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PROTEÇÃO PATRIMONIAL DOS ADQUIRENTES
NAS INCORPORAÇÕES IMOBILIÁRIAS
Revista do consumidor, 2007.
I
A proteção contratual dos adquirentes e consumidores – Em 1964 a
Lei das Incorporações Imobiliárias (Lei 4.591/64) introduziu no direito positivo
um avançado sistema de proteção contratual dos adquirentes de imóveis em
construção, fundado nos princípios da boa-fé objetiva e da função social do
contrato.
Mais tarde, a Lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), orientada
por esses mesmos princípios, dispôs sobre a proteção contratual nas relações
de consumo, aplicável, também, aos contratos de construção e de venda de
imóveis.
Entretanto, apesar de tratarem da proteção contratual, nenhuma dessas duas
leis cuidou da proteção patrimonial, deixando os adquirentes de imóveis em
construção sob risco de perda das quantias que pagaram, como bem ilustram
casos de desequilíbrio econômico-financeiro de empresas incorporadoras, de
que é exemplo o caso Encol.
Só recentemente, em 2004, veio a ser instituído um regime especial de
proteção patrimonial dos credores das empresas incorporadoras,
notadamente os adquirentes dos imóveis integrantes dos empreendimentos,
por força da Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004, que permite a
segregação patrimonial de determinadas incorporações. Por esse regime, os
adquirentes são investidos de poderes de controle sobre o empreendimento e
o exclui dos efeitos de eventual falência da empresa incorporadora,
autorizando os adquirentes a vender as unidades do “estoque” da empresa,
mediante leilão extrajudicial, e prosseguir a obra diretamente, sem
intervenção judicial. Trata-se, igualmente, de um regime de vinculação de
receitas, pelo qual se conserva o quantum necessário à conclusão das obras e
entrega das unidades aos adquirentes.
O contrato de incorporação imobiliária – A Lei n° 4.591, de 1964,
regulamenta a atividade empresarial de incorporação imobiliária, tipifica o
contrato de incorporação, que, basicamente, corresponde à alienação de
imóveis durante a construção, e estabelece um sistema de proteção dos
adquirentes contra os riscos inerentes à construção. Essa lei, nos seus arts.
28 e seguintes, diz respeito aos mecanismos e procedimentos contratuais
pertinentes exclusivamente à fase da construção.
Traço característico do negócio é a “venda antecipada de apartamentos de
um edifício a construir”, visando a captação de recursos que “consiste em
obter o capital necessário à construção do edifício, mediante venda, por
antecipação, dos apartamentos de que se constituirá.”1 Dada essa noção, fica
claro que a venda de apartamento já pronto e averbado no Registro de
Imóveis não se caracteriza como contrato de incorporação.
É o contrato pelo qual o incorporador se obriga a transmitir, a título oneroso,
unidades imobiliárias em construção, integrantes de edificação coletiva, e,
bem assim, a promover, por si ou por terceiros, a construção e averbação dos
apartamentos no Registro de Imóveis, visando a instituição da propriedade
condominial especial de que tratam os arts. 1.331 e seguintes do Código Civil
(Lei 4.591/64, parágrafo único do art. 28 e art. 44).
É contrato bilateral, típico, consensual, oneroso, comutativo, solene e de
execução continuada, para cuja formalização são utilizadas espécies de
contrato já tipificadas no ordenamento, entre elas a compra e venda ou a
promessa de compra e venda da unidade imobiliária, como coisa futura, a
1 GOMES, Orlando, Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 14. ed., 1999, p. 227, e DINIZ, Maria Helena, Curso de direito civil brasileiro. Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. São Paulo: Saraiva, 11. ed., 1996, p. 493.
compra e venda ou a promessa de venda da fração ideal de terreno
conjugada com contrato de construção e a compra e venda com pacto adjeto
de alienação fiduciária ou com pacto adjeto de hipoteca.
O objeto do contrato de incorporação contempla elementos de natureza
obrigacional e de natureza real. O primeiro é o objeto imediato do contrato;
trata-se de obrigação de fazer e de dar, ou seja, de uma parte, a obrigação
do incorporador de promover a construção, por si ou por terceiros, e de
entregar as unidades aos adquirentes, transmitindo-lhes a propriedade.2
Na forma da promessa de compra e venda, o elemento de natureza
obrigacional do contrato de incorporação consiste no compromisso que as
partes assumem “de contratar a transferência do domínio, logo que se
complete o pagamento do preço.”3
O elemento de natureza real é seu objeto mediato, ou seja, a atribuição, ao
adquirente, da propriedade do imóvel cuja construção está sendo promovida
pelo incorporador.
Ao tipificar o contrato de incorporação, a Lei n° 4.591/64 dita os parâmetros
do seu conteúdo, fixa balizamentos e limitações para evitar práticas abusivas,
estabelece deveres de conduta que corporificam o princípio da boa-fé objetiva
e atendem à exigência do equilíbrio das relações obrigacionais, submetendo a
controle a manifestação de vontade para ajustá-la às atuais exigências sociais
e econômicas e, assim, assegurar o cumprimento da função social do
contrato.
Para controle da atividade empresarial do incorporador, a lei determina o
conteúdo do contrato (seja de compra e venda, de promessa, de empreitada,
2 CHALHUB, Melhim Namem, Da incorporação imobiliária. 2. Ed., 2005, Rio de Janeiro: Renovar, p. 146. 3ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira, Da compra e venda promessa e reserva de domínio. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1960, p. 193.
de alienação fiduciária etc), tudo visando assegurar a consecução da função
social do contrato, mediante realização de sua finalidade econômica, o que se
alcança mediante completa construção da edificação e entrega das unidades
imobiliárias aos adquirentes, nas condições pactuadas.
Nesse sentido, a Lei 4.591/64 estabelece requisitos mínimos e regulamenta
toda a evolução do processo contratual, desde a fase pré-contratual, na qual
está presente a obrigatoriedade de prévia exibição dos elementos essenciais
do contrato, por meio do Memorial de Incorporação arquivado no Registro de
Imóveis, passando por todo o curso da execução do contrato e seguindo até
a fase da extinção do contrato, em razão da responsabilidade civil do
incorporador.
Em termos concretos, é útil voltar a atenção para alguns dos aspectos mais
importantes da regulamentação do contrato de incorporação:
a) o incorporador só pode colocar à venda as frações ideais e acessões
depois de divulgar os elementos essenciais do contrato, mediante registro
do memorial de incorporação no Registro de Imóveis, contendo as
informações sobre toda a história do imóvel, a situação jurídica e
patrimonial do incorporador, as condições peculiares pelas quais o
incorporador negociou o terreno (se pagou à vista, se parceladamente, se
obteve a titularidade por permuta, quais as condições da permuta, se for o
caso, etc), a situação jurídica do incorporador (se é mesmo o titular da
incorporação ou se é procurador do incorporador), os ônus fiscais e os
ônus reais que pesam sobre o terreno, a cópia do projeto de construção
aprovado pelas autoridades competentes, o orçamento da obra, a
específica situação do incorporador perante a Previdência Social, a
discriminação das frações ideais em que ficará dividido o terreno, que
constituirão propriedade individual dos futuros adquirentes etc.
b) são estabelecidas sanções civis e penais contra o incorporador que, por
ação ou omissão, frustrar a segurança jurídica propiciada pelo sistema do
Registro de Imóveis, estando tipificados como crimes contra a economia
popular a promoção de incorporação em que se fizer afirmação falsa
quanto à constituição do condomínio, à alienação das frações ideais ou à
construção do edifício e, ainda, como contravenções penais os seguintes
fatos (1) negociar frações ideais sem prévio registro do memorial no
Registro de Imóveis competente; (2) omitir a existência de algum ônus real
sobre o terreno; (3) deixar de outorgar o contrato de aquisição aos
adquirentes; (4) deixar de mencionar no contrato o orçamento da obra; (5)
paralisar a obra por mais de 30 dias ou retardar seu andamento sem justa
causa (art. 65 da Lei 4.591/64);
c) Mesmo que o incorporador se recuse a outorgar o contrato ao adquirente,
ou interponha obstáculos a essa outorga, a lei assegura ao adquirente o
direito de registrar o contrato preliminar de aquisição da unidade ou, se
não houver contrato, autoriza-o a registrar qualquer documento que o
incorporador lhe tenha outorgado, até mesmo um instrumento de ajuste
preliminar, registro esse que confere ao adquirente direito real oponível a
terceiros, com o consequente direito à obtenção compulsória do contrato
correspondente (art. 35, § 4°);
d) se o incorporador, sem justa causa, paralisar a obra por mais de 30 dias
ou retardar seu andamento, poderá ser notificado para que a reinicie ou a
recoloque em andamento normal, sendo certo que, não atendida a
notificação em 30 dias, os adquirentes poderão substituir o incorporador e
assumir a administração da obra (art. 43, VI);
e) em caso de falência do incorporador, e tendo sido outorgadas por ele
promessas de venda aos adquirentes, aplicar-se-á a legislação respectiva
(art. 43, VI, do Decreto-lei n° 7661, de 1945 - Lei de Falências); a
legislação respectiva, no caso das promessas registradas no Registro de
Imóveis competente, são o Decreto-lei n° 58, de 1937 (art. 22 - promessas
em geral), a Lei n° 6.766, de 1979 (promessas de lotes de terreno) e a Lei
n° 4.591, de 1964 (art. 35, § 4° - promessa ou instrumento preliminar de
ajuste nas incorporações), todas elas dispondo que a promessa registrada
no Registro de Imóveis competente confere ao promissário comprador
direito real, oponível a terceiros, com direito a adjudicação compulsória;
f) ainda em caso de falência do incorporador, ou de atraso injustificado da
obra, bem como no caso de paralisação da obra por mais de 30 dias, os
adquirentes poderão assumir a incorporação e prosseguir a obra com os
recursos do seu orçamento próprio, só respondendo pelas dívidas e
obrigações vinculadas à sua incorporação.
No contexto desse conjunto de medidas, o legislador dispensou atenção
especial à segurança do adquirente na contratação da aquisição da unidade,
cuidando de dar atributo de direito real não só à promessa de compra e
venda, mas, também, ao instrumento de ajuste preliminar que tenha sido
outorgado pelo incorporador.
Com efeito, ao registrar seu contrato de promessa de compra ou, mesmo, o
ajuste preliminar, que tenha firmado por instrumento particular, o adquirente
tornar-se-á titular de direito de real sobre a futura unidade imobiliária, direito
esse que será válido e eficaz contra terceiros (art. 35, § 4°).
Quanto às promessas de compra e venda em geral, importa notar que, já em
1937, o art. 22 do Decreto-lei n° 58, assegurava direito real ao adquirente,
desde que registrado o contrato.4
É relevante o fato de que a eventualidade de falência do incorporador não
altera a natureza do direito do adquirente, que, titular de direito real, oponível
contra todos, tem assegurada a obtenção da adjudicação compulsória, desde
que complementado o pagamento do preço; uma vez quitada a promessa,
4 Decreto-lei n° 58, de 1937: “Art. 22. Os contratos, sem cláusula de arrependimento, de compromisso de compra e venda e cessão de direito de imóveis não loteados, cujo preço tenha sido pago no ato de sua constituição ou deva sê-lo em uma ou mais prestações, desde que inscritos a qualquer tempo, atribuem aos compromissários direito real oponível a terceiros, e lhes conferem o direito de adjudicação compulsória nos termos dos arts. 16 desta lei, 640 e 641 do Código de Processo Civil.”
tem o promissário direito à obtenção da adjudicação contra a massa,
assegurada que está, a prevalência das regras da legislação específica
relativas a essa modalidade de contrato quanto aos negócios celebrados pelo
falido.
A par das normas de proteção dos adquirentes contidas na Lei das
Incorporações e em outras dispersas no ordenamento, o Código de Defesa do
Consumidor – CDC inclui essa modalidade de contrato entre as relações de
consumo, seja porque, em regra, o adquirente encontra-se em posição de
desvantagem técnica e econômica ante a empresa incorporadora, seja porque
classifica o bem imóvel como produto para efeito das relações jurídicas de
consumo, bem como porque considera a construção e a comercialização de
imóveis como atividades caracterizadoras da figura de fornecedor (Lei
8.078/90, art. 3°).
Esses mecanismos de proteção, entretanto, não se mostram suficientes para
salvaguardar os direitos dos adquirentes em caso de desequilíbrio econômico
e financeiro do incorporador, ou, pior, em caso de eventual insolvência do
incorporador, hipóteses em que os direitos dos adquirentes haveriam de ser
contaminados por efeito de outras dívidas do incorporador, que, mesmo
tendo origem em outros negócios não vinculados à incorporação, poderiam
comprometer o terreno e as acessões, levando muitas vezes os adquirentes a
perder todas as economias que tiverem entregue ao incorporador.
De fato, embora cada incorporação tenha seu traço característico e seu
orçamento específico, e muito embora suas receitas próprias possam ser
suficientes para levar a cabo a incorporação independente da atividade geral
da empresa incorporadora, o certo é que elementos estranhos podem
interferir na estruturação e no desenvolvimento físico e financeiro de cada um
dos empreendimentos do incorporador, podendo levá-los ao desequilíbrio e à
frustração da finalidade social e econômica do contrato.
Na ausência de mecanismos especiais de proteção patrimonial, os riscos dos
credores da incorporação, notadamente o risco dos adquirentes, são
incalculáveis.
Com efeito, o acervo de cada uma das incorporações imobiliárias
empreendidas por determinado incorporador integra seu patrimônio geral e,
assim sendo, os bens e direitos que o integram constituem garantia geral dos
credores, podendo, portanto, ser submetidos a constrição por qualquer
credor, para pagamento de quaisquer débitos do incorporador, haja ou não
vinculação entre o débito e o empreendimento. Disso resulta que, a despeito
de o memorial fixar os limites orçamentários de cada incorporação, a verdade
é que, não havendo afetação patrimonial de cada um desses acervos, os bens
e direitos integrantes de cada um deles podem ser excutidos para satisfação
de créditos em geral, contra o incorporador, ou para cumprimento de
obrigações estranhas à incorporação respectiva; é que esses bens, direitos e
obrigações encontram-se agregados num único patrimônio sem qualquer
destaque ou afetação e, portanto, podem vir a responder por obrigações
vinculadas a qualquer das incorporações de que seja titular a empresa
incorporadora.
Além disso, em caso de falência da incorporadora, os bens que integram o
acervo de todas as suas incorporações devem ser arrecadados à massa, daí
surgindo dúvidas e incertezas quanto à plena eficácia das disposições dos
incisos III e VI do art. 43 da Lei 4.591/64.
De fato, o inciso III do art. 43 prevê que, em caso de falência do
incorporador, os adquirentes serão considerados credores privilegiados da
massa, enquanto que o inciso VI admite a substituição do incorporador, em
caso de atraso ou paralisação da obra.
Se a incorporação tiver sido pactuada mediante compra e venda da fração
ideal do terreno (pela qual cada adquirente se torne proprietário das frações
ideais, mediante escritura de compra e venda registrada) e celebração de
contrato de construção do edifício, a solução, caso sobrevenha a falência do
incorporador, há de ser relativamente simples, pois o terreno já não estará
integrando o patrimônio deste e, portanto, não será arrecadado, enquanto
que, no que tange à obra, o contrato de construção poderá ser distratado,
nos termos do art. 43 da Lei de Falências, que permite ao síndico prosseguir
ou não a execução dos contratos em curso, conforme seja conveniente para a
massa ou não.
Essa forma jurídica de contratação da incorporação, entretanto, é rara, sendo
mais comum a contratação de promessa de compra e venda de unidade
imobiliária (fração ideal + acessões) como “coisa futura”. Nesse caso, o
incorporador é titular do domínio sobre o imóvel e, em contrapartida, é
sujeito passivo de obrigação de construir e entregar a unidade, bem como da
obrigação de outorgar o contrato definitivo de compra e venda. Muito embora
aqui, também, se aplique a regra do art. 43 da Lei de Falências, pela qual o
Síndico da Massa dirá da conveniência ou não do cumprimento desse contrato
de promessa de compra e venda, será necessária autorização judicial para
transmissão do domínio para o adquirente. Nesses casos, é comum
apresentarem-se duas situações: a primeira, contemplando contratos de
promessa de venda registrados no Registro de Imóveis e a segunda
contemplando contratos de promessa sem registro. No primeiro caso,
estando os contratos registrados, a autorização poderá ser deferida à vista de
documento comprobatório do registro e da comprovação do pagamento do
preço; em regra, esses pedidos de autorização não encontram obstáculos,
desde que comprovados o pagamento e o registro do contrato e, bem assim,
desde que atendidos os requisitos e procedimentos estabelecidos pela Lei de
Falências para proteção da comunidade dos credores, em geral, notadamente
no que tange à precedência dos registros imobiliários. Entretanto, poderão
ocorrer dificuldades nos casos em que os adquirentes tenham deixado de
registrar seus contratos de aquisição de unidades, pois, enquanto na primeira
hipótese (contrato registrado no Registro de Imóveis) o adquirente é
investido de direito real sobre o imóvel, na outra hipótese (contrato não
registrado no Registro de Imóveis), o direito do adquirente tem natureza
meramente obrigacional, e é na configuração de direito de crédito que deve
ser habilitado no Juízo onde se processa a falência, ali passando a concorrer
com os demais créditos, de acordo com o regime de preferências estabelecido
em lei.5 Qualquer que seja a situação, entretanto, cada caso deverá ser
examinado de per si, circunstância que poderá postergar a solução e,
obviamente, levar os adquirentes a sofrer prejuízos elevados e irreparáveis.
O que é certo é que, em regra, sobrevindo a falência do incorporador, o
terreno e as acessões, quando integrantes do patrimônio do incorporador,
sem qualquer destaque, poderão ser arrecadadas, e os adquirentes só
haverão de satisfazer seus direitos após a liquidação do ativo da massa, no
final do processamento da falência, que se prolonga por muitos anos, ou
mediante alvará nas hipóteses cabíveis.
A inclusão dos direitos creditórios dos adquirentes na categoria dos créditos
“privilegiados”, como consta do art. 43 da Lei nº 4.591/64, não chega a
produzir resultado na prática, pois as preferências dos créditos trabalhistas e
fiscais, entre outros, deslocam os créditos dos adquirentes (de privilégio
geral) para os últimos lugares na ordem legal de preferências.
Em suma, embora a construção seja, em regra, erigida parcialmente com
recursos aportados pelos adquirentes, estes não têm nenhuma preferência
sobre o acervo da incorporação, nem mesmo um eventual direito de
indenização ou retenção por benfeitorias. Ou seja, os adquirentes contribuem
para a construção de um ativo que, em caso de falência, será apropriado
preferencialmente por outros credores, muitos dos quais não deram nenhuma
contribuição para a construção daquelas acessões; os adquirentes só poderão
5 A solução é coerente com a lógica do sistema, mas outras soluções podem ser encontradas, à vista das peculiaridades de cada caso concreto, em atenção ao princípio da boa-fé e considerando a densidade social do contrato de incorporação.
apropriar-se da sobra, depois de satisfeitos os credores preferenciais, mesmo
estranhos à obra.
Risco idêntico sofre o financiador da incorporação, pois os recursos que tiver
aportado para a obra, convertidos em pedra e cal, acabarão sendo
submetidos a concurso, para rateio entre todos os credores cujas preferências
antecederem à do financiador, mesmo aqueles credores que não tenham
contribuído para a execução das acessões levantadas no terreno.
Em síntese, em ambos os casos, outros credores, não vinculados à obra, mas
que têm preferência sobre os direitos dos adquirentes, se apropriarão da
construção realizada em parte com recursos destes últimos e do financiador
da obra, deixando-lhes a sobra, se houver.
Essas modalidades de risco, além de inúmeros outros riscos próprios da
atividade da incorporação, surgem com freqüência em razão do aumento dos
riscos a que está sujeita a atividade empresarial em geral.
Efetivamente, não obstante o sistema de proteção instituído pela Lei das
Incorporações e acrescidas pelo Código de Defesa do Consumidor,
notadamente o sistema de proteção contratual, o ordenamento não oferecia
aos adquirentes mecanismos que evitassem ou delimitassem seus riscos
patrimoniais.
De fato, a execução de um edifício de grande porte prolonga-se por dois, três
anos ou mais, e nesse período os adquirentes sujeitam-se a riscos
patrimoniais, sejam decorrentes de inadequada aplicação dos recursos que
tiverem entregue ao incorporador, sejam decorrentes de eventual
desequilíbrio do patrimônio geral do incorporador.
A omissão do sistema legislativo, como observa Caio Mário da Silva Pereira,
poderia dar causa a “mau emprego dos recursos de um prédio em outro”,
causando grandes prejuízos por causa de “mau emprego das verbas, quando
o dinheiro dos adquirentes de unidades em um edifício é desviado para outro
construído pelo mesmo profissional e, quando se informam aqueles, lá se
foram os recursos e vem a falta de numerário.”6
Tal é a complexidade da atividade e tais os riscos dos “parceiros” do
incorporador, que o Professor Caio Mário da Silva Pereira, em 1960, ao tratar
do assunto em seu Propriedade Horizontal, no qual apresentara anteprojeto
que veio a ser convertido na Lei n° 4.591/64, já advertia que a lei deveria
prever o credenciamento de um órgão fiscalizador encarregado de
acompanhar a execução das incorporações e velar pelo cumprimento dos
encargos imputáveis ao incorporador; nesse mister, seu anteprojeto
contemplava um registro obrigatório dos incorporadores e um sistema
fiscalizador 7
A proposição, de fato, contribuiria para melhor controle dessa atividade
empresarial, com reflexos benéficos para os adquirentes de modo geral,
embora não afastasse os riscos patrimoniais dos adquirentes, nem
contornasse os efeitos de eventual insolvência do incorporador.
Dada essa realidade, é possível perceber que, a despeito do sistema de
proteção contratual da Lei das Incorporações e do Código de Defesa do
Consumidor, os riscos patrimoniais do adquirente de unidade imobiliária em
construção são de difícil dimensionamento, dada a complexidade própria do
negócio e considerando as dificuldades do adquirente para acompanhar,
controlar e avaliar o desempenho do incorporador e do construtor na
implementação dos serviços da construção. 6 Caio Mário da Silva Pereira, Condomínio e incorporações, Forense, Rio, 3a ed., 1976, p. 319. 7 “Em nosso livro da Propriedade Horizontal já tratáramos do assunto, e sugerimos então que se incumbissem as autoridades administrativas locais desse mister, bem como aos Conselhos Regionais de Engenharia e Arquitetura, dada a proximidade patente entre a atividade do incorporador e a do construtor (às vezes reunidas na mesma pessoa), e ainda pelo fato notório da eficiência e elevação com que se conduzem esses Conselhos. No Anteprojeto que redigimos tivemos a mesma cautela, mas parece que na tramitação legislativa faltou quem tivesse conhecimento especializado da matéria, para imprimir sistema a este ponto tão importante. A Lei n° 4.591, de 16 de dezembro de 1964, não cria um órgão específico de fiscalização.” Condomínio e incorporações, cit., p. 257.
Além disso eventuais litígios decorrentes de financiamento da construção do
edifício poderiam colocar em risco a participação dos adquirentes no negócio.
A adequação do negócio incorporativo à teoria da afetação8
A atividade da incorporação imobiliária é naturalmente vocacionada para a
afetação patrimonial, seja em razão da relativa autonomia de cada
empreendimento, considerado de per si, seja por força da antecipação parcial
de pagamento por parte dos adquirentes.
Observe-se a estrutura do negócio incorporativo, traçada a partir do art. 28
da Lei nº 4.591/64.
O dossiê que forma o Memorial define por completo o objeto de cada negócio
incorporativo e seu programa financeiro, atribuindo identidade a cada um
desses negócios; o Memorial distingue cada incorporação dos demais
empreendimentos, tornando-a única, inconfundível. Ao determinar a fixação
dessa estrutura, pela reunião de elementos de identificação específica de
cada empreendimento, a Lei n° 4.591/64 já conferia condições de autonomia
material a cada incorporação, circunstância que atrai naturalmente a
incorporação para a órbita da teoria da afetação, pois o conteúdo do negócio
incorporativo que o Memorial de Incorporação exprime já terá estabelecido a
caracterização e os limites do patrimônio a afetar, observada a destinação
própria da atividade da incorporação, que é a construção e a entrega das
unidades aos respectivos adquirentes. Efetivamente, o Memorial contém cópia
do projeto de construção e planilhas que descrevem e caracterizam a futura
edificação e as futuras unidades imobiliárias autônomas, bem como
discriminam as frações ideais do terreno a que as unidades haverão de se
vincular; além disso, contém o orçamento, que quantifica o custo total da
obra e discrimina o custo de cada unidade imobiliária, bem como outras peças
8 Dessa matéria cuidamos em nosso trabalho Trust (Renovar, Rio de Janeiro, 2001, pp. 119 e segs).
enumeradas pelo art. 32, tudo isso compondo um conjunto que dá
caracterização própria a cada negócio de incorporação. Cada incorporação
tem potencial de receita própria, decorrente dos créditos oriundos da
alienação das unidades do empreendimento ou, eventualmente, de recursos
provenientes de financiamento específico para a obra, e essas fontes, em
princípio, são suficientes para conferir autonomia financeira a cada negócio
incorporativo, pois o volume potencial das receitas é, naturalmente, superior
ao custo da obra.
A incorporação, assim, tem estrutura econômico-financeira capaz de propiciar
a realização do negócio com suas próprias forças, ou seja, com recursos
financeiros gerados por si mesma, independente de outras fontes de receita.
Ora, de acordo com a teoria da afetação, admite-se a segregação patrimonial
ou a qualificação de determinado patrimônio segundo encargos que se
impõem a certos bens para efeito de vinculá-los a determinada finalidade.
Segundo essa teoria, é possível a existência de várias massas patrimoniais
sob titularidade de um mesmo sujeito, constituídas com a precípua finalidade
de se alcançar determinados fins jurídicos ou para viabilizar determinada
exploração econômica. Para esse fim, não é necessário que o bem objeto da
afetação seja retirado do patrimônio do titular, mas, sim, que seja destacado
para atender a determinada finalidade, sempre mediante expressa
autorização legal, estando compreendidos nessa teoria o bem de família, o
dote, as rendas vitalícias, as substituições etc. Implica a afetação que os
credores vinculados ao patrimônio especial têm ação somente sobre bens
dele integrantes, com exclusão dos outros bens do patrimônio do devedor, ou
significa que esses credores têm preferência sobre os bens afetados.
Patrimônios de afetação são incomunicáveis por natureza. A
incomunicabilidade é seu traço característico fundamental, sua razão de
existir, pois, para cumprir sua finalidade de proteção de um bem socialmente
relevante ou para assegurar a consecução de determinada atividade
econômica, é indispensável que os bens afetados fiquem afastados dos
efeitos de negócios estranhos ao objeto da afetação. Sem a
incomunicabilidade não é possível a realização da finalidade social e
econômica definida para o bem. É o caso, por exemplo, do imóvel destinado a
moradia da família, que só responde pelas dívidas e obrigações vinculadas ao
imóvel, entre elas o imposto predial, as quotas de condomínio, os salários dos
empregados da casa e as contribuições previdenciárias relativos a esses
empregados, entre outras.
Não obstante a incomunicabilidade, a constituição desses patrimônios
especiais não resulta em desmembramento do patrimônio geral: este
permanece uno, abrangendo todo o conjunto de direitos e obrigações do
sujeito, pois, como assinala Caio Mário da Silva Pereira, “ainda que se procure
destacar mais de um acervo ativo-passivo de valores jurídicos, sempre há de
exprimir a noção de patrimônio a idéia de conjunto, de reunião, e esta,
segundo a própria razão natural, é una.” Assim, não obstante haja casos em
que a origem ou a destinação de determinados bens e direitos justifique a
criação de acervos especiais, ainda assim não se tem pluralidade ou
divisibilidade de patrimônio, e “não obstante a separação de tais acervos ou
massas, o patrimônio do indivíduo há de ser tratado como unidade, em razão
da unidade subjetiva das relações jurídicas.” Vinculado a um fim especial, o
acervo afetado é alvo de tratamento destacado no patrimônio geral, sem que
se crie uma personalidade: “Os bens, objeto da afetação, a nosso ver, acham-
se, sem dúvida, vinculados ao fim, encontram-se gravados de encargo, ou
são objeto de restrição. Assim entendendo, aprovamos a disposição contida
no Projeto de novo Código Civil, que autoriza separar do patrimônio da
pessoa um conjunto de bens ou direitos vinculados a um fim determinado,
seja por mandamento legal, seja por destinação do titular. Separados do
patrimônio, e afetados a um fim, são tratados como bens independentes do
patrimônio geral do indivíduo. A afetação, porém, implicará composição de
um patrimônio sem se verificar a criação de uma personalidade, como se dá
com as fundações. Caso contrário, eles se prendem ao fim, porém continuam
encravados no patrimônio do sujeito. Não há, pois, razão para romper com a
concepção tradicional da unidade do patrimônio, com a qual se concilia a
idéia de poderem existir, no patrimônio, massas de bens objetivamente
considerados: bens dotais, bens de ausentes, bens da herança etc.” 9
O patrimônio de afetação é, assim, uma universalidade de direitos e
obrigações destinada ao cumprimento de determinada função, que opera
integrada ao patrimônio geral.
Organizado para determinado fim, esse complexo de bens, direitos e
obrigações é dotado de autonomia funcional para alcançar esse fim, pois,
como observa Messineo, o conceito de patrimônio separado “tem um certo
nexo com o conceito de universalidade e com o problema da responsabilidade
limitada (...) e sobre ele incidem direitos e obrigações autônomas.”10 Assim,
dentro do patrimônio geral do sujeito coexistiriam duas ou mais massas
patrimoniais que, embora incomunicáveis, podem estar relacionadas por laços
de interdependência, cujos limites e intensidade hão de ser determinados pela
natureza da função a que estiver destinada a massa patrimonial especial,
preservando-se sempre as condições necessárias à consecução do objetivo da
afetação.
A afetação pode corporificar-se de formas distintas, conforme a função do
acervo afetado e em atenção à espécie de negócio em que venha a ser
aplicada. No caso dos fundos de investimento, por exemplo, a sociedade
administradora adquire a propriedade dos bens e direitos que constituirão o
acervo da carteira de investimentos, mas na modalidade de “propriedade
fiduciária”, em que, embora figure como proprietária, sua titularidade é
apenas nominal, pois os subscritores das quotas do fundo é que são os
titulares do conteúdo econômico daqueles bens e direitos; a sociedade 9 Instituições de Direito Civil, Forense, Rio, 17a ed., 1995, vol. I, pp. 240 e 248. 10 Manual de derecho civil y comercial, Ediciones Jurídicas Europa-América, Buenos Aires, 1971, v. II, p. 265.
administradora torna-se proprietária desses bens e direitos apenas para
administrá-los, jamais para tirar proveito de sua exploração econômica, de
modo que o resultado positivo líquido dessa exploração é destinada aos
subscritores. Já na incorporação imobiliária o incorporador adquire o terreno
para si próprio, é o beneficiário da exploração econômica do negócio; neste
caso, a função da afetação é a consecução da incorporação, com a conclusão
da obra e entrega das unidades aos respectivos adquirentes; na medida em
que o incorporador contrate a venda de coisa futura, a “preço fechado”, sua
obrigação é de resultado e, portanto, responde pela execução da obra com
seu patrimônio geral; de outra parte, o lucro apurado no negócio da
incorporação é dele e, portanto, uma vez liquidado o patrimônio de afetação,
deve ser apropriado no patrimônio geral do incorporador; assim, caso o
produto da venda das unidades de determinada incorporação não seja
suficiente para levá-la a cabo, o incorporador terá que extrair recursos do seu
patrimônio geral e destiná-los à conclusão da incorporação e, de outra parte,
caso haja resultado positivo na incorporação, este será levado para o
patrimônio geral. Em ambos os casos – fundo de investimento e incorporação
imobiliária – sobressai com clareza o contorno da autonomia funcional do
acervo patrimonial envolvido, mas a interdependência entre as massas
patrimoniais geral e especial ressalta com toda nitidez no negócio da
incorporação imobiliária.
As lições de Caio Mário e de Messineo permitem apreender claramente a
configuração dessa espécie de patrimônio a que se atribui destinação
especial. A autonomia funcional do acervo ao qual se atribui uma destinação
específica explica a articulação entre os elementos de um mesmo patrimônio,
pois os bens que integram o patrimônio de afetação, como adverte Caio
Mário, “continuam encravados no patrimônio do sujeito”. Vale dizer: o
patrimônio de afetação não é um patrimônio dissociado do patrimônio geral
do sujeito, mas permanece a ele articulado, nele operando destacadamente, e
esse destaque é feito para que possa tal acervo cumprir determinada função,
daí porque se fala que sua autonomia é funcional, não plena. A esses
fundamentos deve-se dar redobrada atenção quando da interpretação dos
textos legislativos que disciplinam a constituição de patrimônios de afetação.
O advento da proteção patrimonial dos adquirentes – Com base nesses
pressupostos, o art. 53 da Lei n° 10.931/2004 veio suprir a importante
lacuna, assegurando aos adquirentes a proteção patrimonial que faltava.
A nova lei resulta do Projeto de Lei da Câmara n° 2.109/99, que reproduz
anteprojeto de nossa lavra aprovado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros,
tendo sido, posteriormente, incorporado ao Projeto de Lei do Executivo n°
3.065/2004, que veio a ser convertido na Lei n° 10.931/2004; o art. 53 dessa
lei acrescenta à Lei 4.591/64 os arts. 31A a 31F, dispondo sobre o modo de
constituição da afetação do acervo das incorporações, os mecanismos de
controle e os procedimentos em caso de insolvência da empresa
incorporadora.
O art. 31A estabelece a destinação do acervo de cada incorporação
imobiliária, ao permitir que tal acervo constitua um “patrimônio de afetação,
destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das
unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes.”
Dada essa qualificação, os bens, direitos e obrigações vinculados à
incorporação afetada passam a formar um núcleo patrimonial com autonomia
funcional, que só responde pelas suas próprias dívidas e obrigações. Uma
Comissão de Representantes dos adquirentes exerce controle sobre esse
patrimônio separado, inclusive mediante análise trimestral do seu balanço
específico e está legitimada para, em caso de falência ou recuperação da
empresa incorporadora, assumir a administração do empreendimento e dar
prosseguimento à obra, independente de intervenção judicial e com
autonomia em relação ao processo de falência.
Essa autonomia é ratificada pela recente Lei n° 11.101/2005, que
regulamenta a Recuperação da Sociedade Empresária e do Empresário, ao
estabelecer, no inciso IX do art. 119, que as atividades relacionadas a
patrimônios de afetação prosseguirão independente do processo de falência
até que cumpram sua finalidade.
III
O regime jurídico instituído pelos arts. 31A a 31F da Lei 4.591/64 –
De acordo com as novas normas legais, a afetação se efetiva mediante
“termo de afetação”, que será averbado no Registro de Imóveis.
Uma vez afetado, o acervo da incorporação torna-se incomunicável, passando
a responder somente pelas suas próprias dívidas e obrigações.
Contabilidade separada – Cada patrimônio de afetação tem ativo e passivo
próprios. A lei exige que o incorporador mantenha contabilidade separada
para cada incorporação afetada, sem que isso implique exclusão do acervo
afetado do patrimônio geral do incorporador, nem limitação da sua
responsabilidade pela incorporação, de modo que ele é que é o responsável
pela obtenção dos recursos para conclusão da obra e entrega das unidades.
Direito subjetivo do incorporador e restrições ao exercício dos seus
poderes – A afetação não atinge o direito subjetivo do incorporador, que,
sendo titular do terreno e das acessões, continua investido dos poderes de
livre disponibilidade dos bens integrantes da incorporação. Sendo, entretanto,
um encargo que vincula esses bens a uma determinada destinação (conclusão
da obra e entrega das unidades aos adquirentes), a afetação condiciona o
exercício dos poderes do titular da incorporação, impedindo que ele perpetre
atos de desvio de destinação. Por isso mesmo, os parágrafos 3° ao 8° do art.
31A autorizam o incorporador a ceder os créditos oriundos da comercialização
das unidades, seja em termos plenos ou fiduciários, bem como a constituir
garantias reais sobre os bens e direitos da incorporação. Mas, coerentemente
com o regime de vinculação de receitas visando a consecução da
incorporação, esses dispositivos deixam claro que (i) a constituição de
garantias reais só é admitida em operação de crédito cujo produto seja
integralmente destinado à realização da incorporação, (ii) o produto da
cessão de créditos, plena ou fiduciária, passa a integrar o patrimônio de
afetação. Pode o incorporador, entretanto, apropriar-se “dos recursos
financeiros que excederem a importância necessária à conclusão da obra (art.
44), considerando-se os valores a receber até sua conclusão e, bem assim, os
recursos necessários à quitação de financiamento para a construção, se
houver” (§ 8° do art. 31A).
O incorporador tem, assim, assegurado seu direito subjetivo de titular do
negócio, mas a lei lhe impõe determinadas obrigações correspectivas, e, a
despeito de poder ceder até mesmo a totalidade dos créditos oriundos da
comercialização, ele é obrigado a “preservar os recursos necessários à
conclusão da obra”, “manter apartados os bens e direitos objeto de cada
incorporação”, manter e movimentar os recursos financeiros em conta de
depósito específica para a incorporação afetada, manter contabilidade
separada e fornecer à Comissão de Representantes, trimestralmente,
balancetes e demonstrativos do estado da obra (art. 31D).
Controle e fiscalização – O controle e a fiscalização do desenvolvimento da
incorporação afetada será feito pela Comissão de Representantes dos
adquirentes, a partir dos relatórios trimestrais que receberá do incorporador,
bem como pela instituição financiadora do empreendimento.
Extinção da afetação – Uma vez concluída a obra, entregues as unidades
aos adquirentes e paga a dívida decorrente do financiamento, se houver,
extingue-se a afetação. Dá-se também a extinção da afetação em duas outras
hipóteses, a saber: (i) em caso de denúncia da incorporação, depois de
restituídas as quantias aos adquirentes, e (ii) em caso de liquidação da
incorporação, deliberada pela assembléia geral.
Procedimentos em caso de falência – Se, no curso da construção, ocorrer
a falência ou recuperação da empresa incorporadora, os efeitos da insolvência
não atingem o patrimônio de afetação, de modo que os bens, direitos e
obrigações que o compõem não poderão ser arrecadados à massa.
Nesse caso, nos 60 dias que se seguirem à decretação da quebra da empresa
incorporadora, os adquirentes realizarão assembléia geral na qual firmarão o
instrumento de instituição do condomínio da construção e deliberarão sobre o
destino do empreendimento.
Duas opções se põem diante dos adquirentes: ou prosseguem a obra,
levando-a a cabo, ou liquidam o acervo da incorporação.
Importante salientar que a administração do negócio será exercida pela
Comissão de Representantes dos adquirentes, e não pelo Administrador da
falência ou da recuperação da empresa.
Prosseguimento da obra – Caso resolvam prosseguir a obra, a Comissão
de Representantes deve promover a venda dos apartamentos que a
incorporadora ainda não tiver vendido, mediante leilão extrajudicial; o
produto da venda deve ser destinado ao pagamento das dívidas vinculadas à
incorporação-patrimônio-de-afetação, de acordo com a ordem legal de
preferências; a eventual sobra deve ser arrecadada à massa falida. A seguir, a
comissão de representantes passará a receber as prestações devidas pelos
adquirentes, constantes dos contratos de aquisição das unidades, e a aplicar
as respectivas importâncias na construção; se a receita for superior ao
montante das obrigações do patrimônio de afetação, a diferença será
arrecadada à massa; se, entretanto, a receita for inferior e tiverem sido feitos
aportes em valor superior ao preço convencionado nos contratos de
aquisição, a diferença será habilitada como crédito dos adquirentes.
Liquidação do patrimônio – Já se a assembléia dos adquirentes deliberar
pela liquidação, a comissão de representantes promoverá a venda do acervo
da incorporação em leilão extrajudicial, pagará os créditos também segundo a
ordem legal de preferências, restituirá aos adquirentes as quantias que
tiverem pago e arrecadará o saldo, se houver, à massa; se a restituição não
for integral, o valor que faltar para completá-la será habilitado como crédito
dos adquirentes.
Outorga das escrituras “definitivas” – Além da disciplina específica da
afetação, a nova lei cuidou de simplificar procedimentos visando facilitar ao
máximo a outorga dos direitos aos adquirentes. Nesse sentido, o § 3° do art.
31F investe a Comissão de Representantes de poderes irrevogáveis para
outorgar aos adquirentes o contrato definitivo a que estiver obrigado o
incorporador, dispensando o procedimento de adjudicação compulsória e,
ainda, livrando os adquirentes do encargo de ir buscar em Juízo, no processo
de falência, alvará para obtenção da escritura “definitiva”.
IV
Nota crítica – Não obstante o grande aperfeiçoamento no sistema de
proteção do adquirente, a nova lei contém algumas distorções que prejudicam
o pleno cumprimento da sua função social.
A mais grave dessas distorções é que a afetação é uma “opção” do
incorporador, e não um mecanismo compulsório de compensação da
vulnerabilidade do adquirente.
Dispõe o art. 31A: “A critério do incorporador, a incorporação poderá ser
submetida ao regime da afetação...”).
Trata-se de caso esdrúxulo, em que é o devedor quem decide se dará ou não
dará garantia do cumprimento de suas obrigações.
Necessidade de compulsoriedade da afetação – O dispositivo precisa
ser modificado para tornar compulsória a afetação patrimonial. Afinal, o que
está em jogo é a vulnerabilidade do adquirente, sobretudo pela antecipação
parcial do pagamento, e não a conveniência do incorporador.
Ora, um dos elementos da incorporação é a captação de recursos do público
e sua aplicação em determinada obra; ao realizar oferta pública de imóveis a
construir o incorporador está lidando com a economia popular; isso já é
suficiente para configurar uma situação merecedora de tutela especial, e um
dos propósitos basilares da afetação é disciplinar essa modalidade de
captação de recursos e preservar o patrimônio formado em conjunto pelo
incorporador, pelos adquirentes e demais credores. Por isso, o acervo de toda
e qualquer incorporação deve ser considerado automaticamente afetado, com
poderes de controle dos adquirentes, por força da própria lei, tal como ocorre
com a afetação da moradia definida pela Lei n° 8.009/90.
Nada justifica que a afetação seja manejada a critério do incorporador, pois a
proteção da economia popular é matéria de interesse público que, a exemplo
do que sucede no âmbito das relações de consumo, decorre do
“reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo”
(Lei n° 8.078/90, art. 4°, I), daí a necessidade de intervenção legislativa
“para compensar eventual desvantagem contratual e garantir a segurança
jurídica em favor do contratante mais fraco, impondo, para tal, regime
jurídico próprio para determinadas atividades.”
Ao deixar a afetação a critério do incorporador, a Lei 10.931/04 concede
vantagem exagerada ao incorporador, agravando ainda mais a
vulnerabilidade dos adquirentes e contrapondo-se ao fundamento axiológico
da norma, expresso na concepção original do anteprojeto do Instituto dos
Advogados Brasileiros e em quatro Projetos de Lei apresentados na Câmara
Federal nesse mesmo sentido, todos eles, unissonamente, caracterizando a
incorporação imobiliária como um patrimônio de afetação por força do
simples registro do Memorial de Incorporação.
V
Em suma, a afetação das incorporações imobiliárias constitui garantia de
incomparável eficácia em favor dos credores vinculados especificamente a
cada negócio incorporativo, beneficiando em especial os adquirentes, na
medida em que lhes assegura a preservação das suas aplicações financeiras e
lhes outorga o direito de assumir a administração do negócio e prosseguir a
obra com autonomia em relação a eventual falência da empresa
incorporadora, prerrogativa essa que veio a ser reafirmada pelo art. 119 da
Lei de Recuperação da Sociedade Empresária e do Empresário (Lei n°
11.101/2005).
Entretanto, a parte inicial do art. 31A desviou-se do fundamento axiológico
que justifica a afetação, deixando de indicá-la como elemento integrante de
toda e qualquer incorporação.
É de se admitir que essa distorção venha a ser suprida na prática do
mercado, pois, na medida em que a afetação é a única garantia que se
mostra efetivamente eficaz para o financiamento da construção, em razão do
risco de aplicação do Enunciado n° 308 da Súmula do Superior Tribunal de
Justiça,11 certamente os bancos passarão a exigir a constituição de patrimônio
de afetação como requisito para concessão de financiamento para construção
nas incorporações imobiliárias.
11 Enunciado n° 308 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.”
De outra parte, é de se admitir que, em certas circunstâncias, a
jurisprudência possa suprir a distorção, mediante aplicação dos princípios da
boa-fé objetiva e da função social do contrato e considerando o interesse
público inerente à proteção da economia popular.
Entretanto, em nome da estabilidade social, é de todo conveniente que a
correção venha por processo legislativo que torne compulsória a aplicação da
afetação a todas as incorporações, única forma de, na hipótese, assegurar a
plena realização da função social do contrato e da propriedade.
Segundo a nova legislação, o acervo relativo à incorporação (terreno e
acessões, bem como os demais bens, direitos e obrigações a ela vinculados) é
destacado do patrimônio geral do incorporador, passando a constituir um
patrimônio autônomo, destinado a satisfazer exclusivamente os direitos dos
adquirentes e dos demais credores vinculados à incorporação, ficando, assim,
cada conjunto de adquirentes imune aos efeitos de eventuais desequilíbrios
gerados por outros negócios do incorporador. A afetação cumpre função
dúplice de proteção do adquirente e de viabilização econômico-financeira da
incorporação, e nesse mister é instrumento de realização do escopo
contratual; quanto ao primeiro aspecto, põe nas mãos dos adquirentes o
controle do equilíbrio contratual, ao lhes conferir poderes para fiscalizar e
controlar toda a atividade do incorporador e, até, promover sua substituição
em caso de atraso injustificado da obra ou insolvência do incorporador; de
outra parte, a afetação propicia melhor organização da incorporação e dá
meios aos adquirentes de prosseguir a obra sem sofrer os efeitos dos
desequilíbrios do incorporador.
A afetação põe a incorporação imobiliária em sintonia com o conceito
contemporâneo do direito de propriedade, enfatizando a relativização desse
direito e dando efetividade à sua função social. A afetação não desqualifica o
direito subjetivo do proprietário-incorporador, mas define para ele uma
função social, ao vincular o acervo da incorporação à sua destinação peculiar,
que é a construção da edificação e a constituição de direito de propriedade
em nome de cada um dos adquirentes de unidades autônomas. Em busca da
realização dessa função social, a afetação atribui ao direito de propriedade do
incorporador um poder-dever, pelo qual o incorporador tem que conjugar seu
interesse de proprietário com o interesse social dos adquirentes de unidades.
Especialmente relevante como instrumento de proteção do adquirente, é a
afetação do acervo das incorporações imobiliárias, já referida, com a
específica destinação de consecução da incorporação e apropriação das
unidades por parte dos adquirentes.