Upload
dinhtruc
View
215
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL
(Parte IV)
Aula de Filosofia Medieval
Prof. Marcos Aurélio Fernandes
UnB – Fil
2017.1
A ALTA ESCOLÁSTICA
A alta escolástica vai de 1200 até cerca de 1340. É o ápice da filosofia e da
teologia na idade média latina.
UNIVERSIDADE E ESCOLÁSTICA
No século XII, como vimos, as escolas se abrem para um público maior, para além
do tradicional público: os monges e a aristocracia feudal. Estudantes e mestres se
movimentam para lá e para cá. O conteúdo e os métodos também se transformam.
Desde Pedro Abelardo se impõe o primado da dialética. Esta introduzia no ensino as
questões filosóficas e fornecia o método do “sim” e do “não”. Este recorria ao
levantamento de “questões”, articulando argumentos afirmativos e negativos, com base
em “sentenças”, que expressavam o parecer de “autoridades” (principais autores da
tradição filosófica e da tradição do saber cristão) em referência a determinadas teses,
em vista de alcançar respostas que, como sínteses, superassem as contradições
(antíteses) entre estes pareceres. Isto possibilitou um tratamento racional das verdades
da fé cristã, ao qual Abelardo deu o nome de “teologia”. Este mesmo método passou a
ser usado para outros saberes, como o direito e a medicina. A Itália teve um papel
decisivo no desenvolvimento destes dois saberes. O direito tomou novo impulso em
Bolonha, com a redescoberta de textos do direito romano. A medicina, em Salerno, com
2
a tradução de textos da medicina greco-árabe. A maioria dos mestres que ensinavam
estes saberes era leiga e seu ensino escapava do controle eclesiástico. Estes aspiravam
a ensinar na França ou na Inglaterra. Estudantes de teologia de Paris aspiravam à
carreira eclesiástica; estudantes de direito de Bolonha, a serem conselheiros de
príncipes e cidades. Magistri (mestres) e scolares (estudantes) foram, aos poucos,
tomando consciência de sua vocação específica e começam a aspirar a uma organização
corporativa e à autonomia. As universidades surgiram para responder a esta demanda.
Assim surgiu em Paris, na primeira década do século XIII, a instituição chamada
hoje de “universidade”. A palavra usada para nomear esta nova e original instituição
escolar, “universitas”, é abreviação de uma expressão ou locução maior. Em Paris, ela
se chamou “Universitas magistrorum et scolarium parisiensium” (universidade dos
mestres e dos estudantes parisienses). Ela estava organizada em “nações” (origem
geográfica: França, Picardia, Normandia, Inglaterra) e em faculdades (áreas de saber).
As faculdades eram a Faculdade de Artes (Liberais), que tinha o papel propedêutico para
as demais faculdades, que incluía a filosofia e privilegiava a dialética; e as faculdades dos
cursos “superiores”, quais sejam, a medicina, o direito (em Paris, a partir de 1219, o
estudo do direito se restringia ao direito canônico, excluindo o direito civil) e a teologia,
que contava com o maior número de estudantes e que passou a incorporar os centros
de estudos (studia) das Ordens Mendicantes. A universidade de Bolonha, cujo
nascimento é contemporâneo à de Paris, surgiu como uma corporação (universitas) de
estudantes, diferente da de Paris, que era uma corporação de mestres e estudantes. Ela
tinha a Faculdade de Medicina, mas dava prioridade ao estudo do direito, civil e
canônico. Na Faculdade de Artes se ensinava principalmente a gramática e a retórica. A
Faculdade de Teologia passou a ser conduzida hegemonicamente pelas ordens
mendicantes. As nações estavam organizadas em “citramontanos”, os originários de
terras aquém-Alpe, e “ultramontanos”, os originários de terras além-Alpes1.
Os poderes públicos (comunas, reinos, Império) oscilaram entre a resistência, o
apoio e a tutela a esta nova instituição. A entrada em conflito com o rei e com o poder
policial devido a problemas estudantis levou a Universidade de Paris, que se tornava,
1 Outras universidades que surgiram no século XIII: Oxford e Cambridge, na Inglaterra; Montpellier e Toulouse, na França; Salamanca e Lisboa/Coimbra, na Península Ibérica; Pádua e Nápoles, na Itália.
3
agora, a Atenas do ocidente latino medieval, apelar para o apoio do Papa. Um episódio
de violência envolvendo estudantes alemães e um taberneiro levou a uma repressão
policial: cinco estudantes foram mortos. Os estudantes organizaram um movimento de
greve e ameaçaram ir embora da cidade. Por isso, o rei Filipe Augusto decidiu subtrair
os escolares da jurisdição real e passa-los à jurisdição papal. Em 1209 Inocêncio III deu
à comunidade dos mestres e aprendizes estatutos próprios. A licentia docendi (licença
para ensinar) já não seria dada mais pelo bispo local, mas sim pelo próprio papa.
Seguindo o modelo das corporações de artesãos, a Universidade se tornou uma
corporação que tinha a forma de um estaleiro, em que se dispunham e se ordenavam
oficinas dos diversos saberes, que se pretendiam articular numa unidade. Um espírito
cavalheiresco também impregnava os exercícios acadêmicos, as disputas, os debates,
que se tornavam verdadeiros torneios de pensamentos e palavras.
Embora seja herdeira da uma longa tradição escolar ocidental, a universidade
medieval, surgida no século XIII, é uma criação original, sem verdadeiro antecedente
histórico. Os seus mestres e estudantes estavam conscientes desta originalidade.
Entretanto, em que consistia esta originalidade? Antes de tudo, na busca de relativa
autonomia institucional, ou, como se dizia, na conquista de “liberdades e privilégios”
para mestres e estudantes. Um certo espírito democrático inspirava esta instituição. Ela
podia, a partir de assembleias de mestres, organizar estatutos e estabelecer regras de
funcionamento. Ela também organizava a defesa e a representação perante as
autoridades externas, civis ou eclesiásticas; e controlava por si mesma o recrutamento
de estudantes e mestres. Em segundo lugar, a universidade nascente era imbuída de
uma vocação universalista. Este universalismo se deixa ver em vários aspectos. A
“universitas”, antes de tudo, tinha a função de promover a totalidade do saber, a
“universitas studiorum” (universidade dos estudos), que provinha de dupla fonte, da
filosofia grega e da revelação cristã. Este saber era ensinado na língua universal da
cristandade latina, justamente, o latim. Os particularismos regionais e nacionais ficavam
em segundo plano diante do protagonismo de um saber universalista, que era
basicamente o mesmo por toda a parte da cristandade latina. Os mestres e estudantes,
mais do que cidadãos de suas terras e reinos de origem, eram, basicamente, cidadãos
desta mesma cristandade e, embora fossem muitas vezes organizados em “nações”, isto
4
é, de acordo com seus lugares de nascimento, eram enriquecidos por uma experiência
de vida acadêmica internacional. Os títulos obtidos em uma universidade eram
reconhecidos em outra. Em terceiro lugar, esta instituição ligava-se diretamente ao
poder universalista por excelência na cristandade latina: o papado. Era o papa que
confirmava os privilégios; era em seu nome que o chanceler conferia a licença “ubique
docendi” (de ensinar por toda a parte). Em troca da fidelidade à ortodoxia da Igreja
Católica e ao magistério pontifício, ele protegia mestres e estudantes dos abusos das
autoridades locais, civis ou eclesiásticas. Isso se pode dizer, traçando-se um quadro
geral, sem levar em conta das peculiaridades e as exceções.
A contribuição das universidades medievais para o desenvolvimento do saber no
ocidente latino foi decisiva, sobretudo na época do seu florescimento (séc. XIII e XIV).
Jacques Verger resume assim a sua contribuição nos domínios do ensino superior e da
cultura erudita medieval:
A Universidade, no início, levou à perfeição métodos de ensino cuja fecundidade foi por muito tempo encoberta pelas críticas tardias e injustas dos humanistas e filósofos das Luzes. A “leitura” atenta das “autoridades” permitia uma minuciosa exegese de textos, a “disputa” abria caminho a grande liberdade intelectual, assentada no rigor racionalista do raciocínio dialético. O conteúdo do ensino universitário também deve ser considerado: os “artistas” de Paris e Oxford levaram a lógica formal a uma perfeição que os filósofos de hoje redescobrem; com Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino, os teólogos reconciliaram no século XIII fé e razão, confiança na Revelação e redescoberta do mundo; nos séculos XIV e XV, os críticos de Ockham e de seus herdeiros “nominalistas” enfraquecerão essas sínteses poderosas, mas para recolocar em primeiro plano problemas que ocuparão a consciência moderna (liberdade, graça, salvação), livrando, talvez, o pensamento científico do entrave teológico. As ciências dos números e da natureza foram frequentemente negligenciadas nas universidades medievais. No entanto, são elas que, em alguns momentos privilegiados (meados do século XIV em Oxford e Paris; século XV em Pádua e Salamanca), darão forma a certos rudimentos da ciência moderna (astronomia, mecânica). Sua introdução na Universidade representou para a medicina, malgrado o peso das autoridades (Galeno, Avicena), uma verdadeira revolução, que a fez passar do estágio do saber empírico, se não mágico, ao de disciplina intelectualmente constituída por princípios racionais e reconhecida como tal. O direito finalmente encontrou nos juristas medievais, sobretudo italianos, tanto exegetas minuciosos como pensadores capazes de abstrair os princípios gerais de um sistema legislativo; por este caminho e manifestando algum desdém pelo direito cotidiano, o do costume e o da jurisprudência, eles tiveram a função essencial de
5
introduzir em nossa civilização uma imensa parcela de romanidade, sobre a qual se fundarão tanto a ciência político moderna quanto as noções que regem até hoje o direito privado.
Nossa escolha de concentrar o nosso estudo do pensamento medieval pela
escolástica, por conseguinte, não é por pura e simples localização numa tradição
histórica: a ocidental latina, da qual a Europa, especialmente a Europa ocidental,
atlântica, esta que levou a cabo a expansão do ocidente pelo mundo na era moderna,
predominantemente depende em suas raízes. A escolha da escolástica também se
justifica por critérios filosóficos. Para aprender a pensar com os medievais a escolástica
medieval nos oferece bons préstimos e oportunidades. As razões são as seguintes:
1) Na escolástica latina confluem as riquezas das outras tradições. “As contribuições
filosóficas dadas pelos dois outros ramos, a cristã-síria e a cristã-árabe, bem como
pelos dois outros troncos da árvore da filosofia, a filosofia dos árabes e a filosofia
dos judeus medievais foram utilizadas e absorvidas pelos escolásticos. Claro que o
fizeram adaptando-as à sua própria perspectiva teológica. A filosofia árabe e judaica,
que eles nos propõem, já nos chega batizada pela especificidade da fé cristã.
Ademais, um mesmo ar respiravam todos os pensadores medievais, um ar que se
poderia caracterizar por uma atitude de acolhimento e aceitação da realidade tal
como se oferece na diversidade do mundo, da natureza, da fé no monoteísmo
revelado. Nenhum medieval, de qualquer credo que seja, pretende as conhecer,
transformar a realidade e colocá-la a serviço do senhorio do homem sobre a
natureza e de sua maestria sobre a realidade, tal como é o espírito e a mentalidade
da idade moderna.”
2) A criatividade do pensamento escolástico. “A riqueza e variedade dos muitos
caminhos desbravados pelos escolásticos superam em número, gênero e grau, todas
as contribuições dos filósofos árabes e judeus da idade média. Os escolásticos
abriram novos horizontes de questões e rasgaram outras dimensões de interrogação
que não se encontram nem entre os árabes nem entre os judeus, embora tanto uns
quanto os outros tenham dado uma contribuição decisiva aos desempenhos da
6
escolástica e tenham desenvolvido também uma mística própria, não, porém, uma
mística especulativa, no sufismo e na cabala”.
3) O caráter determinante do pensamento escolástico para o destino do pensamento
moderno. O pensamento árabe foi muito fecundo no breve tempo em que ele
vigorou. Mas, com Averróis, este pensamento emudece, perdendo seu poder de
determinar a história dos séculos futuros. Paradoxalmente, Averróis, assumido no
pensamento ocidental, tornou-se uma das forças propulsoras para o advento da
modernidade no ocidente cristão. As contribuições dos pensadores escolásticos não
deixaram de atuar na gênese do pensamento moderno, como, por exemplo, no
pensamento do século XVII e XVIII, de Descartes a Kant, por mais que esta atuação
permaneça subterrânea. Neste sentido, podemos fazer as seguintes perguntas: “Por
que pertence a todo currículo de formação filosófica estudar o pensamento
medieval? O que há com a filosofia que não se pode desvencilhar destes vencilhos
históricos do pensamento no passado? Que originalidade nos traz o pensamento já
pensado na escolástica para levar-nos a pensá-lo de novo? ”.
A escolástica não é algo de padronizado e estereotipado. Pelo contrário. É algo
criativo e plural. Diversos são os estilos, as formas, os caminhos da filosofia escolástica.
Múltiplas são as respostas que deram às mesmas questões e aos mesmos problemas.
No entanto, estas produções e criações próprias se fundam numa unidade de
pressuposições iguais e se plantam em condições culturais compartilhadas por todos os
doutores escolásticos. Vejamos, pois, quais são estas características comuns:
1) O íntimo relacionamento de filosofia e religião e, respectivamente, teologia. A
escolha dos problemas filosóficos e o modo de sua elaboração são determinados por
este relacionamento. A religião baseada numa revelação que é contida num livro
sagrado, a Bíblia, e cuja doutrina é desenvolvida a partir da tradição pela autoridade
do magistério eclesiástico fomenta a teologia. A filosofia, por sua vez, está a serviço
da teologia. Ela serve à fundamentação racional e ao esclarecimento conceptual do
conteúdo teológico, de um lado, e à assunção de rigor demonstrativo, de outro.
“Autonomia de princípio e metódica da filosofia enquanto ciência do conhecimento
racional puro dos grandes problemas do espírito humano de um lado e a mais
7
estreita ligação pessoal e objetiva com a teologia, de outro lado, é característico para
a idade média”2.
2) A forte dependência da filosofia antiga, especialmente de Platão e Aristóteles. A
doutrina de ambos, porém, chega aos latinos pela intermediação das escolas
helenísticas (sobretudo neoplatônicos e estoicos), dos ensinamentos patrísticos (dos
“Padres da Igreja”)3, dos comentários e interpretações dos árabes e judeus.
3) Uma concepção de método. A escolástica é não somente um método de ensino e de
exposição do saber conquistado como também um método de investigação e,
portanto, de conquista do saber. No século XII, a concepção de método foi elaborada
exemplarmente por Pedro Abelardo numa perspectiva dialética. Trata-se do método
do “sim” e do “não” (sic et non). De origem filosófica platônica, este método recorria
ao levantamento de “questões”, articulando argumentos afirmativos e negativos,
com base em “sentenças”, que expressavam o parecer de “autoridades” (principais
autores da tradição filosófica e da tradição do saber cristão) em referência a
determinadas teses, em vista de alcançar respostas que, como sínteses, superassem
as contradições (antíteses) entre estes pareceres. Isto possibilitou um tratamento
racional das verdades da fé cristã, ao qual Abelardo deu o nome de “teologia”. Este
mesmo método passou a ser usado para outros saberes, como o direito e a medicina.
No século XIII, a concepção de método recebe uma reelaboração numa perspectiva
2 Geyer, Bernhard. In: Überweg, Friedrich; Reicke, Rudolf; Heinze, Max (orgs). Grundriss der Geschichte der Philosophie. Zweiter Teil: Die mittlere oder die patristische und scholastische Zeit. Berlin: Mittler & Sohn, 1927, p. 143. 3No âmbito do cristianismo, chama-se de “era patrística” o tempo dos “Padres da Igreja”. Denominam-se “Padres da Igreja” determinados escritores da antiguidade cristã, clérigos ou leigos, em cujas obras a doutrina cristã foi primeiramente elaborada, exposta e conservada. De seus escritos surgiu toda uma elaboração da vida e da doutrina, da moral, dos sacramentos, do governo, da ascese e da mística, que veio a dar uma feição concreta e institucional ao cristianismo. Costuma-se delimitar o término da era patrística da seguinte maneira: no ocidente, com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente, com a morte de João Damasceno (749). As três grandes fases da era patrística são: 1. Padres Apostólicos – são aqueles que conviveram, ainda, com os apóstolos (sec. I); 2. Padres Apologetas ou Apologistas – defensores do cristianismo diante dos pagãos (sobretudo séc. II); 3. Padres Dogmáticos – defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboração dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do século III). A era patrística constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregação cristã, em seu fervor, se expandem pelo mundo antigo, no espaço cultural da língua grega (a oikoumene). A expansão da mensagem cristã, a revelação e a fé em Cristo, pelo espaço geográfico e espiritual do mundo helênico tornou inevitável o encontro/confronto entre cristianismo e filosofia. Daí a importância da era patrística tanto para a história do cristianismo quanto para a história da filosofia.
8
aristotélica. Antes de se impor com o seu conteúdo doutrinal, o aristotelismo se
impôs como forma de pensamento, na metodologia escolástica como tal, com o seu
rigor lógico-demonstrativo. Com o exercício operativo da razão ao modo do
pensamento aristotélico, a filosofia se tornou o elemento unificador e articulador de
todos os saberes cultivados na universidade, inclusive da teologia. Os teólogos, que
passaram antes de tudo pelo tirocínio do estudo aristotélico na Faculdade de Artes,
operaram uma verdadeira revolução na constituição do saber teológico, criando
uma teologia de natureza especulativa. A concepção de método escolástico
apresenta um esquema igual para o tratamento das questões, com algumas
variantes aqui e ali, porém. Não obstante a sua rigidez formal, oferece espaço para
as mais diversas direções de pensamento. A igualdade da forma exterior, porém,
acaba causando a impressão de uniformidade e de monotonia do trabalho filosófico.
4) A unidade de escolástica e mística. O historiador do cristianismo A. Harnack
considerou que há uma continuidade entre o cristianismo patrístico e o medieval, e
que em ambos o saber e a mística estão tão intimamente conexos. “Neste sentido
todos os desenvolvimentos do saber do ocidente na idade média são simplesmente
uma continuação do que a Igreja grega, em parte, já tinha vivido, em parte, sempre
ainda em movimentos fracos vivia”4. Escolástica e mística são no fundo um único e
mesmo fenômeno. “Onde, pois, este conhecimento decorre de tal modo que a
compreensão penetrante (Einsicht) no relacionamento de mundo e Deus é buscado
prioritariamente ou pura e simplesmente para compreender melhor a própria
posição da alma em relação a Deus e, nesta compreensão, crescer interiormente,
então se fala de teologia mística. Onde, porém, esta colocação reflexiva da meta do
processo do conhecimento não vem à tona de modo tão claro, e,
preponderantemente, o conhecimento do mundo em sua relação com Deus obtém
um interesse mais autônomo e objetivo, então usa-se o termo ‘teologia escolástica’.
Disso se vê que não se trata de duas grandezas que correm paralelamente ou até
mesmo uma contra a outra, mas que teologia mística e escolástica são um único e
idêntico fenômeno, que se apresentam em múltiplas gradações, dependendo do
4 Harnack, Adolf. Lehrbuch der Dogmengeschichte III, p. 331. Apud: Grabmann, Martin. Die Geschichte der scholastischen Methode. Erster Band. Freiburg im Breisgau: Herdesche Verlagshandlung, 1909, p. 11.
9
domínio do interesse subjetivo ou objetivo”5. Mas, qual a concepção de mística guia
o pensamento medieval nesta unidade com o saber? Seja dada, aqui, uma indicação
introdutória apenas: “Não se trata de uma ascese em que o espírito procura dominar
as sensações dos sentidos e controlar os impulsos do corpo, as demandas e
exigências da carne. E por motivo muito simples. Não há aqui distinção entre corpo
e espírito. A mística é a superação contínua de toda e qualquer dicotomia. Existe
ascese mas a ascese da mística é o treinamento e a disciplina da unidade de tudo
que é humano, corpo, carne, alma, mente e espírito, cuja perda gera as dualidades
todas, tanto no corpo como no espírito, tanto na história como na sociedade, tanto
no sentimento como na ação e no conhecimento. A mística especulativa, seja no
século XI com Santo Anselmo de Cantuária, seja no século XII, com Bernardo de
Claraval e os Victorinos, seja no século XIV com mestre Eckhart, seja no século XV
com Nicolau de Cusa, não se opõe ao conceito e à reflexão, nem à dialética e ao
discurso da razão, antes os integra todos numa dinâmica concreta das atividades de
videre, sentire e experiri pela interiorização de um intuitus originarius”6.
A RECEPÇÃO DE ARISTÓTELES – AS POSIÇÕES DOS TEÓLOGOS E DOS ARTISTAS.
O acontecimento que trouxe uma considerável transformação e um recomeço
no âmbito dos saberes e do estudo, na época da invenção das universidades, é a
recepção de Aristóteles7. Esta recepção foi um fenômeno complexo. Em primeiro lugar,
5 Harnack, Adolf. Lehrbuch der Dogmengeschichte III, p. 329. Apud: Grabmann, Martin. Die Geschichte der scholastischen Methode. Erster Band. Freiburg im Breisgau: Herdesche Verlagshandlung, 1909, p. 11. 6 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Medieval. In: Scintilla, 2012, p. 150. 7 De 1150 a 1250 toda a obra de Aristóteles foi traduzida. De início conhecia-se apenas a obra concernente às “Categorias” e o “De Interpretatione” (Da interpretação), na tradução de Boécio. Mas, no período aludido, não somente os demais escritos do Organon, como também escritos de metafísica, de física, psicologia e ética foram traduzidos. No ocidente latino, a recepção do pensamento do Estagirita começa pelos idos de 1200, especialmente na Universidade de Paris. De início, Aristóteles foi proibido, depois, acabou sendo recomendado. A proibição de Aristóteles se deve a pelo menos três teses que colocaram em questão convicções fundamentais da fé cristã: a criação ex nihilo (a partir do nada), a imortalidade individual da alma e a doutrina da providência divina. No ano de 1210, um sínodo de Paris proibiu a leitura dos textos de filosofia da natureza de Aristóteles. Uma proibição de 1215, porém, inclui a Metafísica. Contudo, os estatutos da Faculdade de Artes da Universidade de Paris preveem no currículo o estudo do Organon e da ética aristotélica. Em 1231, o papa Gregório IX confirmou a proibição anterior, mas com a ressalva: “até que fossem corrigidos” (os seus escritos). Entretanto, não somente os mestres da faculdade de artes, mas também os da teologia seguiram lendo, comentando, discutindo e criticando Aristóteles,
10
há que se considerá-la como um fenômeno tardio: Aristóteles só chega ao ocidente
latino depois de sete séculos da queda do Império Romano. Em segundo lugar, esta
recepção é um fenômeno ambíguo: Aristóteles não chega sozinho – com os seus escritos
autênticos e apócrifos chegam também outras tradições, como o neoplatonismo e o
peripatetismo árabe. Em terceiro lugar, antes de se impor com o seu conteúdo doutrinal,
o aristotelismo se impôs como forma de pensamento, na metodologia escolástica como
tal, com o seu rigor lógico-demonstrativo. Em quinto lugar, com o exercício operativo da
razão ao modo do pensamento aristotélico, a filosofia se tornou o elemento unificador
e articulador de todos os saberes cultivados na universidade, inclusive da teologia. Em
sexto lugar, os teólogos, que passaram antes de tudo pelo tirocínio do estudo
aristotélico na Faculdade de Artes, operaram uma verdadeira revolução na constituição
do saber teológico, criando uma teologia de natureza especulativa.
Nos primeiros decênios do século XIII, a nova literatura filosófica influiu
consideravelmente no trabalho teológico de teólogos parisienses, tendo sido eles, e não
os “artistas”, os primeiros a se confrontarem com o pensamento aristotélico e com as
tradições, árabe e judaica, que chegam concomitantemente com esse pensamento ao
ocidente latino. Os primeiros mestres de Paris a realizar esta confrontação foram os
teólogos Guilherme de Auxerre8, Filipe o Chanceler9 e Guilherme de Auvergne (de
até que, em 1255, os escritos de Aristóteles fossem recomendados oficialmente no programa de estudos da faculdade de Artes. Aristóteles se tornou, simplesmente, o “Filósofo” e a admiração que Avicena, Averróis e Maimônides nutriram pelo Estagirita passou também aos filósofos cristãos do mundo latinófono (Cfr. Heinzmann, 1992, p. 158-160). 8 Wilhelmus ou Guillelmus Altissidoriensis (c. 1150 – 1231), “Arquidiácono de Beauvais”: ensinou em Paris na Faculdade de Artes e depois na de Teologia. A crônica de Salimbene de Parma, escrita em 1247, o recorda como um docente célebre pela sua habilidade em sustentar as disputas. Em 1229 obtém de Gregório IX o apoio por ocasião da crise desencadeada pela violência policial sobre os estudantes e pela intervenção política sobre a universidade. A bula Parens Scientiarum, do mesmo papa, datada de 13 de abril de 1231, o nomeia como “procurator” para intermediar as relações entre a Universidade de Paris e a Sé Romana. Uma carta papal de 23 de abril de 1231 o nomeia entre os três membros da comissão encarregada de examinar os “libri naturales” de Aristóteles. Parece ter morrido neste mesmo ano (Cfr. Sileo, 1996, p. 616-617). 9 Philippus Grevius, nascido entre 1165 e 1185, aparece pela primeira vez em 1211 com o título de Arquidiácono de Noyon. Em 1217 é chamado pelo bispo de Paris para a chancelaria de Notre-Dame. Dignitário do Capítulo e fiduciário do bispo, é nomeado delegado episcopal na direção da Universidade. Na crise de 1229-1231 se opõe ao reino da França e ao bispo Guilherme de Alvérnia, com quem tinha disputado a sucessão na sede episcopal de Paris, e tinha perdido. Foi mestre regente na Faculdade de Teologia. Favoreceu a entrada das Ordens Mendicantes (dos Pregadores e dos Frades Menores) na Universidade. Morreu ao fim de 1236 e foi sepultado na igreja dos franciscanos (Cfr. Sileo, 1996, p. 623-624).
11
Alvérnia)10. Guilherme de Auxerre, escritor de uma Summa super quatuor libros
sententiarum (Suma sobre os quatro livros das sentenças, de Pedro Lombardo), que é
mais conhecida como Summa Aurea, foi tido em grande consideração por Alexandre de
Hales e pelos franciscanos da escola de Paris. Na Summa Aurea, e também na Glossa
sobre o Anticlaudianus de Alano de Lille temos as primeiras citações aristotélicas e do
peripatetismo árabe por parte de teólogos parisienses11. Filipe, chanceler da
Universidade, e Guilherme de Alvérnia, bispo de Paris, também favoreceram em muito
o ingresso e a integração dos frades, Menores e Pregadores, na Universidade parisiense.
A obra mais importante de Filipe o Chanceler é a Summa quaestionum theologicarum
(Suma das questões teológicas), conhecida como Summa de bono. Há citações do Liber
de Causis12 e de Aristóteles13. Alexandre de Hales tem também a Summa de bono em
alta consideração. Na vasta obra de Guilherme de Alvérnia. A obra sua mais imbuída de
autoridade junto aos medievais é a que ficou conhecida como Magisterium sapientiale
et divinale, que é uma composição de monografias escritas em tempos diversos14. Aos
olhos de Guilherme de Alvérnia, Aristóteles é o príncipe do saber, quando se trata dos
conhecimentos acerca do mundo sublunar. Na metafísica, porém, Aristóteles detém
uma autoridade limitada. Ele tem em alta consideração ao pensador judeu Salomão Ibn
Gabirol, que é conhecido pelos latinos como Avicebron ou Avencebrol, e tido por
Guilherme como cristão, cuja obra traduzida para o latim como “Fons Vitae” (A fonte da
10 Nascido em Aurilac aproximadamente pelo ano 1180, em 1225 se torna Magister em teologia na Universidade de Paris. Em 1228 foi feito bispo por Gregório IX. Apoiou o poder real na crise de 1229-1231. Favoreceu o ingresso dos mendicantes na instituição universitária. Participou também da comissão nomeada em 1231 para examinar os “libri naturales” de Aristóteles. Morreu em 1249 (Cfr. Sileo, 1996, p. 628-629). 11 Na Suma Áurea encontram-se citações da Ética, do De Anima e da Física. Elas são tomadas da Ethica Vetus e da antiga tradução do De anima do grego para o latim. No Comentário ao Anticlaudiano de Alano de Lille, obra considerada posterior à Suma Áurea, há citações da Física, do De generatione et corruptione e da Metafísica. Além disso, aparecem as primeiras citações dos comentários de Averrois (Cfr. Sileo, 1996, p. 617; Geyer, 1927, p. 263). 12 Obra apócrifa de Aristóteles. O Livro do Bem Puro, conhecido no ocidente com o nome de Liber de causis (Livro das causas), tido em bastante consideração pelo peripatetismo árabe, tem como fonte principal a Elementatio theologica (Elementos de Teologia) de Proclo. 13 De Aristóteles são citados o De Caelo et Mundo em tradução do árabe para o latim, o De generatione et corruptione, a Física, o De anima, em tradução do grego para o latim, a Ethica vetus e a Ethica nova e a Metaphysica vetus (Cfr. Geyer, 1927, p. 363). 14 As monografias mais importantes para a história da filosofia medieval são: um De universo, um De anima, um De Trinitate (Sileo, 1996, p. 629; Geyer, 1927, p. 363-364).
12
vida) gozou de autoridade na escolástica daquele tempo. São citados também o judeu
Moisés Maimônides e os árabes Alfarabi, Avicena, Algazali e Averrois.
A recepção de nova literatura impôs aos teólogos a necessidade de repensar a
relação entre filosofia e teologia, bem como a cientificidade da própria teologia.
Paradigmático ficou sendo o trabalho de Guilherme de Auxerre na Summa Aurea.
Vejamos algo deste trabalho, especialmente o direcionamento que é dado ao problema
do relacionamento entre filosofia (especialmente a metafísica) e a teologia cristã, e ao
problema da cientificidade da teologia.
Guilherme de Auxerre não somente trabalha com uma racionalidade imanente à
própria fé e à revelação (ex theologicis rationibus), mas recorre à metafísica, entendida
como ciência do ente enquanto ente e como ciência natural acerca do divino, para
sustentar, de fora, a sistematização dos dados exegéticos e dogmáticos da teologia
cristã. Guilherme une metafísica e teologia da revelação cristã, mas sem confundir o
discurso teológico de uma e de outra. Há uma scientia naturalis de divinis (ciência
natural acerca das coisas divinas), que pronuncia um discurso natural circa res divinas
(sobre as coisas divinas) e há uma scientia Dei (ciência de Deus) acolhida na fé. É trabalho
do teólogo encontrar a correspondência entre as duas teologias, a natural ou metafísica,
e a da fé e da revelação bíblica. Guilherme entende que há duas revelações, uma por via
natural (per modum naturae), outra por via sobrenatural (per modum gratiae). Na
revelação natural, o intelecto é iluminado para conhecer Deus a partir das criaturas (Cfr.
Rm 1, 18-20). Na revelação sobrenatural os artigos a serem cridos são recebidos por
uma iluminação que se dá ao modo da graça, na qual Deus ilumina o intelecto com a fé,
que é também uma iluminação da mente (fides mentis est illuminatio). O conhecimento
metafísico de Deus é o conhecimento da deidade como “prima essentia”, ou seja, o
conhecimento da “essentialitas Dei” (essencialidade de Deus) a partir e por meio das
criaturas (per criaturas), mais precisamente, partindo da concepção comum do ente (ens
in communi).
Duas proposições da Metafísica de Avicena (Metaphysica I, 5)15 são importantes
para impostar este discurso metafísico (onto-teo-lógico) sobre Deus. A primeira é: “ens
15 Avicena Latinus, I, Louvain – Leiden 1977, p. 31-32 (Apud Sileo, 1996, p. 621).
13
est prima animae impressio” (o ente é a primeira impressão que incide sobre a alma). A
segunda é: “ens est primum universale aggregans omnia in sua intentione universali” (o
ente é o primeiro universal que agrega todas as coisas na sua intenção universal).
Partindo do conceito universal de ente se chega ao conceito de Deus haurido por via
natural, a saber, como “vere ens”, ou seja, como o ente em sentido autêntico absoluto
e simples. Este conceito, por um lado, como já foi dito, é analógico, parte do “ens in
comumuni” e das criaturas; e, por outro lado, é dialeticamente constituído.
Primeiramente, Guilherme considera que se há de resguardar a transcendência
da luz da fé por meio do princípio metodológico de que, sem menos, “não se há de
aplicar às realidades divinas as razões próprias das realidades naturais”, como ele diz no
prólogo da Summa aurea (Apud Chenu, 1995, p. 48). Este princípio já tinha sido exposto,
no século XII, por Gilberto Porreta e por Alano de Lille. A este princípio corresponderia,
no século XIII, a doutrina do Concílio do Latrão (1215) referente à relação entre criatura
e criador, a saber, de que “não se pode estabelecer uma semelhança tal que não se deva
estabelecer entre eles uma dessemelhança ainda maior” (Apud Chenu, 1995, p. 49). Em
segundo lugar a afirmação metafísica sobre Deus provém de uma negação, ou melhor,
é uma negação da negação. Ao se dizer que Deus é “vere ens” se quer dizer que ele é
ente em sentido mais próprio porque ele é “ens a se” (ente a partir de si). Entretanto,
ao afirmarmos que Deus é “ens a se” o que estamos fazendo, no fundo, é negar que
Deus seja “ens ab alio” (ente a partir de outro). Verdadeiramente ente é aquele que não
é causado por outro e é este ente que se intenciona quando se usa o nome “Deus”.
“Deum significat ut primum ens, id est non ab alio” (Deus significa como que o primeiro
ente, ou seja, o ente que não é a partir de outro) (Cfr. Sileo, 1996, p. 618-622). A partir
de então, guardados o princípio do caráter analógico do discurso sobre Deus a partir do
ente e dos transcendentais, bem como o caráter de negação da negação das afirmações
ontológicas sobre Deus, toda uma teologia dos filósofos, cujo caráter era diverso da
teologia neoplatônica, podia ser posta a serviço da elaboração racional-natural dos
conceitos próprios da teologia cristã, que são hauridos pelo modo da graça a partir da
revelação sobrenatural acolhida pela fé.
A outra grande contribuição oferecida ainda por Guilherme de Auxerre e que
incide diretamente na questão da cientificidade da teologia é a assunção dos artigos de
14
fé como princípios na probatio fidei, ou seja, no procedimento demonstrativo que
possibilita a teologia cristã erigir-se como ars ou scientia. A Summa aurea se preocupa
com o problema: como aproximar ciência aristotélica e teologia cristã? “Uma ciência
teológica conforme os critérios aristotélicos da cientificidade, esse é o ideal que a
Summa aurea instrumenta, sem insistir” (De Libera, 1998, p. 376). Esta empreitada se
tornou viável a partir do momento em que Guilherme traduz, quer dizer, interpreta, a
expressão “pragamaton elenchos ou blepomenon” que compõe a definição da fé na
Carta aos Hebreus (11,1) como “argumentum non apparentium”, ou seja, como
argumento referente às coisas que não aparecem16. Mas, se a fé é um argumento, então
a fé não perde o seu mérito? De fato, Gregório tinha dito: “não tem nenhum mérito a fé
para a qual a razão humana pode oferecer prova”. Frente a isso, Guilherme dá uma
indicação mais precisa, a saber, de que a fé é argumento, não provado (non probato),
mas sim probante (probans). Na teologia cristã, trata-se, portanto, de provar a partir
dos artigos de fé e não de provar os artigos de fé. Entretanto, em virtude de que se pode
tomar a fé como argumento probante? A resposta de Guilherme é: “propter articulos
fidei qui sunt principia per se nota” (em virtude dos artigos de fé que são princípios
conhecidos por si). Os artigos de fé são tomados, pois, na teologia cristã, como axiomas
(cfr. De Libera, 1998, p. 377-378). Mas, como e em que sentido um processo
demonstrativo, essencial para que se possa falar de “scientia” em sentido aristotélico,
pode se tornar inerente à teologia cristã? Ainda no prólogo da Summa Aurea, Guilherme
diz:
Em três sentidos se demonstra a fé (Tripliciter ratione ostenditur fides). O primeiro, é que as razões naturais aumentam e confirmam a fé, nos fieis. De fato, como Deus, enquanto fim, não deve ser amado por causa dos benefícios temporais e, todavia, estes mesmos benefícios aumentam a caridade e a confirmam em quem a possui, (são, de fato, causas motivadoras e produtoras do amor de Deus), assim as razões naturais aumentam e confirmam a fé em quem a possui. O segundo sentido é a defesa da fé contra os heréticos. O terceiro é a promoção dos simples à nossa fé; como, de fato, por causa dos bens temporais os simples são promovidos ao verdadeiro amor de Deus, assim, mediante as razões naturais, os simples são muitas vezes promovidos à verdadeira fé (Apud Chenu, 1995, p. 53).
16 De Libera formula assim a sua tradução de Guilherme: “a fé é uma maneira de argumentar além dos fenômenos” (1998, p. 376).
15
É possível, portanto, exercitar a racionalidade demonstrativa dentro do
horizonte da “doctrina sacra”, ou, como dirá Alexandre de Hales, dentro da “doctrina
theologiae”. O exercício desta racionalidade, cujo processo demonstrativo parte dos
artigos da fé quais axiomas, serve para sustentar a fé dos fiéis, para defender a fé diante
dos hereges e para robustecer a fé dos simples. As razões naturais servem para
incentivar a fé, assim como os bens temporais servem para incentivar o amor daqueles
que se veem agraciados com eles como sendo dons de Deus. Ademais, a própria fé é
capaz de gerar um intelligere (um compreender) a partir de si mesma. Mas, o que
significa, aqui, a intelecção gerada pela própria fé? No prólogo da Summa Aurea ainda
se pode ler:
Depois, quanto maior em alguém é a fé, tanto mais rapidamente ele vê razões deste gênero, pois a fé é uma iluminação da mente para ver Deus e as realidades divinas, e quanto mais é iluminada, tanto mais claramente a alma vê não só aquilo que é assim como esta o crê, mas também em que modo seja assim e porquê; isto significa intelligere (Apud Chenu, 1995, p. 54).
Uma longa tradição medieval latina ressoa aqui, desde a indicação do “crede ut
intelligas” (creia para inteligir), de Agostinho (Sermo 43, 7, 9 e 118, 1), até o lema “fides
quaerens intellectum” (a fé buscando intelecção), de Anselmo (subtítulo do Proslogion).
Esta compreensão de um intelligere gerado pela própria fé permitiu a Guilherme
retomar um dito de Simão de Tournai (c. 1190) em que, numa comparação, são postos
lado a lado Aristóteles e Cristo, resultando um contraste: “Por isso, foi dito justamente
por alguém, que para Aristóteles o argumento é uma razão que gera fé (ratio... faciens
fidem) em relação a uma coisa dúbia; para Cristo, ao invés, o argumento é uma fé que
gera a razão (fides faciens rationem)” (Apud Chenu, 1995, p. 54). Alexandre de Hales
retomará quase ao pé da letra estas indicações de Guilherme de Auxerre e de Simão de
Tournai na questão II do Tratado Introdutório (m. 3, c. 4), onde ele faz ressaltar o caráter
iluminativo da fé e o caráter heurístico da razão teológica: “a fé em base a que se crê
(fides qua creditur) é a luz (lumen) das almas, pela qual quanto mais alguém é iluminado,
tanto mais é perspicaz para encontrar as razões (inveniendas rationes), com que se
demonstram aquelas coisas se há de crer (probentur credenda)” (Hales, 1924, p. 35).
16
BOAVENTURA DE BAGNOREGIO
Podemos considerar que o clímax do pensamento medieval latino dura cerca de
um século e meio e se constituiu como diferentes posições que interagiam entre si e
frente ao fenômeno histórico do aristotelismo. Este clímax começa, no século XIII, com
o início do ensinamento de mestres como Alexandre de Hales e Alberto Magno e termina
com o pensar de quatro grandes mestres determinantes para o século XIV: João Duns
Scotus, Mestre Eckhart, Dante Alighieri e Guilherme de Ockham.
Alexandre, nascido por volta de 1185 ou de 1186, na Inglaterra, se tornou mestre
regente na faculdade de teologia de Paris em cerca de 1220 ou 1221 e lá pelo ano de
1236 ou 1237 entrou para a Ordem dos Frades Menores (franciscanos). Alberto Magno,
nascido por volta de 1193, na Alemanha, depois de sua entrada na Ordem dos
Pregadores (dominicanos), por volta de 1223, começou a ensinar teologia depois de
1233 nas escolas superiores dos dominicanos na Alemanha (Hildesheim, Freiburg im
Breisgau, Regensburg e Strassburg) e se tornou mestre na faculdade de teologia de Paris
em 1245. Destes dois mestres destas duas novas ordens mendicantes vêm dois insignes
pensadores do século XIII. Aluno de Alexandre de Hales foi o franciscano Boaventura de
Bagnoregio (nascido por volta de 1217) e aluno de Alberto Magno foi o dominicano
Tomás de Aquino (nascido em 1225). Ambos ensinaram na faculdade de teologia de
Paris, enfrentando, de diferentes modos, os desafios de seu tempo, e ambos faleceram
no mesmo ano, em 1274. Até 1250 toda a obra de Aristóteles tinha sido traduzida para
o latim. A sua recepção começara em Paris por volta de 1200. Em aproximadamente
meio século, Aristóteles, de proscrito, se tornou prescrito. De fato, em 1255 os escritos
de Aristóteles foram recomendados oficialmente no ensinamento da Faculdade de
Artes. Os teólogos tinham sido os primeiros a se dedicar a estudar Aristóteles. Tomás de
Aquino foi o teólogo que promoveu uma síntese em que maiormente a filosofia de
Aristóteles fora subsumida. Boaventura, porém, considerava que a Aristóteles tinha sido
dada a palavra da ciência e a Platão a palavra da sabedoria e, atendo-se à superioridade
de Platão sobre Aristóteles, que ele não ignorava, promoveu uma síntese diversa do
pensamento escolástico, filosófico-teológico-místico, a partir da tradição que passa por
Agostinho (séc. IV-V) e Dionísio (séc. V-VI), Anselmo (séc. XI-XII) e que, para ele, se
17
concluía enfim em representantes do pensamento no século XII, como Bernardo de
Claraval, Hugo e Ricardo de São Vítor.
Seja para Tomás, seja para Boaventura, o aristotelismo dos “averroistas latinos”,
representado por mestres da Faculdade das Artes, como Sigério de Brabante e Boécio
de Dácia, constituiu um grande desafio. O ponto explosivo do aristotelismo averroista
destes mestres não estava propriamente em teses particulares que iam contra a
doutrina cristã, tais como a da eternidade do mundo, a do intelecto único para todos os
homens, a não presciência de Deus em relação aos futuros contingentes, mas na sua
atitude face à questão da relação entre razão e fé. O decisivo era: ou o aristotelismo
seria posto a serviço da teologia ou se tornaria ameaçador à cristandade. Os averroistas
da Faculdade de Artes, que eram cristãos, tendiam para uma dissociação entre a
“scientia” aristotélica, isto é, o saber demonstrativo que parte de princípios e chega, por
via de necessidade lógica, a conclusões que não podem ser diversas de como são, e a fé
cristã. Sigério, especialmente, desvinculava a filosofia da teologia, afirmando não ser
necessária uma harmonia entre a “scientia”, o saber ao modo aristotélico, e a fé.
Boaventura e Tomás de Aquino iriam responder de modo diverso a este desafio do
aristotelismo averroista dos mestres da Faculdade de Artes.
Boaventura se mantém fiel ao endereço platônico-agostiniano que predominou
em toda a idade média latina até então. O fio condutor de sua compreensão do ser da
criatura pode ser lido na sentença de Hugo de São Vítor: “verbum divinum omnis
creatura” (toda criatura é uma palavra divina). Cada coisa é palavra: expressão da
Palavra criadora de Deus. O mundo é o livro originário em que Deus, o seu autor, se
deixa ler. O ser das coisas consiste, pois, em significar, isto é, em indicar Deus, em deixar
e fazer ver o poder, a sabedoria e a bondade do Criador. Contudo, por causa do pecado,
o homem deixou de ser capaz de ler o livro da criação divina. Por isso, o Verbo, a Palavra
criadora de Deus, se fez carne, se tornou homem entre os homens, na história. O Verbo
encarnado é o “medium”, meio e centro, de todo o real e de todo o saber. Para
Boaventura, a razão humana se perde no erro, se entregue unicamente a si mesma.
Somente no interior da fé é que ela acerta o seu alvo: o conhecimento da verdade, a
conquista da sabedoria, que é uma só, e que é dada aos homens numa múltipla
iluminação, para que eles alcancem a salvação, a beatitude eterna. Na segunda metade
18
dos anos sessenta e na primeira metade dos anos setenta do século XIII, até a sua morte,
em 1274, Boaventura irá travar uma forte batalha contra a hegemonia do aristotelismo
em geral e contra os supostos erros do averroismo em particular, dentre estes, a tese
da eternidade do mundo e a tese do intelecto único para todos os homens.
A tese do mundo eterno contradiz dois dos dogmas fundamentais do
cristianismo: a criação “ex nihilo” (do nada) e a encarnação do Verbo. A tese do intelecto
único ameaça a com- preensão da individualidade da pessoa humana e, por
conseguinte, de sua liberdade; e, enfim, de sua responsabilidade, pela qual o homem
pode ganhar ou perder a sua alma em face de Deus. Ameaça também a afirmação da
imortalidade do indivíduo: pois, se a individualidade é dada pela matéria e se limita à
matéria, não pertencendo ao espírito, então com a morte corporal se desfaz a própria
individualidade. O que é imortal é o que é impessoal: o intelecto agente único que atua
no inteligir de todos os homens. Na criação se salvaguarda a liberdade e onipotência de
um Deus transcendente, Senhor do ser e do nada; na encarnação se salvaguarda a
liberdade e o amor pelo qual a pessoa divina do Verbo assume a humanidade em sua
carne; na individualidade, se salvaguarda a liberdade e a imortalidade da pessoa
humana, ou seja, a tese de que o homem individual é livre e responsável por seus atos
e que, ao exercer esta liberdade na responsabilidade, no tempo da sua história
biográfica ele decide sobre seu destino eterno. As verdades de fé do cristianismo,
portanto, a saber, a criação a partir do nada, a encarnação e salvação eterna ou não da
alma humana em sua individualidade, pressupõem a temporalidade e a historicidade. A
temporalidade e historicidade do universo (decursus mundi); a temporalidade e
historicidade da ação imanente do Deus transcendente (encarnação); a temporalidade
e historicidade da existência humana, do exercício de sua liberdade e responsabilidade.
O perigo do aristotelismo averroista, na perspectiva de Boaventura, está em sua
concepção a-histórica, fatalista ou necessitarista e impessoal da realidade como um
todo, de Deus, do mundo e do ser humano17.
17 Fernandes, M. A. O confronto de São Boaventura com a Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e sobre Os Sete Dons do Espírito Santo. In: Revista Coniunctio, ano 2, nº 2, 2013, p. 54.
19
TOMÁS DE AQUINO
Outra foi a resposta de Tomás de Aquino ao desafio do aristotelismo averroista.
Tomás nasceu em 1224, na Itália (perto de Nápoles). Foi educado com os beneditinos
em Monte Cassino e estudou as Artes Liberais no centro imperial de estudos de Nápoles,
onde teve como mestre Pedro de Hibérnia. Contrariando sua família, entrou para a
Ordem dos Pregadores (a ordem mendicante dos dominicanos). Estudou depois com
Alberto Magno (1200-1280) em Paris e em Colônia. Com este aprendeu a dedicar-se ao
estudo de Aristóteles. Sua atividade de ensino se dá antes de tudo em Paris. Depois
ensina na Itália, em Roma, Viterbo e Nápoles. Em sua segunda fase em Paris enfrenta
uma polêmica dirigida contra as ordens mendicantes e também combate os aristotélicos
extremos da faculdade de Artes. Tomás de Aquino se entende, antes de tudo como
teólogo. Num dos raros momentos em que fala de si em sua obra, ele declara: “A tarefa
principal da minha vida, à qual me sinto obrigado em consciência diante de Deus, é que
todas as minhas palavras e todos os meus sentimentos falem d’Ele”. Antes de morrer,
tem uma experiência mística que o leva a dizer: “Não posso mais. Tudo aquilo que
escrevi me parece palha em comparação com aquilo que vi” (Apud TORREL, 2003, p. 26).
Morre em 1274, com 50 anos de idade, perto da abadia cisterciense de Fossanuova, a
caminho do Concílio de Lião. Foi em vida e depois da morte contestado pelos
agostinistas, tanto os de fora como os de dentro de sua própria ordem. Dentre suas
obras, no interesse da filosofia, se destacam o opúsculo intitulado De ente et essentia
(Do ente e da essência), os diversos Comentários a Aristóteles, as Questões disputadas,
a Suma Contra os Gentios e a Suma Teológica.
A Suma Teológica é a obra mais célebre de Tomás, embora tenha ficado
inacabada. Sua intenção pedagógica nesta obra se deixa declarar com as palavras: “Os
doutores da verdade católica devem instruir não só os iniciados, mas também os
principiantes (...), por isso, o intento que nos propomos nesta obra é o de expor tudo
aquilo que concerne à religião cristã no modo mais conveniente à formação dos
principiantes” (Apud TORREL, 2003, p. 30). Ele assim explica o gênero da Suma: “...
tentaremos, confiando na divina ajuda, expor a doutrina sagrada com a maior brevidade
e clareza permitida por tal disciplina” (Apud TORREL, 2003, p. 31). Tomás é um pensador
20
sistemático que reflete sobre um assunto partindo dos princípios últimos claramente
sistematizados. Mas como é ao mesmo tempo o pensador objetivo, cada pormenor que
trata não é considerado apenas pretexto para discorrer sobre os princípios, mas é na
verdade ponderado com particular atenção, ainda que à primeira vista não pareça
conformar-se facilmente com os grandes motivos principais de seu pensamento. Tomás
declara o limite do conhecimento teológico, na tradição do Pseudo-Dionísio, a quem
chegou a comentar. Nós não podemos saber de Deus o que ele é, mas somente o que
ele não é. Tomás sabe bem que a precisão e objetividade da verdadeira teologia só tem
um fim em vista: arrancar o homem da claridade fácil da sua existência, para mergulhá-
lo no mistério da incompreensibilidade de Deus, onde o homem ultrapassa a
compreensão para se render à adoração. Para ele, só na medida em que a teologia dos
conceitos compreensíveis se revogar na teologia da incompreensibilidade que toma o
homem de veneração diante do mistério, é que é verdadeiramente teologia. A teologia
apresenta, na Suma, três temas, segundo o esquema do exitus (saída de Deus) e reditus
(retorno para Deus): fala-se, antes de tudo, de Deus; em seguida, do movimento da
criatura racional para Deus; enfim, do Cristo, o qual, enquanto homem, é via para
ascender a Deus.
Mesmo sendo principalmente teólogo, Tomás não deixou de valorizar a filosofia.
Sempre trabalhava em paralelo. Por exemplo, quando escrevia a parte da Suma que
trata da moral cristã, ele trabalhava também, paralelamente, um comentário à Ética de
Aristóteles (TORREL, 2003, p. 22). Apesar de transitar bem na dimensão da filosofia e da
teologia, ele não quis que ambas se confundissem. No ocidente cristão, é o primeiro a
postular uma autonomia da filosofia em relação à teologia. Paradoxalmente, porém,
esta postulação de autonomia da filosofia não é motivada pela reivindicação de uma
libertação da razão em relação à fé, mas sim, por tomar a sério os dogmas da fé: a
criação e a encarnação. Durante séculos, o cristianismo tinha seguido pela via do
espiritualismo e transcendentalismo. O juízo final era o dogma principal. Platão era a
filosofia mais adequada para apoiar esta via de transcendência. Mas, a partir do século
XII, como demonstra a arte gótica, o cristianismo sofre uma guinada radical: volta-se
para o mundo como criação de Deus e para a humanidade de Deus. Daí decorre
também, na filosofia, a exigência de uma guinada anti-platônica. O idealismo
21
transcendental platônico cede o lugar ao realismo empírico aristotélico. É preciso se
voltar para o mundo sensível, o mundo da experiência, no qual nós, de início e na maior
parte das vezes nos encontramos. Não ter vergonha de reconhecer que nossa aventura
no conhecimento começa sempre “de baixo”, do mundo sensível. Depois, não querer
construir o conhecimento em especulações soltas no ar, mas atendo-se ao que se
mostra concretamente – a manifestis non discendere (não se afaste do que é
manifesto!), diz ele (De Spiritualibus Creaturis 5: apud HEINZMANN, 1992, p. 205). Deus
cria dando o ser ao mundo e o mantendo neste mesmo ser. Entretanto, ao criar, Deus
deixa sua obra repousar em si mesma, ou melhor, deixa que sua obra tenha em si mesma
o princípio de sua atividade. Enquanto os agostinistas, de modo pessimista, salientavam
as consequências do pecado para a razão humana, que se tornou cega para o essencial,
para o mundo do espírito e para Deus, Tomás salienta, de modo otimista, que o homem
fora criado por Deus como sua imagem e semelhança, isto é, como um ser livre e
autônomo. A onipotência do criador não suprime a liberdade do homem, antes, a
promove. Criar é deixar-ser. É não somente um ato de dependência, mas é também um
ato de liberação. A “causa primeira” não anula, antes promove a autonomia das “causas
segundas” que atuam no mundo. A autonomia da razão é o horizonte da filosofia. Aliás,
a filosofia é o máximo empenho de autonomia da razão (HEINZMANN, 1992, p. 204-
205).
A afirmação desta autonomia é também o motivo pelo qual Tomás prefere, na
teoria do conhecimento, a teoria da abstração de Aristóteles do que a teoria da
iluminação de Agostinho. Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, entende a conquista
do conhecimento como um empenho do próprio homem, uma disposição adquirida
graças ao esforço humano de compreender as coisas. O conhecimento humano sempre
parte dos sentidos. Os sentidos nos revelam coisas sensíveis, substâncias individuais.
Conhecer é abstrair. Abstrair é, antes de tudo, prescindir: prescindir do que é sensível,
do que é particular. Abstrair é, depois, extrair: extrair o inteligível, o elemento universal.
O intelecto tem o poder de distinguir mentalmente o que, na realidade, é inseparável:
o inteligível e o sensível, o individual e o universal. O homem transcende o mundo da
experiência pela capacidade abstrativa da razão. A razão, a partir da abstração, forma o
conceito; a partir do conceito, enuncia juízos sobre o real; a partir dos juízos, realiza
22
raciocínios (silogismos); concatenando os juízos e articulando razões necessárias e
prováveis, a razão elabora a ciência. A ciência é, portanto, uma construção do homem.
Mas esta construção se dá graças à capacidade que lhe foi dada pelo Criador. Esta
capacidade é a “luz natural da razão”. A ciência e a filosofia são uma conquista do
homem, que segue esta luz natural da razão. A fé já um dom de Deus, que é infuso no
homem como graça de uma iluminação sobrenatural. Assim, mesmo seguindo uma
concepção Aristotélica do conhecimento como abstração, Tomás ainda entende o
conhecimento como “iluminação”, embora seja uma iluminação que advém do intelecto
como potência naturalmente inserida na alma humana, que é criada por Deus. Deus é a
fonte de ambas as formas de conhecimento: a da razão natural e a da fé sobrenatural.
Por isso, ambas não podem se contradizer.
A envergadura do intelecto é de tal magnitude, que Tomás chega a firmar de que
a alma intelectual é, de certo modo, todas as coisas. Isso quer dizer: o intelecto tem a
capacidade para conhecer todo o ente, qualquer que seja o seu modo de ser, pois todo
o ente, enquanto criação do intelecto divino, é inteligível. Há uma correlação
fundamental entre pensar e ser. Seguindo sua própria capacidade, o intelecto é apto a
partir das coisas e se elevar até Deus. Como fica claro ao fim de seu opúsculo juvenil O
ente e a essência, a filosofia de Tomás é a demonstração de uma elevação da mente
para Deus, uma elevação que o homem faz a partir de suas próprias forças (TOMÁS DE
AQUINO, 1990, p. 241). Autonomia é isso: o erguer-se a si mesmo do homem, a partir
da capacidade de sua liberdade. Entretanto, embora fundamentalmente orientada para
o todo, a razão não pode tudo. Acima da luz natural da razão, está a luz sobrenatural da
fé. Se a filosofia é a ciência da autonomia da razão, a teologia é a ciência da obediência,
melhor, da recepção agradecida e afeiçoada da fé. A fé é “virtude infusa”. A disposição
de crer não vem do homem, mas de Deus. E a teologia é uma ciência bem singular, pois
é a ciência de uma verdade, cuja revelação não é acessível à investigação autônoma da
razão, mas é sobrenatural, isto é, puramente gratuita. A filosofia é experiência do
empenho da razão. A teologia é a experiência da gratuidade da fé. Ambas, no entanto,
isto é, razão e fé, vêm de Deus. Uma, a filosofia, está fundada na ordem da criação e da
luz natural da razão. A outra, a teologia, está fundada na ordem da salvação e na luz
sobrenatural da fé (revelação).
23
Tomás de Aquino assume uma posição diferenciada em relação à tradição
dominante na Idade Média latina até o século XIII. Ele opera uma distinção nítida entre
filosofia e teologia. Não só. Ele até postula certa autonomia da filosofia em relação à
teologia. Filosofia e teologia são saberes distintos. A filosofia é o conhecimento que
surge da luz natural da razão. A teologia é o conhecimento que parte da luz sobrenatural
da revelação e se move no horizonte da fé. A filosofia pode se elevar a Deus, mas é um
conhecimento que se alcança por via da razão natural, partindo-se das criaturas, como
aparece na exposição das "cinco vias" que demonstram a existência de Deus. A razão
chega a uma causa primeira do ser, ao ente supremo, necessário, absoluto ao qual, diz
Tomás, "nós chamamos Deus". A filosofia, porém, pode ser o que ela é sem se
subordinar à teologia. A subordinação da filosofia à teologia é uma necessidade ou
possibilidade do teólogo, não do filósofo enquanto tal. A teologia, por sua vez, parte da
revelação divina. Os mistérios da Trindade e da Encarnação, por exemplo, escapam à
razão. A razão, no máximo, pode preparar os preambula fidei (os preâmbulos da fé)
(ÜBERWEG, 1927, p. 429). A passagem da razão natural à fé não se dá por continuidade
e sim por um salto. À fé só se chega com a própria fé. E a fé é uma virtude infusa
(infundida, derramada), um dom sobrenatural. Aqui a palavra fé não é o mesmo que
crença. O ato de crer é, aqui, um dom sobrenatural e gratuito de Deus. A partir da fé,
porém, se edifica a teologia, que recorre à razão para clarear melhor o sentido daquilo
que se crê, sem, porém, extinguir o mistério. Com a razão, o máximo que o crente
consegue é mostrar a não absurdidade daquilo que ele crê. Ademais, todo o
conhecimento que temos de Deus, mesmo com o auxílio da fé, é limitado. Nós podemos
dizer o que Deus não é, mas não o que ele é.
A posição de Tomás de Aquino foi, após sua morte, em 1274, num primeiro
momento, fortemente atacada pela corrente platônico-agostiniana, de que
participavam tanto mestres franciscanos, quanto mestres dominicanos. Dentre os
franciscanos, destacou-se João Peckham, aluno de Boaventura. Dentre os dominicanos,
Roberto Kilwardby, arcebispo de Cantuária. Em 1277, o bispo de Paris, Estevão Tempier,
publicou 219 proposições condenadas como heterodoxas, provindas do aristotelismo
em geral e do aristotelismo averroista dos mestres da Faculdade das Artes. Várias
doutrinas de Tomás foram atingidas por esta condenação, sendo consideradas, ao
24
menos, suspeitas. Dentre estas, a mais problemática era a da unicidade da forma do
homem (o homem como uma unidade substancial de corpo-e-alma, sendo a alma forma
do corpo). Depois destas condenações, o franciscano Guilherme de La Mare escreveu
um “Correctorium fratris Tomae”, em que analisava criticamente 118 proposições
tiradas de escritos de São Tomás. Mas, os defensores de Tomás de Aquino responderam
com energia ainda maior: apareceram, então, cerca de cinco “Correctoria Corruptori”,
correções do corretor, que, neste caso, deixa de se chamar “corrector” (o corretor, o
que corrige) e passa a ser chamado de “corruptor” (o corruptor, o que corrompe). A
experiência das conturbações geradas pelo aristotelismo averroista e das condenações
do bispo Tempier foi crucial para o pensamento dos anos seguintes da Idade Média. A
lua-de-mel entre a filosofia e a teologia durou pouco. A partir dos anos seguintes, o
divórcio já se faz anunciar, e se começa a fazer uma “separação de bens” entre os
litigantes.
No último quartel do século XIII a situação assim se deixa caracterizar, grosso
modo: os escritos aristotélicos estão disponíveis em sua totalidade; Avicena e Averróis
já são bastante familiares aos latinos; a lógica se desenvolve notadamente no trabalho
de Pedro Hispano; e três pensadores dão novos impulsos ao pensar filosófico e
teológico: Henrique de Gand, Egídio de Roma e Godofredo de Fontaines. É com estes
pensadores, antes de tudo, que João Duns Scotus irá se confrontar criticamente. Egídio
de Roma (c. 1243-1316), da Ordem agostiniana, foi aluno de Tomás de Aquino e se
tornou excelente expositor da doutrina do mestre, sem, no entanto, conseguir ser um
pensador criativo. Expôs de modo mais claro a doutrina de Tomás de Aquino a respeito
da distinção de essência e existência. As críticas de Duns Scotus e de Guilherme de
Ockham se voltam mais propriamente contra ele do que contra Tomás de Aquino.
Godofredo de Fontaines (+ c. 1306) já é um pensador mais autônomo, de orientação
aristotélica moderada. Rejeita a distinção real entre essência e existência, transfere o
princípio de individuação da matéria para a forma e ensina o pluralismo das formas no
ser humano. Seu adversário principal é Henrique de Gand (+ 1293), adversário decidido
de todo aristotelismo. Renova doutrinas agostinianas no novo contexto do pensamento
medieval. Prepara as doutrinas da distinção formal e da forma da corporeidade. Dos três
25
pensadores citados, é o mais eminente. João Duns Scotus irá debater criticamente as
suas doutrinas.
A geração seguinte, que irá determinar o pensamento no início do século XIV, é
marcada por pensadores nascidos nos anos sessenta do século XIII: Mestre Eckhart
(1260-1327); Duns Scotus (1265-1308); e Dante (1265-1321). Estes tiveram como
primeira tarefa histórica pensar criticamente o pensado da geração precedente e
estabelecer uma outra atitude para com a tradição, nomeadamente, para com
pensadores como Aristóteles, Proclo, Avicena e Averróis. Dos pensadores desta geração
escolhemos um para estudar: Duns Scotus.