesquisa, estabe-

lecendo categorias que nos permiti-

ram ‘ler’ os espaços estudados, bem

como formular recomendações ca-

bíveis em cada caso e, mais ampla-

mente, na instituição que elegemos

como estudo de caso.

CORREMOS O RISCO DE

DOMINAR TEORIAS SOBRE

O ESPAÇO E NA PRÁTICA

REPRODUZIR OS MECANISMOS

MANICOMIAIS, MUDANDO APENAS

AS ‘CORES’ OU A ‘FACHADA’

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CARVALHO, M. de

56 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001

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Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001 57

ARTIGOS ORIGINAIS

Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse darelação com a cidade

Sheltered Homes: a political-clinical apparatus in the locked relationship with the city

Regina Benevides de Barros1

Silvia Josephson2

1 Professora do Departamento de Psicologia

da Universidade Federal Fluminense,

Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica

(PUC/SP), Pós-Doutorado na área de

Planejamento e Administração em Saúde

do Departamento de Medicina Preventiva e

Social da FCM da UNICAMP

e-mail: [email protected]

2 Professora do Departamento de

Psicologia da Universidade Federal

Fluminense, Psicóloga, Mestre em

Psicologia Social – UERJ, Doutoranda em

Psicologia Social – UERJ

e-mail: [email protected]

RESUMO

Os avanços do processo de desospitalização e de desinstitucionalizaçãopromovidos a partir da Reforma Psiquiátrica tem sido acompanhados dedesafios e impasses especialmente quando se busca o reposicionamentosócio-político do ‘paciente psiquiátrico’. A saída do paciente do hospitaldeve ser acompanhada de ofertas que lhe permitam passagens até entãoobstruídas na relação com o socius. Os ‘lares abrigados’ destacam-se comoconfiguração na qual os usuários podem experimentar e vivenciar redes derelações sociais mais amplas. A relação com a cidade no contemporâneo,entretanto, traz elementos novos que precisam ser analisados sem o quepoderíamos incorrer em equívocos de se buscar inclusão em configuraçõesurbanas bastante avessas às misturas. O planejamento da assistência nasaúde não pode, assim, estar dissociado da análise das característicassociais/políticas/econômicas/culturais dos diferentes espaços urbanos.

PALAVRAS-CHAVE: saúde mental, dispositivo institucional, reforma psiquiátrica,cidade

ABSTRACT

The progress of deshopitalisation and desinstitutionalization processespromoted by the Psychiatric Reform has been followed by challenges anddeadlocks specially when it comes to look for social-politic replacement ofthe ́ psychiatric patient´. The patient´s exit from hospital must be allied byoffers which open passages until then obstructed in the relationship withthe socius. The ´sheltered homes´ stand out as a configuration in whichthe users can experiment and take part in larger social networks. Therelationship with the city at present, however, brings new elements whichneed to be analyzed so as not to incurr in mistakes in the search for inclusionin urban configurations against mixtures. The health assistance planningcannot, however, be dissociated from the social/ political/ economical/ culturalcharacteristics of different urban spaces.

KEY WORDS: mental health; institutional apparatus; psychiatric reform; city

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BENEVIDES DE BARROS, R. & JOSEPHSON, S.

58 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001

INTRODUÇÃO

Dentre os impasses produzidos

pelo movimento desospitalizante e

desinstitucionalizante no campo da

saúde mental está, certamente, o

reposicionamento sócio-político do

‘paciente psiquiátrico’ quando in-

vestido pelos novos equipamentos

de assistência.

O hospital tomado, até então,

como locus do tratamento, seguido

da crítica aos métodos de conten-

ção e asilamento ali praticados, tem

posto, cotidianamente, problemas

que os profissionais da saúde, ao

se engajarem na ‘luta anti-manico-

mial’, conseguem muitas vezes ape-

nas dimensionar.

A retirada do paciente do mani-

cômio, por exemplo, como logo se

viu, tornou visível a complexidade

e amplitude da tarefa da proposta

antimanicomial: lidar com a expe-

riência da loucura sem tratá-la como

doença, lidar com o sofrimento do

paciente e da família, estabelecer li-

gações com a cidade para pacientes

isolados pelas fortes políticas segre-

gacionistas sobre a doença mental.

A clínica, voltada até então para o

‘tratamento’ do paciente, este di-

mensionado quase sempre como in-

tervenção sobre o sintoma, viu-se

imediatamente convocada ao indis-

sociável exercício político de produ-

ção de subjetividade, aqui entendi-

da como processo de produção do

eu e do mundo.

O paciente, agora usuário dos

serviços substitutivos de saúde

mental, passa a ser observado além

dos muros do hospital psiquiátrico,

além de seu código de inscrição na

‘Classificação Internacional das Do-

Em pesquisa realizada nos últi-

mos quatro anos sobre o tema da

‘Desinstitucionalização da loucura,

os estabelecimentos de cuidado e as

práticas grupais’1, dirigimos nosso

olhar, na sua última fase, ao mape-

amento das experiências dos cha-

mados Lares Abrigados no municí-

pio do Rio de Janeiro.

A direção da pesquisa foi, na ver-

dade, definida pelas indicações do

próprio campo pesquisado já que,

em contato com alguns Serviços de

Atenção Diária, pode-se acompa-

nhar a inquietação dos profissionais

de saúde frente à situação de paci-

entes que haviam perdido contato

com suas famílias nos longos perí-

odos de internação ou aqueles cu-

jas famílias apresentavam dificulda-

des de os receberem de volta à casa.

A oferta de espaços habitacionais

para estes pacientes, em que pudes-

sem ser acompanhados por um tra-

balho com ênfase na crescente au-

tonomização de suas ações, mostra-

va-se, portanto, fundamental.

Dessa forma, decidimos redire-

cionar a pesquisa2 incluindo outro

eixo, este relativo à análise das

fronteiras entre o ‘dentro’ e o ‘fora’

dos Serviços permitindo-nos o

1 “Desinstitucionalização da loucura, os estabelecimentos de cuidado e as práticas grupais”, pesquisa coordenada por Regina Benevides de

Barros e co-coordenada por Silvia Josephson, contou com a participação de dois bolsistas de inciação científica e com o apoio do CNPq/PIBIC/

UFF, Departamento de Psicologia/UFF.

2 A pesquisa, até aquele momento, havia tomado como objeto de investigação a utilização das práticas grupais no campo da Reforma Psiquiá-

trica (cf. Benevides de Barros, R. & Josephson, S. “As práticas grupais, a Instituição da Saúde Mental e os estabelecimentos de cuidado” ,

subprojeto do “Projeto de Integrado de Pesquisa: Saúde Mental, Desinstitucionalização e Abordagens Psicossociais”, coordenado por Eduardo

Mourão Vasconcellos. Projeto integrado UFF/UFRJ, 1996-1998, com apoio do CNPq).

enças’. A saída do paciente do hos-

pital deve, portanto, ser acompa-

nhada de ofertas que lhe permitam

passagens até então obstruídas na

relação com o socius.

O PACIENTE, AGORA USUÁRIO DOS SERVIÇOS

SUBSTITUTIVOS DE SAÚDE MENTAL, PASSA ASER OBSERVADO ALÉM DOS MUROS DO

HOSPITAL PSIQUIÁTRICO, ALÉM DE SEU

CÓDIGO DE INSCRIÇÃO NA ‘CLASSIFICAÇÃO

INTERNACIONAL DAS DOENÇAS’

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acesso a outras práticas voltadas

para o que, no movimento da Re-

forma Psiquiátrica, é nomeado por

‘reinserção social’.3

Este redirecionamento veio ao

encontro das propostas formuladas

inicialmente pela Reforma Psiquiá-

trica italiana, modelo privilegiado

pela Reforma brasileira, onde se

constata a preocupação com inves-

timento em uma luta por condições

de vida para os ‘doentes mentais’ que

lhes permitam exercer sua cidadania

e reconstruir suas existências, tanto

subjetiva quanto objetivamente. As-

sim, paralelamente à abertura dos

portões dos grandes hospícios, pro-

curou-se construir um envolvimen-

to progressivo com a população e

com a cidade. Com esse movimento

buscou-se a reconstrução de uma

relação cotidiana com a família e

com os equipamentos sociais, refor-

çando-se a idéia de que a desinstitu-

cionalização da loucura dever-se-ia

estender no espaço urbano, porque

nele existiriam forças vivas que se

configuram como elementos impor-

tantíssimos para o desenvolvimen-

to de estratégias terapêuticas.

Ao lado desta preocupação, en-

tretanto, temos tido contato com

trabalhos e debates nos quais se

analisa a relação entre o individua-

lismo exacerbado do mundo con-

temporâneo e o desinteresse com as

questões de ordem coletiva. Questi-

ona-se o recuo do envolvimento nos

problemas de cunho social e políti-

co, o aumento de comportamentos

‘bairristas’ e o enclausuramento dos

indivíduos em comunidades homo-

gêneas que promovem a desvitali-

zação e desqualificação dos espa-

ços urbanos. (Sennett, 1988; Rago,

1993; Chauí,1992).

Paralelamente, pesquisas em

áreas como a filosofia, geografia,

psicologia, antropologia, entre ou-

Estes autores têm trabalhado

com uma concepção que considera

os espaços urbanos para além de

seu aspecto puramente técnico, pri-

orizando o aspecto político e identi-

ficando-os com uma máquina pro-

dutiva que tanto pode se orientar no

sentido de um esmagamento unifor-

mizador, quanto na direção de uma

ressingularização (Fourquet, 1978).

O tom comum dos trabalhos re-

feridos acima refere-se à existên-

cia de dispositivos e estratégias de

disciplina e controle que têm pre-

sidido a organização e reformula-

ção dos espaços urbanos e têm re-

dundado na produção de cidadani-

as hierarquizadas, com a segrega-

ção e marginalização de grandes

camadas da população em áreas

onde a oferta de serviços e tecno-

logias é subdesenvolvida em todos

os aspectos – as favelas, os bair-

ros de periferia e as invasões de

grandes terrenos desabitados.

Algumas dessas pesquisas, pri-

vilegiando uma abordagem históri-

co – genealógica, nos apresentam

um quadro onde aparece em cores

vivas o mecanismo pelo qual o pro-

jeto político de normalização social

do espaço urbano, formulado e di-

fundido pela medicina social do sé-

culo XIX (1840 a 1890), escolheu

como alvo privilegiado de sua inter-

venção a população que tinha nas

3 Usamos aqui o termo tal como é frenquentemente referido na literatura especializada. Destacamos,entretanto, que este mereceria análise

mais cuidadosa, que foge ao escopo deste trabalho.

tras, têm trabalhado no sentido de

analisar os modos de produção que,

nas grandes cidades contemporâne-

as, fazem emergir tais comporta-

mentos individualistas em conso-

nância com o aparecimento de es-

paços de exclusão e hierarquização

sociais (Josephson, 1999; Guattari,

1992; Rolnik, 1994).

PARALELAMENTE À ABERTURA

DOS PORTÕES DOS GRANDES HOSPÍCIOS,PROCUROU-SE CONSTRUIR UM

ENVOLVIMENTO PROGRESSIVO COM APOPULAÇÃO E COM A CIDADE

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ruas seu espaço de vida e circula-

ção: os pobres, os loucos, as prosti-

tutas, os operários e os prisionei-

ros. Todos eram, então, considera-

dos como classes perigosas, porque

sem domicílio certo, sem família,

sem ocupação reconhecida. As pro-

postas de reordenação dos espaços

urbanos caracterizaram-se em disci-

plinar essa massa de indivíduos, se-

gregando-os em grupos e isolando-

os do convívio das classes detento-

ras do poder econômico e político,

direcionando alguns para os subúr-

bios e favelas, outros para lugares

escondidos das vistas das famílias:

para as prisões e os manicômios.

Em que pese o passar dos anos

e o quanto se conseguiu avançar

em relação aos processos discrimi-

nalizadores do lidar com a diferen-

ça, continuamos a conviver com

estas e outras segregações e nos

perguntamos como, no caso espe-

cífico dos loucos, ultrapassar um

preconceito secular e que, em nos-

sos dias, encontra-se agenciado a

interesses outros como, por exem-

plo, os interesses da indústria da

medicalização ou os da indústria

da privatização da saúde? Como

proceder para que o resgate (ou

melhor seria dizer – construção?)

da cidadania dos chamados ‘doen-

tes mentais’, não se configure como

uma resposta à demanda de dimi-

nuição de gastos públicos pela sim-

ples delegação às comunidades do

cuidado com a saúde?

Vale destacar que os conceitos

de cidadania, autonomia e reinser-

ção social, amplamente utilizados

nas propostas da Reforma Psiqui-

átrica, merecem, também ser pro-

blematizados posto que, grande

parte das vezes estão calcados em

definições universalistas e abstra-

tas que pouco se detêm na análise

das intrincadas ligações com a

questão das classes sociais, dos

às práticas de reinserção social. Isto

nos possibilitaria conhecer as res-

postas que os profissionais da saú-

de, os territórios urbanos e os equi-

pamentos sociais têm dado à essas

iniciativas, tanto quanto os efeitos

que esse movimento pode estar pro-

duzindo no trabalho desenvolvido

na rede de saúde mental com os

usuários e seus familiares.

Dentre os dispositivos que têm

sido experimentados, os Lares Abri-

gados destacaram-se como configu-

ração na qual os usuários podem

estabelecer um tipo de inserção dife-

rente de outros desenvolvidos nos

Serviços diários (Centro de Atenção

Diária – CADS, Núcleos de Atenção

Psicossocial – NAPS, Hospitais-Dia

– HDS, Centros de Atenção Psicosso-

cial – CAPS) já colocados em prática

pelo movimento da Reforma. Trata-

se de um lugar não mais caracteris-

ticamente terapêutico, mas um es-

paço em que se espera que o usuário

possa experimentar e vivenciar redes

de relações sociais mais amplas.

Traçamos, então, como objetivo,

mapear os projetos existentes na ci-

dade do Rio de Janeiro procurando

acompanhar como tais propostas

estão sendo implementadas e que

efeitos têm produzido quanto à pre-

tensão de reinserção social dos usu-

ários. Queríamos, também, saber

que práticas ‘psi’ vêm sendo desen-

volvidas e que contribuições têm

gêneros, dos processos de trabalho

no contemporâneo. Tais categori-

as, quando tomadas de forma abs-

trata, apenas reproduzem, de ma-

neira ingênua, certos modos de

operar hegemônicos das formações

sociais em que se inserem.

Tais questões apontaram para

a necessidade de um trabalho de

campo4 que nos permita ter acesso

4 O trabalho de campo foi realizado pelas bolsistas de iniciação científica Wilma Mascarenhas e Alessandra Daflon

TRAÇAMOS, ENTÃO, COMO OBJETIVO,MAPEAR OS PROJETOS EXISTENTES NA

CIDADE DO RIO DE JANEIRO PROCURANDO

ACOMPANHAR COMO TAIS PROPOSTAS ESTÃO

SENDO IMPLEMENTADAS E QUE EFEITOS TÊM

PRODUZIDO QUANTO À PRETENSÃO DE

REINSERÇÃO SOCIAL DOS USUÁRIOS

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dado para o movimento da Refor-

ma Psiquiátrica.

O material que se segue apresen-

ta algumas conclusões parciais so-

bre tais experiências. A parcialidade

refere-se menos a uma posição que

se pretenda, um dia, ser ‘completa’,

do que a uma certeza das pesquisa-

doras de que o olhar, a escuta, a aná-

lise são sempre recortes do que foi

vivido na situação de pesquisa.

EIXO I: O SURGIMENTO DOS LARES ABRIGADOS

Os primeiros lares abrigados fo-

ram criados em São Paulo e no Rio

Grande do Sul. O movimento dos pro-

fissionais em Saúde Mental para a

criação de lares abrigados no Rio de

Janeiro começou há pouco tempo.

Seguindo os moldes da reforma,

a proposta relativa aos lares abriga-

dos objetivava, inicialmente, retirar

as pessoas das enfermarias, deslo-

cando a ênfase do tratamento, atre-

lada à lógica medicalizadora, para

alternativas crescentes de maior par-

ticipação do usuário na gestão de sua

vida e na diversificação de contato

com o espaço urbano.

Há quatro projetos de Lares em

funcionamento hoje no município

do Rio de Janeiro:5 o Lar Abrigado

Paulo Barreto, vinculado ao Institu-

to Philippe Pinel; o da Colônia Juli-

ano Moreira,6 ambos municipaliza-

dos; o Lar Abrigado do Instituto de

Psiquiatria da UFRJ (IPUB), e a Re-

pública de Pasárgada do Centro Psi-

quiátrico Pedro II (CPPII).

O Hospital Philippe Pinel foi uma

das primeiras instituições a imple-

mentar esta proposta. Há dez anos

vem promovendo a reformulação

dos seus serviços, seja pela organi-

zação de um hospital-dia, seja pe-

las inovadoras experiências de dis-

tria do terceiro ano (R3), uma aluna

do Curso de Assistência ao Psicótico

e duas assistentes sociais. Estes pro-

fissionais interessaram-se em dar

andamento a um projeto desta na-

tureza a partir da constatação de

haver, na enfermaria do hospital,

pessoas que não tinham para onde

ir depois de estarem em alta médica.

No CPPII existem, como proje-

tos de moradia, a República de Pa-

sárgada, os ‘Colaboradores Sociais’,

a Pensão Feminina, a Pensão Mas-

culina, e a pensão do EAT (Espaço

Aberto ao Tempo). O EAT é um hos-

pital-dia, que tem um trabalho de

moradia a ele vinculado. Os Colabo-

radores Sociais existem desde o iní-

cio da década de 80 e as pensões fo-

ram-se organizando mais recente-

mente. A República é de 1995 e as

Pensões Feminina e Masculina são

contemporâneas da República. O

projeto dos Colaboradores Sociais

não era, inicialmente, um serviço de

moradia, tendo nascido como um

serviço de trabalho protegido.

EIXO II: A PROPOSTA DO LAR ABRIGADO E SUALIGAÇÃO COM A REDE DE ASSISTÊNCIA

Segundo os entrevistados, este

tipo de serviço substitutivo não se

constitui em espaço de atendimen-

positivos de intervenção – a TV Pi-

nel, por exemplo – seja pela propos-

ta do Lar Abrigado, este, denomi-

nado Lar Abrigado Paulo Barreto.

O projeto de Lar Abrigado do IPUB

começou no segundo semestre de

1998. Havia um primeiro grupo com-

posto por um residente de psiquia-

5 Os dados colhidos referem-se ao período da realização da pesquisa: jul/99 a jul/00.

6 O contato estabelecido com a Colônia Juliano Moreira restringiu-se, por motivos institucionais e de prazo da pesquisa, a uma visita seguida

de observações assistemáticas. Como não foi possível entrevistar os profissionais que lá trabalham, não estaremos, na análise, incluindo este

estabelecimento.

OS PRIMEIROS LARES ABRIGADOS FORAM

CRIADOS EM SÃO PAULO E NO RIO GRANDE

DO SUL. O MOVIMENTO DOS PROFISSIONAIS

EM SAÚDE MENTAL PARA A CRIAÇÃO DE

LARES ABRIGADOS NO RIO DE JANEIRO

COMEÇOU HÁ POUCO TEMPO

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to. A meta é fazer dele uma resi-

dência, um lugar onde os usuári-

os possam conviver com outras

pessoas, fazer novos vínculos afe-

tivos e construir suas vidas fora

do hospital. O atendimento médi-

co-psicoterápico oferecido é ambu-

latorial e realizado com profissio-

nais externos aos lares, nos hos-

pitais de referência. Este funcio-

namento também obriga os usuá-

rios a circular, a aprender a andar

nas ruas e estabelecer outras re-

lações, mediante o contato com

outras pessoas.

O importante para este novo

modelo de assistência é promover o

trabalho em saúde mental conside-

rando as experiências de cada pro-

fissional e de cada usuário. Uma das

funções da equipe, segundo os co-

ordenadores, é promover e dar su-

porte à ligação entre a instituição

que presta assistência ambulatori-

al ou diária (como é o caso dos

CAPS) e o Lar e entre os moradores

e os profissionais de saúde.

A proposta dos Lares Abrigados,

então, é a de trabalhar com pes-

soas que já estiveram internadas

e que perderam seus vínculos, ou

mesmo com aquelas que, ainda

tendo referências familiares, não

querem ou não conseguem ‘retor-

nar ao núcleo familiar’. Além dis-

so, trata-se de criar oportunidades

para o estabelecimento de relações

diferentes daquelas do hospital,

investindo na mudança da cultu-

ra hospitalocêntrica para a de uma

residência, cujo funcionamento te-

rão que gerir.

Um ponto importante destacado

é a constante ausência de técnicos

nas casas, a partir do momento em

que os moradores assumem o geren-

ciamento das mesmas. Segundo os

técnicos do Lar Paulo Barreto, eles

estão ali cuidando para que, cada vez

mais, os moradores assumam suas

vidas, o que significa que, aos pou-

cos eles devem assumir as ações di-

árias e os técnicos serem cada vez

EQUIPES

No Lar Paulo Barreto trabalham

seis estagiários de psicologia, dois

voluntários (alunos da UFRJ) e um

coordenador. Existe espaço para ou-

tras especialidades, mas ultimamen-

te têm recebido apenas estagiários

de psicologia. A equipe do Lar do

IPUB é composta por três assisten-

tes, três psicólogas, sendo uma de-

las professora da UFRJ, além de duas

cuidadoras. A equipe ressalta o ter-

mo ‘cuidadora’, para designar a fun-

ção de duas funcionárias do IPUB

que dormem no apartamento com as

moradoras. No caso da República do

CPPII existe uma coordenadora que

é assistente social e conta com o

apoio e trabalho de dois estagiários

do programa em Saúde Mental.

RECURSOS

Os recursos com que os Lares con-

tam são basicamente oriundos de

suas instituições de origem. No caso

do Lar Paulo Barreto, o Instituto Fran-

co Basaglia contribui com apoio téc-

nico; já o Instituto Philippe Pinel é

responsável pelo aluguel da casa. No

dia-a-dia, os técnicos têm procurado

incentivar os moradores a retirarem

o benefício de R$150,00 do INSS a que

todos têm direito (benefício para por-

tadores de deficiência). Este é um pon-

to polêmico entre os técnicos, pois a

República do CPPII não apóia esta ati-

tude por considerar que isto legitima-

mais somente apoiadores destas ta-

refas. Acreditam serem necessários

outros serviços para que os Lares

Abrigados não sejam a única saída

dos hospícios. Chamam a atenção

para o fato de que a rede de assis-

tência oferece vários dispositivos de

atendimento e que os Lares não de-

vem ser tomados como um fim em si

mesmos, um ideal, mas devem con-

tribuir para a articulação da plurali-

dade de propostas disponíveis no

campo da Saúde Mental.

A PROPOSTA DOS LARES ABRIGADOS, ENTÃO,É A DE TRABALHAR COM PESSOAS QUE JÁESTIVERAM INTERNADAS E QUE PERDERAM

SEUS VÍNCULOS, OU MESMO COM AQUELAS

QUE, AINDA TENDO REFERÊNCIAS FAMILIARES,NÃO QUEREM OU NÃO CONSEGUEM

‘RETORNAR AO NÚCLEO FAMILIAR’

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Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade

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ria a incapacidade dos usuários. No

caso dos lares do IPUB e do Instituto

Pinel, a partir do momento em que

os usuários começam a receber o be-

nefício, existe uma contribuição para

a caixinha da casa, em torno de 1/5

do que recebem de seus benefícios,

destinada para a administração da

casa. No Lar Abrigado do IPUB, a Se-

cretaria Municipal de Desenvolvi-

mento Social financia 50% do aluguel

e o IPUB complementa o restante:

IPTU, condomínio, alimentação, a

parte de medicação, além do paga-

mento dos técnicos.

EIXO III: FUNCIONAMENTO E ROTINA

Observamos que as regras de con-

vívio e a rotina dos Lares são estabe-

lecidas em conjunto pelos moradores

e técnicos em reuniões agendadas

entre eles. Os técnicos participam des-

te momento auxiliando na organiza-

ção do dia-a-dia e acompanhando os

moradores em suas atividades, quan-

do necessário. No Lar Paulo Barreto

estipulou-se a hora do jantar como

este momento. No Lar coordenado

pelo IPUB, este encontro ocorre uma

vez por semana, todas as quintas-fei-

ras à tarde e os temas costumam ser:

a caixinha, a dificuldade de dar di-

nheiro para a caixinha, o que está fal-

tando, o que está acontecendo na se-

mana, quais os problemas que estão

ocorrendo. Tais encontros não têm o

aspecto de reunião, como ocorre na

República do CPPII, onde a presença

é obrigatória para os usuários e toda

a equipe. Geralmente os próprios

moradores cuidam de seus objetos

pessoais, do espaço da casa e de suas

refeições. No Lar do IPUB existe, como

dissemos, a figura da ‘cuidadora’, que

possui formação na área de saúde e

que participa mais cotidianamente da

administração da casa.

Todos os projetos de lares abriga-

dos visitados por nós trabalham com

a idéia de que a casa não é um espa-

ço de assistência à crise. Caso exista

moradores são: estar com indicação

de alta, ou seja, não estar em crise,

e não ter para onde ir. No Lar Paulo

Barreto existe um período de adap-

tação que é variável (mais ou me-

nos um mês) em que o usuário é

acompanhado por um membro da

equipe. Este processo compreende

passeios pelo bairro e visitas perió-

dicas à casa, com o intuito de es-

treitar laços com o lar e os outros

moradores. Nesta casa, atualmen-

te, moram seis pessoas, de ambos

os sexos e a proposta é chegar a tra-

balhar com 11 pessoas.

No Lar do IPUB os critérios são

os mesmos. Trabalham com flexibi-

lidade procurando saber sobre a

demanda do usuário pelo serviço da

moradia. O grupo é composto por

mulheres, fato não premeditado.

Algumas destas usuárias eram fre-

qüentadoras do Hospital Dia e ti-

nham dificuldades em encontrar

moradia, por isso foram convidadas

a participar do projeto.

Na República do CPPII não há

restrições à participação de depen-

dentes químicos no projeto, como

ocorre nos demais. A equipe enten-

de que a dependência química está,

em geral, associada a alguma outra

questão psiquiátrica. Desde que es-

tejam em tratamento, os usuários

são recebidos neste projeto. Esta

equipe ressalta a questão da vonta-

de e da autonomia como condições

importantes para a adesão do usu-

ário ao trabalho.

a necessidade de internação, os usu-

ários são encaminhados ao lugar de

referência. Os Lares Abrigados não

têm estrutura e nem como proposta

acolher pessoas em crise, porém as

equipes mantêm-se alerta e sempre

prontas para atuar quando preciso.

EIXO IV: OS CRITÉRIOS

Em todos os serviços pesquisa-

dos, os critérios para selecionar os

GERALMENTE OS PRÓPRIOS

MORADORES CUIDAM DE

SEUS OBJETOS PESSOAIS,DO ESPAÇO DA CASA

E DE SUAS REFEIÇÕES

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EIXO V: A CASA E O TERRITÓRIO

Nos projetos do Instituto Pinel e

do IPUB, o que representou um gran-

de obstáculo à sua implementação,

segundo os coordenadores entrevis-

tados, foi a dificuldade de uma ins-

tituição pública assumir o aluguel

de uma residência, com finalidade

de ‘moradia’.

No Lar Paulo Barreto houve a pre-

ocupação, por parte da equipe idea-

lizadora do projeto, de freqüentar as

reuniões da associação de morado-

res, travando contato com os mora-

dores do bairro, o que facilitou a ins-

talação do Lar. Em relação à intera-

ção com a comunidade, existe o que

eles chamam de ‘Amigos do Lar Abri-

gado Paulo Barreto’ que é um grupo

de pessoas que freqüenta a casa em

algumas ocasiões organizadas pelos

moradores e técnicos, como jantares,

churrascos, etc. A equipe ressalta um

outro tipo de obstáculo encontrado:

o preconceito, não tanto em relação

à doença mental, mas, principalmen-

te, em relação à pobreza. A aparên-

cia e os hábitos dos moradores inco-

modaram inicialmente seus vizi-

nhos. A atitude da equipe se dirigiu

no sentido de promover uma refle-

xão com estas pessoas sobre os mo-

tivos do incômodo.

Um caso especial é o da Repú-

blica de Pasárgada (CPP II), onde a

vizinhança é a própria instituição.

O objetivo do projeto é ter uma casa

fora do espaço asilar mas, no mo-

mento, a moradia funciona dentro

do Centro Comunitário, que é um

prédio de imensa circulação. Este

Centro é um programa do Hospital

que acontece numa antiga unidade

de internação com uma área cons-

truída de 10.000 m ², que ficou de-

sativada por oito anos, à espera de

uma obra do Ministério da Saúde

que não aconteceu. Houve uma pro-

posta de ocupar este espaço com

atividades de promoção de saúde,

em parceria com a sociedade civil

organizada. A idéia era que os es-

que a comunidade freqüente a ins-

tituição investindo na desconstru-

ção do preconceito por meio do con-

vívio e do contato.

Todos os projetos dos lares pro-

curam desenvolver trabalhos que

promovam a autonomia de seus

moradores para que estes possam

gerir a própria vida. Os técnicos do

Lar Paulo Barreto enfatizam a pre-

ocupação em não tratar os usuári-

os como crianças, estando atentos

à questão da infantilização tão pre-

sente nos espaços asilares. Eles afir-

mam que ali não há atividades te-

rapêuticas, mas o espaço, o ambi-

ente e o convívio em si são terapêu-

ticos, pois permitem que os mora-

dores criem laços afetivos a partir

do contato com as outras pessoas

da casa. A relação entre os técnicos

e os moradores desta residência é

vista como a mais espontânea pos-

sível, pois ali não existe uma hie-

rarquia como no hospital onde há

relações distanciadas entre pacien-

te, médico e psicólogo. Este traba-

lho realizado fora da instituição

asilar possibilita a técnicos e estu-

dantes estar em contato com as pes-

soas, constituindo um outro olhar

“um olhar dirigido para o ser hu-

mano” (sic).

Em todos os projetos existem

tentativas de aproximação com a

comunidade, seja por meios de even-

tos e festas, seja por meio de proje-

tos desenvolvidos pela própria ins-

tituição, como é o caso da Repúbli-

ca do CPPII, onde o Centro Comuni-

paços fossem reinvestidos fisica-

mente e ocupados por entidades

como a Associação de Moradores,

grupos como Alcoólatras Anônimos,

Narcóticos Anônimos, grupos de

escoteiros; enfim, organizações que

pudessem estar em parcerias com a

instituição oferecendo atividades

gratuitas e que pudessem incluir

alguns usuários. Todos estes proje-

tos buscam a lógica da desmistifi-

cação da doença mental, a inclusão,

a troca social e a insistência para

A EQUIPE RESSALTA UM

OUTRO TIPO DE OBSTÁCULO

ENCONTRADO: O PRECONCEITO,NÃO TANTO EM RELAÇÃO À

DOENÇA MENTAL, MAS,PRINCIPALMENTE, EM RELAÇÃO

À POBREZA

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Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001 65

tário é o lugar de intercâmbio entre

a comunidade e a instituição. Este

é um espaço que se incumbe de ati-

vidades de lazer e de cultura para a

comunidade interna e externa, gra-

tuitamente. Desta maneira, partici-

pando ativamente destes eventos, a

comunidade é convidada a ‘entrar’

na instituição. Espera-se que, a par-

tir do encontro dos moradores com

a vizinhança outras formas de rela-

ção venham a ser construídas.

ALGUNS COMENTÁRIOS SOBREO MAPEAMENTO REALIZADO

O movimento da Reforma Psiqui-

átrica no Brasil iniciou-se a partir da

organização do Movimento dos Tra-

balhadores em Saúde Mental

(MTSM), na década de 70. Este mo-

vimento deu-se num contexto de lu-

tas, fazendo com que viessem à tona,

mais do que reivindicações salariais,

inquietações com relação às condi-

ções de trabalho e ao tipo de trata-

mento até então oferecido, como as

práticas das longas internações em

hospitais psiquiátricos com seus efei-

tos de estagnação, degradação, in-

fantilização, alienação e exclusão

dos chamados ‘doentes mentais’.

Desde então inúmeras lutas têm

sido travadas pela garantia da as-

sistência àqueles que durante sécu-

los, tem estado alijados dos direi-

tos sociais básicos – os ‘mentais’.7

Entretanto, tais lutas, se têm avan-

çado em suas conquistas têm, por

outro lado, enfrentado os efeitos das

políticas neoliberais que, no campo

da saúde (embora não só neste),

vêm diminuindo o amparo aos ci-

dadãos, especialmente àqueles que

se encontram em condições de mai-

or vulnerabilidade, acentuando dra-

maticamente as injustiças sociais.

saneamento e habitação, a diminui-

ção da oferta de trabalho, acarre-

tando um incremento da massa de

desempregados e subempregados.

Outro aspecto a ser levado em

conta diz respeito à existência de um

processo contínuo de aceleração que

transforma todas as coisas em algo

absolutamente volátil e que exige,

em termos subjetivos, comporta-

mentos flexíveis. A flexibilidade é

valorizada como um ‘algo mais’

para a autonomia pessoal e a mol-

dagem das vidas individuais.

Apostar e arriscar-se são palavras

fortes em um mundo onde valores e

comportamentos são voláteis e se

transformam em seqüências aleató-

rias e infinitas, engendrando subje-

tividades desterritorializadas por

esta ‘ditadura da velocidade’, às

quais faltam condições de montar

territórios criativos e potencializado-

res (Machado, 1999). A busca inces-

sante pela produção de territórios

existenciais gera, por sua vez, ima-

gens identitárias que se refazem ao

sabor de um mercado que a toda hora

exige novas capacidades, novos ros-

tos, novos comportamentos.

Mundo de ‘novos começos’, onde

também a questão das diferenças

exclusivas adquire um novo contor-

no (Bauman, 1998). Constata-se

uma certa dissensão entre o normal

7 Este termo é recorrentemente utilizado pelos próprios usuários dos serviços de assistência em saúde mental. Observa-se aí uma “identificação

pela classificação” fortemente implantada pelo discurso normalizador da psiquiatria e que no vocabulário popular chega de forma simplificada

(doente mental=mental). Chama a atenção o modo naturalizado com que, nas lutas pelos direitos previdenciários, por exemplo, ou por vale

transporte para deficiente, familiares e associações de usuários e familiares utilizam-se do termo.

Cientes disso, damo-nos conta

de diversos problemas que assolam

as grandes cidades contemporâne-

as. Destacam-se questões como a

violência urbana, o aumento da po-

pulação de rua, a proliferação de

favelas e bairros onde se constata a

inexistência de serviços básicos de

DESTA MANEIRA, PARTICIPANDO ATIVAMENTE

DESTES EVENTOS, A COMUNIDADE ÉCONVIDADA A ‘ENTRAR’ NA INSTITUIÇÃO.ESPERA-SE QUE, A PARTIR DO ENCONTRO

DOS MORADORES COM A VIZINHANÇA

OUTRAS FORMAS DE RELAÇÃO VENHAM

A SER CONSTRUÍDAS

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66 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001

e o anormal, o comum e o bizarro, o

familiar e o estranho. Os ‘estranhos’

já não são mais previamente seleci-

onados, rotulados e separados e/ ou

excluídos como o foram até a um

tempo atrás (o caso dos loucos, por

exemplo). Eles são tão erráticos e

voláteis quanto é todo o restante da

sociedade contemporânea.

Neste modelo de funcionamen-

to onde nada é garantido, constata-

se, rotineiramente, o aparecimento

de novos ‘excluídos’ e marginaliza-

dos: os novos desempregados, os

novos sem-teto, os novos pobres, os

novos assentamentos irregulares.

Para estes existem sempre os espa-

ços públicos abandonados e os ter-

ritórios esquecidos da cidade, bem

como o aparelho repressivo, a fim

de reprimir os sintomas de desagre-

gação e mantê-los nos limites.

Complementando este quadro

encontramos um número cada vez

maior de construção de bairros

mais e mais fechados, exclusivos,

homogêneos e seguros, onde se re-

força a valorização da privacidade,

da ‘liberdade e autonomia’. Bairros

que se bastam a si mesmos, ‘simu-

lacros de cidades’ (Sarlo, 1997)

onde não se encontram os signos

de um texto urbano que expressa

as diferentes formas de vida de

seus cidadãos e onde se procura

evitar o contato com ‘estranhos’.

A partir destas considerações, o

estudo, o mapeamento e o planeja-

mento da assistência na saúde não

podem estar dissociados da análise

das características sociais/ políticas/

econômicas/ culturais dos diferen-

tes espaços urbanos. Esta análise

abriria um importante canal para se

pensar estratégias mais eficientes

na construção de modos variados de

relação dos usuários com o socius.

Diante disso, cabe a pergunta

sobre como se dá, ou se dará, a cir-

culação dos indivíduos que estão

‘fora dos padrões hegemônicos de

sociabilidade’. Até recentemente

espaços específicos foram historica-

vêm problematizando a prática da

reabilitação, com o intuito de que

esta não se transforme em um novo

jargão, vazio de sentido e repleto de

velhas práticas disciplinares.

Algumas práticas de reinserção

podem ser traduzidas em inúmeros

empreendimentos que tentam res-

tituir ao ‘louco’ seu lugar de cida-

dão perante a sociedade. De acordo

com esta conceituação espera-se

devolver ao sujeito ‘comprometido

psiquicamente’, o que a doença su-

postamente lhe usurpou: a possibi-

lidade de existência fora dos muros

excludentes dos asilos.

Noções como autonomia e rea-

bilitação emergem como palavras de

ordem. E as práticas grupais – que

aparecem sob formas variadas como

assembléias, oficinas e grupos te-

rapêuticos – apresentam-se como

um importante dispositivo (Benevi-

des de Barros, 2000) para promo-

ver a ‘inclusão’ dos loucos na socie-

dade, assim como, os projetos de

moradia dos lares abrigados.

Quanto a estes, suas singulari-

dades estão, a nosso ver, relaciona-

das ao processo de elaboração dos

projetos específicos de cada Casa

que, por sua vez, expressa o funci-

onamento, a estrutura e as condi-

ções gerais das instituições/estabe-

lecimentos aos quais estes lares es-

tão vinculados.

Por outro lado, apesar das dife-

renças encontradas – estruturação

da casa, articulação com o territó-

rio urbano, tomada de decisões in-

mente construídos para os loucos,

para as crianças problemáticas,

para os portadores de deficiência

mental e tantas outras categorias

estigmatizadas e excluídas.

Atualmente nos deparamos com

estas discussões dentro do movimen-

to de reforma que reflete sobre a pos-

sibilidade de estes indivíduos existi-

rem nos espaços da cidade contem-

porânea, discutindo questões como

as da reabilitação, autonomia e ci-

dadania e trabalho. Muitos autores

NESTE MODELO DE FUNCIONAMENTO ONDE

NADA É GARANTIDO, CONSTATA-SE,ROTINEIRAMENTE, O APARECIMENTO DE

NOVOS ‘EXCLUÍDOS’ E MARGINALIZADOS:OS NOVOS DESEMPREGADOS, OS NOVOS

SEM-TETO, OS NOVOS POBRES, OS NOVOS

ASSENTAMENTOS IRREGULARES

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Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001 67

ternas, critérios para seleção dos

moradores das casas, tipo de mora-

dia (casa, apartamento), localização

das mesmas (dentro ou fora dos

hospitais psiquiátricos) – uma cons-

tatação se impõe: a de não conside-

rar os Lares como “depósitos de lou-

cos” (sic) , mas dar-lhes uma feição

de moradia, de residência, onde ou-

tras formas de relações sociais, di-

versas daquelas mantidas no âm-

bito do hospital e da família, pos-

sam ser experimentadas.

Outro ponto, que aparece como

questão fechada em todos os proje-

tos dos Lares pesquisados, refere-

se à questão de seu caráter não te-

rapêutico. Mais especificamente, os

coordenadores afirmam que nestes

espaços não se faz terapia, em sen-

tido estrito, de tratamento, indivi-

dual ou grupal (este, como já apon-

tado, é realizado nos ambulatórios

dos hospitais de referência dos mo-

radores). Enfatizam o ‘efeito tera-

pêutico’ da proposta que advém, não

só da ampliação das redes associa-

tivas que se formam, como da plu-

ralidade de serviços de atendimento

que a rede de Saúde Mental oferece

atualmente (CAPS, NAPS, Hospital-

Dia, Centro de Atenção Diária – CAD)

e que deve continuar a se ampliar.

O projeto dos Lares Abrigados é

um dos dispositivos que, juntamen-

te com os demais serviços da Rede

de Saúde Mental, objetiva a reinser-

ção social pela construção da cida-

dania e promoção da autonomia dos

usuários. A nosso ver, esse movi-

mento tem se mostrado extrema-

mente importante e decisivo para os

processos de desospitalização dos

loucos e desinstitucionalização da

loucura. Sem dúvida ele demonstra,

de forma explícita, a implicação dos

profissionais de Saúde Mental com

as metas da Reforma Psiquiátrica

tanto como seu engajamento na luta

o acesso aos bens sociais e culturais

e à sua circulação pela cidade.

Entretanto, e considerando que

o mais antigo destes Lares tem me-

nos de cinco anos de existência,

observamos que, apesar de se esta-

belecerem como casas residenciais

e procurarem funcionar como tal,

ainda não conseguiram aprofundar

uma discussão acerca de sua efeti-

va inserção social nos espaços ur-

banos. Apesar da problematização

dos vínculos dos Serviços com os

espaços da cidade ainda se encon-

trar em seus passos iniciais, cons-

tatamos, junto aos profissionais

entrevistados, a preocupação e a

necessidade de serem ampliados os

estudos sobre o tema, através da

discussão acerca dos impasses, di-

ficuldades e alternativas para os

problemas que uma metrópole como

o Rio de Janeiro pode apresentar, de

modo e redimensionar as propostas

para a Saúde Mental dentro de um

quadro mais realista e concreto.8

Aqui, sem dúvida é o tema da auto-

nomia que se coloca como ponto de

reflexão crucial para que se possa

avançar em propostas mais arroja-

das para o movimento da Reforma,

pois como discriminar, cotidiana-

mente, o cuidado da tutela? Como

trabalhar no sentido de que os usu-

ários se tornem efetivamente poten-

tes para eles próprios estabelecerem

pela invenção de outros meios de

lidar com a loucura. O esforço tem

sido grande, por parte daqueles en-

volvidos nos projetos dos ‘lares’ no

sentido da reinserção dos usuários

no espaço urbano, promovendo re-

lações com a cidade, com o socius,

de tal modo a que estes não se colo-

quem em situações que inviabilizem

8 Outras importantes análises de experiências no Brasil têm contribuído para o debate sobre os serviços de moradia em Saúde Mental. O

trabalho de Carmem Vera Passos Ferreira sobre a Pensão Nova Vida, em Porto Alegre, traz, neste sentido rico material. Cf. Ferreira, Carmen V. P.,

1999. Em busca de uma Nova Vida: Trajetória de um Serviço de Moradia de Saúde Mental. Transversões,1 (1): 76-131

O PROJETO DOS LARES ABRIGADOS É UM

DOS DISPOSITIVOS QUE, JUNTAMENTE COM

OS DEMAIS SERVIÇOS DA REDE DE SAÚDE

MENTAL, OBJETIVA A REINSERÇÃO SOCIAL

PELA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA EPROMOÇÃO DA AUTONOMIA DOS USUÁRIOS

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68 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001

relações de troca e de transformação

sobre a cidade e, ainda, o que ela, a

cidade, põe em funcionamento?

Nossa questão, então, refere-se

a como proceder para incluir os lou-

cos em uma cidade que a cada mo-

mento procura se fechar mais e mais

em locais homogêneos, circunscri-

tos, exclusivos/excludentes, ao mes-

mo tempo regida por fluxos velozes

onde toda a diferença se perde e

tudo passa a fazer parte apenas de

mais uma engrenagem para o bom

funcionamento do capitalismo.

Cabe, então, ampliar nosso

questionamento. Como articular os

avanços promovidos pela experiên-

cia do ‘dispositivo-lares’ com os

impasses contemporâneos, especi-

almente vividos nas grandes cida-

des, de confronto com a violência e

com relações de trabalho cada vez

mais marcadas pelo desemprego,

pelo subemprego e pelo emprego

informal? Como não desatrelar tais

discussões, sem que isto paralise as

experiências inovadoras dos lares?

Neste sentido, é urgente que o

debate sobre os dispositivos imple-

mentados a partir da Reforma Psi-

quiátrica, como os lares abrigados,

mas também os Centros de Atenção

Psicossocial, os Hospitais-Dia, etc,

estejam sendo analisados tanto em

sua relação com as políticas de saú-

de e, em especial, com as políticas

de saúde mental, quanto com as de-

mais políticas públicas: de habita-

ção, de transporte, de educação e de

previdência. Sem este cuidado, po-

deremos estar promovendo movi-

mentos isolados que não terão des-

dobramentos no sentido do que

se quer como produção de uma ou-

tra cultura, outra sociabilidade, ou-

tra subjetividade.

O estudo e o aprofundamento de

tais questões poderão nos impedir

de corrermos o risco de aprisionar-

mos a reinserção dos ‘loucos’ ao

modo de produção capitalístico que

prima pela serialização. Da mesma

forma, tais apontamentos podem

nos possibilitar abarcar questões do

cotidiano inserindo-os neste proces-

so de construção da ‘cidadania’.

Acreditamos, em suma, que esta

discussão pode nos dar condições

para problematizarmos os mecanis-

mos de produção da exclusão, dis-

seminados nos espaços urbanos

contemporâneos, que vêm se somar

à exclusão histórica a que os cha-

mados ‘doentes mentais’ têm sido

submetidos.

Tais conclusões, parciais, são

bem mais inquietações que devem

funcionar como bússolas no árduo

processo de construção da Refor-

ma Psiquiátrica. Somente a aber-

tura ao debate e a análise crítica

cotidiana de nossas práticas nos

darão condições de escapar das ar-

madilhas, freqüentemente postas,

de produção da exclusão. Devemos,

ainda, colocar em discussão como,

no funcionamento contemporâneo

do capitalismo mundial integrado

(Guattari, 1981), o processo de ex-

clusão se dá não mais separando,

como podíamos mais claramente

identificar nos séculos passados,

mas anexando, incluindo. O tema

merece cuidadosa análise que cer-

tamente teremos oportunidade, em

outra ocasião, de abordar.

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DANESE, M. C. F. & FUREGATO, A. R. F.

70 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001

ARTIGOS ORIGINAIS

O usuário de psicofármacos num Programa Saúde da Família1

The psycopharmic user in a Family Health Program

Maria Célia F. Danese2

Antonia Regina F. Furegato3

1 Conteúdo abstraído da Dissertação de

Mestrado apresentada ao Programa de

Pós Graduação em Enfermagem

Psiquiátrica, EERP – Universidade

de São Paulo.

2 Enfermeira do Programa Saúde da

Família. Mestre em Enfermagem

Psiquiátrica.

3 Professora Titular do DEPCH da

EERP – Universidade de São Paulo

e-mail: [email protected]

RESUMO

Baseado na participação da enfermeira no Programa Saúde da Família

(PSF), este trabalho foi preparado tendo por objetivo identificar as repre-

sentações de usuários de psicofármacos sobre os tratamentos que recebem.

Esta pesquisa qualitativa, construída à luz da etnografia, foi realizada no

Jardim Eldorado, Assis/SP com 45 sujeitos. Os dados coletados, através de

entrevistas semi-estruturadas e complementados pela observação partici-

pante revelaram que estes mesmos usuários do sistema de saúde lançaram

mão dos serviços religiosos como solução alternativa e coadjuvante para

enfrentamento de seus problemas.

PALAVRAS CHAVE: Saúde da Família; Saúde Mental; Religião; Psicofármacos.

ABSTRACT

Based on nurse participation in the Family Health Program, this work

was prepared aiming to identify psycopharmic users' representations about

their treatment. This qualitative study, built on ethnographic research, was

performed at the "Jardim Eldorado", Assis-SP with forty five persons. The

data collected by semi-structured interviews and taking into consideration

the participants' observations, revealed that the same users of the health

system used the religious services as alternatives and supporting solutions

to face their problems.

KEY WORDS: Family health; Mental health; Religion; Psycopharmics.

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O Usuário de Psicofármacos num Programa Saúde da Família

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001 71

INTRODUÇÃO

A convite da Prefeitura Munici-

pal de Assis, fomos conhecer uma

nova proposta de assistência que

estava sendo implantada, o Progra-

ma Saúde da Família (PSF).

Esta estratégia propõe um novo

caminho dentro das políticas públi-

cas de saúde, priorizando o ser hu-

mano enquanto cidadão, através da

universalidade da atenção, descen-

tralização de decisões e definição

de bases territoriais para a atua-

ção. O pensar e o agir com trans-

parência na atuação com o cidadão

enquanto pessoa, dentro da visão

antropológica do núcleo familiar e

comunitário, levou-nos a vivenci-

ar a nova realidade.

Participamos deste programa

desde o início, experienciando todo

o processo de implantação, imple-

mentação e solidificação do mesmo.

Dentre os objetivos teóricos que

norteiam este novo modelo de aten-

dimento e interação, interpretado e

adaptado segundo características

sociais e econômicas de áreas deli-

mitadas para contemplar as neces-

sidades do processo saúde/doença

de uma população específica, os que

motivaram nosso trabalho foram os

destacados abaixo.

• promoção da família como nú-

cleo básico de abordagem no

atendimento à saúde da popu-

lação, considerando que é nes-

te contexto que se desenvolvem

grandes crises de amor e de

ódio, sempre resguardadas pelo

espaço físico da casa e o silên-

cio da privacidade familiar;

• humanização do atendimento à

população com base nas normas

dos programas de saúde, atra-

vés das visitas domiciliares, fa-

cilitando a interação com os

usuários, dentro de seu contex-

to sociocultural;

• participação da real condição de

vida da comunidade, pois resi-

frimento (Rodrigues, 1996; Furega-

to, 1999). Este referencial faz sen-

tido para a prática da assistência de

enfermagem no PSF.

Através desta vivência, observa-

mos a presença de significativo nú-

mero de usuários de psicotrópicos.

Nessa população de 1457 pessoas,

maiores de 15 anos, 795 (54,6%)

faziam uso de algum tipo de psico-

fármaco, receitado por médico.

Neste contexto, querendo com-

preender a realidade psicossocial

da população e contribuir para

melhor desempenho do enfermei-

ro, propusemo-nos realizar esta

pesquisa que teve por objetivo iden-

tificar as representações dos usuá-

rios de psicofármacos sobre os ser-

viços de saúde e os serviços, num

Programa Saúde da Família.

CARACTERIZAÇÃO DO CONTEXTO

A trajetória histórica de saúde em

Assis não foi diferente das demais

cidades brasileiras. Em 1991 foi cri-

ado o Conselho Municipal de Saúde

que efetivou suas ações a partir de 6

de outubro de 1993, consolidando a

participação popular no gerencia-

mento da saúde do município.

Concomitante à atuação do

Conselho Municipal de Saúde, fo-

ram criados, em cada Centro de

Apoio à Saúde (CAPS), os Conse-

lhos Gestores para planejar, acom-

panhar, avaliar e fiscalizar os ser-

viços de saúde desenvolvidos em

sua área de abrangência.

dindo no espaço territorial onde

atuamos, como prestadoras de

serviço e usuárias, vivenciamos

as mesmas condições sociais,

econômicas e culturais.

Partimos dos pressupostos de

que é através das relações interpes-

soais e do uso de técnicas de comu-

nicação em abordagem humanista

que a enfermagem aproxima-se da

pessoa, identifica suas necessidades

e pode ajudá-la na busca de solu-

ções sadias para minorar seu so-

A CONVITE DA PREFEITURA

MUNICIPAL DE ASSIS, FOMOS

CONHECER UMA NOVA PROPOSTA

DE ASSISTÊNCIA QUE ESTAVA SENDO

IMPLANTADA, O PROGRAMA SAÚDE

DA FAMÍLIA (PSF)

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72 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001

Seguindo este modelo, com adoção de políticas de saúde mais demo-

cráticas, resolutivas e humanas, iniciou-se o processo de implantação do

Programa Saúde da Família. Nesta construção social de saúde podem-se

estabelecer algumas diferenças entre o modelo médico vigente e a nova

proposta do PSF.

Para Levcovitz & Garrido (1996), o PSF é um modelo de atenção que

pressupõe o reconhecimento da saúde como um direito de cidadania.

Rodrigues (1996), com base nos

estudos de psiquiatria preventiva,

apresenta os mecanismos de insta-

lação do enfrentamento de dificul-

dades cotidianas e seu desfecho,

resultando em crescimento e ama-

durecimento ou criando tensões,

conflitos ou mesmo ameaça à inte-

gridade da pessoa.

A não resolutividade dos seus

problemas deixa o indivíduo vulne-

rável, à mercê dos caminhos alter-

nativos que a comunidade respon-

de com respaldo místico-religioso.

METODOLOGIA

Estudar o homem é estudar tudo

aquilo que mais intimamente lhe diz

respeito, partindo das instituições,

costumes, códigos e comportamen-

tos para atingir os desejos e senti-

mentos (Malinowski, 1984).

De acordo com a natureza deste

campo de atuação, propusemo-nos

trabalhar à luz da etnografia pois

levamos em consideração os espa-

ços físico, social, cultural e econô-

mico como componentes e interve-

nientes no processo saúde/doença.

Leininger (1985) define etnogra-

fia como um processo sistemático

de observar, detalhar, descrever, do-

cumentar e analisar o estilo de vida

ou padrões de cultura para apreen-

der o modo de viver das pessoas.

Aplica estes princípios para pesqui-

sas em enfermagem que denomina

de etnoenfermagem.

QUADRO 1 – Diferenças entre o modelo médico e o PSF

Modelo Médico Saúde da Família

• atuação na doença

• trata o indíviduo

• tratamento medicalizado e individual

• ênfase da medicina curativa

• atuação ocasional

• isolamento do profissional na atuação e saber

• atuação no doente

• trata a família

• tratamento da pessoa dentro do contexto social em que vive

• ênfase na medicina promocional e preventiva

• atende território adstrito

• interação contínua

• trabalho em equipe, somando conhecimentos e

vinculação social

Foram instalados nove núcleos do PSF, abrangendo toda a área mais

carente do município de Assis. Cada núcleo era composto por um médico,

um enfermeiro, dois auxiliares de enfermagem e quatro agentes comunitá-

rios de saúde. Sendo prerrogativa do programa morar na área de abrangên-

cia, a enfermeira trabalhava e morava no bairro Jardim Eldorado.

Este núcleo do PSF era responsável por 609 famílias cadastradas, num

total de 2.334 pessoas, sendo 1.233 do sexo masculino e 1101 do sexo

feminino. A infra-estrutura do bairro é precária e grande parcela da popula-

ção tem um padrão de vida muito baixo, ou seja, 72% ganham até dois

salários mínimos e 21,3% ganham de dois a quatro salários mínimos.

Os principais problemas de saúde que afetavam as famílias do PSF Jardim

Eldorado emergiam de fatores sociais, econômicos, culturais e geográficos.

Pela nossa vivência diária e observação, outro fator que estava provocando

aumento nos transtornos, principalmente psíquicos, era o misticismo religio-

so interferindo inclusive nos tratamentos da medicina tradicional.

Nas áreas mais carentes, onde todos os recursos são mais escassos, a

vida parece ser uma sucessão de crises e, enfrentar o cotidiano se converte

num desafio para a existência numa luta solitária (Danese, 1998).

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O Usuário de Psicofármacos num Programa Saúde da Família

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001 73

Neste sentido, trabalhar inserido

no campo, fazendo um estudo apro-

fundado de uma comunidade para

melhor atuar, dando sentido às inter-

venções de enfermagem, é tornar-se

um etnoenfermeiro. O conhecimento

de uma comunidade, dentro de um

contexto sócio-econômico-cultural,

facilita o direcionamento dos cuida-

dos de assistência primária à saúde.

As condições ideais para desen-

volver esta pesquisa estavam nas

cláusulas de contrato de trabalho que

exigia a residência no bairro como

forma de participação do processo

social. A família, a vizinhança, os

grupos de lazer e religiosos formam

um conjunto disciplinar e organiza-

do de um modo de vida adequado às

necessidade do ser humano numa

realidade própria e peculiar.

A pesquisa qualitativa considera

como sujeitos de estudo “pessoas em

determinada condição social, perten-

cente à determinado grupo social ou

classe com suas crenças valores e

significados” (Minayo, 1996).

Local da pesquisa

A pesquisa foi realizada na ci-

dade de Assis – SP, no bairro Jar-

dim Eldorado onde está implanta-

do um dos núcleos do Programa

Saúde da Família.

Seleção dos sujeitos

Foram considerados como crité-

rios de inclusão: ser morador do

bairro Jardim Eldorado; participar

do PSF; ser usuário de algum tipo

de psicofármaco, receitado por médico; ter capacidade de comunicação; acei-

tar participar da pesquisa.

Procedimento de coleta de dados

A coleta de dados foi desenvolvida em cinco etapas:

1 – Após a consolidação dos dados cadastrais das famílias inscritas

no PSF fizemos um levantamento de todas as pessoas que esta-

vam usando psicofármacos. De posse desses dados, iniciamos as

visitas domiciliares.

2 – Com o consentimento dos sujeitos fizemos uma pergunta inicial:

As respostas foram relatos de crises acidentais não superadas mas

medicalizadas. A não superação, através da intervenção médica, levou

estas pessoas a procurarem, na religião, soluções alternativas.

3 – A terceira etapa surgiu a partir da análise das informações coleta-

das na primeira interação, levando-nos a um levantamento históri-

co da cidade, do serviço de saúde até a implantação do PSF. Dentro

da visão etnografista, contextualizamos a população e o espaço ge-

ográfico do bairro Jardim Eldorado, tentando encontrar alguma in-

dicação para o deslocamento dos pacientes em relação ao trata-

mento medicamentoso.

4 – A quarta etapa constituiu-se de entrevistas realizadas com todos os

participantes do grupo, sujeitos desta investigação, fazendo-lhes as

seguintes indagações:

Por que você começou a tomar ...............(nome do psicofármaco)

Há quanto tempo você faz uso da medicação?

Você acredita na cura com o tratamento?

Por que continua fazendo uso da medicação?

5 – Em função desses achados que apontavam claramente para a des-

crença nos tratamentos tradicionais e para a busca de soluções atra-

vés da religião, os mesmos sujeitos foram abordados novamente

com a seguinte questão:

Como a religião ajuda você a resolver seu problema?

Estes procedimentos fecharam uma triangulação na coleta de dados onde

o problema inicial (medicalização) levou-nos a uma interação mais apro-

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74 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001

fundada com o grupo e à constata-

ção da ineficácia do tratamento, de-

sencadeando uma busca alternati-

va no suporte religioso.

Instrumento de coleta de dados

Malinowski (1984) diz que o tra-

balho de campo é uma condição ir-

restrita na pesquisa etnográfica. O

requisito do PSF de trabalhar, mo-

rar e conviver com a comunidade

permitiu que desenvolvêssemos um

trabalho de campo, operacionaliza-

do através de entrevistas seqüenci-

ais e de observação participante.

O procedimento de análise de dados

A análise dos resultados da pes-

quisa foi desenvolvida através de des-

dobramento das informações colhidas

e posterior reagrupamento analógico

em um critério temático abstraído de

cada grupo de dados. Este estudo es-

teve apoiado na Teoria das Represen-

tações Sociais edificada por Moscovi-

ci (1978), a partir do seu Estudo das

Representações Sociais da Psicanálise.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS

A análise dos dados, embasada na

pesquisa etnográfica e tendo como

suporte o referencial teórico das Re-

presentações Sociais, considerando

tanto os dados qualitativos como os

quantitativos, esteve voltada para

uma visão real da população, buscan-

do compreender o comportamento do

usuário de psicofármacos, dentro do

seu contexto socioeconômico-cultu-

ral. Selecionamos os principais resul-

tados para esta apresentação.

Dos quarenta e cinco sujeitos que

se propuseram a colaborar com esta

pesquisa, trinta e três eram do sexo

feminino e doze do sexo masculino. A

idade apresentada, por ocasião do ca-

dastramento, variou de dezoito a ses-

senta e cinco anos, sendo 40% anal-

fabetos ou semi-alfabetizados. Vinte

e uma mulheres (46,66%) são donas-

vou-os à busca de outras soluções

na sua comunidade.

Os motivos desencadeantes foram

avaliados como crises acidentais tor-

nadas crônicas pela falta de resolu-

ção das situações conflituosas. O tem-

po de uso dos medicamentos é um

dado importante que corrobora o ca-

ráter crônico das crises; onze pesso-

as estão fazendo uso do psicofárma-

co de dez a vinte anos, trinta e duas

de um a dez anos, e duas sequer sa-

bem precisar a data de seu uso.

Bezerra Júnior (1992) reconhece a

importância dos psicofármacos nos

tratamentos de transtornos psíquicos

mas pondera a prescrição e o uso, em

nível de atendimento de massa. Re-

portando-se ao tempo gasto na con-

sulta, o autor diz que não há tempo

razoável para um atendimento dig-

no, visto que a maioria dos psiquia-

tras da rede pública não atende, des-

pacha, não medica, repete receitas.

A demora e a falta de resolução

do problema transmitem descrédito

e levam a não adesão dos pacientes

ao tratamento. Por outro lado, ape-

sar da descrença no serviço, muitos

já são dependentes dos fármacos.

Em muitos casos, o paciente conta

com este efeito prático para supor-

tar a carga emocional de sua vida.

Esta dificuldade de relacionamen-

to com o serviço de saúde, que serve

apenas para medicalizar os proble-

mas do paciente, leva-o a procurar na

comunidade um apoio mais eficaz, o

que é encontrado na religião, princi-

palmente a neopentecostal. Esta é a

de-casa e seis homens (13,33%) estão

desempregados, formando um univer-

so de 59,99% que não têm renda pró-

pria, sendo este dado importante na

avaliação socioeconômica da popula-

ção estudada. Os demais têm renda

mensal entre dois e três salários.

A população investigada usa

psicofármacos, receitado por mé-

dico, para sintomas de transtor-

nos mentais ou situações de cri-

se acidental. Entretanto, a irre-

solutividade dos tratamentos le-

BEZERRA JÚNIOR (1992) RECONHECE AIMPORTÂNCIA DOS PSICOFÁRMACOS NOS

TRATAMENTOS DE TRANSTORNOS PSÍQUICOS

MAS PONDERA A PRESCRIÇÃO E O USO, EM

NÍVEL DE ATENDIMENTO DE MASSA

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O Usuário de Psicofármacos num Programa Saúde da Família

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001 75

que conta com maior número de adep-

tos no bairro e contato mais direto

com o povo. A religião, de certa ma-

neira, ocupa o espaço terapêutico do

serviço de saúde.

Como solução para seus proble-

mas, trinta e nove pessoas (86,6%)

buscam respostas na religião, qua-

tro estão desesperançados, apon-

tando a morte como solução. Ape-

nas dois mencionaram crédito e con-

fiança no tratamento convencional.

Os sentimentos advindos de

todo o processo pelo qual tem pas-

sado cada um dos quarenta e cinco

sujeitos são de insegurança, ansi-

edade e principalmente de procura

por soluções.

A causa do ingresso no serviço

de saúde está relacionada com per-

das que, por não terem sido tra-

balhadas adequadamente, torna-

ram-se crônicas e estimularam a

dependência medicamentosa. A

falta de resolubilidade pode estar

levando o portador de transtorno

mental a refugiar-se na transcen-

dência da religião.

O mecanismo de enfrentamento

encontrado nesta população vem

carregado de ‘sentimentos novos’,

‘adaptações às perdas’ e ‘reformu-

lações de expectativas de vida’, cul-

minando na ‘doença’.

Dois tipos de serviço acolhem o

doente, conduzindo seus relaciona-

mentos, as suas concepções de saú-

de e de doença, bem como, propon-

do tratamento e cura de maneiras

próprias. Os serviços de saúde e os

serviços religiosos.

QUADRO 2 – Comparação entre os Serviços de Saúde e os Serviços Religiosos

1 – Serviços de Saúde 2 – Comunidade Religiosa

Relações entre doentes x serviço de saúde

Doença x medicação

Tratamento x cura

Relações entre doentes x serviços religiosos

Doença punição x doença mérito

Tratamento x cura

Na tentativa do reequilíbrio individual e do seu grupo de origem, o sujeito

caminha entre domínios distintos e diferentes poderes: médico e religioso.

Embora os dois serviços estejam organizados socialmente para o aten-

dimento do indivíduo, somente na religião é possível visualizar uma ten-

dência à centralidade nos sentimentos e expectativas do sujeito adoecido,

uma vez que nos serviços de saúde a conduta profissional está centrada

na doença do sujeito.

QUADRO 3 – Apresentação dos temas e categorias, identificando as representações dosusuários de psicofármacos sobre os serviços de saúde e serviços religiosos, a partir do seuingresso no sistema.

INGRESSO NO SISTEMA DE SAÚDE

• PERDAS

Saúde, morte de parente, separação,mutilação física, emprego, liberdade,de identidade social, econômica, vi-olência, tragédia.

• SENTIMENTOSRaiva, culpa, revolta, resignação,medo, punição, rejeição, angústia,vingança, desesperança, inconformis-mo, descrença.

• EXPECTATIVASAcalmar, dormir, esquecer, tranqüi-lizar, aliviar, ajudar a viver, ampa-rar, dar segurança, dar apoio.

• A DOENÇAMuitas dores, dores nos nervos, ner-vos pulam, muito doido, zueira, cabe-ça quente, muito nervoso, sem con-trole, faz o que deve, fala muito, batea cabeça na parede, a voz não sai, mui-to agressiva, cabeça quente, dor nopeito, tristeza, velhice, insônia, corporepuxado, pressão alta, diabetes.

SERVIÇOS RELIGIOSOS

• DOENTE X SERVIÇOS RELIGIOSOS

Companheirismo, apoio, conforto,amizade, fanatismo, presença, conso-lo, cobrança, vigilância, intolerância,preconceito, cooperação obediência,afasta do demônio, melhor lugar.

• DOENÇA COMO PUNIÇÃO X MÉRITOCaminho da purificação, vontade deDeus, escolhido por Deus, privilégio,salvação da alma, sofrer agrada aDeus, cumprir a missão.

• TRATAMENTO X CURASó Deus cura, Jesus é grande médico,exorcismo, fé, oração, bênção do pas-tor, ser justo é bom, ter boa intenção,participar, ler a Bíblia, louvar e agrade-cer, comparecer aos cultos, orar, não de-sobedecer, divulgar a palavra de Deus,ajudar na comunidade, ir à missa, fa-zer encontros. Único caminho. Oraçãoé remédio. Cura pela graça divina.

SERVIÇOS DE SAÚDE

• DOENTE X SERVIÇO DE SAÚDE

Irresolutividade, descrença, falta decompromisso, descontinuidade, faltade vínculo, preconceito, baixa-auto-estima, desinteresse, dificuldade deconsulta, dificuldade de locomoção.

• DOENÇA X MEDICAÇÃONão fico sem as pílulas, não custa to-mar, é a ajuda de Deus na terra, deveservir para alguma coisa, tomo escon-dido, misturo com álcool, paliativo,ajudou um pouco, não tem vantagem.

• TRATAMENTO X CURASó pego receita, não conheço o médi-co, cada vez é um, pego remédio emqualquer posto, qualquer um pegaremédio pra mim, não preciso ir, nãoescutam a gente, o remédio é de gra-ça, só vou lá de 6 em 6 meses, elesnão têm paciência.

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76 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001

A justaposição desses dois ser-

viços tem dado ao sujeito a possibi-

lidade de enfrentamento da crise,

enquanto espaços de confidências

e, sob certa medida, de perscruta-

ção da individualidade, autonomia,

dependência e interdependência de

si e dos outros. Para surtir o efeito

desejado ao seu reequilíbrio, é dada

ao sujeito a possibilidade da união

de dados que configurem esse pro-

cesso de adoecimento: de um lado,

os dados científicos da esfera dos

serviços de saúde e, do outro, os

dados da subjetividade representa-

tiva da religião.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado em um PSF,

com os 45 sujeitos usuários de psi-

cofármacos, possibilitou entender

que atrás da doença, da medicali-

zação crônica, da busca religiosa,

estava uma história de vida que não

pôde ser escrita, nem verbalizada.

Na busca da solução para os seus

problemas, o sujeito caminha entre

domínios distintos e diferentes po-

deres: médico e religioso. Em am-

bos, ele precisa expressar e apresen-

tar uma causa que justifique seu

ingresso e inclusão. Ambos têm efei-

tos sobre sua vida e a justaposição

melhora as possibilidades de en-

frentamento da crise.

O início das crises acidentais re-

latadas provocaram sentimentos e

expectativas que, não atendidas em

sua plenitude, favoreceram o desen-

cadear da doença. Esta, por sua vez,

foi banalizada no serviço de saúde,

por sua ineficácia, assim como tam-

bém na religião, pela falta dos ele-

mentos adequados para atender às

reais necessidades do doente.

Diante dos dados apresentados

nesta pesquisa, que contou com a

informação direta dos usuários de

psicofármacos e do pesquisador,

ambos participantes no Programa

Saúde da Família, podemos concluir

que torna-se necessário uma pro-

funda reflexão sobre a organização

dos serviços de saúde e sobre a con-

duta do enfermeiro de saúde men-

tal, se de fato queremos ajudar a

pessoa que sofre.

A necessidade de atuação da

enfermagem, fora das instituições

manicomiais, modificando o mode-

lo de atendimento, mudando o pa-

radigma e sendo agente transforma-

dor social levou-nos ao entendimen-

to da solidez das descrições histori-

camente construídas pelos sujeitos,

jogando questões de suas próprias

posições. A etnografia, ou conforme

Leininger (1985) a etnoenferma-

gem, mostrou-se eficaz como mode-

lo de abordagem, visando uma

transformação estrutural.

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A Construção da Diferença na Assistência em Saúde Mental no Município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 77

ARTIGOS ORIGINAIS

A construção da diferença na assistência em Saúde Mental nomunicípio: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1

The construction of difference in Mental Health assistance in municipalities: theexperience of São Lourenço do Sul – RS

Christine Wetzel2

Maria Cecília Puntel de Almeida3

1 Artigo elaborado com base na dissertação

de mestrado intitulada

“Desinstitucionalização em Saúde Mental: a

experiência de São Lourenço do Sul – RS”,

apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Enfemagem Psiquiátrica da Escola de

Enfermagem de Ribeirão Preto

2 Professora da Escola de Enfermagem da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

doutoranda do Programa de Pós-Graduação

em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de

Enfermagem de Ribeirão Preto da

Universidade de São Paulo.

e-mail: [email protected]

3 Professora Titular do Departamento de

Enfermagem Materno Infantil e Saúde

Pública da Escola de Enfermagem de

Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

RESUMO

Frente às mudanças nas políticas de saúde mental no Brasil e a todo um

movimento que se instalou de questionamento ao modelo hospitalocêntrico e

excludente de atenção à loucura – a Reforma Psiquiátrica, e às mudanças

mais gerais no sistema de saúde brasileiro, principalmente a transferência

para os municípios da gestão e organização de seus sistemas locais de saúde,

o estudo enfoca a construção de um serviço, o Centro Comunitário de Saúde

Mental de São Lourenço do Sul – RS (CCSM). As técnicas de investigação

foram entrevistas com atores de diferentes instâncias (governantes, agentes

e usuários). O estudo desta prática singular aponta para a importância do

compromisso dos gestores locais com a implantação de um Sistema Local

de Saúde e do envolvimento de outros atores sociais como única forma de

garantir que o processo se torne construtor de sujeitos de transformação e

não de dominação.

PALAVRAS-CHAVE: atenção em saúde mental, organização de serviços, saúde mental.

ABSTRACT

Due to the changes on mental health policies and a movement that

questions the hospital centered and excluding model of attention to madness

– the Psychiatric Reform, and more general changes in the Brazilian health

care system, mainly the transfer of the management and organization of

Local Health Systems to municipalities, the work describes the construction

of a service construction, the São Lourenço do Sul Community Center of Mental

Health – RS. The research techniques used were interviews with actors of

different levels (local authority, health agents and users). The study of this

unique practice shows the importance of the commitment by local managers

with the implementation of a local health system and the involvement of

other social actors as the only way to assure that the process becomes the

constructor of transformation and not domination subjects.

KEY WORDS: attention to mental health, services organization, mental health.

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WETZEL, C. & ALMEIDA, M. C. P. de

78 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001

INTRODUÇÃO

Experiências significativas em

termos de uma atenção em saúde

mental fundada em um modelo não

manicomial têm sido desenvolvidas

em alguns serviços, instituições e

municípios no Brasil. Dentre estas

encontra-se o Centro Comunitário de

Saúde Mental (CCSM) de São Lou-

renço do Sul, mais conhecido por

Nossa Casa.1 São Lourenço do Sul,

no Rio Grande do Sul, localiza-se no

extremo sul do Brasil, às margens

da Lagoa dos Patos, distante 190

Km da capital, Porto Alegre, e 70 Km

do pólo regional, Pelotas. A popula-

ção total, segundo dados do IBGE

de 1992, era de 50.198 habitantes,

dos quais 26.558 residiam na zona

rural e 23.640 na zona urbana.

A importância dessas experiên-

cias está no sentido de que vêm dar

maior concretude à proposta de re-

formulação da assistência à saúde

mental e, neste momento, frente à

hegemonia do projeto neoliberal no

Brasil e em todo ocidente, a atua-

ção estratégica para contrapor esse

projeto na saúde está situada na

luta pela qualidade e eficácia dos

serviços públicos. A implantação de

serviços como o de São Lourenço

cria, dentro deste campo de tensões

e conflitos, uma dimensão de pos-

sibilidades que se contrapõem a al-

gumas críticas de governantes, do-

nos de hospitais psiquiátricos e pro-

fissionais da saúde mental quando

usam como argumento contra a re-

forma a sua pouca aplicabilidade

prática na realidade da assistência

em saúde mental deste país.

O novo enfoque não busca me-

ramente modernizar as tecnologias

de atenção psiquiátrica e difundi-

las, mas visa “redescrever, recons-

truir as relações entre a sociedade e

seus loucos. Não se trata de secun-

darizar a questão técnica, assisten-

tativa de apreender (representar te-

oricamente) a estrutura do serviço

para além do entendimento do seu

funcionamento interno e formal. Luz

(1981) refere que estrutura, enten-

dida como um conjunto de regras

mais ou menos rigidamente hierar-

quizadas, só existe na medida em

que ela é a organização das relações

sociais de poder, sendo que estas re-

lações de poder são a prática de cer-

tas regras do jogo, práticas estas que

a autora denomina “prática institu-

cional”. Esta prática institucional,

vista sob esse prisma, tende a ser

conflituosa (vista do ângulo das re-

lações sociais) e contraditória (vista

do ângulo da estrutura).

Neste estudo, equipe, usuários,

poder público e comunidade em ge-

ral são instâncias que se cruzam em

vários sentidos e, como sujeitos des-

sa prática, estabelecem o movimen-

to, determinando-a, sendo porém

determinados por uma disposição

da estrutura do Poder (político, eco-

nômico, ideológico) em um momen-

to historicamente situado de uma

formação social dada. Esta disposi-

ção é aqui entendida como “distri-

buição do poder entre classes e gru-

pos sociais em um espaço histórico

determinado” (Luz, 1981).

O entendimento de que estas

mudanças não estão ocorrendo con-

cretamente na totalidade da assis-

tência brasileira aponta para a diver-

cial, mas de redefinir seu lugar

numa estratégia mais ampla de

ação” (Bezerra Júnior, 1994:181).

A matéria deste estudo, a propos-

ta de institucionalização de uma de-

terminada forma de atenção à lou-

cura, através da organização de um

serviço, referido a uma dada estru-

tura social e a uma formação social

concreta, objetiva-se como uma ten-

1 A Nossa casa é uma das modalidades de atendimento que o compõe atualmente.

O NOVO ENFOQUE NÃO

BUSCA MERAMENTE

MODERNIZAR AS TECNOLOGIAS

DE ATENÇÃO PSIQUIÁTRICA

E DIFUNDI-LAS

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A Construção da Diferença na Assistência em Saúde Mental no Município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 79

sidade da realidade do país. Nesta

arena, onde diferentes interesses es-

tão em jogo, os resultados destes

conflitos na implementação das

ações na saúde mental exigem uma

compreensão deste movimento nos

espaços concretos. As especificidades

locais e a forma como os sujeitos se

articulam nesse processo levam à

necessidade de que este movimento

seja retomado na sua singularidade.

Uma categoria que merecerá re-

levo neste estudo será o ‘processo de

constituição de sujeitos sociais’2 do-

tados de uma dada vontade política

e de um projeto de reformas. A valo-

rização deste plano implica a hipó-

tese de que é possível ‘revolucionar

o cotidiano’, questionar os mecanis-

mos de dominação/exploração (mi-

cropoderes) mesmo quando não se

tenha alterado o esquema mais ge-

ral de dominação a nível do Estado,

da sociedade política e do mundo da

produção (Campos, 1994).

O que se pretende é “tratar o ins-

tituído como expressão de um dado

processo de institucionalização, a

partir das dinâmicas políticas par-

ticulares, configuradas pelos vári-

os sujeitos sociais em suas dispu-

tas políticas” (Merhy, 1992).

O CCSM de São Lourenço do Sul

englobava, na época da pesquisa, as

seguintes modalidades de atendi-

mento: Nossa Casa, funcionando

nos moldes de um Centro de Aten-

ção Psicossocial; Ambulatório de

Psicologia e Psiquiatria; Oficinas

Integradas; Unidade de Internação

na Santa Casa de Misericórdia lo-

cal; Nosso Lar, casa em um núcleo

habitacional onde residem cinco

usuários sem família.

A coleta de dados empíricos

ocorreu em janeiro de 1995, utili-

zando-se as técnicas de entrevista

semi-estruturada. Foi entrevistado

tas, foi visto como os diversos ato-

res representam a instituição, sua

prática e as dos demais atores. A

importância disto reside no fato de

que as representações não são gra-

tuitas, mas representações ‘da prá-

tica’, porque é nela que tem a sua

origem e suporte.

Albuquerque e Ribeiro (1979: 61-

62) chamam a atenção para o fato

de que não se trata de uma causali-

dade ‘interacional’ do tipo ‘as repre-

sentações são causa e efeito das re-

lações sociais’, ou vice-versa. As

relações materiais só têm efeitos na

ordem das próprias relações mate-

riais e as representações ideológi-

cas só têm efeitos na ordem das re-

presentações. Sendo assim, as re-

presentações não são causa nem

efeito das relações sociais, mas es-

tas duas ordens de relação se arti-

culam uma a outra.

A POUCA RESOLUTIVIDADE DOS MANICÔMIOS,A RACIONALIZAÇÃO DOS GASTOS MUNICIPAIS

E A AÇÃO DOS SUJEITOS SOCIAIS

As primeiras ações na área da

saúde mental em São Lourenço do

Sul tiveram início em 1984 e não se

conformavam como um serviço,

mas eram condutas isoladas de cu-

nho preventivo e educativo, tais

2 Cecílio (1994) afirma que a categoria de sujeito e ator tem sofrido múltiplas abordagens por diferentes autores em contextos diversos, tendo

como resultado uma heterodoxia na utilização do tema que, embora rica, traz riscos. No presente trabalho não existe um rigor na utilização

destes termos; ator refere-se a todos os indivíduos ou grupos sociais que aparecem na análise e a utilização do termo sujeito já é mais presente

quando a análise se relaciona com as suas possibilidades/impossibilidades de gerar mudanças.

o grupo que participou diretamen-

te na criação do serviço: prefeito,

secretária da saúde e do bem estar

social, psicóloga, enfermeira e psi-

quiatra e dois usuários do serviço

que tinham tido a experiência an-

terior de internação em hospitais

psiquiátricos. Através das entrevis-

AS PRIMEIRAS AÇÕES NA ÁREA DA SAÚDE

MENTAL EM SÃO LOURENÇO DO SUL

TIVERAM INÍCIO EM 1984 E NÃO SE

CONFORMAVAM COMO UM SERVIÇO, MAS

ERAM CONDUTAS ISOLADAS DE CUNHO

PREVENTIVO E EDUCATIVO

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80 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001

como palestras proferidas pela psi-

cóloga na comunidade, principal-

mente na zona rural.

O encaminhamento para hospi-

tais psiquiátricos de cidades mais

próximas era a única opção para

os ditos ‘casos graves’, sendo que

para o transporte a família conta-

va muitas vezes com a ajuda do

poder público, através da polícia ou

da ambulância.

(...) diariamente, duas vezes ao dia,

a ambulância ia para Pelotas levar

pacientes em crise. Então, muitas

vezes, quando a Santa Casa precisa-

va da ambulância para transportar

um paciente grave para qualquer

hospital, não tinha, ou porque a

ambulância foi para a zona rural

buscar um paciente doente mental,

ou foi para Pelotas levar esse pacien-

te. (Enfermeira)

Os pacientes crônicos, oriundos

de famílias sem condições de man-

ter um membro improdutivo, reali-

zavam, muitas vezes, uma viagem

sem retorno. Outros estabeleciam o

mecanismo da ‘porta giratória’, per-

manecendo internados durante al-

guns períodos, principalmente na

agudização do quadro, e retornan-

do ao convívio familiar em outros,

com o suporte dos psicotrópicos.

Uma série de mudanças nas po-

líticas de saúde e de saúde mental

no país e no estado pressionam pela

criação de um sistema local de saú-

de. No caso da saúde mental ocorre

uma restrição dos leitos em hospi-

tais psiquiátricos públicos e conve-

niados. Isso desencadeou nos mu-

nicípios uma demanda para a qual

não tinham estrutura. A dificulda-

de em conseguir vagas em hospitais

psiquiátricos e os gastos com trans-

porte aparecem como falta de reso-

lubilidade deste mecanismo. A fal-

ta de resolubilidade também apare-

ce relacionada às reinternações,

como demonstra a seguinte fala:

As constantes reinternações em

hospitais psiquiátricos, não havia re-

solutividade nos hospitais, as pesso-

E aí eu andava pelos corredores

lá do hospital em pânico. E olha, pode

ser o que for na vida, podem me pa-

gar o dinheiro que for, mas eu não

conto o que eu via lá, assim da mi-

nha doença, entende? As coisas pa-

vorosas que eu imaginava que via. É

delírio mesmo, entende? Horror, de fi-

car tremendo assim na cama, de

medo. Acontece que naquele hospital

a surpresa era maior porque passava

lá todo o tempo, acho que um terço do

tempo que ficava acordado, passava

em fila. Era fila para o banheiro, fila

para a água, fila para tomar remédio

de novo, fila para almoçar, fila para o

café, fila para ir para o saguão, fila

para... Era só fila durante o dia intei-

ro, dentro do hospital. E uma enfer-

meira lá perguntou para mim, na pri-

meira vez que ela me dirigiu a palavra

lá, perguntou para mim se eu sabia ler

e escrever. Isso me deixou muito indig-

nado.(...) As pessoas eram muito mal

vestidas, muito maltrapilhas, pessoas

jogadas no chão. Era como se fosse um

depósito de gente, sucata humana. Era

terrível! E eu ali parecia que eu estava

nadando, desesperado para... não sei,

parecia que iam tirar alguma coisa de

mim. Isso era forte mesmo sabe? Me

sentia perdido lá. (...) E os médicos

eram tão frios, tão frios, tão frios, que

eu não confiava neles. Eu até nem dis-

se para ninguém que eu estava ouvin-

do vozes, coisa parecida assim. Não

contei para ninguém porque eu não

confiava. Eu sentia que, quanto mais

eu me queixasse, uma coisinha que

fosse, eu estava enterrado por mais

quinze, vinte dias lá dentro daquele

hospital. Então eu chorava, suplica-

va para ele para mim ir embora, ir

as voltavam, ficavam um tempo, e iam

de volta. (...) E porque a gente enten-

dia que havia um tratamento desu-

mano a essas pessoas, destinado a

essas pessoas onde elas ficavam asi-

ladas. Eram atendidas de uma forma

que na nossa concepção não era a

mais adequada. (Psicóloga)

Mas o tratamento desumano

toma realmente formas dramáti-

cas quando descrito por alguém

que o vivenciou, concretamente,

como paciente.

MAS O TRATAMENTO DESUMANO

TOMA REALMENTE FORMAS

DRAMÁTICAS QUANDO DESCRITO

POR ALGUÉM QUE O VIVENCIOU,CONCRETAMENTE, COMO PACIENTE

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 81

para casa, e eu estava vendo que não

adiantava. (Usuário)

O alto custo financeiro com o

transporte dos pacientes também é

um fator apontado como um ‘mo-

tivo forte’:

Então, esse foi um motivo forte,

junto com o que a gente sabia da fal-

ta da resolutividade do hospital, dos

gastos que o município tinha com

esse transporte, que era um trans-

porte inútil porque as pessoas iam e

vinham... (Secretária da Saúde)

O conflito da comunidade com os

‘loucos da rua’ aparece como ‘o esto-

pim para todo este processo de dis-

cussão’. O tensionamento oriundo

desse conflito é dirigido à Secretária

da Saúde, gerando o confronto comu-

nidade versus poder público, como

aparece na fala a seguir:

Eu considero até hoje, passados

todos estes anos, que o grande impul-

so que foi dado, pelo menos para mim

enquanto gerente do sistema (...) foi

uma paciente que tem na comunida-

de (...) não havia aceitação da comu-

nidade em relação à ela, porque ela

tinha as crises em público. E um dia

eu estava na minha casa, depois de

muita agitação, uma pessoa da co-

munidade me ligou e exigiu, em nome

dela, da família, dos vizinhos, dos

colegas de trabalho, que a municipa-

lidade resolvesse os problemas dessa

paciente. (Secretária da Saúde)

Na reação da comunidade, que co-

bra do poder público uma solução, a

Secretária da Saúde identifica um im-

pulso fundamental para que desenca-

deie o processo de discussão e cons-

trução do serviço. Com o processo de

municipalização da saúde os gover-

nantes locais passaram a ter respon-

sabilidade, poder de decisão e inter-

venção, que antes cabiam exclusiva-

mente a outras instâncias, ocorrendo

uma aproximação entre a instância go-

vernamental, que passa a ser local, e

a comunidade, o que faz com que os

conflitos ocorram de forma muito mais

próxima e direta e as reivindicações

que vinha se instalando na saúde em

geral e na saúde mental no Brasil:

Com o advento das discussões das

Ações Integradas de Saúde e depois

do SUDS, a gente começou a se dar

conta que havia uma nova proposta

em discussão no país, e que no muni-

cípio nós também precisaríamos dis-

cutir essa descentralização dos servi-

ços, onde os municípios teriam um

papel muito importante na organiza-

ção de seu sistema local de saúde.

Então começamos a evoluir, e a medi-

da que evoluíamos, que íamos crian-

do toda uma rede, não só de serviços

mas como também o desenvolvimen-

to de vários projetos, nos demos con-

ta que o usuário do sistema não teria

um atendimento completo se não se

agregasse também, nesse atendimen-

to, se não se desse ênfase à atenção à

saúde mental. (Secretária da Saúde)

Isso começou com a secretária da

saúde. Ela foi participar, se não me

engano, do I Encontro Estadual de

Saúde Mental em Porto Alegre, (...) e

aí ela foi lá e viu as pessoas coloca-

rem como as coisas poderiam ser fei-

tas a nível de município (...) ela sem-

pre vinha com vontade de fazer algu-

ma coisa. (Enfermeira)

A articulação do poder público

municipal, na pessoa da secretária

de saúde, com os outros níveis do

governo, a sua inserção e militân-

cia na proposta do Sistema Único

de Saúde (SUS) e da municipaliza-

ção podem ser percebidos na fala.

Todo um saber vinha se impon-

do no Brasil em relação às políticas

desta comunidade adquiram um po-

der de pressão muito maior. Nesse jogo

de pressões, barganhas e articulações,

percebe-se um poder mais circulante

entre estas duas instâncias.

AS ARTICULAÇÕES DA PROPOSTA LOCALCOM O MOVIMENTO MAIS AMPLO

A Secretária da Saúde e do Bem

Estar Social estava inserida e com-

prometida com todo o movimento

O CONFLITO DA COMUNIDADE

COM OS ‘LOUCOS DA RUA’APARECE COMO ‘O ESTOPIM

PARA TODO ESTE PROCESSO

DE DISCUSSÃO’

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82 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001

de saúde, através de diversos foruns

e em vários níveis de discussão. Esta

prática mais ampla foi construtora

de sujeitos que, frente à necessida-

de de elaboração de um projeto po-

lítico e sustentação do poder políti-

co no nível local, construíram a ex-

periência no concreto.

A política governamental de um

sistema descentralizado de atenção

leva, em 1982, à criação da Secreta-

ria da Saúde e do Bem Estar Social,

não só possibilitando, como também

exigindo que o município assuma

uma responsabilidade que até então

não vinha tendo. Mas a forma como

os governantes se comprometeram

com isso é muito diversa, estando em

jogo diversos fatores e interesses.

Como visto, a integração destes

governantes às propostas reformis-

tas é fundamental para que eles es-

tabeleçam um vínculo de compro-

metimento com elas, para que se

percebam como sujeitos, e dentro de

determinado grau de liberdade como

decisores, possam operacionalizá-

las no concreto.

Nas entrevistas com os técni-

cos aparece com muita força a

questão da vontade política, do

papel que os governantes da épo-

ca tiveram na implantação do tra-

balho. A unanimidade em relação

a esse aspecto leva a repensar afir-

mações de que mudanças nos ser-

viços de atenção à saúde mental

ocorrem via única e exclusivamen-

te ‘soluções técnicas’, no momen-

to em que questões políticas apa-

recem como fatores que têm uma

grande relevância na possibilidade/

impossibilidade de concretizá-las.

Apesar de perceberem estas ques-

tões mais gerais contribuindo para

a mudança local, as determinações

que aparecem como mais presentes

nas falas a seguir são as que foram

vivenciadas pelas pessoas, em diver-

sos níveis, na sua prática cotidiana.

As mudanças em um nível conjun-

tural nem sempre são percebidas por

elas de forma imediata.

A grande ênfase dada ao fato

de não terem tido ‘um estímulo ex-

terno’ demonstra que, na percep-

ção imediata das pessoas que es-

tavam à frente da proposta, exis-

tia um grande grau de autonomia

e que a criação e a invenção tive-

ram um papel fundamental, sem

modelos pré-fabricados.

As mudanças no contexto eco-

nômico, político e social que geram

toda uma mudança na própria raci-

onalidade vigente, não são percebi-

das como tendo influência sobre o

pensar e fazer. O fato de estas de-

terminações não serem conscientes

geram a ‘surpresa’ quando percebe-

se práticas semelhantes, sem que

houvesse tido alguma espécie de

intercâmbio entre elas.

A SINGULARIDADE CONTRIBUINDO PARAA CONSTRUÇÃO DA PROPOSTA

Quando nos damos conta de que

a proposta da Reforma Psiquiátri-

ca brasileira não se instalou de for-

ma homogênea nos municípios,

sendo que em alguns nem sequer

chegou a se instalar, torna-se ne-

cessário que nos reportemos às es-

pecificidades locais.

São Lourenço do Sul é um mu-

nicípio pequeno, com grande parte

de sua população residindo na zona

rural. A economia prioriza o setor

agropecuário. Dentro deste contex-

to, a forma como instalou-se a aten-

ção à saúde mental pode ser melhor

Porque aí tu vais criando essa

história, e para tu teres uma idéia,

a gente nunca ouviu falar em Fran-

co Basaglia, eu nunca tinha escu-

tado falar (...) Até aí foi uma fase

desconhecida para nós do processo

evolutivo das políticas de saúde

mental a nível de Brasil e de mun-

do. Não sabíamos nada disso. Isso

aí aconteceu tudo por acaso. Não

foi assim um por acaso ‘ah, estou-

rou aqui’, não, mas não tinha, va-

mos dizer assim, um estímulo ex-

terno. (Psiquiatra)

NAS ENTREVISTAS COM OS TÉCNICOS

APARECE COM MUITA FORÇA A QUESTÃO

DA VONTADE POLÍTICA, DO PAPEL

QUE OS GOVERNANTES DA ÉPOCA

TIVERAM NA IMPLANTAÇÃO

DO TRABALHO

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 83

entendida. Um serviço pequeno, não

centrado no ato médico, com a atu-

ação de uma equipe com alto nível

de integração com essa comunida-

de, e até mesmo com as relações

dando-se de forma mais informal

entre os trabalhadores de saúde

mental e usuários, uma relação que

se estabelece não só internamente no

serviço, mas também na comunida-

de: todos se conhecem, comparti-

lham de problemas semelhantes, fre-

qüentam os mesmos lugares, fazem

compras no mesmo supermercado.

CRIANDO UMA NOVA MANEIRA DE CONCEBER EATENDER O LOUCO – QUEBRANDO AS QUATRO

PAREDES E CONSTRUINDO A NOSSA CASA

Em 1987, iniciaram as discus-

sões, desencadeadas pela secretária

de saúde, tendo seu início ainda

muito restrito, envolvendo apenas

duas pessoas: uma enfermeira e

uma estagiária de psicologia, que

tinham como tarefa a elaboração de

um projeto de saúde mental. Frente

à exigência da elaboração de um

projeto, o grupo elabora, em 1987,

o que denominaram de Plano de

Saúde Mental do Município.

Paralelamente à elaboração do

Plano, já estava sendo prestado

atendimento ambulatorial pelo psi-

quiatra. Como era um atendimento

que até então inexistia no municí-

pio, foi divulgado nas Assembléias

Comunitárias Rurais, onde a psicó-

loga já vinha atuando.

Eu já trabalhava com promoção

nas Assembléias Comunitárias Rurais,

que eram grupos de pessoas que se reu-

niam em locais distantes da cidade, e

realizava um trabalho em saúde men-

tal desde zero anos até a velhice, e co-

mecei a conversar com as pessoas:

quem eram os doentes que moravam

naquela localidade, onde estavam, o

que faziam, como eram tratados, quem

reinternava, quem era problema para

aquela comunidade... (Psicóloga)

O trabalho nas Assembléias Co-

munitárias Rurais não teve somen-

zado na comunidade através destas

assembléias, e o trabalho da saúde

mental nasce vinculado a uma pro-

posta de participação comunitária

mais ampla.

A falta de resposta deste ambu-

latório na resolução dos problemas

aparece na fala abaixo, principal-

mente em relação aos casos crôni-

cos, e gerou uma crítica interna a

esta forma de atendimento, possi-

bilitando que não se cristalizasse

como forma única de intervenção.

(...)como tinha atendimento e eu não

tinha estrutura aqui para ficar com o

doente em crise, tinha que encami-

nhar. E eu era a porta de entrada do

hospital, porque eu era o médico as-

sistente do hospital da cidade vizinha.

Então era a coisa mais simples, eu

pegava, ligava para o hospital e di-

zia: ‘Olha, está indo uma ambulân-

cia para aí!’ E o paciente no outro dia

já estava internado. Mas aquilo não

me satisfazia (...) porque eu comecei

a ver a história do outro lado: eu es-

tava aqui, via um caso agitadíssimo

na minha frente, no outro dia eu che-

gava no hospital, o caso que eu enca-

minhei aqui já estava bem, estava

calmo, estava tranqüilo. Muita vezes

a gente se dava conta que ele tinha

parado a medicação, tinha tido uma

briga em casa, não precisava ter tido

todo aquele esquema. (Psiquiatra)

A ‘nova solução institucional’ –

o ambulatório –, não alterou em

nada o destino que os doentes men-

tais crônicos até então vinham ten-

do. Frente à ineficácia do ambula-

te o objetivo de divulgar o atendi-

mento psiquiátrico ambulatorial

que começou a ser realizado. Possi-

bilitou também a integração desta

equipe inicial com a comunidade da

zona rural, através da psicóloga que

já tinha vínculo com este segmento

da população. Através disto também

foi possível que a equipe realizasse

um diagnóstico mais concreto da-

quela realidade. Ocorre, deste modo,

a integração dos técnicos a todo um

trabalho que já vinha sendo reali-

UMA RELAÇÃO QUE SE ESTABELECE NÃO SÓ

INTERNAMENTE NO SERVIÇO, MAS TAMBÉM

NA COMUNIDADE: TODOS SE CONHECEM,COMPARTILHAM DE PROBLEMAS

SEMELHANTES, FREQÜENTAM OS MESMOS

LUGARES, FAZEM COMPRAS NO

MESMO SUPERMERCADO

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84 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001

tório, em maio de 1988 começa a se

delinear a idéia de ‘um local’, sen-

do elaborado um projeto de implan-

tação de um centro de reabilitação

do doente mental. Neste processo de

construção pode-se identificar qua-

tro níveis de ação destes sujeitos:

em relação aos usuários, à família,

à comunidade3 e aos governantes.

No primeiro nível – os usuários

– foi realizada uma espécie de loca-

lização destes, conhecendo quem

eram, onde viviam, quais eram os

seus problemas.

Então se fez visitas domiciliares

através dos arquivos que tinham lá

na unidade sanitária (...) E outros

que andavam perambulando aí pe-

las ruas, outras pessoas. Então a

gente procurou ver lá nos arquivos

da unidade sanitária e alguns que

já passaram aqui pelo ambulatório

com atendimento do psiquiatra, e vi-

sitamos essas pessoas, fizemos visi-

tas para todos eles, eu e a assistente

social. (Enfermeira)

A importância desta conduta

está no fato de que muitos serviços

são estruturados para usuários ima-

ginários. Estes não existem concre-

tamente para os agentes. Mais tar-

de, estas pessoas chegam até este

serviço como pacientes, com as nor-

mas e papéis já estabelecidos, onde

recebem um diagnóstico e são sub-

metidos a determinada conduta te-

rapêutica. Como dizem Rotelli et al

(1990), é desmontando estes apara-

tos institucionais em relação à ‘do-

ença’ que será possível retomar o

contato com a existência dos paci-

entes enquanto ‘existência’ doente.

A citação acima tem relação com

a crítica ao conceito psiquiátrico de

doença mental realizada pelo grupo

de Trieste. No novo paradigma o pro-

blema deixa de ser a doença em sua

dimensão técnico-científica, na qual

para a subjetividade louca, ao esta-

belecimento de uma nova relação

com ela e à criação de fissuras na

serialização da psiquiatria (Torre &

Amarante, 2001).

O segundo nível de ação refere-

se à família:

E tanto que fizemos que foi feita

uma reunião com todos estes famili-

ares e foi colocado, dada a idéia, de

se fazer esse tipo de serviço aqui,

para que as pessoas pudessem ficar

aqui na comunidade. (Enfermeira)

Se fez vários grupos com famili-

ares, onde se colocou essa proposta.

(Psicóloga)

Na medida em que a proposta

visava superar uma prática que não

respondia às necessidades, a adesão

da família era fundamental. As ins-

tituições que até então vinham aten-

dendo os pacientes não exigiam uma

participação efetiva dos familiares,

sendo que, muitas vezes, até a proi-

bia. Ao mesmo tempo, não davam

nenhuma espécie de suporte quan-

do o paciente não estava ‘entre os

seus muros’, no caso do hospital psi-

quiátrico, ou ‘no horário da consul-

ta’ no caso do ambulatório. Mas a

participação e inserção do familiar

não se concretiza através de meca-

nismos coercitivos ou normativos,

sendo necessário que se estabeleça

3 Neste estudo comunidade refere-se ao contexto local, cabendo ressaltar porém que a comunidade não é percebida como um espaço homogêneo

e harmônico: conflitos, diferentes atores com interesses diversos, enfim, tanto o que tem de homogêneo, como o que tem de heterogêneo estão

presentes, e, neste tensionamento e na dinâmica que se estabelece neste espaço, surge a possibilidade de transformação.

desaparece o sujeito doente, mas re-

fere-se a sujeitos concretos, em sua

existência-sofrimento. No lugar do

objeto doença mental, o objeto exis-

tência-sofrimento do sujeito em sua

relação com o corpo social.

Uma proposta de mudança deve

levar à produção de um novo lugar

NO NOVO PARADIGMA O PROBLEMA DEIXA

DE SER A DOENÇA EM SUA DIMENSÃO

TÉCNICO-CIENTÍFICA, NA QUAL DESAPARECE

O SUJEITO DOENTE, MAS REFERE-SE ASUJEITOS CONCRETOS, EM SUA

EXISTÊNCIA-SOFRIMENTO

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um outro tipo de vínculo entre a equi-

pe e familiares, e isso foi construído

e negociado na própria relação.

O terceiro nível da ação – a co-

munidade – ocorreu muito antes de

ser pensada a possibilidade de um

atendimento em saúde mental no

município e continuou no decorrer

de todo processo. O trabalho de

saúde mental já nasceu no interior

de uma proposta de participação

comunitária mais ampla. A maio-

ria dos profissionais já vinha rea-

lizando algum trabalho junto à co-

munidade, conhecia a sua realida-

de e pôde determinar que segmen-

tos era necessário e estratégico

mobilizar inicialmente.

Mas como começar, como mo-

bilizar, como falar isso para a co-

munidade? Então a secretária pe-

diu para a gente entrar em conta-

to com uma enfermeira, que era

uma pessoa que trabalhava com

isso aí, que tinha uma boa vivên-

cia nisso aí. Entramos em contato

com ela e fizemos uma reunião

onde foram mobilizadas as pesso-

as, as associações de bairro, o hos-

pital, o hospital da Reserva, a Bri-

gada Militar, médicos, muitas pes-

soas ligadas na área da saúde, e

foi colocado o problema para as

pessoas. Ela colocou a experiência

dela, o que ela achava que poderia

ser feito. Isso também foi um iní-

cio, toda essa discussão partiu

desta reunião. (Enfermeira)

A participação da comunidade

não era uma ‘concessão’ feita por

governantes democráticos, que

viam por bem transferir um poder

que era seu para a população. As

próprias mudanças que ocorreram

nas políticas de um modo geral e

nas políticas de saúde em particu-

lar exigem que, para que os gover-

nantes possam viabilizar as suas

propostas, tenham o apoio da co-

munidade. Então, não é um poder

concedido e sim um poder constru-

ído no decorrer de anos de luta pela

democratização, em todas as instân-

Então foi feito um acerto assim; a

prefeitura tinha um prédio alugado

aqui no outro lado, onde ficava uma

espécie de rouparia e o pessoal que

trabalhava com os mosquitos, então

eles ficavam todos aqui neste prédio.

Então, na época, o prefeito disse o

seguinte: ‘É uma casa grande, o pre-

ço do aluguel vai ser elevado. A gente

aluga desde que estas coisas que es-

tão nessa casa alugada aqui possam

passar todas para lá!’ Que aí ele ia

encerrar o contrato dessa casa aqui e

ele pagaria o aluguel só de lá. Foi onde

se alugou aquela casa e passou to-

das essas coisas para lá, os mosqui-

tos, a rouparia, tudo ficou lá, tudo jun-

to. (Enfermeira)

Em relação aos vereadores, o

apoio político conquistado neste

período deu inclusive algumas ga-

rantias na forma de lei.

E aquele apoio político que se ti-

nha necessidade junto ao legislativo

também foi possível porque a equipe

também passou a sensibilizar os ve-

readores. Tanto é que se conseguiu

incluir na Lei Orgânica Municipal,

que em 87, 88, eu não me lembro bem

o ano, foi quando se montou na Lei

Orgânica Municipal um capítulo es-

pecífico para a área de saúde men-

tal. (Secretária da Saúde)

Como resultado deste movimen-

to, é inaugurada em 16 de agosto

de 1988 a Nossa Casa. Posterior-

mente, na própria prática dos ato-

res, foram surgindo outras necessi-

dades que levaram à ampliação do

âmbito institucional além da inte-

cias, no Brasil. No caso da saúde

mental, a própria proposta de de-

sospitalização exigia que a comu-

nidade assumisse um papel que até

então não vinha tendo.

Por último, vemos a ação em re-

lação aos governantes. Esta foi di-

recionada para o prefeito e para os

vereadores. No caso do prefeito, foi

necessária uma negociação, porque

a nova proposta exigia um investi-

mento que até então não tinha sido

necessário: o aluguel de uma casa.

AS PRÓPRIAS MUDANÇAS QUE OCORRERAM

NAS POLÍTICAS DE UM MODO GERAL E NAS

POLÍTICAS DE SAÚDE EM PARTICULAR EXIGEM

QUE, PARA QUE OS GOVERNANTES POSSAM

VIABILIZAR AS SUAS PROPOSTAS,TENHAM O APOIO DA COMUNIDADE

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WETZEL, C. & ALMEIDA, M. C. P. de

86 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001

gração dos diferentes trabalhos que

vinham sendo desenvolvidos no

município na área da saúde men-

tal, surgindo o Centro Comunitário

de Saúde Mental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo dessa experiência sin-

gular aponta para alguns fatores

que foram decisivos para a cons-

trução da mudança na saúde men-

tal. As políticas de saúde mental

mais amplas trouxeram repercus-

sões em todos os espaços sociais

onde a internação em manicômios

era o mecanismo utilizado para

atender e controlar a loucura. Os

óbices para sua utilização, os gas-

tos que envolvia e a repercussão

disso, obrigando a uma convivên-

cia com a loucura, que não tem

mais no seu tradicional mecanis-

mo de exclusão a resolubilidade

anterior, geraram uma crise nos

municípios que leva à necessidade

de criação de outras formas, outros

caminhos para o atendimento do

doente mental. A Reforma Sanitá-

ria e a transferência aos municípi-

os da responsabilidade de implan-

tação de sistemas locais de saúde

também fez com que os governan-

tes locais tivessem que assumir

questões que, até então, cabiam a

outros níveis de gerência.

Apesar da participação dos go-

vernantes ter sido fundamental, a

convergência do poder estratégico

entre equipe de trabalho, institui-

ções, instâncias governamentais e

grupos organizados da comunida-

de foram fundamentais para que

a mudança fosse construída no ca-

minho da democracia. A possibili-

dade de convivência com a diferen-

ça precisa ser construída em to-

dos os espaços da comunidade,

através da sua própria possibili-

dade de participação, negada du-

rante tantos anos neste país, re-

vendo conceitos e preconceitos

cristalizados que têm como resul-

tado a discriminação, a exclusão

e a violência.

O enfrentamento destas questões

exige a retomada de alguns aspec-

tos aparentemente simples mas mui-

tas vezes esquecidos, tais como a

solidariedade, o acolhimento e, por

que não, em alguns momentos, a

conciliação. Mas exige também a re-

tomada da responsabilização por

parte de todos atores envolvidos:

governantes, trabalhadores de saú-

de, usuários, família e comunidade,

na construção de sistema público de

atenção à saúde com um atendimen-

to de qualidade, voltado às necessi-

dades dos seus usuários.

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A Construção da Diferença na Assistência em Saúde Mental no Município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1

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SOUZA, R. C. de & SCATENA, M. C. M.

88 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001

ARTIGOS ORIGINAIS

Qualidade de vida de pessoas egressas de instituiçõespsiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA1

Quality of life in patients discharged from psychiatric institutions: the Ilhéus – BA, case

Rozemere Cardoso de Souza2

Maria Cecília Morais Scatena3

RESUMO

Esta pesquisa objetivou investigar a qualidade de vida de egressos de

instituições psiquiátricas, através de instrumento de avaliação da qualidade

de vida (WHOQOL) elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em

sua versão abreviada. Evidenciaram-se as carências e os aspectos que merecem

a atenção dos profissionais de saúde, quando do planejamento, implementação

e avaliação de ações com vistas à melhoria da qualidade de vida dos sujeitos,

no contexto estudado, constituindo-se num valioso diagnóstico.

PALAVRAS-CHAVE: saúde mental; qualidade de vida; programa saúde da família.

ABSTRACT

This research aimed at investigating the quality of life of patients discharged

from psychiatric institutions, through an instrument of life quality assessment

(WHOQOL) developed by the World Health Organization (WHO), in its

abbreviated version. The lacks and the aspects which deserve the health

professionals' attention were shown considering the planning, implementation

and evaluation of actions which relate to the improvement of the subjects' life

quality, in the studied context, being a valuable diagnosis.

KEY WORDS: mental health; quality of life; family health program.

1 Parte da dissertação de mestrado,

defendida em 13/12/2000 na Escola de

Enfermagem de Ribeirão Preto/USP.

2 Professora assistente da Universidade

Estadual de Santa Cruz, Ilhéus/ BA.

Doutoranda em Enfermagem Psiquiátrica

da Escola de Enfermagem de Ribeirão

Preto da Universidade de São Paulo.

e-mail: [email protected]

3 Professora associada junto ao

Departamento de Enfermagem Psiquiátrica

e Ciências Humanas da Escola de

Enfermagem de Ribeirão Preto da

Universidade de São Paulo.

e-mail: [email protected]

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Qualidade de Vida de Pessoas Egressas de Instituições Psiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001 89

INTRODUÇÃO

A vida do doente mental é mar-

cada por sofrimentos que são, fre-

qüentemente, ligados à própria do-

ença e/ou à evolução do seu cuida-

do, caracterizados por relações de

poder e de subordinação de tal modo

que o sujeito é “transformado em

doente-objeto, não gente, não ho-

mem” (Ornellas, 1997:196).

Embora a tendência atual con-

temple a mudança dessa situação e

o exercício pleno da cidadania dos

doentes mentais, percebemos, em

nosso cotidiano profissional, uma

insuficiência de práticas capazes de

promover tal socialização, já que

não propiciam a criação de espaços

positivos dos quais possam emer-

gir relações capazes de transformar

suas experiências de vida.

A expectativa de um olhar mais

positivo à vida de um portador de

distúrbio mental, mesmo em nossos

dias, tem-se dado de forma muito

lenta, sendo notória a carência de

políticas que promovam o bem-es-

tar dessas pessoas e da comunida-

de em geral.

Motivados para contribuir com

a melhoria do cuidado prestado a

esses sujeitos e a seus familiares,

interessamo-nos por conhecer o dia-

a-dia especialmente daqueles que

vivem em suas comunidades e que

ainda não contam com apoio para

enfrentamento dos obstáculos de-

correntes dessa convivência ou de

outros fatores.

Assim pensando, com o auxílio da

literatura, chegamos à conclusão de

que um estudo sobre qualidade de

vida desses sujeitos nos possibilita-

ria conhecer, de modo mais abrangen-

te, como eles vivem. Este fator de fun-

damental importância seria o ponto

de partida para as mudanças que es-

tudávamos implementar.

Qualidade de vida, compreendi-

do como um termo de caráter sub-

jetivo e multidimensional. Galera

(1994) o define como o resultado do

vas, padrões e preocupações”

(WHOQOL GROUP, 1994:28).

Motivações para o estudo dessa

temática, em saúde mental, têm sido

atribuídas à necessidade de melhor

entender as limitações e o sofrimen-

to ligado às doenças mentais. Tam-

bém há o entendimento de que me-

lhorias neste campo conduzirão à re-

dução das taxas de internações psi-

quiátricas, da sobrecarga familiar e

do sistema de saúde, com conseqüen-

te economia de recursos, pois as do-

enças mentais estão entre as que mais

oneram a sociedade (Marcolin, 1998).

O tema é importante por nortear

intervenções que possam causar

impacto positivo na vida dos sujei-

tos, uma vez que as avaliações po-

dem ocorrer a partir de suas percep-

ções, possibilitando que sejam ou-

vidos não-somente quanto aos as-

pectos que se referem à doença.

Exposto isto, o presente trabalho

objetivou investigar a qualidade de

vida de pessoas egressas de unida-

des de atendimento psiquiátrico,

buscando conhecer suas percepções

quanto aos aspectos biológicos, psi-

cológicos, sociais e ambientais.

METODOLOGIA

Local da pesquisa

Desenvolvemos este estudo na

área de abrangência do Programa

Saúde da Família (PSF), no bairro

Nossa Senhora da Vitória, localiza-

do no município de Ilhéus/ BA. Den-

processo de interações do homem

com seu meio ambiente, valendo

este como um atributo que classifi-

ca como boa ou ruim tal interação.

Já a Organização Mundial de Saúde

(OMS) engloba em seu conceito a

interação do indivíduo com o seu

ambiente interno e externo: “Quali-

dade de vida é a percepção de uma

pessoa de sua posição na vida no

contexto da cultura e sistema de

valores nos quais ele vive e em re-

lação aos seus objetivos, expectati-

MOTIVAÇÕES PARA O ESTUDO DESSA

TEMÁTICA, EM SAÚDE MENTAL, TÊM SIDO

ATRIBUÍDAS À NECESSIDADE DE MELHOR

ENTENDER AS LIMITAÇÕES E O SOFRIMENTO

LIGADO ÀS DOENÇAS MENTAIS

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SOUZA, R. C. de & SCATENA, M. C. M.

90 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001

tre as razões para a escolha desta

área, destacamos: a identificação,

através dos registros do PSF, como

uma das áreas que possuíam maior

incidência de distúrbio mental e o

apoio dos profissionais desse progra-

ma para a identificação dos sujeitos,

bem como para intervenções futuras.

Sujeitos do estudo

Incluímos no estudo 26 sujeitos

adultos, de ambos os sexos, todos

vinculados ao PSF, que atenderam

aos seguintes critérios: ser egresso

de instituição psiquiátrica, ou seja,

em algum momento de sua vida foi

submetido a tratamento psiquiátri-

co em instituições para esse fim, seja

ambulatorial ou hospitalar, não nos

importando sua região de origem,

nem a freqüência de atendimentos

ou seu diagnóstico; ser capaz de com-

preender perguntas e responder a um

questionário e concordar em partici-

par da pesquisa. Dentre os partici-

pantes, excluímos apenas os egres-

sos por abuso de substâncias psico-

ativas, dadas às peculiaridades des-

se sofrimento e da assistência.

Procedimentos para coleta eanálise dos dados

Coletamos os dados entre os dias

24 de abril e 02 de junho de 2000,

utilizando instrumento de avaliação

da qualidade de vida, elaborado pela

OMS, em sua versão abreviada

(WHOQOL-BREF), que foi validado

no Brasil pelo Departamento de Psi-

quiatria e Medicina Legal da Uni-

versidade Federal do Rio Grande do

Sul - Porto Alegre. Trata-se de uma

escala do tipo Likert de 5 pontos,

com medidas de intensidade, capa-

cidade, freqüência e avaliação. Esta

escala abrangeu 24 questões que

avaliaram 4 domínios (físico, psico-

lógico, relações sociais e meio am-

endemos, e os resultados aqui apre-

sentados confirmam, que facetas e

domínios relacionam-se entre si.1

Além da escala, uma parte do questi-

onário destinou-se aos dados socio-

demográficos dos sujeitos e a algu-

mas informações sobre sua saúde.

Um dos pesquisadores aplicou os

questionários em um só encontro,

o qual teve duração média de 45

minutos. Esclareceu aos sujeitos,

inicialmente, que as respostas de-

veriam se referir às duas semanas

anteriores à entrevista.

Para análise dos dados utiliza-

mos o programa Epi Info, da OMS,

de domínio público. Uma vez cate-

gorizados, estes nos permitiram

identificar as características sociode-

mográficas dos sujeitos e os resulta-

dos dos domínios do WHOQOL-BREF.

Para encontrar estes últimos, segui-

mos os passos definidos pela OMS e

descritos por Fleck et al. (1998).

Apresentamos os resultados dos

domínios por meio de gráficos que

mostram as freqüências de respos-

tas em três categorias: satisfação,

insatisfação e posição intermediá-

ria. Descrevemos as médias encon-

tradas para cada domínio numa es-

cala de 4 a 20 pontos, assim como

os resultados mais relevantes das

facetas que compõem os mesmos.

Quanto maior o escore, melhor a

representação da qualidade de vida.

1 Maiores informações acerca da estrutura do instrumento e da nossa experiência em utilizá-lo, ver SOUZA, R.C., 2000. Qualidade de vida das

pessoas egressas de instituições psiquiátricas: o caso de Ilhéus/BA. Ribeirão Preto. 122p. Dissertação (Mestrado) – Escola de Enfermagem de

Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

biente), as quais representam 24

facetas, isto é, subdomínios do ins-

trumento original, e mais 2 que com-

põem um quadro geral da qualidade

de vida, totalizando 26 questões (Fle-

ck et al., 1999). Apesar desta classifi-

cação, que busca representar a mul-

tidimensionalidade do objeto de es-

tudo (a qualidade de vida), compre-

INCLUÍMOS NO ESTUDO

26 SUJEITOS ADULTOS,DE AMBOS OS SEXOS,

TODOS VINCULADOS AO PSF

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001 91

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Características sociodemográficas dos sujeitose condições de saúde

Dos 26 sujeitos entrevistados,

a grande maioria (76,9%) era do

sexo feminino, com idade entre 20

e 70 anos, sendo a média de 43

anos. Constatamos que mais da

metade (53,8%) não possuía com-

panheiro. Quanto à escolaridade,

quase todos (92,3%) eram analfa-

betos ou semi-analfabetos.

Segundo a ocupação e rendimen-

tos, observamos que para cada três

sujeitos, um encontrava-se aposen-

tado, sendo que o rendimento da

maioria (69,2%) procedia de auxílio

previdenciário (aposentadoria ou

pensão), ou de parentes e amigos.

Com relação às moradias, estas

não apresentavam boas condições.

Eram de difícil acesso, muitas ha-

bitadas ainda em construção. Nem

sempre possuíam banheiro no inte-

rior da casa, nem água encanada.

Quando interrogados sobre sua

condição de saúde, a maioria dos

sujeitos (61%) a considerou insatis-

fatória (muito ruim ou fraca), citan-

do como principais problemas de

saúde: problemas nervosos ou emo-

cionais, doenças crônico-degenera-

tivas (hipertensão e diabetes) e do-

res diversas.

Características como analfabe-

tismo, carência parcial ou total de

renda, moradias inadequadas e estado insatisfatório da saúde,2 mostram

que os sujeitos estão à margem da sociedade e distantes da cidadania ple-

na. No entanto, estas se assemelham às características sociodemográficas

das demais famílias vinculadas ao PSF, do contexto estudado (Souza, 2000),

tão comuns às periferias urbanas formadas pelas migrações, mas próprias

de uma região que vem experimentando a maior crise econômica de sua

história (Pimenta, 2000).

Nesse contexto, é importante ressaltarmos que, quando os sujeitos se

deslocam de uma situação para outra, suas expectativas são de melhoria

das condições de vida, o que nos leva a reforçar a idéia da necessidade de

implementação de ações voltadas à saúde mental das comunidades.

Análise das freqüências de respostas do whoqol-bref

Domínio 1 (Domínio Físico)

Em geral, as respostas obtidas para o domínio Físico – 1 (Gráfico 1)

demonstraram que 34% dos sujeitos estavam insatisfeitos, tema que aufe-

riu uma média de 11,91 (posição intermediária).

2 saúde conforme entendimento dos sujeitos.

Gráfico 1 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação para odomínio 1. Município de Ilhéus/BA, 2000.

Em relação às facetas que compuseram este domínio, destacamos aque-

las a que os sujeitos se referiram como as mais difíceis e as que lhes davam

maior satisfação. São elas: ‘dor e desconforto’ e ‘dependência de medica-

mentos’; e ainda ‘capacidade para o trabalho’, respectivamente.

Observamos que os sintomas ‘dor e desconforto’ dificultavam o cotidia-

no da grande maioria dos sujeitos, pois 69% mencionaram que eles os impe-

diam de fazer o que precisavam, variando de média a extrema intensidade

tal impedimento.

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SOUZA, R. C. de & SCATENA, M. C. M.

92 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001

Quanto à ‘dependência de me-

dicação ou de tratamentos’, qua-

se que a unanimidade (96%) dos

sujeitos respondeu precisar de al-

gum tratamento médico para levar

sua vida diária, ainda que uma mi-

noria (4%) considerasse pequena

tal necessidade.

Percebemos, por esses resulta-

dos, que os sujeitos têm baixa au-

tonomia e dão pouca atenção à

saúde, principalmente a mental, o

que era esperado, uma vez que os

serviços de saúde mental de Ilhéus

ainda estão fortemente influencia-

dos pela cultura manicomial e os

profissionais não parecem se pre-

ocupar com a transformação, nem

tampouco com a continuidade da

assistência. Discutiremos melhor

estas questões após avaliação do

domínio psicológico.

Na avaliação da sua ‘capacida-

de para o trabalho’, metade (50%)

dos sujeitos demonstrou satisfa-

ção e a outra metade (46%) insa-

tisfação. Isto denota que, mesmo

a maioria dos sujeitos estando

aposentada ou desenvolvendo ati-

vidades informais, eles ainda se

sentem úteis e precisam de ajuda

para se inserir no mercado de tra-

balho, de modo a terem seu poten-

cial valorizado.

Iniciativas como o ‘Projeto Tra-

balho’, desenvolvido pelo Centro de

Atenção Psicossocial (CAPS) ‘Luís da

Rocha Cerqueira’, em São Paulo, têm

provado com sucesso a possibilida-

de de inserir o doente mental no

mercado produtivo e afirmado que a relação terapêutica é um ingrediente

imprescindível nesse processo (Motta, 1997).

Assim, observamos que alternativas para o trabalho são necessárias e

que as interações terapêuticas desenvolvidas por profissionais de saúde têm

seu valor, favorecendo os sujeitos a se desenvolverem enquanto pessoas, a

aumentarem seus rendimentos e, conseqüentemente, a satisfazerem melhor

suas necessidades, proporcionando segurança e satisfação às suas vidas.

Domínio 2 (Domínio Psicológico)

As respostas obtidas para o domínio 2 (Gráfico 2) revelaram que 31%

dos entrevistados mostraram-se insatisfeitos, mas a maioria (46%) respon-

deu que não estava satisfeita, nem insatisfeita. A média observada neste

domínio foi de 11,25 (posição intermediária).

GRÁFICO 2 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação para odomínio 2. Município de Ilhéus/BA, 2000.

Ainda neste domínio, os sujeitos demonstraram experimentar situações

críticas nas facetas sentimentos positivos e negativos. Na primeira, que

contribui para melhorar sua qualidade de vida, observamos carência e as

freqüências atribuídas a ela revelaram que metade (50%) dos sujeitos não

aproveitava a vida como gostaria, respondendo que não a aproveitava ou

que a aproveitava muito pouco.

No que diz respeito à freqüência com que os sujeitos tinham ‘sentimen-

tos negativos’, tais como mau-humor, desespero, ansiedade e depressão,

quase todos (96,2%) responderam conviver com tais sentimentos, variando

a freqüência de algumas vezes a sempre.

Se pensarmos que esses sujeitos estão vinculados a um programa que

visa à promoção da saúde e que em algum momento de suas vidas mantive-

ram contato com os serviços de assistência psiquiátrica, estes aspectos, ao

lado dos observados no domínio físico, demonstram que tais serviços além

de não atenderem às suas necessidades, não os valorizam assistindo-os de

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Qualidade de Vida de Pessoas Egressas de Instituições Psiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001 93

maneira mais humana e holística,

pois percebemos que dentre suas ne-

cessidades principais está a de que

alguém escute as suas queixas.

Para Brasil (1996:21), por trás

das queixas e sintomas esconde-se

um pedido de ordem afetiva e de re-

lacionamento que necessita ser com-

preendido. Este autor afirma que “se

o maior sofrimento é a doença, o

maior sofrimento da doença é a soli-

dão; quando o médico (ou outro pro-

fissional) se recusa a ouvir o que o

paciente tem a lhe dizer, isto tem o

caráter de uma proscrição, uma ex-

comunhão para o paciente”. Menci-

ona, ainda, que com freqüência as

pessoas não têm com quem queixar-

se de seus males. Este fato foi clara-

mente observado por nós, quando

identificávamos os sujeitos e reali-

závamos as entrevistas, tanto que

uma das falas ficou em nossa men-

te: ‘é bom ter com quem se abrir’.

Integrante deste domínio, a fa-

ceta ‘imagem corporal e aparência’

apresentou maior satisfação dos

sujeitos, pois 50% manifestaram

tendência a aceitar a própria apa-

rência. Entretanto, alguns entrevis-

tados demonstraram conformismo

com essa situação, alegando impos-

sibilidade de melhorá-la, o que, pro-

vavelmente, mostra a carência de se

olharem no espelho e de gostarem

do que observam, aspecto muito sig-

nificativo na qualidade de vida, para

não deixarmos de lado os sonhos

que nos conduzem a lutas e conquis-

tas e nos fazem sentir realizados.

Esse é um trabalho de ajuda que o profissional pode empreender junto ao

paciente, em suas relações.

Dessa forma, entendemos que, se os profissionais de saúde atentarem

para uma assistência mais humana, certamente terão atitudes mais res-

ponsáveis e éticas, desenvolvendo habilidades e potencialidades que ajuda-

rão os sujeitos a melhorar a qualidade de suas vidas.

Domínio 3 (Relações Sociais)

Nas respostas referentes ao domínio ‘relações sociais’ (Gráfico 3), a

insatisfação foi pequena, correspondendo a 19% dos sujeitos. A média

observada de 12,98 indicou posição intermediária, sendo este o maior

escore observado.

GRÁFICO 3 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação parao domínio 3. Município de Ilhéus/BA, 2000.

As respostas obtidas para cada uma das facetas ‘relações pessoais’ (ami-

gos, parentes, conhecidos e colegas), ‘suporte (apoio) social’ e ‘atividade

sexual’ indicaram que a maioria dos entrevistados (entre 50 a 57%) encon-

trava-se satisfeita com relação a elas.

A satisfação encontrada neste domínio contraria resultados de outras pes-

quisas (Galera & Teixeira, 1997; Campos & Caetano, 1998) e pode estar rela-

cionada a características geográficas e socioculturais do contexto estudado.

Segundo Alves et al. (1999), no Nordeste os sujeitos estabelecem uma

extensa rede de relações com os que vivem mais próximos, atividade que é

própria das mulheres, responsáveis por sustentar as ligações de parentes-

co. Solidariedade e prontidão ajudam a manter esses laços, que têm grande

peso na vida dos sujeitos.

A esse respeito, Heimstra & Mcfarling (1978:123) afirmam que morado-

res de áreas faveladas “têm um forte sentimento de pertinência. A área

física que circunda suas casas é tida como parte integrante delas e serve

como base para um vasto conjunto de vínculos sociais.”

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SOUZA, R. C. de & SCATENA, M. C. M.

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Com esta pesquisa pudemos perceber que a satisfação dos sujeitos com

relação a esse domínio pode ser atribuída à experiência de compartilha-

rem condições de vida comuns, que lhes permitem falar a mesma lingua-

gem. Mesmo assim, estudos mais qualitativos poderiam oferecer maior

compreensão da forma e das condições satisfatórias dos egressos experi-

mentarem suas relações.

Domínio 4 (Meio Ambiente)

Os resultados relacionados ao meio ambiente (domínio 4), que abrange

seus recursos ‘naturais e sociais’, demonstraram que praticamente não há

sujeitos satisfeitos neste domínio, pois apenas 8% demonstraram satisfa-

ção (Gráfico 4), ficando a média em torno de 11,25 (posição intermediária).

Este foi o menor resultado atribuído aos domínios do WHOQOL-BREF.

Quanto à insegurança, identifi-

cada pela faceta ‘segurança física e

proteção’, 50% dos entrevistados

afirmaram que não se sentem nada

seguros ou muito pouco seguros em

sua vida diária. No que tange aos

‘recursos financeiros’, grande parte

dos sujeitos (69%) disse não possuir

dinheiro ou possuí-lo aquém das

suas necessidades.

Estes aspectos podem estar inter-

relacionados, e a insegurança pode

ser conseqüência do ambiente pre-

cário. Do mesmo modo, a inseguran-

ça pode estar vinculada à renda, pois

sendo insuficiente para as necessi-

dades básicas dos sujeitos, compro-

mete gravemente o seu bem-estar.

No que se refere a ‘oportunida-

des de adquirir novas informações

e habilidades’, 50% dos entrevis-

tados responderam encontrar di-

ficuldades de acesso às informa-

ções necessárias ao seu dia-a-dia.

Isto, provavelmente, está ligado ao

grau de instrução dos sujeitos e se

atentarmos para este mundo cada

vez mais informatizado, onde as

informações é que direcionam

melhor nossas vidas, teremos aí

mais um agravante.

Com relação às ‘oportunidades de

participação em recreação/lazer’, 69%

dos sujeitos responderam ter pouca

ou nenhuma oportunidade para de-

senvolvê-los, resultado que nos sur-

preendeu pelo fato de o local de es-

tudo ter acesso direto ao mar.

Conforme Ferreira (1999:78), “o

lazer é um tempo em que o homem

GRÁFICO 4 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação parao domínio 4. Município de Ilhéus/BA, 2000.

Em relação às freqüências para as facetas deste domínio, constatamos

que os principais obstáculos são a insegurança; carência de recursos finan-

ceiros, de informações necessárias ao dia-a-dia, de oportunidades de lazer,

bem como a precariedade do ambiente físico.

O ‘ambiente físico’ foi considerado saudável para aproximadamente 20%

dos entrevistados. Este número refletiu a realidade do contexto estudado,

no qual observamos a inexistência de infra-estrutura, responsável pela for-

ma desordenada com que o bairro vem sendo construído, assim como a

existência das desigualdades sociais.

Assim sendo, consideramos imprescindível a adoção de políticas ambi-

entais, para melhorar a qualidade de vida desses sujeitos, dentre as quais

citamos: saneamento básico, pavimentação de ruas e morros e o desenvol-

vimento de projetos educativos. No entanto, entendemos que o sucesso des-

sas ações e de outras similares dependerá do desempenho de todos os ato-

res envolvidos, conforme alerta o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e

dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA, 2000).

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001 95

se livra de um cotidiano massacrante e descobre que o ócio é fundamental

como princípio criador.”

Compartilhando com esta idéia, percebemos que há necessidade de

motivar os sujeitos a buscarem formas de lazer, as quais contribuirão para

sua maior satisfação e desenvolvimento na comunidade onde vivem.

Quadro da qualidade de vida geral

O quadro da qualidade de vida geral (Gráfico 5) indicou que 54% dos

sujeitos perceberam a qualidade de suas vidas como insatisfatória, ficando

a média em torno de 11,15 (posição intermediária).

GRÁFICO 5 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação parao resultado da qualidade de vida geral. Município de Ilhéus/BA, 2000.

Nas questões que compuseram esse quadro, a insatisfação com a qua-

lidade de vida pareceu estar mais relacionada à saúde. Provavelmente,

essa avaliação tenha sido influenciada pelos problemas de saúde referi-

dos pelos sujeitos, como também pelo impacto negativo do distúrbio men-

tal à vida do portador.

No entanto, a relação entre saúde e qualidade de vida vai muito além

dessa referência à doença, pois a saúde, em seu sentido amplo (de promo-

ção de bem-estar e estilos de vida saudáveis, por exemplo), também tem a

ver com todas as particularidades dos domínios aqui descritos.

Buss (2000) entende que as explicações e respostas para a articulação

da saúde e qualidade de vida se desenvolvem no campo conceitual e na

prática da promoção da saúde, definida na Carta de Ottawa como “processo

que confere às populações os meios de assegurarem um maior controle so-

bre sua própria saúde e de melhorá-la (...) pressupõe os modos de vida

sadios para alcançar o bem estar” (OMS, 1986).

Nesse sentido, a saúde constitui o principal recurso para a qualidade de

vida e a sua promoção deve somar esforços para que todos os sujeitos, sem

distinção, tenham ao seu alcance os mesmos recursos e possibilidades para

o desenvolvimento de seu potenci-

al, num determinado contexto, para

que assumam suas responsabilida-

des no desenrolar desse processo

(OMS, 1986).

Compreendemos, portanto, que

promover saúde implica um conjun-

to de esforços do qual os sujeitos

também devem participar, buscan-

do melhorar suas vidas, exercendo

assim sua cidadania plena.

Diante do exposto, considera-

mos este trabalho relevante por

servir como um indicador que po-

derá, num contexto local, auxiliar

seus atores (sujeitos, líderes comu-

nitários, equipe do PSF, Universi-

dade) a discutirem e definirem suas

responsabilidades, pelo menos em

saúde mental, partindo das carên-

cias aqui identificadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A avaliação da qualidade de

vida através do instrumento WHO-

QOL-BREF trouxe-nos um valioso

diagnóstico, apontando carências e

aspectos que merecem mais aten-

ção dos profissionais de saúde,

quando do planejamento e imple-

mentação de ações para o cuidado.

Dentre esses aspectos, destacamos:

a necessidade de interagir com os

sujeitos, valorizando-os e ajudan-

do-os a darem maior importância

às suas vidas; escutá-los terapeu-

ticamente em suas queixas; cons-

truir um ambiente saudável; pro-

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mover atividades de lazer, acesso às

informações e promoção à saúde.

Entendemos que a equipe do

PSF pode desenvolver assistência

holística e humanizada que concor-

ra para o atendimento dessas ne-

cessidades, possibilitando, inclusi-

ve, aos egressos desenvolverem au-

tonomia e obterem alívio do sofri-

mento decorrente da dependência

de medicação/tratamentos e dos

sentimentos negativos experimen-

tados no cotidiano.

Por outro lado, os aspectos con-

siderados satisfatórios precisam ser

valorizados, embora a satisfação

com as relações sociais, contrária a

resultados de outras pesquisas,

mereça um estudo mais qualitativo

esclarecedor da forma e condições

dessa experiência, a fim de serem

mais bem trabalhados.

Vimos que os aspectos não fa-

lam por si só, por que estão interli-

gados com os demais dentro de um

mesmo domínio ou fora dele, o que

nos levou a pontuar algumas ques-

tões relevantes que, certamente,

conduziriam a intermináveis discus-

sões. No entanto, chamou-nos a

atenção de como a saúde, tendo um

sentido positivo e multidimensio-

nal, mantém estreita relação com a

qualidade de vida satisfatória, cons-

tituindo-se num recurso primordial

para sua promoção.

Dessa maneira, contemplamos a

importância tanto da equipe do PSF,

para o início de um processo que

eleve a qualidade de vida dos sujei-

tos existentes no contexto estuda-

do, como deste estudo para nortear

esse processo, que no seu transcor-

rer exigirá novas avaliações dos

itens estudados.

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CAMPOS, R. O.

98 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001

ARTIGOS ORIGINAIS

Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nosserviços substitutivos de Saúde Mental

Clinical ptractice: denied words – on clinical practices in Mental Healthsubstitutive services

Rosana Onocko Campos1

1 Dra. em Saúde Coletiva – Departamento

de Medicina Preventiva e Social da

Faculdade de Ciências Médicas – Unicamp

Rua Américo de Campos 93 – Cidade

universitária – Campinas/ SP

e-mail: [email protected]

RESUMO

Este artigo analisa algumas dificuldades e entraves encontrados no

Movimento sanitário brasileiro, para a discussão sobre modelagens clínicas

nos serviços públicos de saúde. Essa questão é analisada em relação a área

de saúde mental e suas especificidades. Propõem-se alguns eixos temáticos

para subsidiar a reformulação da clínica nos equipamentos substitutivos

do Sistema Único de Saúde (SUS). A ênfase é colocada na interface com a

subjetividade das equipes profissionais que neles trabalham e no papel de

suporte do apoiador (supervisor) institucional.

PALAVRAS-CHAVES: planejamento e gestão em saúde, clínica em saúde mental,

serviços substitutivos, subjetividade nas organizações.

ABSTRACT

This paper analyzes some difficulties and obstacles faced by the Brazilian

Sanitary Movement in the discussion of clinical modeling in public health

care services. The issue is analyzed with focus on the mental health area

and its particularities. Some thematic frameworks are proposed to support

the reformulation of the Clinical practice in substitutive equipment to the

SUS – Unified Health Care System. The proposals focus on the interface

with the subjectivity within the system's professional teams, and on the

role of institutional supporters (supervisors).

KEY WORDS: health-care planning and management, mental health clinical

practice, substitutive service, subjectivity in organizations.

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Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001 99

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, poucos tra-

balhos no campo sanitário brasilei-

ro levantaram a importância da clí-

nica nos serviços públicos de saú-

de. Contudo, poderíamos reconhe-

cer que as questões médicas e sani-

tárias encontram-se interligadas

desde o século XVIII (Snow, Vigilân-

cia Sanitária alemã, Wirchow, etc.).

Segundo Foucault (1989) a es-

truturação da clínica contemporâ-

nea aconteceu no século XIX, e, pelo

menos na França, a clínica moder-

na se constitui sobre bases anáto-

mo-patológicas e morfológicas, ou

seja, desde a sua origem estrutura-

se como um certo “olhar”.

Já no começo do século XX, com

as elaborações de Freud, a escuta

entra em cena: o pai da psicanálise

dirá que as histéricas têm o que di-

zer. O advento da psicanálise é o res-

gate da escuta. Mas essa escuta per-

manecerá até hoje descolada do

olho que examina.

“Freud inventa o espaço psica-

nalítico no movimento de ruptura

com a rotina da consulta médica e

a entrevista terapêutica. Aquilo que,

como é costume sustenta o vínculo

estabelecido no face a face fica ago-

ra suspenso: o olhar, a presença fron-

tal dos corpos, sua semiótica postu-

ral e gestual” (KÄES, 1997: 50). As-

sim, criam-se settings diferentes

para escutar e para ver. O doente é

também, e nesse mesmo movimen-

to, cindido na suas dimensões sub-

jetiva e biológica.

Na América Latina, desde a dé-

cada de sessenta, desenvolveu-se

com grande ênfase a epidemiologia

social, que deriva em uma medici-

na social, a qual não conseguiu de-

senvolver uma proposta clínica.

Neste caso, o escopo do olhar abriu-

se tanto que já não mais enxergava

os indivíduos: os problemas de saú-

de seriam problemas dos grupos e

comunidades. E deve-se reconhecer

que, apesar das críticas empreendi-

das pela medicina social à clínica

A dimensão social continua cin-

dida, pois agora se pode olhar e até

escutar as comunidades, mas elas

não se encarnam em doentes con-

cretos. No Brasil, após a criação do

Sistema Único de Saúde (SUS), apa-

rece a figura do conselheiro: o su-

jeito com voz. Contudo, apesar de

um cidadão comum ter direitos ga-

rantidos no Conselho Local e, ain-

da, poder ser ouvido como conse-

lheiro, terá pouco a nos dizer sobre

a doença de seu filho quando se en-

contrar na fila do Centro de Saúde.

Os cidadãos devem ser escutados;

os doentes, nem tanto.

O Planejamento em Saúde, em

seu processo de constituição disci-

plinar no interior da Saúde Coletiva

Brasileira, manteve-se, em geral,

afastado das questões clínicas, com-

partilhando, assim, características

gerais do campo da Saúde Coletiva

(Onocko, 2001). Contudo, no âmbi-

to dos serviços assistenciais de Saú-

de, quando saímos do aspecto tele-

ológico e chegamos ao operativo,

nos deparamos sempre com uma

escolha clínica.

Estamos chamando, aqui, de clí-

nica às práticas não somente médi-

cas, mas de todas as profissões que

lidam no dia-a-dia com diagnóstico,

tratamento, reabilitação e prevenção

secundária. Isto reforça o argumen-

to sobre a especificidade do Planeja-

mento em Saúde: quem quer contri-

buir para planejar mudanças em ser-

viços de saúde deve dispor de um

certo leque de modelos clínicos, e isto

(pela redução do social com que a

clínica opera), a própria medicina

social, constituída ela mesma sobre

bases epidemiológicas, atribuiu-se

o direito de definir necessidades

sociais, estruturando-se também

como um certo “olhar”. Neste enfo-

que podem ser olhados grupos de

risco e comunidades, que jazem a

nossa frente para que desvendemos

seus segredos e necessidades, mu-

dando de escala: igual à maca de

qualquer consultório médico.

NA AMÉRICA LATINA, DESDE A DÉCADA

DE SESSENTA, DESENVOLVEU-SE COM

GRANDE ÊNFASE A EPIDEMIOLOGIA SOCIAL,QUE DERIVA EM UMA MEDICINA SOCIAL,A QUAL NÃO CONSEGUIU DESENVOLVER

UMA PROPOSTA CLÍNICA

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CAMPOS, R. O.

100 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001

é uma questão de eficácia. Se o Pla-

nejamento em Saúde quer ser eficaz

promovendo mudanças nos serviços,

ele precisa, necessariamente, de uma

interlocução com a clínica.

Campos (2000) defende que os

serviços de saúde têm uma dupla fi-

nalidade: produzir valores de uso

(práticas produtoras de saúde, cura-

doras, cuidadoras e preventivas) e

sujeitos trabalhadores mais autôno-

mos e prazeirosos. Pensamos o Pla-

nejamento em Saúde como dispositi-

vo (Onocko, 1998). Aquilo que, segun-

do Julliem (1998) propicia, faz advir,

ou, segundo Baremblitt (1994), abre

espaços para a criação do novo parâ-

metro. Assim sendo, ele se constitui

como uma práxis1 que visa à produ-

ção e não somente à ação, e defende-

mos que essa produção pode, muito

bem, ser compromissada com essa

dupla finalidade. Assumir tal postu-

ra trará conseqüências impactantes

sobre nossa prática como planejado-

res. É preciso resgatar para o Plane-

jamento em Saúde uma preocupação

fundamental com os sujeitos que tra-

balham nos serviços de saúde, com a

finalidade de subsidiar um exercício

profissional que estimule novas ma-

neiras de subjetivação, e também,

uma preocupação com o desenvolvi-

mento de uma reflexão sobre as mo-

delagens clínicas que possam se cons-

tituir em suporte para novas práticas.

Essa reflexão sobre a clínica

não pode ser amarrada às visões

reducionistas predominantes no

discurso sanitário. A tradição des-

sa área tem tratado a clínica como

uma prática que não interessa ao

campo dos nossos saberes efetivos

prévios. Mais ainda, às vezes ela

aparece como oposta e estrutural-

mente contraposta à prevenção e à

promoção da saúde.

Contudo, deve-se reconhecer que

uma parte da eficácia da Saúde Co-

serviços de saúde? Como se fossem

estabelecimentos e organizações

passíveis de serem submetidos a

técnicas gerenciais, de maneira se-

melhante às fábricas de sapatos ou

aos serviços de táxi.

Uma evidência disto pode ser en-

contrada na contratação de ‘geren-

tes’ sem nenhuma vinculação pré-

via com a Saúde para dirigir gran-

des estabelecimentos assistenciais.

No melhor dos casos, os planejado-

res têm tratado os serviços de saú-

de como organizações de tipo pro-

fissional, em cujo caso tratar-se-ia

de intervenções a nível da cultura

organizacional, ou comunicativa

(Rivera, 1996). Partindo desse olhar,

tratar-se-ia de “enxertar” novos va-

lores na organização (como se isso

pudesse ser conseguido indepen-

dentemente das formas de subjeti-

vação ali vigentes), e de impor limi-

tes ao reconhecimento do poder di-

ferenciado que os médicos detêm

nas organizações de Saúde (o que

acaba por reforçar o patrimônio ex-

clusivo dos médicos sobre a clínica,

e sustenta a degradação das práti-

cas clínicas sob a forma de procedi-

mentos médicos).

Para a tradição da saúde coleti-

va, a clínica tradicional opera – pre-

dominantemente – no setting indi-

vidual, do encontro singular. Sendo

que a própria área de Saúde Coleti-

letiva depende, em alguma medida,

dos que tratam. Alguns autores pro-

puseram-se a falar em processo de

saúde/ doença/ atenção (Menendez,

1992), e, assim, a nosso ver, recolo-

caram certa ênfase nos serviços as-

sistenciais. Mas, como a área de Pla-

nejamento, mesmo no interior da

Saúde Coletiva, tem se ocupado dos

1 “Chamamos de práxis este fazer no qual os outros são visados como seres autônomos(...) A práxis é por certo uma atividade consciente, só

podendo existir na lucidez; mas ela é diferente da aplicação de um saber preliminar (não podendo justificar-se pela invocação de um tal saber

– o que não significa que ela não possa justificar-se)” (Castoriadis 1986: 95).

A TRADIÇÃO DESSA ÁREA TEM

TRATADO A CLÍNICA COMO UMA

PRÁTICA QUE NÃO INTERESSA

AO CAMPO DOS NOSSOS

SABERES EFETIVOS PRÉVIOS

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Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001 101

va estruturou-se contrapondo as

práticas coletivas às individuais, é

compreensível que o tema da clíni-

ca tenha ficado fora de foco para a

maioria dos sanitaristas.

Pensamos que uma reflexão so-

bre a clínica se faz necessária se

pretendemos avançar na discussão

sobre a eficácia. Campos (1997) pro-

pôs as seguintes categorias para

repensar a clínica:

Clínica degradada: queixa-condu-

ta, não avalia riscos, não trata a

doença, trata sintomas. É a Clíni-

ca mais comum nos Pronto-aten-

dimentos, mas, também é a de

grande parte de nossa atenção à

demanda (encaixes ou programa-

das) em muitos outros serviços. É

esta a clínica da eficiência: produz

muitos procedimentos (consultas),

porém, com muito pouco questio-

namento sobre a eficácia (de fato,

que grau de produção de saúde

acontece nessas consultas?).

Deve-se reconhecer que, após a

crição do SUS, a clínica adquiriu

também um valor ideológico: ter

acesso equivale a possuir cidada-

nia. Mas, quase ninguém se inter-

roga sobre quais tipos de cuida-

dos se tem acesso. Assim, a de-

gradação da clínica tem sido esti-

mulada por essa associação de

valores transcendentes: o acesso

do cidadão e a eficiência. Parado-

xo da extensão de direitos!

Clínica tradicional: trata das do-

enças enquanto ontologia, na sua

serialidade, o que há de comum

nos casos. Nem sempre trabalha

com riscos, ainda que devesse;

está focada no curar, não na pre-

venção, nem na reabilitação. In-

tervir sobre o prognóstico dos ca-

sos é cada vez menos freqüente.

O sujeito é reduzido a uma doen-

ça, no melhor dos casos, ou a um

órgão doente. Contudo, e indepen-

dentemente de sua ênfase no bio-

lógico, podemos reconhecer esta

como a clínica dos especialistas,

entra na vida do sujeito, mas nun-

ca o desloca totalmente. Seu João

está doente e continua a ser tra-

balhador metalúrgico, obsessivo,

pai, etc. Nem na pior das doen-

ças, nem à beira da morte, pode-

ríamos, nunca, ser totalmente re-

duzidos à condição de objeto. O

sujeito é sempre biológico, social,

e subjetivo. O sujeito é também his-

tórico: as demandas mudam no

tempo, pois há valores, desejos que

são construídos socialmente e cri-

am necessidades novas que apare-

cem como demandas. Assim, clíni-

ca ampliada seria aquela que incor-

porasse nos seus saberes e incum-

bências a avaliação de risco, não

somente epidemiológico, mas tam-

bém social e subjetivo, do usuário

ou grupo em questão. Responsabi-

lizando-se não somente pelo que a

epidemiologia tem definido como

necessidades, mas também pelas

demandas concretas dos usuários.

Campos (2000) entende que as de-

mandas são também manifestação

concreta de necessidades sociais

produzidas pelo jogo social e histó-

rico, que foram se constituindo, e

que aparecem na sua singulariza-

ção. É evidente que para desenvol-

ver este tipo de clínica a formação

do super-especialista fica estreita,

pois esta proposta gera tensão nas

barreiras disciplinares, estimulan-

do o trabalho em equipe. Trabalho

este que vem acontecer como uma

nova práxis e não mais como aquele

lugar idealizado, utópico e que nin-

que estritamente protegidos nos

seus corpus profissionais, já não

podem fazer práxis na própria

prática e verificar a eficácia do que

produzem. Toda vez que a clínica

fica fortemente amarrada a pres-

crições técnicas, restringe-se sua

possibilidade de ampliação. Na

Saúde Mental, alguns, em nome

da clínica, efetivam tais práticas.

Clínica ampliada: (clínica do su-

jeito) a doença nunca ocuparia

todo o lugar do sujeito, a doença

PENSAMOS QUE UMA

REFLEXÃO SOBRE A CLÍNICA

SE FAZ NECESSÁRIA SE

PRETENDEMOS AVANÇAR

NA DISCUSSÃO SOBRE A EFICÁCIA

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CAMPOS, R. O.

102 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001

guém teria visitado jamais, da

equipe transdisciplinar perfeita.

Para o Planejamento em Saúde

vir a ser uma práxis preocupada

com o mundo das finalidades e com

a eficácia, é preciso que nós, plane-

jadores da Saúde Coletiva, não con-

tinuemos surdos às questões rela-

tivas aos modelos clínicos. Deverí-

amos desenvolver reflexões sobre a

clínica nas suas múltiplas especia-

lidades: assim, na Saúde Mental, ou

no combate às drogas, ou na Saúde

da criança, ou da família, ou da

mulher, a clínica deveria ser sem-

pre interrogada à luz da sua produ-

ção, da sua eficácia. O substantivo

clínica seria, assim, sempre plural

e adjetivado (Campos, 1997).

O ESPAÇO DA CLÍNICA NA ORGANIZAÇÃODE SERVIÇOS SUBSTITUTIVOS DE

SAÚDE MENTAL: UM CONJUNTO VAZIO?

Se a constituição da clínica no

espaço dos serviços públicos de saú-

de relaciona-se com sua produção

social e histórica, nos serviços de

saúde mental encontraremos uma

situação semelhante, ainda que ne-

les possam ser reconhecidas outras

influências, diretamente vinculadas

à sua especificidade e à crítica do

sistema manicomial que marcou

fortemente essa área.

Assim, após a criação do SUS,

fortaleceu-se a crítica ao modelo de

tratamento asilar, com tudo o que

ele acarreta de submissão, isola-

mento e discriminação negativa. O

ímpeto da Luta Antimanicomial

criou focos de cegueira, espaços re-

calcados, nossos próprios pactos

denegatórios.2 Nisso, nossa luta se

assemelha a toda luta.

Como lembra Amarante (1996),

na inspiração basagliana a doença

é colocada entre parênteses, o olhar

das vezes, entendida como a nega-

ção da existência da doença, o que

em momento algum é cogitado (...)”

(Amarante, Idem: 84).

Esta influência, em muitos casos

mal interpretada como abolição da

doença e da clínica, tem contribuído

para um certo esvaziamento da dis-

cussão sobre a clínica nos serviços

substitutivos de saúde mental.

Na nossa experiência, com super-

visão institucional de vários serviços

de saúde mental nos últimos anos,

temos a impressão de que a doença

não foi colocada entre parênteses,

para recolocar o foco no doente, a

doença foi negada, negligenciada,

oculta por trás dos véus de um dis-

curso que, às vezes, e lamentavelmen-

te, transformou-se em ideológico.

Nesta linha, é possível reconhecer no

discurso de alguns membros da co-

munidade antimanicomial certa ide-

alização da loucura, negação das di-

ficuldades concretas e materiais do

que significa viver como portador de

sofrimento psíquico e minimização do

verdadeiro sofrimento que se encar-

na nesses pacientes, por exemplo, no

surto psicótico.

Na contramão, um sendeiro que

se bifurca: em nome da doença e da

clínica os ideólogos da psiquiatria

organicista continuam a sustentar

teses bizarras, como a da origem

puramente genética, o tratamento

condutista que repete o asilo fora

2 “Chamo de pacto denegatório a formação intermediária genérica que, em qualquer vínculo (...) conduz irremediavelmente ao recalque, à recusa,

ou à reprovação (...) o que pudesse questionar a formação e a manutenção desse vínculo e dos investimentos do que é objeto” (Kaës, 1991: 27).

deixa de ser exclusivamente técni-

co, exclusivamente clínico. Então, é

o doente, é a pessoa o objetivo do

trabalho, e não a doença. Desta for-

ma a ênfase é colocada no processo

de ‘invenção da saúde’ e de ‘repro-

dução social do paciente’. Mas, nos

diz também esse autor: “a operação

‘colocar entre parênteses’ é, muitas

SE A CONSTITUIÇÃO DA CLÍNICA

NO ESPAÇO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS

DE SAÚDE RELACIONA-SE COM

SUA PRODUÇÃO SOCIAL E HISTÓRICA,NOS SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL

ENCONTRAREMOS UMA

SITUAÇÃO SEMELHANTE

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001 103

dele, a continuidade das camisas de

força e, lamentavelmente, até do

eletrochoque.

E, alguns psicanalistas que, ain-

da que bem intencionados, preten-

dem transformar todo serviço de

saúde em uma reprodução do con-

sultório particular, como se o salto

entre público e privado pudesse ser

dado sem conseqüências. Opera-se,

em algumas abordagens, certa ‘neu-

rotização’ do psicótico: nada se

sabe, o sujeito tem que demandar,

tomar decisões e advir. Ora, se um

psicótico pudesse fazer isso não pre-

cisaria de serviços especiais. Sem

dúvida, existem concepções clínicas

embasando essas práticas. O que se

quer ressaltar é a necessidade de se

ampliar o debate sobre a clínica pos-

sível no serviço público de Saúde

Mental. Particulamente sobre uma

clínica das psicoses.

No interregno, continuam sofren-

do milhares de pacientes psicóticos.

Apesar de tudo que temos avança-

do, ainda, em muitos lugares do país,

poucas vezes se oferece a esses usu-

ários, como alternativa terapêutica,

algo mais que remédios, uma inter-

nação de vez em quando, e, no me-

lhor dos casos, uma luta para ele

também se engajar. Diga-se de pas-

sagem que, quando isso acontece, a

consciência da equipe, entendendo

do que se trata, e sem manipular os

usuários, pode vir a ser um magnífi-

co recurso terapêutico.

Lentamente, muito mais lenta-

mente do que gostaríamos, os ser-

viços asilares vão sendo substituí-

dos por outros equipamentos: Cen-

tros de Atenção Psicossocial (CAPS),

Núcleos de Atenção Psicossocial

(NAPS), Hospitais Dia (HD), equipes

de saúde mental no Programa Saú-

de da Família, etc. Desejamos des-

tacar alguns entraves que identifi-

camos neles, pois, pensamos, não

se devem a uma concepção técnica

sobre a organização do trabalho,

mas a uma impossibilidade que se

constitui no intermediário das rela-

o serviço contribui para dissociar

ainda mais. Remédio é com psiquia-

tra. Escuta é com psicólogo. Traba-

lho é com o terapeuta-ocupacional.

Intercorrência clínica, outra: não é

conosco. Surto? Vai ter que internar.

Claro, nem todos os lugares fun-

cionam exatamente assim, estamos

procurando reconhecer alguns en-

traves, e sugerir algumas linhas de

reflexão para serem aprofundadas.

No fundo, é essa uma postura

clínica: crer que fazer consciente

algumas coisas resolve outras.

Como disse Japiassu: “a consciên-

cia não é imediata, porém mediata;

não é uma fonte, mas uma tarefa, a

tarefa de tornar-se consciente, mais

consciente” (Japiassu, 1990:10).

ALGUNS EIXOS PARA PENSAR A CLÍNICA NAORGANIZAÇÃO DOS SERVIÇOS

SUBSTITUTIVOS NA REDE PÚBLICA:

Não propomos estes eixos na

pretensão de esgotar a discussão,

nem de ‘fechar’ uma proposta clíni-

ca única para os serviços substitu-

tivos. Estamos chamando-os de ei-

xos precisamente por identificá-los

como núcleos temáticos, em volta

dos quais agrupam-se inúmeras

práticas que ocorrem nos mais va-

riados serviços. Ressaltá-los como

eixos tem a intenção de criticar a

naturalização dessas práticas, res-

gatar seu valor de uso do ponto de

vista do que, de fato, pretende ser

produzido. Destacamos a necessida-

ções entre os sujeitos que ali traba-

lham e seu objeto de trabalho. As-

sim, coloca-se a questão da subjeti-

vidade dos que tratam, de sua in-

serção institucional, às ameaças

narcísicas a que são submetidos

pelo próprio fato de trabalharem

com pessoas com sofrimento psíqui-

co (Marazino, 1989), (Käes, 1996).

Colocar a doença entre parênte-

ses é trazer para o centro do foco o

usuário do serviço. Um usuário que

muitas vezes está dissociado, e que

REMÉDIO É COM PSIQUIATRA.ESCUTA É COM PSICÓLOGO.

TRABALHO É COM OTERAPEUTA-OCUPACIONAL.

INTERCORRÊNCIA CLÍNICA, OUTRA:NÃO É CONOSCO. SURTO?VAI TER QUE INTERNAR

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104 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001

de de nos interrogarmos sobre o sen-

tido de nosso trabalho, sobre o valor

de nossas práticas, sobre a eficácia.

A crise

Os equipamentos substitutivos: a

que será que se destinam? Ou, per-

guntando a partir de um referencial

do Planejamento: para que servem?

Deixando de lado a grande carên-

cia de serviços destinados à atenção

de pacientes com problemas de dro-

gas e/ou álcool (pois mereceria um

estudo particular), na maioria dos

casos os serviços de atenção à saú-

de mental vem se definindo com uma

vocação especial para o atendimen-

to de psicóticos e neuróticos graves.

Na maioria deles, também, se colo-

cando com maior ou menor ênfase a

necessidade de serem – de fato –

substitutivos à internação psiquiá-

trica integral.

Na nossa experiência pessoal, e na

maioria dos serviços com que tivemos

contato, essa função é cumprida, com

variações, porém nunca com taxa zero

de internações. Quer dizer que, com-

parados os pacientes com eles mes-

mos, a redução da freqüência de in-

ternações é muito importante depois

que se vinculam a algum serviço

substitutivo, e considerados o mon-

tante de pacientes e a quantidade de

encaminhamentos feitos para unida-

des de internação a taxa é relativa-

mente baixa (num serviço da cidade

de Campinas: 1.5 % ao mês). Isso quer

dizer que, de cada 100 pacientes

acompanhados, menos de dois paci-

entes serão encaminhados a interna-

ção cada mês. Ainda que sem fontes

de comparação, parece-nos que é pos-

sível sustentar a tese da freqüência

baixa. (Pois, por exemplo, em um ou-

tro serviço que acompanhamos e que

funciona ainda na lógica do ambu-

latório, a taxa é de 3,5% ao mês). Fica

claro, portanto, que os serviços subs-

titutivos são definitivamente efica-

zes em prevenir internações. Ainda

assim não pudemos constatar taxa

xa. Mas gostaríamos de salientar que

por trás dessa complexidade, locali-

za-se uma questão fortemente entre-

laçada com a concepção clínica que

tenhamos da psicose. Tudo isso per-

meado pelo valor – fortemente ideo-

logizado – de “não internarás”.

Se assumirmos que o momento

do surto constitui-se, para pacien-

tes e técnicos, em um momento de

fundamental importância, podere-

mos escapar da simples reiteração

do valor ideológico e propor outras

saídas. “(...) o surto psicótico, é vi-

vido com enorme angústia, é a fa-

lência dos referencias que susten-

tavam este indivíduo. Esta quebra

joga o sujeito no medo, confusão

mental, perda dos limites corporais,

nem mesmo o tempo como uma di-

mensão tem consistência suficien-

te: deixa de existir como tal” (Car-

rozzo, 1991: 33).

Entendermos este momento colo-

cará para nós a necessidade de quali-

ficar os serviços substitutivos para

intervir na crise. E deveremos reco-

nhecer que, em alguns usuários e em

algumas situações, a necessidade de

resguardo, proteção e contenção se-

rão fortemente colocadas pelo apare-

cimento do surto. Assim, quando o

serviço não dispõe nem mesmo do

espaço físico (às vezes também não

do psíquico, nem do técnico) para aco-

lher a crise, a única saída que pode

ser enxergada pela equipe é encami-

nhar para internação.

No seu momento de maior sofri-

mento e fragilidade, o paciente é

zero de internação, o que talvez se

deva ao fato de nossa experiência

acontecer em serviços sem leitos

(CAPS, HD, ambulatórios).

O que temos visto acontecer com

os usuários que acabam sendo inter-

nados é que muitas vezes, a interna-

ção produz uma quebra de sua vin-

culação com o serviço, o que redun-

da em posterior fragilidade e exposi-

ção ao risco de novas internações.

A relação entre os serviços de um

sistema de saúde mental é comple-

O QUE TEMOS VISTO ACONTECER COM OS

USUÁRIOS QUE ACABAM SENDO INTERNADOS

É QUE MUITAS VEZES, A INTERNAÇÃO

PRODUZ UMA QUEBRA DE SUA VINCULAÇÃO

COM O SERVIÇO, O QUE REDUNDA EM

POSTERIOR FRAGILIDADE E EXPOSIÇÃO AO

RISCO DE NOVAS INTERNAÇÕES

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001 105

exposto a uma quebra extra de seus

referenciais e vínculos. Se ele já não

reconhece o espaço, irá parar em um

espaço que, de fato, ele não conhe-

ce, entre pessoas que ele nunca viu,

e ser “tratado” por uma equipe que

não conhece sua história. Desta for-

ma, a possibilidade de se produzir

da crise uma passagem para algu-

ma outra coisa fica prejudicada.

No melhor dos casos, se o usuá-

rio consegue no episódio da inter-

nação se ligar de alguma maneira a

alguém da equipe de internação,

logo ele será submetido a uma nova

perda. O sistema coloca o imperati-

vo (antimanicomial) dessas Unida-

des de Internação trabalharem na

lógica de uma porta giratória: en-

trou, melhorou, saiu. Pouquíssimas

perguntas em relação a essas três

fases: assim, uma experiência do-

lorida e inesquecível transformar-

se-á, por obra do Sistema, em mais

um episódio banalizado.

Estamos fazendo esta análise

pressupondo como exemplo o me-

lhor dos casos, pois em grande par-

te do Brasil, ainda não existindo

suficiente oferta de Serviços subs-

titutivos, grande número de paci-

entes psicóticos, com longas histó-

rias de evolução, só conhecem

como única experiência terapêuti-

ca esse lamentável entra-e-sai em

diversas internações. Há alguns

anos atrás, em um levantamento

realizado numa Unidade de Inter-

nação, analisando prontuários

numa amostra selecionada aleato-

riamente, constatamos que 70 %

dos casos só tiveram essa oferta de

tratamento (ou seja, nunca tiveram

contato com outro tipo de serviço

de saúde mental) e ainda, muitos

deles haviam passado a maior par-

te do último ano internados (lem-

bro de um caso que havia passado

em internação 8 meses), somente

que então, eles não eram mais asi-

lares, pois o Sistema de financia-

mento pretende modular interna-

ções curtas (para sermos politica-

algo que pode ser tratado e acom-

panhado e não somente abafado por

grande quantidade de remédios.

Para isto ser suportável a própria

equipe precisará de cuidados. Sabe-

mos que isto não é sempre fácil no

setor público.

Sustentada nessa posição clíni-

ca, pensamos ser possível uma pri-

meira diretriz para a organização de

um sistema de saúde mental. A da

necessidade de trabalhar com equi-

pamentos não intermediários, senão

verdadeiramente substitutivos: ca-

pazes de preservar o vínculo com

seus usuários nos diversos momen-

tos, e sob as diversas fases em que

se apresenta seu sofrimento. Fugin-

do da lógica do entra-e-sai e substi-

tuindo-a pela da responsabilização.

Para isto acontecer deveria ser pos-

sível contar com um apoio institu-

cional para a própria equipe.

A família

É obvio que existem nas famíli-

as dos psicóticos características,

condições relacionadas à produção

dessa psicose. Como tratá-los fora

do manicômio, senão intervindo

nesses núcleos familiares, propici-

ando o restabelecimento de víncu-

los “desde algum outro lugar”. Sem

esperar que se façam “normóticos”

(Hippólito, dixit, 1997); porém que

sejam capazes de gastar melhor sua

própria vida.

Muitas dessas famílias têm uma

relação culposa com a instituciona-

mente corretos e antimanicomiais).

Essa grande parcela de pacientes

psicóticos no Brasil vive no pior dos

mundos: em nome da desinstituci-

onalização, eles não têm vínculo,

nem história, ou espaço.

A possibilidade de acompanhar

a crise dos usuários está colocada

para grande parte dos serviços. Um

compromisso com esta questão exi-

girá da equipe a possibilidade de

sustentar sua própria crise. Trans-

formar o surto em passagem, em

ESSA GRANDE PARCELA DE

PACIENTES PSICÓTICOS NO BRASIL

VIVE NO PIOR DOS MUNDOS:EM NOME DA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO,

ELES NÃO TÊM VÍNCULO,NEM HISTÓRIA, OU ESPAÇO

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106 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001

lização do parente. E uma sensação

tremendamente doída e contraditó-

ria entre querê-los de volta (para

mitigar a culpa) e o medo e o incô-

modo concreto e terrível de ter um

louco em casa. No caso dos mani-

cômios brasileiros, esta questão é

agravada pelo quadro de pobreza

extrema a que estão submetidas

muitas dessas famílias.

Penso que várias questões da

clínica de crianças de François Dol-

to (1989, 1996 a, 1996 b) merecem

ser exploradas em relação a uma

clínica da psicose. Sobretudo tra-

tando-se de pessoas com muitos

anos de evolução e em propostas

nas quais se pretende recuperar

certo vínculo familiar.

Dolto não rejeitava entrevistar

terapeuticamente famílias, pais.

Outros autores também defendem

esta proposta de ‘aproveitar-se’ da

transferência parental, já que, é ob-

vio, não são as crianças as que de-

mandam análise (Manonni, 1980;

Rosemberg, 1999). Esta questão é

mais ou menos reconhecida no cam-

po da análise de crianças, mas, cre-

mos, não tanto no das psicoses. To-

davia, deve-se reconhecer que, fre-

qüentemente, os psicóticos tampou-

co demandam: a sociedade ou a fa-

mília o fazem em seu nome.

Contudo, no caso de Dolto, o com-

promisso nunca era com o desejo dos

pais (que em geral atuam em nome

do desejo de seus próprios pais, o que

sustenta tese de alguns autores de

que são necessárias várias gerações

para se produzir um psicótico), mas,

sim, com o desejo da criança. Ela

colocava esses pais na genealogia de

sua própria paternidade.

Assim, no caso dos serviços

substitutivos, o objetivo declarado

de evitar as perdas de laços sociais

e familiares coloca o imperativo de

tratar também as famílias.

Na maioria dos serviços que co-

nhecemos existe algum espaço des-

tinado a trabalhar com famílias.

Porém, muitas vezes, esse espaço,

do, exacerbando-se paranóias), pe-

dir informações às famílias sobre os

usuários (aí é o mesmo ao avesso:

a história não é mais do sujeito, se-

não a que sua família conta, e as

famílias são constrangidas a se exi-

birem na frente de outras, nos as-

pectos mais íntimos e doídos – doi-

dos? – de sua relação).

Atribuímos uma parte desta di-

ficuldade à falta de formação; é di-

fícil trabalhar com famílias, e há na

rede pública poucas pessoas com

essa capacitação específica. Mas

outra, e nesse sentido desejamos

inserir esta contribuição, está rela-

cionada com a perda de sentido das

nossas práticas, com o véu produ-

zido nas equipes, que imprime sua

marca acrítica no dia-a-dia dos tra-

balhadores de saúde. Esquecemos

o valor da pergunta “para quê”.

“Sabemos que o lugar que coube

ao psicótico em sua família foi de car-

regar algo que nas gerações preceden-

tes foi ficando impossível ser elabo-

rado (...) Se podemos entender a im-

portância muitas vezes vital para

este núcleo familiar desta ‘função’

que o psicótico corporifica, sabemos

que os pais, a família não devem ser

culpados ou responsabilizados por

esta violência. Não foi uma opção

(...)” (Carrozzo, 1991: 35).

Assumirmos esta posição permi-

te-nos aceder a uma razão para tra-

tar essas famílias. Essa carga de

gerações, que o psicótico encarna é

bem pesada. Trabalhar isso com

cada família pode vir a ser funda-

fundamental para o sucesso da pro-

posta, é alarmantemente esvaziado

de sentido. Fazem-se grupos de fa-

mília para quase qualquer coisa:

informar as famílias da evolução do

paciente (o grupo transforma-se em

uma degradação eficiente do direi-

to à informação, para não falar da

complicada situação na qual é co-

locado o usuário, pois se está den-

tro do grupo vê-se tratado como um

objeto do qual há que se ter infor-

mação, e se está fora vê-se ameaça-

ASSIM, NO CASO DOS SERVIÇOS

SUBSTITUTIVOS, O OBJETIVO DECLARADO

DE EVITAR AS PERDAS DE LAÇOS SOCIAIS

E FAMILIARES COLOCA O IMPERATIVO

DE TRATAR TAMBÉM AS FAMÍLIAS

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001 107

mental. Para isso, o espaço tem que

ser apropriado. O que a família nos

transfere deve ser redirecionado, e

isto dificilmente será possível em

reuniões multitudinárias.

Podemos assim sugerir outra di-

retriz para o sistema público: ao se

pensar na população alvo de um

dado serviço, talvez seja necessário

redimensionar a oferta de atendi-

mento incrementando aos usuários

potenciais, reservando uma porcen-

tagem para as famílias. Sabendo

disso, inclusive, avaliar a necessi-

dade de aprimorar a formação dos

profissionais que trabalham na rede

pública de maneira específica.

O grupo

Na maioria dos serviços consta-

tamos também a existência de espa-

ços para grupos. Grupos de verbali-

zação, de terapia ocupacional, de tra-

balho corporal. As variações são inú-

meras, e diversas também as corren-

tes ou abordagens em que os tera-

peutas se inserem. Nada errado: há

riqueza nessa diversidade.

O grupo pode ser um espaço pri-

vilegiado para vivenciar-se de uma

nova maneira as transferências

maciças dos psicóticos, “viver expe-

riências afetivas realmente novas,

fundantes, que permitam um cerzi-

do (não perfeito) na trama desta

subjetividade” (Carrozzo, Idem: 34).

De novo um espaço que possa se

constituir em passagem: um lugar

no qual algumas coisas possam ser

reparadas, as invasões à própria

subjetividade não sejam vividas

como mortíferas, e a dificuldade de

viver possa ser acompanhada.

Contudo, gostaríamos de salien-

tar o peso da estruturação do servi-

ço público sobre esse dispositivo de

tratamento. Se as pessoas que ofe-

recem o grupo não têm clareza de

objetivos, o espaço é banalizado, os

usuários são ‘encaminhados’ para

o grupo e ‘devem ir’, nunca ninguém

se perguntando sobre o que tal es-

fechados. A paródia está no fato de

que na saúde pública, pelo menos,

os programas eram baseados em

critérios de risco, nos serviços de

saúde mental vimos muitas vezes

eles se justificarem simplesmente

pelo gosto de tal ou qual terapeuta

em oferecer isto ou aquilo. Nenhu-

ma interrogação sobre o sentido de

nossas práticas.

Temos visto muitos grupos de

medicação nos quais realiza-se de

fato uma consulta médica coletiva,

mera prescrição de receitas, e não

um espaço para que os usuários,

entre eles, possam, com a ajuda do

terapeuta, construir novas relações

com os remédios.

O trabalho

Outra questão que mereceria ser

resgatada na clínica e explorada

com psicóticos é o uso de mediado-

res diferentes da palavra. Desenhos,

tintas, argila... Há coisas de que os

loucos não falam. Não podem falar.

Todavia, as desenham, as amassam,

as vomitam.

Uma paciente pintou durante

anos barcos. Metros de tela e quilos

de pintura em mares azuis e barcos

coloridos. Havia chegado de outra

instituição, com anos de internação

e sem nenhum dado pessoal nem

familiar. Chamavam-na de Rita e

resultou ser Maria Aparecida, quan-

do conseguiu recuperar sua cartei-

ra de identidade pelas marcas digi-

tais. Anos passou des-Aparecida,

paço significa para esse usuário em

particular. O grupo transforma-se,

assim, em véu sobre o mandato de

fazer eficiente o serviço: atende-se

a 8 ou 10 pessoas em uma hora (ga-

rantindo produtividade), mas se

degrada a singularidade dos casos.

Em muitos serviços, os grupos

oferecidos modulam, inclusive,

quem pode ou não pode ter acesso

ao serviço. Parodiando os progra-

mas clássicos da saúde pública, ofe-

recem-se unicamente ‘cardápios’

NA MAIORIA DOS SERVIÇOS

CONSTATAMOS TAMBÉM A EXISTÊNCIA

DE ESPAÇOS PARA GRUPOS. GRUPOS

DE VERBALIZAÇÃO, DE TERAPIA

OCUPACIONAL, DE TRABALHO CORPORAL

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CAMPOS, R. O.

108 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001

pintando barcos, antes de conseguir

contar que havia nascido em uma

cidade portuária. Hoje vive com sua

família e enviou uma estrela de mar

de presente ao serviço. Foram vári-

os litros de tinta que a ajudaram a

voltar para casa.

Outro paciente, jovem, delirante

e não conseguia falar de nada no

setor de casos agudos. Um dia, no

trabalho de colagge, viu em uma

revista a foto de um cachorro. E dis-

parou a falar de uma vez em que

houve um cachorro, e uma casa, e

uma mãe... e saiu da crise.

Com esses exemplos desejamos

mostrar uma diferença básica entre

o fazer alguma coisa (ou qualquer

coisa), e fazer coisas que possam vir

a ter sentido para cada usuário. Te-

mos visto numerosas oficinas que

– chamando-se de terapêuticas –

estruturam-se somente em base do

produzido (em termos de produto

para a cooperativa vender, por exem-

plo) e não do que produzem concre-

tamente sobre a singularidade de

cada usuário que se encontra inse-

rido na ‘linha’ de produção.

Claro que, na direção de colocar a

doença entre parênteses, o fato de

estar inserido em uma produção que

lhe traz algum pagamento produz

efeitos: o usuário deixa de ser uma

carga para a família e pode vir a de-

sempenhar outros papéis, que não

somente o de enlouquecido da casa.

Essa é a parte da intervenção psicos-

social que pode e deve ser preserva-

da; o que gostaríamos de ressaltar é

que o espaço da produção, com toda

a sua potencialidade, é freqüente e

lamentavelmente banalizado. Quais

as conseqüências para um psicótico

de trabalhar numa linha de produção

na qual ele só enxerga um pedaço do

produto? Por que muitas das oficinas

que ‘dão certo’ trabalham com técni-

cas que partem do fragmento (papel

reciclado, vitraux, mosaico) para pro-

duzir um objeto? O que está sendo

cerzido nessa criação, quando ela

pode ser encarada como processo pro-

trabalho também como produção

do sujeito em si, não somente como

reprodução material. Procurando

sempre que possível a construção

de sentido dessa reprodução soci-

al, para ela não vir a ser simples

adaptação social.

A equipe e o projeto como processointermediário

Inseridos no campo do planeja-

mento de serviços de saúde, defende-

mos que um projeto em um serviço

de saúde deve incluir uma propos-

ta clínica. E também que todo proje-

to só será possível se explorado a

partir da subjetividade da própria

equipe em questão (Onocko, 2001).

Se pensamos o Planejamento em

Saúde como dispositivo, ele torna-se

mais uma exploração do dado do que

uma aplicação de receitas tecnológi-

cas prontas. Esta forma de encarar o

planejamento ressalta o espaço do

Projeto e faz relativo o do Plano.

Enfatizamos que o subjetivo é

próprio do projeto, como o técnico o

é do plano. O momento que indaga o

sentido, o ‘para quê’ das práticas, o

momento em que posso desejar

projetar(me) com os outros para

transformar o real, é o projeto. “O

projeto visa sua realização como mo-

mento essencial” (Castoriadis, 1986:

97). E este é o momento mais com-

plexo do ponto de vista da constitui-

ção da grupalidade, momento no

qual consensos e representações di-

versas virão à tona, assim como con-

dutivo de si e do mundo? Pensamos

que essas questões não podem desa-

parecer para a equipe que trata nem

para o paciente, sob o risco, já denun-

ciado por outros autores, de a ação

social prevalecer sobre a interlocução

(Figueiredo, 1997).

Mais uma consideração sobre as

conseqüências que poderíamos ex-

trair disto para a estruturação dos

serviços públicos: pensarmos espa-

ços nos quais possam, além de di-

zer, fazer algo. E pensarmos no

UM DIA, NO TRABALHO DE COLAGGE,VIU EM UMA REVISTA A FOTO DE UM

CACHORRO. E DISPAROU A FALAR DE

UMA VEZ EM QUE HOUVE UM CACHORRO,E UMA CASA, E UMA MÃE...

E SAIU DA CRISE

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001 109

flitos e desencontros. O projeto tem

permanência, o plano é uma figura

fragmentária e provisória. Se tenho

um projeto, passar dele ao plano re-

sulta, aí sim, de uma aplicação téc-

nica, depende de um saber prévio e é

relativamente fácil de se conseguir.

Como trabalhar em planejamen-

to, ajudando a formular projetos, fa-

zendo de nossa prática uma práxis,

a não ser admitindo e estimulando

os sujeitos que formulam esses

projetos a fazerem práxis na sua

própria prática? Na práxis, o sujei-

to faz a experiência na qual está

inserto e a experiência o faz.

Defendemos que a possibilidade de

sair da eterna repetição, ousando e

reorganizando o trabalho, dependerá:

“(...) de criar um dispositivo de tra-

balho e de jogo, que restabeleça,

numa árárárárárea transicional comumea transicional comumea transicional comumea transicional comumea transicional comum, a

coexistência das conjunções e das

disjunções, da continuidade e das

rupturas, dos ajustamentos regula-

dores e das irrupções criadoras, de

um espaço suficientemente subjetivi-suficientemente subjetivi-suficientemente subjetivi-suficientemente subjetivi-suficientemente subjetivi-

zado e rzado e rzado e rzado e rzado e relativamente operatórioelativamente operatórioelativamente operatórioelativamente operatórioelativamente operatório”

(KAËS, 1991: 39; grifo nosso).

Para Käes, a instauração do es-

paço psíquico do ser-conjunto se

sustenta na possibilidade de se re-

criar a ilusão institucional, ofere-

cendo referencias para a aderência

narcísica de seus membros, pois:

“a falha de ilusão institucional pri-

va os sujeitos de uma satisfação im-

portante e debilita o espaço psíquico

comum dos investimentos imaginá-

rios que vão sustentar a realização

do prprprprprojetoojetoojetoojetoojeto da instituição” (Kaës,

Idem: 34, grifo do autor).

E essa não é uma tarefa fácil nos

serviços públicos, muitos dos quais

encontram-se burocratizados ou

submetidos ao gerenciamento auto-

ritário. A compreensão dos aspec-

tos subjetivos envolvidos pode con-

tribuir para repensar nosso papel

como apoiadores das equipes.

Parece irrisório pedir a grupos

que se encontram espremidos nas

pensar. O paradoxo, que qualquer

estrategista enxergaria é que essa

impossibilidade de autocrítica

constitui-se em nossa fraqueza.

Nunca ficamos tão vulneráveis aos

outros como quando não consegui-

mos nos enxergar. “A distância en-

tre a cultura da instituição e o fun-

cionamento psíquico induzido pela

tarefa está na base da dificuldade

para instaurar ou manter um es-

paço psíquico de contenção, de li-

gação e de transformação” (Kaës,

1991: 36, grifos do autor).

E não é também disso que preci-

sa uma clínica da psicose? Não bas-

ta manter a ética da psicanálise na

sua lógica privada, oferecendo con-

sultórios ainda que tornados públi-

cos (Figueiredo, 1999: 11). Tratar

psicóticos, colocando a doença en-

tre parênteses, fazendo advir uma

clínica do sujeito, nos desafia a ser-

mos capazes de mudar nosso setting.

Nada contra o divã, mas temos cer-

teza de que a clínica que almejamos

para o serviço público não será cons-

truída somente em volta dele.

Deveríamos criar uma rede de

sustentação, de suporte, na qual os

pacientes possam experimentar, de

novo, suas transferências maciças,

com resultados diferentes. Mas des-

tacamos que, para isso, a própria

equipe deve ter suporte, holding

(Winnicott, 1999). Assim, essa fun-

ção faz parte do novo papel do apoi-

ador institucional. Nos serviços de

saúde mental a análise da situação

institucional estará sempre fortemen-

suas próprias dores institucionais,

que consigam criar um espaço su-

ficientemente trófico para os usu-

ários. Freqüentemente, umas das

saídas institucionais a esse sofri-

mento é o apelo exagerado ao ide-

ológico. Ideologia que funciona aí

como falsa consciência, véu obtu-

rando a possibilidade de se inter-

rogar sobre o sentido das própri-

as práticas.

Sobre esse sofrimento o movi-

mento ‘da luta’ não tem tempo para

NADA CONTRA O DIVÃ, MAS TEMOS

CERTEZA DE QUE A CLÍNICA QUE

ALMEJAMOS PARA O SERVIÇO PÚBLICO

NÃO SERÁ CONSTRUÍDA SOMENTE

EM VOLTA DELE

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CAMPOS, R. O.

110 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001

te entrelaçada com a discussão clíni-

ca. Não é possível discutir casos sem

colocar em análise o funcionamento

da equipe. A natureza do que ali é tra-

tado faz essa separação indesejável.

Qualquer profissional da saúde

precisará de ousadia para sair dos

compartimentos estanques dos sa-

beres prévios. A equipe só consegue

recriar seus contratos de trabalho

se tiver desenvolvido um espaço in-

termediário suficientemente trófico,

de suporte. Assim, o projeto insti-

tucional será possível. Pensamos

que o projeto, como o brincar, faz

parte desses processos intermediá-

rios (Onocko, 2001). Como diz Win-

nicott (1999), referindo-se ao brin-

car, isso exige um lugar e um tem-

po. E não se resolve somente refle-

tindo, ou desejando, mas no fazer.

Projetar é fazer.

E nós, planejadores, deveremos

estudar, compreender e aprimorar

nosso entendimento em relação às

modelagens clínicas: tomar posição,

não sermos mais “neutros”, em re-

lação às propostas clínicas. Nisso

consiste nosso handing: manejo, e

já não mais apenas no domínio de

técnicas para preencher planilhas de

um plano, que talvez nunca venha

a ser executado.

Precisamos assumir declarada-

mente a necessidade de ampliação

da clínica nos serviços públicos de

saúde, se não o fizermos, ainda que

involuntariamente ou por omissão,

continuaremos trabalhando a favor

da proposta hegemônica: a degra-

dação da clínica, a criação de servi-

ços pobres para pobres, e a inviabi-

lidade do Sistema Único de Saúde

em termos dos custos crescentes

derivados do alto consumo de téc-

nicas diagnósticas e terapêuticas

que acabam sendo caras, ineficazes,

e, às vezes, até iatrogênicas.

Sustentamos que o Planejamen-

to em Saúde estará sempre ligado

às questões advindas das modela-

gens clínicas e da subjetividade dos

grupos que estão em ação.

Tarefa complexa, distinta das

que nos foram colocadas na nos-

sa formação como planejadores,

difícil e que só pode ser pensada

como possível se abrirmos o cam-

po do planejamento a outras dis-

ciplinas e saberes, e se, assim fei-

to, continuarmos a refletir sobre

a nossa própria práxis como pla-

nejadores. “Se acaso devemos, eu

e os outros, encontrar o fracasso

nesse caminho, prefiro o fracasso

numa tentativa que tem um senti-

do a um estado que permanece

aquém do fracasso e do não fra-

casso, que permanece irrisório”

(Castoriadis, 1986: 113).

AGRADECIMENTOS

A autora agradece as valiosas

críticas e sugestões recebidas para

o presente artigo de Fernando Cem-

branelli, Gastão W. de Sousa Cam-

pos, e Stella Maris Chebli.

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