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1 2 3 4 Última atualização: >>>15/2/2007 21:41:20. Veja o Volume 1 Veja o Volume 2 Veja o Volume 3 Veja o Volume 4 Contos Literários e Jurídicos Contos do Final do Milênio VOLUME 1 (1 – 45) JOÃO PROTÁSIO FARIAS DOMINGUES DE VARGAS UFRGS Versão 2, de 09/11/2000 Resumo Em quatro volumes, os 107 contos, escritos no final do inverno e início da primavera do ano 2000, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, apresentam uma variada temática de abordagem, com personagens inventados em um cotidiano ora reflexivo, ora bastante cinético, movimentados em cenários variados de enredos bastante simples. O autor se vale da ironia na maioria dos enfoques, sem descurar da crítica, inclusive de cunho político, social, econômico, ideológico, filosófico, religioso, enfim, jurídico, de espraiada modalização. A ordem dos contos é a ordem de sua criação, inclusive na cronologia posta. O volume 1, com 45 contos, vai do conto 1, “Mente no Céu, Olho no Chão”, ao conto 45, “Princípios e Juizados Obrigatórios”.

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Contos Literários e

Jurídicos

Contos doFinal doMilênio

VOLUME 1 (1 – 45)

JOÃO PROTÁSIO FARIAS DOMINGUESDE VARGASUFRGS

Versão 2, de 09/11/2000

Resumo

Em quatro volumes, os 107 contos, escritos no final do invernoe início da primavera do ano 2000, em Porto Alegre, Rio Grande doSul, Brasil, apresentam uma variada temática de abordagem, compersonagens inventados em um cotidiano ora reflexivo, ora bastantecinético, movimentados em cenários variados de enredos bastantesimples. O autor se vale da ironia na maioria dos enfoques, semdescurar da crítica, inclusive de cunho político, social, econômico,ideológico, filosófico, religioso, enfim, jurídico, de espraiadamodalização. A ordem dos contos é a ordem de sua criação,inclusive na cronologia posta.

O volume 1, com 45 contos, vai do conto 1, “Mente no Céu,Olho no Chão”, ao conto 45, “Princípios e Juizados Obrigatórios”.

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Modo de Citação

VARGAS, João Protásio Farias Domingues de. Contos do Finaldo Milênio. Vol. 1/4. Porto Alegre: digitado, 2000.

Apresentação .

Os contos foram escritos entre 19/06/2000 e 02/10/2000.Metodologia de escrita: construção à medida que digita; táticaprincipal: escrever muito para aperfeiçoar o estilo; estratégia geral:ter acúmulo de texto que possibilite uma seleção para divulgação.Estratégia específica: escrever de modo que os Contos possamevoluir, naturalmente, para escritos maiores, de gênero diverso: oromance e a novela. Limite inicial da tática: 100 Contos. O autormistura trechos de fatos observados na vida observada no cotidianocom emendas da imaginação, de modo que nada do que estáescrito represente realidades postas. Eles não têm essa vocação.Por isso que tudo quanto possa ser semelhante a fatos da vidaconstitui mera coincidência e não pode ser levado a sério. Trata-sede mera ficção e, como tal, devem os escritos ser encarados. Podemos chamar de contos-momento, construído naespontaneidade da inspiração. Alguns são longos e outros muitocurtos, quase beirando à crônica; outros tangenciam o ensaio, massem nunca perder o ar ficcional. Todas as personagens, são fictíciase, na realidade de cada conto, adquirem a vida que lhes coube pelaimaginação do autor.

Sumário

RESUMO. MODO DE CITAÇÃO. APRESENTAÇÃO. SUMÁRIO.

CONTO 1 - MENTE NO CÉU, OLHO NO CHÃO; CONTO 2 - UM PASSEIO NOTURNO;CONTO 3 - UMA AULA SOBRE SOCIEDADES; CONTO 4 - POSTURA DA SEMIÓTICA;CONTO 5 - AS MOÇAS DA VOLUNTA; CONTO 6 - A VELHA REPÚBLICA; CONTO 7 -

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O MUNDO DOS POKÉMONS; CONTO 8 - UMA CONSULTA DE ESCRITÓRIO; CONTO 9- AUDIÊNCIA COM UM VEREADOR; CONTO 10 - UMA BREVE CONVERSA; CONTO11 - A AGENDA E O POETA; CONTO 12 - A REUNIÃO MARCADA; CONTO 13 -TELEFONEMAS MUDOS; CONTO 14 - A SORTE DAS PROVAS; CONTO 15 - VOCÊTEM UM PLANO?; CONTO 16 - VERDADE - PROVA - FALSIDADE; CONTO 17 -FAZENDO UMA CANOA; CONTO 18 - UM TEMPO DE LEITURA; CONTO 19 - ANTENAPARANÓICA; CONTO 20 - A IMORALIDADE DA MORAL; CONTO 21 - FASES ECRISES NA VIDA DOS CASAIS; CONTO 22 - GAYS, LÉSBICAS TRAVESTIS ETRANSGÊNEROS; CONTO 23 - A ÉTICA DA MORALIDADE; CONTO 24 - ADISTÂNCIA REGULAMENTAR; CONTO 25 - DE ESCALA A CONEXÃO EM VÔOSDOMÉSTICOS; CONTO 26 - PENSAR E AGIR; CONTO 27 - CARIOCA DO INTERIOR;CONTO 28 - AS DESPEDIDAS NUNCA SÃO IGUAIS; CONTO 29 - TELEFONE MÓVEL;CONTO 30 - FACILIDADE E COMPLICAÇÃO; CONTO 31 - INTUIÇÕES QUE VALEM;CONTO 32 - JACARÉ E RATINHA NOS MILHOS ATRÁS DA PORTA; CONTO 33 -SONO E SONHO; CONTO 34 - MADRUGAR É PRECISO; CONTO 35 - ÓI O TREM;CONTO 36 - ESCRITA E VOCAÇÃO; CONTO 37 - GARANTINDO O PÔR-DO-SOL;CONTO 38 - ESQUIZOFRENIA EUFI Y EUDI; CONTO 39 - DIMENSÕES FÍSICAS DOAMOR; CONTO 40 - CAFÉ NO CENTRO; CONTO 41 - TÁTICA E ESTRATÉGIA; CONTO42 - BALADA PARA UMA CONTO JURÍDICA; CONTO 43 - SONETO À POLÍTICA DODIREITO; CONTO 44 - COMO FICOU BELO O JARDIM; CONTO 45 - PRINCÍPIOS EJUIZADOS OBRIGATÓRIOS;.

ÍNDICE ANALÍTICO.

Conto 1, de 19/06/2000Mente no céu, olho no chãoJOÃO PROTÁSIO FARIAS DOMINGUES DE VARGAS

Caminhava pela calçada sul da Praça Dom Feliciano, junto aoterminal de ônibus, desviando das pessoas em filas, nas diversasparadas de ônibus, sem perder o rastro do minguado sol daqueleinício de tarde. Desceu os degraus e parou no primeiro canteirointerno, enquanto pensava o que dizer. Ainda que pouco, algunsraios passavam dentre as árvores robustas do local. De onde olhava,via o terminal norte, que conduz ao leste da cidade. Perscrutava olado do Centro, olhando o rosto dos transeuntes e seus modosapressados de andar; por todo lado havia gente, entrando e saindo,da Praça, dos ônibus e das lotações. Do outro lado daIndependência, novos coletivos vinham e ganhavam à direita, emdireção ao terminal da Rui Barbosa, pela Pinto Bandeira; alguns,abaixo, ganhavam a Alberto Bins, pela esquerda. Enquanto via tudoisso, em frenético movimento, ouvia as análises do colega, sobreum complicado problema de ciências sociais. Algumas palavrasbatiam-lhe à mente; outras, nem isso; ainda que os ouvidosestivessem atentos, os olhos viam noutras direções, a esmo.

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- Viu só? É isso o que se pode pensar sobre o caso. Tem outrahipótese explicativa?

Era uma pergunta e exigia uma resposta dentro do contexto dasexplicações anteriores. Não lembrava mais do que ouvira. As vozesestavam confusas e o sol, mais escasso ainda. Estava com fome enão tinha uma resposta pronta; pior, nem pensara no caso. Pensouno que dizer, mas desistiu, falando simplesmente o que veio àcabeça.

- Questão complexa. Precisamos pesquisar mais. Não tenhoresposta para o caso. O que te parece?

A devolução do problema denunciava de leve o desinteresse nalinha assumida pela explanação. A resposta veio de imediato.

- Precisamos pensar mais sobre o que virá pela frente e deixarum pouco o passado de fora.

Ficou atento com a resposta e, de pronto, contestou:- Não. O passado é importante para entender o presente e serve

de ferramenta para construir as hipóteses de futuro. Nada podemosfazer no depois, sem saber o antes.

Parecia filosófica a colocação, mas, para ele, tinha cunhodemasiado prático. A resposta era clara e buscava enraizar-se nopassado, ainda que por um pouco mais; requeria maior análise.

Olhava o chão. Lembrou-se de uma frase dita, anos atrás, a umlivreiro que lhe chamara a atenção mencionando que uma pessoatão importante não poderia ficar tanto tempo olhando para o chão,que deveria erguer a cabeça. Havia concordado com o homem erespondido assim: vejo o céu enquanto olho para o chão. Dava osignificado de que enxergava longe enquanto olhava perto. Alembrança era oportuna um pouco, pois afirmava que estava certoao olhar o chão, enquanto contemplava um horizonte não incerto edistante, que lhe passava à mente, projetando algumas açõesimaginárias para os próximos dias.

A grama estava mal cuidada aos seus pés. Os sapatos, pretos ebaixos, contrastavam o verde escuro e meio amarelado, acarpetandoo chão. Seguiu uma rasteira de formigas carregando recortes defolhas, ordenadas em fila, ao longo de um trilha que descia aencosta dos degraus, perto dali. Seguia seus movimentos mesmosem mover a cabeça, com os ouvidos sempre atentos à nova ordemde fala.

Estava fugindo do contexto, mas para melhor apreendê-lo;instalando o caos para instituir uma nova ordem nas idéias. Pareciabuscar respostas nas faces ambulantes que entravam e saiam detodos os lados, pertos ou longe, sem demonstrar percebê-los ali,parados, falantes e ouvintes, empenhados em um complexo assuntode ciências sociais. Poderia nada dizer aos passantes, mas qualquerum poderia tomar para si a mensagem do debate quase gratuito queentabulavam naquela tarde iniciante.

- Está frio. Vou-me embora.- Eu também. Até mais.Ganharam a ala norte da praça e, em sentidos opostos, depois de

alguns passos, misturaram-se com as demais faces e corposandantes, de um lado para outro. A grama, as formigas e os fracosraios de sol permaneceram no mesmo degrau; agradecidos, quemsabe, pela ausência das vozes, das sombras e dos olharescircundantes; quem sabe, zombantes dos falseados problemas

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sociais que debatiam.A independência estava lotada e tinha a impressão de estar

caminhando na contramão, mesmo em via dupla.

Conto 2, de 20/06/2000Um passeio noturnoJOÃO PROTÁSIO FARIAS DOMINGUES DE VARGAS

O telefone feito relógio despertou às 6h00min. da madrugada.Todos os dias era a mesma novela: o relógio despertava, mas eleficava embromando na cama e não levantava, ou levantava muitotarde. Naquela quarta-feira foi particularmente diferente. Estavamuito frio e chovera muito nos dias anteriores. Lembrou do passeioque dera, enquanto olhava a janela e a clareza do dia, já tarde damanhã. Na noite anterior, tinha ido a pé até o Planetário, naIpiranga. De onde saíra, foi uma pernada só. Subiu a CoronelVicente, entrou à esquerda, na Independência; uma quadra depois,ganhou à direita, em frente à Praça do Rosário. À noite, passado dasdezenove horas, era difícil atravessar aquela movimentada Avenida.Driblando os veículos, ganhou o outro lado e fez a dobra referida.Nunca lembro o nome daquela rua que vai terminar em frente aoViaduto que dá na Rodoviária, por cima; mas, não vem ao caso. Oque importa é que teve, novamente, de atravessar outra rua, agorapara dentro da própria Praça. Contornou a enorme escultura posta hámuitos anos na esquina da Vasco Alves e desceu esta,acompanhando, paralelamente, a Protásio Alves. De cima do Túneldava prá ver o prédio da Reitoria. Cruzou por cima do túnel doRosário e desceu a ladeira. Antes de chegar na próxima esquina,atravessou a rua. Um motoqueiro quase o atropelou; antes dechegar no cordão da calçada, quase foi prensado contra um carroestacionado, por um caminhão que, desavisadamente, dava marchaà ré. Costeando as paredes, atravessou a rua seguinte e foi, pelamesma calçada, por uns quatro ou cinco quarteirões, até queresolveu infletir à direita, em direção ao Parque Farroupinha, afamosa Redenção. Na ocasião, até olhou o nome da rua, na placaazul que tem em quase todas as esquinas, mas não chegou aguardar o nome. Andava a passos largos e havia modificado o andar,visando dar realce maior aos músculos de baixo, sentindo os pésbaterem no chão e ouvindo o ruído das batidas.

Quando chegou na Protásio Alves, em frente ao Araújo Viana, orelógio marcava 7h30min. Já estava atrasado; o que fazer? Nada.Melhor, andar; já que escolhera o meio de transporte adequado parao seu interesse do momento. Subindo a avenida, em direção aoBairro, agora com o passo mais largo e concentrado, balançava ocasacão, pelo lado esquerdo, onde havia vários bares malditos;

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casacão, pelo lado esquerdo, onde havia vários bares malditos;aqueles que foram famosos na década de oitenta, pela concentraçãode gente jovem, para beber, fumar, cheirar, namorar, caçar e zanzar.

Lembrou da agência bancária Caminho do Meio, usada parareceber a bolsa, no início da década. Não conseguiu encontrá-la,onde pensava que estava. Não sabia se era antes ou depois doPosto Ferradura; nem sabia se o nome ainda era o mesmo; aqueleque ficava perto do antigo Escaler, no lado leste da pista de corridada Redenção, junto às máquinas do Parque Infantil, no início dolocal onde a Feira do Bom Fim se instala aos sábados e domingos.Enfim, junto à igreja da esquina da rua que vai dar no ColégioMilitar. Esta igreja traz uma particular lembrança, pois, muitos anosatrás, lá pelo meio da década de 70, numa de suas poucas viagensa Porto Alegre, navegava num ônibus, em direção ao Partenon,quando, passando por ali, viu escrito em preto, junto à portamajestosa, em spray, a expressão marcante: "Deus??". Foi aprimeira vez que tinha contatado com o questionamento; até então,Deus era inquestionável em sua existência. Aquela dúvida posta naparede da igreja nunca mais saiu de sua cabeça; perdera a inocênciareligiosa naquela ocasião. Poucos anos depois, abandonou a igreja eingressou na semi-clandestinidade política, ainda muito jovem.

Agora, novamente, atravessara a rua. Estava passando peloPronto Socorro Municipal. Uma mulher loira, de seus quarenta epoucos anos, aproveitando-se o pouco movimento dos carros,aventurara-se em atravessar a Av.Venâncio Aires. O sinal estavaverde para os carros; ainda estava no amarelo, quando a mulherestava bem no meio da Avenida. Um carro atravessou no mesmosinal. Previdente, ele esperara chegar o vermelho, para atravessar.Era obediente, em matéria de trânsito. A mulher tinha umavantagem em sua aventura: estava em frente ao Pronto Socorro, emcaso de acidente. Lembrou das estatísticas e de quando entrou emvigor o novo código de trânsito, há alguns anos atrás. Veio à mentea imagem dos azulzinhos, como dizem os motoristas de táxi.Enquanto refletia sobre isso, chegara em frente ao Hospital deClínicas, na esquina de uma nova avenida; dobrara à direita. Agoraera só ir sempre reto e, em poucos minutos, chegaria ao seudestino, sempre pelo mesmo lado da calçada.

Olhou o edifício e, logo abaixo, o prédio novo da Medicina daFederal; poderia ser médico, se... Bom, isso já não importa mais.Lembrou-se dos meses de aulas ali por perto, na Odonto; já sepassaram mais de quinze anos. A Farmácia ficava perto também,logo atrás do Centro de Processamento de Dados. Como o tempopassa rápido! Zum! O que fizera de lá para cá? Muita coisa mudou;mudou muito. Pôs a mão no casacão e pegou a carteira de cigarro,pondo-se a fumar, agora com os passos mais lentos, porém, sempresentindo os músculos laterais das pernas e a batida dos pés,cadenciados, nas lajes.

Faltavam algumas quadras. O pensamento estava longe. Olhou aRua Silveiro, ao longo, enquanto atravessava a rua. Riu de leve.Lembrou Pedroso e os quatro copos de leite, o RestauranteUniversitário da década de 80. Transgênicos, o que tem a ver comdireito do trabalho? Suspendeu a pergunta. Avistou as grades donovo prédio da Escola Técnica. Lembrou da biblioteca da FABICO edo início da pesquisa sobre semiótica, bem como das reuniões comos moradores da Vila Planetário, aquela que fora construída pelo

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mesmo órgão em que trabalhara no início da década de 90. Acarrocinha de cachorro quente estava no mesmo lugar, na entrada doPrédio. Entrou. Pegou o caminho da direita e foi até à porta deentrada. Estava quente dentro do Bar. Tirou as luvas, abriu a porta edeu o controle de presença à moça da recepção. Após à costumeiracarimbada, entrada, pegando uma a folha de cardápio das palestrasdo mês. Uma mulher falava sobre economia e globalização. Foi aofundo, tirou o casaco, as luvas, o cachecol e o celular, descansando-os na cadeira ao lado. Aterrizara. A caminhada estava conclusa. Opensamento solto tornou-se cativo paciente da fala distanciada dapalestrante. Quem sabe, na volta, com nova caminhada, soltaria denovo o pensamento para as reminiscências do dia. Gostara de andar,coisa que precisava fazer mais seguido, em especial, à noite. Umpasseio noturno.

Conto 3, de 21/06/2000, quarta-feiraUma aula sobre sociedadesJoão Protásio Farias Domingues de Vargas

Aquela era a última aula de sociedades. A classe estava vazia,mesmo que não houvesse jogo de futebol pela televisão. Atribuiuora ao frio, ora à ausência de jogo, ora ao desinteresse da turma,ora ao pouco atrativo do tema. De qualquer sorte, menos da metadese fizera presente. Olhando, de costas para o quadro, a sala estavasemi-vazia. O código preto sobre a mesa, o molho de giz sobre asespaldas do quadro e o casacão sobre a carteira próxima à janela,pôs-se a discorrer sobre a importância das sociedades anônimaspara o desenvolvimento do capitalismo moderno. Antes de iniciar,dispôs um ideograma na lápide, anunciando os principais tópicos daexposição. Após à habitual cópia dos alunos, principiou peloconceito, citando alguns exemplos doutrinários. Após os tipos de"ésse-ás", da responsabilidade dos sócios e da denominação,apresentou as características das mesmas, comparando-as como osoutros tipos societários vistos em aulas anteriores.

Teminada a explicação da noite, já encerrando o tema, perguntaum aluno:

- O que é uma "ésse-á", Professor?- Como? - perguntou, não entendendo a pergunta. Havia

terminado de explicar tudo; mais, havia começado pelo conceito.Será que o aluno chegou atrasado, e não percebeu a sua entrada? -pensou. Ou será que - continuava se auto-questionando - osconceitos não foram suficientes para um entendimento mínimo.Enquanto pensava, o silêncio pairava sobre a classe. Já eram quasevinte e duas horas da noite; final de aula.

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vinte e duas horas da noite; final de aula.- Não sei - respondeu, sem ênfase alguma. - Alguém pode me

dizer o que é? - perguntou à turma inteira.Houve um longo silêncio.- Para você que terminou de perguntar, devolvo a pergunta: - O

que é uma "ésse-á"?O aluno, de pronto, respondeu:- Não sei. Tanto o é que estou perguntando.- Percebi. Suponhamos que eu também não saiba; que ninguém

saiba; como sairemos desta?- Não sei - respondeu o aluno.- Pois bem, já que não sabemos e que ninguém sabe o que é

isso, fica compromissado a pesquisar e, na próxima aula, trazer, aomenos, o conceito de "ésse-á" e discutiremos o seu conteúdo.Combinado?

Dizendo isso, voltou os olhos à mesa, abriu o código preto;pegou a lista de chamada e pôs-se a chamar, um-a-um dos alunos,como se nada tivesse acontecido. Enquanto chamava e punha pontoou "éffe" nos brancos da folha, pensava no quanto estava a suaexplicação distante da realidade intelectiva dos alunos; precisavarevisar o método; quem sabe, ressuscitar o ditado, de modo que oaluno pudesse ter a impressão de fixar algo, ainda que fora dacabeça. O raciocínio só é possível após à apreensão, - dizem ospedagogos, mas, porque a pergunta se fez inteira logo após otérmino de todo o conjunto de explicação.

Não conseguia entender. Resolveu dar um fim à reflexão eatribuir à desatenção momentânea do aluno. Continuou a chamada.Ao término, como sempre, apagou a luz, fechou a porta e ganhou ocorredor, com alguns alunos, em direção às escadarias de saída.Perguntou a si próprio: O que é uma "ésse-á"? Já não sabiaresponder a contento, nem para si próprio. Não deve ser nada, nomomento, pensou.

Conto 4, de 22/06/2000, quarta-feiraPostura da semióticaJoão Protásio Farias Domingues de Vargas

Machado pesquisava há vários meses sobre a semiótica dapostura. Sempre carregava consigo um caderninho de notas e,quando possível, mesmo que numa mesa de bar, escrevia algumacoisa, como produto de alguma reflexão. O que ele não percebia eraque a postura de pesquisador sobre semiótica da postura precisavaser analisada; entretanto, estava fora de cogitação a leitura dameta-postura: a postura que pensa a si própria. Muito complicado.

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Por vezes, ficava horas e horas observando as pessoas em umrestaurante; o modo de sentar, de mexer a cabeça, de gesticular, defalar, de portar o corpo, de organizar os objetos da mesa; enfim, dedispor das pernas sobre a mesa; tudo era objeto de observação.Sempre que via algo, dava uma explicação provisória; ora explicandoalgum traço de caráter; ora antevendo um comportamento; orabuscando descobrir algo da vida das pessoas, como profissão, idade,estado civil, situação econômica, formação intelectual, posiçãopolítico-partidária. Aprendia um monte com o método; mas, nadaera comprovado; dir-se-ia, aprendia muito hipoteticamente com osseus objetos.

- Uma mulher não deve chorar - disse, enfática, a mulher damesa ao lado, para sua acompanhante, que a olhava bovinamente.

O que queria dizer a frase? - pensara. O nariz estava contorcidoao dizer, os pés cruzados e as mãos entrelaçadas, sobre oscotovelos, apoiados na base da mesa. Estava insegura, refletiu;dizia a si própria, concluiu. Um auto-conselho mal direcionado. Devechorar muito; por isso impôs-se tal regra. Ora, todo mundo sabe queas mulheres choram; assim como os homens; ainda que, em algunslugares, menos do que aquelas. Mas, por que não devem chorar?Chorar é ruim; denota fraqueza? Não é o que pensam os médicospsiquiatras.

Ela poderia ter dito: - Chora! Chora, que é bom! Quem chora,seus males espanta! - pensou. Qual a diferença semiótica entre asduas posturas semióticas: a que afirma e a que nega o choro comosendo algo valorativamente bom? Chorar é assumir uma postura dechoro, algo que lembra a infância, a impotência, se não levarmos emconta a expressão "lágrimas de crocodilo". Não tinha respostaimediata para a pergunta que se formulava.

Os homens, em sociedades machistas, são ensinados a nãochorar, pois o choro lembra uma postura feminina, delicada, frágil.Negar as lágrimas a uma mulher que, na mesma sociedade, éensinada a chorar, inclusive como arma tática para a consecução deobjetivos determinados, é, no mínimo, assumir uma posturamasculina. A mulher parecia masculinizada; negava a sua própriaeducação feminina ou machista às avessas. Desta reflexão, paraassumir a conclusão de que se tratava de uma "machorra", foi umpasso. A nova hipótese avançava a trancos largos: tratava-se de umcasal feminino. Lembrou a música do Raúl Seixas, a dança dasaranhas, que ouvira em um CD-ROM há alguns dias. Qual delas faziao papel de homem? - perguntou a si próprio. - Aquela que mandanão chorar, pois a que ouve não chora - ensaiou como resposta.Refletiu mais um pouco e concluiu no mesmo caminho: - É elamesmo!

Estava satisfeito com a descoberta. Mas essa análise de posturase baseia na semiótica ou na clássica lógica formal? Já não sabia aocerto. Como pensar semioticamente? - perguntou a si próprio. -Semiotando? - respondeu, sem muita convicção, com o neologismode improviso. Peirce dizia que a Semiótica era Lógica..., mas,também, dizia que era Matemática. Bom..., que sejam as duas. ALógica e a Matemática sentadas numa mesa de bar, conversandosobre o choro feminino. A Semiótica observava de longe, na mesa aolado? - O Semiótico - apressou-se em retificar, com muita certeza.

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Conto 5, de 23/06/2000, sexta-feiraAs moças da VoluntaJoão Protásio Farias Domingues de Vargas

Enquanto caminhava pela Av. Voluntários da Pátria, perto doEdifício Coliseu, do outro lado do calçadão da antiga Mesbla,observava as fileiras de lojas com dezenas de moças chamando osfregueses às compras de roupas. Quase todas as lojas possuem umrapaz, posicionado ao centro, na calçada, por vezes sentado no altode uma escada, observando, atento, o interior. Deve ser o controlede furto, pensava. Não, tinha certeza. Em algumas delas, homens,munidos de microfone, com vozes de locutores de rádio, descreviamo vestuário e os preços, convidando para entrar. - Entrem,fregueses. A loja está repleta de peças bonitas a preço baixo -diziam alguns. A proximidade das lojas e o destino das vozes davamum ar de balbúrdia à rua, somadas às buzinas e ruídos dos ônibuscirculares.

À medida que progredia em direção ao Mercado Público, no LargoGlênio Peres, as vozes aumentavam e o número de transeuntestambém. As diversas placas de propaganda, postas nas calçadas, asescadas de observadores, os passantes, o tráfego de coletivos e oscamelôs, quase tornavam intransitável, se alguém tivesse pressa aoandar. Dos dois lados da rua, o mesmo fenômeno. A intensividadeera da Praça Rui Barbosa até o terminar do Mercado.

Enquanto ia, pensava na origem do costume das lojasempregarem jovens para convidar, em voz alta, os fregueses paraentrar e comprar. Algumas, literalmente, atacavam as pessoas,puxando-as pelo braço. Entre as ruas Senhor dos Passos e CoronelVicente, mal se podia distinguir a prática das vendedoras de roupase das vendedoras de corpos; estas, mais freqüentes ao final datarde e cair da noite.

Antigamente, nas décadas de setenta e oitenta, a Voluntáriosera famosa por ser área de prostituição de rua. Ainda continua, maso trecho de atuação bastante afastado do Centro. Há mais de umadécada, elas se concentram perto da Rodoviária, depois do Viaduto.É o chamado baixo meretrício. Lá, pode-se ver moças jovens emulheres feitas, semi-nuas, no verão, andando de um lado paraoutro, com suas pernas gordas cheias de marcas circulares eescuras. Indo de carro, naquela direção, quadras e quadras exibemdezenas delas, bem como no início das vicinais.

Conjecturava que a prática lojista de moças pegarem pelo braço epuxarem para dentro das lojas tenha origem na prática do meretrícioque havia e ainda há no local. O método deve ser eficaz, pois osempresários não o abandonaram. Muitos deles são descendentes de

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turcos, sírios, libaneses e árabes, na exploração do comércio deroupas a preço baixo, e qualidade idem. Imaginava que, parasobreviver no local, os donos das lojas tiveram que empregar muitasprostitutas, tentando mitigar a imagem local, afastando as mesmasda venda de sexo, mediante remuneração ou, as duas coisas aomesmo tempo. Elas tocam nos braços de homens e mulheres,insistindo, portanto, física e verbalmente para a entrada.

As lojas possuem grandes cestas de roupas, os balaios, com ospreços estampados no centro, em plaquetas suspensas; cada grupoexpressa tipos de peças: camisas, calças, moletons, jaquetas,camisetas, roupas de criança e miscelânea. Se o freguês entra ecompra, ofendem-se se for pedido nota fiscal. Intimam para saberse a pessoa é ou não da fiscalização. Algumas, sequer vendem, casoa exigência seja condicionada à compra.

Estas observações se juntavam a outras. A maioria das pessoasque transitam no interior das lojas não é formada por homens, maspor mulheres e crianças. Apesar da hipótese explicativa que se dava,o oposto é o fenômeno recorrente. Mulheres chamam mulheres,pensava. Pelo modo de portar o corpo e pelo estilo das roupas, osfregueses eram de baixa renda. Honestos e pobres, como,geralmente, sói acontecer.

Num tempo de miséria, que parece que nunca terminou nestePaís, em Porto Alegre, as moças da volunta são, portanto, de doistipos, - pensava, em sua sistematização -, aquelas que trabalhampara o patrão comerciante de roupas e aquelas que trabalham para opatrão comerciante de outras coisas que não roupas. Ambos os tiposnão devem ter carteira assinada. A diferença maior deve ser a deque umas puxam para dentro dos hotéis, que ficam entre as lojas, eoutras puxam para dentro das lojas, que ficam entre os hotéis.

Conto 6, de 24/06/2000, sábadoA velha República João Protásio Farias Domingues de Vargas

Pedro atravessava o viaduto Leopoldina, na João Pessoa, quandoolhou à direita, em direção ao Guaíba, pela Perimetral Loureiro daSilva. Estava indo a uma reunião semanal. Todos os sábados sereuniam alguns dos integrantes da nova organização não-governamental que ajudara a fundar no início daquele ano. Não via aCâmara de Vereadores, nem o Colégio Parobé; por cima do outroviaduto, o da Borges de Medeiros, via o prédio do antigo Ministérioda Educação, já desativado no Estado. Carros, ônibus e caminhõesiam e vinham em direção ao Parque da Redenção, que ficava à suaesquerda. Poucas vezes na vida havia atravessado o viaduto; quase

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esquerda. Poucas vezes na vida havia atravessado o viaduto; quasesempre ia por baixo, costeando a antiga sede do PT. A Repúblicaficava perto dali; noutra época, antes da construção do CentroComercial da EDEL, iria pelo caminho da pracinha que existe ali,cruzando por baixo de um edifício; hoje, quer dizer, não sabequando foi fechado o caminho para carros e pessoas.

Velha República, recordava. Há quase vinte anos atrás, quandoera muito mais jovem, aquela rua era mágica. Seus bares, oambiente intelectualizado, os encontros, tudo tinha uma atmosferaque transbordava de cultura; gostava daquele meio, com as bixas,as sapatonas, os punks, os hippies, os micheteiros, as prostitutas eos caçadores como ele, dentre outros tipos que por ali circulavam,bebiam e discutiam política partidária, principalmente.

Hoje é a Lima e Silva a rua dos melhores bares, competindo coma Goethe, longe dali, a leste da Cidade. A República, na chamadaCidade Baixa, ainda é referência para muita coisa; nem tudo seperdeu; hoje há muitos cafés, mas o público não é mais o mesmo.Os mais jovens estão na Goethe; os de meia idade, na República,Lima e Silva e arredores; os mais velhos, nos outros lugares, mas,principalmente, nas Churrascarias.

Os pensamentos iam longe, ainda, quando chegou em frente àgrade de ferro. Apertou a companhia, identificou-se e o ruídoestranho abriu a porta. Subiu as escadarias, saudou o amigo eentrou. A sala estava vazia. Era o segundo a chegar. Olhou à volta enotou diferença na disposição dos móveis e livros. Após àexplicação, verificou no quadro magnético a idéia para a discussãodo dia: eventos temáticos.

- E os outros? - perguntou Pedro, obtendo a resposta, porHenrique, de que haviam sido convocados e estavam por chegar.

Vieram o refrigerante e, depois, o primeiro cafezinho, enquanto otempo passava. Eram quase três horas quando chegou o terceiro,Marcos. Puseram-se a conversar, primeiro sobre Barão de Itararé e,depois, sobre as Leis de Murphy, semelhanças e diferenças com otrabalho de Luiz Fernando Veríssimo. Era espera; os assuntospodiam ser qualquer um. Pedro obteve emprestado o livro sobre oApporelly (Apparício Torelly) e lembrou que tinha de devolver os doissobre as leis ao anfitrião.

O assunto chegou na internet. Pedro foi até o microcomputador eolhou os e-mails recebidos pela entidade. Discutiram sobre algumasrespostas a serem dadas como retorno, bem como aqueles sobre osquais deveriam silenciar e esperar. A lentidão do micro era grande,mas funcionava bem; problema de memória, que era pouca para avastidão dos 4 megas de winchester. O tempo voava; muitoatrasados, chegaram os outros e a sala ficou cheia; os debatesocuparam todo o tempo. Após às decisões e à redação da ata, todosse retiraram; passava das cinco, quando isso ocorreu.

Ganhando novamente as ruas, Pedro voltou às suasreminiscências; não de todo, pois Marcos o acompanhou.Caminharam pela João Pessoa, em direção à Praça Dom Feliciano;em frente à Santa Casa, o acomapanhante tomou um ônibus emdireção à casa. Pedro continuou, a pé, em direção à Independência.

Antes de chegar ao final da Praça, lembrou que tinha esquecidode dizer algo. Ligou para Henrique e detalhou a observação. Estavaem frente ao Tutty's, no Centro Comercial. Olhou para dentro, viu osupermercado, a loja dos correios e a farmácia.

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supermercado, a loja dos correios e a farmácia.

Das lembranças, que não eram poucas, lembrou das inúmerasvezes em que estivera naquele barzinho, tanto nas mesas de foraquanto nas de dentro; os diversos acompanhantes traziam situaçõeshistóricas as mais variadas; coisas importantes foram inventadas edecididas ali; muitas delas criaram raízes em certas instituições eexistem até hoje. Mas o bar nunca foi como os da República; o tipode gente era diferente, em todos os tempos. Bar de centro comercialé variado e não identifica estilo; é comercial demais, pensou. Estilosmarcantes tinham os freqüentadores da velha República.

Nesta, nunca conheceu mulher que tenha andado muito tempocom ele, mas todas as que se aventuraram não saíram insatisfeitas;destas, nenhuma se tornou amiga; nem de seus rostos se lembramais; alguns nomes, não sem confusão, pareciam terem surgido emsua vida naqueles locais; mesmo sem certeza, as sensações eramboas e davam um cunho aproximativo de felicidade antiga, comoaquelas que brotam na infância, ou logo após. Mesmo bem depois,na adolescência, também ficam os cheiros das pessoas e dos locaispor onde se andou. Hoje não gravava mais isso, exceto nalembrança de tempos remotos. Não que estivesse velho; mas estavavisivelmente mais velho do que antes.

No contraste, a velha República nada tinha a ver com a VelhaRepública, do tempo dos coronéis, que a História conta. Não eramos dantes escravos que participavam da Velha ou da velhaRepública, mas os novos escravos, negros ou brancos, do que querque seja. Hoje se ganha um pouco mais do que o suficiente para acomida; naquele tempo, apenas a bóia era pagamento. Velha, velha,velha República, ia pensando, já quase no final do percurso. Pertodali, estava a Av. Voluntários da Pátria.

Observou a idéia libertária dos nomes das ruas: Independência,Voluntários da Pátria, República. São poucas as ruas que nãopossuem nome de militares na Cidade. Por que será? - perguntou-se. Ah, só faz dez anos que elegemos o nosso primeiro Presidenteda República, depois de mais de vinte anos de ditadura militar; piordo que isso, tivemos de demiti-lo, por impeachment. Quase todosos "mellos" com dois "elles", de lá para cá, passaram a ter vergonhade assinar o nome; alguns passaram a usar um "ele" só, só paradiferenciar, evitando a pergunta seca e fria: - "É parente delle?".Toda resposta, mesmo que um "não", era constrangedora, poisligava a pessoa a um nome que já não era aceito por ninguém. "Cor"em inglês e melo com dois "elles" tornou-se marca registrada derepulsa e engodo.

O que fazia nesta época, perguntou-se a si próprio. Lembrou quefez campanha para outro candidato e que perdera as eleições. Bonstempos aqueles, de faculdade.

Terminou de descer a ladeira, em direção ao Rio, perto do metrôde superfície, ganhou à esquerda e adentrou no prédio onde residia.O porteiro lia jornal e só notou sua presença quando o elevadoranunciou a sua chegada. Olhou para trás e ele veio voando abrir aporta.

- Boa tarde, Doutor! - disse, levemente encabulado.- Boa tarde - respondeu Pedro, ganhando o cubículo e apertando

o botão de subida. Velha e velha República, dois mundosprofundamente diferentes. O nome correto é Rua da República;simplifica-se sempre: República.

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simplifica-se sempre: República.

Conto 7, de 25/06/2000, domingoO Mundo dos Pokémons João Protásio Farias Domingues de Vargas

Gustavo tem nove anos; Manoel, 27 mais velho; resolverampassear no domingo, a esmos, pelo centro da cidade. A tarde estavamenos fria do que a anterior; a tendência era andar pela Rua daPraia, da Borges à Alfândega, olhando os camelôs e os cinemas. Eralindo, pai e filho de mãos dadas nas ruas desertas, a conversarsobre assuntos diversos. Calça de brim, moletom e ausência depastas; livres, leves e soltos. Um ventinho soprava do oeste,quando passavam em frente ao Plaza. A Igreja e o Cursinho, àesquerda, do outro lado da calçada, postos, estáticos diante donosso diálogo.

- Pai, qual é o pokémon mais forte e qual é o que não ganha deninguém? - perguntou o garoto, testando a inteligência e sabedoriado outro.

- Não tenho nem idéia de quem seja, Filho - respondeu, umpouco desatento, interessando-se, de imediato pelo assuntoinusitado que, a julgar pela colocação da pergunta, deveria serimportante.

- O Lugia, dito guia, é o mais forte, um pokémon deus; e o maisfraco de todos é a Chancen, que não evolui para nada, é umpokémon que não gosta de lutar, que só pensa em ajudar os outros.Há outros tipos, quer ouvir sobre eles?

- Quero - respondeu, sem titubear. Mais que depressa, pôs-se adizê-los, o filho, a seu próprio modo.

- Bobassaur, Uaivesor, Venosor, Chermander, Chermirian,Chiarizard, Pichu, Picachu, Raichu, Squerdou, Ortodol, Blastois,Caterpi, Metapóide, Butherfre, Staril, Starmi, Horsea, Cidra, Psaidak,Goldak, Onix, Giodud, Gravlar, Golden, Miuthu, Merian, Venonath,Venomoth, Uidol, Execuut, Exeector, Tentakul, Tentakruel, Ratata,Ratikate, Dudu, Dodriil, ... Pai, quer continuar ouvindo os nomes depokémons? São mais de duzentos...

- Sim, pode continuar - respondeu, muito interessado.- Kakuna, Bidriu, Pincer, Ritimonli, Ricthmonthiamp, Miu,

Grimmer, Mack, Kangaskan, Saiter,...Enquanto o pai se aculturava sobre a realidade dos pokémons, o

filho demonstrava sua capacidade memorizativa e a importância,para sua pequena vida, na compreensão do mundo. O brinquedo éinstrumento de contato da criança com o mundo - pensava. Aliás,criança, não! Pré-adolescente, como preferia auto-classificar-seperante os outros, distinguindo-se das crianças que, no seu modesto

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perante os outros, distinguindo-se das crianças que, no seu modesto

entender, eram menores e mais jovens do que ele.- Grande mundo da criança! Ôpa! Criança, não! Pré-adolescente! -

disse, retificando, de pronto a colocação, cingindo-se às exigênciasmetodológicas do filho.

Estavam perto da Borges de Medeiros, quando a exposição dofilho terminou.

- Aprendeu, pai? - perguntou, didaticamente.- Muito - respondeu.- Sabe agora quais são eles e quais são as suas forças. Não

esquece, eles evoluem dos mais fracos para os mais fortes e sedistinguem em heróis ou não.

- Vou lembrar disso, filho. Há, inclusive, pokémons que sãocrustáceos, e todos são inteligentes, não é mesmo?

- Exatamente.E foram andando em direção ao cinema, naquela tarde de

domingo. Adentraram pela lateral da Praça da Alfândega, cruzaramas bancas fixas dos engraxates e as mesas acimentadas comtabuleiros de dama e xadrez. O filho perguntou, na banca derevistas mais próxima, já na Rua da Praia, se tinham figurinhas depokémons, obtendo resposta negativa.

Driblando as tendas dos camelôs de adereços, avistaram o lugarde chegada. Olharam os cartazes e fizeram, de plano, a opção: Osdinossauros. Perceberam o horário de exibição e decidiram voltar àcasa para, mais tarde, retornar e assistir à sessão. Foi o quefizeram. Escolheram outro caminho para o retorno, bem como umnovo assunto para a nova conversa. Abraçados, desceram a mesmarua, em sentido oposto.

A felicidade do contato aproximava dois mundos, naquela época,muito diferentes; duas gerações, dois futuros muito diferentes,porém conjugados e interdependentes. Mesmo sem terem clareza doefeito, o mundo dos pokémons os unia como nunca; adulto fez-secriança e criança, adulta, sem deixar de sê-la.

Conto 8, de 26/06/2000, segunda-feiraUma consulta de escritório João Protásio Farias Domingues de Vargas

O ex-presidiário José estava ali, na sua frente, agora que tinhaaberto a porta do escritório e convidado-o a entrar. Passos lentos,sentou-se à mesa redonda, na segunda sala, de frente para a vistapanorâmica, do lado do Guaíba. Não tinha matado ninguém; masfora condenado por sentença transitada em julgado; brigara comvizinhos, pegara em armas e atirara. Soube da condenação no diaem que foi preso, em uma repartição pública, quando buscava retirar

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em que foi preso, em uma repartição pública, quando buscava retirar

um documento qualquer.Não tendo sido encontrado pelo Oficial de Justiça criminal, fora

citado por edital, mediante denúncia tentativa de homicídio. Umabriga originou tudo; quase matou o vizinho; fora defender o irmão,da faca do atingido. O revólver não tinha registro, mas fez o sujeitoparar. Irmão cortado, algoz baleado, José na cadeia.

Menos mal que o regime era semi-aberto; não tinha antecedentesde nenhum tipo. Homem honesto, pai de família, mas condenado, naforma da lei. Há um ano atrás fora detido; agora estava solto; deseis em seis meses tinha de comparecer ao Foro e dar contas decomo estava vivendo. Custou muito a conseguir trabalho, masconseguira. O sustento diminuiu, mas não parou de todo.

Estava ali, agora, diante do advogado, não pela causa criminal,mas por uma cível; uma ação de usucapião que estava em curso,segundo os ditames da última constituição brasileira. Tudo estavapago ao causídico e o processo andava; queria saber em que pé seencontrava e ajudar em uma diligência requerida pelo juiz da causa.O sonho era ser o proprietário formal do pequeno terreno que tinhano morro da Embratel, na Capital. Alguns já tinham se tornadodono; era a sua vez; o sonho do imóvel próprio; a casa, já era, maso terreno estava por ser. Demora o processo; mas, não tinha pressa.Como dizia, o tempo passa igualmente, com ou sem processo;enquanto isso, vamos vivendo, um dia após o outro.

Estatura baixa, semi-calvo, roupas simples e sorriso sempreestampado na face; não transparecia as preocupações queexplicava; parecia tudo tirar de letra, ainda que não demonstrassegrande esperteza. Ele mesmo construíra sua casinha no terreno, hámuitos anos, quase dez; gostava do local e da vizinhança, o quenão acontecia com todos do local.

Enquanto falava, olhava a cafeteira, posta em uma mesa, aolado; o lawyer não servira um; nem dera sinal de que percebera aolhada. Era de manhã cedo. O advogado fumava, de costas para ajanela, enquanto ouvia e falava sobre o processo e adjacências.

- Mais uns dois anos e terminamos o processo, com a suaescritura no Registro de Imóveis - disse o causídico. - Mas mantenhasempre contato - arrematou.

- Vou deixar o telefone; se precisar, ligue; estou em casa pelamanhã; fora disso, só volto depois das dez da noite. Mas, minhamulher está sempre em casa. Pegue no grito e chego aqui.

Ditas as palavras, o advogado se levantou e apertou a mão doJosé, dirigindo-se em direção à porta de saída. José acompanhou ospassos e ganhou o corredor de fora, indo em direção aos elevadores.Quando ouviu o bater da porta, em suas costas, chegava o elevadorno andar. Fez sinal, apressou o passo e entrou. Estava indo de voltaà casa, um pouco mais aliviado.

Dentro das salas, o advogado pensava nas diferenças de vidaentre ambos, admirando o cliente; achava difícil suportar a vida, seestivesse na pele dele; bom, também seria difícil ao condenadoviver a vida do advogado. Cada um tinha as suas dificuldades e,naquelas circunstâncias, precisavam, um do outro, para superaralgumas delas. Essa era uma das razões do encontro; aliás, detodos os encontros daqueles dois mundo, rotundamente diferentes,que se entrecruzavam, arrematados pelo nó do processo.

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Conto 9, de 27/06/2000, terça-feiraAudiência com um vereador João Protásio Farias Domingues de Vargas

O vereador ainda não havia chegado. Duas lideranças da BancoCentral já estavam no local. Tudo parecia deserto naquele gabinete.Ouve-se uma batida na porta e entra um homem com uma pastapreta, quase suando.

- Ainda não chegou - disse uma das mulheres que estavamsentadas na entrada da porta.

- Está em plenário? - perguntou o recém chegado.- Está; mas, já está vindo; disserem-nos para esperar aqui.Logo em seguida chegou o parlamentar. Gordo, baixinho e

levemente grisalho nas laterais da cabeça e na parte baixa dabarba. Dirigiu-se à sala ao lado e retornou, convidando-os parapassar. O gabinete era simples: um pequeno cubículo comprido, comvidraça aos fundos, nas costas do vereador. Um banco compridopermitia que apenas quatros sentassem. Uma auxiliar providencioucadeiras para os outros, que estavam chegando.

Passa do meio dia; era uma reunião-almoço: parlamentar,advogado e lideranças comunitárias; o objeto era um pequenoproblema de moradia: como evitar o despejo de trinta e cincofamílias que moravam em determinada localidade da cidade.

O parlamentar falou suas impressões sobre o caso, consultandoalgumas notas que tinha sobre a escrivaninha e sugeriu que, apósfalar o advogado, manifestassem-se as liderança. Naquele instantea sala estava cheia de gente. Alguns estavam muito agitados;outros, mais conformados com a situação; quem sabe pelo justofato de terem um pouco mais de experiência no trato com assituações de sem-tetos.

- O vereador poderia marcar uma reunião com o Chefe da Casacivil e solicitar que a brigada não efetue o despejo quarta-feira? -perguntou, afirmativamente, um dos presentes.

- Vou tentar uma audiência. A tentativa é livre; não sei se vouconseguir. Algumas vezes se consegue evitar despejo, por falta decontingente militar; não sei se é o caso; se for, pode ser retardado.Eu disse que pode ser retardado o despejo, mas não evitado; emcausas desse tipo, pode levar mais de dez anos, como é o caso devocês, mas um dia ele chega, como o mesmo terror de sempre.

- Nós vamos reativar a cooperativa, doutor - disse o homem deidade, que estava sentado ao fundo.

O vereador pegou o gancho da colocação e aproveitou parainspirar o grupo com a consciência de quem está acostumado comsituações do tipo.

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situações do tipo.

- Não adianta só reativar a cooperativa, Gente. É preciso que elafuncione a todo vapor, senão nada vai funcionar e vocês vão ficarnovamente reféns da situação em que se encontram hoje: semrecursos financeiros, desarticulados e sem poder de barganha com oproprietário.

Uma mulher loira e gorda, que estava sentada imediatamente àfrente da mesa do parlamentar, afirmou:

- Isso eles sabem, vereador; o problema é que não se organizame não deixam as lideranças trabalhar; ficam dando prá baixo atédesestimular as caminhadas. O doutor sabe o quanto nós temoslutado nestes últimos dois anos, mas não conseguimos muita coisa;aliás, quase nada. O caixa da cooperativa está à zero; o pessoalnão paga; não adianta insistir.

As palavras desacorçoadas da liderança despertou algumdesalento, mas não esmoeceu a todos. Uma jovem, de seus trinta epoucos anos, ouvia atenta as falas, fitando cada interventor evolvendo os olhos para os integrantes sentados ao fundo, comoquem dizia que deveriam ouvir com atenção o que estava sendodito, ainda que a título de queixas.

- Mas agora nós vamos retomar - afirmou, categoricamente, omulato magro que estava sentado no vão de entrada da sala.

O advogado rememorou que ingressaram com sete mandados desegurança, sete agravos de instrumentos, dezoito ações deembargos de terceiro, com tese de usucapião constitucional urbano,não tendo conseguido nada. Arrematou que tramitam dezoitoapelações na vara cível dos casos, que ainda pendem dejulgamento.

- Queremos saber o que pode ser feito, ainda, de imediato,juridicamente, para evitar o despejo - perguntou, aflito, o vereador.

- Pouca coisa. A ação de reintegração de posse foi julgadaprocedente há seis anos; a apelação e o recurso ordinário não deramem nada. Os advogados da época trabalharam bem, mas oentendimento judicial é o de que a posse de todos os atuaisocupantes é fruto de sucessão, tendo o mesmo caráter de suaorigem; trocando em miúdos, a posse não é boa para usucapião,embora a tese de todos os advogados, dos antigos e do atual, sejaa de que é possível.

- Mas tem o que fazer, ainda...? - reperguntou o vereador.- Tem - respondeu o advogado. - Dá prá tentar, após à intimação

de desocupação (imissão na posse), embargos do devedor (agoraassumido uma nova tese judicial, ainda que contraditória com asanteriores) por retenção de benfeitorias. A posse não foi declarada,em dispositivo sentencial, que é de má-fé. Significa que, se foraceita, saem somente depois de indenizadas monetariamente todasas casas construídas nos imóveis, mediante avaliação orientada pelojuiz.

- Então, vamos fazer isso. Quanto tempo precisa o escritório?- A pressa é dos moradores - respondeu, de pronto, o advogado.- E, quanto vai custar? - perguntou um dos presentes.- Podemos tratar no escritório esse assunto; procurem-me

quando estiverem prontos. Sabem como me encontrar.Disse isso, pedindo licença para se retirar, pois entraria em

audiência judicial dentro de quinze minutos e ainda tinha de chegaraté o Fórum.

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até o Fórum.

O vereador ficou com as partes, conversando. O advogado ganhoua porta de saída, pegou à esquerda, pelo longo corredor da Câmara,e se foi. O dia estava sombrio lá fora, mas o ar estava mais farto.Meteu a mão no bolso do casaco, pegou a carteira de cigarro e pôs-se a fumar, enquanto cruzava o jardim de entrada, perto doChocolatão, no Parque da Harmonia, à beira do Guaíba.

Conto 10, de 28/06/2000, quarta-feiraUma breve conversa João Protásio Farias Domingues de Vargas

Às dezessete horas tocou o telefone. Era o professor Bruno, umengenheiro conhecido no meio universitário por suas polêmicassobre o novo mercado mundial.

- E a nossa reunião, Professor? Esqueceu dela? Está fechado orestaurante onde combinamos. Sugira outro local.

Do outro lado da linha, Bicaco ouvia atento, tentando pensar numlugar alternativo. Antes de falar, Bruno retomou:

- Quem sabe no bar da Arquitetura ou da Letras, aqui no Centro?São bons lugares e eu gosto muito de qualquer dos dois. Só nãovamos no das Engenharias; tem gente demais.

- Precisamos de um local mais calmo. Quem sabe a gente seencontra em frente à Faculdade e decidimos, lá, o local?

- Aceito. Já estou indo prá lá. Até mais.- Chego em dez minutos aí, Professor Bruno - respondeu, quase

abruptamente, mas sem demonstrar impaciência. Havia esquecidodo encontro, agendado na semana anterior. Sem o telefonema, teriafaltado na certa. Ainda bem que estava escrito. O hábito de não lera agenda até pode ser uma válvula inconsciente de escape aoscompromissos. Daquela vez não consegui faltar; houve quem oavisasse: o próprio interessado.

A uns trinta metros da entrada do prédio, avistou Bruno sentadoem um dos bancos, no pátio. Chapeu e terno pretos; pareciaFernando Pessoa em um desenho clássico. Entraram e foram direto àSala dos Professores; fecharam a porta, para evitar os xeretas; nãosó alunos; ainda que não fossem professores no local, tinham certasregalias com os colegas.

- O que manda, Professor? - perguntou Bicaco.- Só conversar; gosto muito de conversar com o Senhor; sabe

disso. Eu o prezo muito como amigo e nossas conversas sempre sãoinstrutivas para mim. Quais são as novas? Como tem passado? Eesse tempinho, hein? Não chove, não esfria... - dizia,despreocupadamente. E foi assim, tergiversando que começaram oencontro.

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encontro.

Conversa vai, conversa vem e tocaram em um assunto queconversaram há mais de dois anos.

- E a maçonaria, como vai? - perguntou Bicaco.- Bom, Professor, vai bem. É aquilo de sempre, as fórmulas;

gente boa freqüentam as lojas. No Estado tem três grandespotências; faço parte de uma delas. A minha loja é pequena; nãochegam a quarenta, os integrantes. Pessoas importantes estãonelas; muitas suas conhecidas. O Senhor tem todo o jeito, o modocontrolado, refletido de agir; não sei porque não quis ser iniciado.Um dia, quem sabe, não é mesmo? O mundo dá muitas voltas.

- É ...- respondeu, reticente o outro. - Lembro bem daqueleespetáculo de reunião a que fui a seu convite, naquela vez. Gosteimuito.

Foram conversando o resto da tarde. Encerrado o papo, retiraram-se da sala, apagando a luz. Tomaram o mesmo caminho de volta.Na saída, quase no mesmo local em que se encontraram, Bicaco,novamente inquirido se queria participar de outra reunião, disse,assertivo:

- Me convide, Professor; preciso ir mais vezes; quem sabe, assim,perca o medo que tive da primeira vez.

Disse lembrando o livro de Umberto Ecco, o Pêndulo de Foucault;tudo muito complicado e regulado. Realmente precisavam de umaboa iniciação, para viver naquele cipoal de regras e limitações. Masde tudo quanto pensava, silenciava; não precisava, pelo menos porora, desiludir o amigo, já que aqueles jogos eram muito importantespara ele.

Bruno riu, colocou o chapéu e foi em outra direção.

Conto 11, de 29/06/2000, quinta-feiraA agenda e o poeta João Protásio Farias Domingues de Vargas

Há, mais ou menos, um mês atrás, navegando na internet, entrouno site do Tribunal Regional Federal da sua região. Pôs o nome dopoeta no formulário de busca e lá apareceu a situação do processo:julgamento em tal data. Prontamente, agendou o dia. Esperou aintimação pelo jornal, mas ela não veio. Pois bem, hoje era o diamarcado, no primeiro horário da tarde. Pensou em ligar ao Tribunal,mas não o fez.

No cair da tarde, ainda estava lembrando da sessão dejulgamento do recurso. Ocorrera ou não? E se ocorreu? Não foi fazera sustentação oral; pior, nem avisou o poeta, para que pudesseavisar seus importantes amigos jornalistas do centro do País. Adúvida era uma nuvem negra sobre a sua cabeça, mas não foi obter

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dúvida era uma nuvem negra sobre a sua cabeça, mas não foi obtera certeza "in loco".

Era noite e chovia aos tarros. Estava frio e o Tribunal ficavalonge. Àquela altura, nada mais poderia ser feito, já que nada foifeito. Perguntava-se: por que não fui, já que podia? Não sabia dizer.A mente, falhando, como raramente ocorria, nada lhe respondia.Estava muda e surda a razão; vexada, quem sabe; amordaçada dealgum modo.

Naquela mesma noite, um importante palestrante havia vindo deBrasília para falar sobre certa especialidade de ensino; foraconvidado a tempo, mas também não fora. Dois grandes eventosperdidos. Não sabia porque. Preferira ficar em casa, assistindotelevisão, os pastelões importados de sempre, em um dos parcoscanais disponíveis de reprodução.

Estava deprimido, ao que parece; fugia dos compromissos. Caíafora da agenda, - era como dava a desculpa, amenizando a culpa,quando lhe era cobrada a quebra de algum, descumprido.

- Saltou da agenda; caiu; fugiu; escapuliu.A agenda escrita era tão importante para ele que, se não

estivesse escrito nela, não estava no mundo, não existiria.Costumava dizer, antes de agendar um encontro, reunião oucompromisso de qualquer gênero:

- Vamos consultar o Oráculo! Vamos ver o que ele diz para essedia.

As pessoas achavam engraçado o modo de se referir àquelepedaço de papel encadernado, com linhas e números. Parecia que aagenda era capaz de prever o futuro. De certa forma, sim, pois eranela que se registrava o que deveria acontecer.

Os problemas de ausência não eram de agenda, mas deespancamento; a agenda era ignorada inúmeras vezes, conscienteou inconscientemente. Nem tudo era agendado nela; muitoscompromissos possuíam agendamento oculto. Todos os que não eraescritos tinham esta classificação, a exemplo dos rotineiros, comoos dias em que deveria ministrar aula. Era agenda cativa; carecia deregistro, pois a lembrança era compulsória. Agora, os outros, visíveise descumpridos, só uma explicação ilógica poderia demonstrar aperda da oportunidade registrada.

Pois bem, nem sempre o Oráculo previa a verdade do futuro,mesmo estando escrito no livro. A realidade é sempre mais rica doque as nossas previsões podem realizar. O poeta estava sem sorteou a sorte havia procurado outro agraciado? Não poderia dizê-lo,pois ainda não conhecia um trecho de passado que, por ironia, erapresente mas que, pela posição, só no futuro seria revelado.

Lembrou do ditado "hoje já é o amanhã que nasceu ontem".Perda de tempo. A agenda e o poeta; tempo perdido; não há poesiana agenda e nem se agenda poesia. Bem... entretanto, contudo,porém, todavia, ... Como disse, não fora intimado. Prejuízo nãopoderia haver, por parte do Tribunal. Ficou mais tranqüilo e pôs-se apensar em outra coisa, sem consultar a agenda sobre o diaseguinte.

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Conto 12, de 30/06/2000, sexta-feiraA reunião marcada João Protásio Farias Domingues de Vargas

O bistrô do Museu do Estado ficava na Praça da Alfândega, àbeira do Rio Guaíba, em Porto Alegre. Tinham marcado acontinuação da reunião de sexta, já na sexta passada, para essa.Quando Mário lembrou já passava das seis da tarde. Estavaatrasado, mas não tinha vontade de ir; na verdade, dois corações;vantagens dos dois lados. Sopesou e decidiu não ir; reagendou ohorário e foi ter com a casa; afinal, sexta-feira, final da tarde, achoque ninguém vai lembrar dela. Nessa linha de reflexão, acresceuque, se dessem sua falta, poderiam ligar; tinham número e tudo. Seligassem e não houvesse desculpa, iria. Também, não poderia beberaté à semana seguinte; em quatro de julho terminava a promessade abstêmio. Tinha consciência clara de que estava boicotando areunião que ajudara a agendar há uma semana, no mesmo local.

Da vez anterior, o bar estava semi-vazio. Haviam tirado asesculturas do centro e o local parecia maior do que antes. Não quefosse assíduo freqüentador ; ainda que poucas vezes, foramsuficientes para notar que gostava, que se sentia bem ali, comaquela música orquestrada e garçons formais. O dono era meiochato, mas sempre cedia às exigências dos fregueses. Isso fazia olugar especial.

Tinham sentado à mesa da direita, no canto de quem entra, pertoda galeria de quadros. Mário tomara um refrigerante; os outros doishomens tomaram taças de vinho tinto; as duas mulheres, chope.Isso que a reunião durou até perto das nove da noite, tendocomeçado antes das sete. A conversa era longa, muitos eram osassuntos; quase nada de abobrinha; tudo papo sério. Políticainstitucional: associação, advogados, eleições, comissões, grupos,reuniões, candidatos, apoiadores, eventos, coligações, chapas, etc.

E vá chope, vá vinho, e nada daquele lado; só um refrigerante,que ainda teve de tomar às pressas, pois ainda havia um tanto nagarrafa, quando decidiram ir embora. Tinha ciência de que não eraum bom companheiro de mesa sem beber, mas, o que fazer, sehavia decidido que não queria mais beber? Foi o que fez; não bebeumais. Havia quatro meses que só tomava refrigerante. Podiam asreuniões de bar terem ficado uma merda, mas parou de vez debeber. Não se queixava de nada; só não parecia mais o mesmo. Osamigos reclamavam, torcendo para o retorno. Sem retorno, pensava;se houver, será apenas nas "societies", indicando que não iria maisbeber como antes; não fecharia mais os botecos da praça.

As lembranças iam e vinham, enquanto continuava o caminho emdireção oposta à da segunda reunião. Havia decidido; não iria e nemavisaria os integrantes. Se quisessem, que ligassem. Não deu maisbola para o assunto e mudou de rumo os pensamentos. Emdefinitivo, a reunião havia sido abortada. Noutra oportunidade...

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definitivo, a reunião havia sido abortada. Noutra oportunidade...

quem sabe?

Conto 13, de 01/07/2000, sábadoTelefonemas mudos João Protásio Farias Domingues de Vargas

Desciam os primeiros degraus da Galeria do Plaza, quando tocouo celular pela primeira vez. Não reconheceu o número que o monitorapontava.

- Alô!... Alô!...Alô!Não ouvia nenhuma voz do outro lado.- Alô? Não estou ouvindo nada... Alô! Tente mais tarde. Vou

desligar.Fê-lo. Apertou o botão e a ligação foi interrompida. Tentava

imaginar quem poderia ser, àquela hora, final de tarde. Muitaspessoas vinham-lhe à mente. Devolveu novamente o aparelho àcintura.

Deu dois passos e novamente tocou o celular.- Alô!.. Alô? Não estou ouvindo nada.Olhou o monitor e viu que o número era outro. Resignou-se.

Repetiu a operação de retorno do aparelho à cinta. Pensava na trocade donos da empresa de telefonia do Estado. Será que virianovamente o caos do ano passado? Tomara que não. Quase todoscom aparelhos e poucos podiam falar. Veio à cabeça a anedota queo povo passou a contar, naquela época.

Conta-se que os espanhóis, quando ganharam a licitação daestatal apenas e tão-somente prometeram que todos teriamtelefone; não é verdade que prometera, também, que todosfalariam. Para que servem telefones que não transmitem outransmitem muito mal, ou que, para falar, depende do lugar em quese encontre, na cidade? Muito ruim. As coisas precisavam mudar emudaram. Melhorou bastante. Agora, de novo, o mesmo problema?Pode ser que o problema fosse localizado, e não generalizado.

Passou em frente à locadora, dobrou à direita e ganhou a ruaseguinte, descendo a ladeira de sempre.

- Quem era? - perguntou a acompanhante.- Não sei. Não deu prá saber. Estava mudo de novo.- Só silêncio?..- É! Só silêncio - respondeu.- Tem acontecido muito disso, inclusive em telefone de linha fixa.

Em casa, isso é muito comum. Mas acho que o problema é de quemliga, e não de quem recebe.

- É? Pode ser que sim.Seguiram juntos, apressando-se, antes que a chuva chegasse.

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Seguiram juntos, apressando-se, antes que a chuva chegasse.

Mudou os pensamentos; pensou nos convites de jantar e decidiu nãoir a nenhum.

Conto 14, de 02/07/2000, domingoA sorte das provas João Protásio Farias Domingues de Vargas

Naquele domingo, havia acordado bem cedo. O relógio despertaraàs seis horas da manhã; mesmo assim, ficara na cama, empequenos cochilos, até passados das sete. Levantou-se, tomoubanho, sentou-se à mesa e logo saiu, antes das oito. Antes deganhar a porta, remanchou na sala de estudos, sem saber bemporquê. Estava com lápis, apontador, borracha, caneta, passagens ecelular a postos. Não precisava de nada mais e já estava atrasado,pois as provas iniciariam às oito horas. Conseguiu sair.

Enquanto esperava o elevador, observava que a calça não estavasatisfatória, nem os sapatos; a camiseta e o casaco de lã tambémnão lhe davam o devido conforto para sair. Passou pelo porteiro,abriu a porta de vidro e ganhou à direita, em direção à Estação dometrô. Enquanto caminhava, percebia que as meias, postas entre ospés e o sapato, davam a sensação de apertamento e falseamentono andar.

Cruzou por dentro do posto de gasolina da segunda esquina eavistou a parada de ônibus, a última daquela avenida. Perguntou aum vendedor ambulante se ali passava ônibus que fosse pela Av.Ipiranga. Foi informado que sim; também lhe disse o nome doônibus e a empresa responsável. Várias pessoas estavamconcentradas na parada, sob o abrigo. O dia estava cinzento e sepreparava para chover.

Estava atento às pistas. Vários coletivos passavam, mas nemsinal do esperado. Vieram dois, três, cinco, e nada; rapidamentecomeçou a ficar ansioso. Olhou o relógio mais uma vez e quasemarcava oito horas. Não sabia se as oito horas marcadas diziamrespeito ao horário em que seriam iniciadas as provas ou o horárioem que seriam fechados os portões de entrada para o prédio.

Em frente à banquinha do ambulante, em uma banca alaranjada,típica de verduras, na parte de baixo, viu abrir-se uma portinhola e,de dentro, sair um senhor de meia idade, com cabelos desalinhadose cara de sono. Parecia que havia dormido naquele cubículo, qual umguardião. Notou, então, que haviam algumas frutas expostas, naparte de lá da plataforma superior da feira. No seu ângulo de vista,sem desviar o olhar, podia cuidar a pista da esquerda, e nada de viro ônibus.

Pensou na perda de tempo em chegar atrasado ao local; ter de

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Pensou na perda de tempo em chegar atrasado ao local; ter de

correr, sob o olhar observador dos candidatos sentados às janelas,nas salas ao derredor; desejava não ser visto, como tantas vezesviu outros ficarem de fora, por atraso. Ademais, quase nada haviaestudado; seria vexame na certa; não tinha chances de concorrer;não tivera tempo para estudar; o desejo de se submeter aosexames surgiu tarde demais; também, perdera muitos dias semtocar nos textos.

A vontade de ir ia sendo minada pensamento a pensamento,naquela manhã cor de chumbo. Olhou em direção ao posto, aspistas; mais longe, avistou trecho do Mercado, e nada do coletivoapontar. Estava sonolento, ainda; acordara há pouco. Sentiu os pésatinarem em andar, em direção ao retorno. A respiração ficou forte;a decisão não tardou e veio junto com o pensamento: - Estamosdesistindo da prova! É isso? - perguntava a sim mesmo, dando, deimediato, resposta afirmativa.

As calças azuis e os pés se deslocaram pelo mesmo caminho hápouco percorrido. Estava satisfeito com a decisão. Afinal, mesmoque tomasse o ônibus agora, o risco de chegar depois de trintaminutos ainda era possível. Estava justificada a decisão. Podiavoltar e ficar no aconchego quente do local de onde saíra.

De fato, a manhã, naquela hora, não estava bonita. Todaacinzentada, o silêncio das ruas aumentavam o desalento da saída.Foi bom ter acordado cedo; podia, assim, fazer o dia render umpouco mais.

Voltou e dormiu quase a manhã inteira. Quando acordou, choviamuito e mal se podia avistar os prédios, através das vidraças dajanela. Estava satisfeito com a decisão. Para as próximas precisava,no mínimo, preparar-se, sem o que não teria condições decompetitividade. Aliás, também não aprovava que alguém pudessese tornar um bom profissional naquela área, se soubesse tantoquanto ele, naquele momento, em relação às exigências rotineirasrequeridas pelas provas.

A decisão fora acertada; não podia correr riscos; não, naquelepreciso momento. Não adiantava sonhar; não tinha chances técnicasde ganhar. Só restaria o golpe da sorte. Mas, a sorte? Essa de quetodos falam? Nunca, nunca pudera contar com ela. Se existia, nuncaa conhecera; pelo menos não do modo como a maioria conta. Nãoera sortudo; por isso era obrigado a traçar planos e executá-los.

Ainda que a decisão não representasse uma derrota efetiva (nãoentrara na arena), mas sim um estratégico recuo (a batalha estavaadiada), não podia ver a mão da sorte no ato de ir - e não fora, ouno de ficar, - o que efetivamente ocorrera.

De qualquer modo, pensava agora, passando novamente peloporteiro, nunca a sorte o acolhera sob as suas asas. Tinha, apesarde tudo, vontade de dizer "acolhera muito tempo", dando a idéia deque não era de todo destituído de sorte, pois, muitas vezes, o quese interpreta como azar em um momento, noutra leitura, adiante,verifica-se que o que houver fora sorte mesmo; mas não disseranada sobre isso a si mesmo. Apenas intuiu; a idéia estava lá, nasua cabeça, pululando, com uma certa alegria contida.

É claro! Como todos! Não é nada disso! Tinha sorte sim! Mas,nunca pudera contar com ela; era como se ela sempre faltasse,quando fosse a única alternativa possível. Dando existência própria,humanizando-a, por assim dizer, parecia que só ajudava quando

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humanizando-a, por assim dizer, parecia que só ajudava quando

algo era feito sem o seu apoio, sem o toque de seu dedo.Sorte tem quem dela não precisa; como dinheiro de banco, nos

empréstimos a juros.

Conto 15, de 03/07/2000, segunda-feiraVocê tem um plano? João Protásio Farias Domingues de Vargas

Não foi neste dia que as coisas aconteceram do modo quisto.Aliás, muito diferentes do que o pensado. Afinal de contas, quandoé que as coisas acontecem segundo um plano? Eu lhes respondo, echeio de razão:

- Quando não há um plano! Só quando não há um plano!O leitor deve estar pensando na resposta. Não lhe darei tempo

para isso. Lance logo a pergunta seguinte, que está pululando nanela de sua mente:

- Por quê?Leitor ingênuo! A resposta é óbvia! E não vamos aqui discutir o

que é e o que não é o óbvio. Óbvio é óbvio, - dizia uma amigojornalista, anos atrás, antes de sua primeira internação, - Não sediscute!

- Porque, se você não tem um plano, o seu plano é o ocorrido.Você assume a trajetória histórica do fato como sendo o único planopossível. Você se acomoda à realidade do fato, como aconteceu. É ochamado plano histórico! Está satisfeito, agora, leitor?

Não deve estar satisfeito com a resposta, pois nem eu mesmoestou. Vou precisar melhor, se me permitir. Antes, você sabe o queé um plano? Não???!!! Santa ingenuidade. Tem e não tem tudo a vercom a vontade humana. Livre arbítrio??? O do Santo Agostinho???Bom...

- Um plano é uma vontade procedimental! Pronto! É isso! Nadamais do que isso!

Os imbecis devem estar pensando na vontade de potência doNietzsche. Não sem pouca razão!

- E o destino? Onde é que fica, nessa estória, meu? - deve estarse perguntando o último neurônio ativo, dentro de sua cabeçafresca. Velha pergunta. Pré-heraclitiana, diria. Mais: pré, pré, pré...o anterior a tudo. A filosofia começou pela teologia ou foi o inverso?Pouco importa agora. Não agora, para respondermos à nossapergunta, que exige uma certa pressa. Nenhuma boa resposta podeser dada se houver muito tempo para ser emitida. Ora, precisamossempre justificar o nosso modo de fazer as coisas!

- Era do destino que estávamos falando, mesmo. Se você nãotem um plano prévio, pensado e estruturado antes das coisas

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tem um plano prévio, pensado e estruturado antes das coisas

acontecerem; sem que você tenha dado o primeiro passoimplementativo, a história ainda não começou a acontecer segundoa vontade do plano pensado. É o plano pensado pelos outros queestá em prática. Você ainda não está influindo na história de suavinda, antes de dar o primeiro passo. Fios de marionete estãoagarrados aos seus pulsos, pernas e cabeça, antes de andar pelasua própria cabeça. Quando não sabemos de quem é o plano queestá sendo posto em prática e somos atores do mesmo palco,estamos diante do plano que se denomina destino. Você viu como éfácil???

- Destino é o plano que não foi pensado por você! É o planoalheio. Destino é o plano alheio! Você decide a vida dos outrostodos os dias, sem se dar conta. Faz o destino dos outros! Pensouque ninguém fazia o seu? Que ingenuidade! Viu como é simples!Você já havia pensado nisso? Não?? Então, a história da consciênciadeste preciso fato presente não foi decidida por você?? É o destinote fazendo o agora, não é mesmo?? Pegue a hora e aproveite odia,... antes que algum aventureiro o faça!

Conto 15, de 04/07/2000, terça-feiraVerdade - PROVA - Falsidade João Protásio Farias Domingues de Vargas

Não tenho tempo para este conto. Nem sei porque me impus estedever ridículo de escrever uma Conto por dia! Estou duas semanasatrasado no cronograma, o que me faz fazer e dizer para trás. Estouenganando os leitores do futuro. Mas, quem se importa com issoalém de mim mesmo? Sem revelação, o que é a verdade, não émesmo? Mentira? Não. Verdade, também. A mentira não existe emabsoluto; é na relatividade da vida que ela se insere; compete, naverdade, com a verdade. O que seria da verdade sem a mentira?Nada. Uma se escora na outra para se demonstrar; perna dum,perna do outro.

Estamos tão impregnados dessas duas palavras que quase nãoconseguimos dizer nada sobre prova sem elas. Pois acho que elassão incompletas sem uma terceira, quase sempre esquecida pelaspessoas. Trata-se daquilo que é necessário quando duas pessoasestão com tesão e a afinidade e a infra-estrutura da oportunidadeestá presente!

"Verdade - prova - falsidade", eis o tripé de toda a realidade; otripé da vida, diria, e acresceria a expressão: "sem sombra dedúvidas!", como se a dúvida fosse uma coisa sólida e ereta erguidaentre a os olhos da mente e os raios do sol! A sombra da dúvida!!!Essa é muito boa, mas, vamos lá!!!... Bom, é melhor do que aquela

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Essa é muito boa, mas, vamos lá!!!... Bom, é melhor do que aquela

tal da "gota de verdade", de que falam alguns por aí, - como severdade ou falsidade viessem embaladas em frascos decomprimidos, vidros de farmácia ou descessem torneira abaixo, oupudessem ser coadas em bules de cozinha, etc!

- O que dizer das verdades que o tempo demonstra falsas? Comose sai dessa arapuca da História! E como ficam os sacrifícios que sefazem em nome ou por causa da verdade? E as injustiças de hojeque revelam as justiças do passado? O que fazer com elas? Vocêtem uma resposta para isso? Como evitá-las? Afinal de contas, oque é a "CERTEZA" de que tantos falam? A "EVIDÊNCIA" de quetantos mencionam em seus belos discursos?!

Mas o leitor deve estar se perguntando, em sua consciência quenão cala a boca: - Vamos, por isso, desistir da busca da verdade?!

Eu faço uma pergunta anterior: Se não buscarmos a verdade,incessantemente, tudo de que disporemos é a falsidade? É possívelpensar sem algum critério? Me responda, leitor filósofo! Não fiquemudo agora!! Então, quais são os seus critérios de verdade? O quedistingue o joio do trigo é a sua cor? E pergunto, já fazendo umgancho à verdade bíblica, pois, com certeza, lá devem estar osmelhores critérios, não é mesmo ???!!! Verdade alegórica ou alegoriaverídica??? Me responda! Sabe responder ou não quer responder paraevidenciar a verdade de suas contradições?

- Os fatos dão a verdade! - deve estar pensando, com certeza! -Ora, que ingenuidade!!! Não podemos nos anteciparmos a eles efazê-los moldados à nossa vontade, ao poder que dispomos deformatar parte dos fatos da realidade? O plano não é um projeto derealidade? Saia dessa, se puder!

Eu não sou cético! A verdade precisa de crença para existir? Queverdade é essa que se estriba na fé? - Fé na verdade! - não é assimque dizem alguns cientistas? A ciência dá os critérios paraauferimento do grau de verdade ou apenas dá os critérios quequalificam um tipo de verdade, aquela que é produzida segundo osseus próprios métodos? Critérios de verdade são moldes deverdade? Como a fôrma para um sapato segundo a dimensão de umcerto pé que o ajustará. Machado de Assim, em um de seus contos,falava em: "Não demorou muito para que o sapato se ajustasse aopé". Lembra também a expressão "a mão e a luva". A verdade é amão ou é a luva da realidade? Ou a verdade está do lado de forados dois, olhando para ambos e para o entorno, desconfiada de quenão sabe onde está e nem do que se trata tudo aquilo? A verdadecomporta dúvida ou é indiscutível, - como dizem alguns sábios dopresente e do passado?

A luva é o critério de verdade da mão? A mão é o critério daverdade da luva?

Sabe responder, leitor inexistente?Os médicos usam uma expressão engraçada: "desenganada".

"Fulano está desenganado pelos médicos!" O que isso quer dizer?Aqui, enganar é algo bom? Por acaso, se um médico disser: "fulanoestá enganado", estamos diante de algo bom para o paciente? Odesengano parece ser a fina palha de verdade no paiol da existênciada pessoa!

- A verdade está enganada! - É possível fazer esta afirmação teralgum sentido?? "A verdade é boa de enganar", dizia a letra de uma

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algum sentido?? "A verdade é boa de enganar", dizia a letra de umamúsica cantada pela Gal Costa, anos atrás.

Maquilagem engana? Plástica engana? Silicone engana? Processoengana? Palavras enganam? O que é capaz de desenganar? Adesilusão é o resultado de um engano ou o alcance de uma novarealidade?

Estas perguntas não querem calar, não é mesmo? Quando vouparar de fazer estas perguntas sem que tenha como respostas novasperguntas? Lembro a "náusea" de Sartre! Me veio à cabeça apalavra, não sei por quê.

- Como saber se a verdade é uma mentira ou esta é aquela? Ummoralista diria que esta pergunta é imoral, olhando para mim com acerteza de quem está na posse de toda a verdade! Posso imaginar,seus olhos de censura e razão, sem admitir uma sombra de dúvida!

Eu só não sei onde está posto o corpo do moralista no espaçodesta imagem, se antes ou depois da sombra. - "Tudo que é sólidodesmancha do ar"? "Flutua no ar"? "Flutua na água"? A verdade ésólida, gasosa, líquida ou coloidal? Vamos penetrar os olhos namatéria dos físicos, até o átomo que foi de Demócrito. Os elétronsflutuantes, o núcleo, toda aquela imagem que aprendemos nosegundo grau escolar, faz sentido de verdade? Você viu um elétronandando pela rua nessa manhã? Falou com algum? Ele revelou a suaverdade, a verdade, ou uma verdade, ou nenhuma verdade, ousilenciou na imagem de sua alegoria? Quer falar sobre isso?

Falseie o critério que sustenta a verdade de alguma coisa erestará falseado o seu próprio produto. Duvida disso? Faça o mesmocom o critério que o levou a falsear o critério do outro? Fê-lo? O querestou agora de verdade? Pouco ou muito? Vá em frente. Agora façao mesmo em relação a todos os critérios que estiver ao seu alcance.Faça isso o dia inteiro. Ao cair da tarde, volte para casa e pense emsua grande façanha técnica, assista um pouco de TV e vá dormir,com a consciência tranqüila. Quando acordar pela manhã, escrevasobre a sua experiência e veja se tudo fez algum sentido. Vocêmelhorou o seu critério de verdade ou apenas aprimorou o seu sensode desespero?

Agora imagine com eu estou me sentido agora, que estáterminando a leitura destas linhas! Isso é verdade ou mentira? Vocênão tem como saber! Falta o critério! Qual? O que vai fazer quandoeu contá-lo? Nada! As mesmas perguntas seguirão seu caminhocomo sempre fizeram. A verdade está onde não pode logicamenteestar.

Conto 17, de 05/07/2000, quarta-feiraFazendo uma canoa João Protásio Farias Domingues de Vargas

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- Com quantos paus se faz uma canoa?- Dez! Cinco! Dois! Um! Nenhum! Cem! Mil! Duzentos! Quantos?- Depende da canoa. Depende dos paus. Depende do que você

quer fazer com a canoa. Depende do que você não quer fazer com acanoa. Depende de qualquer coisa e de nenhuma. Dez podem sermuito; mil podem ser pouco. A canoa precisa fazer sentido para queos paus sejam necessários. Os paus precisam fazer sentido para quea canoa seja necessária. Mas, você pode pensar em outra coisa quenão em paus e canoa, se quiser; pode mudar de idéia; pode buscaroutra saída ou entrada.

Este diálogo faz sentido para muita gente; para outros, como eu,nem tanto. Mas, eu sou o responsável pelo diálogo. Se pu-lo aí,deve fazer algum sentido para mim, por menor que seja, não éverdade?

- A canoa é a vida - diriam alguns. - É preciso se fazer na vida -dizem outros. Se fazer o quê? O barco da existência! De onde saiuesta preocupação com a canoa? Este meio de transporte faz sentidopara aquele que vive longe dos rios e dos mares? A metáfora denotao autor!

Por que é importante saber com quantos paus se faz uma canoa,se canoa nunca vai ser construída por quem se coloca essa questão?Fazer o próprio veículo de transporte faz sentido nos últimos mesesdo século XX, nos últimos dias do milênio, onde tudo, ou quasetudo, para se ter acesso, precisa de dinheiro e compra ou deautorização do Estado?

Quem se coloca essa questão deve estar disposto a respondê-la,mesmo que não o consiga. - Depende do tamanho da canoa -responderia alguém preocupado com o "modus faciendi", já dandouma de engenheiro ou arquiteto. Se dou uma resposta inicial, aindaque hipotética, estou nesse campo intelectual. Eu comprei a briga eagora vou construir a canoa - deve ser a reflexão do respondente. -De que tamanho você vai querer? - perguntaria uma mente práticade vendedor, dando ares de quem pode dar uma resposta adequadapara satisfazer a vontade do cliente, olhando por detrás do balcão.

Um corretor já se perguntaria se há ou não seguro disponível nomercado, de vida e material, com cobertura geral, total ouespecífica. Um advogado levantaria a questão da autorização ehabilitação do construtor; sobre o contrato entre cliente eempreendedor. O pescador pensaria no volume necessário para astonelagens que pudesse comportar. Um taxista imaginaria um modode transporte de cabotagem, com tempo cronometrado. Um juiz seperguntaria onde está o conflito de interesses a ser dirimido e se háprocesso em andamento.

- Afinal, o número de paus é realmente importante para a canoa?Tenho minhas dúvidas, agora, no alto (ou no baixo) dessas últimasindagações. Você, leitor, onde está posicionado, nesse mundo deplanos e olhares postos? Sabe realmente onde está ou quer estar?

Estou desistindo de continuar nessa linha de questionamento.Vou encerrar a conversa por aqui, sem conclusão alguma. E acanoa??? Quem se importa!

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Conto 18, de 06/07/2000, quinta-feiraUm tempo de leitura João Protásio Farias Domingues de Vargas

Naquela manhã o sol estava lindo e o dia muito claro; céu azul,cidade limpa e muita gente pelas ruas. Não ouvia pássaros cantaremcomo no interior, mas o som dos carros não estava intenso a pontode destoar de um ritmo agradável para o andar. Ainda que frio, o armatutino, como sempre, renovava o ânimo de esperanças sobre ashoras que viriam. Como Blaise, não esperava muito da vida; tinhaconsciência de que tinha muito para dar; mais do que a receber. Opasso estava lento; ouvia os sapatos baterem firmes na calçada,enquanto olhava as placas de publicidade e os ângulos diferentesdos prédios, acima da cabeça. Estava confuso no pensar, mesmoque a máquina estivesse bem descansada. Há muito tempo nãosabia distinguir entre o corpo que carregava um cérebro e umcérebro que comandava um corpo; a diferença só se apresentavaatravés do verbo, da fala, do diálogo; era necessário conversa paraa distinção ocorrer. Não tinha dúvida de que, naquela precisacaminhada, conversava consigo mesmo e dirigia seu próprio corpo.Tinha tomado bom café e estava indo para mais um dia de trabalho.A vida era bela.

Enquanto progredia em direção ao centro, lembrava do diaanterior. O que havia feito de mais importante? Lembrou daconversa com um amigo partidário, mas descartou a hipótese; teriasido mais importante, se tivessem arrematado alguma coisa a serfeita pela frente; o encontro se resumira na cortesia do próprioencontro. Veio à cabeça o texto que havia escrito em defesa de umapessoa em dificuldade e achou a hipótese por demais cristã, ínsitano rol das boas ações. Não era o que estava procurando. O filmeque assistira na televisão bem que poderia concorrer, mas nãoqueria dar votos de louvor para uma cadeia de televisão que temtanto oprimido; era a perda de tempo o que estava no jogo e queria,agora, ver o que tinha feito de mais importante; logo, não poderiater sido o fato de assistir um pastelão à noite.

A dificuldade em definir o que tinha sido verdadeiramenteimportante no dia anterior persistia e não conseguia o intento. Foi aíque lhe veio a idéia de tentar elencar um critério que pudesse definira importância maior que levantava em sua reflexão distraída pelasruas da cidade. Critério estético? Critério conversa séria? Critérioação concreta? Qual deles não sabia definir. Verificou, então, queestava enveredando para outra seara: o critério mais importantepara definir o ocorrência de vida mais importante em um tempo de24 horas. Tinha dificuldades em sair dessa. Lembrou-se quecostumava decidir muita coisa pela simples imposição do critério,forçando a mente a contraditá-lo, ainda que a posterioril; afinal, no

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forçando a mente a contraditá-lo, ainda que a posterioril; afinal, nodiálogo da mente, as decisões podem sempre ser revistas.

De pronto, decidiu-se. O critério seria o da ação concreta. Clareouo terreno, quando atravessava a última rua, antes do seu destino dechegada. Precisava ser rápido, pois depois outras ocupaçõestomariam o espaço daquela reflexão lúdica. Ter tomado um caféexpresso na galeria, enquanto folheava as páginas do novo livro quecomprara. Refletiu um pouco e achou que o fato de folhear um livrosaboreando um café não poderia ter sido tão importante assim paraa vida de um homem em um dia inteiro. Falseou a hipótese.Lembrou de várias cenas, inclusive das imaginadas; essas estavamfora, eis que o critério estava na concretude externa do fato.Lembrou. Era isso mesmo. Havia descoberto que de tanto pensar oque os outros querem e o que a mídia impõe, esquecera de comprarlivros para ler e completar os vazios das prateleiras da sala deestudos. Tinha perdido o hábito de ler o que não fosse documentoou jornal, mesmo que na internet.

A importância do fato estava na devolução da consciência do quenão mais estava fazendo. O ambiente, o café e a obra abriram-lheos olhos para o fato de que estava banalizando a aprendizagempelas leituras de mera conjuntura, abandonando as de fundo. Eraisso mesmo, o que fizera de mais importante foi comprar o livro etomar o café, passando-lhe os olhos e a boca.

Já estava no elevador, quando os pensamentos estavam nesseponto. A ascensorista alertou para o andar e ele desceu, ganhando olongo corredor que todos os dias avançava em direção à porta deentrada. Quando ganhou o rol da sala, acendeu as luzes e puxou ascortinas, para a luz do sol entrar, os pensamentos, meioesmaecidos, ainda pululavam em sua cabeça: - Preciso ler mais.Estava pensando em quando foi que leu pela última vez uma obrainteira, ainda que técnica, quando tocou a companhia e o telefone,ao mesmo tempo. Foi até à porta e fez passar a pessoa e foiatender o telefone. Não havia mais espaço para a reflexão queestava fazendo. Enquanto dava o jornal do dia para a pessoa eouvia a fala na linha, pensou em retomar aquela reflexão na manhãdo dia seguinte. Ler mais, eis o que foi mais importante e não fizerano dia anterior.

Conto 19, de 07/07/2000, sexta-feiraAntena paranóica João Protásio Farias Domingues de Vargas

Não sabia porque ainda não tinha posto uma antena parabólicano apartamento. Olhava a janela descortinada e os três fios grossosque desciam do terraço em direção ao térreo, na verticalidade cinzados andares. Do outro lado, distando um 12 metros, estava a parede

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dos andares. Do outro lado, distando um 12 metros, estava a parede

do prédio vizinho. Vias as janelas, as cortinas, o cimento e algunsaparelhos, através das vidraças.

Net, não dava. O técnico veio e disse que a área toda da rua nãocomportava o acesso devido ao aclive acentuado. E a parabólica,dava? Dava. O que faltava. Não sabia. Qual a melhoria? Mais canais,melhor imagem. E o que mais? Nada mais. Só isso. Era prioridade?Não sabia. Já eram cinco horas. Passaram-se três desde quecomeçou a pensar. Mas, afinal, por que uma paranóica? Custavamuito caro? Não. Então, o que era? O que o impedia de tê-la? Nãosabia.

Já gastava mais tempo do que tinha naquela maldita TV. Aantena roubaria mais tempo. Sempre cedia à sedução das imagens.Não queria a si tanto naquele sofá. Quando via, olhava a vidraça, osprédios e o aparelho. Questionava-se sobre a intoxicação deimagens de filmes e de propagandas que introjetava goela abaixo.Não havia tempo para críticas; eram muito rápidas; quandocomeçava a pensar num assunto, já estava outro em pauta. Eracomo comer sem saborear nada. O enredo de um filme, qualquer quefosse, ainda poderia pensar nas cenas seguintes, duvidar dashipóteses, criticar a obra; afora isso, pouco dava prá fazer. Novelas?Não assistia. Seriados, também não. E o vídeo-cassete, comoficaria? Concorreria. Muitos canais é bom, mas requer tempo, essaferramenta do agir tão escassa.

Via de novo os fios escorrerem sobre a janela dos fundos, dois aolado do seu, ali, posto, mas sem conexão com nada. Qual adiferença substancial. Para ele, nenhuma, exceto o que poderiaestar a eles conectado. O seu terminava em cima do arquivo de aço,perto objetos que ornavam a sala de leitura, e na da mais.Consumismo? Pode ser. Não precisava de uma parabólica. Por queentão a dúvida? Também não sabia. Se fosse imperativo a compra,teria feito há bastante tempo.

Pensou um pouco mais e mudou o dial da mente, estacionandoem outro canal. Era ora de fazer outras coisas. A parabólica ficavapara depois. Já saindo do lugar, veio a imagem dos casebres, nachegada da Praia, todos com antenas parabólicas grandes; algumasmais altas do que as próprias casas.

Mas, já era tarde para pensar nos pobres e nas parabólicas queos entretém.

Conto 20, de 08/07/2000, sábadoA imoralidade da moral João Protásio Farias Domingues de Vargas

Paulo tinha assistido a um filme na TV, numa dessas noites de

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Paulo tinha assistido a um filme na TV, numa dessas noites de

final de semana, no qual, o protagonista estrangeiro, russo quetenta a vida e a cidadania norte-americana fazendo pequenosbiscates, comenta com sua amiga o filme que acabaram de assistir,enquanto lhe aplica uma cantada para irem ao seu apartamento,diz:

- Não gostei do filme. Aliás, o gênero não é bom. Termina sómostrando os fatos, sem nenhuma tirada de ensinamento moral. Umfilme de conteúdo e conclusão vazios.

Ficou pensando na afirmação. Um filme para ser bom precisa terconclusão moral explícita? A afirmação faz um julgamento moral, aamoralidade do filme. A ausência de explicação moral não constituiuma afirmação moral? A amoralidade não seria uma forma decomportamento moral? É claro que sim. É moral ser amoral! Afinalde contas, o que é ser moral? É agir em conformidade com umaregra comportamental valorada como boa, útil, importante ounecessária.

A amoralidade, repetia a si mesmo, é uma moralidade; diferenteé a imoralidade, que nega uma determinada regra de moralidade,qualquer que seja. E, a imoralidade, também não seria moral? Claroque é! Imoral para um, moral para outro; o que nega uma regraafirma outra, antitética, contraditória. Também é afirmaçãocomportamental para o humano. A regra moral dita o direitosegundo o pensamento de quem a afirma; se o Estado pode impô-lamediante sanção, então a regra, além de moral, passa a ser,também, jurídica. Não é o caso do filme, cuja discussão é cultural,mas houve época em que modos morais foram impostos comsanções severas, a exemplo dos nazi-facismos, dos comunismosdecadentes, ambos europeus e asiáticos.

Os contos infantis quase sempre trazem a "moral da história"explicitada ao final, primando pelo cunho educativo dos valores queo seu conteúdo encerra. Seria imoral um comportamento em umpaís, moral em outro, jurídico noutro e amoral num quarto? Épossível. Portanto, a moral varia no espaço. Varia também notempo? Sim. Exemplo está na questão da sexualidade, no divórcio,na linguagem, dentre tantos outros.

Paulo, com essa reflexão, viu que a afirmação do protagonistarusso estava eivada de um desconcerto: a ausência de tolerânciacultural. Isso era um preconceito, logo, do seu modo particular dever, um comportamento imoral. A personagem propunha uma análisemoral dentro do campo da imoralidade. É possível uma afirmaçãocomo essa? Sim. Tanto o é que a estava fazendo. Ficou maistranqüilo e trocou de assunto em seus pensamentos.

Conto 21, de 09/07/2000, domingoFases e crises na vida dos casais João Protásio Farias Domingues de Vargas

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O cotidiano dos casados não é coisa fácil de suportar. Não háregra certa que ensine melhor viver e que possa ser usada porqualquer um. A famílias são diferentes, exceto as norte-americanas,é claro, que são todas iguais, segundo os estilos padronizados dosfilmes yankees que passam no terceiro mundo, pela televisão.

O senso comum fala das fases. Alguns dizem que são cinco. Afase áurea: nos três primeiros anos. Vem a crise dos três. Superada,aparece a fase dos cinco anos, que é sucedida pela segunda crise.Adiante, a fase dos dez anos, sucedida pela terceira crise. Depois,as fases dos vinte e dos trinta em diante. Todas elas mediadas pornovas crises, de mesmo nome.

A crise dos três anos é chamada de Crise da Separação. O casal,em geral já com filho, revisa a convivência e conclui que a melhoralternativa era cada um ter permanecido solteiro; teria ganhadomais, pois a chance de ter conseguido algo melhor ainda erapossível. A maioria se separa nessa fase. Os que não têm filhos,com maior facilidade ainda. Ambos estão jovens e podem recomeçarfacilmente suas vidas, cada um para um lado. O que caracteriza acrise é a autenticidade dos sentimentos do outro: me ama ou não?

Se consegue superar a crise dos três anos, logo em seguida vemuma segunda, já entrando no sexto ano de convivência. A fase doscinco anos não é tão complicada, mas é mais severa. O casal seconhece melhor e, em geral, já estão mais acomodados às maniasde cada um. Muitos sonhos já foram deixados de lado, mas nãotodos. A discussão começa a ser menos no tocante à dúvida sobreos sentimentos do outro, mas sim o grau de contribuição patrimonialde cada um para o monte que pode ser inventariado. O dinheiroassume papel preponderante. Estão mais velhos e a cabeça maisfria, assim como o próprio modo de sentir o outro. A crise se instalaquando o desequilíbrio de contribuição é supervalorado por qualquerdeles. Se não há separação, presume-se que houve superação dacrise.

A Fase dos dez anos é permeada pelo auge de intimidade docasal. Cada um conhece o outro quase melhor do que a si próprio.Sabem dos sentimentos um do outro, do patrimônio que cada umajudou a construir, bem como o modo como pensa o mundo e ascoisas. A amizade passa a ser valorada quase com o mesmo pesoque o amor, até porque quase se confundem. Os problemasreferentes ao trabalho e ao dinheiro, juntamente com a intimidade,leva cada um a tratar o outro como efetivo familiar, irmão, pais, etc.As palavras de baixo calão se tornam corrente e os julgamentosmorais muito presentes e severos em quase todos oscomportamentos cotidianos.

O controle sobre o outro apresenta suas garras e presas de formamuito felina. A dignidade de cada um passa a ser posta em questãonos atos de julgamento moral. É o impasse da crise, que ocorre jáno varar do décimo-primeiro ano. Puta, vadia, galinha, galinhão,sem-vergonha, pedante, atrofiado, brocha, frígida, ovelheiro, dosa,burro, idiota, ignorante, malcriada, vaca, porco, e assim por diante,com impropérios de todo tipo. Coisa que na fase anterior ainda nãoaparece na maioria das vezes. A ofensa moral, matizada na calúnia,difamação e injúria, inclusive a real, se torna corriqueira. A um

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difamação e injúria, inclusive a real, se torna corriqueira. A umpasso das vias de fato, comumente se agarram, se batem, se

esfolam e depois transam, como se nada tivesse acontecido. Osescândalos públicos começam a aparecer e a se intensificar. Se nãohouver separação, a fase está superada. Só daí a dez anos é quenova crise virá.

A fase dos vinte anos de casado ou de convivência amorosa é amais complicada de todas. Mais velhos, quase todos os sonhos derealização estão enterrados. A família assume postura conservadora.Cansados de guerra, ficam em trégua, conformados à misériaexistencial que não conseguiram afastar. As fantasias de liberdadese tornam recorrentes e todos os defeitos são atribuídos ao outro,como responsabilidade provada. Não sou isso porque tu não quis,impediu, deu prá baixo, afastou, detonou, etc. Os filhos já estãograndes e entram em quase todas as discussões de intimidade. Aguerra dos sexos se instala e as trincheiras ficam permanente aocéu aberto.

A crise dos vinte anos, como as demais, já contando com oacúmulo de três outras superadas, é Conto; ainda que fraca paragerar rupturas, eivada de lamentações do tipo "Ah, seu eu tivessefeito isso... Ah, se eu tivesse feito aquilo...", tende a mantertencionado o relacionamento pelo resto dos anos vindouros. Apósessa crise as cenas de adultérios tendem a se institucionalizar.Aceitas por uns casais, rechaçadas por outros, o fato é que, ambosmais velhos, buscam o resgate do tempo perdido em novosrelacionamentos, mais flexíveis, mantendo o antigo. Os paralelosdão alento à continuidade. É a própria existência de cada um quepassa a ser questionada, em sua individualidade e sua coletividadefamiliar e social. O valor da vida é posto em questão em função dahistória percorrida.

As fases e crises seguintes, em geral decanais, não são maisimportantes do que essas quatro primeiras, pois essas dão ascaracterísticas e experiências que irão se repetir em todas asdemais.

Crise do amor, crise do dinheiro, crise da amizade e crise daexistência dizem tudo da vida a dois. Essa tipologia quadrangular éidealizada; não quer dizer que todos os relacionamentosapresentem-se na seqüência temporal e característica apontada paratodos. Há relacionamentos que apresentam os caracteres de alguns,de vários, de muitos ou de todos os tipos formais postos.

Amor, dinheiro, amizade e existência ou vida são valores quepermeiam qualquer relacionamento amoroso. Eles estão presentesdesde o início, entretanto, de tempos em tempos, cada um passa aassumir um papel de relevância ou prioridade maior do que outro. Seum casal se ama, tem dinheiro com facilidade, é amigo e sempredialogam sobre as suas existências, tendem a superar as crises commais facilidade; do contrário, as crises podem gerar rupturas.

Viu? As fases e crises na vida dos casais não são fáceis e nãosão pouca coisa.

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Conto 22, de 10/07/2000, segunda-feira

Gays, lésbicas travestis e transgêneros João Protásio Farias Domingues de Vargas

Como se chama o homem ou a mulher que tem comportamentosexual heterodoxo? Uns dizem: homossexuais. Pois bem, osmovimentos sociais dessas pessoas buscam novos conceitos edistinções. Nessa semana eu ouvi quatro modos de designação:gays, lésbicas, travestis e transgêneros. Gays são os homens quesexualmente se identificam com outros homens; lésbicas, o mesmo,com mulheres. Travestis são os gays ou lésbicas que se portamcomo se fossem do sexo oposto. Os transgêneros são aqueles quemudam anatomicamente de sexo.

Os movimentos propugnam por uma distinção bipartite de livreopção sexual: homossexuais, heterossexuais e bissexuais; osprimeiros, distintos nos quatro tipos acima apontados, assim comoos segundos nos dois biologicamente tradicionais: masculino efeminino. E como ficaria a terceira distinção? A resposta seriasimples: agem socialmente como hetero e como homossexuais, valedizer, relacionam-se sexualmente com homens e mulheres, aomesmo tempo ou de maneira diferida no tempo.

Uma coisa é o sexo biológico, outra é o sexo anatômico e, umaterceira, é a opção sexual. Um ser humano masculino sem pênis esem saco escrotal como seria chamado? Deixaria de ser masculinobiologicamente? Não, mas anatomicamente não o seria mais, pelomenos em sua faceta externa. Um mulher sem ovários, sem útero esem seios continuaria sendo uma mulher e do sexo feminino,entretanto, aparentemente poderia ser difícil a sua identificação.

Um homem que faz operação sexual e muda de sexo, incluindoseios, aparentemente pode ser uma mulher, mas continua sendobiologicamente homem, segundo os exames biológicosidentificadores do Corpúsculo de Baar. Uma mulher que implantassepênis e suprimisse as mamas continua sendo do biologicamente dosexo feminino, ainda que sua aparência sexual se tornassemasculina, assim como o seu comportamento sexual.

A Biologia registra casos biológicos de pessoas que possuemórgãos genitais de ambos os sexos e que, pela presença do referidocorpúsculo, são identificados como sendo do sexo feminino, mesmoque suas características pendam mais para um ou para outro.

Superada essa brevíssima discussão terminológica e científica,com todas as deficiências que o curto espaço de escrita comporta,perguntamo-nos no tocante à aceitação moral dos comportamentosapregoados pela livre orientação sexual. As opções que destoam dobiologicamente dado são morais, imorais ou amorais? Como valorare julgar esses comportamentos sexuais, que não são novos nahumanidade, se é que é preciso julgá-los?

Achamos que é preciso julgar sim, pois é impossível estabeleceruma ausência total de conhecimento e avaliação sobre oscomportamentos sociais que vivenciamos. Não há neutralidade emmatéria de comportamento humano, pois todos eles nos afetam pelosimples conhecimento de sua existência.

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simples conhecimento de sua existência.Se nos perguntarem qual seria o comportamento social mais

adequado para alguém no tocante à aceitação/inaceitação socialsobre o comportamento sexual/erótico/amoroso dos outros,sugerimos que seja o de aceitação e tolerância. Propugnamos,portanto, por uma superação de posicionamentos morais em prol deuma posição ética, i.e., válida para todos.

Assim, se alguém é ou está heterossexual ou homossexual oubissexual, "let it be", "laissez-faire, laissez-passé". Se não agirmoscom tolerância na diferença ou contraste com a nossa própria opção,como exigir a tolerância dos outros em relação à nossa, nos diversoscontatos, grupos, sociedades e comunidades por que passarmos ouestivermos? Seria um contra-senso agir distintamente. A ética é amesma para todas as diferenças, sejam elas morais ou religiosas.Houve um tempo em que a Igreja Católica acusava, julgava eexecutava com morte na fogueira inclusive por posições meramenteintelectuais, a exemplo de Giordano Bruno (Galileu Galilei foi maisesperto). Os tempos mudaram; a forma de encarar os direitos do serhumano também mudaram. O respeito às opções sexuais deve estarposto em seara da garantia do direito à liberdade.

É possível viver e conviver nas diferenças, pois a vida demonstraque é do seio das igualdades que as desigualdades são despertadase vice-versa. Impor aos outros comportamento igual é, inclusiveesteticamente, deplorável, ainda que dentro das hierarquiasburocráticas. Sabemos que o funcionamento de certos organismosexige uniformidade comportamental, entretanto, a flexibilidade davida social não pode ser aquartelada por muito tempo.

Gays, lésbicas, travestis e transgêneros são comportamentossociais aceitáveis desde sempre e não temos o direito de invadir aseara de liberdade dos outros, para reduzi-los ao capricho do nossomodo de ver como os seres devem se relacionar erótica, sexual eamorosamente. Sem ser estóico ou epicurista, um meio termo cairiabem: esto-epicurista, pois para o alcance da felicidade tambémprecisamos de um certo regramento de ação. As distinçõesclassificatórias e conceituais também fazem parte desse bojo,visando alargar as aceitações e relativizar as exigências, levando emconta tempo, lugar e circunstâncias, permeados pelo consenso ouconcerto de vontades dos agentes ou atores envolvidos.

Conto 23, de 11/07/2000, terça-feiraA ética da moralidade João Protásio Farias Domingues de Vargas

Toda ética é moral, mas nem toda moral é ética. Uma moral podeser individual, particular ou social, conforme seja assumida por umapessoa única ou por duas ou mais integrantes de um determinadogrupo, qualquer que seja o número de seus integrantes. Ética se

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grupo, qualquer que seja o número de seus integrantes. Ética sedistingue de moral, pois a característica principal da eticidade é a

sua universalidade de aceitação e isso é possível de sercompreendido e entendido pela racionalidade. Preservar a vida doser humano é um postulado ético; em qualquer lugar do mundo épossível garantir-se consenso sobre isso, até porque todos oshomens são mortais. Diferentemente ocorre no tocante ao postuladode segregação racial, que pode ser um comportamento moral de umgrupo de brancos em determinado local do planeta.

A característica principal de qualquer finalidade moral ou ética é agarantia do bem, do que é bom, evitando-se o que é mal, o que émau. O dualismo bem-mal, bom-mau é inevitável nesse tocante,pois está no cerne de qualquer valoração comportamental a aconseqüente ação de respeito pelo que é diferente.

Pergunta-se: existe o bem, o mal, o bom e o mau em formaabsoluta, o sumamente bom, por exemplo, na concretude da vidareal, fora de um contexto de arbítrio, seja de que matiz for,religioso, científico, filosófico, etc? Se existe, ainda não foiconhecido pelo ser humano, para além das palavras que possamafirmá-lo tão-só à base de mecanismos racionais. Se existisse algosumamente bom, bom para todos e para tudo, em todos os tempose lugares, ainda assim, a afirmação classificatória seria feita poralguém, por um ser humano ou por um grupo de pessoas. Haveriaconsenso universal sobre isso? Como sabê-lo em sua integralidade?Como efetuar uma consulta desse tipo? Como verificar que nãoficaram pessoas de fora dessa votação.

Antes disso, ainda, o consenso sobre o sumamente bom ou mau,sumamente bem ou mal, ainda assim estaria posto historicamenteem uma determinada conjuntura. Como se poderia saber que asgerações seguintes, eternamente, pensariam da mesma forma, semalguma revisão? Não há como sabê-lo. Está posto o desafio paraaqueles que pensam sabê-lo, bem como para a aferição de suasprovas fáticas e racionais. E, mais uma vez, o consenso universalseria uma necessidade confirmatória. Uma petição de princípioestaria estabelecido. Portanto, é impossível racionalmente seencontrar o sumamente bom no concerto de vontades e sem ahistoricidade típica de qualquer evento humano. Seria arbitrário;mais, seria totalitário e, logo, injusto.

O absoluto não pode prescindir do relativo e vice-versa. Só oideal pode ser absoluto; o real está preso à racionalidade dorelativo, das relações, das ligações, dos liames, dos laços, dasconexões, das comparações. Todo absoluto é um imposto, é fruto doabsolutismo de uma posição ou opção. Nem mesmo uma ética podeser absoluta, pois o relativismo e a tolerância constituem valoresínsitos em suas próprias concepções.

Poder-se-ia dizer que uma norma pode ser absoluta? Não. Elapode ser imperativa em um certo lugar e num certo tempo,sujeitando-se às mudanças históricas. Portanto, relativa temporal etopologicamente. Absoluta nesse lugar por algum tempo, é possível?Também não, pois seria necessário verificar-se a sua efetivaaplicação em todos os casos possíveis. Se houvesse um só caso deinaplicação, o absoluto já estaria falseado.

E os números absolutos da matemática, são reais? Não, sãoideais.

Uma moral absoluta seria uma impossibilidade lógica. A lógica é

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Uma moral absoluta seria uma impossibilidade lógica. A lógica éabsoluta? Não. Depende da lógica e de sua aplicação. A sua

existência é absoluta? Não, pois é criação cultural.Há alguma coisa que não seja criação cultural? Há. As coisas da

natureza. E suas leis são absolutas? Não, pois dependem dascondições de observação para o seu conhecimento, a exemplo dafamosa "c.n.t.p - condições normais de temperatura e pressão". E naFísica, que estuda o movimento dos corpos, existe algo absoluto?Não. Também porque o absoluto precisa ser conhecido e todoconhecimento é relativo ao sujeito, ao objeto e às condiçõesobjetivas do próprio ato de conhecer, que variam no tempo e noespaço, em função dos instrumentos de aferição e verificação.

Por que, então, haveria uma moral absoluta, ou mesmo uma éticaabsoluta? Não há razão alguma, mesmo que fosse para supô-la, jáque a moral se restringe à regulação do comportamento humano emsociedade, sem coatividade imperativa; trata-se de umacompreensão pré-jurídica, em sua essência.

Obrigar uma mulher a usar saias de certo tamanho oumaquilagem de certo tipo ou formato do corpo em certo manequimconstitui um comportamento moral. É aceitável? Depende davontade da mulher e do meio em que ela está inserida, do bojosocial de onde verte tal regra moral. Classificá-la de indecente ouobscena constitui julgamento moral que, como todo ato de julgar,também está posto aos olhos morais dos outros.

O fato por julgar e o julgamento feito constituem fatos e atosmorais, respectivamente. São os outros os juízes dos nossos atos,assim como somos juízes dos atos dos outros. Julgar é normal; nãojulgar é impossível. Difere julgamento moral interno e julgamentomoral externado. Se abdicamos de julgar moralmente umdeterminado ato ou fato moral, isso importa na sua expressão,entretanto, internamente, o julgamento sempre é feito, antes oudepois de qualquer emissão de vontade.

O único ato moral que pode ser universalmente aceito é aqueleque é estribado em uma concepção ética. A ética da moralidade sópode ser uma: o ser humano é livre para agir em conformidade coma sua própria consciência, ainda que a sua ação possa vir a seconstituir em uma ilegalidade jurídica ou moral. A ética damoralidade é a ética da liberdade, pois não há que se falar em moralsem se ser livre para agir.

Todos os padrões morais podem ser falseados, contrariados econtraditados, ainda que, por dever de ofício ou contrato, não possafazê-lo.

Conto 24, de 12/07/2000, quarta-feiraA distância regulamentar João Protásio Farias Domingues de Vargas

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Meu grande amigo Luisão, há mais de dez anos, me deu umagrande explicação sobre a questão da aproximação do sexo opostona juventude e o entendimento da palavra "ficar". Dizia ele queexiste, em qualquer congresso ou reunião grupal, que conte com apresença de todos os sexos, uma certa regra comportamental paraevitar que alguém se aproxime sensualmente demais e para evitarque esse fato dificulte o acesso a outras pessoas que sejam doagrado para os mesmos interesses.

Trata-se da "distância regulamentar". A formulação era aseguinte. Se você é uma liderança ( e essa é sempre enecessariamente política), no trato com o sexo diferente, precisatomar uma certa distância física diante do âmbito visual dos demaisdiferida no tempo. Se ficar muito tempo próximo de uma mesmapessoa, as demais vão pensar que você está com ela. Isso significa"queimar o filme" com as outras, se vier a demonstrar interesse,mais tarde. Se ficar, independentemente do tempo, muito próximofisicamente dela, o mesmo será pensado pelos demais. Tocar emqualquer parte do corpo, abraçar, rir com ela, trocar carícias, pegarda mão, etc., constituem sinais que demonstram que você já estácom ela; portanto, está a ela amarrado. Se tentar ficar com outramais tarde, esse fato notório gerará muitas dificuldades ou atéimpossibilitará qualquer intento.

Portanto, o caminho correto é manter uma distância física etemporal, de modo que não dê a impressão de que você já está comalguém. É isso o que ele chamava de distância regulamentar.Rompida essa, mesmo que você não fique com ela, todos pensarãoque você já está com alguém. Algumas vezes, a regra se impõe detal maneira que você se vê obrigado a ficar com ela, pois já éexpectativa social a união.

Quando você quer ficar com alguém, o primeiro passo é descobrirqual é a distância regulamentar da pessoa, pois ela varia em cadaum. Vai desde estar de corpo coladinho até, mais ou menos, doismetros. Mais do que isso é distância mesmo e está fora de qualquerregulamentação, para os termos de nossa discussão. Não haveráerro, se você chegar o mais próximo fisicamente que puder. Seestiver de corpo colado à pessoa escolhida, e conseguir se conservarassim, você romperá qualquer distância regulamentar. Portanto,milímetro e segundo são as duas variáveis necessárias; centímetro eminuto também valem; agora, metro e hora de sustentação namesma posição indica fortemente que você já ficou ou terá muitaschances de ficar.

Falamos da regra da aproximação ou do contato. Nas discotecasisso é muito comum e mais fácil de verificar. Você deve ficar muitoperto da pessoa que deseja, do contrário, ficará só no desejo. Seserve a regra para aproximar, também vale para afastar. Mesmo quecada pessoa tenha a demarcação do seu próprio território deintimidade em um certo raio em torno de seu corpo, maior ou menor,invadir esse território é necessário para poder ficar. Se nãoconseguir legitimação para permanecer, cessando o esbulho,pacificando a posse territorial, você dançou, e não poderá ficar.

A tese do amigo Luisão era muito interessante, posto queprática. A regulação da distância regulamentar é algo fático e muitointuitivo até. Ele deu ares de técnica para a experiência. Eu mesmopude comprovar, naquela época, o quanto funcionava. A maioria age

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pude comprovar, naquela época, o quanto funcionava. A maioria ageinconscientemente no tocante a sua existência, no entanto, está

sempre presente. É isso o que explica: você fica ou não fica dentrodo espaço da distância regulamentar. Daí, ficar com determinadapessoa, dali em diante, pouco importando o tempo que terá ocontato e o que mais dele poderá advir.

Conto 25, de 13/07/2000, quinta-feiraDe escala a conexão em vôos domésticos João Protásio Farias Domingues de Vargas

Antes de embarcar no vôo brincava com o meu cliente sobre asegurança dos aviões, os problemas de bagagem e de lugares.Comentava que minha pequena experiência demonstrava quealgumas companhias aéreas eram melhores equipadas nisso ounaquilo, enquanto algumas deixavam a desejar em quase tudo. Umadelas era famosa e periclitante em extraviar bagagens, superlotar,balançar e outras coisas mais. A Infraero havia dado o sinal eentramos na área de embarque o aeroporto, no sul do País. Logoveio a bebida e a comida, como sempre. Vôos domésticos e declasse econômica sempre apresentam qualidade menor do que osinternacionais e de primeira classe, é óbvio. Entretanto, o que não éóbvio é que a qualidade seja a ponto de desconforto. Algumasempresas empregam agentes de bordo os mais esquisitos possíveis.Tem uma que emprega somente moças e bonitas, com vozesmelodiosas, muito atentas e muito prestativas; outras, nem tanto.

Já vi casos em que os agentes até destratam passageiros.Recentemente um jornal noticiou o caso de um rapaz que voava doEgito a Porto Alegre, com escala em Buenos Aires. Viajava com suanamorada japonesa. Eis que um certo capitão de bordo sentou aolado da moça e o rapaz percebeu o comportamento inconvenientedele. Desajeitado, como sempre acontece em momentos do tipo,não deixou por pouco. Começou com os pedidos gentis e aprofundouno trato. Encurtando a história, o homem deu voz de prisão aogaroto. Como a espaçonave era argentina, ficou preso na capitalvários dias. Um brasileiro preso por argentinos por causa de umajaponesa. Questão típica de DIP privado. A moça, pivô de tudo,causa ou razão, ficou livre. Foi ela quem intercedeu junto àsautoridades para livrar o namorado. Não sei como se desenrolou ahistória, mas o exemplo demonstra a insegurança dos passageirosdiante do arbítrio dos estrangeiros nos vôos internacionais. Viu, só?Da até prisão.

Malas de quem vai a São Paulo param em Manaus; escalas quese transformam em verdadeiras conexões; os exemplos abundam.

Quando voltávamos de viagem, o horário para embarque emBrasília era 18 horas. O vôo saiu com três horas e meia de atraso. A

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Brasília era 18 horas. O vôo saiu com três horas e meia de atraso. Aescala prevista para as 19 horas ocorreu perto da meia-noite. Sabequanto tempo ficamos em regime de escala, pegando ônibus internono aeroporto e tudo? Mais duas horas. Era madrugada alta quandochegamos em Porto Alegre. Mais de quarenta minutos foramnecessários só para ter acesso à bagagem. Fazia um frio danado nosul. Tivemos, ao menos, os famosos pedidos de desculpas? Nemisso. Apenas o tradicional "Atenção, tripulação, preparar para odesembarque".

A gente sempre pensa que desta vez não vai acontecer de novo,até porque estamos mais precavidos e acumulamos várias horas dereclamações às agências, às empresas e à Infraero. E, mesmoassim, acontece. É raro ocorrer diferente. Mas, exceções acontecem.Passageiros, boa viagem!

Conto 26, de 14/07/2000, sexta-feiraPensar e agir João Protásio Farias Domingues de Vargas

Pensar e agir nem sempre são fáceis de conjugar. Na maioria dasvezes, pensa-se muito antes de agir e, noutras, age-se muito sempensar detidamente. Gramsci falava em concreto-pensado econcreto-real, para distinguir a concretude da reflexão e aconcretude do agir na realidade externa. Pensiero i agere, dizem ositalianos. Tratamos do que a política denomina de praxe, aconjugação intrínseca da conjugação desses dois verbos tão caros etão banais da humanidade.

Quando o ser está estressado ou deprimido, pensa mais do queage; um psicólogo ou, dependendo da gravidade, um psiquiatra poderesolver. Um ativista político, por ofício, tende a agir mais do que apensar; no mais das vezes nem é ele quem pensa ou elabora aprópria ação. Há, portanto, muita coisa em comum entre o deprê e otarefista. Um pensa e não age; o outro, age, mas não pensa. Oideal, é de se pensar, é unificar de modo que o tarefista se deprimaou o depressivo vire tarefista. Qual seria o resultado? Um tarefistadeprimido não conseguiria agir e ficaria só pensando? Pode ser,mas, pelo menos pensaria um pouco, assim como o deprimido agiriaum pouco mais.

O desemprego gera muitos deprimidos e tarefistas; o desatinofaz muitas coisas estranhas com a vida da gente. Quem não estevedeprimido ou tarefando sem se dar conta? A inconsciência é umbálsamo na vida das pessoas. Sem ela tudo seria impossível comhumanidade. Chaplin dizia que não sois máquinas; homens é quesois. Sem inconsciência viramos máquinas. O computador é provaviva disso em nossa cultura. Tem memória, mas não temconsciência; executa tarefas muito bem, melhor que os homens;raramente falha; se falha, o problema é de programa ou de

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raramente falha; se falha, o problema é de programa ou dehardware.

E nós, humanos, como ficamos quando nosso hardware falha? Ummédico, na maioria das vezes, resolve. E, se a avaria ocorre namente. Problema de software? Também um médico pode resolver.Assim como um técnico em informática tem os remédios santos paraas máquinas inteligentes; os homens inteligentes também têm osseus próprios técnicos. Um técnico em software é um psiquiatra oupsicólogo, conforme resolva problemas de programação ou desimples uso ou compatibilidade. Por vezes alguns dos nossosarquivos são deletados ao acaso; o problema é encontrar a lixeiracerta e reativá-lo.

A máquina pensa e age; os homens também; assim como um seropera máquinas, outros seres operam seres. Somos provocados ouacionados todo tempo pelo teclado ou mouse dos outros. A nossacara é um verdadeiro monitor com câmera digital, microfone e caixasde som. Temos winchester, processador, placa de CD ROM e dediscos flexíveis. A diferença é que temos muito mais do que isso.Algumas máquinas nos imitam em quase tudo, como ocorre com osrobôs, com braços, pernas, mãos, dedos e tudo mais. Até imitam apresença de espírito, mas isso ainda é muito primitivo. Em filme, játem até obras que imitam até sentimentos, como em Blade Runner,o Caçador de Andróides.

Somos máquinas biológicas, mas não somente isso. A máquinainteligente é nosso constructo; não o inverso... por enquanto. Háreportagens que demonstram tendência oposta. Mas isso é muitocomplicado para falar aqui. O que nos interessa mesmo é o agir e opensar conjugados. Máquinas ficam deprimidas e agem comotarefeiras que são. Nisso são muito parecidas. Alguns até dizem queos computadores se estressam pela intensidade do uso: trancam. Oser humano tranca muito.

E trancam justamente na passagem do pensar para o agir ou doagir para o pensar. Falta de lítio nos neurônios? É possível. Comorepor as reservas consumidas? Não sabemos o tempo que énecessário para isso, se é que é. O fato é que pensar e agirconsecutivamente exige trejeito e, portanto, costume ou tradição.Pensar profissionalmente constitui já um agir, ainda que mental;executar profissionalmente é ato de reflexão, também, ainda quematerializado, externalizado. É impossível um agir sem um conteúdoque não tenha sido pensado ou que nada tenha de pensamento.Ação é pensamento concretizado de alguma forma. A questão équem pensa o conteúdo da ação e quem age na execução dopensamento formulado.

Essa distinção assombra milenarmente o ser humano através dadicotomia teoria-prática. Esse binômio encerra verdades efalsidades. Não há teóricos e práticos como divisão social dotrabalho ou distinção metodológica possível que os separetotalmente. Para a prática é necessário incorporar o conteúdo dateoria que se precisa concretizar; para a teoria é necessárioincorporar os saberes advindos da prática. Dizer que alguém éteórico e que outro é um prático é, no mínimo, agir comimpropriedade. Como dissemos, toda prática exige teoria e vice-versa.

A dicotomia é cerebrina e só na racionalidade abstrata se tornainteligível, pois na racionalidade concreta a práxis é o modo único doagir reflexivo. Pensamento e ação constituem culturas humanas

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agir reflexivo. Pensamento e ação constituem culturas humanasindissociáveis.

Conto 27, de 15/07/2000, sábadoCarioca do interior João Protásio Farias Domingues de Vargas

Outro dia estava lembrando do filme "Conto de um Louco Amor",baseado na obra de Bukowsky. Agora já não sei ao certo se o certoera isso, ou "amor impossível". De qualquer sorte, era algo assim.Lá pelos primeiros anos da década de 80 é que isso aconteceu.Recém tinha chegado de um fatídico Congresso da UNE, emPiracicaba, em São Paulo. Tinha passado fome e muito calor; bebidoe fumado muito, de tudo um pouco. Dormia e acordava, guiando-meno tempo pela intensidade de luz do sol que os buracos do ginásiofiltravam. Aconteceu antes de entrar para o Exército. O retorno deuuma reviravolta na vida. Deixei o cabelo crescer, questionei asregras interna do partido, saí da semi clandestinidade política e fuiviver muitas aventuras, principalmente as amorosas. Afinal, estavalonge de casa e achava gozar toda a liberdade que o mundopossibilitava, dentro das limitações econômicas, é óbvio, da época.

Poucas vezes um filme influenciou tanto a vida. As cenas forammuito fortes e de todo tipo. Um poeta bêbado que escrevia empedaços de papel nos bares por onde andava; uma prostituta quepagava o poeta para gozar; uma moça muito jovem apaixonando umvelho poeta, no final de tudo. Peguei os vícios. Voltei a escreverpoemas, passei a beber cachaça, a freqüentar boemiamente osbares e a caçar variadamente na noite e nas ruas. Essa durainfluência durou vários meses; transformou minha vida. Se nãoganhei humanidade, pelo menos o modo pedante de intelectual dointerior desapareceu.

O apelido "carioca do interior", que um amigo me dedicou, nummisto de deboche e de carinho, nunca foi esquecido. Era a ânsia deser diferente; mas, para melhor. Dizendo melhor, estar diferente,assumir novas posturas gerais de vida. E as várias tentativas foramválidas, embora nem todas dessem os melhores frutos. Fiz muitosamigos e amigas; me apaixonei muitas vezes; deixei muito coraçãopartido e também saí, várias vezes, machucado.

O filme "Verdes Anos" era dessa época, mais ou menos. Asexperiências sexuais iniciais e as atividades políticas se misturavamnum amálgama difícil de distinguir quando a paixão era pela pessoaou pela causa. Como eram verdes aqueles anos! Lembrando agora,até dá saudade; não de tudo, mas da irreverência e do mododestemido de encarar tudo. E, de logo, vem à cabeça um trecho dalegra da música na voz de Eliz Regina: "minha dor é perceber que,apesar de tudo o que fomos e fizermos, ainda somos os mesmos e

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apesar de tudo o que fomos e fizermos, ainda somos os mesmos enos parececemos com os nossos pais".

Ainda sou o mesmo, apesar de tudo e me tornei mais parecidocom os pais. A dor? Se ela existe? Existe. Mudou com o tempo.Agora, olhando para trás, vejo que sou o mesmo, mas um mesmodiferente, transformado, enriquecido pelas experiências do passado.Sem Bukowsky, - e sem Sartre, que esqueci de referir, eu teria sidomuito diferente. Não consigo imaginar como seria, mas seria, bem,quem sabe, menos humano, menos gente. Eu fiz parte, ainda quetardiamente, pegando o rescaldo da contra-cultura. Keruac,Ginsberg, Burroughs estão implícitos em tudo isso, ao som dosBeatles, dos Rolling Stones e de Pink Floyd. Eram os nossos heróis;como todos, eles, para nós, não morrem nunca. Menos ainda, paraum "carioca do interior" como fui, logo que cheguei na cidadegrande. Grande época! Eu me sentia realmente parte de tudo e tudome dizia respeito. Isso eu perdi um pouco; o resto, estouresgatando aos poucos.

Conto 28, de 16/07/2000, domingoAs despedidas nunca são iguais João Protásio Farias Domingues de Vargas

As despedidas nunca são iguais. Cada uma guarda um quê desingularidade e sabor que varia de momento a momento, lugar alugar, pessoa a pessoa. No seu lugar, com a distância, se instala asaudade, essa amiga inseparável que toma o lugar de tudo que jánão está ou não é. Uma vez escrevi uma carta a uma amigauruguaia em que colocava o seguinte, em relevo: "os 158quilômetros que nos separam são os mesmos que me levam atévocê". Hoje acho muito romântico, até piegas; mas, na época, tinhaum modo muito realístico de ser; a expressão era sentida e o modo,apropriado. O seu uso rendeu alguns novos encontros, até poucodesastrosos, a meu ver.

Maria Benitez era uma morena linda, de cabelos negros muitolongos, olhos de amêndoa e, como eu, sonhava em ser médica. Umpouco mais velha, nos conhecemos no lado oeste da praça centralde Artigas. Um grupo de moças tomava sol, numa manhã deprimavera; eu e alguns amigos passeávamos pela cidade e fomosaté elas. Nos receberam bem e logo nos enturmamos, numaconversa de trocas lingüísticas que misturava um portunholpermeado de expressões regionalistas do gaúcho. Não lembro maisda face das outras, mas a dela nunca me saiu da cabeça; fui até suacasa e bebemos vinho, perto da Caixa D'água, ao sul da cidade.Acho que namoramos, ou nem isso. Trocamos várias cartas, inclusivedepois que fui para a Capital, mas nunca mais nos encontramos. Asaudade, como dizia, se instala logo depois de qualquer partida, sea distância não constitui desejo.

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a distância não constitui desejo.Quando partia o ônibus de Chunayo também houve algo

semelhante. Sabia que não havia mais história possível entre nós;que aquela era a última despedida. Seus olhos muito azuiscontrastavam com os cachos amarelos dos cabelos rodeando,sublimes, a face levemente rosada. Os lábios vermelhos e as mãostrêmulas, pela janela, acenavam, já partindo. Sentia um misto deprazer e dor, naquela tarde de verão. As nossas promessas nãoforam cumpridas. E lá se vão muitos e muitos anos. Naquele natal,soube de um telefonema, mas não foi respondido.

Anos antes disso, na quadra de areia do pátio do Colégio,também presenciava outra despedida. Cardona, bonita comosempre, dizia que não era dela que eu gostava, mas da imagem queminha obsessão por ela criara; que nem a conhecia. Estava confuso;buscava argumentos que a convencessem do contrário, mas todosestavam ausentes. Mal balbuciava algumas palavras. Os seus olhoscastanhos-esverdeados, sob a franja loira e face de pequenassardas, com o corpo todo imerso naquele macacão de brim, faziam ador da despedida aumentar mais ainda. Era de tardezinha e hámuito tempo já não nos falávamos mais, além, é claro, através dasincontáveis cartas que lhe enviei. O desespero amoroso, naquelaépoca, já havia passado um pouco; fiquei mais aliviado com aconversa, mas sabia que era a última. O tempo de aproximaçãohavia terminado e nada acontecera que renovasse o modo, ocontorno, a possibilidade da possibilidade de ficarmos juntos. Nãohavia ônibus, nem trem, nem carro, nem avião, mas a distânciaparecia bem maior do que as que noticiamos acima. É indescritível ador da despedia, quando ainda é possível ver e ouvir aqueles quepartiram.

Quando Zacarias e Rangel partiram, um antes do outro, e sem seconhecerem, as dores também foram distintas; distintos tambémforam os motivos dos lugares, mas ambos também partiram. Um foipara Brasília e o outro para Belo Horizonte. Grandes amigos; um nameninice, outro na juventude. Foram prá longe. O primeiro eu tiveoportunidade de rever algumas vezes lá; o segundo, uma vez só, nolimiar da década de 80 e, depois, contato só por telefone. Asdespedidas tiveram coisas em comum; ambas foram marcadas commuita antecedência, dando tempo para as preparações. Houve muitacaminhada, muita conversa, muito conselho, muitas revelações epedidos de desculpas. A amizade é linda e se revela forte naspartidas. Eu também parti, para eles, ainda que ficando. O que demais nítido lembro eram as cavernas de fundo de quintal, regadas avelas e doces; bem como as caminhadas peripatéticas entre oscanteiros do jardim do Centro Cultural, mediante o som das falasque discorriam sobre a filosofia clássica e os possíveis amoresrodeantes. Grandes tempos que se foram!

Antes de tudo isso, a despedida mais dolorosa foi quando morreuVó-Gringa. O velório era triste e chorei muito. O relógio presenteadopor papai consolou um pouco a minha dor, mas a saudade abriu umvão n'alma que até hoje carece de completamento. Na sala da casa,na capela do hospital e, por fim, no cemitério, nos despedimosmuitas vezes, aos prantos, numa partida em que, como as dosamigos e dos amores, eu fiquei. A saudade também tem um quê depranto silencioso; nem as lágrimas soluçam tanto nessas horas, enas que vêm depois.

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nas que vêm depois.É, toda partida é diferente e, no entanto, todas iguais. Tudo

pode variar, exceto o nada, o vazio, a ausência que se constata ali,

assumindo o lugar da presença, e vai nos acompanhando em todasas horas.

Conto 29, de 17/07/2000, segunda-feiraTelefone móvel João Protásio Farias Domingues de Vargas

O telefone é útil porque aproxima as pessoas. O mundo modernoé impensável sem ele; o celular, mais ainda. Sem rádio, TV etelefone, o mundo moderno não seria comunicacional como é;somado a isso, as mídias de contato como o ICQ, o e-mail e assalas de bate papo na internet, completam o ciclo dos meios decontato imediato atuais. De todos os tipos, o telefone móvel, paraalém da antiga rádio-chamada, é incomparável. Fala-se agora emtelefone com transmissão de imagens simultâneas; fax-móvel já há,bem como e-mail móvel é possível.

Agora, o telefone móvel também gera muitos inconvenientes.Aliás, todas as facilidades para uns geram, também, por vezes,inseguranças, medo e barreiras. Muita comunicação descomunica.Lembro agora do filme "Denise está chamando", no qual as pessoasconvivem e trocam emoções sem nunca se conhecerempessoalmente; quando tentam, o desencontro é o que acontece; nãose reconhecem em seus corpos físicos. Em muitos lugares, umtelefone toca e todos pensam que é o seu, levando a mão à cintura,ao bolso, à bolsa ou à maleta. Conversa-se e corta o papo otelefone, como criança, reclamando atenção. Sem um afago, nãopára de berrar. Alguns, precavidos, tremem ou bipam, dando sinal dechamada. Tem até jeito com entonação de músicas, de variadostipos; algumas elegantes; outras, até ridículas, em certas ocasiões.É interruptivo de qualquer diálogo, dando azo a outros diálogos que,obrigatoriamente, passam a ser compartilhados pelo ouvido. Alguns,por gentileza ou sutileza, tomam distância para falar ou atender.Gera um certo quê de desconforto para qualquer um.

Engraçada é a vontade de ligar quando não dá; o número nomonitor e o dedo no send, sem poder fazê-lo. Da mesma formaocorre quando é necessária a tecla off diante de chamadainoportuna. A pressa faz até, por vezes, desligar o aparelho. Dooutro lado, a voz de uma gravação: "o telefone está fora da área decobertura ou temporariamente desligado". Sabendo-se que a pessoaestá ali, isso indiguina e muito. Afinal, não quer atender. É comonegar a fala estando-se tèti-a-tèti. O que fazer? Nada. Esperarmomento mais oportuno.

O que dizer, então, dos casos em que se ouve a pessoa e, paranão dizer que não se quer falar com ela, diz-se, repetidamente:

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não dizer que não se quer falar com ela, diz-se, repetidamente:"Alô!Alô!Alô? Não estou escutando nada. Alô! Não ouço nada. Voudesligar." Nunca se sabe se é real ou é desculpa. O fato é que acomunicação não se completa. Quando fazemos isso, parece-nos atéum bem; mas, quando somos a vítima, a impressão é péssima.Somos todos vítimas do inoportuno, quando ligamos; nunca se sabeo momento acertado para ligar. É o acaso que dita; se a gentilezaestá presente, e os serviços funcionam bem, a alegria do encontrosempre é carregada de júbilo; noutros momentos, o fel encobre aatmosfera inteira.

O trote por telefone se tornou algo banal. Afora os atrozes, comimitação de voz e tudo, que geram muita confusão, há outros,menos piores.Também ,nunca se sabe se houve engano quandoalguém pede por alguém desconhecido no seu número. Pode serapenas para se certificar da voz e da presença; pode ser, até, maisdo que isso, uma forma de controle inoportuno, como os pais fazemcom suas crianças, querendo dizer, sem dizer expressamente:"Vocês estão aí? Tá tudo bem?". Adultos também fazem isso, merelataram alguns.

Aproximar vozes não é algo fácil e custa muito caro ouvir semestar perto. Os preços, sempre altos e imprevisíveis, muitas vezesnão compensam o uso. Some-se a isso as ligações para as caixasdigitais de correspondência e secretárias eletrônicas móveis, querecebem até ligações a cobrar, sem autorização!

Por telefone se iniciam e se terminam encontros; negocia-se,eleva-se e rebaixa-se posições, inclusive até se demite gente,inclusive nos altos escalões do governo federal. Foi isso que vimosnesse ano, com um ministro ou secretário. Portanto, traz alegrias etristezas com muito maior velocidade.

Telefone não é tudo, mas sem ele, pouca coisa fica viável semlevar vários dias para se obter respostas. A mobilidade da voz e oseu condicionamento em gravações salvam e destroem vidasinteiras; o grampo está aí para demonstrar isso. A safadeza e odelinqüe andam soltas quando as regras possuem braços curtos efrágeis. Por telefone se é refém de muitos e nunca se sabe o quefarão com o que interceptam.

Um amigo, hoje aposentado, não fala por telefone celular; disseque já viu coisas que até Deus duvida. E ele tem razão. A milharesde quilômetros, nesse momento, pode haver um par de ouvidosgravando a sua voz e guardando a sua mensagem para fazer não seio quê. Isso me lembra o "Big Brother" que o Orwell imprimiu no"1984"; antes, também mas doutro modo, em "A revolução dosbichos".

Privacidade, diante de tudo isso; a história não aponta para oseu aumento ou resguardo seguro; maior facilidade de comunicação,maior capacidade de desinformação. Segurança, o que é isso? Temlugar aqui? Me responda, se souber como fazê-la.

Conto 30, de 18/07/2000, terça-feira

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Conto 30, de 18/07/2000, terça-feiraFacilidade e complicação João Protásio Farias Domingues de Vargas

"Debaixo dos caracóis/ dos teus cabelos, uma história prá contar/de um mundo tão distante". Esse trecho de uma música antiga deRoberto Carlos serve bem para ilustrar uma coisa: o segredo. Nuncasoube o que queria dizer ao certo. Interpretava assim. Corrijam-me,se estiver equivocado. Uma moça bonita de cabelos encaracoladosdisposta a contar uma história sobre um lugar diferente. Outra:debaixo dos cabelos encaracolados da moça havia uma história a sercontada sobre um mundo muito diferente. De novo, com outroenfoque: Ele sabe que debaixo dos cabelos encaracolados da moçaestá uma história muito diferente que precisa ser contada. Últimatentativa: Havia sob os cabelos cacheados da moça uma históriaantiga que ainda não fora contada. De qualquer modo, cabelos,história e mundo estão interligados num enredo só.

A letra mostra que havia um segredo sob os caracóis dos cabelosda moça. O que há abaixo dos cabelos? Pescoço e ombros, peito ecintura, em suma, o corpo. Uma história que precisava ser contada,pois é "prá contar", conota precisamente o que não está dito em seuconteúdo. Os caracóis materializam o lugar onde a história serealizou. Mas, um mundo tão distante pode ser muitas coisas, umadelas é o fato de que algo já aconteceu, que é passado, estádistante. Pode ser que o poema demonstra a saudade daquilo quehouve e se dissipou no tempo, relembrado com a visualização daimagem dos cabelos.

A simplicidade dos versos envoltos no romantismo da colocaçãoinspiram a imaginação interpretativa, para além de sua literalidade.A música tornou os caracóis dos cabelos um símbolo e, ao mesmotempo, um ícone histórico em uma mesma semiose de expressão.Peirce diria que, na tríade semiótica, o lugar e a coisa expressossão, num todo único, em relação ao objeto, ícone, um índice e umsímbolo, pois expressa uma imagem que indicia historicidade esimboliza um momento da vida.

Meus pais e eu, quando pequeno, cantávamos essa cançãoromântica, sem precisar de Charles para entendê-la. Por que agorapreciso dele ou de Santaella para tanto? Veja como são as coisas,né?? Agente põe essas teorias na cabeça, por acaso, e depois nãoconsegue se livrar delas com facilidade. Já não consigo pensar ainterpretação sem essas categorias abstratas. Nem a interpretaçãoe a superinterpretação do Eco dão conta disso, sem levar em conta omesmo meio instrumental. Será que o cantor não queria dizer nadamais do que o que realmente disse, que havia um passado comumentre ele e a pessoa que ostentava os cabelos encaracolados?

Como complicamos as coisas! Isso lembra um antigo professor deFísica, no secundário, o Rodynei, que costumava dizer, enquantoexplicava estequiometria: por que facilitar, se podemos complicar!

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Conto 31, de 19/07/2000, quarta-feiraIntuições que valem João Protásio Farias Domingues de Vargas

A intuição é algo muito interessante. Alguns falam em intuiçãosensível e em intuição intelectual, para distinguir aquela que édotada de racionalidade ou não, um mero pressentimento, o que émais comum. Diz-se: Hum... Não estou gostando disso! Algo não mecheira bem! Tratam-se de presságios, de um sentimentos prévios,de idéias confusas que vêm à mente em forma complexa, disforme einstantânea sobre alguma coisa; às vezes o que vem é uma imageminteira, expressando uma cena verossímil do que pode acontecer.

Se estamos pesquisando sobre alguma coisa há algum tempo eprecisamos unir pontas, como que partes de um quebra-cabeças quedê um preciso sentido para coisas desconectadas, mas afins,podemos dizer, com o alcance final, com Blaise Pascal: Eureka!Eureka! A resposta vem intuitivamente e se revela inteira,conectando tudo em um todo cheio de sentido. A intuição intelectualé muito comum no trabalho investigativo. Falo de investigação nogenérico, pois a atividade policial ou detectivista implica no usoconstante dos dois tipos, pois a sobrevivência do corpo dependemuito da agilidade da mente dos agentes.

Algumas pessoas, por se valerem tanto da intuição sensível,sensorial ou dos sentidos, se desenvolvem mais nesse sentido.Algumas aprecem até ser pura intuição! Têm faro para as coisas,como os animais. Os contornos vêm cheios de explicações e,algumas, até alcançam quase tudo sobre as coisas com essesmeios, sem muita reflexão. As cartomantes, as frenologistas, asquiromantes, as lançadoras de búzios, as jogadoras de tarô e asastrólogas, bem como todos os tipos de bruxarias, no bom sentidoda expressão, dão prova do uso corrente da intuição auxiliada porpoucos índices ou pistas. O resto é complementado pela intuiçãoimaginativa. O gozado de tudo isso é que, para o bem ou para omal, muitas acertam em muita coisa. Uso o feminino plural por meracausalidade, pois o masculino também se adequa ao uso.

Os sonhos, já lembrando a obra de Freud sobre isso, tambémencerram ou podem ser interpretadas como carregadas de intuiçõessensíveis. É o inconsciente dialogando com os colchetes ou grilhõesdo ego.

É sempre um ícone que detona a intuição sensível, fazendoaflorar uma hipótese interpretativa. A cor da roupa, a forma dodesenho posto, um traço do rosto de alguém, um tom de voz, umruído qualquer, um modo de dispor o corpo, dentre tantas outraspistas, influem na mente de quem mantém contato, deflagrando namente, uma reflexão inconsciente que vem depois, em bloco, sobrea consciência, arrasando o espírito em uma certa direçãointerpretativa.

- Mais um copo? - pergunta o rapaz.- Por favor, sirva mais - responde ao garçom. - A noite está linda

e parece que não vai mais chover. Tem até estrelas apontando,

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e parece que não vai mais chover. Tem até estrelas apontando,tímidas, no céu.

Põe a mão na jaqueta preta e tira um maço de cigarro. Lasca umfósforo e põe-se a fumar, reflexivamente, baforando forte.

- Que intuição! – pensa, observando a moça de pernas cruzada,na mesa da frente, a poucos metros de distância.

Conto 32, de 20/07/2000, quinta-feiraJacaré e Ratinha nos milhos atrás da porta João Protásio Farias Domingues de Vargas

Quando era pequeno, ainda que por pouco tempo, havia a práticaescolar de pôr os alunos de castigo atrás da porta, de joelhos emgrãos de milho. Naquela época já haviam abolido a chibata e a varade marmelo. Os mais velhos diziam que tinham pego essesmomentos rudes da vida educacional brasileira, um verdadeiroatraso pedagógico.

Nunca consegui esquecer da primeira vez em que fui para atrásda porta. Era nos primeiros dias do primário. Não sei ao certo o quefiz, mas o castigo veio logo e implacável. Quando me pus dejoelhos, para minha surpresa e distração, não estava sozinho. Haviaali uma meninha muito branca, de face e cabelos, já com os joelhoscansados. Era a Ratinha, como a chamávamos. Nunca tinha notadocom tanta nitidez o seu rosto com aqueles grandes olhos castanhose diadema vermelha. O face estava rosada e tinha um modo tristede quem quase choramingava, calando o pranto.

Não havia tempo para o castigo acabar. Dependia da vontade daprofessora. Grãos de milhos atrás da porta!! Que jeito estúpido deensinar envergonhando os outros, todos crianças; eu tinha cincoanos de idade. Ratinha e eu ficamos amigos depois dessaapresentação tão íntima na largada da vida escolar. Seu nome eraEliane. Fomos colegas durante cindo anos. Morava em uma casinhabonita, na beira dos trilhos, no final da minha rua, quase na boca daVila da Lata. Depois, ainda muito pequenos, ela foi minha vizinha eaté gostei da Peçonha, sua irmã. A Ratinha se chamava Carlota;hoje acho bonito o nome, ainda que diferente; como o meu, seprestava para muitos deboches e adulterações. Jacaré penteado nãoera lá grande coisa, mas, pelo exagero das expressões, " Jacaré eRatinha nos milhos atrás da porta" dava até um início de contoinfantil que nunca foi escrito.

O que faziam os adultos com nossas crianças a pretexto deensinar!!! Muita gente se identificou e fez amizade assim, nosmilhos, no silêncio da humilhação, de joelhos, como se rezassem,desatinados, para que a hora de voltar à casa se abreviasse, vindologo em nossa direção.

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Conto 33, de 21/07/2000, sexta-feiraSono e sonho João Protásio Farias Domingues de Vargas

Enquanto o sono não vem, na cama, muitas vezes lemos, pois,se pensar, pode ser que não venha mesmo. Contar carneirinhosfunciona muito pouco. Fazer-se de conta que se está dormindofunciona mais. Uma página, duas, três, dez, se chegar a vinte,melhor é levantar e caminhar um pouco ou ligar o computador enavegar na internet; em suma, tornar útil o tempo. Ficar na camaacordado, tentando dormir, por mais do que quinze minutos, éalimentar insônia. Tem que se partir prá outra. Fazer algo.

Um chá quente, ajuda, diz muita gente experiente. Outras, umdoce ou um chá gelado; um copo de suco ou de refrigerante; umpouco de leite quente, aconselham alguns. No inverno, muitacoberta; no verão, tudo aberto. Seja como for, sem sono não sedorme, a menos que se tenha técnicas. Jorge, um conhecido, diziater um santo remédio: uma dose de Whisky ou de conhaque degengibre ou maçã. Já experimentei tudo isso, não para dormir, mascomo ritual antes de dormir. Particularmente, poucas vezes tiveinsônia.

Querer dormir, ter sono e não conseguir é o que caracteriza ainsônia. Se você dormiu até às duas da tarde, às onze da noite nãoconseguirá dormir, a menos que esteja doente. Isso não é insônia; éfalta de sono. Só tem insônia quem precisa dormir e não consegue.Alguns até rezam para dormir; outros oram de algum modo. Hámuitas fórmulas. A melhor delas é acordar muito cedo todos os diase dormir quase sempre no mesmo horário. O sono vem que é umamaravilha! É deitar e dormir; não se percebe nem os lençóis. O sonovem bonito e com ele aquela miríade de sonhos.

Você já sonhou que estava dormindo e que nesse sono teve umsonho? Falo do metasonho: o sonho em que sonha que se estásonhando. É interessante o fenômeno. E já sonhou que estavaacordando, que levantava, tomava banho, vestia-se, tomava café esaía para o trabalho, acordando algumas horas depois, desobressalto, tarde da manhã? Comigo já aconteceu algumas vezes!E que estava em um coletivo urbano, louco de vontade de urinar,desesperado mesmo e, sem poder agüentar, desce em qualquerparada, trombalhando, já arqueado para a frente, encontra umacurva, um canto qualquer e esvazia tudo, num prazer de alíviodelirante que o faz acordar sentindo aquele calor escorregando nocorpo e nas cobertas? Quando eu era pequeno, aconteceu muitasvezes! Até apanhei por causa disso, sem muita compreensão para asexplicações que dava.

Bom, agora chega de falar sobre sono e sonho. Vou voltar para acama e tentar dormir de novo. Acho que agora eu consigo.

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cama e tentar dormir de novo. Acho que agora eu consigo.

Conto 34, de 22/07/2000, sábadoMadrugar é preciso João Protásio Farias Domingues de Vargas

A preguiça para levantar da cama após acordar é mais comum doque se pensa. Acordar cedo quase sempre é uma violência se não setem costume de madrugar. Para alguns, dez horas é madrugada;algumas vezes, acordar ao meio-dia é madrugar, ainda. Há o ditadopopular que diz Deus ajuda quem cedo madruga. Com certeza foidito por algum madrugador para se justificar.

Há um truque corriqueiro para se conseguir levantar sempreguiça: acordar e levantar de golpe, sem rodeios, saltar dascobertas e da cama, de imediato. Se parar para pensar na agenda,vai ser preciso reacertar o relógio para garantir mais alguns minutos.Está feita a complicação. Vai acordar sonolento e azedo. O diacomeça péssimo! O relógio pode despertar de dez em dez minutos;se assumir essa prática, poderá dormir a manhã inteira e acordarácom sono. Doze horas de sono serão insuficientes!

Acordar é uma violência, se a vida não está boa. Vale uma boafuga o sono. Estar preguiçoso é estar descansado. Cansa-se dedormir; vale dizer, dormir de mais dá sono. Muita gente fazsonoterapia como forma de aliviar a depressão. Acho que sóaumenta, mas há quem sustente o oposto.

Acordar é um alívio, se a vida está a sua espera lá fora. Como ébom acordar e levantar cantando, sem pressa, tomar um banho,fazer um chimarrão e saboreá-lo enquanto lê as notícias do dia, nojornal ou na internet! Prefiro ver o dia nascer; as primeiras barras dodia sempre me enchem de esperanças! Mesmo com sono, - e logoele passa, com a distração das coisas! -, acordar muito cedo sempreme fez bem. Pena que nem sempre o consiga. Por vezes a vida nosimpõe dormir muito tarde. Dormir poucas horas também não fazmuito bem ao corpo e ao espírito. Com sono, se perde muita coisa,a começar pelo humor e a fome. As pessoas ficam raivosas se nãocomem.

É como agora, cinco horas da manhã. O dia ainda nem nasceu e...AINDA estou de pé! É!... Acho que vou para a cama. A preguiça? Eudisse acima, ou noutro lugar, ela só tem lugar se se estádescansado. Epa! Escrevi e quase deixei a palavra "descansado" notexto. Ainda bem que me dei conta a tempo. É o sono. Vou dormir.

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Conto 35, de 23/07/2000, domingoÓi o trem João Protásio Farias Domingues de Vargas

Estou lembrando do trecho de uma música cantada pelo RaulSeixas. "O Trem das 7": "Ói, ói o trem/ vem o trem/ vem surgindopor detrás das montanhas azuis/ olha o trem/ vem trazendo delonge as cinzas do velho néon". O último trem do sertão. O céu nãoé mais o mesmo céu que você conheceu. Essa música lembra muitovários sonhos que tive na infância e adolescência sobre trens. Traziamuita angústia sonhar com eles. Em alguns, ouvia o seu apito dechegada e eu estava longe, numa estrada de chão, cheio de malas esacolas, correndo para pegá-lo. Mesmo com o desespero pelapossibilidade da perda, ouvia o segundo apito, o de partida; jáestava perto da Estação, mas, quando chegava, ele já havia partido.Continuava correndo atrás dele, no meio dos trilhos, tropeçando nosmoirões e derrubando a bagagem, voltando para pegá-las, e o tremacelerando mais, tomando maior distância. Parava no meio daquelelongo paralelo, tomando ciência que o havia perdido.

Outras vezes sonhava que conseguia pegar o trem, porém,adiantado na viagem, dava-me conta de que havia pego o tremerrado; que estava indo para um lugar que não o do destino certo.Desatinado, também, descia em uma parada qualquer, na intençãode voltar e corrigir a rota. A situação piorava, pois descia em lugarquase deserto, sem ter onde ficar. O desespero aumentava com asensação de que deveria ter ficado mesmo no trem errado. Quasesempre descia no mesmo lugar, fora de Estação. Aqui, descendouma ladeira, na beira dos trilhos, ao lado de uma ponte, seguindoum trilha estreita rodeada de pés de azeitonas, havia algumas casassimples onde moravam pessoas com que travei amizade e visiteimuitas vezes; algumas pessoas velhas que me deram muitosconselhos úteis; mas nunca encontrei uma mulher querida no local;até as crianças me queria bem. hoje já lembro muito pouco dasfaces delas e dos diálogos que entabulamos.

Outras vezes sonhava que pegava o trem certo e ia ao destinocerto, conversando alegremente com vários passageiros sobrediversos assuntos. No fim da viagem, descia, mas não conhecianada do lugar onde queria ir. Tudo era estranho, mas tinha de ficar;não queria voltar.

Os sonhos sobre trens eram recorrentes há alguns anos. Já fazmuito tempo que eles se foram, e a agonia das viagens também.

Lembro-me das greves dos ferroviários, na minha infância. Ostrabalhadores tinham um dos mais fortes e organizados sindicatosbrasileiros. Terminaram. No Estado, faz mais de dez anos que asestradas de ferro se tornaram inúteis como transporte urbano.Adorava viajar de Húngaro. Tinha bar e se podia viajar olhando apaisagem enquanto se tomava café ou uma boa cerveja. Era rápidoe muito barato. Ia de Porto Alegre à fronteira com a Argentina emum mesmo dia. Com era bom aquele tempo!

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um mesmo dia. Com era bom aquele tempo!Acho que ainda estou carregando muito peso para poder chegar a

tempo na Estação. Não consigo me desfazer das tantas malas quecarrego; todas me parecem tão importantes que não podem serdeixadas prá trás. Outras vezes acho que o problema é que saiomuito tarde para chegar a tempo. Outras, que são as malas mesmoque me atrasam. Nunca consegui, naquela estrada empoeirada,deixar uma mala prá trás; perdi muitas vezes, desesperado, o trem,mas as malas sempre ficaram juntas. E me pergunto, hoje, quaissão as malas que estou carregando para a Estação? Não consigovisualizar com clareza o que carrego nelas; só sei que sãoimportantes. E se corresse mais, conseguiria? Quem sabe. Quemsabe sair cedo e conseguir ajuda poderia resolver o problema doprimeiro episódio.

Mas, o que dizer de quando, no segundo episódio, chego a tempoe pego o trem errado? As malas não foram problema, mas outro, deoutra ordem. A pressa por partir faz errar o destino? Pode ser. Aindaassim possibilita fazer bons amigos, pelo que pude depreender.

E, no terceiro episódio, em que pego o trem com todas as malas,acerto o destino, mas a chegada me demonstra toda a suaincerteza, o que dele dizer? Não sei.

Malas podem ser pessoas ou grilhões do passado; a pressa podeser a ânsia por mudança; estranheza da cidade, as incertezas dolugar de escolha. O trem da dúvida, é isso o que me parece ser,onde correr, embarcar e descer não traz toda a segurança desejada.

Ói, ói, o trem, vem chegando por detrás das montanhas azuis; ói,o trem. O céu não é mais o céu que você conheceu. Ói, ói, o trem.O Raul estava certo. O trem e o céu não são mais os mesmos com opassar do tempo. Tenho saudades desses sonhos e do enigma querepresentaram durante tantos anos em minha vida.

Conto 36, de 24/07/2000, segunda-feiraEscrita e vocação João Protásio Farias Domingues de Vargas

A importância de escrever alguma coisa, para quem escrevesempre tem um caráter muito especial. Quando terminava o primeirograu, já estava interessado no que estudaria depois do segundograu, afinal, três anos já passavam muito rápido naquela época.Depois de alguma reflexão, decidira cursar medicina, razão pela qualescolhi o curso de Auxiliar de Oficial de Farmácia, o que havia demais próximo da área; descartei o curso de Auxiliar de Nutrição eDietética pelo fato de que somente havia pela tarde; queriaaproveitar as curtas manhãs para estar em sala de aula. Umaestudante de Farmácia da Universidade de Santa Maria, é claro,incentivou-me muito.

Lá pelo meio do ano do primeiro ano do segundo grau, a vocação

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Lá pelo meio do ano do primeiro ano do segundo grau, a vocaçãoprogrediu alguns graus: estava inclinado a escolher uma profissãoem que necessitasse escrever bastante. Um colega negro, alto, fortee debochado, de cabelos muito curtos, me perguntava se iria fazerDireito; sempre respondia que não, argumentando que era maisprovável que fizesse Filosofia ou Letras. Minhas leituras nessecampo estavam deveras intensificadas. Era um aluno muito certinho,comedido, sensato e de muito boas notas; liderava a turma eincursionava na política estudantil, muito de leve. Decorava tudo àbase dos questionários que preparava solitariamente, enquanto meexercitava nas artes marciais; o método havia sido descoberto hápouco mais de ano e meio, tentando recuperar conceitos, na sétimasérie; instinto de sobrevivência.

Já no início do segundo ano do segundo grau a história deu maisum passo nos seus graus vocacionais. Abandonei o método dadecoreba e prol de um que possibilitasse um entendimento menosviolento para a memória e o tempo de dedicação. Resultado: asnotas baixaram vertiginosamente; intensifiquei as disputas política,mas não desisti da velha idéia - agora já antiga - de ser médico.Continuei a ginástica, as competições e o acúmulo de medalhas,bem como o tempo dedicado à biblioteca do Centro Cultural.

É dessa época que, mais ou menos, que começo a incursionar nomundo da literatura. Passei a escrever poemas livres tendo porobjeto o desejo e o amor dedicado à mulher amada; como não havianenhuma concreta e realizada, a imaginação deu seu recado àaltura. Inventei duas mulheres e seus nomes, sem me basear empessoa alguma: Magne Agrinski e Márcia Lindenberg. A primeira eraminha fiel companheira de discussões filosóficas e religiosas; asegunda, objeto de minha dedicação romântico-amorosa.

Escrevia poemas efusivamente e publicava no Programa "Clube doOuvinte", da única emissora de Rádio local. O locutor lia todos osescritos com um fundo musical, modulando a voz com um efeito queme parecia esplêndido. Como todos os poemas eram apócrifos, masdedicados, o radialista apelidou o autor de "Anônimo". Este ganhoumuitas dedicatórias de garotas apaixonadas e até prêmios; elogioseram constantes e efusivos. Ocorre que o programa ira ao ar às 11horas da noite, horário em que estava quase sempre dormindo;nunca escutava nada.

Muitos meses depois sobe que era assim como relato agora. Esoube por acaso. Comecei a me aproximar da irmã de um grandeamigo; não gostava dela e já estávamos mais da metade dosegundo semestre do ano. Numa conversa informal de fundo dequintal, o papo tocou o tema poesia e aí soube do mito que haviado "Anônimo apaixonado". No momento, não dei muita importânciapara o fato, mas, depois de alguns dias, passei a ter interesse pelafamosa figura desconhecida. Não sabia que ele era eu próprio.Afinal, o método de escrita era muito simples e não sabia o quefaziam daquela quantidade de escritos que entregava todos os diasno guichê da emissora.

Depois que saía da biblioteca, atravessava a rua e ia até àportaria da Rádio. Sempre davam papel e caneta. Ali, de pé,escrevia algumas linhas em forma de versos e entregava àrecepcionista, sem título e sem assinatura. Dezenas de pessoasfaziam isso, todos os dias. No meu horário de chegada e saída,nunca vi ninguém em situação similar. A ingenuidade sempre

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nunca vi ninguém em situação similar. A ingenuidade sempreaparenta coragem; as crianças sabem muito bem disso, mesmo semsabê-lo.

Num próximo encontro, resolvi fazer um teste. Pedi à amiga queme falasse um pouco dos poemas lidos desse tal de Anônimo. Oconteúdo e a forma apontavam para o estilo que demonstrava nosmeus escritos. Sem ter certeza, resolvi, a partir de então, efetuarcópia dos poemas. No encontro seguinte, a moça confirmou minhasuspeita; era eu mesmo o cara. Fiquei muito contente e, como ela oadmirava muito, desejei desfrutar pessoalmente do prestígio que eumesmo possuía secretamente.

Passei, então, a construir a prova de que o jovem poetafestejado era eu mesmo. Comprei um caderno de capa dura e passeia transcrever um a um dos poemas de que dispunha de cópias.Àquela altura, reunindo um a um, deu quase duzentos. Aosprimeiros 100, dei um nome: "O novo amor". O segundo caderno,reunindo mais 100, dei outro nome. Fui fazendo assim, de cem emcem, mês a mês.

Um dia, sentados à sombra de uma árvore copada, espinhenta emuito alta, contei-lhe que o poeta anônimo da Rádio era eu. A moçadeu uma gargalhada e disse:

- Sério?! Tu não tens jeito de poeta. Tens como provar isso? Mefala sobre algum dos poemas.

Estava preparado e há algum tempo havia passado a dormirpassado das 11 horas, só para ouvir o tal programa. Resolvi nãomostrar o que já estava feito; propus compor um poema para ela;dei o tema e o desfecho.

Não deu outra. No dia seguinte, ansiosa, ela veio me falar econtar que estava convencida de que o Poeta Anônimo, o famoso doClube do Ouvinte, era o seu amigo de diárias e longas conversas.Seus olhos brilhavam e estava, ao meu ver, mais bonita; roupa novae tudo. Dizia que precisávamos comemorar e me revelar ao grandepúblico. Não faria isso, mas não a decepcionei de início.

Fui até o locutor e pedi cópia de todos os poemas que haviaescrito. A alegria do radialista era grande. Falou-me que haviareunido todos os papeizinhos escritos em uma caixa própria. Deixou-me muito à vontade para a pesquisa, entretanto, não deixou eulevar os meus recortes para casa. Naquela época não haviafotocópia com facilidade. Escolhi vários e fui copiando um a um atécansar; durante vários dias durou o resgate. Conforme acertado,continuei anônimo. Depois do primeiro beijo da irmã do amigo,passei a dedicá-los a ela, para seu regozijo e felicidade; tornou-sepublicamente importante na cidade, mais do que eu, pois o Anônimonunca me indicava como pessoa concreta. Era um eu que seexpressava autônomo e independente de minhas relaçõescotidianas.

A relação com a arte não era nova. Contou-me minha mãe, certavez, que, quando criança muito pequena, eu era levado à mesmaRádio para cantar e declamar com minha linda voz. Era cantor e nãosabia. Entretanto, lembro que participava do coral da escola, nosprimeiros anos do primeiro grau; saí quando a voz engrossou.Portanto, a arte está comigo desde pequeno. Do canto à escrita;música e poesia, um boa combinação. Se houvesse instrumento einfluência, quem sabe a carreta teria sido outra bem diferente, não émesmo? Vários amigos e colegas de infância seguiram os passos da

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mesmo? Vários amigos e colegas de infância seguiram os passos damúsica e do canto; eu, não. A técnica científica me fascinava pordemais, naquele tempo, não sei por quê.

Quem sabe não apresei a família para me pôr na escola antes dotempo visando aprender a escrever para materializar minhas própriascomposições? Os documentos escritos mais antigos datam doprimeiro ano do primário: cartas de amores a uma coleguinha deaula que nunca quis nada comigo. Minha desatenção era umdesastre; sempre perdia as cartas, antes de entregá-las; sempreapareciam na mão de algum professor, vindo da Secretaria deescola. Os risos eram intensos e ficava muito confuso com tudoaquilo. Minha vida amorosa se tornou pública muito cedo. Eu amavapublicamente sem a menor pista de correspondência. A solidãoamorosa foi um caminho que durou muitos anos. Pelo menos erafuncional; estar na sala de aula era sempre um imperativocategórico! Estava sempre ao lado das minhas paixões, desde muitocedo da manhã; e saída já desejando que o dia voasse e o novoacontecesse repetidamente, ano após ano. A sala de aula era o meupróprio ninho de amor.

Cartas de amor, poesia declamada, poemas reunidos emcadernos, assim começou a minha vida pública e o desejo de serescritor, coisa que até hoje não consegui realizar. Não me torneiliterato e nem médico; nem filósofo, nem professor de educaçãofísica; nem farmacêutico e nem psicólogo. Vaguei por vários cursossuperiores até encontrar um porto seguro; formei-me. E a escrita?Técnica, nada mais do que técnica; para o consumo profissional. Alógica interna dos conteúdos ocupou o lugar dos sentimentos postosnos primeiros anos de expressão.

É verdade, os escritos sempre são mais importantes para quemos escreve. São registros e até, em parte, trechos de uma biografiaparcializada, setorizada, episódica, de uma época preciosa. Servemde bengala à cegueira crescente da memória. O conto? Não, atentativa agora foi a de Conto. Nem sei se isso consegui. Estavaimbuído dos sentimentos da época. Como as paixões crescem fortes,quando alimentadas! Todo andar deixa seus rastros no tapete davida! É isso.

Conto 37, de 25/07/2000, terça-feiraGarantindo o pôr-do-sol João Protásio Farias Domingues de Vargas

No Alegrete, o nascer do sol é mais importante do que o pôr-do-sol. Em Porto Alegre, o oposto. Explicava a Maria, enquantopreparava o chimarrão naquela manhã, bem cedo, a razão disso; elaouvia atentamente e fazia algumas intervenções.

- Lá é tudo planície; plano, plano, plano, assim - dizia, fazendo

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- Lá é tudo planície; plano, plano, plano, assim - dizia, fazendoum gesto horizontal com a mão, em frente ao peito. - Faz muito friopela manhã, de modo que o nascer do sol representa sempre umbom começo; e, à tarde, um calor de rachar, de modo que o poenterepresenta um grande alívio, que não inspira muita admiração, masdesejo de que se vá e logo.

Continuou:- Aqui, na Cidade grande, o pôr-do-sol é deveras bonito. Lá é o

nascer que é. Bem cedo, começam as barras do dia, turvas que vãose avermelhando aos poucos; vão esmaecendo até o douradoamarelado. Aos poucos, um pequeno ponto forte começa a surgir nohorizonte, quente, que vai crescendo e crescendo, iluminando o dia.É o nascer do sol.

- Ensinavam a admirar o nascer do sol, quando pequeno?- Sim. Era inevitável, pois se acordava antes do dia amanhecer,

para as lides cotidianas; eu, para ir à escola.- Deveria ser muito bonito.- E era. No apartamento anterior em que morávamos, dois

andares acima do atual, tínhamos frente para o Guaíba, ao norte.Agora, a vista privilegiada, como vemos aí, é para o oeste, onde osol se põe.

- A vista é muito bonita, apesar dos prédios - afirmava ela, nãosem alguma convicção.

- É, mas poderia ser melhor - redargüi, sem demora. - Sóprecisaríamos tirar o prédio do Edifício Coliseu, o da Procuradoria daRepública e todos aqueles lá, que estão antes da Usina doGasômetro. Tarefa fácil, não acha?! - afirmei, debochadamente ecom um leve sorriso sarcástico. - É isso! Vamos providenciar.Quando vai querer que derrube?

Maria pensou um pouco, calculou e disse, resoluta:- Pode ser na semana que vem?- Por quê a demora - interroguei, sorrindo -, se podemos fazer

antes?- Quando acha melhor?- Amanhã, pode ser?Maria pensou um outro tanto e responde, também decidida:- Pode.- Então vamos providenciar. Por qual queres que comece a

derrubada? Sugiro o do Coliseu. Pode ser?- Pode.- Vamos começar por ele. Quer implosão ou explosão? A primeira

suja menos a Cidade e protege melhor as pessoas. A explosão deixacacos para todo o lado, espalhando entulhos por todos os cantos.Imagina as ruas entulhadas. Vai saltar pedaço até em Guaíba, dooutro lado do Rio.

- Implosão - disse.- Ótimo. Agora que vamos limpar a nossa vista e poder ver

melhor o pôr-do-sol mais lindo do mundo, vamos imaginar o quefazer nas tardes, aqui dentro. Que tal chimarrão na Sala de TV?

- Acho uma boa. Teremos por do sol todos os dias nas janelas.Posso lavar roupas com uma bela vista, e também cozinhar vendo oavermelhado das tardes. Isso seria muito bom!

Refletindo um pouco, com a mão ao queixo, asseverou:- E, se, ao invés de derrubarmos os prédios, colocássemos o

nosso prédio na beira do Rio, não seria melhor?- Faltaria a distância para admirar o Rio. Não veríamos as suas

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- Faltaria a distância para admirar o Rio. Não veríamos as suasmargens. Essa distância atual é muito boa. Votaria por vê-lo daqui.Acho muito melhor onde está.

- É verdade. Continuemos com o nosso plano anterior.Quando o diálogo se encerrou, estava terminando o chimarrão.

Havia cevado a erva na cuia, punha a primeira água quente e abomba, ajeitando-a no canto esquerdo, junto ao topete verde. Abri aporta e fui em direção à Sala de Estudos, preparar a minuta deResolução que apresentaria duas horas depois, na Faculdade.

Enquanto ligava o computador, fiquei pensando naquela pequenaviagem estética e de destruição. Quanta bobagem se diz logo quese acorda! Mesmo assim, valeu a conversa com Maria. Inspirou-memaior cuidado ao redigir o conteúdo sobre as montagens de estágiopara os alunos.

Conto 38, de 26/07/2000, quarta-feiraEsquizofrenia Eufi y EudiJoão Protásio Farias Domingues de Vargas

Sobre o amadurecimento das pessoas e a questão daresponsabilidade pessoal. - O que é isso? - pergunto a mim mesmo,um tanto perplexo.

- É claro que tenho a noção geral vinda do senso comum dasduas questões, mas como delimitá-las com uma certa precisão, paraalém de suas meras colocações moralistas e, no mais das vezes,ofensivas? - reflito um pouco mais, interrogativamente.

Enquanto penso isso, vem-me à cabeça a idéia de um diálogocomigo mesmo, num papo meio esquizofrênico, do tipo eu-dentro eeu-fora; EUD e EUF. Um é o consciente, - vamos dizer assim; ooutro, o consciente no espelho, o alter, o inconsciente, o reflexo,com autonomia para além da imagem óptica que estamoshabituados a ver. Para facilitar, vamos chamar Edi e Efi, os gêmeosnascidos sob o signo da esquizofrenia, da paranóia gerada pelaobsessão psico-classificatória.

Pensando bem, dá até para fazer uma peça, um diálogo, com umsó ato e dezenas de cenas; muita fala e pouco cenário; quasenenhum cenário, até, é melhor; dá maior força dramática aodiscurso; força a concentração.

Vai dizer que nunca te aconteceu, leitor, de acordar um dia comos cornos virados? Um daqueles dias em que você não suporta omundo e nem a sim mesmo. Não é como eu estou me sentindoagora, pois estou muito bem, obrigado. Mas, para nossa conversa,vale a pena simular que é o oposto. Falo da vontade que dá nagente se pagar as contas e se mandar embora; demitir e demitir-sede si, das coisas, do mundo, de tudo. Literalmente, despachar.Viajar sem rumo. Ir embora para qualquer lugar; vida nova; tudo

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Viajar sem rumo. Ir embora para qualquer lugar; vida nova; tudonovo.

Aí você - deve ter percebido que uso tanto o pronome pessoalreto tu como o você/ele, misturando as conjugações, inclusive ostempos; é assim mesmo, proposital (fechando o parêntese); aí vocêpega um louco pela rua, um desses que se encontra em qualqueresquina, e a pinta vem falando com sua gravata e pasta dentro docérebro, com um papo careta do tipo amadurecimento eresponsabilidade. O que você faz com uma criatura dessas?

- Sei lá!! Caio fora logo. Dô disculpa; se dé tempo, vô saindologo, meio à francesa, meio grosso, à americana memo; meio àbrasileira, com jeitinho, do tipo: - Bá, cara, tô na pressa. Não leva amal, figura. Foi bom. A gente se vê por aí. Tchauzinho". Que peça,né!? Saio aí, rindo, assim, com meus botões. Locura, meu! É isso aí,Bacana. Dô o fora rapidinho, meu. Caio da banda, na hora.

Esse cara que fala girioso aí, não sou eu. Eu sou maiscomportado. Eu sou o Edi; o cara da fala magra é o outro, o Efi. Soueu que tá narrando a história que tu estás lendo, leitor amável. Ooutro é só personagem; mas, não se assuste se, de vez em quando,eu te confundir, levando a pensar que ele sou eu e que eu sou ele; éfácil distinguir. Basta pensar assim, com a seguinte pergunta: Qualé o menos certo dos dois? A resposta não vai apontar para mim,mas para o Outro, o Eufi; Eu sou o Eudi, já disse antes. Não soumagrinho, pô! Eu sou o cara certo, certo? Ademais, também uso unstermos lingüísticos mais acertados, linguagem mais aprimorada,sem violentar demais a Língua. Se o critério não funcionar, não fazmal, pois os dois são um só, mas distintamente, tanto lógica quantofaticamente. A existência é única mas, a manifestação... Ah, essadifere... pero no mucho!, como dizem os correntinos, no Sul.

- O papo aqui é careta, tá sacando? Eu vô dá uma de dentepodre! Vô caí das boca, meu!. Fui!!! Ah, vô avacalhá o mapa, tásacando!? Dispois volto prá baia, numa boa, tá!?

- Esse aí que se manifestou agora não sou éu. É o Outro, comodisse. É o Eufi, girioso. Tenho a preocupação em me distinguir deleporque ele sempre queima o filme com qualquer um. Pavio curto,saca! Bá, tava quase flando como ele. Vou endireitar o verbo, senão,como me livro da carrocinha?! É barra!

- Ei, Eudi, tu tá aí ainda?...- Não enche, meu!- Ah, cara, fala comigo. Tô na fossa. A mina me deu o ferro!

Zarpô. Escafedeu. Não dexô rastro algum. Me ajuda, cara.- Não.- Tá cum medo do quê? Nunca te fiz mal, cara. Tu tá sempre

aqui, comigo. Te levo no peito. Até te aturo, cara. Cai na real,vivente! Acha que é diferente só porque leu umas orelha de livro.Grande coisa. Não deu em nada a tuá trilha. Cai na real! Não siinxerga???

- ... (nada)- O gato comeu tuá lingua?- ...- Tem Complexo de Deus?- Do que é que estás falando, Eufi? Nem sabe o que fala! Fica

quieto. Me deixa em paz.- Sei sim. É o cara que pensa que pode tudo; que tá acima de

tudo; que é infalível.- Isso é efeito do Complexo de Inferioridade. Não fala do que não

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- Isso é efeito do Complexo de Inferioridade. Não fala do que nãosabe, que é feio.

- Íii. Agora tá me corrigindo, né? Tá me regulando! Não gosto

disso. Fico puto da cara com isso. Quando uma pinta age assimcomigo, é pau na certa! Vô relevá só agora.

- Tá metendo medo, agora? Virou macho, de uma hora prá outra?- Não isso, cara. Me deixa em paz. Estou na minha; não te fiz

nada; prá que ficar aí, me ameaçando? O que é que tu queres?- Nada. Só conversar; como gente civilizada.- Então, não ameaça, senão eu caio fora. Eu estou dizendo!...- Tá bom... Ah, uma coisinha mais. Tu é complexado?- Viu!?!? Está começando de novo!- Tá bom! Parei! Agora, de vez!_ ... (silêncio total e de desprezo)- Qué qui tu tá lendo aí? Posso saber?... Compartilhar, numa boa.- Um livro, não está vendo?- Isso eu tô. Quero sabê sobre o qui é; qualé o papo, saca?- Sobre a importância da lua cheia na menstruação dos grilos, tá

bom!?- Epa! Tá legal! Agora véiu contudo! Tá bufando! E, logo agora,

que deixei o pano vermelho na baia da pinta!- Bá, cara, tu é bagual e grosso umas quantas vezes, né!?

Educação é bom e eu gosto; prezo muito, quer saber. Agora cai forae deixa eu ler o livro, que amanhã eu tenho que falar sobre ele noGrupo.

- Que Grupo?- Não te interessa, Eufi!- Posso entrar nele?- Não. Teria que estudar uns quinze anos mais, sem rodar nem

uma vez!- Bá! Tô cum medo! Tudo isso!? Deve tê gente cabeça nessa

turma, né? Gente inteligente paca! É, eu sô burro mesmo. Quêfazê!?

- Nada. Não dá. Vai passar vergonha e me enrolar mais do que jáme enrola com os teus rolos. Fica fora dessa. Aliás, de todas!

- Tô fora, meu! Fica aí com us carinha do tal grupelho. Eu vô éisquentá a melena noutras franjas, tá sacando? Vô curti um roquedá pesada cuá galera i dá uns tapa nu babado. Isso é qui éprograma, maninho! Não éssa coisa de transá livrinho! Coisa debixa, de fresquinho. Macho é cumo eu, ó, assim, cheio de tesão...sem lero-lero, sem deixa-disso, sem levá disaforo prá casa.

- Estou percebendo bem a tua jogada. Não tem lugar para ti nocoletivo em que eu estou embarcando.

- Íiii. Fala direito, Bródi. Tá tudo certinho na fala; deixa disso!Tem que soltá o verbo, incurtando as palavra. Assim, ó: "Tôpercebendo a jogada, meu. Não tem lugar prá ti nessa parada. Vaiandando e péga a sorte!". É assim que se fala. Sem frescura delingüísticas!

- Desisto. Desisto! D-e-s-i-s-t-o! Desisto!- É isso aí! Depois sou eu que deixo as coisa de lado! Eu tentei.

Bem que tentei. Não deu bola. Depois não pédi arrego, tá legal. Tôsaindo de cena, meu irmão. Fica aí cu'as tua letrinha. Saravá, meupai!

- Aleleuia! Enfim, a sós.

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- Só, meu! Mas, não demora... eu volto! Bye, bye.A julgar pelo comportamento dos dois, retomando nossa temática

original, da primeira linha acima, podemos dizer que Eudi é o cara

normal, maduro e pessoalmente responsável e que o Eufi, pelocontrário, é o cara anormal, imaturo e irresponsável. Bom, pararesponder a essa pergunta você terá que apresentar um critérioracional e assumir uma posição política em um dos dois campos. Seestiver torcendo do lado do time da situação, o Eudi é o cara certo eo Eufi o errado. Agora, se estiver torcendo do lado do time daoposição, é o oposto o que ocorre. De que que lado você está?

- E você? - deve estar perguntando a mim o leitor.- Eu? Bem... Eu estou aqui, do outro lado, olhando vocês sete:

eu, eu-dentro, eu-fora e você, mais você-dentro e você-fora e,ainda, tudo isso junto. Não sei se consegui dar a resposta maisadequada ou esperada; mas, tenho certeza de que dei a respostacerta para as circunstâncias da pergunta. Todos nós estávamos aí eaqui, ao mesmo tempo e o tempo todo. Tinha se dado conta disso?Aposto que não. Precisa se conhecer melhor. Como falar emmaturidade e responsabilidade se não consegue dialogar na frentede espelhos?

Conto 39, de 27/07/2000, quinta-feiraDimensões físicas do amorJoão Protásio Farias Domingues de Vargas

Um casal conversava sobre um assunto muito delicado,debaixo de um pé de cinamomo, nos fundo da casa de interior.

- Jandira, meu amor, eu te amo. Quantas vezes vou precisardizer isso?

- Quanto tu me amas?- Como assim? Não estou entendendo, amor.- De que tamanho? Um milímetro, um centímetro, um metro,

um quilômetro, uma quadra de campo, uma sesmaria, do tamanhode um país ou de um ponto qualquer?

- Ah, é isso! Bem... digamos... isso! Do tamanho do universotodo!

- É grande demais. Vais me odiar logo-logo! Não dá. Tem queser menos e mais realista. E quanto ao tempo?

- Peguei a idéia! A eternidade toda.- Também não dá. Piora as coisas. Tem que se menos. Não

lembra da máxima do Vinícius: "O amor é eterno enquanto dura".- É isso aí. Eterno e universal.- Impossível. Não devo ser eu essa pessoa. Tem outra por aí?- Só existe você, meu docinho de açúcar. Você sabe disso. Eu

te amo do tamanho que disse. Só tenho olhos para você. Você étudo para mim!

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tudo para mim!- Deixa de frescura, Oscar. Fala como gente. É impossível amar

assim. É doidice. Seja mais realista, está?- Vou tentar te amar menos. Mas,... como é que eu vou fazer

isso? Como controlar o amor? Você sabe?- Não. Mas, tens que descobrir um jeito, um modo, uma

maneira, já te disse!- Calma, amoreco! Eu entendi. Ah, encontrei a maneira. Vou

dizer agora. Te prepara.- Diz, aí.- Eu não te amo mais.- Desde quando?- A partir de agora.- Contigo tem que ser oito ou oitenta. Não tem meio termo?- Amar ou não amar, eis a questã, já dizia o velho Guilherme.- Que Guilherme?- Ora, é mais conhecido como Willian Shakespeare.- Prá ti o amor é absoluto, pelo visto.- É isso, aí, mulher. Absoluto.- Para mim ele é relativo, efêmero, temporal, espacializado,

singular, normativo, direcionado, intenso, interessado, erotizado etransdisciplinar.

- Credo! Tudo isso? Que classificação, hein? Nunca tinhapensado assim. Quem te ensinou a pensar no amor assim, comtanta formalidade? Precisa tudo isso?

- Precisa! É uma questão de precisão conceitual. Por exemplo,o meu amor por ti é tudo isso.

- Credo, Jandira. Acho que isso não é amor. Pode ser qualquercoisa teórica, menos amor. Nunca vi alguém falar em amor assim,com tipos tão estranhos.

- Não são tipos; são características. Quer ouvir a explicaçãosobre cada um dos termos? É só ter paciência. Tempo eu tenho defolga nesse momento.

- Quero, mas não agora. Me dá um tempo.- Quanto?- Dois anos, para pensar.- Estás brincando!- Estou. Agora, vem cá. Senta aqui do meu lado e me dá um

beijo.- Não.- Por quê?- Porque preciso de um século para me preparar para dar as

tuas explicações.- Boba!- Trouxa!- Adeus!Não conseguiram manter o diálogo. Já escurecia, naquela

época do ano, quando resolveram entrar, insatisfeito com a linha econclusões chegadas com o acirrado diálogo.

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Conto 40, de 28/07/2000, sexta-feiraCafé no Centro João Protásio Farias Domingues de Vargas

O Café Aurora fica bem no centro de Porto Alegre, quase naEsquina Democrática. Este café não existe, na realidade, mas, comonão temos nenhum compromisso com a verdade para com o leitordesta Conto, fica o local como sendo verídico. Agora, se você, diletoleitor, quiser que nós – e digo nós apenas por uma questão demodesta pluralidade -, falemos apenas de verdades fático-históricas, escolheu a Conto errada para ler. Afinal, quem dá asregras aqui, na dimensão que está atrás dessas frases que agora,nesse momento, são acariciadas, ou fritadas, pelos seus olhos, somos nós; está um mundo supra-verdadeiro, o nosso mundo, omundo a irrealidade e da fantasia, porque não?

Sentada, saboreava um expresso, cansada demais para o‘nosso’ mundo de fantasias; deixava apenas que os dias corressem,ou melhor, escorressem por seus dedos. Por vezes sentia como senão houvesse nada mais para fazer, depois daquele expresso, entãoestendia...;tomava-o frio mesmo, quando as moedas eraminsuficientes para uma segunda taça. Hoje, não; tinha remexidobolsos e achou a nota de um real que lhe proporcionaria mais umaxícara, mais dez minutos ali; menos dez minutos sem ter o quefazer ou prá onde ir:

- Um outro expresso, por favor - sinalizou ao garçom. - É noventacentavos, né ?!?

- Sim, senhora, ainda é.- As coisas andam pela hora da morte!...Dizia isso mais para entabular um diálogo do que propriamente

porque pensasse assim; ouvira sua mãe repetir essa frase nainfância, há muito, muito mesmo. Já passava dos quarenta.

E essa reflexão, aí, logo acima, quer dizer o quê? Não tenho amenor idéia. Somos nós que falamos assim ou são as personagensque se interpõem diante dos dedos, se intrometem, no teclado? Nãosei dizer. O café, a conversa com o garçom, o gênero no feminino.Cruzes! E agora, como fazer? Você tem alguma idéia?

- Já sei. As moedas e o bolso. Captei a vossa mensagem, diletoGuru – dizia a personagem cômica do Chico, anos atrás. – E agora?Que fazer ? – perguntamos nós, parodiando Lênin, antes do outubrovermelho.

- Vou falar de novo, pois faltou referir o expresso. – Garçom, -que cara chato, nem olha prá cá! -, Garçom! Outro expresso!

Ele veio sorridente dessa vez.- Outro expresso. Eu pago quanto? Já sei, o de sempre.Perdeu-se em seus pensamentos. Havia viajado tão

intensamente que quase esquecera da amiga que a acompanhavaaquela tarde.

Engraçado isso, não? Amigos vêm e vão...;às vezes nosacompanham num trecho de vida, outras, passam correndo.Lembrava-se agora de um amigo de colégio. Tempos atrás, ouviualguém dizer que alguém tinha dito que tinha escutado falar que ele

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alguém dizer que alguém tinha dito que tinha escutado falar que elehavia morrido. Será? Sentiu-se triste repentinamente.

É verdade que tivera alguns outros amigos e, ademais, aquelenem era tão especial, – pelo menos não lhe parecia naquelascircunstâncias. Por que, então aquele súbito mal estar pela idéiaremota de que ele pudesse ter falecido, se ela mesma já desejaramorrer uma meia dúzia de vezes.

Chegou o café.Agora, só prá te confundir, incauto leitor, uma nova linha de

diálogo. O nó que essas linhas devem estar dando na tua cabeçadeve ser muito grande. Pouco nos importa daqui, na tranqüilidade dooutro lado do muro das frases que entram na tua cabeça. Quer cairfora e procurar outra Conto? Tudo bem. Eu aceito; digo, nósaceitamos; estamos falando na terceira pessoa do plural, prá variar.Essa é a Segunda explicação que dou do mesmo tipo. Deves terentendido, não é mesmo? Até porque não tenho como te impedir decontinuar aqui ou não. Terás vantagens em permanecer, isso euasseguro; só não sei de que tipo. Alguma vantagem vais ter. É isso.

- Garçom!!! – quase gritou a palavra, na esperança de quepudesse ser atendido logo.

- Sim, meu senhor. O que deseja?- O que é que aquelas duas senhoras, que estão sentadas na

mesa ao lado, estão bebendo?- Café expresso, senhor!- Expresso?! Não acredito. Tem alguma coisa especial no café

delas, já que bebem, falam e fumam com tanto gosto!- Nada além de café expresso, senhor – voltou a asseverar o

empregado ao cliente indiscreto.- Então me traga um daqueles também, mas me sirva naquela

mesa - disse o homem, levantando-se de onde estava e dirigindo-seà mesa de Nice e Beatriz.

Ele era de meia idade, barba por fazer, cabelos desalinhados euma barriga indecente que quase não cabia em sua camisa puídapelo tempo.- Com licença, eu as observava da outra mesa e de lá me pareceu

que o melhor café do bar se toma nessa mesa – disse, enquantopuxava a cadeira e recebia o café.- Desculpe, mas eu lhe conheço de algum lugar ?- perguntou

Beatriz, de súbito.Nice seguiu absorta em seus próprios pensamentos, sem quase

perceber a presença daquele homem que agora tomava um grandegole do café quente.

- De fato, o café fica muito melhor aqui !- Eu acho que o senhor está nos confundindo, não é Nice ?- Ah, provavelmente – quase respondeu Nice, num simples aceno

de cabeça.- Quanta indelicadeza minha não ter me apresentado. Eu souMarcos. E vocês são Nice, a muda ...e a senhora ?- Eu? – interrogou.- É. A senhora mesmo. Por acaso estou falando sozinho?- A julgar pelo modo como nos aborda, acho que sim. Quem lhe

convidou para sentar-se à nossa mesa? Não percebe que não é bemvindo. Estamos numa conversa privada, meu senhor. Se for umgentil cavalheiro, queira se retirar – disse, já estalando os dedos empedido de socorro ao garçom ou ao homem que estava atrás do

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pedido de socorro ao garçom ou ao homem que estava atrás dobalcão, cuidando do caixa.

- Algum problema, senhora – perguntou o caixa.- Sim. Esse cavalheiro está nos inoportunando. Faça-o voltar a

sua mesa de origem, por favor.- Cavalheiro, queira votar à sua mesa. As senhoras estão se

sentindo lesadas. Se não o fizer, terei de pedir que o senhor seretire do recinto.

O homem deu uma olhada ao redor da sala, fixando os olhos nosdemais clientes, percebendo os ares gerais de reprovação social.Levantou-se, pôs a mão no bolso da calça e dela tirou uma moeda,jogando-a sobre a mesa, num ar de desprezo e irritação. Deu doispassos, pegou o casaco, que descansara sobre a guarda da cadeirada mesa anterior, inclinou o corpo e ganhou a rua, sem nada dizer.

- Credo, Nice! Que gente! Eu, hein!? Não se pode mais nemtomar um café em paz que esses malucos já vão se chegando. Tãopensando o que da vida? Afinal, não somos garotas de programa,somos?

Nice não dizia nada. Afinal, era muda mesmo.

Conto 41, de 29/07/2000, sábadoTática e Estratégia João Protásio Farias Domingues de Vargas

Como as pessoas confundem estratégia e tática, nas conversasde seu cotidiano. Um exemplo nada comum!?!

- Bá, Marina, esse lance é o mais estratégico prá mim!Outras, dizem assim, sem se preocupar muito com a situação.

Outro exemplo do mesmo tipo.- É isso! Escolher uma profissão definitiva é profundamente

tático prá mim.Observando os dois exemplos, quase me confundo, de tanto que

o dia-a-dia nos impõe indistinções. As duas palavrinhas mágicas domundo metodológico são mais importantes do que pensamos. Semelas não se define prioridades no agir. Mesmo que uma pessoa asdesconheça em seu vocabulário, elas estão lá, presentes, renitentese utilizadas centenas de vezes ao dia. São irmãs gêmeas, sabiam?Pode-se até identificar maturidade reflexiva de uma pessoa pelo usocorreto ou não das duas; o grau da maturidade em determinadocampo também é dado pela ordem posta na escolha das previsõesfeitas.

Não há como trabalhar com os dois conceitos sem um terceiro, oconector entre ambos: a questão da prioridade. Sem essa, as duassão desnecessárias, posto que somente servem para demarcar aordem de ação, a noção de continente e conteúdo, a relaçãoexistente entre duas ações propostas. Aliás, uma só existe emrelação à outra; em função da outra; para a outra; de modo que se

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relação à outra; em função da outra; para a outra; de modo que sepossa identificar o principal e o secundário em qualquer relação delinhas de ação.

A estratégia não se confunde com a finalidade. Muitos acham quese tratam de sinônimos. Falha importante na leitura das açõesconcatenadas. Sem finalidade definida não há como desenvolver oumontar uma ou mais estratégias, pois se trata de pressupostonecessário.

O jogo de xadrez é muito ilustrativo para o que queremos dizer.A finalidade em qualquer jogo é, ou deve ser, a vitória de um dosconcorrentes sobre os demais, pois, todo jogo busca definirvencedores e perdedores; o empate é sempre a exceção; não, aregra. A teoria geral dos jogos, que estuda as relações existentesem todos os jogos, suas variáveis, suas constantes e suasresultantes, nos fornece os elementos necessários para acompreensão e identificação de qualquer jogo existente.

- Um dicionarista brasileiro, de nome Bueno, define estratégiacomo sendo "a Arte de traçar os planos de uma guerra". Definetática assim: "Arte de dispor as tropas no terreno em que elasdevem combater; meios empregados para sair-se de qualquer coisa;processo de realização".

Falava como se estivesse sozinho, com seus próprios botões,alheio às demais vontades presentes.

- Um outro dicionarista- continuou -, mais badalado, de nomeAurélio, também brasileiro, lá pela página 586, numa publicação dofinal da década de 70, assim põe a questão da estratégia: "Do gr.strategía, pelo lat. strategia. 1. Arte militar de planejar e executarmovimentos e operações de tropas, navios, e/ou aviões, visando aalcançar ou manter posições relativas e potenciais bélicosfavoráveis a futuras ações táticas sobre determinados objetivos; 2.Arte militar de escolher onde, quando e com que travar um combateou uma batalha; 3. Arte de aplicar os meios disponíveis com vista àconsecução de objetivos específicos; 4. Arte de explorar condiçõesfavoráveis com o fim de alcançar objetivos específicos; 6. Ardil,manha, estratagema". Adiante, na página 1357, define tática: "Dogr. tatiké (subentende-se techné), i.e., "arte de manobrar tropas". 1.Parte da arte da guerra que trata da disposicão e da manobra dastropas durante o combate ou iminência dele; 2. Parte da arte daguerra que trata de como travar um combate ou uma batalha; 3.Processo empregado para sair-se bem num empreendimento; 4.Meios postos em prática para sair-se bem de qualquer coisa".

Achando que não estava claro o que disse, resolveu comentar oque havia terminado de falar.

- Ambos dicionaristas definem tática e estratégia em função deconceitos militares, na arte de matar em situação de guerra; sósecundariamente é que aplicam os conceitos em outras searas. Poisbem, é fora da arte da guerra militar que nos interessam osmesmos. Algo importante postos pelos extratos é que ambos estãoimbricados, correlacionados. Isso é muito importante.

Para completar, resolveu resumir tudo o que dissera até então.- Resumindo e unificando a compreensão de ambos dicionaristas:

"Arte de aplicar os meios disponíveis, ou de explorar as condiçõesfavoráveis com o fim de alcançar objetivos específicos" - éestratégia. "Processo empregado, ou meios postos em prática, para

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estratégia. "Processo empregado, ou meios postos em prática, parasair-se bem num empreendimentos, ou de qualquer coisa; meiosempregados para sair-se dela; processo de realização" - é tática.Extratando parte do resumo, tendo em vista o COMO É:

"ESTRATÉGIA: aplicar meios disponíveis" e "TÁTICA: meiosempregados"; nesse ponto, não há como distinguir no essencial osdois conceitos, pois se confundem profundamente. Outra tentativa,agora, tendo em vista o PARA QUE SERVE: "ESTRATÉGIA: com o fimde alcançar objetivos específicos" e "TÁTICA: para sair-se bem numempreendimento ou de qualquer coisa". Numa terceira tentativa,agora primando pelo QUE É: "ESTRATÉGIA: arte de aplicar meios;arte de explorar condições" e "TÁTICA: processo empregado; meiospostos em prática; processo de realização". Piorou a distinção? Podeser.

- À luz do pensamento compilador posto, e tão bem relatado peloprofessor - disse com um ar cerrado de respeito -, podemos afirmarque estratégia tem tudo a ver com o PLANEJAMENTO e tática temtudo a ver com a EXECUÇÃO. Só se tem um plano se se tem umafinalidade; só se executa algo que é parte de um plano. Poderíamosdizer que uma estratégia está para um método, assim como umatática esta para uma técnica? Pode ser, até porque tanto aestratégia como a tática exigem seus próprios planos,distintamente. São ferramentas da ação.

Paulino se perguntava, depois da exposição feita de um plano deação:

- Isso é estratégico ou tático?- Tático - respondeu um.- Não, não, isso é estratégico, gente - respondeu outro.- Como assim? - perguntou um terceiro.Viu, leitor atento, como gera confusão o uso dos dois conceitos.

O que está faltando para se chegar a uma definição distintiva? Afinalidade última, a prioridade máxima, a totalizante, i.e., a queengloba tudo o que está sendo pensado.

Conto 42, de 30/07/2000, domingoBalada para uma Conto jurídica João Protásio Farias Domingues de Vargas

Todas esses Contos têm um objetivo certo. Não é sobre qualquercoisa que quero escrever; cotidiano, um fato qualquer, um modo dever; quero é escrever o que estou começando a chamar de Contojurídica. Na verdade todas as 41 redigidas representaram umpequeno ensaio, visando criar motivação e familiaridade com oestilo. Aliás, nem mesmo sei se o que foi escrito constitui o que odoutros no gênero entendem por Conto. Outro dia, cheio de dúvidas,peguei o dicionário Aurélio e fui ter com verbete Conto. Para minha

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peguei o dicionário Aurélio e fui ter com verbete Conto. Para minhasurpresa - segundo o famoso dicionarista -, não era nada do que eupensava.

Vou pôr a fala do De Hollanda, por ele mesmo:- "Crônica.[Do lat. chronica.]. S.f. 1. Narração histórica feita por

ordem cronológica. 2. Genealogia de família nobre. 3. Revistacientífica ou literária, que constitui, periodicamente, uma seção dejornal. 4. Pequeno conto, de enredo indeterminado. 5. Seção oucoluna de revista ou jornal consagrada a um assunto especializado:crônica política: Conto teatral. Bibliografia, em geral escandalosa,de uma pessoa: Sua Conto é bem conhecida."

Fiquei pensando, após ouvir atentamente, o pequeno discurso dohomem. Narração histórica... feita por ordem... cronológica... E oque dizer das Contos que não situam o leitor no tempo? Comcerteza o que está sendo escrito agora não é uma Conto, segundo oconceito posto. O que será que está sendo escrito, nasclassificações dos literatos? Definitivamente, não sei. Deve serqualquer coisa, mas Conto não é! Um monólogo. Quanto muito, umdiálogo, às vezes.

Iniciamos, acima, dizendo que tínhamos uma estratégia e quetodos os escritos até aqui representaram ensaios táticos parachegar a um objetivo certo: a crônica jurídica. Pegando um ganchoda fala do Buarque, até que o adjetivo faz sentido, pois há umconceito que subsume a possibilidade especializada: "seção oucoluna consagrada a um assunto especializado". Ao lado da cônicapolítica e da teatral, bem que pode figurar a jurídica. Por que, não?Afinal, política, teatro e direito possuem muita coisa em comum, acomeçar pelo discurso procedimental, pelo processo de confecção darealidade fática. A política inventa o modo de criar as leis, de aplicá-las e de executá-las (os três poderes republicanos); o teatroreinventa tudo isso, recria, reproduz, adultera, modifica, encena; ojurídico, bom, o jurídico faz tudo isso e um pouco mais: politiza eteatraliza a realidade dos homens!... Se bem que o teatro tambémjuridiciza e politiza, assim como a política teatraliza e juridiciza.

O que não queremos fazer, pelo menos só isso, é a Contoestritamente literária, se é que se pode dizer assim, para distinguiros tão diversos tipos de Contos possíveis. Lembro agora das Contospoliciais, Contos futebolísticas, Contos econômicas, Contoshistóricas, Contos sociais, Contos científicas, Contos... HaveriaConto física, Conto biológica, Conto sociológica, Conto matemática,dentre outras ligadas às áreas do conhecimento? Seria muitoengraçado compor uma Conto matemática: em pauta a dança dosnúmeros, das equações e dos traçados! Não seria um contra-sensofalar-se em Conto histórica, já que o Aurélio Buarque afirma quetoda Conto é "uma narração histórica feita em ordem cronológica"?Não sei, não. Até pode ser! Há tanta coisa contraditória que perde asua contraditoriedade pelo simples uso generalizado!

A minha pretensão é também escrever Contos que possam iraumentando de volume até evoluírem, migrarem para o conto e, como crescimento de peso e de massa, crescerem até atingir o gênerodo romance, da novela. Hoje em dia não há mais folhetins emjornais, como antigamente; elas foram parar na televisão emantiveram o nome novela, um pequeno ou médio seriado,permeado de capítulos, onde imagem e som de atores reproduzcenas da vida cotidiana, tematizada ou não.

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cenas da vida cotidiana, tematizada ou não.A idéia era retratar a vida forense do advogado, do juiz, do

promotor, a vida lúdica do delegado de política, em todas as suasfacilidades e cores; colocar personagens no palco da vida fictícia que

pudesse reproduzir, ao mesmo tempo em que pudesse imprimir umcerto tom didático, de modo a atingir o público estudantil dasfaculdades de direito. Mais do que isso, até, ensinar o direitoatravés da fala e das posturas das personagens escolhidas para asdiversas cenas representativas.

Imagine você, leitor atento - ou sonolento -, poder estar dentrodo prédio da Faculdade de Direito da UFRGS, da UnB, da USP, daUFSM, dentre tantas outras públicas - Ah, também não esquecia dasprivadas, como a PUC, UNISINOS, URI, etc. Com certeza, viajariapelos seus corredores, salas, auditórios, laboratórios, professores,funcionários, alunos, através dos atores conversantes sobre temasque dizem respeito à regulação da vida, reproduzindo ângulosvisuais dos mais diferentes juristas, métodos, técnicas, conceitos epreconceitos existentes hoje em dia, nesses lugares; enfim,discorrendo sobre teses e entendimentos correntes no país e emoutros lugares do mundo. O valor didático seria enorme, penso eu,se conseguisse escrever bem ou, pelo menos, com algum valorestético razoável - coisa que está longe de acontecer, no meumodesto entendimento.

Ah... mas tem um problema que é preciso resolver antes de tudoisso. Trata-se de uma prejudicial, como dizem os processualistas.Teria de dar a conhecer aos outros esses escritos, revelá-los em suaexistência, compartilhar com um público maior, além dos eus que ospensam, escrevem, visitam e revisitam. Há milhares de textosescritos que nunca saíram da minha gaveta! Esse projeto teria deser mais pretensioso, mais exibido, mais aparecido. E não se tratade timidez, não. Não sei o que é. O fato é que todos os textos sãoescritos para mim mesmo. Não é egoísmo, não. É algo diferente. Ofato de não saber o que é não o caracteriza como sendo issomesmo.

É como dizia o Aderson de Menezes, na sua Teoria Geral doEstado: "... escrevi isso a título de esclarecimento pessoal". Umauto-diálogo, quem sabe.

Bom, o papo está muito bom, mas preciso encerrar por aqui.Vamos ver se o destino da Conto jurídica vai se revelar promissor.Muitas variáveis, muitas... É isso. Foi bom. Até mais. Fim de cena.Tocou o telefone. Preciso ir. Fui. Quanto à palavra “balada” posta notítulo? Nem sei do que se trata. Displicente e ingrato, né?!

Conto 43, de 31/07/2000, segunda-feiraSoneto à política do direito João Protásio Farias Domingues de Vargas

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Numa sala, em algum lugar do Brasil, conversam dois

estudantes, enquanto esperam a chegada do professor, para umaaula de Direito.

- O que é o Direito, numa perspectiva política?- Direito nada mais é do que uma vontade política plasmada no

tempo e no espaço.- O que é a Política, numa perspectiva jurídica?- Política não serve para mais nada a não ser para criar,

modificar, extinguir, aplicar e executar o direito.- Não seriam reduções demasiadas as duas afirmações, Pedro? ...

E uma pequena confusão conceitual?- Como assim?- O conceito de política está exatamente igual ao conceito que a

doutrina dá para ato jurídico. O conceito de política está sociológico;nada jurídico.

- Estás dizendo que o meu direito é sociologia e que a minhapolítica é jurídica, em termos conceituais?

- Isso mesmo.- Não há nada de jurídico no que foi dito?- Não me parece.- A afirmação e a característica do diálogo está me lembrando o

que escrevia Platão a respeito de sua convivência com Sócrates.- Você seria Sócrates?- Tu te pareces com Platão?- Não.- Nem eu com Sócrates. Tempos e lugares diferentes.- É.- Mas, há algo em comum? Por acaso a sociologia conceituando o

direito e o direito conceituando a política não constituiria formas deexpressão afensas à Filosofia?

- Não me parece.- Pensa um pouco mais.- Por que seria?- A interdisciplinaridade das formulações têm de encontrar algum

campo do conhecimento classificado e nominado, para além de ummero sincretismo.

- Acho positivistas e dogmáticas as afirmações.- Viu, só?! A Filosofia vindo à tona.- Não acho. Acho que é positivismo jurídico e dogmatismo

político.- É, mesmo, Mirna?! Pensei que estava fazendo o oposto; que

estava longe do positivismo contista e do dogmatismo jurídico. Jáleste Bobbio, Positivismo Jurídico?

- Sim.- Ele distingue três tipos de positivismos: o dogmático, o

ideológico e o científico. O primeiro é imperativo; o segundo,persuasivo; o terceiro, bem, o terceiro é positivo, não quer mandar enem convencer. Está aberto a discussões, como nós, agora.

- Pode ser. Mas, ainda continuo achando problemáticas asafirmações.

- O que te convenceria do oposto? Por hipótese, não estariam asafirmações corretas? Não seria um um ato jurídico todo ato político?

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afirmações corretas? Não seria um um ato jurídico todo ato político?Estaria fora, totalmente fora do mundo jurídico a política? Peguemosa política partidária. Os candidatos não se elegem vereadores,prefeitos, deputados, senadores, presidentes? Sim. E o que eles

fazem senão dirigir o estado de modo a criar leis, aplicar leis,executar leis? Dirigem a administração pública. Os juízes não fazemparte de um Poder instituído, o Poder Judiciário? Logo, são políticos,também. Não te parece?

- Vendo assim, sim. São políticos, também; mas, políticosdiferentes, não partidarizados.

- É, mas políticos, mesmo assim. Os juízes também fazemconcurso público: provas e titulos se equivalem a eleições, mutatismutandis.

- Mas, a ciência do direito é autônoma...- Quem faz as leis que estudamos como juristas? Os políticos do

legislativo, do executivo e do judiciário; jurisprudência é decisão, évontade política, ainda que orientada em função de uma normajurídica existente ou inventada. É o caso da criação do direito exnovo pelo juiz, acolmatando lacunas com a analogia ou à base dosprincípios gerais do direito, em caso de não haver costume aplicável.Ele escolhe a norma ou a inventa, como diz Kelsen, no últimocapítulo de sua Teoria Pura do Direito.

- Viu? O Kelsen é o papa dos positivistas, e você está sereferenciando nele. A formulação é ou não é positivista? E o Kelsenfoi, a meu ver, mais sociólogo do que jurista. As referênciasbiográficas que li dele apontam para isso.

- É possível fazer ciência sem o dado positivo, objetivo, externo,sem abstrair, sem analizar, sem sintetizar, sem induzir ou deduzir?

- O positivo não se confunde com o positivismo. É ismo, amesmice de sempre; o dado positivo como sendo o único aceitável.

- Pode-se fazer ciência sem o positivo, sem um objeto específico,definido, singular e distinto dos demais objetos, de outras ciências?É disso que estou falando.

- A maior crítica ao positivismo é feita pela corrente dojusnaturalismo.

- Não penso assim. O positivismo, historicamente, representouuma superação do jusnaturalismo, que era modo corrente de ver odireito durante toda a idade média, onde a Igreja Católica tinhahegemonia na formulação do direito. Estado e Igreja estavamunidos, coisa que não ocorre, por exemplo, no Brasil, desde aProclamação da República, em 1889. Se se pensar, hoje em dia,apenas na dicotomia positivismo versus jusnaturalismo, como sepensa no dualismo bem e mal, bom e mau, certo e errado,estaremos em um brete sem saída. Há modos de ver diferentes;cortes visuais muito mais amplos do que uma posição que traz todoo ranço medieval à tona. Aliás, o jusnaturalismo medieval era umaforma precária e tirana de positivismo ideológico, o primado do justoreligioso, e quem dizia o que era justo era a Igreja.

- Como assim, jusnaturalismo positivista, se você disse que opositivismo havia superado aquele?

- Simples. Com a Revolução Francesa de 1779, a codificaçãonapoleônica instituiu um primado positivista novo, que não erabaseado na vontade das pessoas que faziam e aplicavam as leis,como juízes, mas sim baseado na vontade posta na escrita da lei,nas normas. Tanto o é que proibia - exageradamente, aos olhos

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nas normas. Tanto o é que proibia - exageradamente, aos olhosatuais -, que os juízes interpretassem a lei, para não deturpá-la.Stendhal dizia que lia todos os dia trechos do Código Civil, visandoaprender literariamente com a clareza, concisão e síntese postas

nas normas daquela época. Uma coisa é o positivo religioso, outra,o positivo jurídico.

- A Bíblia seria, então, um conjunto de normas?- Não é assim que é tida para os religiosos que as seguem?- Seria jurídica, então?- Não totalmente. Mas, há tribunais eclesiásticos ainda hoje.

Religião, moral e direito se distinguem pela coatividade organizadapela violência pública. Agora, constituem normas como qualqueroutra. No sentido lato, uma fórmula de bolo e uma norma jurídicapossuem muita coisa em comum: ambas dizem como deve-se fazeralgo.

- Direito e Culinária são semelhantes, então!- No tocante à presença de normas, sim.- Chega. Não quero mais discutir isso. Parece poesia. Um soneto

jurídico.- É um deboche.- Pode ser, mas vamos ficar por aqui.- Sim. Foi um bom debate. Inconcluso, mas uma boa conversa.

Aparece outras vezes e vamos tocar em outros assuntos. Acho que oprofessor não vem; preciso ir embora e fazer outras coisas.

Saem, cada um para um dos lados do corredor. O professor nãoveio. Havia um recado na porta, justificando a ausência, mas aconversa os impediu de vê-lo.

Conto 44, de 01/08/2000, terça-feiraComo ficou belo o jardim João Protásio Farias Domingues de Vargas

O novo pátio - era assim que passamos a denominar- daFaculdade ficara estupendo. Depois de cem anos, finalmente foracalçado. O estacionamento ficou maior. A qualidade estética ficoumuito boa. Antes, nos dias de chuva, quando se chegava a algumlugar do campus central, via-se logo que cruzáramos o caminho doDireito, pelo barro nos pés.

Da janela do Diretor, perto da bandeja de café, tinha-se umavista privilegiada. Era impossível admirar por pouco tempo, paraquem tinha na memória os anos passados ou havia lido passagenssobre a história daquele prédio. Barras de lajes grossas circundavamos coqueiros, com um gramado central, protegiam as árvores. Otaquaral ao fundo, não tinha mais aquele ar antigo de descaso eabandono ecológico, como pátio de visitantes ou taperas do interior.

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abandono ecológico, como pátio de visitantes ou taperas do interior.Havia caminhos de lajotas brancas postas, como traçados,atravessando os jardins. Parecia que o grande jardim ficara maior.Dava gosto olhar; inclusive do alto do viaduto Dona Leopoldina

ficava belo. Da sacada da Rádio Universidade tinha-se um outroângulo, cujo visual se mantinha vivo. O mesmo se podia dizer pelavista da lateral leste, no prédio da antiga Medicina, ex-Biociências.

Imaginava como seria se os muito antigos, hoje mortos,estivessem ali, como se saindo dos quadros e ganhando novamenteforma humana. A imaginação voava, enquanto esperava o Diretor.Agora volveu os olhos para dentro, à direita, a mesa colonial, comfiguras em alto relevo, Thêmis, balanças, piras olímpicas, códigos esímbolos jurídicos. Inúmeros quadros como que abrissem janelasnas paredes e deixassem ver faces, bustos, reuniões e documentos,ostentando a história, relutantes, presentes, o presente.

Ao fundo, à esquerda de quem entra pela porta da Secretaria, aestante com a coleção inteira e autografada do Tratado de DireitoPrivado, de Pontes de Miranda. Alguns outros volumes, todosapertados, disputavam espaços naquelas poucas estantes. RuiBarbosa, Rui Cirne Lima, obras de professores da casa que tiveramseu tempo, ilustração e fama.

À direita de onde estava, um armário escuro, também em estilocolonial, com várias gavetas longas e porta lateral, guarnecia, emcima, vários códigos novos e um exemplar da última constituiçãofederal.

No centro de tudo, sempre aguardando visitas, um jogo de cincosofá descansava entretido com si mesmo; era formado por um longoe quatro pequenos, em volta, como que em torno de uma pequenamesa onde ficavam revistas jurídicas, jornais especializados efolders recentes anunciando eventos. Dezenas de pessoassentavam-se ali, por dia, em conversas e reuniões, agendadas oucasuais, professores, alunos ou visitantes.

Bem à sua direita, entre a janela onde estava e a estante doPontes, à esquerda da porta privada que dava acesso à sala do Vice-Diretor, uma mesa longa, com cadeiras estofadas, denunciava omodo de trabalho freqüente em reuniões e acertos dos maisvariados tipos jurídicos. Uma discreta toalha e um pequeno vasoornavam a base colonial. Em poucos minutos, quando os outroschegassem, seria ali que se sentariam para debater e executar oque vinham tratando.

Olhou para o alto e visualizou o forro, já envelhecida, bem comoas lâmpadas fluorescentes, denunciando a modernidade. O prédiofora construído na década de vinte desse século; naquele tempo, luzelétrica era novidade até descartada. Os tilburis eram os meios detransporte mais comuns, subindo e descendo a famosa avenida JoãoPessoa. Pelas duas janelas altas, abertas e envidraçadas, podia verparte da rua e do terminal de ônibus da frente.

Virou-se novamente para o pátio. Serviu um novo cafezinho econtinuou a admirar o pátio novo, pensando nos cem anosrecentemente comemorados: 17 de fevereiro. Estava assim, absortoem suas lembranças, quando alguém entrou na sala. Era o Diretor.

- Desculpa a demora, mas o atraso foi inevitável.- Não esperei muito. Estava admirando o pátio.- Ficou bonito, não é? Quer um cafezinho? O pessoal já deve

estar chegando.

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estar chegando.- É. Aceito. Trouxe os documento e a minuta prometida.- Ótimo. Telefonei e falei com Brasília. Acho que vai dar tudo

certo.

- Vai ficar muito bom.- Vai.Bateram à porta. Entraram os demais integrantes da reunião,

com quinze minutos de atraso.- Vamos sentando, à mesa - disse o Diretor, apontando o local.Sentou-se o nosso deslumbrado amigo na cabeceira oposta da

mesa, de modo que de onde estava podia continuar vendo o altodos coqueiros do pátio, bem como a volta do viaduto, no lado sul dacidade. Percebendo que a reunião teria de começar com a sua fala,estancou os pensamentos e reminiscências, pondo-se de corpo ealma, presente.

- Está sendo distribuído aos senhores cópia do texto e da minutade projeto que fiz, conforme combinamos na reunião anterior. Sugirouma leitura de voz, pela nossa secretária, com a marcação dedestaques para discussão. Todos de acordo? Ótimo. Procedamosassim.

O pátio continuava ali, agora, no início da manhã, já ganhando ocolorido dos passos do estudantado, transitando, como caminho àReitoria, ou simplesmente para ir em direção à entrada lateral dobar e da loja de cópias. O sol crescia, irradiante, sobre as pedrasque já pareciam mármore, esbranquiçadas, sentando como o estilocolonial dos móveis, no dourado das fagulhas que batiam na vidraça.Como ficou belo aquele jardim.

Conto 45, de 02/08/2000, quarta-feiraPrincípios e juizados obrigatórios João Protásio Farias Domingues de Vargas

A mesa estava lotada na Sala dos Professores. Quase todos osintegrantes do grupo de estudo se fizeram presentes; os ausentes,justificaram. Alunos de graduação, advogados, pós-graduandos e,dentre esses, juízes leigos, conciliadores e assessores de cartório. Odebate tinha pauta certa. Era o primeiro encontro sobre a nova leifederal dos antigos juizados de pequenas causas; não toda ela;apenas a parte cível.

Um deles - Marlon - começou a leitura do preâmbulo e primeirocapítulo da lei, tecendo seus comentários, de maneira bem informal,como era típico no modo impresso daquelas reuniões.

- Lei número 9.099, de vinte e seis de setembro de milnovecentos e noventa e cinco, publicada no Diário Oficial da Uniãoem vinte e sete do mesmo mês e ano. Dispõe sobre os Juizados

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em vinte e sete do mesmo mês e ano. Dispõe sobre os JuizadosEspeciais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Capítulo um.Disposições gerais. Artigo primeiro. Os Juizados Especiais Cíveis eCriminais, órgãos da Justiça Ordinária, serão criados pela União, no

Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para conciliação,processo, julgamento e execução, nas causas de sua competência.Artigo segundo. O processo orientar-se-á pelos critérios daoralidade, simplicidade, informalidade, economia processual eceleridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou atransação. É isso o que diz o capitulo primeiro. Vamos ao debate.

Gustavo, um jovem de óculos, inscreveu-se e pôs-se a falar.- Acho que o artigo primeiro trata de algo muito importante, a

obrigatoriedade da criação dos Juizados, tanto pela União quantopelos Estados. A segunda questão importante no mesmo dispositivodiz respeito à fixação geral da competência. Quanto ao artigoseguinte, elenca seis princípios básicos ou retores, e não cinco,como aparentemente se apresenta. A busca constante da conciliaçãoou da transação constitui princípio, ao lado dos demais, e não umamera formalidade procedimental.

- Eu tenho uma dúvida - colocou Mariana, a moça vestida devermelho, posta ao fundo. - Quero me inscrever para falar.

- Está escrita - disse Carolina, fazendo as vezes de mesa, nocontrole das inscrições. - Pode falar; é a sua vez.

- Não entendo por que a lei fala em "conciliação, processo,julgamento e execução", se tudo isso é parte de uma mesma coisa,o processo; aparentemente, tratam-se de coisas distintas. Nadapode ocorrer fora do processo. Julgamento é ato processual, assimcomo execução e conciliação. Não existe um processo de conciliaçãodistinto, ainda que possa existir um processo de execução distintodo processo de conhecimento, onde se dá o julgamento. Parecedesnecessário o que foi posto pela lei; além do que é óbvio que osJuizados só podem ser competentes para "causas de suacompetência". Tenho outra questão, mas fica para depois. Peço, já,outra inscrição, para falar sobre o artigo segundo. Alguém pode medizer a razão de tais repetições inúteis? Houve falha redativa?

Houve um breve silêncio. Márcia, que mais parecia umagarotinha, com fita e tudo no cabelo, mascando chiclete, levantou odedo, inscreveu-se e começou a dar uma resposta.

- Acho que nunca há nada de desnecessário na lei. Se está ali éporque deve fazer algum sentido. Cabe a nós buscar o sentido que olegislador quis dar; e isso, para além do que os legislador fático ouhistórico quisesse dizer, i.e., o autor do projeto, o relator, o revisor,todos os que intervieram no processo legislativo. A minhaimpressão, salvo melhor juízo, é a de que, em sendo nova a criação,no modelo da lei, que é diferente do modelo da lei anterior, a denúmero 7244, de mais de dez anos antes, o legislador quis, desdelogo, para distinguir do processo da Justiça Comum, estadual oufederal, afirmando que os Juizados podem, sim, conciliar, processar,julgar e executar todos os feitos que estiverem em suacompetência, como depois vai demonstrar o artigo terceiro, abaixo,na primeira seção do capítulo seguinte da mesma lei. Não fosseassim, poder-se-ia dizer que os Juizados somente poderiamprocessar e julgar, mas não executar, como acontecia pela leianterior, que essa atual revogou; era preciso executar os julgadosdos Juizados em uma vara comum. Quanto à conciliação, o objetivo

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dos Juizados em uma vara comum. Quanto à conciliação, o objetivoé dizer que os Juizados podem conciliar, independentemente daexistência de um processo que tenha de ter um julgamento; sóconciliação e ponto final. Isso é novo, daí a importância da redação

dessa segunda parte do artigo primeiro. E isso vale tanto para oscíveis quanto para os juizados criminais, já que esse capítulo écomum às duas modalidades.

A mocinha não dava ares, em sua aparência, de dominar tão bemo que dizia. Como as aparências enganam! O que é o estudo! - comodizia um amigo, há algum tempo. Um novo integrante se inscreve epede a palavra para falar sobre o tema. É Henrique, um magro, alto,rosto fino e barba rala, cabelos desalinhados e uma camisetabranca, com estampa de um conjunto de roque.

- Eu penso como disse a Márcia. Não há nada descartável emqualquer redação de lei. Não foi isso o que aprendemos em aula eque repetem os doutrinadores? Mas, eu queria falar um pouco sobrea primeira parte da redação do artigo primeiro. Se vocês selembram, o artigo primeiro da lei anterior, de 1984, dizia que osEstados ficavam facultados à criação dos Juizados; agora, a lei usao verbo no imperativo afirmativo "serão criados", o que indica quenão pode um Estado não ter Juizado cível e criminal à disposição dapopulação. E isso não foi muito pacífico no seu entendimento, não.Recordo que li num artigo, de logo que saiu a lei, afirmando que erauma faculdade dos Estados, já que existia a justiça comum e nãoestaria sendo denegada justiça ao cidadão; que, se fosseobrigatória a criação e funcionamento, a União teria de dar ascondições necessárias para o seu funcionamento nos Estados. NoRio Grande do Sul, onde foi inventado, ninguém tem dúvida daobrigatoriedade; mas já não é o que ocorreu, por exemplo, aquipertinho, em Santa Catarina ou no Paraná. Nem se fale nos Estadosdo Nordeste. Há vários textos que relatam isso. Era o que eu queriadizer por hora.

- Mais alguém inscrito? - perguntou o professor.- Sim - respondeu a Mesa; Tânia de Lucca.A moça estava absorta. Pela aparência, beirava os trinta anos;

trazia aliança grossa na mão esquerda e se vestia com muitasobriedade, mas de modo elegante. Os lábios muito grossos, combatom discreto, rosto branco e redondo, denunciavam sua origemitaliana.

- Sobre os critérios do artigo segundo. Como está quente aquidentro! Alguém poderia abrir algumas janelas, por favor? - pediu,abanando o rosto com uma folha de caderno dobrada ao meio. -Bem, continuando. Ficou bem melhor, agora. Quanto ao que significacritério, na lei. Ela fala em "o processo orientar-se-á peloscritérios...". Isso quer dizer que tais critérios são critériosorientadores. Mas, o que são critérios orientadores? Orientadores doquê? Critério e princípio são a mesma coisa? Acho que, é óbvio,esses critérios orientam o processo, em sua totalidade, em qualquerato nele praticado, do início ao fim, da inicial ao trânsito emjulgado, passando pela conciliação, instrução, prova, sentença,recurso e execução. Acho mais. Acho que critérios orientadores sãoprincípios, sim. Princípios orientadores do processo. Na linguagemcomum, critério é tudo aquilo que serve para orientar uma escolha,uma decisão; trata-se, no processo, da escolha do ato, da decisãojudicial, de tudo que nele for feito. São cinco critérios e uma

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judicial, de tudo que nele for feito. São cinco critérios e umatentativa permanente; que são coisas distintas. Todo princípio éorientador do intérprete; portanto, só serve à exegese e deveimpregnar, estar presente do ato faticamente posto no processo,

permeando a todos. Tudo o que for feito deve levar em conta oscinco processos e a tentativa vislumbrada. Já estou falando demais.Inscrevo-me para continuar depois.

- A vez do Gustavo, em segunda inscrição - bradou a Mesa. -Depois dele, está inscrita a Liege, é isso?! Gustavo pôs-se a falar.

- Discordo da Tânia no tocante à distinção entre critério efinalidade ou busca permanente. A natureza jurídica é a mesma. Onome do princípio é conciliação. A diferença está no relevo dado, aofinal da redação. Para ser mais transparente no que quero dizer,preciso, antes, distinguir "conciliação" e "transação", elementospostos como objetos da famigerada busca-sempre-que-possível.Transação é instituto originário do Código Civil, como modo deextinção das obrigações, que não o pagamento. É, também, modode composição dos litígios ou conflitos. Em teoria geral do processose aprende que há três modos solutivos de desavenças, que sãomaneiras autoregulativas: a sujeição, a desistência e a transação;no primeiro, o sujeito aceita toda a pretensão da parte oposta,sujeitando-se ao que ela entende como sendo o seu direito; nasegunda, ocorre o oposto, o sujeito que tem uma pretensão contraoutro desiste do que entende como sendo o seu direito; no últimocaso, há um meio termo, ambos ajeitam-se, abrindo mão de partedo que entendem seu, ou devido; um paga um pouco e o outrorecebe menos do que pretendia, por exemplo. Agora, a conciliação é,sempre, duas coisas: um método de resolução de conflitos, queenvolve os três modos que vimos acima, visando pôr fim a umconflito, exista ou não um processo judicial entre as partesdesavindas; por outro lado, é, também, uma fase processual, doprocesso sumaríssimo novo, ora instituído pela lei em discussão;tanto o é que há seção própria, a Seção VIII, que trata daConciliação e do Juízo Arbitral. Na minha fala, há uma contradiçãoevidente, pois como pode a conciliação ser distinta da transação sea engloba? É simples. Entendo que o legislador conceituouconciliação apenas nas duas das três modalidades que falei antes,pegando as mais radicais: a submissão e a desistência. A revogadalei 7244/95 falava, no final do artigo segundo, apenas em buscandosempre que possível a conciliação. Entendia-se, na palavra"conciliação", as três formas autocompositivas. A distinção feita, nanova lei, é apenas para realçar a forma mais justa deautocomposição, visando superar aquilo que a Ada PellegriniGrinover chamava de litigiosidade contida. Com a desistência ou asubmissão ainda pode ser mantido socialmente o conflito, mesmojuridicamente resolvido. É isso aí. Já estourei o meu tempo de fala.

- É, estourou - disse a Mesa. - Liane, com a palavra.Liane tinha longos cabelos loiros, muito lisos, quase brancos, e

os olhos azuis. Parecia modelo de capa de revista. Muito bemvestida, jeito vivaz, quase sangüíneo; semblante tranqüilo e sorrisolevemente debochado.

- O tempo está correndo e precisamos avançar. Vou falar sobre asrelações entre os princípios e a sua aplicação pelo intérprete ouoperadores do direito. O princípio da oralidade já existia noordenamento jurídico brasileiro, no Código de Processo Civil, ao

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ordenamento jurídico brasileiro, no Código de Processo Civil, aoinstituir a audiência de instrução e julgamento. Partes, advogados,testemunhas e auxiliares da justiça se encontram, frente a frente, acerta altura do processo, em uma reunião formal, cujo procedimento

típico fica a cargo da fala; as pessoas se expressam oralmente, naordem posta pelas normas processuais. O princípio da simplicidade émais complicado, se cortejado com o seguinte, o da informalidade.Tudo o que é simples parece informal e vice-versa, mas não éverdade; pode-se complicar simplesmente. Simplicidade édescomplicação; informalidade é ausência de formalismosexacerbados; não é afastamento de toda e qualquer formalidade.Significa que a linguagem deve primar pela ausência do juridiquês,de modo que as partes possam entender o que se está falando; quese deve simplificar ao máximo as fórmulas aprendidas no processocivil tradicional posto no CPC. Quanto aos princípios da economia eda celeridade, entendo que se deve economizar ao máximo os atos,sem repetições desnecessárias, bem como tornar o processo omenos oneroso economicamente, tanto para as partes como para oEstado, já que não há custas, em geral. A preocupação com o tempoestá clara, os atos devem ser sucessivos; de preferência, tudo deveocorrer em um ou dois encontros entre todos os atores envolvidos.Tanto o é que há apenas duas audiências: uma de conciliação eoutra de instrução e julgamento. O liame entre todos os princípiosestá evidente: a oralidade existe simplicidade, que geraminformalidade e, com isso, economiza-se inclusive tempo,acelerando o tempo de duração do processo, sua vida útil ouforense, aumentando-se a satisfação dos súditos na prestaçãojurisdicional. Não foi o extinto Ministério da Desburocratização queiniciou essa coisa de juizado? Foi. Época do Figueiredo, o últimogeneral-presidente. Então? Toda vez que o advogado e o juiz, oconciliador ou a parte, forem se manifestar, devem falar simples einformalmente, economizar palavras e dizer muito rápido o quepretendem. É isso, falando informalmente. Terminei.

- Agora, alguém mais quer falar, antes de passar a palavra, pelasegunda vez, à De Lucca? Ninguém. Tânia, com a palavra. Sejabreve, que o tempo já está correndo.

- Celeridade, celeridade. Muitas vezes a pressa gera complicaçõese confusões que custam muito caro. Brincadeirinha!... - disse,desculpando-se, de imediato. - Vou falar sobre os princípios oucritérios; já nem sem mais se se distinguem, mesmo. Falando sério.O formalismo é uma garantia de qualquer processo ou procedimento.Sem ele ninguém fica seguro de como as coisas devem ser ou serão.Não acho que informalidade seja o oposto de formalismo. Concordoque não pode ser um formalismo ensimesmado, um formalismo emsi, por si e para si. Nada contra, ou a ver, com a fórmula dedemocracia de Lincoln, pois eu concordo com ela. As formalidadesestão descritas na lei e devem ser seguidas; o princípio quer lembrarque o juiz não deve se ater a fórmulas e rituais desnecessários;deve ser flexível. Por exemplo, nada obsta que ouça testemunhas doréu misturadas com as do autor; afinal, as testemunhas elencadassão do juízo, e não da parte. O compromisso é com a verdade...

Nesse ponto, interrompe a Mesa.- Chegamos ao nosso teto de reunião. Continuemos ou deixamos

para a próxima, professor.

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- O que acham todos? Para a próxima? Está bem. Queroagradecer a presença de todos e dizer que foi uma belíssimareunião; houve um debate rico e vejo que estão estudando bastanteo tema; estão dominando bem. É isso aí. Na próxima reunião

continuamos onde paramos. Não se atrasem. Será aqui mesmo.Em dois minutos todos haviam saído da sala. O professor pôs a

mão no bolso do paletó, tirou um maço de cigarro, acendeu um edeu uma longa tragada, com um olhar muito satisfeito. Juntou suasfolhas, pu-las na maleta, ganhou a porta e foi-se, pelo corredor, emdireção à saída.

- Juizados....princípios... obrigatoriedade; uma bela conversa -pensou. Desceu as escadas. O dia estava escuro e chovia muito;mesmo sem guarda-chuva, pôs-se a caminhar, em direção ao centro.

Índice Analítico

RESUMO

MODO DE CITAÇÃO

APRESENTAÇÃO

SUMÁRIO

CONTO 1 - MENTE NO CÉU, OLHO NO CHÃO

CONTO 2 - UM PASSEIO NOTURNO

CONTO 3 - UMA AULA SOBRE SOCIEDADES

CONTO 4 - POSTURA DA SEMIÓTICA

CONTO 5 - AS MOÇAS DA VOLUNTA

CONTO 6 - A VELHA REPÚBLICA

CONTO 7 - O MUNDO DOS POKÉMONS

CONTO 8 - UMA CONSULTA DE ESCRITÓRIO

CONTO 9 - AUDIÊNCIA COM UM VEREADOR

CONTO 10 - UMA BREVE CONVERSA

CONTO 11 - A AGENDA E O POETA

CONTO 12 - A REUNIÃO MARCADA

CONTO 13 - TELEFONEMAS MUDOS

CONTO 14 - A SORTE DAS PROVAS

CONTO 15 - VOCÊ TEM UM PLANO?

CONTO 16 - VERDADE - PROVA - FALSIDADE

CONTO 17 - FAZENDO UMA CANOA

CONTO 18 - UM TEMPO DE LEITURA

CONTO 19 - ANTENA PARANÓICA

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CONTO 19 - ANTENA PARANÓICA

CONTO 20 - A IMORALIDADE DA MORAL

CONTO 21 - FASES E CRISES NA VIDA DOS CASAIS

CONTO 22 - GAYS, LÉSBICAS TRAVESTIS E TRANSGÊNEROS

CONTO 23 - A ÉTICA DA MORALIDADE

CONTO 24 - A DISTÂNCIA REGULAMENTAR

CONTO 25 - DE ESCALA A CONEXÃO EM VÔOS DOMÉSTICOS

CONTO 26 - PENSAR E AGIR

CONTO 27 - CARIOCA DO INTERIOR

CONTO 28 - AS DESPEDIDAS NUNCA SÃO IGUAIS

CONTO 29 - TELEFONE MÓVEL

CONTO 30 - FACILIDADE E COMPLICAÇÃO

CONTO 31 - INTUIÇÕES QUE VALEM

CONTO 32 - JACARÉ E RATINHA NOS MILHOS ATRÁS DA PORTA

CONTO 33 - SONO E SONHO

CONTO 34 - MADRUGAR É PRECISO

CONTO 35 - ÓI O TREM

CONTO 36 - ESCRITA E VOCAÇÃO

CONTO 37 - GARANTINDO O PÔR-DO-SOL

CONTO 38 - ESQUIZOFRENIA EUFI Y EUDI

CONTO 39 - DIMENSÕES FÍSICAS DO AMOR

CONTO 40 - CAFÉ NO CENTRO

CONTO 41 - TÁTICA E ESTRATÉGIA

CONTO 42 - BALADA PARA UMA CONTO JURÍDICA

CONTO 43 - SONETO À POLÍTICA DO DIREITO

CONTO 44 - COMO FICOU BELO O JARDIM

CONTO 45 - PRINCÍPIOS E JUIZADOS OBRIGATÓRIOS

ÍNDICE ANALÍTICO

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Acesso , desde 15 de março de 2009.