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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA III: LINGUAGENS, IDENTIDADES & ESPACIALIDADES A VIDA PARA ALÉM DA MORTE: O MUNDO DOS MORTOS NA NARRATIVA DO CANTO VI DA ENEIDA MATHEUS BRENO PINTO DA CÂMARA NATAL - 2019

PROPOSTA DE PADRONIZAÇÃO DAS DISSERTAÇÕES · MATHEUS BRENO PINTO DA CÂMARA A VIDA PARA ALÉM DA MORTE: O MUNDO DOS MORTOS NA NARRATIVA DO CANTO VI DA ENEIDA Dissertação apresentada

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Page 1: PROPOSTA DE PADRONIZAÇÃO DAS DISSERTAÇÕES · MATHEUS BRENO PINTO DA CÂMARA A VIDA PARA ALÉM DA MORTE: O MUNDO DOS MORTOS NA NARRATIVA DO CANTO VI DA ENEIDA Dissertação apresentada

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA III: LINGUAGENS, IDENTIDADES & ESPACIALIDADES

A VIDA PARA ALÉM DA MORTE: O MUNDO DOS MORTOS NA NARRATIVA DO

CANTO VI DA ENEIDA

MATHEUS BRENO PINTO DA CÂMARA

NATAL - 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA III: LINGUAGENS, IDENTIDADES & ESPACIALIDADES

A VIDA PARA ALÉM DA MORTE: O MUNDO DOS MORTOS NA NARRATIVA DO

CANTO VI DA ENEIDA

MATHEUS BRENO PINTO DA CÂMARA

NATAL - 2019

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MATHEUS BRENO PINTO DA CÂMARA

A VIDA PARA ALÉM DA MORTE: O MUNDO DOS MORTOS NA NARRATIVA DO

CANTO VI DA ENEIDA

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau

de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, Área de

Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa III:

Linguagens, identidades & espacialidades, da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação da Profa. Dra.

Marcia Severina Vasques

NATAL - 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências

Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Câmara, Matheus Breno Pinto da.

A vida para além da morte: o mundo dos mortos na narrativa do

canto VI da Eneida / Matheus Breno Pinto da Câmara. - Natal, 2019.

144f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e

Artes, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2019.

Orientadora: Profa. Dra. Marcia Severina Vasques.

1. Virgílio - Dissertação. 2. Morte - Dissertação. 3. Espaço -

Dissertação. 4. Roma Antiga - Dissertação. 5. Eneida -

Dissertação. I. Vasques, Marcia Severina. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 81'42

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MATHEUS BRENO PINTO DA CÂMARA

A VIDA PARA ALÉM DA MORTE: O MUNDO DOS MORTOS NA NARRATIVA DO

CANTO VI DA ENEIDA

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________

Nome do Orientador

__________________________________________

Nome do avaliador externo

________________________________________

Nome do avaliador interno

____________________________________________

Nome do Suplente

Natal, 26 de julho de 2019

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AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente ao meu pai, Edmilson Soares da Câmara, a minha mãe, Maria da

Conceição Pinto da Câmara e a meus irmãos, Madson Diego Pinto da Câmara e Mayonara

Christiane Pinto da Câmara, por todo amor e confiança, nos maus e bons momentos, nas alegrias,

tristezas, brigas e sorrisos. Cada um está em meu coração e toda minha gratidão não será suficiente

para demonstrar a importância de vocês em minha vida.

Agradeço à minha Orientadora, a professora Dra. Marcia Severina Vasques. Obrigado por

não desistir do seu aluno, por aceitar os desafios e por todos os conselhos, opiniões, conversas e

paciência por todos esses anos. Minha gratidão por tudo que me ensinou, dentro e fora de sala de

aula, com seu exemplo, sua generosidade e dedicação aos estudos acerca da História Antiga.

Muito obrigado também aos professores Dra. Lyvia Vasconcellos e a Dra. Airan Borges,

pelas contribuições na banca de qualificação que foram tão caras para a dissertação.

Agradeço à CAPES pela bolsa de pesquisa, a qual sem esse auxilio não seria possível

realizar a pesquisa do modo que pude fazer.

Agradeço aos membros e amigos do MAAT – Núcleo de História Antiga da UFRN, por

acompanharem a pesquisa ao longo dos anos, pelos conselhos em reunião, pelas conversas fora do

departamento, por toda convivência e risadas, por ensinarem que podemos trabalhar e sorrir. Em

especial sou muito grato a Elian Jerônimo de Castro Júnior, pela amizade ao longo da graduação e

pós-graduação e por todos os anos que seguirão. A Ruan Kleberson, pelos conselhos, vivências e

momentos decisivos em várias partes dessa trajetória. A Arthur Fabrício, um eterno exemplo de

amigo e pesquisador, a qual sei que poderei sempre contar.

Agradeço também aos amigos que considero minha família de coração e mente. A estes que

acompanharam, em maior e menor grau, a produção dessa dissertação:

A Jorge Livraga e Délia, por sonharem o mais bonito dos sonhos.

A Catharine e Aurélio, por serem exemplos de vontade, amor e inteligência em minha vida.

A Fabiana, Luiza, Hayssa, Eugênio, Mônica, Mauriceia e Fernando, por me ensinarem a

jamais desistir.

A Bruno, Fabrício, Mariana, Ingrid, Rodrigo, Pedro e Fernando Mosca, por me ensinarem

a rir frente os desafios.

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A Jumara e Marianne, por serem motivo de inspiração pela dedicação e amor ao serviço.

A todos que carrego em meu coração e a mim são tão caros que não caberiam nestas páginas

o tanto que preciso agradecer pelos ensinamentos diários.

Também agradeço aos amigos de longa data, que por mais que não estejam em meu dia a

dia, sempre estão em minha mente e coração:

Antônio, Erick, Raffael, Nicholas e Wendel, pela amizade que mesmo distante, mantém-se

forte, tal qual uma rocha em meio ao quebrar das ondas.

Não posso deixar de agradecer a Clara Jéssica de Medeiros Silva. Obrigado pelo

companheirismo, pelo amor e força diária. É um privilégio e honra estar ao seu lado. Muito

obrigado por todo incentivo, sem você talvez essa dissertação não teria acontecido.

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RESUMO

A obra de Virgílio tem sido analisada por incontáveis historiadores. Seu livro mais notável, a

Eneida, é um marco fundamental na literatura latina na qual é conhecida como Era de Ouro dos

poetas. Entretanto, para além da sua função na literatura, a Eneida também nos apresenta

importantes concepções quanto à cultura, política e a religião romana do século I a.C. A presente

dissertação busca analisar o espaço habitado pelos mortos no Canto VI da Eneida, entendendo a

função deste para a narrativa e sua relação com o imaginário romano acerca da morte. Nosso

objetivo é analisar como Virgílio constrói esse espaço imaginário a partir de elementos narrativos

e alinha a viagem de Eneias pelo Orco com a cultura mortuária romana no século I a.C. As práticas

funerárias romanas também são objeto de estudo para consolidação dessa análise. A metodologia

utilizada para o presente trabalho se faz tendo como base a análise de discurso, mais

especificamente o método de totalidades narrativas, para o qual toda narrativa gira em volta de um

tema central e que os versos e parágrafos de um texto alimentam e reforçam essa concepção. A

partir disso, cria-se as bases lógicas da narrativa que são construídas para atender ao enredo e

desfecho da história. O autor então espelha-se no real e desenha os elementos que seguem uma

linha narrativa lógica para criação de sua história.

Palavras-chave: Roma; Imaginário; Espaço; Morte; Eneida

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ABSTRACT

Virgil’s work has been analyzed for countless historians. His most notable book, Aeneid, is a high

point in Latin literature, in a period known as the Golden Age of the poets. However, beyond its

funcion in literature, Aeneid also show us some important conceptions to the roman culture, politics

and religion in the 1st century B.C. This research aims to analyze the space inhabited by the romans

dead in the Aeneid’s cantus VI, seeking to understand the function of this space to the narrative and

the relation with the roman imaginary about the afterlife. Our goal is to analyze how Virgil builds

that imaginary space with narrative elements and aligns Aeneia’s journey through the Orco with

the roman mortuary culture in the 1st century B.C. The roman funeral pratices are also a study

object in order to support our analysis. The methodology used in this research is the speech

analysis, specifically the method of narrative totalities, in which all narrative encircles the central

theme and the structure narrative feed this central idea. After that, logical bases are created to

support the plot and the outcome of the story. The author is inspired on the real and draws the

elements which follow a logical narrative line to create his story.

Keywords: Rome; Imaginary; Space; Death; Aeneid

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CRONOLOGIA

70 a.C. – Públio Virgílio Maro nasce, na Mântua. No mesmo ano Pompeu e Crasso tornam-se

cônsules.

60 a.C. – Inicio do Primeiro triunvirato composto por Júlio César, Pompeu e Crasso.

55 a.C. – Virgílio recebe a toga Viril, mudando-se para Mediolano (atual Milão) para estudar. César

cruza o Reno com suas legiões e conquista parte da Gália. Nesse mesmo ano data-se o início dos

primeiros textos do poeta, na qual comumente chamam “Virgílio Menor”.

53 a.C. – Virgílio continua seus estudos em Roma. Crasso é vencido e morto pelos partas.

52 a.C. – Virgílio começa a estudar retórica com Epídio. Nesse período relata-se o encontro do

Poeta com Otávio e Valério Messala, ambos condiscípulos do retórico Epídio.

49 a.C. – Virgílio vai para Nápoles ser discípulo do epicurista Sirão. No mesmo ano inicia-se a

guerra Civil entre Júlio César e Pompeu.

48 a.C. – Pompeu é derrotado por Júlio César na batalha de Farsália. O general derrotado tenta

conseguir asilo no Egito, mas é assassinado a mando do rei Ptolomeu XIII.

45 a.C. – César derrota os filhos de Pompeu, Cneu e Sexto, dando fim à guerra civil.

44 a.C. – César é assassinado no fórum romano na conspiração conhecida como Idos de Março.

43 a.C. – Inicia-se o segundo Triunvirato, composto por Otávio, Marco Antônio e Lépido.

43 ou 42 a.C. – Virgílio deixa Nápoles e a convivência com Sirão. Nesse mesmo período inicia a

escrita das Bucólicas.

42 a.C.- César é divinizado. Devido ao pagamento dos exércitos de Otávio e Marco Antônio, as

terras de Virgílio são confiscadas. Virgílio escreve a segunda, terceira e quinta Églogas.

41 a.C. – Virgílio escreve a sétima Égloga. Nesse mesmo ano tenta-se escrever uma epopeia, mas

sem sucesso.

40 a.C. – Otávio entrega à Virgílio suas terras, tomadas em 42 a.C. São escritas a sexta, nona,

quarta e primeira Églogas.

39 ou 38 a.C. – Virgílio escreve A oitava Égloga e publica as Bucólicas. Nesse mesmo período

inicia sua amizade com Mecenas.

37 a.C. – Virgílio inicia a escrita das Georgicas.

31 a.C. – Otávio derrota Marco Antônio na batalha do Accio e torna-se princeps.

30 a.C. – Virgílio inicia a escrita da Eneida. No mesmo ano finaliza a escrita das Georgicas.

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27 a.C. – Otávio recebe o título de Augustus.

25 a.C. – Entre os círculos literários começa-se a falar de uma obra tão grandiosa quanto a Ilíada.

22 a.C. – Virgílio Começa a ler alguns cantos da Eneida para um público privado. (Otávio Augusto

e sua irmã).

19 a.C. – Virgílio morre em Brundisium. Pede, em seu leito de morte, para que a obra inacabada

não seja publicada. A Eneida é publicada.

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MAPAS

Figura 1: O mundo romano em 100 a.C.

WOOLF, Greg. Roma, a história de um império. São Paulo: Cultrix, 2017. p. 173.

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Figura 2: A viagem de Eneias pelo Mediterrâneo.

VIRGÍLIO. Eneida. Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2014. p. 882-883.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: OS CAMINHOS DE UMA PESQUISA .................................................... 16

CAPÍTULO I: VIRGÍLIO: UM HOMEM E O SEU TEMPO ............................................. 27

O homem....................................................................................................................... 28

1.1.1 Os caminhos de um poeta ............................................................................................. 32

1.2 O seu tempo .................................................................................................................. 37

1.2.1 O horizonte de expectativa da Roma Antiga no século I a.C. ..................................... 44

1.3 Virgílio: entre a estrutura e a agência ......................................................................... 51

CAPÍTULO II: A TRADIÇÃO LITERÁRIA DA ENEIDA ................................................. 57

2.1 A tradição literária: a tradição literária grega na Eneida ........................................... 58

2.2 Os princípios da narrativa épica na Eneida de Virgílio ............................................... 61

2.2.1 O princípio axiológico .................................................................................................... 61

2.2.2 O princípio teleológico ................................................................................................... 63

2.2.3 O princípio onomasiológico............................................................................................ 65

2.2.4 O princípio metodológico ............................................................................................... 68

2.2.5 O princípio arqueológico e etiológico ............................................................................ 70

CAPÍTULO III: A CONSTRUÇÃO DO MUNDO DOS MORTOS NA ENEIDA ............. 73

3.1 – Sobre a morte, a religião e os ritos funerários na Roma Antiga ................................... 73

3.2 – O espaço Mítico, Imaginário e Simbólico do Orco ........................................................ 84

3.3 – Análisando os espaços do Orco ...................................................................................... 89

CAPÍTULO IV: AS TOTALIDADES NARRATIVAS NO CANTO VI DA ENEIDA .......107

4.1 A chegada em Cumas e o encontro com Sibila ............................................................108

4.2 Abrindo a entrada do Mundo Inferior ........................................................................112

4.3 O orfismo na narrativa do Canto VI ...........................................................................118

4.4 Um encontro de romanos .............................................................................................125

CONCLUSÃO: SOBRE UM MUNDO EM PASSAGEM ....................................................131

REFERÊNCIAS .....................................................................................................................136

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“A morte não é nada

Eu somente passei

Para o outro lado do Caminho”

(Santo Agostinho)

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INTRODUÇÃO: OS CAMINHOS DE UMA PESQUISA

A morte é uma questão existencial. É a fronteira entre o conhecido e o desconhecido. Ao longo

da história diversas filosofias, religiões e doutrinas tentaram (e tentam) responder essa questão,

mas nenhuma pôde nos oferecer respostas concretas e definidoras sobre esse inexorável destino de

todo ser vivo. Tudo que é vivo, morre. A morte é um fato biológico, incontestável, mas como

lidamos com esse fato é uma questão cultural. O modo que lidamos com nossos mortos e com a

morte é diferente de como os gregos, egípcios e romanos antigos lidavam. Entre eles há também

grandes diferenças, pois as particularidades de cada cultura também se apresentam ao encarar a

morte.

Portanto, antes de tudo devemos refletir a respeito do aspecto cultural da morte. Philippe Ariès

(1975)1 ao analisar a questão cultural sobre a morte nos mostra as mudanças ocorridas com o modo

de encarar a morte ao longo da história. Da morte domada até o interdito, Ariès nos colocou a

pensar a respeito da formação cultural como base para entendermos a alteração dessa visão sobre

a morte, sendo assim a cultura o fator que nos leva a construir imagens sobre o que seria o morrer

e a relação do indivíduo com esse fenômeno biológico. Mesmo não abordando o recorte histórico

dessa pesquisa, a leitura se faz válida pela contribuição teórica do autor a respeito do tema e a

convergência de pensamentos a respeito do assunto, ao qual abordamos de um mesmo ponto de

vista, mesmo que estejamos mirando objetos distintos.

Visto essa primeira questão, a presente pesquisa pretende debruçar-se acerca do espaço do

além-vida, também denominado de Orco, no canto VI da obra “Eneida”, escrita pelo poeta Públio

Virgílio Maro, popularmente conhecido como Virgílio. Nosso principal interesse de investigação

está em demonstrar como a narrativa do Canto VI constrói o espaço do Orco, criando imagens e

representações desse mundo dos mortos com base em elementos culturais próprios do mundo em

que o poeta conheceu. Sendo uma obra inacabada e publicada em 19 a.C., a Eneida é um objeto de

pesquisa já analisado por diversos pesquisadores ao longo dos séculos, entretanto a epopeia narrada

por Virgílio envolve elementos diversos e uma temática complexa, as quais várias lacunas mantêm-

se em aberto. É em uma dessas lacunas em que nossa pesquisa busca se inserir a qual diz respeito

aos mortos e ao espaço habitado por eles no imaginário da Roma Antiga. Sabe-se que os mortos

1 1975 é a data de publicação da obra de Ariès, entretanto, para esta dissertação usamos uma edição lançada em 2014

pela UNESP

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tinham uma posição intermediária dentro da cosmovisão dos romanos, estando entre os deuses e

os homens. Os mortos recebiam cultos, oferendas e festividades em sua homenagem, como por

exemplo as lemúrias2. Porém, antes de mergulharmos na densa questão que envolve os mortos e

seus diversos ritos, precisamos pensar um pouco sobre aspectos do contexto em que a obra e seu

autor estavam inseridos, uma vez que não pode haver descontinuidade entre estes três elementos:

autor, obra e sociedade.

O mundo romano é caracterizado, principalmente, por uma forte rede de comunicação e

interações culturais com outros povos da Antiguidade. O caráter militar e expansionista de Roma

trouxe consigo trocas culturais múltiplas que emergiram nos seus ritos, religião e costumes. Ao

escrever sobre a origem mítica desse povo, Virgílio expressa a diversidade cultural que o permeava

no turbulento século I a.C. O Canto VI da Eneida, que será analisada nessa pesquisa, é um exemplo

significativo da diversidade cultural romana no que tange aos ritos funerários e visões sobre a

morte. Nossa proposta, entretanto, não é simplesmente localizar a visão romana sobre o outro

mundo, muito menos elencar elementos que sejam considerados “romanos” ou “não-romanos.”

Para além disso, o tema dessa pesquisa se debruça sobre a imagem construída por Virgílio sobre o

Orco, o além-vida, e como essa construção mostrada ao longo da narrativa harmoniza-se com a

experiência de vida do autor.

Cabe-nos, para tal tarefa, perceber como a narrativa do Canto VI nos apresenta os elementos

que compõem esse espaço e como estes permeavam a cultura romana. Desse modo, é possível

entender o processo dialético em que a cultura do mundo romano interage com o indivíduo e,

consequentemente, nas suas produções, sendo esta (a produção), o resultado da cultura social e a

experiência do indivíduo, que alimenta e reverbera a cultura dessa sociedade.3 Dessa maneira

podemos entender a perpetuação de certos elementos ao longo da história romana e o acréscimo de

outros, advindos de novas interações com outros povos.

A escolha da Eneida como fonte para a pesquisa se fez baseada em alguns critérios: riqueza de

detalhes ao descrever o espaço do Orco no Canto VI, o que possibilita-nos entender um pouco a

construção narrativa do mundo dos mortos na obra; a relevância da epopeia no seu tempo (século

2 Ao morrer o morto tornava-se um ser sobrenatural chamado Manes e passava a interagir com os vivos, geralmente

afetando positiva ou negativamente no cotidiano dos indivíduos. Nas lemúrias, o rito é realizado para apaziguar os

mortos que não tiveram seus ritos funerários bem executados, o que discutiremos mais a frente. 3 A formação base desse pensamento da cultura e indivíduo advém da teoria da estruturação de Anthony Giddens, ao

qual iremos detalhar no capítulo I desta dissertação.

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I a.C.) e a receptividade que teve entre os romanos; a singularidade da obra, quanto ao tema

abordado e seu gênero, a poesia épica. Partindo desses critérios, a análise da descrição do Orco

possibilita ao leitor construir uma imagem desse espaço a partir da narrativa virgiliana. Nesse

sentido, nenhuma outra obra na literatura latina reuniu tantos detalhes sobre o além-vida na cultura

romana como a Eneida, o que abre margem para diversas interpretações e estudos acerca desse

tópico. Outro ponto que devemos entender é a importância da Eneida em sua época histórica.

Apesar das discussões sobre a saga de Eneias ser uma propaganda do Principado de Otávio

Augusto, é inegável que não foi por puro acaso ou favoritismo que Virgílio foi considerado o maior

expoente da literatura latina antiga e a Eneida a sua obra-prima. Para além de seu conteúdo político,

as características literárias da obra, assim como sua repercussão ao longo dos séculos, atestam a

favor da habilidade do poeta e sua epopeia.

Não por acaso, poucos anos após sua publicação, a Eneida começou a ser utilizada para educar

crianças romanas no latim. Também teve ao longo dos séculos diversos comentadores, como, por

exemplo, Sérvio Honorato4. Ademais, Virgílio e a Eneida foram fonte de inspiração para Dante

Alighieri (Século XIII-XIV), Camões (Século XVI) entre outros grandes expoentes da literatura.

Outro fator que atesta a favor da Eneida é a que obra trata de um assunto praticamente inédito na

história romana. Apesar da narrativa sobre a fundação de Roma já ter existido durante o período

Republicano5, a Eneida destaca-se por buscar uma narrativa mitológica explicando a fundação do

povo romano. Tendo Eneias, o herói Troiano, como protagonista do épico, Virgílio remonta a

origem Romana através de um passado mítico.

Apesar disso, há algumas questões a serem problematizadas quando entramos no universo da

Eneida: a primeira delas é até que ponto podemos inferir que a visão de Virgílio sobre o Orco, no

Canto VI, reflete um traço do imaginário romano em relação ao outro mundo e onde seus mortos

habitam. Esse campo reflete uma dúvida quanto à dimensão do indivíduo frente à sociedade. Seria

então a narrativa de Virgílio uma visão específica (e utilitária) do além-vida frente ao horizonte de

expectativa em que vivia, ou a expressão literária de um tema que está em sintonia com a cultura

da sociedade romana frente à questão dos mortos?

4 Sérvio Honorato foi um gramático romano do século IV d.C. 5 Ênio, escritor romano do século II a.C escreveu a história de Roma em seu livro Annales. Também cabe destacar o

historiador Tito Lívio (século I a.C.) que também produziu diversas obras sobre a história romana, mostrando esse ser

um tema recorrente para os romanos. Porém, a obra de Virgílio destaca-se por buscar uma origem mitológica da cidade

de Roma e do povo romano, diferente do viés mais prático sobre a fundação da cidade trazida pelos outros dois autores

citados.

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Outra questão que nos debruçaremos está conectada com o questionamento anterior. Afinal,

como podemos distinguir o que o poeta usa como elementos narrativos, que servem para a dinâmica

e lógica interna da obra, de um aspecto da cultura romana acerca desses elementos narrativos? O

que, de fato, pode ser considerado como pontos da cultura romana e o que foi colocado na obra de

forma narrativa, cumprindo uma função no enredo, para dar lógica no texto do poeta?

Sobre a ideia do além-vida que iremos analisar também nos cabe inferir alguns

questionamentos: o primeiro deles diz respeito a como podemos compreender o espaço do além-

vida a partir de uma narrativa literária. Como a narrativa do Canto VI nos ajuda a conceber a ideia

de além-vida para os romanos? E como os ritos funerários poderiam determinar o acesso do morto

a espaço ao qual deve pertencer? Buscaremos responder essas perguntas ao longo dos capítulos,

apesar de saber que a maioria dos questionamentos giram em torno de hipóteses e agregam valor a

discussões anteriores a essa pesquisa.

Um desses elementos trata da relação dos vivos com os mortos na Roma Antiga. Aos mortos

eram dedicados festivais, celebrações e dias especiais no calendário romano, o que indica uma

estima e importância destes na cultura romana. Para pensarmos essa relação entre vivos e mortos

na Roma Antiga o trabalho de Bustamante (2014) nos foi fundamental, pois nos auxiliou a entender

melhor como as práticas culturais, nesse caso as celebrações e festivais, apresentam uma forma de

lidar com os mortos. Percebe-se que o papel do morto é, em diversos momentos, ambíguo e tem

conotações positivas e negativas. Quando positiva, o morto é visto como um manes, um espírito

protetor, intermediário entre os seres vivos e os seres divinos. Quando negativa, os mortos são

vistos como Lêmures, espíritos malignos que assombram os vivos. No primeiro caso, as

festividades buscavam celebrar e honrar os manes dos antepassados, no segundo, a função das

festividades estava em apaziguar esses espíritos malignos. Percebe-se, portanto, que o morto não é

um elemento “estático”, com uma posição e função definida dentro da lógica cultural na Roma

antiga.

Visto isso, nosso segundo desafio para entender a relação entre vivos e mortos estava em

compreender que fatores determinariam a transformação desse morto em manes ou lêmure. Um

dos fatores, e talvez o principal, estava ligado a correta execução dos ritos funerários. Os ritos

garantiriam a condição de di manes para o espírito do morto. Em contrapartida, este antepassado

poderia ajudar os vivos, guiando-os e trazendo bons agouros. Nesse aspecto, o trabalho de Jocelyn

Mary Catherine Toynbee (1971) nos deu embasamento acerca das práticas e ritos funerários

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romanos. Foi-nos possível perceber, a partir do estudo da autora, a abrangência dos ritos, desde os

dedicados a figuras de autoridade, como imperadores, até os direcionados à população e aos

soldados. Percebe-se, logo, que a morte também é um fator de diferenciação dentro da estrutura

social romana, tendo o morto ritos mais complexos ou mais simples a depender de sua posição

social. Nesse ponto, outro importante estudo que nos auxiliou acerca dessa problemática das

práticas funerárias romanas foi o livro “Práticas funerárias no Mediterrâneo Romano”, sob a

organização de Pedro Paulo Funari e Luciane Munhoz de Omena (2016). A partir dos textos, foi

possível compreender a estratificação social a partir das práticas funerárias e o papel da preservação

da memória do morto nos processos de legitimação e apoteose de um novo imperador, questões

que, apesar de não estarem no escopo da pesquisa se fazem essenciais para entender o papel do

morto na construção e legitimação de aspectos sociais, tal como a transferência de poder para um

novo imperador.

Esses estudos trouxeram contribuições significativas para a compreendermos o papel dos

mortos dentro da sociedade Romana. Entretanto, apesar de apresentarem com propriedade os

aspectos formais de enterramento e práticas funerárias, uma questão que ainda nos escapava era a

dimensão de uma ideia de além-vida dentro do mundo romano. Foi no trabalho de Franz Cumont

(1922) que a percepção de um espaço para os mortos surgiu dentro da presente pesquisa. Apesar

de ser considerado um autor antigo, foi possível, a partir de seus estudos, vislumbrar uma

perspectiva de resposta que rompe a dimensão física e social da problemática dos mortos, entrando

no campo da religião romana.

A religião, de maneira geral, abrange os aspectos da morte e do morrer tentando apresentar

respostas para essa questão existencial. Na religião romana, podemos perceber essa perspectiva

quando analisamos os cultos e festividades dedicados aos mortos. Mais do que isso, percebe-se que

a religião é um elemento central na vida sociopolítica dos romanos. Logo, não é possível conceber

a dinâmica política e social do mundo romano sem nos debruçarmos sobre as características de sua

religião. Esses pontos nos levaram aos estudos de John Scheid (2003) e Mary Beard (2005). Ambos

os historiados mostram que a religião romana foi sendo adaptada e ressignificada junto com os

aspectos sociais e políticos da história da República e do Império. Desse modo, não podemos

pensar aspectos culturais isoladamente, uma vez que a religião, sociedade e política estão

intrinsecamente ligadas. Nesse ponto, outra excelente contribuição para nossa perspectiva de

trabalho veio de Cláudia Beltrão da Rosa (2014), pois a autora nos ajudou a pensar sobre os ritos

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funerários e a preocupação da religião romana com a correta6 execução dos ritos. Essa

especificidade do rigor para com os ritos distingue a religião romana de outras religiões da

Antiguidade. Os ritos funerários também serão fundamentais na narrativa da Eneida, sendo o meio

de acesso do morto a o mundo ao qual pertence.

Portanto, para entendermos a construção desse mundo dos mortos na cultura romana devemos

compreender sua religião e também se faz necessário percebermos questões sociais e políticas.

Partindo desse ponto tão caro à pesquisa, a análise do Canto VI da Eneida não pode se constituir

apenas de uma formulação literária ou percepção religiosa do mundo, mas também abrange

aspectos sociais e políticos romano. Entretanto, ao longo do século XX, a historiografia acerca da

Eneida e do além-vida voltou-se para explicações pragmáticas e sociais, atentando

demasiadamente sobre os aspectos de memória e legitimação do poder a partir do uso dos

antepassados. Dessa maneira, pouca atenção a aspectos subjetivos dentro da composição do poema,

além da percepção do indivíduo que produziu a obra foram dadas. Apesar disso, conseguimos

encontrar autores que dialogam com nossa problemática.

Um destes trabalhos foi do historiador Carlos Ascenso André (1984), que destaca a relação de

vida e morte no épico de Virgílio. Compreender essa perspectiva dual na narrativa de Virgílio

mostra-se uma tarefa árdua e instigante, apesar de apresentar-se ao longo da obra. O poeta, em

determinados versos do Canto VI, reflete sobre a própria história, colocando na boca de Caronte

uma pergunta que possivelmente poderia passar pela cabeça do leitor: o que um mortal está fazendo

num mundo destinado aos mortos? (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 390 – 391). Para além disso,

a narrativa de Virgílio estrutura-se, em muito momentos, a partir de uma lógica de vida e morte.

Sobre esse aspecto, a análise de Issaly e Morales (2001) nos ajudou a perceber a forte relação entre

a vida e a morte na Eneida ao apresentarem diversas visões de uma morte fundadora dentro da

narrativa de Virgílio. Dessa maneira, a morte funda sempre algo novo, dando ao épico uma

concepção cíclica. Tal perspectiva nos possibilitou pensar no caráter tênue dessa linha que divide

a vida e a morte. Aparentemente duais, porém complementares, uma vez que só pode existir a

morte se houver a vida e o contrário também se faz verdadeiro. Ainda sobre esse ponto, cabe a nós

destacar o artigo de João Pedro Mendes (1994) que nos suscitou, para além da concepção cíclica

presente no Canto VI, o caráter filosófico da obra. Dessa maneira, o estudo de Mendes nos ajudou

6 Entende-se por uma execução “correta” na Roma Antiga o rito que segue rigorosamente todos os procedimentos do

início ao fim da cerimônia.

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a pensar acerca da construção de pensamento e visão de mundo de Virgílio. Esse aspecto também

nos é caro pois buscamos compreender, a partir da análise do Canto VI, elementos que na obra

apresentam as intenções do poeta, tal como seus objetivos para além de narrar o épico.

Partindo dessas reflexões filosóficas, tentamos mapear algumas ideias de doutrinas que

circulavam pelo território romano no século I a.C. e como possivelmente Virgílio estaria em

contato com elas. Ademais, ao analisarmos a narrativa do Canto VI mostrou-se perceptível os

elementos referentes a algumas doutrinas que, em maior e menor medida, circulavam por Roma

durante o século I a.C. É o caso do epicurismo, marcado pelo filósofo latino Lucrécio e também,

em menor medida, o orfismo, que apresenta-se de forma sutil nos versos de Virgílio. Um estudo

que nos foi muito caro nessa perspectiva foi a dissertação de Thiago Eustáquio da Mota (2011) e

sua tese (2015), ao qual buscamos estabelecer um forte diálogo nessa pesquisa com o objetivo de

desenvolver novas perspectivas e ampliar o debate acerca do espaço do mundo dos mortos no Canto

VI. Na presente dissertação enveredamos pela construção narrativa desse espaço, percebendo os

elementos que o poeta utiliza para montar a lógica interna do texto e atender seus objetivos. Para

tanto, como falado acima, Virgílio trabalha com aspectos diversos de uma cultura multifacetada.

A confluência dessas diversas correntes de pensamento e costumes dentro do que chamamos

cultura romana é um tema recorrente nos mais diversos trabalhos atualmente. Roma apresenta-se

como uma sociedade marcada pela diversidade, resultado de séculos de conquistas e trocas

comerciais. Nesse sentido, os aspectos culturais, e em nossa análise a religião romana, podem ser

explicados por intermédio de uma troca cultural intensa que não pode ser compreendida como uma

via de mão única, unilateral, mas como uma relação de absorção de outras formas de se ver o

sagrado e moldá-la de acordo com sua experiência. Ao observarmos a relação com o sagrado no

mundo romano percebemos uma religião ritualística, preocupada com ritos e sacrifícios bem

definidos para a manutenção de uma ordem cósmica. O calendário romano, como mostra Ovídio

no livro “Fastos”, está repleto de datas cerimoniais. Nos parece razoável afirmar, a partir desse

aspecto, que a sociedade romana demonstra uma preocupação com os deveres e ritos para com os

seus deuses.

Conceitualmente, para pensarmos o espaço nessa dissertação partimos da ideia do geógrafo Yi-

fu Tuan sobre espaço mítico. Tuan busca compreender o espaço a partir da experiência, trabalhando

assim a dicotomia espaço-lugar e as relações criadas entre o meio e o indivíduo como base de suas

representações e identidades. O espaço mítico, em linhas gerais, representa a visão de mundo de

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um indivíduo ou sociedade acerca do desconhecido (TUAN, 1983, p.99). Esse espaço torna-se

mítico por orbitar na esfera do imaginário, no campo subjetivo, entretanto, também tem sua

materialidade quando fixado por um rito, na qual o fixa no plano material. Desse modo, as

cosmovisões apresentadas na religião romana sobre o espaço habitado pelos mortos representam o

espaço mítico, que tem como matéria formadora o que não se conhece, sendo estas vivenciadas a

partir dos ritos funerários, o que demarca uma linha entre vivos e mortos. Tuan nos mostra que o

espaço, seja ele qual for, é construído pelo homem a partir do seu intelecto e sua ressignificação,

tornando-se um lugar, com seus significados e sentidos. Nesse sentido, o espaço mítico é construído

a partir da imaginação dos indivíduos quando confrontados pelas necessidades humanas

fundamentais, o que no nosso caso é a morte. (TUAN, 1983, p. 112). A explicação sobre a morte

e o que acontece após morrermos encaixa-se como uma necessidade humana uma vez que até os

dias atuais esta é uma das grandes questões existencialistas.

O espaço construído por Virgílio, entretanto, não é apenas fruto de uma visão acerca da morte.

É um constructo não apenas mítico, mas também imaginário. Imaginário por não se tratar de um

espaço pragmático, real, mas que a partir de elementos da realidade se constrói. Os bosques, os

rios, as construções, os mortos que habitam em cada um dos espaços do Orco têm como base a

realidade do autor, tanto objetiva quanto subjetiva. Pensando sobre tal questão, nos debruçamos

sobre a perspectiva de Marc Augé (1998) que demonstra a construção desses espaços imaginários

a partir das relações sociais. Desse ponto de vista, o espaço do Orco vai sendo modulado à medida

que os elementos narrativos projetam imagens e representações. Logo, ao mesmo tempo que o

além-vida expressa-se como uma resposta ao dilema da morte, este também é um espaço

imaginário, uma vez que é produto de uma obra literária que, a rigor, não tem base pragmática.

Ademais, quando nos aprofundamos na análise espacial do Orco foi possível perceber um

terceiro modo de pensar essa espacialidade: o campo simbólico. Ao organizar os diferentes espaços

que compõem o que chamamos de Orco, Virgílio divide rigorosamente estes de acordo com as

especificidades de cada morto. Há o espaço para os guerreiros, para os que morreram por culpa de

um amor mal realizado, para os vis e soberbos e também para os imaculados, de almas puras e

seres divinos. Todos esses espaços criam significações, símbolos que nos remetem a uma conduta.

Nesse ponto, o estudo de Maria Luisa La Fico Guzzo (2005) se fez fundamental para

compreendermos como esse espaço simbólico se apresenta no Canto VI e como se constrói, a partir

dessa perspectiva, uma forma ideal de conduta do cidadão romano.

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Saindo um pouco da questão espacial na Eneida, também tivemos que travar contato com

aspectos da literatura latina. Fomos impelidos a nos debruçar sobre o estudo dos gêneros literários

e analisá-los de acordo com sua natureza. Visto isso, ao estudarmos os escritos de Conte (1999)

nos inteiramos acerca dos gêneros literários que compõem a literatura latina. Partindo dos gêneros

literários, a Eneida é classificada como uma poesia épica, um gênero literário marcado pelo tempo

mítico, pelas grandes histórias e saga dos heróis. A Eneida não foge dessas características. Sua

narrativa está imersa em mitologias, tendo como objetivo criar uma origem divina do povo romano.

Para harmonizarmos a literatura latina com a análise histórica tivemos a ajuda do trabalho de

Gonçalves (2013) a qual nos mostra que a literatura e a história eram saberes similares, que

misturavam narrativa histórica com imaginação, dando ao real a beleza e poética própria da

literatura (GOLÇALVES, 2013, p. 2). Nesse sentido, uma análise literária não parte apenas da

extração de informação acerca de um determinado assunto, mas sim um estudo detalhado sobre o

contexto que a obra foi escrita, sobre o autor e a motivação do mesmo. Toda obra literária tem uma

intenção e motivações diversas, portanto, todos esses aspectos devem ser pensados quando

refletimos sobre criação de uma obra literária, pois a partir dessa análise podemos compreender

suas intenções e a relação da obra produzida com os aspectos reais e seu contexto histórico.

A partir dessa reflexão, buscamos trabalhar com o conceito de Estrutura e Agência de Anthony

Giddens para pensarmos no papel de Virgílio enquanto sujeito dentro da sociedade romana.7 A

teoria da estruturação nos ajuda a pensar no autor da Eneida e na própria obra como uma ação

consciente do indivíduo que entra dentro da estrutura romana e a modifica a partir da sua limitação

e parâmetros. Dessa maneira, o poeta não faria da sua obra uma mera propaganda ou a feito por

encomenda, mas sim como resultado de suas crenças e visão de mundo enquanto romano.

Como metodologia para essa pesquisa faremos uso da análise textual de Jerzy Topolski8, ao

qual se debruça sobre as totalidades narrativas. Apesar do autor buscar essa análise na narrativa

histórica, percebemos que a estrutura metodológica utilizada para esse tipo de narrativa também se

harmoniza com o texto de Virgílio. As totalidades narrativas nos mostram que a construção de todo

o texto está ligada por uma ideia que perpassa os parágrafos, estrofes, versos e estes constituem,

7 Abordaremos a teoria da estruturação ao longo do capítulo I e II, ao qual poderemos relacionar melhor tais elementos

com o contexto histórico de Virgílio e sua obra. 8 Jerzy Topolski foi um historiador polonês ao qual escreveu, entre outros assuntos, sobre teoria e metodologia da

história.

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em última análise, as pequenas partes de um texto orgânico com alto grau de conectividade.9 Desse

modo, ao analisarmos a estrutura narrativa do Canto VI poderemos compreender a sua lógica

interna, inferindo, a partir da comparação dos elementos culturais romanos, suas diferenças e

similaridades entre a realidade e a imaginação do poeta. Portanto, ao “sair” do texto e relacionar a

narrativa do épico com a cosmovisão romana, seremos capazes de criar hipóteses acerca das

intenções e funções da obra de Virgílio. Nesse sentido, em um primeiro momento devemos analisar

a narrativa virgiliana por ela mesma para que, em seguida, contrapor tal narrativa aos elementos

que compõem e cercam a cultura do autor, e assim conectar as percepções do autor com esses

elementos aparecem no texto.

Para tanto, é preciso definir bem alguns pontos sobre o épico e problematizá-lo: para quem

Virgílio escreve? Qual a sua intenção ao escrever um épico sobre a origem da civilização romana?

O que difere a visão de Virgílio sobre os mortos do horizonte de expectativa de sua época? Tais

questões podem encontrar respostas suficientes a partir da análise do discurso produzido na

narrativa do épico virgiliano e sua receptividade diante do público ao qual sua obra fora destinado.

Os capítulos estão distribuídos a partir da seguinte lógica: o capítulo I tratará do horizonte de

expectativa do autor. Nosso objetivo foi traçar uma relação de aspectos da vida de Virgílio,

conhecido a partir de suas biografias, com o período histórico ao qual viveu. Uma relação entre o

homem e o seu tempo. Nesse capítulo discutimos ainda os conceitos de “horizonte de expectativa”,

a partir da teoria da receptividade de Hans Robert Jauss e o conceito de estrutura e agência, de

Anthony Giddens. Dessa forma, visamos compreender como a ação prática do poeta se relaciona

com a sociedade à qual pertencia.

O capítulo II buscará aportar na discussão acerca do gênero épico e na construção da Eneida

enquanto obra literária. Situando a literatura de Virgílio não apenas ao seu contexto histórico, mas

em toda a tradição do gênero épico e aproximando-o de outros grandes épicos como a Ilíada e a

Odisseia, de Homero. Demonstraremos as influências dos épicos gregos na Eneida e, ao mesmo

tempo, a partir dos princípios da narrativa épica relacionaremos aproximações e especificidades da

obra de Virgílio. Sendo assim, o capítulo nos ajuda a entender a relevância da obra, sua construção

a partir de uma formação e conhecimento literário, além de suas diferenças acerca dos épicos

9 No capítulo IV discorreremos mais detalhadamente acerca das totalidades narrativas, reservando para a introdução

essa explicação superficial.

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gregos. Partindo dessa ótica, poderemos distinguir o que Virgílio usa como estrutura narrativa,

necessárias para compor o texto, e os elementos específicos de sua cultura.

O capitulo III abordará a análise espacial do Canto VI. Nesse capítulo entramos definitivamente

na fonte ao analisar os versos e a construção narrativa do espaço do Orco. Nele abordaremos os

diversos tipos de espaço que podemos encontrar na narrativa de Virgílio e efetivamente como essa

construção é feita dentro do épico. Ainda dentro desse capítulo abordamos questões relevantes à

cultura funerária romana, seus ritos e aspectos da sua religião, além de uma discussão sobre a

morte. Tais aspectos nos auxiliam na análise do Canto VI, uma vez que fazemos as relações dessas

percepções com a narrativa.

O capítulo IV tem por objetivo analisar, a partir da metodologia das totalidades narrativas, o

Canto VI da Eneida buscando demonstrar como a narrativa de Virgílio gira em torno da legitimação

do principado de Otávio Augusto. Para tanto, fizemos uma análise do discurso a partir da

comparação de traduções da Eneida, além de tentar perceber o desenvolvimento do Canto VI

orbitando sobre essa ideia central. Em nossa análise percebe-se a ligação de diversos versos, como

uma linha que vai e volta, entrelaçando os personagens e amarrando a narrativa, concedendo-lhe

sentido lógico e, ainda assim, chegando ao objetivo do autor. Também buscamos analisar o papel

narrativo do Canto VI para o épico, uma vez que o mesmo tem uma função dentro do épico em si,

uma vez que não está isolado de toda a narrativa.

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CAPÍTULO I: VIRGÍLIO: UM HOMEM E O SEU TEMPO

Nossa caminhada começa com um homem. Necessitamos desse elemento para entendermos o

canto VI da Eneida e sua importância para os antigos romanos. Como toda análise literária, é

inerente ao estudo de uma obra um estudo também do ser humano que a escreveu: suas ideias, as

ideias que pairavam ao seu redor, por onde andou e o que provavelmente pode ter visto, ouvido e

lido nesses lugares.

Entretanto, como bem sabemos, um homem não se constrói sozinho e sempre está em

ressonância com seus semelhantes e opositores. Ao observamos a trajetória de uma pessoa, por

exemplo, percebemos que não é possível analisar profundamente uma ação específica se não

observamos o que a levou até esse momento. Devemos, portanto, entender e situar o nosso homem

em um tempo, suas perspectivas, experiências e possibilidades. Esse tempo, obviamente, deve ser

o tempo em que esse homem esteve vivo e corresponde, por conseguinte, aos espaços que

percorreu, suas experiências e feitos, o que comumente chamamos de “contexto histórico”.

A partir desses dois elementos básicos (o homem e o seu tempo), podemos ter margem para as

hipóteses acerca de suas obras e intenções, para o erro e a imprecisão em muitos casos. Por isso

que o presente capítulo não se propõe, nem de longe, a buscar afirmações definitivas sobre esse

homem que estudaremos. Uma biografia tende a trazer dados mais concretos, fechados,

determinantes, mas não buscamos exatamente isso. Queremos as hipóteses, as possibilidades.

Visto isso, o presente capítulo busca introduzir um horizonte de expectativa da Roma Antiga

do século I a.C., entendendo a relação de Virgílio com as mudanças, ideias e relações sociais de

seu tempo. Nesse sentido, procuraremos observar que a relação do indivíduo com a sociedade ao

qual está/estava inserido se faz essencial para a compreensão dos motores psicológicos que podem

ter motivado a escrita e construção de suas obras. Colocamos a palavra “obras” no plural por

entendermos que não apenas a Eneida se configura a partir dessa relação indivíduo-sociedade e

sim todas as obras escritas pelo poeta latino, sendo reflexo de aspectos da sua vida e

intencionalidades. Entretanto, não nos cabe nesse momento uma análise mais aprofundada sobre

cada uma das obras de Virgílio, nos reservando a apenas, ao longo do capítulo, pontuá-las

rapidamente. Nesse momento estamos interessados em nos debruçar, mesmo que em algumas

páginas, sobre a vida de Virgílio. Afinal, quem foi este homem?

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O homem

Escrever sobre a vida de Virgílio não é uma tarefa fácil. As poucas e não tão confiáveis fontes

existentes sobre a biografia do poeta não nos leva tão adiante ou muito a fundo acerca da sua

infância, círculos sociais ou estudos. Nas palavras de Pierre Grimal, infelizmente o que sabemos

nunca é absolutamente certo e, quando acreditamos que nossas fontes não se enganam, o que elas

nos dizem é sempre parcial (GRIMAL, 1992, p. 15). Visto isso, como falar algo concreto acerca

do poeta romano? Apesar de uma missão árdua, esta não é impossível. Para as próximas páginas

iremos pensar e utilizar, basicamente, uma biografia de Virgílio escrita por Suetônio10 e uma

biografia histórica escrita pelo historiador francês Pierre Grimal, ambos contando sobre a vida do

autor da Eneida. Utilizaremos Suetônio pois este pode nos trazer, mesmo que indiretamente, alguns

elementos sobre fatos subjetivos de Virgílio, como suas doenças e traços de personalidade, além

de objetivamente nos apresentar alguns dados confiáveis. Também é o biógrafo que esteve,

cronologicamente, mais próximo do poeta. A escolha pelo francês, entretanto, se dá baseado em

sua metodologia de análise dos dados oferecidos pelos biógrafos. Partindo do pressuposto que

todos os dados das fontes não são confiáveis, Grimal alinha o que é contato sobre Virgílio e se suas

obras refletem o que lhe contam. Segundo o historiador:

É a obra que devemos interrogar, pois ela representa e exprime a história de um

pensamento: uma história ao mesmo tempo interior e exterior ao poeta, onde se encontram

forças diversas, algumas vindas das regiões mais profundas da sensibilidade, outras oriundas das influências inseparáveis de qualquer criação literária, outras, ainda, que são

o resultado das pressões exercidas por um mundo em evolução rápida, no qual as relações

entre os homens sofreram transformações radicais (GRIMAL, 1992, p.1).

Partindo dessa perspectiva, o historiador produziu uma biografia histórica de Virgílio na qual

podemos aferir certa confiabilidade e compreender um pouco mais entre a relação indivíduo–

sociedade que é feita ao longo do livro. Ademais, a busca, a partir da comparação de fontes e relatos

com o horizonte de expectativa de Virgílio, entrelaça de forma palpável elementos da vida do poeta

com os eventos ocorridos no século I a.C. Também nos mostra um homem ligado ao seu tempo e

espaço, não apenas um personagem deslocado de suas origens e jornada. Visto isso, acreditamos

que a proposta de Grimal alinha-se bem com a condução de nossa pesquisa e faz-se essencial para

10 A obra chamada Vita Vergili é atribuída a Suetônio, porém nos chegou a partir dos escritos do gramático Elio Donato

(Século IV d.C) como sendo uma biografia escrita por Suetônio. Visto isso, é necessário cautela ao analisar uma fonte

tão distante de seu objeto.

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percebermos as relações entre obra, autor e sociedade ao qual nos é tão cara. Comecemos, então,

falando um pouco de Virgílio a partir do que escreveram sobre ele.

Um de seus biógrafos foi Caio Suetônio Tranquilo, que foi responsável por escrever diversas

obras biográficas, sendo mais conhecido pela sua obra Vida dos doze césares. O biógrafo,

entretanto, tem sua data de nascimento no ano 70 d.C. Nesse mesmo ano a morte de Virgílio estava

para completar quase dez décadas de ocorrida, o que mostra que o biógrafo e o biografado não

foram contemporâneos. Entretanto, esse é um dos menores problemas quando tratamos de

biografias de personagens da antiguidade, visto que praticamente todas foram escritas muito depois

do seu tempo. O próprio Virgílio, por exemplo, tem outras biografias escritas após séculos de sua

morte. Tais fontes que tratam da biografia do poeta latino nos remetem ao século IV d.C., o que as

torna ainda menos confiáveis no que tange à veracidade dos fatos, visto a distância temporal ao

qual estão submetidas11. Porém, os dados mais confiáveis e completos nos remetem à obra de

Suetônio, a qual iremos tomar como norte para entendermos a trajetória de Virgílio, sendo esta

uma fonte utilizada largamente quando se trata da vida do poeta.

Públio Virgílio Maro, apresenta Suetônio, nasceu em Mântua, advindo de uma família modesta,

no ano de 70 a.C (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 1-3). Mântua é uma região ao norte da península

itálica, sendo uma província romana desde o século III a.C. Seu biógrafo descreve o nascimento de

Virgílio com elementos mágicos, tal qual os diversos mitos conhecidos na antiguidade.12 Segundo

Suetônio, a mãe de Virgílio teria sonhado que dava à luz a um ramo e este, ao tocar o solo,

transformava-se em uma árvore cheia de frutos. Quando finalmente pariu seu filho, o recém-

nascido Virgílio não teria chorado, apenas apresentando um semblante tranquilo, o que fora

interpretado como um presságio que o seu destino seria mais agradável do que o de seus pais

(SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 3-5). O fato de Suetônio narrar o nascimento de Virgílio com

aspectos “mágicos”, como se este fosse um indivíduo que, desde seu nascimento, estivesse

predestinado a grandes feitos apenas nos atesta a importância do poeta dentro da cultura romana

em geral. Mesmo após sua morte, essa “aura” de um homem diferenciado deixou marcas ao ponto

de ser retratado em sua biografia. Certamente não podemos confiar nesses sinais atemporais de

forma literal, mas sim entender o simbolismo e poder que essa representação demonstra sobre o

poeta.

11 SUETÔNIO, Vida de Virgílio, traduzido por Martha Elena Montemayor Aceves, nota introdutória, p. 207-208. 12 Podemos pensar, para exemplificar, no mito de Perseu. Este fora concebido a partir de uma chuva dourada realizada

por Zeus para desposar Dânae, filha de Acrísio, rei de Argos.

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Fiquemos então com a origem modesta em Mântua, o que pode ser constatado nos primeiros

poemas escritos por Virgílio, que têm como tema a tranquilidade dos campos e da vida pastoril.13

A imagem que Virgílio cria do campo reflete de forma perceptível nas suas experiências, quando

contrapõe, muitas vezes, a vida rural ao da urbs romana (VIRGÍLIO, Geórgicas, Canto II, v. 493-

497). Entretanto, uma primeira pergunta nos surge: como um jovem de família modesta pôde ter

acesso a círculos tão fechados como o de Mecenas e Otávio Augusto? O historiador Pierre Grimal,

em seu livro Virgílio ou o segundo nascimento de Roma, nos explica que Virgílio caiu nas graças

do seu sogro e este proveu seu sustento material (GRIMAL, 1992, p. 17), sendo este o meio pelo

qual o mantuniano conseguiu estudar e escrever suas obras. Em uma sociedade que a adoção era

um hábito comum, especialmente no meio da elite (devemos lembrar que o próprio Otávio Augusto

foi adotado por Júlio César, além de outros casos famosos como o do imperador Marco Aurélio)

não é de se espantar que essa narrativa contenha em si alguma verdade. O fato é que os primeiros

estudos de Virgílio aconteceram em Cremona, região da Gália Cisalpina (GRIMAL, 1992, p. 23;

Suetônio, vida de Virgílio, 6). Lá o poeta começou seus passos estudando gramática e noções de

latim e grego, duas línguas essenciais para se ter domínio no século I a.C. O latim devido ao uso

habitual e cotidiano, sendo a língua predominante na Roma Antiga, e o grego, pelas obras e cultura

helênica que permeavam a cultura romana.14

No ano 55 a.C. Virgílio atinge a toga viril, aos 15 anos de idade. Nesse mesmo dia, aponta

Suetônio, o epicurista Lucrécio morre (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 6). É interessante notar a

coincidência entre os momentos de passagem entre os dois indivíduos. Se pensarmos que, mais

tarde, Virgílio entraria em contato com a filosofia epicurista (o que não significa dizer que o próprio

Virgílio tenha sido um epicurista) e escreveria inspirado por essa doutrina, talvez esse detalhe

apresentado pelo biógrafo Suetônio não seja apenas uma coincidência ou mera curiosidade. De

qualquer modo, a chegada de Virgílio à toga viril marca um momento importante na sua trajetória,

assim como para todo romano. Virgílio dá continuidade aos seus estudos indo para Milão, uma

importante província e centro de estudos. Grimal nos alerta, sobre esse fato, de que a ida do poeta

para um centro tão famoso (e provavelmente de alto custo) não prova que Virgílio provenha de

uma família rica. Segundo o historiador, era comum, mesmo pelas famílias mais modestas, a busca

13 Uma obra principal de Virgílio se detém ao tema dos campos e do pastoril, sendo esta as Geórgicas, geralmente

apresentando uma visão idílica do mundo rural. 14 A questão da influência grega na cultura romana é um ponto a ser mais aprofundado no capítulo II.

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desses centros para construção de uma formação intelectual aos seus filhos (GRIMAL, 1992, p.

27). Portanto, a origem humilde e modesta de Virgílio ainda segue em vigor.

Apesar das prováveis expectativas e aspirações públicas destinadas a Virgílio, uma vez que sua

educação fora patrocinada (ou uma forma de investimento), aparentemente ela não foi bem-

sucedida. Sua natureza introspectiva não lhe dava as qualidades necessárias para um bom orador.

Segundo Grimal, Virgílio era um amigo natural do silêncio, de espírito meditativo, interessado

mais pelas causas que pelas coisas e criou, parece, uma aversão ao Fórum romano (GRIMAL,

1992, p. 30). Suetônio destaca, além dessas condições “internas”, o fato de Virgílio apresentar

alguns problemas de saúde, o que inevitavelmente lhe afastariam do convívio público. Segundo o

biógrafo, o poeta sofria frequentemente de dores de estômago, de cabeça e garganta, além de

sangramentos (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 8-9). Nosso homem, então, provavelmente teria um

estilo de vida mais voltado a ambientes privados, recluso em alguns momentos, muito diferente do

que se espera de um cidadão da urbe romana. Talvez por isso o destaque de Grimal à educação do

poeta retrata que o mesmo se interessou mais pela matemática e medicina e dedicou-se pouco à

retórica (GRIMAL, 1992, p. 30). Tais conhecimentos buscam uma natureza mais interna, quanto a

segunda, é exercida essencialmente em público.

A imagem de Virgílio como um indivíduo recolhido e pouco visto em ambientes públicos é

apresentada na biografia escrita por Suetônio. Virgílio tinha apreço, segundo o biógrafo, em residir

na Campânia e Sicília, mesmo tendo uma casa em Roma e diversos amigos pela Capital do Império

(SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 13-14). Essa característica tão marcante aparece refletida em suas

obras, as Bucólicas e as Geórgicas, e podemos considerá-la como plausível e verossímil, visto a

quantidade de relações que reforçam esse elemento no poeta.

Se lhe faltava habilidade para expressar-se em público, Virgílio encontrou na arte uma saída.

Sua relação com a poesia apresentou-se desde cedo, segundo Suetônio, na adolescência Virgílio

teria composto alguns poemas, esses conhecidos por Catalepton, Priapea, Epigramas,Dirae, Ciris

e Culex (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 17-9). Todos com uma narrativa pastoril ao qual tratava-

se de um pastor sob a sombra de uma árvore. Podemos pensar que, de fato, para alguém de natureza

tão quieta e com tendência à introspecção, as palavras lhe fossem uma companhia mais interessante

do que uma multidão.

A busca pela perfeição de suas obras, principalmente a Eneida, é uma prova de que Virgílio

levava a construção de seus poemas como prioridade. Seu perfeccionismo e precisão da narrativa

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era tamanha que, segundo Oliva Neto, em seu leito de morte o poeta teria pedido para que sua obra

fosse queimada, visto que não estava completa (OLIVA NETO, 2014, p. 889-890). A epopeia,

como sabemos, termina de forma abrupta com Eneias derrotando Turno, fazendo com que sua alma

fuja para as sombras (Virgílio, Eneida, Canto XII, v. 952). Um final rápido e sem tanta

grandiosidade quanto esperado de uma narrativa rica como a Eneida.15 Outra prova do

perfeccionismo de Virgílio é apresentada por Suetônio, que afirma na biografia do poeta que a saga

de Eneias fora escrita primeiro em prosa, porém Virgílio não agradou-se e resolveu transformar o

texto em versos (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 23-24). A busca pela precisão da narrativa acabou,

indiretamente, tirando-lhe a vida. Em uma viagem para Grécia, para visitar um dos cenários

narrados na epopeia, Virgílio acometeu-se de uma doença e em decorrência desta chegou a falecer,

em Brundisium, no ano de 19 a.C. (OLIVA NETO, 2014, p. 889). Outro exemplo dessa busca pela

precisão da escrita está nas Geórgicas. Segundo Suetônio, contava-se que no processo de escrita

do livro, Virgílio escrevia muitos versos pela manhã, e o restante do dia era dedicado a revisá-los

e acabava por deixar poucos, enquanto descartava a maioria do que havia escrito (SUETÔNIO,

Vida de Virgílio, 22). Entretanto, estamos nos adiantando na trajetória do poeta. Antes de tudo,

devemos entender como e por quais lugares esse homem introspectivo e perfeccionista passou, com

quem aprendeu e como suas obras refletiram os ensinamentos e experiências acumuladas em vida.

Portanto, vamos buscar um pouco dos caminhos que percorreu Virgílio até tornar-se o grande poeta

da cultura romana.

1.1.1 Os caminhos de um poeta

A trajetória intelectual de Virgílio nos é tão difícil de precisar quanto outros detalhes de sua

vida. As informações não são claras e por muitas vezes inexistentes, o que torna nosso trabalho

mais aberto aos equívocos e erros. Ainda assim, buscaremos reconstruir pelo menos o que, segundo

as fontes e a historiografia, nos parece algo possível no caminho do poeta. Sobre as imprecisões,

Pierre Grimal, por exemplo, nos apresenta que alguns biógrafos colocam Virgílio como discípulo

de Epídio, um retórico que ensinava em Roma, e que este teve como condiscípulo o jovem Otávio

(GRIMAL, 1992, p. 37). Porém, o historiador mostra que seria praticamente impossível que ambos

15 Quando afirmamos que os últimos versos da Eneida não são tão grandiosos quanto sua narrativa, queremos

apresentar que o desfecho da saga de Eneias não deveria ser fechado com o seu duelo contra turno, mas sim, como

previsto nos Cantos anteriores, com a fundação do que iria ser Roma.

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fossem alunos do mesmo mestre, no mesmo período, visto a diferença de idade (enquanto Virgílio

estaria na casa dos vinte e dois anos, o futuro princeps estaria com apenas treze). Esses detalhes

devem ser percebidos e refletidos para que não incorremos em erros que notadamente poderiam

ser evitados. O que não exclui, outrora, a possibilidade de Virgílio e Otávio terem sido apresentados

nesse período, mas por outras vias ou pessoas.

O fato de Virgílio e Otávio se conhecerem e terem como mestre Epídio pode não ter

ocorrido, entretanto, a informação de que Virgílio teve contato com o retórico não nos parece

incorreta. O fato de ter grandes homens ao seu redor nesse período também é uma afirmativa

plausível, uma vez que a formação intelectual se passava em conjunto. Um exemplo disso é a

amizade criada por Virgílio e Coruiniuis Messala16 nesse período em Roma. Segundo Grimal, essa

amizade é sugerida pelo fato de Virgílio ter-lhe dedicado o poema intitulado Ciris (GRIMAL, 1992,

p. 38). Devemos notar, portanto, que a origem social de um romano não tinha uma relação direta

ou era determinante dentro dessas relações ou círculos intelectuais. Virgílio, advindo de uma

família provinciana, teria tido uma oportunidade similar a ascender dentro da estrutura romana tal

qual personagens nascidos em berços de ouro. Apesar disso, pelo que podemos perceber ao analisar

sua vida, ocupar grandes cargos na sociedade romana nunca fora seu objetivo principal. Segundo

Grimal, Virgílio só sentia gosto pela vida do espírito: estudo das leis que governam o universo,

descoberta do espetáculo oferecido pelo mundo, busca da serenidade interior e, no fundo de si

mesmo, um amor irresistível pela poesia (GRIMAL, 1992, p. 39).

Entretanto, o que se estudava no século I a.C.? Essa, sem dúvida, é uma pergunta vasta e

que, certamente, não conseguiremos abordar em sua plenitude aqui. Mais interessante do que saber

o que se poderia estudar nesse período é entender o que provavelmente interessaria ao nosso ilustre

poeta. Naturalmente, visto as características apresentadas até aqui, podemos aferir que seu interesse

se voltava, como já dito, às ciências mais internas. Dentre elas, a filosofia, certamente, foi um de

seus maiores interesses. Muito se discute sobre as inclinações filosóficas de Virgílio em suas obras,

entretanto, colocar o poeta em uma “caixa filosófica” mostra-se uma tarefa árdua, visto a

diversidade de referências que podemos encontrar em suas obras.17 Apesar disso, podemos aferir

16 Marcus Valerius Messalla Coruiniuis (64 a.C. – 13 d.C.): foi um político, militar, orador, poeta, gramático e patrono

dos poetas durante o governo de Otávio Augusto (REZENDE, Antônio Martinez de, TACITO. Diálogo dos oradores,

2014 p. 129, nota 55) 17 Para exemplificar a capacidade do poeta em articular e combinar diversos conhecimentos, no capítulo IV abordamos

como a doutrina órfica, oriunda da Grécia do século VI a.C., aparece e costura a narrativa do Canto VI. Junto a isso,

podemos perceber ideias como a da imortalidade da alma, de Platão, presente em toda construção narrativa da Eneida.

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com uma boa margem de certeza que Virgílio teve contato e foi um estudioso de algumas correntes

filosóficas de sua época. Dentre elas, a mais conhecida, talvez, tenha sido o epicurismo, o que não

implica dizer, obviamente, que Virgílio tenha sido um epicurista.

Não temos uma data precisa de quando ocorreu o contato de Virgílio com a doutrina de

Epicuro. Pierre Grimal, mais uma vez, busca afirmar que esse contato tenha ocorrido antes de 49

a.C., porém, o próprio historiador afirma que essa data não é muito confiável (GRIMAL, 1992,

p.40). Mesmo assim, certamente em um período próximo o poeta foi para Nápoles e encontrou-se

com Sirão para aprender sobre o epicurismo. Sabemos que o epicurismo, nesse período, era

difundido nos círculos intelectuais romanos. Lucrécio, um dos mais famosos epicuristas de Roma,

apresentava seu livro De rerum natura (Sobre a natureza das coisas). Suas ideias devem ter sido

bem difundidas na época, uma vez que Cícero escreveu um livro (Da natureza dos Deuses)

contestando algumas de suas ideias.18

Um outro ponto entre o epicurismo praticado em Roma era o de que, em tese, a doutrina

não aconselhava o envolvimento político de seus discípulos. Segundo Grimal:

O epicurismo não implicava nenhum compromisso político, e não se pode pensar que

alguma vez tenha constituído um “partido”. Isto teria sido, aliais, contrário ao espírito da

doutrina, que, diferentemente do estoicismo, aconselhava a não se participar da vida da

cidade, pois, dizia Epicuro, se nos imiscuirmos na competição política, se disputarmos as

magistraturas ou, de modo mais geral, se nos ocuparmos com assuntos públicos, não deixaremos de expor-nos ao ódio dos rivais que encontramos e dos cidadãos cujos

interesses não favorecemos (GRIMAL, 1992, p. 44-45).

O trecho acima nos permite pensar em mais um motivo de atração entre a doutrina filosófica

e Virgílio. Bem sabemos, nesse caso pela ausência de informação em sua biografia escrita por

Suetônio, que o poeta não buscou, de forma direta, exercer cargos políticos em Roma. Mesmo

ligado a pessoas de poder, até mesmo o princeps¸ Virgílio não teve inclinações dessa natureza.

Talvez tenha sido esse mais um fator positivo em que o epicurismo possa ter agregado a vida de

Virgílio: uma resposta ou posição ao qual a sua personalidade introspectiva tenha apreciado.

Grimal nos aponta também, em outra passagem, uma relação interessante entre as Bucólicas e o

período em que a série de elegias foram escritas e sua postura filosófica:

Pouco importam outros ensaios, eis que as bucólicas o ocupam inteiramente; compõem-

nas, dizem os comentadores antigos, entre 42 e 38 ou 38, ou seja, durante o período

18 Abordaremos esse assunto mais a frente, no capítulo III, ao falarmos sobre a relação entre as ideias difundidas em

Roma e a religião romana.

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conturbado de que falamos. Mas seria absurdo acreditar que as tenha escrito para obter

uma notoriedade capaz de protege-lo contra os confiscos. Na realidade, ele encontrou,

nessa poesia da terra, um modo de expressão que satisfazia nele o que há de mais profundo:

o amor pela vida rústica, que lhe parece trazer toda felicidade à qual os homens podem

aspirar e, ao mesmo tempo, graças à sua experiência epicurista, a convicção de que essa

vida no campo realiza os imperativos da filosofia que Sirão lhe ensinou (GRIMAL, 1992,

p.57).

O período demarcado pelo historiador são as disputas políticas entre Otávio e Marco

Antônio, ao qual falaremos mais adiante. O que nos chama atenção aqui é a posição que Grimal

coloca para Virgílio, na qual busca na poesia uma forma de expressão de suas convicções

filosóficas frente ao mundo. Também nos chama atenção a relação de dualidade que se apresenta

entre os escritos do poeta e sua época. Enquanto um busca a paz e tranquilidade, relatando a vida

simples e rústica do campo, o outro é marcado por diversas guerras e conflitos, sendo oposto à

poesia de Virgílio. Essa calma e posicionamento frente à vida é uma marca em sua escrita não por

acaso, como alerta Grimal, mas sim uma resposta que encontrou nos ensinamentos epicuristas de

Sirão e que o acompanharão em sua jornada.

Devemos salientar, porém, que o fato de Virgílio não ter ambições para com a vida pública,

no sentido de obter cargos e participar ativamente da política romana, não significa dizer que não

era um homem político, uma vez que sua área de atuação estava na poesia e não no Senado.

Sabemos que a maioria das suas obras foram dedicadas a grandes personagens da política romana,

não apenas a Otávio Augusto. Sua relação com Gaius Asinius Pollio19, por exemplo, mostra que

apesar de não buscar uma ascensão política, Virgílio estava cercado de homens poderosos e que,

certamente, exerceram influências múltiplas dentro de suas esferas. Devido a essas relações,

podemos aferir que o poeta foi um homem político, mesmo sem exercer diretamente cargos dessa

natureza. Essa relação entre Virgílio e as grandes figuras da sociedade romana lhe rendeu, como

bem sabemos, várias críticas quanto a sua obra: a historiografia por muito tempo não lhe poupou

da imagem de uma propagandista, um “mercenário” a serviço do princeps Otávio Augusto e que a

Eneida não seria nada mais que uma mera forma de legitimar o poder do herdeiro de Júlio César20.

Entretanto, trataremos desse assunto mais à frente. Por hora, devemos nos deter a entender que a

formação intelectual do mantuniano talvez tenha causado sobre ele mudanças na sua forma de

pensar, posições acerca de sua visão de mundo e cultura, assim como a interação com outros poetas,

19 Servidor nos exércitos de César, exerceu papel na administração da província da Gália Cisalpina entre os anos de 43

a 40 a.C. Virgílio dedicou-lhe a quarta e oitava éclogas das Bucólicas 20 Atualmente muitas pesquisas superaram esse lugar comum de apresentar Virgílio como um indivíduo passivo, o que

apresenta, segundo a nossa ótica, um progresso na visão apresentada sobre o poeta.

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políticos e intelectuais de sua época, colocaram Virgílio em uma situação favorável e de prestígio,

absorvendo e devolvendo ao mundo romano aquilo que lhe coube.

Acerca da formação intelectual do poeta, podemos pensar que em larga escala ela se fez

sobre autores e filosofias gregas. Suas leituras, como conseguimos ver, não se limitaram apenas ao

campo da poesia, nem das epopeias homéricas, o que, no século I a.C., apresenta-se como comum

dentro da formação intelectual desses homens.21 No caso de Virgílio, já na antiguidade, alguns de

seus contemporâneos não viram sua inspiração em Homero com bons olhos. Suetônio nos apresenta

que após a morte do poeta, em 19 a.C., muitos dos seus críticos o acusaram de copiar o poeta grego

em sua narrativa épica (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 43-45). A situação parece plausível, uma

vez que o biógrafo apresenta o nome dos detratores e as críticas aos quais eles submeteram o poeta.

Também apresenta um livro intitulado “contra os detratores de Virgílio”, escrito por Asconio

Pediano, no qual o autor sai em defesa do autor da Eneida (SUETÔNIO, Vida de Virgílio, 46).

Vale salientar que essa discussão foi alimentada (talvez ainda seja) até a metade do século XX.

Apesar de nos dias atuais a historiografia defender a originalidade da Eneida, é um lugar

comum falar na demasiada semelhança entre a obra de Virgílio e as epopeias gregas. Francis

Cairns, em seu livro Virgil’s Augustan Epic (1989) trata bem essa relação entre as obras homéricas

e a Eneida, partindo de semelhanças de temas, estrutura narrativa e, por fim, sua finalidade dentro

da sociedade romana. Apesar de grandes semelhanças, o autor deixa claro a originalidade da obra,

dando à epopeia de Virgílio um sopro de autenticidade. Cairns não é o primeiro nem o último a

fazer tais comparações, entretanto, o fato em si não é, necessariamente, surpreendente. Podemos

considerar como um fato previsível e, na verdade, apresenta-se até como esperado que exista

críticos e comentadores de grandes obras. Todavia, o que nos chama atenção e nos leva a refletir é

o quão imerso na cultura grega Virgílio esteve para receber tal crítica, da antiguidade até os dias

atuais.

Torna-se, assim, mais interessante perceber, como veremos no capítulo seguinte, a

absorção e transformação dessa cultura grega em uma forma romana. Portanto, percebemos, a partir

das críticas, o valor e peso da filosofia e arte grega na formação intelectual dos círculos que Virgílio

fez parte.22Já vimos que Virgílio travou contato com o epicurismo, mas devemos compreender que

21 No capítulo II dessa dissertação, ao comentar sobre a tradição literária da Eneida, aprofundamos acerca desse

assunto. 22 Podemos pensar, por exemplo, que algumas obras latinas foram escritas em grego, como é o caso do livro meditações

do imperador-filósofo Marco Aurélio.

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outras doutrinas e pensamentos filosóficos permearam seus estudos, visto a complexidade e

conhecimento do autor da Eneida sobre a mitologia e sua construção, no canto VI, do Orco visitado

por Eneias. Para narrar tais feitos da maneira que o poeta latino fez, se mostra necessário um

conhecimento profundo de elementos que compunham a tradição narrativa épica para que a mesma

possuísse uma lógica interna, mas também saber outras artes além da poética23, tarefa que não pode

ser adquirida apenas estudando algumas poucas ideias.

Voltando à trajetória do poeta, em 37 a.C. este já está integrado ao círculo de Mecenas, um

romano pertencente a uma família de ordem equestre de origem etrusca que vivia em Arretium

(GRIMAL, 1992, p.102). Podemos pensar em Mecenas como uma figura de fundamental

importância na vida de Virgílio, visto que este o patrocinava (assim como tantos outros poetas, a

exemplo Horácio), mas não apenas por isso. Provavelmente, o que aproximou estes dois homens

foram suas concepções similares de vida. Mecenas, assim como Virgílio, buscou alimentar a

necessidade de estabilidade social, o que podemos entender como uma grande aproximação com a

busca de legitimidade da gens Iulia na Eneida. Assim, ambos encontram na figura de Otávio

Augusto a chance de Roma voltar a ter uma estabilidade política. Para tanto, não mediram esforços

para que tais ideias fossem plasmadas em Roma, em um tempo em que a instabilidade era a única

constante dentro das variáveis que circundavam o cotidiano romano.

1.2 O seu tempo

Percorremos alguns detalhes da vida de Virgílio, mas tal caminho de nada nos serve se não

entendermos o tempo em que viveu. Não se trata de um “pano de fundo” para a história do poeta,

mas sim uma necessidade indispensável para alcançar nossos objetivos. Como falamos acima, não

podemos alienar o indivíduo retirando-o do meio que o cerca. As experiências externas são

essenciais para a construção desse homem, suas perspectivas e posicionamentos. Portanto,

devemos nos debruçar, ao longo de algumas páginas, sobre os eventos políticos que marcaram o

tempo de Virgílio. Dessa maneira, poderemos compreender os fatos ocorridos ao longo do século

I a.C. e pensar acerca dos possíveis impactos na vida do poeta.

23 Essa afirmação se faz importante para entendermos que a narrativa da Eneida está embasada não apenas em

elementos narrativos e estruturas da poesia épica, mas sim cheio de intenções e doutrinas filosóficas, mitologia e

pensamentos para uma conduta moral. Essa discussão se apresenta mais aprofundada no capítulo III.

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Virgílio viveu entre um processo de transição entre a República Tardia e o Principado Romano.

Sabemos que definições tão fechadas e rígidas quanto à periodização histórica não devem ser

levadas ao extremo, muito menos podemos pensar que esse processo está bem definido e que

ocorreu de forma abrupta. O historiador Fábio Favesani nos ajuda a pensar sobre a periodização na

história romana pela historiografia, ao qual demarcou (e demarca) com muita precisão essa divisão

entre República e Império a partir de eventos históricos (FAVERSANI, 2015, p.100-101). Para o

historiador essa linha é mais tênue do que costumamos pensar, sendo assim, muitas vezes, uma

divisão que não corresponde às características de cada fase da história romana. Estando ciente dessa

problemática, entendemos e utilizamos os termos “república” e “império” apenas a nível de nos

situarmos, mesmo que de forma artificial, dentro dessa abordagem inicial.

Todavia, o válido dentro dessa separação é apresentarmos, mais do que uma questão de

nomenclatura, o significado, muitas vezes, atribuídos a momentos de mudança de uma forma

política. Como bem sabemos, alterações dessa natureza nunca ocorrem por vias estáveis, sendo

resultado de diversas forças contrárias. Esse processo de mudança, no caso romano, é visto como

demasiado longo, sendo “fechado” a partir da vitória de Otávio na batalha do Áccio, em 31 a.C.

mas que vem sendo processado a partir de várias crises desde o século II a.C. Quando pensamos

nessas duas datas, distantes e que se ligam, historiograficamente, dentro do mesmo “fenômeno”,

podemos perceber que essa ruptura tão bem demarcada pode ser lido como um processo lento de

mudança, de “tentativas e erros”24. Logo, não buscaremos pensar sobre esse tempo (o século I

a.C.) como uma ruptura entre dois modelos de Estado tão bem definidos, mas sim como um

processo de instabilidade política que resultou no que conhecemos como Principado romano. Não

queremos nos agarrar ao mastro da periodização e defendê-lo, apenas utilizá-lo de maneira

instrumental e didática para organização de nossa temporalidade.

Visto tais questões, devemos nos perguntar, afinal, quais processos levaram às instabilidades

políticas na República romana? Poderíamos listar diversos casos, entre o século II e I a.C., ao qual

a República fora ameaçada. Desde a tentativa de reformas profundas dos Graco, até as conspirações

de Sula e Catilina, percebe-se que o sistema republicano não conseguia responder às dificuldades

em seu entorno. Outro ponto que podemos observar, além da instabilidade interna, é que ao longo

desse período alguns territórios são anexados como resultado de guerras, tornando externas

24 Com a expressão “tentativas e erros” não buscamos aqui fazer uma oposição entre as falhas de alguns personagens

romanos, como Sula, César ou os irmãos Graco, em oposição ao “sucesso” de Otávio Augusto. Buscamos a utilização

da expressão para enfatizar esse processo de mudanças políticas vividas ao longo do século I a.C. e somente isso.

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algumas necessidades em razão da mobilidade de legiões para defender novas províncias. Tal

questão geralmente é ofuscada na historiografia, visto o grande foco das revoltas citadas acima,

entretanto, devemos pensar que a expansão do território demarca também um movimento dentro

das estruturas sociais.25 Ainda que pensemos em Roma como uma prática imperialista, não

podemos descartar tais questões as quais poderíamos chamar de instabilidades externas.

Um problema advindo dessa troca cultural está, por exemplo, no culto e práticas estrangeiras

que chegam até Roma. Destacamos aqui o exemplo utilizado pelo o historiador Henrique Modanez

de Sant’anna ao qual apresenta como o culto a Baco, as bacanais, foram proibidas parcialmente em

Roma no século II (SANT’ANNA, 2015, p. 148-152). É interessante pensar que a interação cultural

dos povos também se reflete em práticas sociais, à qual o Estado deve regular e adequar-se ao

cenário, precisando assim garantir uma nova estabilidade com o novo elemento que surge dessa

interação. Quando pensamos na história de Roma, em diversos momentos essa assimilação cultural

provocou movimentos e tensões dentro da sociedade26. Partindo dessa lógica, devemos entender

que as guerras promovidas por Pompeu e César contribuíram, direta e indiretamente, para a

instabilidade da República. No caso de Pompeu, sua vitória sobre Mitriadres e outras conquistas

rendeu-lhe fama e, em alguns momentos, esteve sob o comando de todas as forças militares fora

da Península Itálica (SANT’ANNA, 2015, p. 112).

Tanto poder concentrado na mão de um único homem não poderia estar de acordo com ideais

republicanos, entretanto, Pompeu estava realizando um serviço ao Estado, sendo um cidadão

romano, logo, tal medida não fora vista como uma afronta à República. Mais tarde, junto com Júlio

César e Crasso, Pompeu iria compor o primeiro triunvirato e tomaria o comando da República por

quase uma década. Como aponta Mary Beard em seu livro SPQR, uma história da Roma Antiga

(2018), o primeiro triunvirato, em resumo, pode ser definido como um acordo informal para lançar

mão de sua influência combinada, para ajustar o processo político aos seus próprios interesses

(BEARD, 2017, p. 214). Dessa maneira, os três triúnviros utilizaram sua influência e manejo

político para garantir acordos e poder particular utilizando o Estado. Podemos perceber, portanto,

que a lógica do triunvirato participa do modelo republicano do Estado romano, mas, ao mesmo

tempo, mostra-se completamente contrário aos seus princípios, pois visa apenas ao interesse de

25 Devemos pensar nesse tópico desde questões logísticas, como o número de legiões para proteger a fronteira, designar

cargos e pessoas para administrar o novo território, até a assimilação de uma cultura e povos. 26 Os casos mais notórios acerca do Estado Romano alterando práticas religiosas e culturais certamente são as reformas

religiosas de Augusto e os editos de Milão e Tessalônica, servindo assim também de exemplo sobre o assunto.

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grupos particulares e não ao bem comum. Certamente poderíamos apontar outros momentos na

história da República romana em que esse princípio foi desrespeitado, entretanto, nos é mais

auspicioso comentar acerca das distorções desse modelo no século I a.C.

Como vimos, o poder máximo das tropas romanas dadas a Pompeu não fora motivo de medo

dos senadores romanos. Por outro lado, quando outro general romano obteve o imperium27 durante

a conquista da Gália, suas atitudes não foram vistas com bons olhos. Júlio César, talvez o romano

mais conhecido na história, tem uma vasta historiografia sobre seus feitos e conquistas. Até a sua

morte, nos Idos de março, é conhecido como um dos momentos mais discutidos acerca da história

romana. Porém, antes de falarmos dos Idos de março, devemos entender como a relação entre o

general romano e os senadores que o assassinaram chegou até esse ponto.

Comecemos então vendo o momento em que Júlio César resolveu atravessar o Rubicão com

suas legiões empunhando suas armas. O general havia, nesse ato, decretado uma guerra contra seus

inimigos. E quem eram? Pompeu e o Senado certamente viam na figura de César uma ameaça,

visto as tentativas de enfraquecê-lo. A rivalidade entre Pompeu e César foi construída desde a

antiguidade. Lucano, poeta romano do século I d.C., escreveu sua obra Farsália apresentando a

batalha entre os dois generais, dando assim traços dramáticos à guerra civil comandada por ambos.

Plutarco, em sua Vida de César, também atesta a favor da rivalidade entre César e Pompeu, sendo

um objetivo comum aos dois o domínio do Estado (PLUTARCO, Vida de César, XXVIII, 1).

Ademais, o gatilho para estourar a guerra civil fora a exigência feita a Júlio César (por parte do

Senado e de Pompeu) de abandonar a Gália e retornar para Roma, perdendo seu comando enquanto

general e suas legiões (CORASSIN, 2001, p. 60). Dessa maneira, a empreitada de Júlio César foi

de desafiar o poder do Senado romano e liderar uma marcha para derrotar seus inimigos, tomando

Roma de assalto. Porém, Sant’anna nos apresenta a possibilidade das motivações de Júlio César

serem ainda mais sutis do que uma questão pela disputa do poder. O historiador nos apresenta o

argumento de que o general romano atravessou o Rubicão para defender a sua honra

(SANT’ANNA, 2015, p. 127-128), sendo esse uma forma de legitimar sua invasão. Logo, para

defender sua diginitas Júlio César avança sobre a cidade com suas legiões e obriga Pompeu e o

Senado a fugirem, uma vez que não estavam preparados para a batalha. Esse momento marca o

início de mais uma guerra civil na República, em 49 a.C. Todavia, devemos compreender que a

27 Imperium era um poder temporário e pessoal, concedido com rituais solenes pelo tempo que durasse uma campanha

militar

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história política da República é marcada por rivalidades e competições entre os generais. A morte

de Crasso, ao tentar conquistar o império parta, é um bom exemplo sobre a necessidade de

apresentar conquistas militares e seus feitos. Porém, nota-se que no século I a.C. essas disputas

foram levadas para um outro campo e assim insurgiram diversas guerras civis (GOLDSWORTHY,

2016, p. 310).

Podemos perceber, ao analisar esquematicamente as instabilidades políticas desse período, que

o controle do Estado começa a ser tensionado por indivíduos e não mais por um grupo. Tal

concentração, cada vez menos rara e mais intensa dentro da temporalidade romana, ameaça e

empurra a República para o seu “fim”. Quanto a isso, concordamos com Beard ao falar que:

As instituições políticas de Roma, de escala relativamente limitada, haviam mudado pouco

desde o século IV a.C. Mal conseguiam estar à altura de governar a península Itálica e

eram ainda menos capazes de controlar e policiar um vasto Império. Roma confiava cada vez mais nos esforços e no talento dos indivíduos cujo poder, lucros e rivalidades

ameaçavam os próprios princípios sobre os quais a República se assentava. E não havia

nenhum anteparo para impedir que o conflito político descambasse para a violência

política assassina (BEARD, 2017, p. 215).

A instabilidade política e limitação do Senado dentro do cenário de disputas ávidas pelo

poder conduziram a rivalidade de César e Pompeu para o campo de batalha. Pompeu foi derrotado

em Farsalos, em 48 a.C., entretanto, a guerra arrastou-se por mais 3 anos, com batalhas na África

e na Hispania (BEARD, 2015, p. 282). Dentre esses acontecimentos, vale destacar o episódio de

morte de Pompeu. Este, ao ser derrotado em batalha acaba buscando refúgio no Egito. Ao pedir o

apoio de Ptolomeu XIII é morto e sua cabeça usada como prêmio para César. A intenção do

monarca egípcio era de ganhar o apoio de César contra sua irmã mais velha, que queria retirá-lo do

trono. Apesar de inimigos, Júlio César sente-se ofendido pela desonra que seu rival fora submetido

e acaba por tomar o partido da adversária de Ptolomeu XIII, Cleópatra VII (SANT’ANNA, 2015,

p. 129-130).

Tal posicionamento de César demonstra que sua rivalidade com Pompeu não estava acima

da estima e honra em ser um romano. A clementia, como bem destaca Beard, era uma virtude muito

exaltada pelo ditador28, o que, ironicamente, não era bem vista por seus opositores, mesmo esses

sendo perdoados de seus atos ao invés de punidos (BEARD, 2015, p. 289). Não podemos afirmar

28 Ditador era um título de magistratura que o Senado concedia em momentos de emergência. Outros romanos também

receberam esse título, como Sula.

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que Júlio César teria perdoado Pompeu, assim como fizera com a maioria dos seus rivais, mas

certamente desejava um fim mais digno ao seu opositor. Apesar disso, é interessante notar como a

propagação dessas virtudes de César aparecem, mais tarde, na figura de Eneias, sendo característica

do herói a dignitas e a pietas, também aclamadas pelo general romano. Mais tarde, Sêneca também

escreveria sobre a Clementia como uma virtude fundamental para um ser humano, usando como

exemplos dessa virtude o jovem imperador Nero e Otávio Augusto. Partindo desses apontamentos,

podemos notar que Virgílio não estava vivendo fora do seu tempo, estando assim atento e

percebendo a situação de Roma ao longo desses anos e também recebendo, em certa medida,

influência desses eventos. Tais influências podem ser notadas quando lemos sua obra mais distinta,

a Eneida. Como sabemos, ao longo da epopeia o poeta faz algumas menções a César e ao princeps

Otávio Augusto, mas não discutiremos isso agora. Por hora essa pequena informação nos basta.29

O que nos cabe é perceber como esses eventos aparecem na Eneida, suas exaltações e intenções,

em específico dentro do Canto VI, revelam a visão do poeta dentro dessa estrutura.

Voltando para a cronologia, após a guerra civil César retornou para Roma e celebrou seu

triunfo sobre seus rivais. Beard nos traz uma visão interessante acerca da comemoração sobre seus

pares feita por Júlio César:

Desfiles triunfais supostamente destinavam-se a celebrar vitórias sobre inimigos

estrangeiros, não sobre cidadãos de Roma. César expôs pinturas dos últimos momentos de

figuras destacadas do grupo de apoiadores de Pompeu: desde Catão desentranhando a si

mesmo a Metelo Cipião atirando-se ao mar. A aversão de muitas pessoas a esse tipo

particular de triunfalismo ficou registrada nas lágrimas das multidões quando essas

imagens foram exibidas (BEARD, 2015, p. 286).

A partir desse trecho, podemos perceber certas ambiguidades no comportamento do

general: ao mesmo tempo que exerce sua clementia, perdoando seus rivais, os transforma em

motivos de zombaria quando necessário para apresentar seus triunfos. Podemos entender, portanto,

a exaltação dessa virtude por parte de César como um meio de ganhar mais aceitação quanto a ser

virtuoso, apesar de não a exercer de forma real. Em resumo: o ditador utilizava-se dos meios

necessários para apresentar-se como o melhor, tanto no quesito militar (ao apresentar seus triunfos,

mesmo que isso significasse colocar seus pares em situação desonrosa), quanto por meio das

virtudes de um romano (a exaltação da clementia).

29 Sobre esse assunto, abordaremos com mais profundidade ao analisar o Canto VI, no capítulo VI dessa dissertação.

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Percebemos que essa autopromoção funcionou bem para Júlio César. Uma prova disso é o

seu legado, tanto para o seu herdeiro Otávio, como para a cultura romana, uma vez que César

passou a significar não um nome, mas um título. Também não podemos esquecer que após sua

morte César fora deificado, um outro forte indicio de como sua “propaganda” gerou frutos. Porém

essa fórmula de autopromoção não ficou restrita ao ditador, sendo uma ferramenta utilizada de

diversos meios pelo seu sucessor, Otávio Augusto. Não queremos aqui reafirmar o valor de

“propaganda” que a Eneida teve no principado de Augusto. Sabemos do peso que a epopeia teve

para legitimar o princeps,30porém, devemos entender que esse tipo de autopromoção não se

restringiu apenas aos escritos de Virgílio, ou mesmo de outros poetas. Walter Eder nos ajuda a

entender esse processo de legitimação. O autor aponta, entre outros elementos, a arquitetura como

uma marca de registro do poder do princeps. o culto aos ancestrais é registrado nos edifícios junto

à figura de Augusto, o que podemos entender como um meio de apoio do seu poder pela sua

linhagem (EDER, 2005, p. 30-31).

O preço a ser pago pela autopromoção foi a conspiração dos Idos de março, que levaram

alguns senadores a assassinar o general. Não podemos afirmar que essa fora a razão primeira para

a conspiração, sendo alegada, pelos conspiradores, que o ataque fora feito em defesa da dignitas

da República, que Júlio César, na posição de ditador, ferira várias vezes (BEARD, 2015, p. 290).

Mais uma vez, as virtudes romanas misturam-se com o jogo político e o poder, sendo formas de

legitimar atos contra adversários políticos. Não seria essa a primeira nem a última vez em que a

defesa do sistema republicano ocorreria de forma sangrenta31. Entretanto, podemos afirmar com

certo conforto que o objetivo dos assassinos de César não foi bem concluído. Como aponta Beard,

mesmo com todo o slogan de defesa dos princípios republicanos, o que restou foi mais uma guerra

civil e o estabelecimento permanente do governo de um só homem (BEARD, 2015, p. 291). O

esgotamento da população frente às instabilidades políticas parece ser um dos motivos (além de

tantas outras razões) para a busca da legitimação de Otávio no poder por parte de Virgílio. Em um

mundo assolado por tantas batalhas em algumas décadas, na qual o controle do Estado por parte

dos senadores falhou em diversos momentos, é razoável presumir que a necessidade de estabilidade

dentro da estrutura social seja colocada como prioridade, mesmo que isso tenha significado apoiar,

de todos os modos, um governo concentrado nas mãos de um indivíduo. Entretanto, o caminho até

30 Assunto discutido no capítulo IV. 31 Podemos lembrar aqui do episódio da morte de Tibério Graco, em 133 a.C. durante eleições no Capitólio.

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a consagração de Otávio no poder foi lento e com alguns desafios, dentre eles superar Marco

Antônio, um dos homens de confiança de César. Como veremos, a lenta preparação iniciada logo

após os Idos de Março terminará com o herdeiro de César já não sendo um soberano que procurava

assegurar seu domínio, mas o paladino enviado pelos deuses para salvar Roma e o Império

(GRIMAL, 1992, p. 39).

1.2.1 O horizonte de expectativa da Roma Antiga no século I a.C.

Após a morte de Júlio César uma nova disputa pelo poder se inicia. A busca para ocupar o lugar

do ditador foi ávida, de maneira simbólica, de início, e física em seu final. As duas grandes figuras

de destaque nessa disputa são, certamente, Marco Antônio e Otávio. O primeiro fora cônsul e um

leal guerreiro de César, tendo entrado em batalha pelo ditador em diversas ocasiões, principalmente

na conquista da Gália. Já o segundo, um jovem que poucos acreditavam que enfrentaria uma

contenda pelo poder (GRIMAL, 1992, p. 20), fora adotado por Júlio César e reclamava seu lugar

como herdeiro legítimo do ditador. Com pouca experiência em batalha e prestígio, é de se imaginar

que Otávio teria quase nenhuma vantagem frente ao seu concorrente, exceto o fato de ser filho

adotivo do general assassinado.

Partindo desse panorama, observar os eventos subsequentes aos Idos de Março se torna um

profícuo cenário para hipóteses e percepções das manobras políticas feitas por ambos os lados. Tal

é a força dessa proposição que Pierre Grimal aponta que:

Os historiadores têm se interrogado, desde a Antiguidade, em que medida Otávio era

sincero quando certificava o caráter divino do seu pai adotivo e ainda em que medida, ao

dar apoio à crença popular, mais não fazia do que usar para seus próprios fins a superstição

da turba (GRIMAL, 1992, p. 21).

Nota-se que a divinização de César e a legitimação do poder nas mãos de Otávio se faz pelo

apelo às tradições romanas. Uma estratégia certamente distinta a de seu opositor, Marco Antônio,

que buscou ocupar o lugar do ditador a partir do comando das legiões e respaldo militar. A grosso

modo, podemos inferir que enquanto um tentou conquistar o poder pelas armas, o outro se

concentrou em conquistar os espíritos32. Entretanto, sabemos que as armas foram necessárias nesse

32 Utilizamos a expressão “conquistar os espíritos” de Pierre Grimal, em seu livro O século de Augusto (1992), uma

vez que o título simboliza a forma de legitimação e luta política de Otávio.

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processo e que as batalhas travadas em mais uma guerra civil foram inevitáveis. Porém, antes de

findarem suas diferenças políticas, Marco Antônio e Otávio, junto com Lépido, dominaram a

República por cinco anos, através da lex Titia, ao qual os confere o título de “triúnviros do poder

constituinte” (GRIMAL, 2011, p. 40). Aqui inicia-se o chamado segundo triunvirato. A partir de

uma manobra política de Otávio, que revogara a lei que anistiava os senadores envolvidos na morte

de César, começou-se a perseguição e mais uma série de batalhas sangrentas pelo poder.

Os primeiros a sofrerem foram os assassinos de César. Plutarco nos conta que o Daimon33 de

Júlio César perseguiu seus algozes após sua morte e que, um a um, os caçou até não sobrar nenhum

(PLUTARCO, Vida de César, LXIX, 2). Sabemos que quem vingou o ditador foram seus herdeiros,

sendo representados na passagem do grego como esse demônio de César. Tanto Otávio quanto

Marco Antônio, unindo seus exércitos contra o inimigo em comum, dedicaram-se a punir os

conspiradores e levá-los a morte. Dentre as vítimas feitas nessa perseguição estão Cícero, Cássio e

Brutus, este último tendo cometido suicídio na batalha de Filipos (PLUTARCO, Vida de César,

LXIX, 13-14). A vingança pela morte de César marca um dos diversos momentos em que a

memória do ditador é utilizada como arma política, sendo também um dos últimos golpes sofridos

pela República, que agonizava. Não podemos afirmar, todavia, que as motivações para a

perseguição dos assassinos tenha sido apenas a obtenção do poder. Devemos compreender que

provavelmente, tanto Marco Antônio como Otávio, sentiam-se na obrigação de punir os

conspiradores, em respeito à própria dignitas do general. É nessa linha tênue entre a cultura e a

busca pela legitimação do poder que caminharemos.

Outro ponto importante acontece em 42 a.C., quando Júlio César é divinizado. Essa passagem

se torna uma das mais importantes do período, uma vez que graças a essa divinização Otávio ganha

o título de “filho de Deus” (BEARD, 2015, p.336) tendo agora não apenas uma legitimação

“jurídica” para governar (sendo herdeiro direto de Júlio César), mas também uma razão divina para

postulante ao posto deixado pelo seu pai. Se faz necessário atentar para esse ponto. Primeiro

devemos entender o peso desse argumento dentro da estrutura romana. Devemos lembrar, antes de

tudo, que essa é uma sociedade marcada por uma forte presença da religião na política, sendo

praticamente impensável uma análise dessa natureza com essas duas categorias separadas. O chefe

político (principalmente no Império) muitas vezes também exercia cargos sacerdotais. O título de

33 Daimon, segundo a tradição grega, seria um espírito que guia cada homem em sua vida e também em sua morte,

sendo um guia não apenas físico, mas também das almas humanas.

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Augustus, por exemplo, é retomado por todos os imperadores, desempenhando a função imperial

de modo que se torna inseparável da sacralidade (GRIMAL,2011, p. 60). Para além disso, a religião

mostrava-se presente no cotidiano dos romanos, seja pela realização de cultos e ritos como também

por festivais e celebrações. Não por acaso, o poeta Ovídio escreveu os fastos, um calendário

dedicado a descrever as datas e celebrações romanas.

Visto esses apontamentos, o fato de Otávio tornar-se filho de um Deus (Diui filius) não poderia

ser ignorado dentro dessa disputa política. Um indivíduo com natureza divina, dentro das

perspectivas lançadas acima, adquire uma força política que dificilmente poderia ser comparada.

Talvez por isso Marco Antônio, estando responsável pela parte Oriental do território romano, tenha

se outorgado como um “novo Dioniso” (GRIMAL, 2011, p. 60), a fim de não perder espaço dentro

dessa contenda. Todavia, as armas políticas não se limitavam às legitimações por meio de exércitos,

conspirações e parentescos divinos. A difamação também se mostrava como uma poderosa aliada

dos políticos. Ela é perceptível em diversos momentos da história romana. Percebemos que muitos

dos escritos, principalmente biografias, revelam, em alguns casos, um caráter estereotipado e

caricatural de alguns indivíduos.

No caso de Otávio e Marco Antônio, a difamação foi uma estratégia útil para o filho adotivo

de César, polarizando sua imagem com a do seu adversário. Enquanto Otávio se apresentava como

legitimo romano, filho de um deus e defensor de sua cultura, acusava Antônio de estar distante,

trocando a cultura romana pela oriental e não respeitando as tradições, oferecendo banquetes,

solenidades e celebrações restritas aos romanos pelos os egípcios (BEARD, 2015, p. 343). Apesar

de acharmos óbvia a constatação de que a difamação é uma arma política e que ao analisarmos

devemos ter esse fato em nossas mentes, não percebemos que nós mesmos, mais de dois milênios

depois, caímos no discurso gerado por Otávio Augusto. A imagem estereotipada sobre Marco

Antônio se fez dentre os seus biógrafos, mas também se faz um lugar comum da historiografia até

os dias atuais. Peguemos como exemplo um trecho do livro A morte de César, escrito pelo

historiador americano Barry Strauss:

Quando jovem, Antônio atraíra um bocado de atenção em Roma, onde se tornou famoso

por suas bebedeiras, por manter relacionamentos sexuais com muitas mulheres, por acumular dívidas e andar sempre em más companhias. Pela metade da casa dos seus vinte

anos de idade, Antônio já havia ultrapassado a fase mais “selvagem” de sua juventude.

[...] Os tradicionalistas sentiam-se ofendidos pelo estilo de vida dissoluto e degenerado

que Antônio reassumira, deleitosamente. Várias fontes referem-se a noites de selvageria,

aparições de “ressaca” em público, vômitos em pleno Fórum e passeios em carruagens

tracionadas por leões (STRAUSS, 2017, p. 30-31).

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A dicotomia gerada entre o casto e virtuoso Otávio em contraposição ao beberrão e

desrespeitoso Marco Antônio pode parecer visivelmente artificial, fruto de uma distorção de fatos

e construção de uma imagem. Por outro lado, negar os estereótipos mostra-se uma tarefa de relativa

complexidade, pois as fontes, principalmente as escritas, reverberam a “propaganda” positiva de

Augusto e a difamação frente à imagem de Antônio. Beard aborda tal questão em seu livro SPQR,

uma história da Roma Antiga, ao falar que:

Há também um ponto de interrogação sobre o quanto o estilo de vida de Cleópatra e Marco

Antônio foi de fato tão extravagantemente imoral, ou antirromano. Os relatos que

chegaram até nós não são uma completa invenção [...], mas é absolutamente claro que,

tanto na época quanto, ainda mais, em retrospecto, Augusto explorou a ideia de um

conflito entre suas próprias tradições romanas, ocidentais, profundamente arraigadas, e o

excesso “oriental” que Antônio e Cleópatra representavam (BEARD, 2015, p. 345).

Sobre esse trecho podemos inferir dois argumentos que nos norteiam frente à questão da

difamação: o primeiro é de criticar as fontes, como bem coloca Beard, entendendo que elas estão

imersas em um cenário de falar de quem foi derrotado, contrapondo a visão dos vencedores. O

segundo ponto é o de que devemos levar em conta que Otávio foi o vencedor da contenda, o que

lhe garantiu as honras na escrita da história, fazendo com que sua visão se perpetue mais

vividamente. Tendo essas perspectivas em mente, não podemos ignorar o poder dos elementos

subjetivos dentro dessa disputa política, que agem dentro da cultura e manobra da opinião pública,

além das diversas formas de legitimação do poder. As espadas foram as últimas a serem usadas,

sendo, antes disso, outras armas usadas em demasia e com maior efetividade. Podemos, por fim,

pensar na hipótese de que tais elementos subjetivos tiveram maior peso do que a experiência em

batalha ou número de legionários à disposição do exército de cada um.

O ápice, e talvez a mais notória, das manobras políticas de Otávio Augusto ocorreu em 32

a.C. Tomando posse do testamento de Marco Antônio, o herdeiro de César incriminou seu

adversário alegando uma conspiração contra Roma (BEARD, 2015, p. 343). Sob esse pretexto a

guerra os alcançou, finalmente, no ano seguinte. A mais famosa e decisiva desses confrontos

ocorreu no Áccio, na qual Otávio se consagrou vencedor. Há muitas razões para explicar a

importância dessa batalha e as razões pela qual Otávio foi o vencedor. Podemos falar que ela marca

o fim das disputas de Otávio e Marco Antônio, mas claramente percebemos, ao olhar o

desdobramento desse fato, que a batalha representa mais do que apenas o fim de mais uma guerra

civil.

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A vitória no Áccio é vista como a salvação de Roma, a ameaça que pairava sobre as águias

romanas havia sido extinta quando Marco Antônio resolveu fugir do campo de batalha com a rainha

egípcia. Tamanha fora a importância desse fato que há registros em diversos textos da época.

Destacamos aqui o trecho de uma elegia de Sexto Propércio que se dedica a narrar e a exaltar

Augusto em batalha, fazendo uma oposição das virtudes do princeps com as debilidades dos seus

adversários. Assim escreveu o poeta:

Est Phoebi fugiens Athamana ad litora portus

qua sinus Ioniae murmura condit aquae,

Actia Iuleae pelagus monumenta carinae,

nautarum uotis non operosa uia.

Huc mundi coiere manus: stetit aequore moles

pinea, nec remis aequa fauebat auis. Altera classis erat Teucro damnata Quirino,

pilaque femineae turpiter acta manu: hinc

Augusta ratis plenis Iouis omine uelis,

signaque iam patriae uincere docta suae

há um porto de Febo em margens atamanes

Onde o golfo murmura em águas Jônias

E o mar Ácio se faz monumento às mais Júlias:

Via fácil aos votos dos marujos.

Lá colidiram mundos – um Pinhal nas ondas

De augúrios desiguais por cada remo

Uma esquadra fadada por Teucro Quirino

Tinha lanças sem honra em mão femínea,

E aqui na Augusta nave, as velas vêm de Jove

Insígnias vencedoras pela pátria34 (PROPERCIO, Elegias, 4.6, v. 15-24)

Propércio apresenta Marco Antônio como um homem sem honra, nas mãos de uma mulher,

enquanto Otávio Augusto guia sua nave pela pátria. Não se coloca à serviço de outro se não da

própria Roma. A diferença dos dois comandantes faz-se na ideia de que “colidiram mundos”,

mostrando uma relação de alteridade entre os dois exércitos. Essa relação também pode ser

percebida na utilização do termo “Teucro” para referir-se a Marco Antônio, uma vez que o termo

pode ser empregado como um sinônimo de estrangeiro (GRIMAL, 2005, p. 445). Logo, temos um

exército luta pela pátria e o outro já é visto como um inimigo estrangeiro, não mais um cidadão de

Roma. Portanto, a vitória de Otávio Augusto representa bem mais do que apenas a consolidação

de seu poder dentro da estrutura política romana, mas sim a solução para as crises da República,

34 Utilizamos a tradução de Guilherme Gontijo Flores para analisar o trecho em latim.

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sendo a vitória sobre Marco Antônio uma vitória mais externa, ao defender-se de um invasor, do

que uma disputa interna entre dois romanos, como foram as disputas entre Júlio César e Pompeu.

Quanto aos derrotados, Marco Antônio e Cleópatra escaparam da batalha, mas encontraram

a morte pelo suicídio. Primeiro Marco Antônio, em seguida a rainha egípcia. Esse episódio põe fim

a maior crise civil da história romana, a qual inicia-se com a morte dos irmãos Graco (WOOLF,

2017, p. 159). Após a vitória, não restava mais obstáculos à frente do jovem Otávio, pouco

acreditado uma década atrás, acabava de se tornar o salvador do Estado romano. Essa salvação

pode ser entendida tanto na forma física, de ter protegido Roma das “garras” de Marco Antônio e

Cleópatra, como também uma salvação moral, representada sobre sua própria figura.

A partir da batalha vencida, começa uma nova jornada na vida de Otávio Augusto. O de ser o

princeps, o primeiro dos romanos, aquele que evoca para si todas as qualidades necessárias do

cidadão romano. Woolf destaca as qualidades de Augusto ao apontar o episódio em que o senado

romano dá a Augusto um grande escudo onde estavam elevadas Valentia, Justiça, Clemência e

Devoção (WOOLF, 2017, p.160). Nota-se aqui mais uma vez a reverberação das qualidades de

Júlio César e sua autopromoção. A clemência, tanto difundida pelo ditador, como rejeitada pelos

seus opositores por ferir o espírito republicano, agora é de fato consagrada como uma virtude

essencial de Augusto, honra dada pelo próprio Senado. Podemos pensar que nesse momento o

espírito republicano já está perdido, estando agora a estrutura política Romana concentrada na

moral e virtude de um só homem, apoiado pelo corpo do Senado. Esse mesmo Senado vai conceder

honrarias e o próprio título de Augusto ao princeps Otávio, selando seu poder constitucional dentro

dos muros de Roma.

Pensando nesse panorama da sociedade romana, podemos começar a investigar o impacto da

obra literária de Virgílio em seu tempo. Aqui falamos necessariamente da Eneida, apesar de

sabermos que seus outros escritos também contam e ajudam-nos a entender melhor a relação entre

o autor e a vida que o cercava, assim como a recepção de sua obra. Para tanto, pensamos em acordo

com o crítico literário alemão Hans Robert Jauss, o qual explica que a recepção de uma obra

literária pelo seu público é fundamental para entendermos seu impacto e compreensão. Segundo

Jauss, uma obra é destinada a um público, sendo a análise posterior feita não entrando nessa

equação. Em resumo: as obras não são escritas para serem lidas por historiadores ou críticos, mas

sim pelo seu público (JAUSS, 1994, p. 23).

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Tal afirmação, por mais óbvia que nos pareça, também nos leva a refletir sobre o nosso objeto

de estudo. Portanto, mostra-se impossível analisar o canto VI da Eneida sem levar em consideração

os aspectos externos e a recepção da mesma na antiguidade. A construção desse espectro externo

foi desenvolvida, nos dando a possibilidade de perceber as disputas e incertezas dentro do momento

histórico do poeta. Cabe-nos agora entendermos como a recepção dessa obra dentro da sociedade

romana pode ter sido positiva ou negativa. Valer-nos-emos de outro importante conceito na teoria

da recepção de Jauss, a qual denomina-se “Horizonte de expectativa”. O horizonte de expectativa

parte da ideia de que toda obra literária é recepcionada por seu público a partir de uma expectativa

sobre tal. Essa expectativa pode ser alcançada ou quebrada e parte de alguns critérios básicos,

dentre eles: as normas conhecidas do gênero em que a obra fora escrita; a relação implícita com

obras do seu contexto histórico-literário; a oposição entre a ficção e a realidade (JAUSS, 1994, p.

29).

Dentro desses critérios, uma obra que atende a essas perspectivas irá atingir o horizonte de

expectativa de seu público. Caso contrário, a obra poderá quebrar esse horizonte, causando uma

ruptura com algum padrão de gênero ou estilo literário. Segundo Hans Robert Jauss:

O horizonte de expectativa de uma obra, que assim se pode reconstruir, torna possível

determinar seu caráter artístico a partir do modo e do grau segundo o qual ela produz seu

efeito sobre um suposto público. Denominando-se distância estética aquela que medeia

entre o horizonte de expectativa preexistente e a aparição de uma obra nova - cuja

acolhida, dando-se por intermédio da negação de experiências conhecidas ou da

conscientização de outras, jamais expressas, pode ter por consequência uma "mudança de

horizonte"-, tal distância estética deixa-se objetivar historicamente no espectro das reações

do público e do juízo da crítica (sucesso espontâneo, rejeição ou choque, casos isolados de aprovação, compreensão gradual ou tardia) (JAUSS, 1994, p. 31).

Podemos perceber, portanto, que o horizonte de expectativa de uma obra se faz com elementos

intrínsecos ao gênero literário ao qual está vinculada, assim como os acontecimentos externos ao

autor. Pensando no nosso objeto de estudo, o horizonte de expectativa da Eneida está,

necessariamente, ligado ao contexto histórico que o circunda. Não por acaso, Virgílio demarca de

forma explicita alguns acontecimentos e enaltece os grandes personagens de Roma, em especial

Otávio Augusto e Júlio César, o que veremos nos capítulos seguintes. Por hora, pensemos na

recepção da Eneida enquanto uma obra de cunho literário. Se atentarmos a sua forma,

perceberemos que Virgílio segue um padrão de estrutura narrativa do épico, baseado nas obras de

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Homero35. Por sua vez, não busca quebrar uma estética, mas utiliza-se da mesma para moldar os

elementos e estruturas à sua realidade.

Se seguirmos as categorias de análise estabelecidas por Jauss perceberemos que a Eneida

alcança o horizonte de expectativa do seu público, sendo assim uma obra muito bem recepcionada

em seu tempo. E quem seria esse público? Em um primeiro momento devemos entender como a

elite intelectual romana, a que primeiro teve acesso e condições de leitura da obra. Estamos falando

dos próprios poetas, dos senadores e do princeps Otávio Augusto. A recepção entre estes pareceu

muito positiva, segundo Suetônio. O biografo afirma que mesmo antes de nascida, a Eneida já

causava uma expectativa positiva entre os interessados nas artes poéticas (SUETÔNIO, Vida de

Virgílio, 30). A fama da obra estendeu-se de tal maneira que Sexto Propércio a elogiaria em uma

de suas elegias, afirmando que tinha nascido uma obra mais grandiosa que a Ilíada (PROPERCIO,

Elegia II, 2.34, v. 60 – 65). Tais elogios e a rápida assimilação da epopeia dentro da sociedade

romana nos faz crer que a sua aceitação fora de imediato. Ovídio (Fastos, II, v. 543 – 548) e Sêneca

(Cartas a Lucílio, LXX) referenciaram tanto as aventuras de Eneias quanto o próprio Virgílio em

seus escritos que não podemos pensar na possibilidade que houvesse uma rejeição significativa das

ideias apresentadas pelo poeta da Eneida. Apesar dos críticos e comentadores, podemos entender

como positiva a relação da obra com o seu horizonte de expectativa. Tão positiva que a Eneida

rapidamente tornou-se um elemento de educação do cidadão romano, tornando um ponto de partida

para a formação do indivíduo no Lácio e nas províncias ocidentais nos séculos vindouros (WOOLF,

2017, p. 37).

Partindo dessas evidências, podemos aferir que a recepção da obra fora bem-sucedida.

Entretanto, o que de fato proporcionou essa aceitação? Por quais motivos uma epopeia faria tanto

sucesso em seu tempo? Sua aceitação adveio somente da habilidade de Virgílio com as letras ou a

saga de Eneias está para além de apenas a história do mito de fundação de Roma?

1.3 Virgílio: entre a estrutura e a agência

Por muito tempo atribuiu-se o sucesso da Eneida exclusivamente por esta fazer uma

“propaganda” do princeps Otávio Augusto. Além de realçar a história de Eneias e fazer do herói o

fundador de Roma, Virgílio ainda relaciona a genealogia de Eneias com a gens Iuli, o que torna

35 Trataremos de forma aprofundada sobre a tradição literária e estrutura da Eneida no capítulo II desta dissertação.

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Otávio Augusto descendente do primeiro romano. Essa posição é de fato interessante e o discurso

torna ainda mais legítimo a posição do princeps. Porém, podemos nos perguntar até que ponto a

obra se fez como uma propaganda ou legitimação do poder de Otávio Augusto.

Cabe destacar que ainda na antiguidade pensava-se que o objetivo da Eneida era simplesmente

imitar as obras de Homero e fazer um elogio à figura de Otávio Augusto (CONTE, 1999, p. 276).

Até meados do século XX essa percepção pouco se alterou. A historiografia creditava, em parte, o

sucesso do reinado de Otávio Augusto à Eneida, que fora utilizada desde o seu “nascimento”, em

19 a.C., na educação do cidadão romano, sendo esta mais uma forma de controle e justificativa

moral para o poder estar concentrado nas mãos de uma única pessoa. Analisando a vida de Virgílio,

Pierre Grimal questiona essa visão historiográfica e tenta pensar na capacidade de decisão do poeta,

colocando-o como um indivíduo autônomo e de capacidade de decisão, não apenas como um ser

passivo e obediente a seu mecenas. Segundo o historiador:

Virgílio, ao escrever a Eneida, não traíra as suas próprias convicções; ele permanecia fiel

à mística cesarista que animava já a Écloga de Dáfnis, e é talvez por isto, por causa desta

profunda sinceridade, que ele tão bem serviu as intenções de Augusto e contribuiu para

fornecer tão sólidos fundamentos espirituais ao regime imperial (GRIMAL, 1992, p. 64).

Tal concepção abre um novo olhar sob a figura de Virgílio: não é mais um mero copiador, ou

bajulador, pronto a fazer o que lhe foi mandado, mas sim um ser com liberdade de critério e que

fora mais guiado por suas convicções do que influenciado ou comprado para realizar uma obra por

encomenda. Esses elementos nos permitem pensar sobre a capacidade de agência do poeta, dando-

lhe poder dentro de suas ações. Uma evidência desse poder dentro de suas ações é apresentada na

própria obra, quando o mantuano agencia diversos elementos fora da cultura romana para chegar

ao cerne de sua narrativa, como podemos ver nos trechos analisados nos próximos capítulos.

Contudo, o debate historiográfico acerca da posição de Virgílio (ora o propagandista, ora um poeta

fiel às ideias de Otávio) continua e, por diversas vezes, percebemos uma tendência ao analisar a

Eneida apenas como uma mera propaganda.

Visando aportar nessa discussão, concordamos com a posição apresentada por Grimal e

buscamos pensar a posição de Virgílio enquanto indivíduo a partir da teoria da estruturação de

Anthony Giddens. Segundo o autor:

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Na teoria da estruturação, considera-se “estrutura” o conjunto de regras e recursos

implicados, de modo recursivo, na reprodução social; as características institucionalizadas

de sistemas sociais têm propriedades estruturais no sentido de que as relações estão

estabilizadas através do tempo e do espaço (GIDDENS, 2013, p. XXXV).

Na visão do sociólogo, a estrutura é composta, basicamente, de normas e regras sociais

impostas, direta ou indiretamente, pelas instituições sociais. Dessa maneira, a cultura, enquanto

elemento social, também faria parte dessa estrutura, uma vez que passa pelo crivo das instituições.

Podemos entender, dessa maneira, como o controle “espiritual” feito por Otávio Augusto amplia

seu domínio dentro da estrutura romana, uma vez que a faz a partir de elementos culturais. Dessa

maneira, o controle dos indivíduos estaria assegurado pela estrutura social. Entretanto, outro

conceito mostra-se útil dentro da teoria do sociólogo, na qual o denomina de agência:

Admite-se com frequência que a agência humana só pode ser definida em termos de

intenções, ou seja, para que um item de comportamento seja considerado uma ação, é

preciso que o realizador tenha a intenção de o manifestar, caso contrário o comportamento

em questão é apenas uma resposta reativa. (...) “Agência” não se refere às intenções que as pessoas têm de fazer as coisas, mas à capacidade delas para realizar essas coisas em

primeiro lugar (sendo por isso que “agência” subentende poder) (GIDDENS, 2013, p. 9-

10).

Giddens aborda a agência humana como uma ação prática capaz de causar mudanças na

estrutura. Nesse sentido, a relação entre agência e poder apresenta-se como lógica dentro de um

mecanismo social que é a teoria da estruturação. Em linhas gerais, a estrutura (no papel de

instituições) usaria seus mecanismos para ter uma reprodução social desejada dos agentes

(indivíduos). A agência, ou seja, a ação prática social dos agentes, poderia causar mudanças na

estrutura. Para Giddens, a dualidade estrutura-agência alimenta e dinamiza a sociedade,

transformando as relações sociais equilibradas. A contribuição mais clara dessa teoria social é, ao

nosso olhar, a capacidade de autonomia dos indivíduos em suas ações, sendo elas resultado de sua

experiência individual e também social, e não apenas uma relação de controle e dominação de uma

classe sobre outra. Sobre essa análise sociológica, Giddens afirma que se os atores são encarados

como idiotas culturais ou meros “portadores de um modo de produção”, sem qualquer

entendimento que valha sobre as circunstâncias, o caminho está aberto para a suposição de que

suas opiniões podem ser desconsideradas (GIDDENS, 2018, p. 80). Apesar de referir-se a análises

de sistemas sociais modernos, a percepção de excluir o indivíduo e sua capacidade de ação também

pode ser pensada para análises na antiguidade. Não queremos afirmar, contudo, que os indivíduos

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na Roma Antiga (ou qualquer outra sociedade antiga) fossem livres e completamente autônomos,

entretanto, não podemos retirá-los desta equação tão rapidamente.

Pensando no caso do poeta latino, podemos aferir que a estrutura atuaria como a cultura

romana, o que se esperava de sua educação, suas virtudes, sua religião etc. Absolutamente todo

elemento que emana da sociedade pode ser considerado uma parte da estrutura. Entretanto, as

experiências de vida, as possibilidades de aprendizado com a vida e com outras pessoas, o que viu,

sentiu e percebeu ao longo do seu caminho não faz, necessariamente, parte da natureza da estrutura,

mas sim do agente. O agente é aquele que tem em si algo próprio, que se guarda nas vivências e

acontecimentos de sua vida, o que escapa à vã tentativa de homogeneizar os indivíduos da estrutura.

Essa particularidade do agente garante que, ao entrar em contato com a estrutura, este não perca

sua autonomia. É-lhe posto, certamente, a possibilidade que a sua prática seja de acordo com o

que a estrutura impõe, que a sua posição concorde com a cultura que as instituições desejam, porém,

por mais que concorde com a estrutura esta é uma ação própria, pois carrega em si um pouco da

individualidade do agente. A essa ação, como vimos acima, dá-se o nome de Agência.

A agência, como bem coloca Giddens (2018), não é a intenção de fazer algo, mas sim a

capacidade do agente de fazer algo. Se Virgílio apenas pensasse ou tivesse a intenção de escrever

a Eneida ele não estaria praticando a agência. Entretanto, o fato de ele objetivamente ter escrito a

epopeia a elenca como uma ação de agência. A agência trata sobre o que é feito, não sobre o que

pensa fazer, pois, nesse caso, o pensamento necessita da ação para expressar-se. Essa afirmação

não invalida o contrário, de que toda ação é fruto de um pensamento, pois, consciente ou

inconscientemente, todas as ações são guiadas por ideias (ou pensamentos). Visto isso, podemos

pensar na relação estrutura – agente – agência a partir de um processo em que uma cultura comum

busca influenciar ou homogeneizar os indivíduos através de normas, regras e formas comuns. Os

indivíduos absorvem essa cultura comum e ao misturar-se com suas experiências individuais, suas

percepções, modos de pensar e assimilação produzem a agência36. Exemplificando, é por essa

questão que alguns indivíduos, em meio a uma situação e contexto comum, escrevem epopeias,

outros pegam em armas e outros apenas lamentam.

Dentro desse processo, a agência pode ressignificar o sistema social, dinamizando a

sociedade, transformando-a paulatinamente a partir de ações promovidas pelos agentes. Essa

36 Em termos matemáticos, poderíamos pensar essa relação através da fórmula Ce + Ca = A. Sendo Ce a “cultura da

estrutura”, Ca a “cultura do agente”, resultando em A, a “agência”. Mesmo a Ca sendo constituída, em parte, por

elementos da estrutura, devemos considerá-la como uma parte única desta fórmula.

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relação de continuidade ou transformação do sistema social foi denominado por Giddens de

Estruturação (GIDDENS, 2013, p. 29). Ademais, a estrutura, em certa medida, está tanto fora como

dentro do agente. Fora, por meio das instituições e regras, a estrutura se apresenta e media as

relações sociais dentro do sistema. Entretanto, ela também está, em um nível mais sutil, dentro de

cada um dos indivíduos que compõem essa sociedade, uma vez que estes foram criados e educados

dentro de tais normas e regras. Esse fenômeno, a qual Giddens denomina de “dualidade da

estrutura”, irá ser a base principal para a manutenção e continuidade de um sistema social, uma vez

que expressa uma mútua dependência entre a estrutura e a agência. Segundo o sociólogo:

Por dualidade de estrutura entendo que as propriedades estruturais dos sistemas sociais

são tanto meio quanto resultado das práticas que constituem esses sistemas. A teoria da

estruturação, assim formulada, rejeita qualquer diferenciação entre sincronia e diacronia

ou estático e dinâmico. A identificação de estrutura com coerção é também rejeitada: a

estrutura é ao mesmo tempo propiciadora e coercitiva e uma das tarefas específicas da

teoria social é estudar as condições na organização dos sistemas sociais que regem as

interconexões entre um papel e outro (GIDDENS, 2018, p. 78).

Partindo dessa ótica, não podemos diferenciar rigidamente a estrutura e agência, sendo

ambas um contínuo processo social no qual estão ligadas. Se analisarmos a organização social

romana do século I a.C., podemos pensar nessa dualidade da estrutura, ou seja, sua capacidade de

ser propiciadora de agências e também coercitiva, em termos de que a sociedade romana tem base

nas suas instituições, tanto que por elas se travaram diversas batalhas como mostrado nas páginas

anteriores. Entretanto, Roma também era composta, de forma mais simbólica, pelo cidadão

romano. O que carrega as virtudes, os deveres e direito de um indivíduo partícipe dessa estrutura

social. Sendo assim, a estrutura participa tanto dos processos individuais, formando uma carga

cultural que nivela os homens e os categorizam como “romanos”, inserindo-os dentro de um molde

social, como de processos coercitivos, ditando o que não é ser um romano, gerando uma alteridade

e, assim, seguindo a lógica dual da estrutura. Virgílio não era uma exceção à regra. Mesmo tendo

o papel de agente e tendo seu poder de agência, este também se apresenta com uma carga cultural

forte advindo do sistema social e que muitas vezes não busca o confronto com a estrutura, mas sim

sua contribuição. Nesse sentido, concordamos com a análise de Giddens ao afirmar que a estrutura

não deve ser concebida como uma barreira que impede a ação, mas como essencialmente envolvida

na sua produção, mesmo nos processos mais radicais e de ruptura de um sistema social (GIDDENS,

2018, p.79).

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Sobre a sua ação social prática, ou seja, sua agência, devemos refletir como ela ajuda na

continuidade do incipiente Principado romano, como assim é conhecido o governo de Otávio

Augusto. Primeiramente, devemos entender que a ação de Virgílio não estava necessariamente

ligada ao serviço direto do princeps. Concordamos aqui com Grimal ao afirmar que os poetas deste

século não estão, contra o que se disse, a serviço de Augusto, nem sequer, mais geralmente, da sua

ideologia. Nem são poetas cortesãos, como geralmente aparecem descritos (GRIMAL, 2011, p.

66). Por que podemos afirmar isso? Se pensarmos nos outros escritos, tanto de Virgílio como de

outros poetas (Propércio e Ovídio, por exemplo) perceberemos que os temas de seus textos não

são, em sua maioria, sobre Otávio Augusto ou por quem Roma deveria ser governada. Virgílio vai

falar, muitas vezes, dos bosques a da vida tranquila do campo, dos pastores37. Já Ovídio irá se deter

tanto na mitologia, com as metamorfoses, quanto a temas mais cotidianos e até polêmicos, como a

arte de amar. Este último sendo uma das razões para o seu exílio (GREEN, 2011, p. 41-42). Visto

isso, pensar nesse círculo de poetas como bajuladores ou mercenários não nos parece prudente.

Apresenta-se com mais sentido a hipótese de que a produção de Virgílio, ou seja, sua agência,

esteja mais ligada a uma busca pela harmonia e tranquilidade do meio em que vivia do que a escrita

de uma epopeia por encomenda. Ao pensarmos nos fatores externos que assolaram a sociedade

romana por quase um século, uma boa parte dele tendo sido vista pelo poeta, não nos parece difícil

pensar em uma escrita voltada para essa paz e harmonia social. E essa necessidade se reflete, como

citamos acima, em seus outros escritos, o que nos parece uma ação coerente com sua natureza mais

introspectiva, assim como os acontecimentos que o circundavam.

Após levantar essas hipóteses, o que nos cabe é a investigação do processo de formação

dessa agência, vulgo, entender como o poeta escreve sua obra. Quais seus referenciais? Que meios

se utilizou para produção da Eneida e, objetivamente, como podemos perceber os elementos

romanos e diferenciá-los de suas estruturas tradicionais? Para tanto, cabe-nos entender,

primeiramente, o que significa escrever uma literatura épica na Antiguidade, suas fórmulas

narrativas, os padrões que seguem e como estes padrões são seguidos ou quebrados dentro da obra

que analisaremos. É isso que veremos no capítulo que se segue.

37 Esse é o tema central dos seus outros escritos, os mais destacados sendo as Bucólicas e as Geórgicas.

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CAPÍTULO II: A TRADIÇÃO LITERÁRIA DA ENEIDA

A Eneida é considerada o maior expoente da literatura latina. Composta por mais de nove mil

versos, foi escrita por Públio Virgílio Maro que a deixou inacabada. Sua estrutura apresenta uma

divisão em 12 cantos, que narram a saga de Eneias, sobrevivente da batalha de Troia. Eneias tem

como objetivo fundar uma nova Troia, que posteriormente se tornaria Roma38. A narrativa do épico

escrito por Virgílio nos apresenta uma visão mitológica do nascimento do povo romano, porém a

obra aborda, para além do mito, questões pertinentes à época na qual fora produzida. Dessa

maneira, o estudo detalhado da Eneida nos revela aspectos da cultura, política e religião romana

no século I a.C. como veremos nesse capítulo.

Contudo, ao pensarmos nessa divisão um primeiro problema aparece: sabemos que a obra

literária carrega, para além do seu contexto histórico, uma tradição narrativa do seu gênero e se

insere, posteriormente, dentro da mesma. Visto isso, quais são os elementos que evidenciam essa

tradição? Como o contexto histórico aparece efetivamente na narrativa? Essas questões iniciais só

podem ser respondidas a partir da compreensão dessa tradição do épico e como ocorre esse

processo ao longo da literatura latina. Perante tais questionamentos, o presente capítulo levanta,

inicialmente, uma breve cronologia entre os épicos gregos e romanos, mostrando suas influências

na construção da narrativa de Virgílio, assim como apresenta as especificidades da obra latina,

demonstrando que esta inova e firma seu lugar na tradição literária a partir da construção de

elementos próprios. Após discutirmos essa questão podemos perceber os elementos que compõem

a Eneida e diferenciar sua forma (estilo, métrica) do seu conteúdo (significados e proposições).

Assim buscaremos responder às questões explicitadas acima.

O estudo de uma obra literária carrega consigo não apenas a análise de seu conteúdo, mas

também a compreensão do seu contexto histórico, sua tradição e relevância. Segundo Zélia de

Almeida Cardoso, o estudo de uma literatura sempre deve ser precedido de uma coleta de

informações sobre a época em que ela nasceu e floresceu (CARDOSO, 2013, p. IX). Visto isso, a

compreensão acerca da tradição literária latina, à qual a Eneida está inserida, é parte fundamental

nessa discussão. No presente capítulo abordaremos como elementos das epopeias gregas, mais

precisamente a Ilíada, a Odisseia e Os argonautas, estão presentes nas fórmulas narrativas da

38 A fundação da Nova Troia é, na verdade, a fundação da cidade de Lavínio, feita por Eneias. Seu filho, Ascânio,

também fundará uma cidade, esta com nome de Alba Longa. Por fim, Rômulo, descendente de Ascânio (e de Eneias)

fundará Roma.

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epopeia de Virgílio, mostrando que o autor romano conduz a saga de Eneias de forma similar a

outros heróis épicos39.

Entretanto, sabemos que uma breve análise acerca do conteúdo não explica a obra em sua

totalidade, uma vez que a narrativa contém significados para além de sua estética. Dessa maneira,

entender o contexto histórico é essencial para a análise do canto VI da Eneida. Não apenas para

situarmos o autor em um tempo e espaço, mas perceber as influências que estão fora do campo

literário e fazem-se presente em toda a epopeia. Uma dessas influências diz respeito ao imperador

Otávio Augusto, o princeps e fundador do principado romano (GRIMAL, 1992, p. 41 – 55)40.

Percebe-se, em toda a narrativa, uma ode a gens Iuli e especialmente à figura de Otávio Augusto.

Apesar de citado apenas três vezes ao longo da obra, sua imagem sempre está associada com seres

divinos, além de diversas citações indiretas (GREBE, 2004, p. 46).

A historiografia apresenta que a Eneida é também uma obra de propaganda sobre os feitos e o

poder do jovem princeps. Apesar do debate persistir atualmente, é lugar comum comentar que

Virgílio escreveu sua epopeia “por encomenda” (CARDOSO, 2013, p. 10).

2.1 A tradição literária: a tradição literária grega na Eneida

É difícil precisar quando romanos e gregos entraram em contato. Apesar disso, podemos inferir

que entre os séculos IV e III a.C. as duas culturas travaram contato e estabeleceram laços. Uma

evidência desse contato é a primeira tradução da Odisseia para o latim, feita por Lívio Andrônico,

em 240 a.C. (CARDOSO, 2013, p. 7; NELIS, 2010, p. 15). A partir dessa tradução, a literatura

grega começa a elencar-se dentro da educação formal romana, sendo lida e conhecida pelos

nobres41. Um século depois Roma dominaria a Grécia, tornando esse contato entre os dois povos

ainda mais intenso. Não por acaso alguns escritores gregos escreveram sobre Roma e seus feitos,

como por exemplo, Plutarco e Políbio.

39 O estudo da literatura latina perpassa, invariavelmente, pela literatura grega, uma vez que os romanos foram

fortemente influenciados pela cultura helênica. Visto isso, a tradição literária romana deriva das fórmulas literárias

gregas, principalmente a epopeia, gênero literário em que a Eneida foi escrita. 40 O conceito de “Império Romano” para o século I a.C. é pouco utilizado atualmente. Muitos historiadores, como

Pierre Grimal, vão referenciar a transição entre a República tardia e o reinado de Otávio Augusto como “principado”,

sendo Otávio o Princeps. 41 O termo “nobre” aqui refere-se ao grupo de cidadãos romanos livres que tinham condições de continuar seus estudos

formais após adquirir a toga viril.

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Portanto, no século I a.C. a cultura literária grega já se apresenta consolidada dentro dos muros

de Roma. O conhecimento acerca das narrativas homéricas já se apresentava avançado há pelo

menos um século (NELIS, 2010, p. 17) e certamente Virgílio bebeu dessas fontes. Ao remontarmos

um breve histórico sobre a formação intelectual do poeta, percebemos que sua educação se faz em

três ambientes: Mântua, Roma e Nápoles. Nesse processo de formação, como vimos no capítulo

anterior, Virgílio conheceu a doutrina epicurista, através dos ensinamentos de Sirão, entretanto não

se limitou apenas aos ensinamentos de Epicuro. Podemos afirmar, portanto, que ao longo de sua

vida Virgílio travou contato com diversas formas de pensamento e culturas, em especial as do

mundo helênico. Sobre esse ponto, destacamos o estudo de Damien P. Nelis (2010) que se debruça

acerca das referências e influências de outras obras na Eneida. Um dos pontos discutidos por Nelis

diz respeito a como tais traduções chegaram até Virgílio na antiguidade. Certamente essa é uma

problemática de difícil resolução, mas o autor levanta a hipótese de bibliotecas particulares entre

os nobres, as quais serviam de estudo e aquisição de conhecimento. Visto que Virgílio, em seu

processo de educação, principalmente em Nápoles e Roma, frequentou círculos de intelectuais,

podemos inferir que a hipótese de Nelis é plausível e que o poeta latino tenha entrado em contato

com as obras gregas nesse período. Outro estudo importante na qual concordamos é o de Brooks

Emmons Levy (1961), no qual o autor destaca que a Eneida não é uma simples cópia de outros

épicos gregos, tendo assim características próprias, mas que se baseia em Homero e Apolônio de

Rhodes na construção de sua narrativa (LEVY, 1961, p. 25). Levy analisa brevemente em seu artigo

alguns trechos e características de Jasão, protagonista do épico os Argonautas, e Eneias. Para além

desse ponto, compara-se as funções narrativas de personagens chaves como Anquises, pai de

Eneias, e Orfeu e Morfeu, tripulantes da Argo.

A influência da tradição literária grega, entretanto, não se limita apenas às fórmulas narrativas.

A métrica compõe, em grande medida, o estilo do poema. O hexâmetro42 predominava entre os

poemas épicos, seu ritmo tornava a declamação dos versos contínuas (MOTA, 2011, p.45). Nesse

sentido, o formato do poema também determinava o gênero literário ao qual o texto se encaixava.

Mas como sabemos que o hexâmetro chegou até Roma a partir de uma tradição grega? Houve

outros poemas épicos antes da Eneida?

42 O hexâmetro datílico é uma métrica própria da poesia épica. O hexâmetro datilico tem como característica utilizar

sempre uma sílaba longa seguida por duas sílabas breves, ou curtas. Tal característica limita o uso das palavras e

garante à poesia certa musicalidade, sendo possível cantar seus versos.

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Zelia de Almeida Cardoso nos ajuda a pensar nessas questões. O primeiro poema épico latino

foi escrito pelo poeta Névio, contemporâneo de Lívio Andrônico e narrava as guerras púnicas

(CARDOSO, 2013, p. 8-9). O texto escrito por Névio mistura o relato histórico com mitologia,

característica advinda dos épicos gregos. Não obstante, a epopeia não fora escrita em hexâmetros,

mas em uma métrica usada pelos latinos chamada verso satúrnio. Segundo Sander Goldberg, o

verso satúrnio foi estabelecido no Lácio por volta do século IV a.C. e fora muito usado em ritos e

canções antigas (GOLDBERG,2009, p. 431). Névio buscou em Andrônico a métrica latina,

apresentando uma característica própria e viva perante a cultura grega. Ao analisarmos outros

poetas e suas obras perceberemos que tais características começam a ser suprimidas, mas evidencia,

ao mesmo tempo, que a cultura literária latina não se inicia a partir da cultura grega, tendo raízes

mais antigas. Sobre isso, Joseph Farrel (2009) apresenta uma discussão sobre a origem e essência

da cultura literária latina, mostrando que antes do contato com a cultura helênica, os romanos já

produziam e expressavam a arte poética. Nesse sentido, a tradição literária romana é modificada

com a troca cultural advinda do contato com a Grécia, mas não começa e muito menos morre com

este evento.

Ênio foi outro romano que escreveu uma epopeia latina. Nascido em 239 a.C., teve como obra

Annales, na qual buscou retratar o nascimento da cidade de Roma, assim como Virgílio faria alguns

séculos depois, porém sem ênfase na mitologia e em heróis (WOOLF, 2017, p. 42). Ao contrário

de Névio, a epopeia de Ênio foi escrita seguindo a métrica do hexâmetro, um estilo

tradicionalmente grego e não utilizando o verso satúrnio. Essa substituição da métrica nos ajuda a

perceber a aceitação da cultura grega dentro dos muros (e formação intelectual) romana. É notável,

a partir do formato desses épicos, que o estilo de narrativa épica grega ganha espaço dentro da

cultura romana, até mostrar-se fixada no século I a.C.

A tradição narrativa grega, por fim, faz-se presente ao longo do épico virgiliano. Não apenas

no papel desempenhado pelos personagens, mas na trajetória do enredo até o seu desfecho. Além

das fórmulas narrativas empregada pelo poeta, o estilo do texto grego também é assimilado pela

literatura latina, sendo o hexâmetro o novo padrão de escrita incorporado nas obras. Podemos

entender, a partir desses elementos, que a Eneida está inserida em uma tradição narrativa do gênero

épico, agregando em seu conteúdo as narrativas de diversos autores, gregos e romanos. Talvez uma

das razões para o seu grande sucesso no século I a.C. se deva a sua versatilidade em construir uma

narrativa tão própria e, ao mesmo tempo, manter-se nos padrões de estilo e gênero. Vale salientar

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que essa tradição não desaparece com Virgílio, sendo este uma das principais influências de poetas

como Lucano, por exemplo. Dessa forma a contribuição de Virgílio para o seu tempo está além de

uma propaganda ordinária para o imperador Otávio Augusto, mas sim uma obra que perdura entre

os clássicos até os dias atuais e mantém sua influência de maneira atemporal.

2.2 Os princípios da narrativa épica na Eneida de Virgílio43

Percebemos que a tradição épica grega, mais precisamente a Iliada e a Odisseia, permeia de

diversas maneiras a Eneida. Seja pela estrutura narrativa na qual Virgílio utiliza ou a ligação entre

os personagens das epopeias, é inegável que a inspiração do poeta romano advém dessas grandes

narrativas. Para além dessas questões, também se nota que Virgílio segue os princípios da narrativa

épica apontados por Fancisco Murari Pires em sua obra “Mithistória”. Segundo o historiador, a

narrativa épica segue seis princípios, sendo eles: axiológico, teleológico, onomasiológico,

metodológico, arqueológico e etiológico. Abordaremos cada um desses princípios e buscaremos

demonstrar como estes se apresentam no épico virgiliano.

2.2.1 O princípio axiológico

O primeiro princípio é o axiológico e relaciona-se com a ideia de grandeza da narrativa. Os

épicos têm, por característica, narrar os grandes feitos, indicando o que deve ser contado lembrado

por sua importância e grandiosidade (GONÇALVES, 2014, p. 18). Segundo Pires, o princípio

axiológico identifica o critério determinante da seletividade episódica da narrativa, apreende a

dimensão de grandeza que a práxis humana comporta, especialmente relevando suas portentosidade

trágica (PIRES, 2006, p. 148). Visto isso, podemos perceber que a Eneida se encaixa nessa

definição uma vez que narra episódios de grandeza, tanto individual (na figura de Virgílio e outros

personagens), como dentro do imaginário romano ao contar as origens deste povo.

Virgílio, seguindo a fórmula narrativa de Homero, inicia seu épico pedindo às musas para

contar a saga de Eneias e mostrando a grandiosidade dos feitos realizados pelo então troiano44.

43 O presente tópico foi inspirado no capítulo homônimo do livro “Mithistória”, de Francisco Murari Pires e pretende-

se apontar em poucas páginas o que autor disserta ao longo de diversos tópicos, relacionando-o com o épico de Virgílio. 44 Não trabalharemos a citação do Canto I da Eneida neste capítulo pois a mesma encontra-se no capítulo IV,

reavivando esse debate.

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Ademais, o princípio axiológico marca o épos uma vez que narra os “episódios divinos”. Segundo

Pires:

Em conjunto com os feitos divinos, o épos canta também feitos humanos. Feitos que são

ações extraordinárias, façanhas singulares, acontecimentos admiráveis a comporem

histórias famosas. Histórias grandiosas, dotadas de Kléos45, cujas tramas bem se contam e

ouvem reiteradamente por todos os lugares, a projetar a rede de uma fama em toda a extensão do espaço, alcançando as alturas celestes, espalhando-se pelo horizonte como a

luz da aurora, difusão esta de fama que dá a justa medida de sua excepcionalidade gloriosa

(PIRES, 2006, p. 155-156).

A obra de Virgílio busca, também, essa projeção de extensão no tempo e no espaço,

cantando os feitos do primeiro a ser chamado de romano. A glória não é necessariamente o objeto

de busca de Eneias, na qual age mais pelo dever e tem como fardo divino fundar a nova Troia,

entretanto, em um sentindo amplo, podemos relacionar a glória como a realização de um objetivo

definido. No caso de Aquiles, a glória (Kléos) está em tornar-se conhecido e sua fama superar o

tempo. Já Eneias tem por objetivo conduzir os penates de seus ancestrais até a nova cidade que

fundará. A partir dessa perspectiva, ambos os heróis atingem a fama e a glória por realizar seus

feitos, e exatamente por serem feitos espetaculares merecem ser cantados pelos poetas e aedos.

Outro ponto destacável no princípio axiológico é a distinção entre os seres divinos e os

homens. A marca dessa separação está na tragédia, o infortúnio que sempre recai aos mortais, nunca

relacionado aos deuses nas narrativas. Dessa maneira apresenta-se o herói como um aspirante à

divinização de sua existência, mas ao mesmo tempo o mesmo está limitado ao sofrimento inerente

aos mortais. Pires assinala essa diferença na seguinte passagem:

A axiologia épica, assim, logo assinala, pelas lembranças inaugurais de seus Proêmios,

seu enviezamento trágico, destacando o duplo aspecto portentoso que define a moira da

grandeza heroica. Por um lado, então, o épos gloria a potência superlativa dos heróis, de

aspiração divina, a fundar-lhe seu destino privilegiado de honras distintivas, mas também,

por outro, firma igualmente a humanidade de sua condição pela impotência em evitar os

males e sofrimentos com que os desígnios dos deuses determinam as vicissitudes desses

feitos. Grandeza ambiguamente divina e humana, confluência de glórias e ruínas,

princípio de nexo trágico que caracteriza a moira do poder heroico (PIRES, 2006, p. 166).

Apresenta-se então a dualidade na figura do herói: próximo aos deuses, mas com um destino

ainda demasiadamente humano. A incapacidade dos heróis de evitarem o infortúnio lhes dá a

condição humana, por mais que seus feitos possam parecer de deuses. Dessa maneira Aquiles, o

mais forte dos aqueus, mesmo sendo um incrível guerreiro tem seu fim ao ser atingido no calcanhar.

45 Seguimos o autor ao traduzir Kléos por Glória, entendendo que na Eneida não é exatamente esse o adjetivo que

define Eneias, mas sim a Pietas, característica marcante do herói ao longo da epopeia e várias vezes citada por Virgílio.

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Assim como Eneias, que ao longo dos cantos é sempre relacionado ao adjetivo pietas, mas ao fim

do inacabado canto XII, ao ver Turno usando as armas de Palante, mata-o em vingança ao

companheiro (VIRGÍLIO, Eneida, Canto XII, v. 947 – 952). Essa linha tênue em que caminha o

herói se mostra presente em diversas facetas e imprime uma função ímpar dentro das narrativas

épicas. Ademais, o drama das tragédias como um ponto elementar nas narrativas épicas já fora

apontado na Grécia, no século III a.C. por Aristóteles. Sobre isso o filósofo comenta:

Quanto à mimese narrativa e em verso, é evidente que se devem compor os enredos como

nas tragédias: dramaticamente, e em torno de uma ação una, formando um todo e

estendendo-se até seu termo, tendo início, meio e fim, para que, como um ser vivo uno e

formando um todo, ela{a mimese} produza o prazer que é próprio a esse gênero de poesia

(ARISTÓTELES, Poética, seção 23).

Ao apontar que os épicos deveriam utilizar-se de elementos dramáticos tal qual as tragédias,

Aristóteles sugere uma forma de fazer a escrita dessas narrativas conforme a arte da poesia épica.

Ambas as passagens reforçam que o princípio axiológico atestado nos épicos é uma marca do

gênero e que, sendo assim, mostra-se uma condição importante para a estruturação do enredo. A

Eneida, portanto, não é uma exceção. Para exemplificar esse tom dramático das tragédias,

apontamos uma das passagens mais marcantes da Eneida na qual Virgílio narra a morte da rainha

Dido, no Canto IV (VIRGÍLIO, Eneida, Canto IV, v. 642 – 705), a qual comete suicídio pela fuga

de Eneias de Cartago a mando dos deuses46. Eneias, impossibilitado de firmar casamento com Dido

é orientado por Mercúrio a abandonar Cartago e sua rainha, pois esse não é o seu destino

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto IV, v. 223 – 276).

2.2.2 O princípio teleológico

O princípio teleológico busca na narrativa um sentido de utilidade nas ações humanas narradas,

o que mostra ser valiosa a ação e, portanto, deve constar na memória de um povo. Dessa maneira,

segundo Pires, o princípio teleológico enquadra a narrativa na disputa entre a futilidade de uma

ação prazerosa e a perenidade de uma memória celebrante (PIRES, 2006, p. 148). Pensando sobre

esse princípio, devemos entendê-lo como a finalidade de um texto épico numa sociedade: para

46 Não trabalharemos a passagem nesse capítulo, uma vez que será abordado no capítulo III, ao falarmos sobre os

Campos Lungentes, um dos espaços do além-vida ao qual Eneias encontra-se com Dido.

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além do simples divertimento nos banquetes e de fazer poesia, as obras literárias servem também

para educar e formar o cidadão, no caso, o cidadão romano. Caso este da Eneida, que desde a sua

criação tornou-se material para a formação romana (WOOLF, 2016, p. 37). Dessa maneira, o

princípio teleológico é uma tentativa de imortalizar o indivíduo dentro das suas ações humanas.

Nesse caso, o que fica impresso na continuidade a partir da memória são os valores demonstrados

e narrados ao longo do épico.

Talvez o exemplo mais vivo dessa busca pela imortalidade em realização de ações e valores é

Aquiles e sua ida ao combate nas praias de Troia como realização dessa imortalidade a partir dos

seus feitos. Mais uma vez é na figura do herói que centraliza o princípio. Segundo Pires:

O herói é quem, por determinada excelência se distingue, se diferencia, se singulariza, e,

pois, se dissocia da massa homogênea e indistinta dos homens comuns, todos iguais uns

aos outros. A determinação de um nome, que a memória dos aedos celebra, assinala tal identidade individual diferenciada. Mas se, por um lado, o herói se situa, por sua

excelência, acima e dissociado do plano meramente humano, por outro, por sua condição

mesma de mortalidade, o herói compartilha o destino comum definidor do fato humano

genérico, o qual indiferencia todos os homens. O herói, porque humano, é mortal, e tem

no termo da morte seu fim necessário, inevitável, inescapável (PIRES, 2006, p. 183).

O trecho apresenta o herói como o que é destacado do humano comum, entretanto continua

preso ao mesmo destino de todos os outros: a morte. E como escapar de algo que, a tudo que é

mortal, é inescapável? Apresenta-se então a necessidade de eternizar-se nas realizações, ao ter essa

característica divina a partir das ações e valores deixados. Visto isso, podemos evidenciar nos

épicos a postura dos heróis quanto a valores passados dentro de cada contexto histórico a que lhe

confere: Aquiles e sua defesa da honra de Pátroclo, mesmo que isso prediga sua morte 47; ou Eneias

e sua piedade com seus companheiros de batalha insepultos, uma vez que o troiano vê, como parte

do seu dever, realizar os ritos funerários de seus companheiros (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v.

176 – 184; 212 – 231; 337 – 381). A realização desses feitos (valores) torna os heróis nas narrativas

épicas, de fato, heróis: mortais que são relembrados por seus feitos e celebram o Kléos imortal dos

heróis. Pelas honras que a teleologia epopeia consagra, os heróis são assim divinizados (PIRES,

2006, p. 192).

47 Aqui referimo-nos ao episódio da Ilíada em que Aquiles declara sua intenção de vingar e honrar Pátroclo, voltando

ao campo de batalha em busca de enfrentar Heitor e ouve essa prenunciação de que morrerá após sua vingança. Ver

Iliada, canto XIX, v. 400 - 423

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2.2.3 O princípio onomasiológico

O referente princípio trata da questão do sujeito na escrita da epopeia. Garante, assim, a

identidade do poeta ao qual escreve a narrativa mítica, relevando assim objetivamente ser o autor

do discurso. Pires nos apresenta tal composição tanto nas obras de História, utilizando como

exemplo dessa categoria Tucídicles e Heródoto, como nas epopeias de Homero e Hesíodo. (PIRES,

2006, p. 205) Em ambas o princípio onomasiológico apresenta-se adequado a composição do texto.

Entretanto, enquanto nas obras dos historiadores48 prevalece a nomeação do autor da obra, ao qual

explica seus objetivos no proêmio, nas obras poéticas tal princípio apresenta-se a partir da fórmula

narrativa de invocação das Musas (PIRES, 2006, p. 207). Vejamos o exemplo de Heródoto no

proêmio do seu livro Histórias:

Esta é a exposição da investigação de Heródoto de Túrio, para que os acontecimentos

passados não sejam extintos entre os homens com o tempo, e para que os feitos grandiosos

e maravilhosos, realizados por helenos e outros por bárbaros, não fiquem sem glória, e

expor os motivos pelos quais guerrearam uns contra os outros (HERÓDOTO, Livro I.)

Percebe-se a marcação do sujeito logo na primeira frase do proêmio, o qual destaca que o

livro tratará da investigação feita por Heródoto de Túrio. Apresenta-se, assim, o princípio

onomasiológico a partir da nomeação do autor, dando a este a posição de destaque dentro do que

será narrado. Em tais obras, a condição do autor é prestigiada por ser este o principal personagem

na narrativa de sua obra, diferentemente do que acontece nas epopeias ao qual o poeta é o meio

utilizado para a narrativa conhecida pelos deuses chegue até os homens. A distinção deste princípio

da narrativa nessas diferentes categorias fica claro quando observamos, por exemplo, a fórmula

narrativa usada por Homero na Ilíada, no canto I:

Canta-me a cólera, ó deusa!, funesta de Aquiles Pelida

(HOMERO, Ilíada, canto I, v.1.)

O mesmo princípio aparece também no canto I da Odisseia, ao qual o aedo canta:

O homem multiversátil, Musa, canta, as muitas errâncias,

Destruída Troia, Pólis sacra

48 Aqui utilizamos o termo “historiadores” para representar os autores que escreveram obras de história, seguindo a

adequação de Francisco Murari Pires

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(HOMERO, Odisseia, canto I, v.1 – 2)

Tal fórmula cria uma conexão entre o aedo (ou poeta) e as Musas, na qual este transmitirá,

a partir do canto (ou da escrita, no caso de Virgílio) a narrativa conhecida pelos deuses. Portanto,

o sujeito, nas epopeias, mostra-se como um instrumento mediador entre o divino e os homens.

Nessa conexão é que reside o princípio narrativo aqui exposto.

Pensando o princípio onomasiológico para o épico romano, a partir do estilo de composição

da Eneida, é possível verificar que Virgílio utiliza ambas as fórmulas apresentadas acima, fugindo,

em um primeiro plano, do padrão seguido nas demais obras épicas que o inspiraram. Vejamos os

primeiros versos do Canto I no qual o poeta latino escreve:

Arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris

Italiam, Fato profugus, Lauiniaque uenit

As armas canto e o varão que, fungindo das plagas de Troia Por injunções do Destino, instalou-se na Itália primeiro

E de Lavínio nas praias.49

(Eneida, Canto I, v 1- 2)

Apesar de não usar seu nome diretamente, tal qual Heródoto no livro I de Histórias, Virgílio

deixa o leitor saber quem está escrevendo a partir dos feitos que o poeta já havia realizado. Ao falar

“sou aquele que outrora modulei ao compasso da doce avena” refere-se às Bucólicas, a primeira de

suas obras (OLIVA NETO, 2014, p.73). Também se refere a outra grande obra, as Geórgicas, ao

referir-se ao colono remisso e às fainas da terra. Essas evidências assinam a obra e torna o autor

em sujeito no prôemio do épico, apresentando-se assim o princípio onomasiológico a partir da ótica

de uma obra História.

Entretanto, não podemos esquecer que a Eneida é uma obra poética do gênero épico, ao

qual, segundo a tradição literária que dissertamos ao longo destas páginas, remete-se a uma fórmula

narrativa adequada ao seu gênero. Dito isso, nos versos seguintes Virgílio apresenta sua invocação

às Musas, pedindo para que estas recordem a ele a história que deverá ser narrada:

Musa, Mihi causas memora, quo numine laeso,

quide dolens regina deum tot uoluere casus

insignem pietate uirum, tot adire labores

49 Todas os trechos da Eneida utilizadas para análise na presente dissertação foram traduzidas por Carlos Alberto

Nunes. Utilizamos esta tradução por considerarmos a de melhor compreensão para as questões discutidas ao longo dos

capítulos.

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impulerit. Tantaene animis caelestibus irae?

Musa! Recorda-me as causas da guerra, a deidade agravada;

por qual ofensa a rainha dos deuses levou um guerreiro

Tão religioso a enfrentar sem descanso esses duros trabalhos?

Cabe tão fero rancor no imo peito dos deuses eternos?

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto I, v.9 – 11)

Nessa passagem Virgílio pede a inspiração da Musa para contar sua história, pede que ela

lhe recorde tais acontecimentos. Assim, o princípio onomasiológico no épico também é mantido

com sua fórmula original. Porém, uma dúvida pode ser levantada quanto à razão de ambas as

formas aparecem na Eneida: por qual motivo Virgílio buscou destacar-se da forma usual de

apresentação do proêmio? Podemos pensar, a partir dessa pista, na hipótese de uma tentativa de

narrativa histórica a partir do épico na Eneida?

Segundo Pires, a questão do sujeito na literatura antiga segue por algumas transformações.

O autor aponta que nas obras de Hesíodo o proêmio já apresenta a nomeação do aedo junto da

invocação das musas (PIRES, 2006, p.216). Portanto, a utilização de Virgílio de ambas as fórmulas

narrativas não se apresenta necessariamente como uma inovação, mas resultado de um fenômeno

que já acontecia dentro de outros épicos gregos, sendo assim um processo de transformação do

próprio princípio onomasiológico na tradição literária greco-romana. Virgílio toma em seu poema

essa transformação, assinando o seu texto de forma indireta. É interessante notar que alguns códices

retiraram os versos iniciais do proêmio da Eneida, por considerá-lo excludente, porém tais versos

foram conservados pelos próprios gramáticos romanos Donato e Sérvio, ambos do século IV

(OLIVA NETO, 2014, p.73).

O princípio onomasiológico, por fim, nos abre uma nova margem de discussão: ao

identificar o autor na obra, podemos definir que a narrativa construída compreende uma visão de

mundo que perpassa suas experiências, crenças, recordações e esquecimentos frente ao que se

deseja contar. Essa seleção parte, necessariamente, do objetivo que o autor tem ao escrever e,

consequentemente, plasma sua narrativa de modo que alcance os seus objetivos. Partindo desse

raciocínio, podemos inferir que a verdade, que nos épicos se sustenta a partir de uma visão divina

sobre os fatos cantados, torna-se comprometida, uma vez que agora está ligada à figura do autor?

Afinal, analisando o caso da Eneida, o que Virgílio narra, segundos os princípios narrativos, é uma

verdade divina acessada pelas Musas ou uma visão construída dessa verdade?

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2.2.4 O princípio metodológico

Para responder essas questões Francisco Murari Pires apresenta-nos o princípio

metodológico da narrativa. Ao analisar a obra de Tucídicles, o autor percebe a forte relação entre

a questão da verdade e o princípio metodológico: a verdade está condicionada ao fato da presença

(PIRES, 2006, p.238). Na obra do grego, ao falar que a guerra que se propõe a narrar é mais

importante que as anteriores, Tucídides demarca o passado a partir do presente. Esta só é a mais

importante, afinal, por ser a que pôde presenciar e assim relatar. A verdade construída então se

submete ao peso do relato, de estar contemporâneo aos fatos narrados. Entretanto, ao refletirmos

sobre uma obra épica, na qual a temporalidade está para além da presença dos aedos e poetas, como

esse princípio pode ser aplicado de tamanha forma?

A aplicação deste princípio narrativo nas obras épicas se dá, mais uma vez, a partir do papel

das Musas: estes seres divinos, atemporais, que por esta condição presenciaram os acontecimentos

narrados nos épicos e, portanto, expressando-se através da figura do aedo, podem relatar e garantir

a verdade destes cantos. Um ótimo exemplo desta relação das Musas e a verdade se encontra no

canto II da Ilíada, nos versos 484 ao 488, que diz:

Musas, que o Olimpo habitais, vinde agora, sem falhas,contar-me pois sois divinas e tudo

sabeis; sois a tudo presentes; Nós, nada vimos; somente da fama tivemos notícia

Os nomes, sim, revelai-me, dos chefes supremos dos Dânaos.

(HOMERO, Iliada, Canto II, v. 484 – 488)

O trecho refere-se às musas como sabedora de tudo pois, naturalmente, a tudo esteve

presente. Em contrapartida, o aedo afirma que não sabem pois nada viram e, portanto, precisam

consultá-las para a revelação. Podemos traçar, a partir desse trecho e do princípio metodológico,

que a verdade no épico está necessariamente dependente do contato do aedo ou poeta com algum

ser divino, sejam musas, deuses ou seres infernais, como acontece no caso da Eneida quando

Virgílio pede que as criaturas infernais permitam que seja narrado o espaço dos mortos

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 264 – 267). Segundo Pires, a capacidade de extrair informações

divinas e cantá-las apresenta uma posição de destaque do aedo em comparação com outros mortais

(PIRES, 2006, p. 241). Este torna-se, acima de tudo, uma ponte entre o divino e o existente. Esse

fato não passa despercebido. Na Odisseia, por exemplo, Odisseu elogia o aedo Demódoco pela sua

extraordinária capacidade de ser essa ponte (HOMERO, Odisseia, canto VIII, v. 486 – 491). Na

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Eneida, os deuses revelam aos vivos informações acerca de conhecimentos restritos aos seres

divinos. Por exemplo, ao descrever o Tártaro, Eneias não entra dentro do espaço propriamente

dito, mas escuta de Sibila, que, por sua vez, escutou da deusa Hécate, o que existe e quem habita

esse espaço sombrio (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. – 562 – 568). Além, portanto, do mito ser

rodeado, geralmente, com uma roupagem religiosa, também há uma relação de sacralidade quando

o divino conta ao mortal sobre a história.

Vale perceber que se apresenta uma dicotomia interessante entre Musa-aedo (ou mortal),

ao qual a Musa é o ser atemporal, que a tudo viu e a tudo sabe e, logo, detém a verdade. Por outro

lado, o mortal é aquele que nada sabe, e por isso roga as Musas que o conte para que ele possa

narrar essa saga épica. Dessa maneira, como apresenta Pires, a referenciação do sujeito da narrativa,

pelo nexo do aedo com a figura das Musas avaliza, garante, a verdade do relato dos fatos passados.

Dessa maneira, a verdade narrativa e a palavra divina do aedo constituem o princípio metodológico

da narrativa mítica (PIRES, 2006, p. 245 - 246).

Logo, na Eneida, Virgílio segue esse princípio ao pedir que as Musas o recordem, ou seja,

deem ao poeta acesso a essa verdade, até então velada para os homens, sobre a fundação de Roma

(Eneida, Canto I, v. – 8 – 9). Ademais, percebemos que o poeta é, de fato, um mediador entre a

verdade divina e os homens. Essa configuração transforma a narrativa épica em uma verdade

inquestionável, visto que é o testemunho de um ser divino sobre um fato que só pôde ser vivenciado

por tais seres atemporais. Para além disso, por tratar-se de uma verdade divina, o texto em si segue

uma lógica sacral, visto que, em última instância, contempla uma comunicação entre o divino e o

mortal. Devemos entender aqui que o conteúdo do épico também é uma forma sagrada, pois, como

já falado, reveste-se de ideias religiosas. O que estamos tratamos aqui, porém, é de apresentar que

o próprio método de obtenção dessas verdades sacraliza o texto, por ser uma ponte inquebrável

entre os deuses e os homens. Em linhas gerais, o épico tem uma dupla faceta religiosa, por tratar-

se de mitos, rituais e apresentar essa roupagem sacra, mas também na própria obtenção desse

conteúdo nota-se que há um caráter religioso, uma vez que somente pode ser obtido a partir de uma

verdade divina. A partir dessa lógica, uma pergunta surge naturalmente: o que garante que a

verdade revelada pelas Musas seja inquestionável? Como saber se essa verdade é, de fato, uma

verdade?

Francisco Murari Pires nos apresenta, a partir desse questionamento, que o princípio

metodológico também pode ser chamado como um princípio de dominação (PIRES, 2006, p. 247).

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Dominação no sentido de que cabe apenas às Musas a revelação dessa verdade, logo, o aedo está à

mercê do que lhe é contado, sendo apenas um transmissor dessa verdade, não podendo verificar ou

contestar. Segundo Pires:

Trânsito e/ou bloqueio, acesso e/ou desvio, revelações e/ou mentiras, tudo depende do

arbítrio das Musas, tudo depende de sua concessão, de seu ato de querer, bem decidido

como exercício de poder, a conformar, assim, o princípio da dominação, que o modo

mítico da memória efetua. Se queremos, advertem as Musas, concedemos alétheia,

revelações, verdades. Mas, também se queremos, prosseguem elas, pelo contrário,

iludimos inelutavelmente, pois então damos pseudéa, mentiras, só que não mentiras

identificáveis enquanto tais, pois não as damos como mentiras, mas, sim, como mentiras

semelhantes aos fatos, às realidades (PIRES, 2006, p. 247).

O ser humano, a partir dessa lógica, não tem há possibilidade de discernir se essa revelação

feita pelas Musas é, de fato, uma verdade ou não. Por ter a verdade em suas mãos, as Musas

dominam o que é transmitido e mostrado aos humanos, sendo assim uma dominação dos deuses

sobre os homens. Logo, o princípio metodológico funciona pois não há uma forma de contestação

dessa verdade, assim o poeta tem como função apenas a transmissão desse pensamento, não

cabendo a ele, e a ninguém, a capacidade de verificar tais fatos. Assim os deuses controlam a

verdade e, por consequência, a história narrada. O papel dos seres humanos, nesse cenário, limita-

se a acreditar no que lhes é revelado, não podendo saber se de fato a verdade é uma Verdade. Tal

passagem nos leva a reflexões interessantes. A verdade, em seu mais alto nível, apresenta-se como

acessível apenas aos deuses, enquanto aos homens cabe aceitar uma visão dessa verdade, a qual

nunca saberão se é de fato verdade ou uma mentira. Podemos entender essa relação a partir da

dicotomia Musa-aedo como também uma dicotomia perfeito-imperfeito, sendo o perfeito aqui

entendido como absoluto, característica atribuída geralmente aos deuses. O ser humano, ser

limitado aos sentidos e à razão como é, não pode captar a verdade e nem consegue ter meios de

contestar aquilo que os deuses lhe comunicam. Assim segue o princípio metodológico e guarda-se

a verdade no épos.

2.2.5 O princípio arqueológico e etiológico

Os dois próximos, e últimos, princípios são o arqueológico, que tem por objetivo o início

da narrativa, e o princípio etiológico, que se debruça sobre as causas. Pires nos apresenta esses dois

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conceitos juntos, uma vez que suas definições andam imbricadas, uma vez que a narrativa principia,

antes de tudo e em primeiro lugar, narrando a questão da causa (PIRES, 2006, p. 274). Na análise

das epopeias gregas, Pires apresenta essa relação dos princípios a partir do prôemio da Ilíada. Nele,

destaca-se que o início da narrativa começa com a ira de Aquiles, causada pela discussão com

Agamêmnon (HOMERO, Iliada, Canto I, v. 1 – 12). Para todo início, apresenta-se uma causa.

Percebe-se que o início da narrativa acontece após a evocação da Musa, sendo assim uma estrutura

narrativa recorrente nas obras gregas, mesmo as que não seguem a lógica de uma divindade lhe

apresentando a verdade50.

No Canto I da Eneida, Virgílio busca seguir os princípios arqueológico e etiológico. Ao

iniciar sua obra, nos seus primeiros versos, o poeta latino escreve assim:

Arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris

Italiam, Fato profugus, Lauiniaque uenit

litora, multum ille et terris iactatus et alto

ui superum saeuae memorem iunonis ob iram,

multa quoque et bello passus, dum conderet urbem,

inferretque deos Latio, genus unde Latinum Albanique patres, atque altae moenia Romae.

Musa, mihi causas memora, quo numine laeso.

As armas canto e o varão que, fugindo das plagas de Troia Por injunções do Destino, instalou-se na Itália primeiro

E de Lavínio nas praias. A impulso dos deuses por muito

Tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno,

Guerras sem fim sustentou para as bases lançar da cidade

E ao Lácio os deuses trazer – o começo da gente latina,

Dos pais albanos primevos e os muros de Roma altanados

Musa! Recordar-me as causas da guerra, a deidade agravada

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto I, v. 1 – 8).

Na narrativa de Virgílio encontram-se diferenças substanciais quanto à de Homero. O

primeiro aspecto a ser analisado é perceber que o princípio arqueológico e etiológico se encontra

nos primeiros versos. Ao falar do “varão que, fugindo das plagas de Troia, por injunções do

Destino” o poeta abre o início factual da narrativa. Apresenta-se o fato e demarca um começo: a

fuga de Troia. Logo em seguida, apresenta-se a causa desse fato, ou seja, o que levou a essa fuga:

as injunções do Destino. Percebemos, então, que o início da narrativa se apresenta e, em seguida,

50 A análise de Pires não se limita aos épicos, tratando de outros gêneros e obras, como as histórias de Tucídides e

Heródoto. Quando falamos em “obras gregas” nos referimos a essas outras análises feitas pelo autor, as quais não

iremos nos debruçar nesse estudo.

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vem a causa. Entretanto, se Virgílio honra a estrutura do épico ao realizar tais princípios, mais uma

vez inova ao narrar diversos fatos até, finalmente, após sete versos, invocar as Musas e pedir-lhes

que a verdade lhe seja concedida. Inverte-se, então, a estrutura narrativa vista em Homero,

colocando a invocação das Musas depois do início da narrativa. O épico latino, ao que nos consta,

preserva os princípios narrativos e segue sua tradição do gênero, porém, guarda em si uma

originalidade que foge ao rigor das regras do gênero. A apresentação da obra, nesse sentido, se

mostra flexível quanto à narrativa e suas fórmulas. De fato, seria um equívoco acreditarmos que a

Eneida se constitui como uma “cópia” das epopeias homéricas, uma vez que Virgílio segue e

quebra os padrões e a estética do texto por diversos momentos.

Devemos destacar no trecho acima a continuação dos versos aos quais Virgílio busca fazer

uma regressão dos acontecimentos. Relata-se, nos primeiros versos, a chegada e fixação de Eneias

no Lácio. Logo em seguida, conta-se do tempo em que passou nos mares e da ira da deusa Juno,

acontecimentos que precedem a chegada nas terras da atual Itália. Assim sendo, o início da

narrativa começa a ser contada do final para o começo. Francisco Murari Pires analisa a Ilíada e

percebe que esse desfecho no início da narrativa é, também, parte do próprio princípio etiológico.

Segundo o autor:

Assim, o proêmio da Ilíada, por suas declarações enunciativas, tece um encadeamento

regressivo dos acontecimentos a alcançar a origem do fato a ser narrado por seu canto

singular: a Ira de Aquiles começa pela dissensão entre o Pelida e Agamêmnon, episódio

este desencadeado pela peste de Apolo, por sua vez originada pela desonra de Crises pelo

Atrida. De modo que, então, o princípio arqueológico, ao dizer a arché enquanto início da

narrativa, implica e se desdobra em princípio etiológico, a também dizer a aitía enquanto

causa que identifica sua origem fatual (PIRES, 2006, p. 275).

O encadeamento regressivo dos acontecimentos na Eneida apresenta o desenvolvimento

desse princípio narrativo, transformando o início em causa. Assim como apresenta Pires no trecho

citado, Virgílio regressa até pedir para que a Musa lhe recorde as causas da guerra, a causa inicial

de toda a narrativa, apresentada no primeiro verso. A partir de então, similar ao que acontece no

canto I da Ilíada, a narrativa, de fato, ganha fôlego e adentra-se na história.

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CAPÍTULO III: A CONSTRUÇÃO DO MUNDO DOS MORTOS NA ENEIDA

O Canto VI é tido como um dos momentos mais importantes dentro da narrativa da Eneida.

Alguns o apresentam como a transição entre a parte da Odisseia e a Ilíada na epopeia romana

(ANDERSON, 1963, p.2). Compondo a primeira parte como a viagem de Enéias pelo mar

Mediterrâneo e a segunda parte correspondente à guerra no Lácio pela conquista e fundação da

nova Troia. O Canto VI, dentro da narrativa do épico, apresenta a descida do herói troiano ao Orco,

espaço destinado aos mortos, para conversar com seu pai, Anquises. Nesse mundo dos mortos

Eneias percorre diferentes espaços, encontra companheiros de guerra, criaturas mitológicas e Dido,

a mulher que morreu por não ter o amor do futuro romano. A análise dos 901 versos que compõem

esse momento da narrativa traz à luz diversos elementos da cultura funerária romana, tanto seus

ritos quanto a imagem criada de seus mortos. Portanto, o presente capítulo irá discorrer acerca do

mundo dos mortos narrados no Canto VI da Eneida e sua descrição dos espaços experienciados por

Eneias. Para tanto, devemos compreender alguns conceitos acerca da religião romana. Quais as

funções da religião no meio cultural e político no século I a.C.? Como o culto aos mortos era visto,

e realizado, nesse período? Para além disso, devemos nos debruçar sobre questões referentes ao

espaço narrativo-imaginário criado por Virgílio ao narrar esse espaço dos mortos. Como e quais as

razões para descrever dessa maneira o além-vida? Por que alguns espaços fogem do aspecto comum

dentro de todo o ambiente chamado de Orco? Quem deve andar por essas terras? Tais questões

serão debatidas ao longo do capítulo e dividido em tópicos para uma melhor organização das ideias

e, ao fim, buscaremos uma síntese na qual os conceitos devem convergir.

3.1 – Sobre a morte, a religião e os ritos funerários na Roma Antiga

Primeiramente devemos nos aprofundar na religião, nos ritos funerários e no papel do morto

dentro da lógica da sociedade romana. Ao observamos as práticas religiosas romanas nos

deparamos com algumas dificuldades, algumas de natureza anacrônica, pois o termo “religião” nos

remete, geralmente, a ideias próprias do cristianismo (uma vez que estamos inseridos em um país

cuja principal religião é de matriz cristã). Se nos debruçarmos sobre o termo, poderemos remontar

sua etimologia com a palavra religare, que em latim tem o significado de religar, reconectar-se.

Nesse sentido, a religião tem como principal meta conectar os homens aos deuses. Entretanto, como

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nos alerta John Scheid, não costumamos pensar em uma religião sem um livro sagrado, um código

de conduta ou mesmo um profeta. (SCHEID, 2003, p.18). Partindo dessa percepção, os preceitos

da religião romana no século I a.C. mostram-se bem característicos e distintos de nossa experiência

atual.

Talvez a principal característica dentro da religião romana sejam os ritos. A forte presença

de rituais faz com que os estudiosos a caracterizem como uma religião ritualística, na qual a prática

e execução destes ritos tornam-se tão importantes quanto a função à qual estes foram designados.

Para os romanos suas obrigações religiosas definiam-se a partir do seu status social. Devido a essa

característica é comum a expressão “religiões romanas”, no plural, pois sua prática estava

condicionada ao grupo ao qual se pertencia (SCHEID, 2003, p.19). Tal expressão também é o título

de um dos mais renomados estudos sobre a religião romana, dos historiadores Mary Beard, John

North e Simon Price (2005).

Percebemos, a partir desses elementos, que a religião romana é, antes de tudo, uma forma

de relação social. A experiência religiosa, nesse caso, se passa muito mais pelo âmbito coletivo do

que necessariamente pela vivência do indivíduo. Isso significa dizer que não havia experiências

individuais dentro dos ritos romanos? Não. Apenas deixamos em evidência tal característica.

Também deve-se destacar o caráter político da religião romana. Devemos entender que para o

horizonte de expectativa do Principado romano não há como separar a religião da política. Otávio,

o princeps, torna-se Augusto em 27 a.C., um título religioso de alta patente dentro da lógica

romana. Em outro exemplo, podemos perceber a divinização de imperadores e grandes nomes da

história romana, o que nos dá mais uma evidência da forte relação entre esses dois aspectos da

complexa estrutura social de Roma. Não por acaso, segundo a análise de Mary Beard no livro

Religions of Rome, as contendas políticas envolviam, em vários casos, também acusações acerca

dos deveres para com os deuses. A historiadora usa como exemplo dessas disputas o caso de Cícero

e Catilina, em que Cícero invoca o Deus Júpiter como parte de sua argumentação contra o seu

opositor (BEARD,2005,138-139). Desse modo, podemos perceber que a religião está

intrinsecamente ligada à política no contexto romano, sendo a religião usada muitas vezes como

arma de controle na esfera pública e política. (BEARD, 2005, p. 139)

Politeísta, a religião romana é marcada pela “adoção” de deuses estrangeiros. Em seu

panteão misturam-se diversos deuses e mitologias. Essa flexibilidade ao culto de diversos deuses

nos mostra uma diversidade apresentada ao longo do Império Romano, uma vez que se anexa ao

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seu território diversos territórios conquistados, tanto ocidentais e orientais. Tal característica

garantia a liberdade de culto aos seus cidadãos, que se chama um “modelo de religião cívica”

(SCHEID, 2003, p. 21). Esse termo, utilizado por Scheid, descreve e resume as práticas religiosas

romanas (e também gregas, uma vez que este termo também é utilizado no contexto heleno). Em

síntese, o que temos: uma religião ritualística, comunitária e pouco individualista, na qual seus

praticantes tinham liberdade de cultuar seus deuses e seguir seus ritos e deveres, sem um livro para

conduta moral específica.

Segundo Beard, as obras de Virgílio, junto com as de Horácio e Propércio, configuram entre

as mais recorrentes no que concerne à religião romana (BEARD, 1998, p.169). Ao nos debruçarmos

sobre a Eneida percebemos que Virgílio utiliza a religião e a mitologia greco-romana para narrar

as aventuras de Eneias, fazendo os mitos e crenças romanas como recursos narrativos ao longo do

épico. No Canto VI, em especial, notamos a vasta utilização deste recurso. A narrativa do mito de

fundação da cidade de Roma, nesse ponto, liga-se à história política do Principado romano quando

Eneias encontra-se, no Orco, com Otávio Augusto51. Vale ressaltar a restauração feita pelo princeps

Otávio Augusto durante o seu governo. Como já citado acima, durante a República Tardia a religião

romana apresenta, no mínimo, algumas dificuldades. O epicurismo, corrente filosófica nascida na

Grécia, percorria as bibliotecas particulares romanas e, no século I a.C., lançava-se como uma das

principais correntes filosóficas da República junto com o estoicismo. Lucrécio fora o principal

filosofo epicurista em Roma e sua obra De rerum natura buscava questionar a prática religiosa de

sua época. Conhecido por seu materialismo, o epicurismo buscava “secularizar” as práticas sociais,

apresentando uma lógica mais física e menos espirituais para questões existenciais. Ángel Escobar

destaca que Cícero, em seu livro “A natureza dos deuses”, questiona e vai de encontro à visão

epicurista de Lucrécio, caracterizando um debate de ideias nos centros da elite romana

(ESCOBAR, 2008, p.18).

Segundo Beard, durante o século I a.C. a religião romana passa por algumas

transformações, se especializa e torna-se mais complexa (BEARD, 1998, p. 149). É possível que

essa complexidade seja uma resposta às críticas de Lucrécio e dos epicuristas, entretanto a

explicação mais aceita vem ao analisar a própria sociedade romana: uma vez que a mesma começa

a crescer, tanto em número de cidadãos quanto de novos territórios, com disputas internas e uma

51 O capítulo IV debruça-se sobre este encontro e analisa os versos em questão. Visto isso, nos reservamos nesse

momento a apenas a citar a narrativa para entendermos as ligações entre a religião e a política no contexto do século I

a.C. e na Eneida.

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intensa instabilidade política, mostra-se necessária uma adaptação da religião para o novo cenário

posto. Sobre as mudanças ocorridas na religião romana no século I a.C. Beard ainda apresenta outro

ponto para refletirmos: a partir da chegada de Otávio ao poder se tem uma reforma religiosa que

busca restaurar cultos e templos, de maneira parecida a que Augusto faria restaurando a res pública

(BEARD, 1998, 168). Apesar disto, percebe-se que as reformas de Augusto criam e revitalizam

uma religião que estava sendo questionada, pelo menos no campo filosófico. Cria-se, por exemplo,

ritos e cultos para o imperador, assim como sua divinização, em vida ou em morte (BEARD, 1998,

p. 169). Dessa maneira, Augusto não apenas fortalece a posição do imperador perante a política e

religião em Roma, mas também apresenta uma saída para os embates religiosos do período.

Voltando às fontes do governo de Augusto, parece razoável apontar que as reformas

implementadas pelo princeps tiveram resultado, pelo menos nos meios intelectuais. As obras de

Públio Ovídio Nasão, por exemplo, dedicam-se quase que exclusivamente a narrativas mitológicas

e de cunho religioso52. Os fastos, fasti, obra ao qual dedica-se a criação de um calendário romano

a partir das celebrações, festivais e cultos, é notável que os ritos e práticas religiosas permeavam o

cotidiano romano. Dentre elas, destacamos três festivais em específico, uma vez que tratam

diretamente sobre o culto aos mortos e nos ajudarão a entender o lugar do morto dentro do horizonte

de expectativa romano: a parentalia, a feralia e as lemúrias.

A parentalia e a feralia eram festivais que ocorriam entre os dias 13 a 21 de fevereiro e

tinham por objetivo honrar os manes dos antepassados na forma de oferendas. Ovídio escreve:

Est honor et tumulis, animas placare paternas,

paruaque in exstructas munera ferre pyras.

Parua petunt manes: pietas pro diuite grata est

munere;non auidos Styx habet ima deos.

Tegula porrectis satis est uelata coronis

et sparsae fruges parcaque mica salis,

inque mero mollita Ceres uiolaeque umbra est.

Honram-se as tumbas, co’o aplacar das pátrias almas,

empilhando nas piras parcos dons.

Os manes pedem pouco: a piedade é o mais grato;

O Estige não possui ávidos deuses. Bastam aos mortos uma lápide coroada,

Alguma fruta, poucos grãos de sal,

52 Aqui nos referimos mais explicitamente às obras “Metamorfose” e “Fastos”. Em ambas se apresenta o contexto

religioso e mitológico que permeia os ritos e cultos. Entretanto, não excluímos o fato de Ovídio ter escrito sobre outros

assuntos como, por exemplo, “a arte de amar”.

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Ceres amolecida em vinho e u’as violetas.53

(OVÍDIO, fastos, livro II v.533 – 539)

Nos versos acima Ovídio enfatiza a necessidade da honra fúnebre aos manes. Ao falar que

“os manes pedem pouco” (Parua petunt manes) nota-se que o principal pedido não é algo material,

mas a pietas¸ virtude tão destacada em Eneias ao longo de Eneida. Outra referência ao épico de

Virgílio aparece de forma cristalina na passagem destacada. Ao citar o rio Estige como não

possuidor de “deuses ávidos” remete-se ao episódio de Caronte e à travessia dos mortos para o

outro lado do rio: o barqueiro só deixa embarcar as almas dos mortos que tiveram seus ritos

funerários bem executados54. No mais, Ovídio lista uma série de oferendas que aplacam os manes,

que provavelmente era depositada junto das lápides. Segundo Jocelyn Mary Catherine Toynbee, a

parentalia era um culto doméstico, reservado apenas aos familiares do morto (TOYNBEE, 1971,

p. 63). No último dia de celebração ocorriam cerimônias públicas que representavam a feralia.

Nestes dias, segundo Ovídio, os casamentos estavam proibidos e os templos fechados. Seguem os

versos:

Dum tamen haec fiunt, uiduae cessate puellae:

exspectet puros pinea taeda dies,

nec tibi, quae cupidae matura uidebere matri

comat uirgineas hasta recurua comas

[...]

Di quoque templorum foribus celentur opertis.

ture uacent arae stentque sine igne foci.

Nunc animae tênues et corpora functa sepulcris errant, nunc posito pascitur umbra cibo.

[...]

Hanc, quia iusta ferunt, dixere Feralia lucem;

ultima placandis manibus illa dies

Durante as Parentais, aguardai, viúvas moças,

Que a pínea tocha espere os puros dias.

Nem tu, que a mãe desejará já ver madura,

Prendas co’haste recurva a casta coma.

[...]

Também aos deuses os portões do templo cubram,

No altar não tenha incenso ou fogo aceso.

As tênues almas e os defuntos corpos erram,

E agora u’a sombra come as oferendas.

[...] Por conferir o justo, é Feral dito o dia

53utilizamos para a análise dos trechos referentes ao Fastos a tradução de Márcio Meirelles Gouvêa Júnior. 54 A análise da referida passagem encontra-se no tópico 3.3, quando analisamos a narrativa de Virgílio e a descrição

dos espaços do Orco.

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Ultimo dia p’ra aplacar os manes

(OVÍDIO, fastos, livro II, v. 557 – 570).

É possível notar nos versos acima o respeito para as oferendas dos mortos: nos dias de

celebração, aos quais as almas estariam “errantes” e comendo suas oferendas nenhuma atividade

dentro dos templos poderia ser realizada. Por fim, fala-se da Feralia como o último dia, ou última

chance, de aplacar os manes. É interessante perceber que a festividade é uma data oficial, celebrada

de forma anual e suas origens, segundo Ovídio, remontam a Eneias55. Marca-se, mais uma vez, a

influência da obra de Virgílio dentro dos seus contemporâneos, tornando Eneias um personagem

fundamental no imaginário romano. Devemos atentar que a figura de Eneias precede o poeta latino,

porém, com a Eneida este ganha notoriedade dentro da mitologia romana, tendo agora uma relação

direta com a fundação do povo romano.

Ainda sobre a parentalia e a feralia, Toynbee chama atenção para o fato de que esses dias

de celebração seriam dies religiosi. É Interessante perceber que o uso da palavra religiosi

assemelha-se ao significado que Scheid atribui ao termo quando se trata da religião romana: para

o historiador, o termo “Religiosus” designa objetos e lugares marcados pela morte. Neste caso

específico, as tumbas (SCHEID, 2003, p. 25). Dessa maneira, a morte objetiva o uso da religião,

assim como os cultos e ritos funerários. Para uma religião ritualística e com caráter profundamente

prático como a dos antigos romanos, a demarcação desses espaços com lápides e tumbas

possivelmente estreitariam a relação com os mortos.

Outra festividade dedicada aos mortos que consta nos fastos são as Lemúrias. Ovídio

demarca essas celebrações nos dias 9, 11 e 13 de maio, dias estes dedicados ao sacrifício aos

“mudos manes”( OVÍDIO, fastos, Livro V, v.422.) ou, como escreve Regina Maria Bustamante, os

mortos malfazejos (BUSTAMANTE, 2014, p.109 - 128). Mas quem seriam esses mortos? Segundo

a tradição romana, chamavam-se lêmures os espíritos que não tiveram os ritos funerários

adequados. Estes continuariam a vagar e a “assombrar” os vivos. Um exemplo desse medo dos

mortos malfazejos apresenta-se na peça “história de fantasmas” escrita por Plauto, no século II a.C.

Nela, após perder sua casa numa aposta, o filho conta ao pai que a casa está assombrada e por isso

não pode entrar nem dormir na habitação (PLAUTO, mostellaria, ato II, 450 – 525).

Segundo Ovídio, a celebração das lemúrias é muito antiga, tão antiga que o mesmo não se

recorda a razão dos mortos malfazejos chamarem-se assim (OVÍDIO, fastos, livro V, v. 445 – 446).

55 OVÍDIO, fastos, v. 543 – 546.

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Ao final do verso 446 o poeta afirma que a origem do nome lemúria será revelada por algum deus,

o que mostra um traço narrativo metodológico, no qual a verdade está pautada pela palavra do

divino, pois os deuses tudo sabem uma vez que viveram em todos os períodos da história56. Nas

lemúrias um importante rito doméstico é realizado, ao qual o pater famílias deve acalmar essas

almas atormentadas. Ovídio descreve o rito da seguinte maneira:

Nox ubi iam media est somnoque silentia praebet

et canis et uariae conticuistis aues,

Ille memor ueteris ritus timidusque deorum surgit (habent gemini uincula nulla pedes),

signaque dat digitis médio cum pollice iunctis,

occurrat tácito ne leuis umbra sibi.

Cumque manus puras Fontana perluit unda,

uertitur et nigras accipit ante fabas,

auersusque iacit; sed dum iacit, ‘Haec ego mitto,

his’ inquit ‘redimo meque meosque fabis.’

Hoc nouies dicit nec respicit: umbra putatur

colligere et nullo terga uidente sequi

Rursus aquam tangit, temesaeaque concrepat aera,

et rogat ut tectis exeat umbra suis.

Cum dixit nouies ‘manes exite paterni’ respicit, et purê sacra peracta putat.

À meia noite, quando o sono dá o silêncio

E os cães e os vários pássaros se calam, O homem que os deuses teme e cumpre

Os velhos ritos levanta-se, traz nus os gêmeos pés.

Juntando o dedo médio ao polegar, dá estalos,

P’ra que nenhuma sombra lhe apareça.

Quando, na água da pura fonte as mãos perlava,

Vira-se, apanha adiante negras favas,

Joga-as p’ra trás, mas antes diz:

“Eu as espalho, e pelas favas me redimo, e aos meus

Nove vezes repete e não se volta: o espectro

As recolhe e, invisível, o acompanha.

De novo, n’água, o homem se lava: soa o bronze E roga de sua casa saia o espectro.

Nove vezes repete: “ide, manes paternos”.

Olha em volta e reputa o pronto rito.”

(OVÍDIO, fastos, livro V, v.429 – 444)

Pode-se notar com essa descrição algumas características que se ligam aos mortos no

imaginário romano. A primeira delas é o sentido de purificação que existe ao realizar os ritos. As

libações eram comuns na religião romana e configurava como um dos ritos necessários aos mortos.

Além do cuidado em purificar-se, o pater família deveria proteger-se também das sombras, uma

56 Sobre o princípio metodológico deve-se ver o capítulo II, no tópico 2.2.4.

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clara indicação dos receios dos vivos para com os lêmures que precisavam ser apaziguados. Outro

aspecto interessante no rito é a necessidade de redimir-se. Ao falar que “que pelas favas eu me

redimo”, podemos pensar que as lemurias são, para além de uma apaziguamento, uma forma de

redenção dos vivos com os mortos que não tiveram as práticas funerárias bem executadas. Esse

“acerto de contas” faria esses espíritos malfazejos ficarem silenciados por mais um ano. O rito

finaliza-se com o pater família lavando-se mais uma vez, o que podemos interpretar como o

fechamento de um ciclo e a garantia de não carregar nenhuma impureza após o ato cerimonial.

As descrições feitas por Ovídio nos fazem pensar sobre a importância destas festividades e

o local do morto dentro da sociedade romana. É notável que as cerimônias têm um caráter de

relembrar e homenagear os antepassados, como no caso das parentalias e feralias. Todavia, os

ritos apresentam também um caráter simbólico e constroem no imaginário romano57 um mundo

permeado pelos espíritos dos mortos, uns com conotação positiva e, como numa outra face de uma

moeda, com um elemento negativo. Ademais, também podemos traçar uma relação entre o rito

bem executado e o morto em sua vida após a morte, como veremos mais adiante nesse capítulo.

Ovídio também reforça a ancestralidade desses elementos quando alega não se lembrar desde

quando começaram essas festividades. Franz Cumont em seu livro “After life in Roman Paganism”

aponta que o culto na tumba era praticado de forma universal na extensão do Império Romano

(CUMONT, 1922, p.57). Visto isso, nos cabe refletir sobre a função destes ritos e celebrações,

tanto para os vivos como para os mortos, uma vez que, se imaginarmos a extensão do Império

Romano e sua diversidade, é de extrema relevância o que assinala Cumont. Para isso, devemos nos

debruçar um pouco sobre a ideia do rito. O que, de fato, o constitui? Quais são e o que fazem?

Primeiramente, devemos compreender que ao falarmos de ritos abrangemos um assunto

vasto e que vem sendo discutido desde o século XIX, tendo assim diversas teorias e abordagens

distintas para o assunto. Dessa maneira, não será nosso intuito nesse espaço levantar um debate

amplo sobre as diversas teorias acerca dos ritos, nem muito menos definir uma discussão que se

estende a quase dois séculos. Em contrapartida, se faz necessário apresentar alguns aspectos

teóricos relevantes acerca dos ritos para nossa análise e fazer relações com a prática funerária

romana, buscando assim uma forma de compreender o fenômeno dos rituais enquanto uma prática

não só religiosa, mas também social.

57 Ao usarmos a palavra “imaginário” estamos nos referindo a toda estrutura cultural que se forma, tanto de maneira

coletiva quanto individual, a partir da educação e costumes de uma sociedade. Nesse caso, o sentido aqui atribuído à

palavra “imaginário” está mais ligado ao conceito de cultura do que necessariamente a uma operação mental.

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O primeiro aspecto a ser levantado sobre os ritos configura a sua natureza frente à análise:

para alguns teóricos do século XIX o rito é uma categoria de análise puramente religiosa,

entretanto, nos últimos cinquenta anos, novos pensadores, dentre eles antropólogos e sociólogos,

buscaram enxergar o rito como um aspecto da sociedade (BELL, 1992, p. 13). Nesse sentido, o rito

transpassa a esfera do religioso e apresenta, acima disso, relações sociais e de poder. A partir disso,

concordamos com a visão da antropologia cultural, a qual apresenta o rito como uma prática da

cultura de uma sociedade, sendo assim um aspecto de análise interessante para entender a visão de

um povo.

Ademais, mesmo pensando o rito no campo da cultura, não podemos desconectar as práticas

rutais da esfera religiosa. Segundo Catherine Bell em seu livro Ritual theory, ritual pratice, é

necessário diferenciar rito de outros aspectos da religião, como as crenças e os mitos (BELL, 1992,

p.19). O que demarca essa diferença é a ação. O rito implica uma ação. Enquanto as crenças, por

exemplo, são marcadas por um pensamento (ou atividade mental), o rito tem como característica o

fazer. Tal divisão, num primeiro momento, nos leva a pensar que o rito é a realização prática da

crença e que sem ela não pode haver rito, uma vez que toda ação deve partir de um pensamento ou

ideia. Se uma ação não é seguida de uma ideia, esta perde seu significado e, por consequência, sua

função. Assim, a dicotomia entre a crença-rito está intrinsecamente ligada ao pensar-agir.

Partindo desse ponto, Clifford Geertz apresenta o rito não apenas como uma ação

direcionada por uma crença, mas parte fundamental na ligação entre dois mundos a qual define

como ethos – visão de mundo. “Ethos”, em linhas gerais, seria o aspecto moral de uma cultura,

enquanto os cognitivos ou existenciais formariam a “visão de mundo” (GEERTZ, 2008, p. 93).

Para além de uma simples ação norteada por uma ideia, o rito demarca e objetiva uma cosmovisão,

sendo mediador entre esta e a conduta moral de um grupo ou sociedade. O que une esses dois

mundos no momento dos rituais são os símbolos que são utilizados. Um símbolo armazena uma

carga de significados que podem resumir a visão de mundo de um grupo ou indivíduo, e também

ditar seu comportamento diante dele (GEERTZ, 2008, p. 93). Ao pensarmos nos rituais romanos,

devemos pensar nos símbolos contidos dentro destes. Peguemos como exemplo uma parte do funus

translaticum58. Segundo Toynbee, um dos primeiros ritos, logo após a morte, é o “último beijo”.

58 O termo funus geralmente relaciona-se ao momento entre a hora da morte do indivíduo até o último ritual de

enterramento. O termo funus translaticum refere-se ao tipo de prática ritualística mais comum entre os cidadãos

romanos. Há outros tipos de funus, como o funus imperatorium, dedicado apenas aos imperadores. Mais a frente

relacionaremos o status com a realização de diferentes ritos.

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Nele, o parente mais próximo deve dar um beijo na boca do morto pois com isso capturaria a alma

e a mesma deixaria o corpo (TOYNBEE, 1971, p.43). Este mesmo parente seria o responsável por

fechar os olhos do morto e assim começar a condução deste no seu cortejo fúnebre. Ao refletirmos

sobre as ações praticadas no rito conseguimos compreender a união dos dois mundos de Geertz. A

ação de beijar o morto pode nos levar a alguns apontamentos: 1) Há uma crença a respeito da alma,

pois ela deve ser retirada do corpo. 2) Esta alma, ao ser retirada do corpo, deve pertencer ou ir para

algum lugar, uma vez que, como vimos, os romanos temiam os espíritos que “vagavam” pela terra.

O rito então funde os “ethos”, a conduta moral a ser seguida, com a visão de mundo, ou

crença, que aqui é representada nos aspectos sutis ao ser feita a ação. O rito então segue a dualidade

do agir-pensar, uma vez que toda ação simboliza e tem em si um sentido de ser feito. Dessa maneira,

pensar numa religião romana com seus ritos sendo valorizados apenas pelo aspecto formal, quase

autômato, não se faz compreensível. Ao contrário, esta encerra em si diversos simbolismos que

refletem uma crença nos mortos e de um espaço para estes após a morte, assim como Cumont já

escrevia nos anos 1920.

Outro exemplo ao qual podemos refletir é o de libação do corpo. Os mortos, como

apresentava a tradição eram enterrados fora do pomerium da urbs, pois estes traziam poluição

(MOTA, 2011, p.1). A cidade não deveria ser contaminada e os mortos, portanto, eram levados

para fora desse espaço. Ainda assim tinha seus corpos expiados, como também símbolo de

purificação. Tocar estes corpos poderia resultar em uma contaminação, tanto física quanto

espiritual, de acordo com as crenças religiosas. (LINDSAY, 2000, p. 152 – 153) Ao pensarmos nos

ritos funerários descritos no canto VI da Eneida, especificamente nos ritos feitos a Miseno, notamos

o processo de libação como uma das honras dedicadas ao morto, ao qual tem seu corpo frio ungido

para ficar perfumado( VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 219 – 220). De tal modo, não é apenas a

purificação do meio que importa, mas também a do morto, para que este possa seguir para o Orco

sem maiores dificuldades.

Ademais, há outro elemento fundamental ao analisarmos os ritos que é entender que a

dicotomia entre pensar-agir também pode ser levada para a esfera social, do coletivo-indivíduo.

Segundo Bell, o primeiro pensador a fazer essa relação entre a sociedade e o indivíduo no que tange

às práticas rituais foi Durkheim. O sociólogo francês apresenta que as crenças coletivas interferem

nas individuais, podendo moldar ou influenciar em seu comportamento. (BELL, 1992, p. 20). A

prática ritual, entretanto, para ser efetiva enquanto forma de cultura precisa causar um impacto não

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apenas no grupo que o realiza, mas também no indivíduo que participa de uma cerimônia, festival

ou celebração. A partir disso, é essencial que os símbolos que compõem um rito tenham

significados aos seus participantes, caso contrário este não será efetivo ou perderá sua função.

Sendo assim, o rito não depende apenas de uma cultura coletiva, social, mas principalmente da

crença individual. A ligação que tais práticas realizam é o reforço de uma moral e visão de mundo

individual.

Segundo Marc Augé, em seu livro “A guerra dos sonhos”, o rito tem por finalidade a

produção de identidades por meio do reconhecimento de alteridades (AUGÉ, 1998, p. 19). No rito

funerário, por exemplo, os praticantes do rito entram em contato com o Outro, nesse caso, o espírito

ancestral, com o qual liga-se a partir da ritualização. Dessa maneira, o contato com o Outro reforça

o sentido de identidade e conservação das tradições. Assim seguem os rituais ao longo das

gerações, preservando-se na relação entre vivos e mortos. Tais ideias, advindas de correntes

teóricas distintas, podem chocar-se e parecer contraditórias, entretanto, como o próprio Augé

coloca, não é necessário negar o valor “performático” do rito para reconhecer seu valor

“identificante” (AUGÉ, 1998, p.19). Percebamos a dupla característica que cria raízes nos rituais:

a sua função coletiva, que funciona como elemento de formação de identidade de um grupo, uma

vez que cria-se a separação entre quem participa do rito e quem não participa, e seu caráter

individual, performático, que apresenta-se na concepção de quem está vivenciando o momento e

quem apenas o assiste, como um espectador. A performance do ritual impacta distintamente esses

dois grupos, criando imagens distintas de um mesmo fenômeno.

Sobre a relação entre identidade e ritual, não é possível, de forma definitiva, afirmamos o

quão imbuídos dessa cultura os cidadãos romanos estavam. A limitação desse saber, por outro lado,

nos deixa brechas para observar algumas evidências acerca da relação dos indivíduos, sua prática

religiosa e a formação de uma cultura em torno destes momentos ritualísticos. Como apontamos

acima, a quantidade de festivais e celebrações ao longo do ano é um forte indício de como a religião

permeava o cotidiano dos romanos. Outra evidência são as atribuições bem definidas para os ritos,

pois o cidadão tinha cultos tanto privados como públicos, demandando assim uma obrigação para

com a sociedade e com sua família59. Por outro lado, também podemos perceber que a religião

59 As celebrações da Parentalia e Feralia, mesmo que sendo cultos direcionados a família do morto se fazia no espaço

público, o que demonstra certa demanda para com a sociedade romana.

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romana não se mantinha igual ou “estática”, uma vez que fora se modificando ao longo da história

romana. O que isso significa?

Talvez não mais do que o que aparenta ser: uma religião que se adaptou nos diversos

contextos e que buscou manter a influência sobre a sociedade romana. Os indivíduos, em linhas

gerais, absorveram essa cultura e devolveram tal influência em sua conduta moral. Virgílio,

enquanto cidadão romano, parece ter seguido essa prerrogativa, uma vez que seus textos estão

afundados na mitologia e religião, apresentando assim um traço possível de sua crença e visão de

mundo, à qual iremos investigar nas próximas páginas. Dedicar-nos-emos a analisar não somente

os ritos e a construção narrativa do Canto VI, mas principalmente como o espaço é construído a

partir do imaginário, da narrativa e dos símbolos.

3.2 – O espaço Mítico, Imaginário e Simbólico do Orco

A narrativa do Canto VI da Eneida traz uma imagem vívida de um espaço pouco conhecido

dentre as fontes romanas: o mundo dos mortos. Virgílio chama tal espaço por diversos nomes,

como Orco, Dite60, Infernos, e aqui escolhemos abordar a denominação de Orco, por este mostrar-

se o mais recorrente. Devemos investigar como a narrativa do Canto VI apresenta esse espaço e

como ele se constrói, tanto por parte do imaginário do autor como aos que leem a obra.

Primeiramente devemos entender que a Eneida é uma obra simbólica, sendo assim tem em

sua essência níveis de interpretação. Não queremos, portanto, encerrar ou cravar uma tese

definidora sobre a construção do Orco, uma vez que buscar tal objetivo seria querer alcançar o

horizonte. Visto isso, concordamos com Maria Luisa La Fico Guzzo ao apontar, nas primeiras

páginas de seu livro “Espacios simbólicos em la Eneida de Virgílio”, que a Eneida se destaca pelo

seu caráter simbólico e por mostrar uma multiplicidade de interpretações (GUZZO, 2005, p.6).

Tais chaves de interpretações abrem margem para o debate e ampliam nossa visão sobre a obra de

Virgílio. Nossa pretensão nesse quesito é o de fomentar o debate levantando hipóteses e analisando-

as.

Uma questão definidora deve nortear nossa investigação: Virgílio teve intencionalidade ao

construir de tal maneira a narrativa da Eneida? Tal indagação, num primeiro momento, pode

60 Dite é uma antiga divindade itálica associada a Plutão, deus dos Infernos. Em latim é chamado também de “Dis” ou

“Dis pater” (SPALDING, 1982, p. 49).

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aparentar inocente e até “dada”, porém se faz fundamental. Pois, caso a resposta para a pergunta

for negativa, não poderíamos afirmar que há um espaço simbólico, uma vez que o símbolo deve

ser construído a partir de uma ideia norteadora. Símbolos não são construídos ao acaso. Partindo

dessa questão concordamos com os estudos de Karl Galinsky sobre a intencionalidade de Virgílio

em seu texto, além dos diversos significados e leituras possíveis. Partindo desse aspecto, nos cabe

aqui inferir que a construção narrativa segue uma lógica, tanto interna como externa, e que o Canto

VI está inserido nessa estrutura61.

Sobre as questões espaciais na narrativa de Virgílio, devemos nos ater, no momento, a

abordagens teóricas e entender, em primeiro lugar, o que significa a construção de uma

espacialidade tão própria como a do Orco. A primeira definição espacial que nos ajuda a pensar o

caso da Eneida vem do geógrafo Yi-fu Tuan. Em seu livro Espaço e lugar Tuan nos apresenta o

conceito de espaço mítico62. Esse espaço é construído a partir da ausência de conhecimento sobre

algo, e se faz tanto em aspectos físicos como psicológicos (TUAN, 1983, p. 96). Ao pensarmos

que um espaço dos mortos é, a priori, desconhecido para os vivos, podemos elencar o espaço do

Orco como sim um espaço mítico. Pois, segundo Tuan, o espaço mítico é uma área imprecisa de

conhecimento deficiente envolvendo o empiricamente conhecido (TUAN, 1983, p. 97). O

fenômeno da morte é empiricamente conhecido, uma vez que todos os seres vivos passam por tal

processo, os espaços de enterramento também, pois criam-se esses locais. Entretanto, de forma

prática, não se tem como conhecer o mundo dos mortos enquanto ainda não tenha findado a vida.

Logo, o espaço dos mortos é, por excelência, um espaço mítico, sendo a última fronteira entre o

conhecimento humano e o desconhecido.

A criação desses espaços não apresenta uma lógica pragmática, científica, mas reina no

campo do simbólico. Tal característica o torna um espaço perfeito para a representação de símbolos

e “objetiva” a visão de mundo de um grupo, pois esta não precisa girar em torno de uma lógica

concreta. Nas palavras de Tuan:

O espaço mítico é um constructo intelectual. Pode ser muito sofisticado. O espaço mítico

é também uma resposta do sentimento e da imaginação às necessidades humanas fundamentais. Difere dos espaços concebidos pragmática e cientificamente no sentido que

ignora a lógica da exclusão e da tradição (TUAN, 1983, p. 112).

61 Iremos analisar a construção narrativa do Canto VI mais a frente, no capítulo IV. Por hora buscaremos dissertar

sobre os espaços narrados por Virgílio. 62 O termo “mítico” utilizado por Tuan refere-se a uma ausência de conhecimento e não como o contrário de real, ou

uma mentira, como usualmente o fazemos.

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Tuan nos explica que o espaço mítico, portanto, não é um constructo da natureza. Não é

físico, não está “dado”. É, antes de tudo, o produto de uma necessidade humana. Uma necessidade

de responder a questões que, em suma, não temos respostas concretas. A partir disso, quando

Virgílio descreve o Orco na sua epopeia, constrói também esse espaço a partir de suas regras,

lógicas e símbolos próprios, que podemos chamar de um resultado da cultura romana com suas

experiências de vida. Nesse nível de interpretação devemos entender que a formulação do espaço

do Orco no Canto VI está para além de uma narrativa feita para obedecer a uma lógica interna do

texto, mas apresenta-se como o resultado de uma visão de mundo. Esta, por sua vez, não exclui

outras visões de mundo, muito menos buscamos defini-la como única, uma vez que não temos

como afirmar que a descrição feita por Virgílio era unânime e aceita em todo mundo romano.

Ademais, nosso objetivo é o de perceber a construção desse espaço enquanto resultado da narrativa

descritiva de Virgílio e apresentá-lo a partir de uma ordem63. Para tanto, precisamos entender como

se constrói o imaginário dentro de uma sociedade. Augé, mais uma vez, nos ajuda a entender esse

processo. Segundo o etnólogo, o imaginário constitui-se por três polos: O IMC (Imaginário e

memória coletiva); o IMI (imaginário e memória individual) e a CF (Criação-ficção) (AUGÉ, 1998,

p. 61). Nesse caso, a construção de imagens e símbolos coletivos, associada com os símbolos e

imagens individuais, vai gerar um processo de criação, que se somará ao IMC e alimentará uma

modificação nesse imaginário. Nas palavras de Augé:

O imaginário e a memória coletivos (IMC) constituem uma totalidade simbólica em

referência à qual um grupo se define e por meio da qual ele se reproduz de um modo

imaginário ao longo das gerações. O complexo IMC informa, evidentemente, os

imaginários e as memórias individuais. Do mesmo modo, ele é uma fonte das elaborações narrativas (comentários de rituais, relatos xamânicos, epopeias) esboçadas por criadores

mais ou menos autônomos. O complexo IMI (imaginário e memória individual) pode

influenciar e enriquecer o complexo coletivo. Cada criação, assuma ela uma forma

sociológica mais ou menos coletiva, é suscetível, por sua vez, de repercutir tanto nos

imaginários individuais como na simbólica coletiva (AUGÉ, 1998, p.61-62).

Para Augé o processo de criação (e no nosso caso, vamos considerar a Eneida como uma

criação-ficção) passa intrinsecamente pelo imaginário coletivo e individual. Logo, o imaginário de

um grupo ou sociedade junta-se às crenças e cultura do indivíduo que produz um novo conteúdo,

que pode influenciar a estrutura imagética coletiva. A Eneida certamente pode ser encaixada nesse

63 A análise dos espaços do Orco está no tópico 3.3, reservando ao tópico 3.2 a discussão teórica de alguns tipos de

espaço que nos ajudarão na análise mais à frente.

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grupo, uma vez que a obra de Virgílio foi amplamente difundida dentro do Principado romano,

tornando-se inclusive parte do processo de educação do cidadão romano64. Dessa forma, o

imaginário corresponde a um conjunto de símbolos que constituem, ao longo prazo, uma cultura

dentro de um grupo. Esta, por sua vez, pode ser modificada (ou adaptada, ressignificada) a partir

da associação com um conjunto de símbolos individuais que geram uma criação. Assim, trazemos

o indivíduo para o centro da formação desse imaginário social, sendo parte fundamental nos

processos de transformação da cultura e do imaginário, a partir da modificação, reforço e

ressignificação dos símbolos. Portanto, busquemos os símbolos e ideias contidas na construção do

espaço do Orco e assim entenderemos, por consequência, sobre o imaginário romano do século I

a.C. ou, no mínimo, como Virgílio absorveu a cultura romana e produziu sua obra.

Segundo Guzzo, o espaço representado por Virgílio no Canto VI é indubitavelmente

simbólico (GUZZO, 2005, p. 169). O que isso significa? Que o espaço não é apenas físico ou

objetivo, mas que carrega consigo outros sentidos, sendo eles das mais diversas naturezas. Logo,

podemos interpretar a construção desse espaço destinado aos mortos como uma forma de

construção também de uma conduta, uma vez que os diversos espaços do Orco estão caracterizados

por aspectos positivos ou negativos realizados durante a vida, seja ela adequada ou não. Por

exemplo, temos os Campos Lugentes aos quais destinam-se aqueles que morreram por amor

malfadado (OLIVA NETO, Eneida, Canto VI, nota de rodapé 68). Mostra-se, dessa maneira, uma

relação direta entre o espaço e a ação praticada pelo indivíduo. O que reforça a relação são as

referências a mitos em que o amor malfadado prevalece, o que valida a relação entre ação-espaço

feita ao longo da descrição destes espaços (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v.445 – 451).

Outro exemplo é o Tártaro, o espaço destinado àqueles que cometeram graves delitos em

sua vida. Segundo Thiago Eustáquio Araújo da Mota (2011, p. 80), o Tártaro está destinado àqueles

que cometeram atos graves em vida. Uma delas seria a de atentar contra o pai (e a família, como

um todo). Devemos atentar, portanto, que o espaço mítico do Orco tem em si uma carga muito

além do que uma representatividade ou resposta sobre uma questão fundamental. Mais do que isso,

no caso do Orco, o espaço serve como uma explicação sobre a razão de seguir uma moral em

questão, tornando um destino àqueles que seguem ou não a conduta adequada. Aqui concordamos

64 Sobre esse assunto, discutimos profundamente ao longo do capítulo II. Visto isso, apenas o citaremos nesse

momento.

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com a análise de Mota ao apresentar os Campos Elíseos de Virgílio como um espaço destinado aos

que foram virtuosos e serviram de exemplo. Segundo Mota:

Em seu percurso pelo mundo inferior Enéias chega a um local de bifurcação: à direita

vislumbra o Palácio de Plutão e os Campos Elísios, à esquerda, o Tártaro. O efeito desse

alinhamento não nos parece aleatório: os exempla negativos e tormentos do tártaro

salientam a plenitude dos ditosos habitantes dos Elíseos. Os vários tipos paradigmáticos

que estão no Averno transferem, através da memória de virtude ou de transgressão, um

exemplum a ser emulado ou evitado (MOTA, 2011, p. 79).

Desta forma, a construção do espaço reflete uma construção da moral. Como discutido no

capítulo anterior, as epopeias e mitologias tinham um caráter formativo na educação do cidadão

romano, logo, apresenta-se como natural que a narrativa traga lições moralistas em seu conteúdo.

Também é válido lembrar que as virtudes que Eneias carrega, principalmente a pietas, é

considerada uma das principais dentre os romanos. Mota também evidencia uma construção

narrativa que favorece os exemplos positivos, ao demarcar que “os exempla negativos e tormentos

do Tártaro salientam a plenitude dos ditosos habitantes dos Elíseos.” Percebemos que a construção

do Canto VI busca, de fato, uma gradação do “mais obscuro” ao “menos obscuro”, ao que se trata

da análise dos espaços. Apontamos, nesse sentido, para a intencionalidade do poeta em construir o

seu Canto a partir dessa lógica narrativa.

Ainda falando sobre obscuridade, este é um aspecto interessante no mundo dos mortos de

Virgílio. Para Maria Luisa La Fico Guzzo, a obscuridade representa o caminho para o sagrado, que

excede a visão do homem e que é necessário um caminho de preparação interior para tornar-se

visível (GUZZO, 2005, p. 179). Nesse sentido, a ida de Eneias ao mundo dos mortos se liga ao

mito do herói, ao qual o mesmo desce até os infernos para divinizar-se. O Canto VI também

representa a transformação de Eneias: o herói entra no Orco como troiano e sai do mundo dos

mortos como romano. As dicotomias apresentadas ao longo da narrativa causam uma relação de

opostos e de transição entre um aspecto e outro: vivos-mortos, obscuro-iluminado, puro-impuro.

Até mesmo os mortos seguem uma dicotomia, como vimos acima65. Logo, o Orco também pode

ser lido como um espaço de transformação, marcado em definitivo pela passagem de um estado a

outro.

65 Tópico 3.1, quando abordamos o aspecto positivo e negativo do morto e sua relação com os ritos executados.

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3.3 – Análisando os espaços do Orco

O presente tópico irá discutir acerca dos mais diversos espaços narrados no Canto VI. Para

tanto, começaremos a análise a partir da entrada de Eneias no Orco66. A partir das discussões sobre

espaço, nosso objetivo será o de compreender a construção destes como recurso narrativo e apontar

os elementos que os alinham às mais distintas espacialidades (sagrado, mítico, narrativo,

simbólico). Começaremos então com a primeira visão de Eneias do Orco, nos versos 273 ao 278.

Virgílio escreve:

Vestibulum ante ipsum primisque in faucibus Orci

Luctus et ultrices posuere cubilia Curae;

Pallentesque habitant morbi tristisque senectus Et Metus et malesuada fames ac turpis Egestas

Terribles uisu formae, letumque Labosque;

Tum consanguineus Leti Sopor et mala mentis

Já no vestíbulo, nas faces do Orco, primeiro de tudo

A moradia se vê dos Remorsos, do pálido Medo,

Enfermidades de aspecto tristonho, a Velhice inamável,

E a Fome má conselheira, a pobreza aviltante, as mazelas,

Visões de horror, mais a Morte, seguida do Sono, irmãos gêmeos

Insuportáveis trabalhos, e os gozos proibidos da mente

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 273 – 278).

A descrição começa apresentando o Orco como morada dos remorsos, do Medo e tantos

sentimentos ou aspectos negativos da vida humana. Logo em seguida apresenta-se a Morte e o

Sono, aqui referenciando os deuses do submundo grego, Thanatos e Hypnos. Percebe-se por estes

versos que o Orco, no geral, é um espaço que carrega estas conotações negativas, ou, no mínimo,

as dificuldades sob a experiência humana. A descrição do Orco mostra-se tão chocante que

aterroriza o próprio Eneias. O troiano, ao se deparar com tal visão saca sua espada, mas não luta

contra os monstros, pois é alertado por Sibila que estes são fantasmas e que Eneias apenas cortaria

o vazio com seu ataque (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 290 – 294).

Virgílio continua sua descrição com uma série de criaturas mitológicas que habitariam o

mundo dos mortos, descrevendo suas habilidades e posição na entrada do Dite (VIRGÍLIO, Eneida,

Canto VI, v. 280 – 289). Dentre os monstros que estão no submundo, encontram-se alguns que

66 No capítulo IV analisamos toda a narrativa até o momento destacado, uma vez que é essencial entendermos todo o

Canto VI para localizar seus símbolos. Mesmo com esse “pulo” na análise da narrativa, acreditamos que esta

diferenciação é necessária e essencial em nosso trabalho.

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foram derrotados por Hércules (A Hidra de Lerna e o gigante Gerião), no mito dos seus doze

trabalhos. Aparentemente, assim como Orfeu, o mito de Hércules apresenta-se como referência

para Virgílio quando se trata de descer ao mundo dos mortos. Atribuímos a razão destas referências

no texto ao fato que o herói grego ter descido também até o Hades (Capturar Cérberos, o 12º

trabalho), sendo assim uma marcação na narrativa, uma vez que há outros mitos relacionados ao

mundo dos mortos que é citado no Canto VI e que servem como referência dentro do contexto do

Canto67.

Logo em seguida apresenta-se os rios do Orco. Virgílio os chama por Aqueronte, Cocito e

Estige. Mais à frente perceberemos que outro rio tem importância fundamental, o Letes, mas agora

nos atentemos a estes. É apresentado que essas águas são guardadas por Caronte, a figura

mitológica do barqueiro grego. A função cumprida por Caronte é a de levar as almas para o outro

lado do Estige, desde que seus rituais tenham sido cumpridos. Virgílio descreve Caronte com as

seguintes palavras:

Portitor has horrendus aquas et flumina seruat

Terribili squalore Charon, cui plurima mento

Canities inculta iacet, stant lumina flamma, Sordidus ex umeris nodo dependet amictus.

Ipse ratem conto subigit uelisque ministrat

Et ferrugínea subuectat corpora cymba,

Iam senior, sed cruda deo uiridisque senectus.

Guarda estas águas e rios o horrendo barqueiro Caronte,

De sujidade espantosa e com barba grisalha até ao peito

Sem tratamento nenhum: como chispas fagulham-lhe os olhos,

Sórdido manto pendente dos ombros um nó mal sustenta.

O próprio velho maneja uma vara e o velame acomoda Da negra barca, adequada ao transporte daqueles fantasmas.

Velho, realmente; porém, como é deus, de viril senectude

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v.298 – v.304).

Apresenta-se Caronte como “horrendo” e de “sujidade espantosa”. A imagem do deus

alinha-se com a do Orco, reforçando a relação entre os adjetivos usados e o espaço narrado. Para

além disso, percebe-se que suas roupas são “sórdidas” e que mal se sustentam no corpo. Entretanto,

mesmo apresentando-se todos os aspectos negativos, apenas um pode ser elencado como de

destaque positivo à figura do barqueiro: a “viril senectude”. Entretanto, o próprio Virgílio apresenta

67 Orfeu, Pólux, Perséfone são algumas figuras mitológicas citadas ao longo do Canto VI e que tem em comum

visitarem (e no caso de Perséfone, morar) no Hades.

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a explicação para o destaque favorável, pois Caronte é um deus. Mesmo velho, mantém-se divino

e atemporal. O destaque dado a Caronte é interessante de ser analisado pois este, mais à frente,

interage ativamente com Eneias, portanto merece mais destaque do que os outros seres mitológicos

que são rapidamente citados. Caronte cumpre uma função muito especial também dentro da

narrativa, pois é quem determina a passagem das almas para o outro lado do Estige, concretizando

assim o destino dos mortos.

Nos versos 388 ao 410 Caronte dirige-se a Eneias e questiona o que um mortal faz num

espaço de “sombras”, destinado à “noite enfadonha”. Nessa passagem da narrativa Virgílio deixa

claro, mais uma vez, que o espaço dos mortos é exclusivo e que mesmo para narrar é preciso

permissão das criaturas infernais (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 264 – 267)68. Essa

exclusividade demarca a impossibilidade de acesso do espaço, restando aos mortais apenas o que

lhe é narrado. Mesmo sendo “impossível” de adentrar e conhecer o espaço do Orco de forma

pragmática, a construção narrativa proporciona imagens e símbolos que ao leitor proporciona

imaginar a forma e geografia do local. Entretanto, sobre a impossibilidade de os mortais adentrarem

ao mundo dos mortos ainda vivos, Caronte apresenta alguns casos em que mortais entraram no seu

barco e atravessaram o Estige.

O primeiro caso é o de Alcides, ou Hércules, ao qual Caronte conta que arrastou o guardião

dos infernos, acorrentado, do trono de Dite (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 392 – 396). Apesar

de um nome pouco usual ao que conhecemos, Alcides, Virgílio refere-se a Hércules devido ao feito

realizado, a qual constitui o último de seus doze trabalhos, o de capturar Cérberos, o cão de três

cabeças que guarda a entrada do Hades. Os outros dois mortais que Caronte ajudou foram Teseu e

Pirítoo, que tinham como missão raptar Prosérpina69 do reino de Plutão. Caronte, num primeiro

momento, mostra-se relutante a deixar Eneias seguir com seu caminho, mas Sibila interfere com

os seguintes dizeres:

Nullae hic insidiae tales. Absiste moueri.

Nec uim tela ferunt, licet ingens ianitor antro

Aeternum latrans exsangues terreat umbra,

Casta licet patrui seruet Proserpina limen.

Troiui Aeneas, pietate insignis et armis,

Ad genitorem imas Erebi descendit ad umbras.

Si te nulla mouet tantae pietatis imagno,

68 A essa passagem fazemos referência no capítulo II e IV, quando Virgílio interrompe a narrativa para fazer novamente

a fórmula narrativa de pedir inspiração (e nesse caso a permissão) às Musas. 69 Prosérpina é o nome latino de Persefone, esposa de Hades (Plutão) e filha de Demeter (Ceres).

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At ramum hunc’ (aperit ramum, qui ueste latebat)

‘agnoscas’. Tumida ex ira tum corda residunt.

Nec plura his. Ille admirant uenerabile donum

Fatalis uirgae, longo post tempore uisum,

Caeruleam aduertit puppin ripaeque propinquat

“não abrigamos insídia nenhuma; sossega esse gênio;

Nem são nocivas as armas. O grande porteiro prossiga

No seu mister, a ladrar para as sombras carentes de vida,

E continue tranquila Prosérpina junto do tio

O teucro Eneias, varão mui piedoso e de braço invencível,

Desce à procura do pai, entre as sombras inanes do Inferno.

Se não te move o espetac’lo de tanta piedade, que ao menos Este sinal reconheças”. E logo, de baixo das vestes

O ramo oculto retira. De pronto acalmou-se-lhe a raiva.

Nada mais disse a Sibila. Admirado Caronte ante o aspecto

Do dom fatal do áureo ramo, por ele não visto de muito,

Vira a cerúlea barcaça e da margem de cá se aproxima

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 400 – v.410).

É possível perceber algumas características interessantes na fala da sacerdotisa de Apolo.

Primeiramente, ela garante a Caronte que a razão para Eneias estar no mundo dos mortos nada tem

a ver com a segurança de Prosérpina, o que outrora, segundo o barqueiro, foi colocada em “perigo”.

Sibila descreve a tarefa de Caronte como “ladrar para as sombras carentes de vida”, tanto em

referência ao momento anterior, quando o barqueiro se apresenta raivoso com a chegada de Eneias,

como sua relação com os mortos. Mais uma vez percebemos a ligação da palavra “sombras”

associada aos mortos. Destacamos também a utilização do termo “teucro”, em latim Troius, ligado

a Eneias. Outro termo utilizado no trecho é o “pio” – pius – que acompanha Eneias em várias

menções. O uso constante de tais adjetivos demarca a pietas como talvez a principal marca do

troiano Eneias. De acordo com Mota, Eneias orienta-se por valores tipicamente romanos do século

I a.C., que é a pietas, a gravitas e a deuvotio (PEREIRA,2002, p.262 apud MOTA, 2011, p.3).

Ademais, ao longo do capítulo VI a imagem de Eneias transforma-se de troiano para

romano, tendo dentro da narrativa diversos momentos em que tal marcação é feita. Seguindo a

análise, Sibila apresenta a razão pela qual o Herói precisou descer ao Orco e para legitimar sua

presença no mundo dos mortos é revelado o ramo dourado. O ramo dourado, como veremos mais

adiante, faz parte de um dos rituais para abertura da entrada do mundo dos mortos, reservando-nos

a discutir sua função posteriormente70. Mais importante do que a revelação do ramo dourado é a

70 A passagem é analisada no Capítulo IV, ao qual apresentamos a função narrativa da tarefa de Eneias para adentrar

ao Dite.

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reação de Caronte. Este acalma-se e de pronto aproxima-se para transportar Sibila e Eneias. Dessa

maneira o barqueiro volta a transportar um mortal para os reinos de Plutão. Podemos perceber, até

o momento, que o Orco se apresenta, na narrativa, como um espaço restrito e de negação dos vivos.

As exceções são os heróis que devem cumprir um objetivo nesse espaço. A estes, como no caso de

Eneias, é permitida sua passagem. O ramo dourado retirado da floresta de Prosérpina simboliza

essa autorização “divina”.

A narrativa segue e Eneias chega a um espaço que Virgílio denomina de “Limen Primus”.

neste local estão as almas que “precocemente o Destino lançou numa noite sem termo”(

VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 429). João Oliva Neto, ao comentar sobre o Limen Primus, o

relaciona ao espaço dos suicidas (OLIVA NETO, Eneida, Canto VI, Nota de rodapé 66). Estes

escolhem sair da vida, mas não apenas estes apresentam-se no espaço. Nos versos 424 ao 427

escreve-se:

Occupat Aeneas aditum custode sepulto

Euaditque celer ripam irremeabilis undae.

Continuo auditae uoces uagitus et ingens

Infantumque animae flentes in limine primo

Quos dulcis uitae exsortes et ab ubere raptos

Abstulit atra dies et funere mersit acerbo

No mesmo instante percebe o Troiano lamentos, vagidos

Intermináveis e queixas de crianças, ali no proscênio,

Que arrebatadas do peito materno e da vida tão bela

Precocemente o Destino lançou numa noite sem termo.

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v.424 – 429).

A primeira imagem que Virgílio traz desse espaço faz menção às almas de crianças mortas

precocemente, ainda no leito da mãe. É lugar-comum as altas taxas de mortalidade infantil ao longo

da Antiguidade, e não se reserva apenas às civilizações “antigas”, sendo este um problema

enfrentado em algumas sociedades atuais. Visto isso, podemos deduzir que na cultura funerária

romana essas almas “infantis” deveriam ir para algum espaço quando cruzavam o Estige.

O lamento dessas almas destaca-se como característica do ambiente e chama atenção de

Eneias. Outro ponto fundamental no Limen Primus é que este espaço serve de julgamento das

almas. Segundo a narrativa de Virgílio:

Hos iuxta falso damnati crimine mortis.

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Nec uero hae sine sorte datae, sine iudice, sedes:

Quaesitor Minos urnam mouet; ille silentum

Conciliumque uocat uitasque et crimina discit.

Proxima deinde tenent maesti loca, qui sibi letum

Insontes peperere manu, lucemque perosi

Proiecere animas. Quam uellent aethere in alto

Nunc et pauperiem et duros perferre labores!

Faz obstat, tristique palus inamabilis undae

Alligat et nouiens Styx interfusa coercet.

Os condenados por crimes supostos estão ali perto.

Esses lugares não são indicados sem prévio conselho.

Minos, a urna a rodar, presidente do corpo de sombras Mudas, a todos convoca e da vida os inquire e dos crimes.

Perto dali, os vencidos da própria amargura se encontram.

Não suportando a luz bela nem tendo o sossego almejado,

Deram-se à morte. Quão duros trabalhos agora sofreram

No éter lá em cima, canseiras sem conta, a mais negra miséria!

Os fados os obstam; as águas tristonhas do lago do Estige

Em nove voltas os prendem naquele atoleiro sem fundo

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 430 – v. 439).

Minos, rei de Creta e um dos juízes do Orco, faz o julgamento das almas. A ele cabe a

decisão de condenar e determinar a “sentença” destas almas. Percebermos, ao longo da análise dos

espaços do Orco, que cada um dos locais em que as almas são conduzidas reflete algum tipo de

punição ou ato feito em vida, seja ele positivo ou negativo. Nesse mesmo espaço, porém em um

ambiente distinto, estão os que findaram a vida antes do previsto pelo Destino. Estes, ao que tudo

indica, não estão junto aos condenados. Ao que indica, estes não passam pelo julgamento de Minos,

uma vez que já estão em um local diferente do tribunal. Deduzimos, dessa forma, que o ato de dar

fim a própria vida recai sobre uma mesma punição. Entretanto, fazemos o destaque e aqui

concordamos com a análise de Mota em que apresenta a fundamental diferença entre o sacrifício

heroico e a atitude descrita como covarde frente à vida (MOTA, 2011, p. 8). O suicídio heroico era

aprovado, visto como uma forma de honra e de preservação da virtude. Podemos citar como um

exemplo o caso do filósofo Sêneca, que escolhe o suicídio ante a condenação à morte feita pelo

imperador Nero. Este tipo de suicídio difere de uma escolha deliberada de retirar-se da vida por

algum tipo de acovardamento. Quanto ao espaço, Virgílio descreve o Limen Primus como um

atoleiro sem fundo, aos quais estas almas sofrem com duros trabalhos e com miséria. Nota-se que

a descrição desse espaço retrata um aspecto negativo. Nele, como vimos acima, destinam-se

àqueles que tiveram sua morte precocemente, seja intencionalmente (como no caso dos suicidas

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que não o fizeram por uma razão heroica), seja pelo Destino, no caso das crianças. Assim apresenta-

se o primeiro espaço dos mortos ao atravessar o Estige.

Eneias continua sua jornada pelo Averno e logo chega ao segundo ambiente após cruzar o

rio Estige. Após o Limen Primus, Virgílio descreve os Campos Lugentes – lugentes Campi (Eneida,

Canto VI, v. 440). Lá destinam-se as almas daqueles que morreram por amor malfado. Devemos

notar que a tradução para o termo Lugentes é “lamentar” ou “luto”, até mesmo “tristeza”, como

aponta João Angelo Oliva Neto (OLIVA NETO, ENEIDA, nota de rodapé 68). Apesar da variação

do termo, seu sentido permanece e adjetiva o espaço em que Eneias percorre. Virgílio inicia a

descrição dos Campos Lugentes assim:

Nec procul hinc partem fusi monstrantur in omnem

Lugentes campi: sic illos nomine dicunt.

Hic, quos durus amor crudeli tabe peredit, Secreti celant calles et myrtea circum

Silua tegit; curae non ipsa in morte relinquunt

Não muito longe daqui, espraiado por todos os lados,

Acham-se os Campos Lugentes – assim são realmente chamados.

Neles espalham-se ocultas num bosque de mirto, cortado

Por infinitas veredas as vítimas tristes da dura

Peste, de cujos acúleos nem mesmo na morte se livram

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 440 – v.444).

No trecho acima Virgílio narra a chegada de Eneias nos Campos Lugentes. Como já

destacado, o nome do local já reflete as atividades que ocorrem ali. Mais uma vez, ao enfatizar que

nele estão as “vítimas tristes da dura Peste” o poeta realça o valor negativo do espaço narrado.

Outro ponto fundamental é perceber que nesse espaço existe um bosque de mirto. O mirto é uma

planta nativa do Mediterrâneo e que desde a antiguidade é símbolo do amor e da beleza. Segundo

Esteban Bérchez Castaño, o mirto está diretamente ligado à deusa Vênus (CASTAÑO, 2010, p.

131). O mirto também é citado por Ovídio, nos fastos, ao recomendar às adoradoras de Vênus que

deem à sua senhora Mirto, agrião e rosas (OVÍDIO, Fastos, Livro IV, V. 869 – 870). Virgílio,

portanto, não compõe a paisagem dos Campos Lugentes de forma aleatória, uma vez que trata de

especificar o tipo de bosque que preenche o espaço. Também podemos perceber que o simbolismo

do mirto não aparece apenas na Eneida, estando até em uma festividade romana como as Vinálias

(OVÍDIO, Fastos, Livro IV, v. 863). Dessa maneira, podemos perceber que a utilização dos

elementos narrativos para compor a paisagem mítica dos Campos Lugentes está ligada à cultura

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romana, pois estes fazem referência a uma paisagem encontrada (e experienciada) pelos vivos: lá

estão seus rios, suas colinas, seus bosques, suas plantas e seus antepassados. Em resumo, o mundo

é, de fato, construído para habitar os mortos, os manes, mas é concebido na narrativa de Virgílio

por paisagens do mundo real.

Outro ponto que merece destaque é o último verso, ao qual o poeta escreve que os “acúleos

nem mesmo na morte se livram”. Nota-se uma nova referência a plantas, porém, não tão positiva

como o mirto: o acúleo refere-se aos espinhos ou dores causados pelo amor. E essas feridas nem

mesmo a morte é capaz de fechar, uma vez que nos Campos Lugentes as almas continuam a sofrer

com esses espinhos. A passagem faz garantir, por fim, o aspecto negativo desse espaço àqueles que

o habitam.

Seguindo com a narrativa, Virgílio usa, mais uma vez, mitos para exemplificar quem foram

as “vítimas da dura Peste”. O poeta cita Prócis e Fedra (v.445), Pasífaa e Evadne (v.447)71, porém

dentre as personae ilustres citadas por Virgílio que habitam os Campos Lugentes encontra-se Dido,

a rainha de Cartago e eterna amante de Eneias. Quando o herói troiano a observa em tal espaço

rompe em lágrimas e tenta explicar-se:

Infelix Dido, uerus mihi muntius ergo

uenerat exstinctam ferroque extrema secutam?

Funeris heu tibi causa fui? Per sidera iuro,

per súperos, et si qua fides tellure sub ima est,

inuitus, regina, tuo de litore cessi.

Sed me iussa deum, quae nunc has ire per umbras,

per loca senta situ cogunt noctemque profundam.

Dido infeliz, era então verdadeira a pungente notícia

Da tua morte e que o fim encontraste por próprio alvedrio?

Eu, de tudo isso o culpado! Mas, pelas estrelas o juro,

Pelas deidades celestes, as forças sagradas do Inferno: Contra meu próprio querer afastei-me da tua presença.

Pela vontade dos deuses é que eu nestas sombras me arrasto,

a percorrer tão estranhas paragens na noite profunda

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 456 – 462).

O destaque desse trecho aparece quando Eneias pergunta se Dido cometeu suicídio, o que

prontamente se verifica pois encontra-se no mundo dos mortos. A morte da rainha de Cartago,

71 Segundo Oliva Neto, Prócris morre por causa dos ciúmes que tem do marido; Fedra teria se apaixonado por seu

enteado e enforcou-se; Pasífaa, teve relações com um touro; E Evadne cometeu suicídio devido à morte do marido

(OLIVA NETO, Eneida, Canto VI, nota de rodapé 70).

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porém, como destaca o troiano, se faz pela vontade e ato da própria. Então, o que a levou para os

Campos Lugentes? Dido, assim como outras figuras mitológicas que tiveram sua morte ocorrida

por sua própria vontade, não deveria habitar no Limen Primus? Afinal, o que determina o espaço

ao qual o morto irá habitar no Orco, se não seus atos?

Nesse trecho podemos notar que os espaços do Orco não são construídos a partir de uma

relação de causa – efeito, mas sim a intenção pela qual o indivíduo levou (ou foi levado) a cometer

(ou sofrer) o ato. Dessa maneira, a ação não basta por si só, mas é condicionada a partir do que

levou o indivíduo a realizá-la. O que isso pode nos revelar sobre a construção desses espaços na

narrativa de Virgílio? Ao relacionar estes espaços com a conduta moral romana, podemos perceber

que não é, de fato, a ação por si só que condena ou redime o indivíduo que a praticou. Deve-se,

entretanto, pesar a intenção existente por trás do ato. Portanto, o que determina a ida de Dido aos

Campos Lugentes nada mais é do que o que a fez tirar a própria vida: o amor não concretizado por

Eneias72.

Visto isso, concordamos com a análise de Mota, que relaciona os espaços do Orco e

apresenta uma distinta marcação entre o exempla dos Campos Elíseos em contraste com os

indivíduos que habitam no Tártaro (MOTA, 2011, p.87). Assim, traçamos um paralelo do que é

esperado, na narrativa da epopeia, como conduta moral de um romano e os espaços que este

habitará ao morrer, caso cumpra essas normas morais ou não. Acrescentamos, entretanto, que essa

marcação de opostos não se faz apenas entre a dicotomia Tártaro – Campos Elíseos, sendo esta,

sem dúvida, a mais evidente na narrativa do Canto VI. Todavia, a construção narrativa dos outros

espaços, como o Limen Primus e os Campos Lugentes, também carregam consigo uma oposição

frente aos Campos Elíseos, uma vez que ao construir sua narrativa com adjetivos negativos e

construção de um ambiente “sombrio” e de sofrimento, a oposição com um lugar notadamente

positivo torna-se visível. Como exemplo dessa demarcação narrativa com elementos narrativos,

temos mais uma vez, agora no verso 462, Eneias chamando o Orco e os Campos Lugentes de

“estranhas paragens na noite profunda.”

Seguindo a narrativa, os lamentos de Eneias de nada adiantam, Dido simplesmente o ignora

e segue vagando com sua tristeza sem fim. Nessa passagem, Virgílio a descreve com os olhos fixos

72 Sobre a intenção nos atos determinarem para onde o morto irá habitar, falamos indiretamente sobre isso na página

20, ao citar que os suicidas que vão para para o Limen Primus são aqueles que covardemente retiraram-se da vida,

diferenciando esse ato do sacrifício heroico. A mesma ação, mas intenções diferentes que levam a habitarem espaços

diferentes.

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na terra, não se deixando abalar pelo Herói, como uma pedra a lavrar de Marpeso73 (VIRGÍLIO,

Eneida, Canto VI, v.470 – 471). Virgílio utiliza em sua narrativa mais um elemento da geografia

do Mediterrâneo. Dessa vez, porém, o poeta não liga o espaço real ao constructo imaginário que

narra, mas o faz para adjetivar a dureza de Dido frente os lamentos de Eneias. Marpeso - Marpesia,

na tradução de Oliva Neto, remete à região da ilha de Paros, na Grécia (OLIVA NETO, Eneida,

Canto VI, Nota de rodapé 73). Ainda que não faça parte diretamente da descrição do Orco, a

referência a ambientes reais, que estão circunscritos no território romano, apresenta uma tentativa

de plasmar na mente do leitor uma ligação direta entre o mundo dos mortos e o mundo conhecido,

pragmático. Assim, podemos dizer que Virgílio tenta ao máximo, na sua narrativa, fazer desse

espaço um constructo inteligível aos romanos.

O caminho de Eneias dentro do mundo dos mortos segue e o troiano avança para os Campos

Últimos. Estes campos destinam-se aos guerreiros. Virgílio narra, mais uma vez, um espaço de

sombras e apresenta estas almas como tais. Nos versos 477 ao 485 listam-se alguns heróis que estão

nesse local, dentre eles diversos guerreiros troianos e companheiros de Eneias durante a Guerra de

Troia. A construção narrativa, no caso dos Campos Últimos, não se faz por uma descrição do

ambiente ou alguma marcação nesse sentido. Diferente dos dois espaços anteriores, Virgílio apenas

narra o encontro de Eneias com seus companheiros e adversários. Aos troianos, Virgílio descreve

uma curiosidade por parte das sombras para saber o que o herói faz naquele local. Os adversários

mostram-se, em contrapartida, temerosos pela presença do Teucro (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI,

v. 486 – 492). Dentre estes encontros, o mais marcante se faz com Deífobo, um dos príncipes de

Troia e que foi brutalmente morto na batalha pela cidade. Virgílio apresenta o encontro dos dois

na seguinte passagem:

Atqu hic Priamiden laniatum corpore totó

Deiphobum uidet et lacerum crudeliter ora,

Ora manusque ambas, populataque tempora raptis

Auribus et truncas inhonesto uulnere nares.

Vix adeo agnouit pauitantem et dira tegentem Supplicia, et notis compellat uicibus ultro:

Deiphobe armipotens, genus alto a sanguine Teucri,

Quis tam crudeles optauit sumere poenas?

Cui tantum de te licitur? Mihi fama suprema

Nocte tulit fressum uasta te caede Pelasgum

Procubuisse super confusae stragis aceruum.

Tunc egomet tumulum Rhoeteo litore inanem

73 “Nec magis incepto uultum sermone mouetur,/ quam si dura sílex aut stet Marpesia cautes”.

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Constitui et magna Manes ter uoce uocaui.

Nomen et arma locum seruant; te, amice, nequiui

Conspicere et patria decedens ponere terra

Nisso, o Troiano avistou Deífobo, filho de Príamo,

Estranhamente disforme por cruéis ferimentos em vida:

Ambas as mãos decepadas, o rosto riscado de talhos,

Também perdidas as duas orelhas, nariz troncho e feio.

A custo Eneias o identificou; procurava esconder-se,

Dissimular as feridas. Em tom amistoso, falou-lhe:

‘Mui valoroso Deífobo, sangue precioso dos teucros!

Dize-me quem te marcou desse modo, com tanta crueldade?

Quem, tão feroz, para assim ultrajar-te? Chegou-me a notícia De que na noite fatal sucumbiras depois de arrostares

Turmas e turmas de gregos, exausto daquela matança.

Então, eu mesmo erigi uma tumba na praia reteia

E em altas vozes chamei por teus Manes três vezes a fio.

Ali tuas armas e o nome o lugar assinalam; não pude,

Porém, amigo, rever-te ou sequer encontrar teu corpo

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v.494 – v.508).

A sombra de Deífobo preserva as marcas da cruel morte que lhe afligiu. A expressão

“ultrajado” nos remete à desonra para com o morto, sendo essa uma oposição à morte heroica.

Sobre esse assunto, Jean-Pierre Vernant, em seu texto “a bela morte e o cadáver ultrajado”, torna

evidente a desonra para o morto que tem seu corpo violado e negado às honras fúnebres adequadas.

O historiador francês analisa o caso de Heitor, que após ser derrotado por Aquiles é arrastado até

o acampamento grego. Esse tipo de morte vai de encontro com a ideia da morte heroica, exaltada

como um feito louvável. Se a juventude e a beleza refletem, no corpo do herói abatido, a morte

heroica, ultrajar o cadáver inimigo adquire um significado oposto (VERNANT, 1989, p.53). A

morte heroica, na Ilíada, está ligada ao personagem Aquiles, que decide ir à guerra pela glória de

que seus feitos serão lembrados eternamente. Na Eneida, a sombra de Deífobo apresenta diversas

mutilações, o que na análise de Vernant é um elemento de ultraje para com o corpo do morto

(SEAGAL apud Vernant, 1989, p. 53). Outra evidência desse ultraje é a não-presença do corpo nos

ritos funerários, uma vez que Eneias não conseguiu localizá-lo. Mesmo com a falta de alguns ritos,

o príncipe troiano encontra-se no Orco, o que se deduz que passou pelo Estige e conseguiu entrar

no mundo dos mortos. Nesse caso, o que garantiu a travessia de Deífobo pelo Estige? E podemos

considerar como um caso de cadáver ultrajado?

Sobre as práticas funerárias, percebe-se que há uma impossibilidade em realizar os ritos

devidos. Mesmo assim Eneias afirma ter feito o que lhe fora possível. Nesse caso, chamar pelos

manes de Deífobo, demarcar o suposto espaço de enterramento com as armas do troiano e ergueu-

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se a tumba do mesmo. A partir disso, podemos entender que o acesso ao outro mundo não é

restringido apenas às almas que têm todos os rituais executados, mas sim aos que realizam as

práticas devidas e possíveis. Sendo assim, as práticas funerárias foram atendidas e a sombra de

Deífobo pode entrar no outro mundo. Acerca do cadáver ultrajado, aqui concordamos com a análise

de Mota que aponta o ultraje de Deífobo a partir das análises de Donal Kyle sobre a morte na Roma

Antiga (MOTA, 2011, p. 65). Segundo o autor, a negação do cuidado com o morto era uma forma

de punição para além da morte (Mota, 2011, p. 65 apud KYLE, 1998, 20-23). A forma mutilada

de Deífobo é uma evidência desse ultraje, porém, apesar de ultrajado, este encontra-se no mundo

dos mortos, o que pode nos levar a pensar que esse tipo de punição se “dissolve” quando o morto

tem os ritos funerários praticados em sua homenagem.

Pensando no espaço desses heróis, Virgílio não o descreve ou adjetiva. Apenas restringe-se

a dizer que este é um espaço dedicado aos guerreiros. Neles não há uma distinção entre gregos e

troianos, sendo assim habitados pelos heróis de ambas as partes. O caráter de escuridão permanece,

mas não é acompanhado por outros adjetivos negativos, como nos espaços anteriores. Sendo assim,

percebemos um nível de gradação entre os primeiros (Limen Primus e Campos lugentes) e este

último. Podemos levantar a hipótese de que por ser um espaço destinado aos heróis, bravos

guerreiros com honra e glória, os aspectos negativos não sejam de maior evidência nestes campos.

Sendo assim, a partir da comparação com os outros espaços, este seria um dos ambientes que a

conduta moral poderia levar ao fim da vida, pois os outros dois espaços que Eneias percorre se

destinam apenas a dois tipos distintos: os que foram vis, e os seres divinos. Logo, onde mais poderia

destinar-se as almas daqueles que seguem a moral romana, sendo virtuosos?

A saga de Eneias segue no Orco e Sibila avisa que há uma bifurcação no caminho, logo

após os Campos Últimos. Os caminhos distintos levam aos dois lugares mais opostos de todo o

mundo dos mortos: O Tártaro e os Campos Elíseos. Percebe-se essa distinção rapidamente na fala

da sacerdotisa de Apolo, que diz:

Nox ruit, Aenea; nos flendo ducimus horas.

Hic locus est, partes ubi se uia findit in ambas: Dextera quae Ditis magni sub moenia tendit,

Hac iter Elysium nobis; at laeua malorum

Exercet poenas et ad impia Tartara mittit

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“A noite, Eneias, avança, e a chorar nós gastamos o tempo.

Ao ponto exato chegamos em que se divide o caminho:

O da direita nos leva ao palácio do nobre Plutão,

Rumo do Elísio; o da esquerda, às escuras estâncias do Tártaro,

Onde os maldosos as penas recebem de quanto fizeram”

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v.539 – v.543).

O Tártaro está destinado aos maldosos, aos que por vontade cometeram faltas e delitos

graves. Por estes crimes pagarão no espaço do Tártaro. Esse espaço de punição distingue-se dos

demais, uma vez que os primeiros eram habitados por mortos que cometeram atos contra si mesmo

(os suicidas), ou pela vida perdida precocemente (as crianças recém-nascidas mortas) ou por uma

razão muito específica, como o amor malfadado. No Tártaro estão os que agiram contra os deuses

de forma vil e injusta. Em contrapartida, no Elíseos encontra-se o palácio de Plutão, uma vez que

este é um ser divino e só poderia habitar o mais sagrado dos espaços do Orco. A bifurcação no

caminho evidencia de forma proposital os dois extremos do mundo dos mortos na narrativa de

Virgílio. O poeta, porém, não se restringe a diferenciar esses dois espaços apenas com essa

demarcação. Segue-se a narrativa e Eneias deparasse com a seguinte visão:

Respicit Aeneas súbito et sub rupe sinistra

Moenia lata uidet, triplici circumdata muro,

Quae rapidus flammis ambit torrentibus amnis, Tartareus Phlegethon, torquetque sonantia saxa.

Porta aduersa ingens solidoque adamante columnae,

Uis ut nulla uirum, non ipsi exscindere bello

Caelicolae ualeant; stat férrea turris ad auras,

Tisiphoneque sedens, palla succincta cruenta,

Uestibulum exsomnis seruat noctesque diesque.

Hinc exaudiri gemitus et saeua sonare

Uerbera, tum stridor ferri, tractaeque catenae.

Vira-se Eneias, e viu no sopé de uma rocha, à sinistra,

Descomunal fortaleza por tríplice muro cintada,

Que o Flegetonte sombrio circunda com chamas do inferno;

Pedras de estrondo invulgar entrechocam-se na correnteza.

Em frente vê-se uma porta gigante de fortes colunas, De aço tão duro, que forças humanas, nem mesmo as espadas

Dos próprios deuses, podiam quebrá-las. Ao lado, uma torre,

Onde Tisífone se acha, com o manto coberto de sangue,

Sem pregar olhos, de noite e de dia a escrutar, vigilante.

Ouvem-se crebros gemidos, açoites vibrados com raiva,

Férreas batidas, barulho infernal de grilhões arrastados.

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 548 – v.558).

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Assim apresenta-se o Tártaro. A descrição deste espaço é, de fato, totalmente diferente dos

demais. Nele encontra-se uma fortaleza impossível de fugir ou ser resgatado, além das sentinelas

que vigiam o local. Flegetonte e Tisífone cumprem o papel de proteger e vigiar, cercando de fogo

e nunca dormindo, mantendo-se eternamente em alerta. Ouvem-se gemidos, barulhos infernais e

grilhões arrastando. A descrição apresentada nos remete a um ambiente de sofrimento e dor.

Podemos comparar e inferir um nível maior de negatividade ao Tártaro a partir do critério

narrativo: este ambiente tem uma descrição mais detalhada e rica quando colocados em

comparação aos outros espaços aqui analisados. Logo, podemos inferir que essa diferenciação na

narrativa se faz propositalmente, sendo uma ênfase necessária que Virgílio faz para apresentar o

Tártaro. Ademais, o Tártaro é o único espaço em que Eneias não entra de fato. Apenas observa

distante a fortaleza impenetrável e escuta-se os barulhos já mencionados. Ao ver o Tártaro o

troiano pergunta à Sibila que crimes foram cometidos para àquelas almas estarem sofrendo tais

punições (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v.560 – 561). Mais uma vez a sacerdotisa de Apolo

responde:

Dux inclute Teucrum,

nulli faz casto sceleratum insistere limen;

sed me cum lucis Hecate praefecit Auernis

ipsa deum poenas docuit perque omnia duxit.

Gnosius haec Rhadamanthus habet, durissima regna, castigatque auditque dolos subigitque fateri

quae quis apud súperos, furto laetatus inani,

distulit in seram commissa piacula mortem.

“Famoso caudilho dos Teucros,

a ninguém puro permite-se entrar neste ambiente de crimes.

Porém, quando Hécate me colocou como guarda do Averno,

fez-me um relato de todas as penas e tudo mostrou-me.

O radamanto cretense aqui o mando duríssimo exerce.

Ele interroga os culpados e os pune, e os malvados obriga

a confessar os delitos ocultos em vida, com dolo, procrastinando o castigo até o último aceno da morte”

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v.562 – 568).

No trecho acima percebemos uma lógica narrativa interessante e igualmente conhecida.

Sibila afirma que nenhum ser puro pode entrar no Tártaro, sendo este espaço destinado tão somente

às almas vis e que cometeram delitos em vida. Radamates, um dos três juízes do Orco, é quem

julga e condena essas almas, similar ao papel de Minos no Limen Primus. A sacerdotisa continua

sua fala e afirma que o que sabe sobre o Tártaro é graças à deusa Hécate, que lhe contou o que

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somente os deuses poderiam saber. Aqui Virgílio utiliza o princípio metodológico para legitimar a

descrição e as informações obtidas sobre o espaço do Tártaro74. Tão semelhante à inspiração das

Musas, que revelam ao poeta a verdade sobre os tempos míticos, aqui também é um ser divino que

revela aos mortais uma verdade que estes jamais poderiam saber por si só. E se soubessem, não

teriam como revelá-las, uma vez que estariam presos no sofrimento eterno dessa fortaleza. O

recurso narrativo do princípio metodológico mostra-se essencial no Canto VI, uma vez que se busca

tornar inteligível um espaço que, a priori, nenhum mortal tem acesso. Portanto, a visão do Tártaro

legitima-se a partir do divino, não precisando que o herói troiano percorra este espaço.

As punições ocorridas nesse espaço remetem-se, em geral, à desordem e ato contra os

deuses. Virgílio lista alguns seres mitológicos que são punidos no Tártaro, dentre eles os Titãs, por

lutarem contra Júpiter. Pirítoo, mortal que entrou no Orco para raptar Prosérpina, também se

encontra no Tártaro. Estes dois são exemplos dentre outros que o poeta romano utiliza para mostrar

que qualquer ato contrário aos deuses é uma ofensa digna de ir para este ambiente de sofrimentos

sem fim. Entretanto, não é apenas as faltas com os deuses que levam às almas para esse destino

terrível. Nos versos 608 ao 615 Virgílio descreve os crimes que levam ao Tártaro:

Hic, quibus inuisi fratres, dum uita manebat

pulsatusue parens et fraus innexa clienti,

aut qui diuitiis soli incubuere repertis

nec partem posuere suis (quae máxima turba est)

quibe ob adulterium caesi, quique arma secuti

ímpia nec ueriti dominorum fallere dextras,

inclusi poenam expectante. Ne quaere doceri

quam poenam, aut quae forma uiros Fortunaue mersit.

Quem aos irmãos nutriu ódio no rápido curso da vida,

Os próprios pais agrediu, mal cuidaram das causas dos clientes;

Ou, grandemente egoístas, juntaram tesouros quantiosos, Sem repartir com os parentes sua riqueza – e são tantos! –

Quem no adultério morreu, os sequazes da guerra impiedosa

Contra seus próprios senhores, agora, ali mesmo encerrados,

A punição os aguarda. Não queiras saber os castigos

De cada um, o modelo da pena a Sorte lhes trouxe

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 608 – 615).

Nota-se, de antemão, que ter uma má relação (para não dizer desonrar) com a família é um

delito tão grave que os que o fazem estão no Tártaro. Segundo Mota, atentar contra o progenitor é

considerada uma ofensa aos mores romano (MOTA, 2011, p. 81). Dessa forma, desonrar o pater

74 Sobre o princípio metodológico, falamos sobre ele no capítulo II e trata-se da questão da veracidade da narrativa.

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família traz consigo uma atitude contrária à moral romana. Ao pensarmos na figura de autoridade

do pai, enquanto autoridade do núcleo familiar, este demandava respeito dos filhos, esposa e

escravos. Segundo Paul Veyne, um menino permanecia sob a autoridade paterna e só se tornava

inteiramente romano, “pai de família”, após a morte do pai (VEYNE,2009, p.38). Juridicamente os

filhos estavam limitados à figura do pater Famílias até tornar-se o novo chefe da família. Tamanha

presença frente à sociedade exigia, naturalmente, respeito dentro desse núcleo familiar e desonrar

essa norma conferia um grave delito.

Outro crime condenável é o que chamamos de soberba. Sibila conta que os que não repartem

a riqueza estão condenados a sofrerem no Tártaro. Pensando sobre isso, na sociedade romana o

evergetismo era uma prática comum em todas as partes do Principado, o que pode apresentar-se

como uma relação direta com o crime de acumular suas riquezas e não as dividir. No evergetismo

essa generosidade se faz ao tesouro público, usado para financiar jogos ou obras cívicas na cidade.

Veyne relaciona a prática do evergetismo à dignidade, virtude fundante para a moral romana e que

acompanha Eneias ao longo de sua epopeia (VEYNE, 2009, p. 104). O adultério é uma atitude

reprovável. Sobre isso, percebe-se que durante o Império o adultério realizado por homens é tão

grave quanto o realizado por mulheres, o que demonstra um delito que não vale para apenas um

dos gêneros (VEYNE, 2009, p.54). Vale salientar que o Principado de Augusto é marcado por uma

reforma moral e religiosa, o que altera algumas concepções da cultura e moral romana. Quanto a

isso, Veyne assinala que o casamento, por exemplo, durante a República é visto como um contrato

doméstico, em uma relação de dominação. Já no Império, o casamento se assemelharia a um pacto

de amizade (VEYNE, 2009, p.52). O autor atribui essa mudança da moral principalmente ao

estoicismo, entretanto, o adultério continua sendo visto, antes ou depois das reformas de Augusto,

como um ato recriminado.

Podemos perceber, a partir da construção do espaço do Tártaro, mas não somente dele, que

estes espaços narrados no Canto VI não limitam-se apenas à uma construção espacial comum, de

forma a generalizar uma relação dicotômica entre vivos-mortos, mas serve para a construção de

uma conduta moral, uma vez que os atos tomados em vida determinam qual ambiente sua alma irá

habitar no Orco. Por essa ótica, Virgílio parece não somente querer apresentar um espaço

desconhecido para seus contemporâneos, ou mesmo construir uma ligação narrativa dentro dos

moldes tradicionais da epopeia. O poeta busca, além dessa construção espacial, reafirmar as

virtudes do cidadão romano, representado na figura de Eneias, e as punições que determinadas

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faltas cometidas em vida podem acarretar como consequência para o morto. Portanto, podemos

pensar que a construção do espaço na narrativa do épico também tem como objetivo do autor a

construção (ou reafirmação) de uma moral, ao qual a sua forma de conduzir a vida determina sua

punição no outro mundo.

Seguindo por esse caminho, ao analisarmos a construção narrativa dos Campos Elíseos,

percebermos que este é onde habitam os seres puros, divinos, e por isso sua descrição vai em uma

direção completamente oposta ao de todos os outros espaços do Orco. Devemos lembrar que os

Campos Elíseos é onde Eneias caminha livremente e encontra seu pai, Anquises, e toda a sua gens.

Lá o troiano, e futuro romano, experiencia vividamente o ambiente75. Para ter acesso aos Campos

Elíseos, primeiramente é ordenado a Eneias que deposite o ramo dourado no portão do Palácio de

Plutão (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 635 – 636). O ramo, que já o ajudara com Caronte,

simboliza a pureza e legitima a entrada da Eneias nesse espaço reservado aos seres divinos. E assim

descreve Virgílio os Campos Elíseos:

His demum exactis, perfecto munere diuae,

Deuenere locos laetos et amoena uirecta

Fortunatorum nemorum sedesque beatas. Largior hic campos aether et lumine uestit

purpureo solemque suum, sua sidera norunt.

Pars in graminheis exercent membra palaestris,

Contendunt ludo et fulua luctantur harena;

Pars pedibus plaudunt choreas et carmina dicunt.

Completo o rito e, já havendo cumprido o mandado da deusa,

Chegam a uns sítios graciosos e a amenos vergéis, também ditos

‘afortunados’, moradas das almas felizes, sem manchas.

Nestas paragens é o éter mais puro, e uma luz mais brilhante

Tudo ilumina; sol próprio conhecem, privadas estrelas.

Dos moradores, alguns se exercitam em campos de grama

Ou se divertem de várias maneiras na areia dourada;

Outros em coro volteiam, ao ritmo de belas cantigas (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v.637 – v.644).

Virgílio narra um espaço bem distinto ao que analisamos até aqui: primeiramente, neste não

há sombras, muito pelo contrário, pois uma “luz brilhante tudo ilumina”; o éter mais puro habita

nesse ambiente e descreve-se como um lugar dos “afortunados”, aos que não tem manchas. A

75 No capítulo IV abordamos mais a fundo a funções narrativas e intenções de Virgílio ao relacionar Eneias com a gens

Iuli. Nesse momento nos atentaremos apenas à descrição feita dos campos Elíseos.

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pureza aqui refere-se à falta de delitos ou desvios para com a conduta, esta sendo atingida

praticamente por deuses, uma vez que estes têm uma ação perfeita, divina76. Nesses campos, ao

invés das almas sofrerem castigos ou lamentarem-se pelos amores perdidos, exercitam-se em

campos e divertem-se, tornando o além-vida muito mais reconfortante, muitas vezes, do que a

própria vida. A partir dessa narração, Virgílio monta os Campos Elíseos como o espaço mais

positivo dentre os narrados no Canto VI da Eneida. Quando falamos aqui em positivo, entendemos

que a oposição dos adjetivos cria um juízo de valor, e mensuramos este a partir da dicotomia

virtude-desvios morais. Esta oposição, ao que nos concerne, apresenta a distinção dos espaços e

permeia todas as outras discussões. Sendo assim, as virtudes são exaltadas, vistas como positivas,

e sempre estão ligadas a Eneias, o herói da epopeia. As oposições a essas virtudes, demonstradas

ao descrever o Tártaro, são expostas e a mensuramos como negativas. Sendo assim, como

demonstrado, outras dicotomias surgem a partir dessa divisão, desde os mortos que têm seus ritos

executados e os que não têm, até àqueles que deverão habitar cada um dos espaços do Orco.

Percebemos, por fim, que a conjunção desses espaços constrói (e compõem) o imaginário

de Virgílio, sendo palco para uma forma de apresentação da moral romana e de sua importância

para com a vida no pós-morte. O espaço do Orco se forma a partir de uma concepção mítica, tendo

como base a resposta de uma pergunta fundante, tal qual Tuan o referenciava. Entretanto, não se

limita apenas a isso, pois a narrativa apresenta outros elementos que aproxima o leitor de uma outra

realidade, a dos mortos. Dessa maneira, os espaços não são descritos de forma aleatória ou não têm

significação para os vivos. Virgílio busca agenciar, Tanto geograficamente, a partir das referências

a rios e bosques, como a partir da utilização de símbolos e mitos do mundo romano, uma construção

desses espaços que compõem o Orco. Podemos observar essa construção na narrativa a partir dos

significados e adjetivos elencados a cada um e sua conotação, positiva e negativa, a partir da

descrição dos mortos que ali habitam, pelos atos realizados em vida. O poeta, então, transforma o

Orco em um espaço organizado, delimitado, regidos por uma lógica de punição e bençãos, a qual

todos os mortos estarão submetidos.

76 Devemos lembrar que nem todos os que habitam ou entram (no caso de Eneias e Sibila) nos Campos Elíseos são

deuses. Anquises, assim como Sibila, não o são, Entretanto, todos carregam consigo marcas do divino: Sibila é uma

sacerdotisa de Apolo; Enéias é um semideus e Anquises deitou-se com Vênus, além de ser parte da gens Iuli, ao qual

tem, no século I a.C. representantes divinizados como Júlio César e Otávio Augusto. É esta gens que se apresenta mais

atentamente nos versos finais do Canto VI.

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CAPÍTULO IV: AS TOTALIDADES NARRATIVAS NO CANTO VI DA ENEIDA

O referente capítulo tem por objetivo a análise do Canto VI da Eneida a partir da

metodologia de análise textual de Jerzy Topolski77. Na análise de Topolski são destacadas duas

estruturas para análise do texto: a estrutura horizontal e a estrutura vertical. Segundo o autor, a

análise da estrutura horizontal não seria um conjunto de enunciados colocados em sequência, mas

sim pequenas totalidades narrativas que formam totalidades maiores (TOPOLSKI, 1999, p. 63).

Dessa maneira, as totalidades narrativas podem ser analisadas tanto em conjunto como separadas,

uma vez que sua lógica encerra em si mesma e, ao mesmo tempo, ajuda a construir um alicerce

para a narrativa (e ideia) central. Isolamos então a análise do Canto VI para entendermos como a

lógica narrativa funciona no épico escrito por Virgílio e quais totalidades são apresentadas ao longo

dos versos, entretanto sabemos que o Canto VI compõe uma parte fundamental para toda a narrativa

da epopeia e que pode servir para uma análise mais abrangente acerca da obra. Já a estrutura vertical

consiste em três subestruturas que estão dispostas de maneira articulada (TOPOLSKI, 1999, p. 63).

As subestruturas são: 1) Subestrutura de informação; 2) Subestrutura de retórica; 3) Subestrutura

de política. É importante destacar que o autor não as coloca como uma ordem de importância e

muito menos dependente uma da outra, mas que ao longo da narrativa o sentido da mesma se

constrói com base nessas três estruturas de forma que uma causa influência na outra. Em termos

gerais, esses critérios correspondem as influências externas que levam o autor a escrever sua

narrativa.

A subestrutura de informação, segundo Topolski, transmite as totalidades narrativas do

autor, ou seja, a sua visão da história que está narrando. No caso da Eneida, podemos relacionar a

subestrutura de informação com a história da fundação de Roma que Virgílio se propõe a narrar (

VIRGÍLIO, Eneida, canto I, v. 1 – 10). Já a subestrutura de retórica inclui instrumentos de

persuasão inseridos no texto para lidar com grupos distintos, ou seja, são as estratégias utilizadas

ao longo do texto para convencer e criar uma ligação com o leitor. No caso de Virgílio, podemos

atribuir à subestrutura de retórica os elementos narrativos que estruturam o texto e as referências à

77 Jerzy Topolski foi um historiador polonês ao qual escreveu, entre outros assuntos, sobre teoria e metodologia da

história. Para mais informações sobre as totalidades narrativas, ver TOPOLSKI, Jerzy. O papel da lógica e da estética

na construção de totalidades narrativas na historiografia. In MALERBA, Jurandir (Org.) História e Narrativa.

2016. p. 59 – 73.

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história e cultura romana, o que aproxima a história narrada com o contexto histórico de sua época.

A terceira subestrutura é a política, a qual está ligada a uma ideologia que o autor compartilha (ou

não) e que se reflete em seu texto, direta ou indiretamente. Na Eneida percebemos a força política

empregada dentro da narrativa e temos como objetivo neste capítulo demonstrar, a partir da análise

textual do Canto VI, como as totalidades narrativas sugerem a legitimação do Principado de Otávio

Augusto. Disto isso, todos os critérios podem ser observados na narrativa da Eneida e servem como

uma ferramenta metodológica fundamental para a análise do discurso de Virgílio.

4.1 A chegada em Cumas e o encontro com Sibila

Devemos relembrar algumas passagens importantes do enredo a fim de contextualizar o

leitor antes de entrarmos na análise. No final do canto V, o capitão de umas das naus troianas,

Palinuro, é lançado para fora da embarcação por Netuno e acaba sendo morto. Esse detalhe, a

princípio pequeno em meio aos grandes feitos narrados, é de extrema importância para

entendermos a sequência da narrativa: ao longo do Canto VI Eneias o reencontrará no Mundo

Inferior, buscando atravessar o rio Estige (v. 340 – v.345). A razão por encontrá-lo nesse local se

dá também no Canto V, quando em sonho Anquises, pai de Eneias, avisa-o que o teucro deve

encontrar-se com ele nos Campos Elísios, local em que reside as almas divinas no Orco.

Esses dois episódios ocorridos no Canto V nos são caros na análise do Canto VI, pois deles

desprendem-se valiosas informações acerca das práticas funerárias romanas e do imaginário da

morte. Para além disso, poderemos perceber como a narrativa avança ao longo do capítulo até o

momento de encontro do passado com o presente: Eneias e Otávio Augusto.

Partindo desses princípios, o Canto VI começa com a chegada de Eneias e seus

companheiros a Cumas78. (v. 1 – v. 2) Os troianos montam acampamento em cavernas, enquanto

Eneias e alguns companheiros procuram pela sacerdotisa de Apolo, Sibila (v. 7 – v. 10). Ao entrar

no bosque de Hécate, deusa infernal ligada a Ártemis, Virgílio narra parte do mito do Minotauro

(v.18 – v. 33). Tal referência ao mito justifica-se, na narrativa, por Dédalo ter voado do labirinto e

pousado no monte de Cumas. Mas essa história, escrita nas portas do templo de Apolo, introduz o

Canto para a chegada da sacerdotisa (v. 34 -36).

Assim fala a sacerdotisa para Eneias:

78 Antiga cidade grega que foi conquistada por Roma em 338 a.C.

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Non hoc ista sibi tempus spectacula poscit; nunc grege de intacto septem mactare iuuencos

praestiterit, totidem lectas de more bidentes

Não é o momento de vos entreterdes com tais espetáculos.

Cumpre imolar sete touros perfeitos, de acordo com os ritos,

e outras ovelhas de número igual, as mais belas do armento

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, V.36 – V.39).

O encontro dos dois personagens inicia-se com a necessidade de um sacrifício para entrada

no Mundo Inferior. Como o Orco é um local sagrado, habitado não por vivos, mas sim pelos mortos

mostra-se necessário que àquele que deseja percorrer tais espaços seja permitido entrar. Devemos

atentar também que Sibila é uma sacerdotisa de Apolo, deus regente de Troia na Ilíada. Podemos

aferir e em outras passagens do Canto VI evidenciam a característica de Eneias como um troiano

(Tros Aenea, v. 52), o que mudará ao longo da narrativa do canto.

A narrativa segue com uma descrição da entrada para o Mundo Inferior feita pelo narrador

(v. 42 – v. 45), que descreve essa entrada por uma caverna, com cem portas e cem caminhos

subterrâneos (Excisum Euboicae latus ingens rupis in antrum/Quo lati ducunt aditus centum, ostia

centum). A multiplicidade de caminhos e entradas para o Orco pode sugerir ao menos duas vias de

interpretação: 1) a possibilidade de chegar por diversos meios até esse outro mundo; 2) tantos

caminhos dificultariam a chegada até o outro mundo, tornando-se assim essa entrada um verdadeiro

labirinto. Analisamos essa passagem a partir da segunda via de interpretação, uma vez que o mito

do Minotauro é exposto no começo do Canto, construindo assim uma linha coerente na narrativa.

Para além dessa possibilidade narrativa, alguns versos à frente percebe-se a necessidade de ritos

para a abertura do caminho até o Dite (v. 133 – v.155), corroborando com a segunda interpretação.

Nos versos seguintes (v. 46 – v. 53) Sibila é “possuída” por Apolo e fala a Eneias o

seguinte:

Unde ruunt totidem uoces,responsa Sibyllae.

Ventum erat ad limen, cum uirgo. “Poscere Fata

Tempus”, ait; “deus, ecce, deus!” Cui tália fanti

Ante fores súbito non uultus, non color unus,

Non comptae mansere comae; sed pectus anhelum,

Et rabie fera corda tumente. Maiorque uideri Nec mortale sonans, afflata est numine quando

Iam propiore dei. “Cessas in uota precesque,

Tros”, ait, “Aenea? Cessas? Neque enin ante dehiscent

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Attonitae magna ora domus”

Mal alcançaram o umbral, “eis chegado”, lhes diz, “o momento

Certo para esta consulta! Eis o deus! Eis o deus!”, repetia.

Súbito, apenas as portas alcança, mudou-se-lhe o aspecto;

Em desalinho os cabelos, os sons mais do fundo, ofegante,

O coração assaltado por fúria incontida, parece

De bem maior estatura e que a voz diferente lhe soasse

Que a dos mortais, por falar algum nume ali mesmo escondido. “Como? Demoras com os votos e as preces, Eneias de Troia?

Pois antes disso os portões deste templo famoso não se abrem

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 46 – v. 53).

A passagem acima deixa clara a necessidade de um rito para adentrar a esse espaço do

submundo. Nesse aspecto, o rito sacraliza o espaço, tornando-o um ambiente sagrado, divisor entre

vivos e mortos. É interessante notar que a ritualização liga os vivos com esse aspecto do divino79,

tornando necessária uma correta execução destes. Ademais, segundo Regina Maria Bustamante, a

religião romana tem como característica ser ritualística. Sobre isso a historiadora escreve:

As análises dos serviços religiosos, os debates no senado, os escritos dos antigos poetas e

dos pensadores apresentam a religião romana como ritualística. Deve-se, entretanto,

entender que, em seu sentido latino, o termo ritus designava um modo de ação, de

celebração dos serviços religiosos, sem abarcar o conteúdo próprio deste serviço. Para este conteúdo, isto é, para o que nós chamamos atualmente de ritos, os romanos empregavam

dois termos: sacra e caerimoniae. Nenhum historiador moderno questiona o formalismo

da religião dos antigos romanos. Mas, tradicionalmente, a historiografia o interpretava

pejorativamente, reproduzindo as críticas dos pensadores cristãos, que inseridos num

contexto de polêmica contra o politeísmo, acentuavam o caráter “frio”, “vazio de sentido”

das suas obrigações rituais, enquanto a fé cristã e seus dogmas atendiam às necessidades

dos homens. Tal postura foi revista com os estudos antropológicos atuais, que perceberam

a importância dos rituais para as sociedades que os praticavam (BUSTAMANTE, 2011,

p. 2).

Podemos entender que o caráter ritualístico romano perpassa a religião e tem sentido ao ser

praticada pelos seus cidadãos. Para além disso, devemos atentar, mais uma vez, ao fato da presença

de elementos narrativos que demarcam aqui a origem do Herói, até então, troiano: Apolo como

deus regente e protetor de Troia possui Sibila para apressá-lo acerca da realização dos ritos e, para

além disso, explicitamente o chama de “Eneias de Troia”, no verso 52, evidenciando que Eneias

ainda é muito mais um troiano do que um romano.

79 Utilizamos o termo “divino” como forma de apontar qualquer experiência religiosa que marque essa fronteira de

vivos e mortos, pensando aqui o espaço do morto, o além-vida, como um espaço sacralizado.

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Avançando na narrativa até os versos 82 a 98, Apolo, ainda apossado de Sibila, fala a

Eneias o que o aguarda no Lácio:

O tandem magnis pelagi defuncte periclis!

Sed terrae grauiora manent. In regna Lauini

Dardanidae uenient; mitte hanc de pectore curam;

Sed non et uenisse uolent. Bella, hórrida bela,

Et Thybrim multo spumantem sanguine cerno.

Non simois tibi, nec Xanthus, nec Dorica castra

Defuerint; alius Latio iam partus Achilles,

Natus et ipse dea; nec teucris addita Iuno

Usquam aberit, cum tu supplex in rebus egenis Quas gentes italum aut quas non oraueris urbes!

Causa mali tanti coniunx iterum hospita Teucris

Externique iterum thalami.

Tu ne cede malis, sed contra audentior ito

Quam tua te Fortuna sinet. Via prima salutis,

Quod minime reris, Graia pandetur ab urbe.

Ó tu, que alfim te livraste dos grandes perigos dos mares!

Outros, maiores, em terra te esperam: Aos reinos lavínios

Virão os filhos de Dárdano. Disso, porém, não receies;

Lastimarão muito cedo até lá terem vindo. Percebo

Guerras, terríveis encontros e o Tibre espumando de sangue.

Não sentirás falta aqui nem do Xanto, do torvo Simoente,

Nem do arraial dos aqueus. Já no Lácio nasceu outro Aquiles,

Filho também de uma deusa, e assim mesmo outra Juno, a inimiga Irredutível dos troas. Premido por tantos obstac’los,

De que nações, de que povos da Itália não vais socorrer-te!

E a causa, sempre, a mulher, novamente uma esposa de fora,

Tálamo estranho aos troianos.

Porém não cedas; com mais decisão para a frente prossigas

Quanto a Fortuna o deixar, pois a luz salvadora – o que nunca

Puderas crer – te virá de uma grande cidade dos dânaos

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, V 83 – V 98).

Apolo narra alguns acontecimentos acerca do futuro de Eneias e as batalhas que ele passará.

Deve-se salientar que essa visão do futuro que um deus oferece a um mortal também aparece na

Iliada. No épico grego, Zeus envia a Agamêmnon um sonho de que este conquistaria Troia, o que

alimenta o desejo do rei dos aqueus a continuar combatendo (Iliada, canto II, v. 7 – 15). Já no caso

de Eneias, Apolo envia sua premonição de forma mais direta, afirmando as dificuldades que

encontrará nas terras do Lácio.

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Outras referências à Iliada aparecem no trecho destacado. Ao citar heróis da guerra de

Tróia para explicar os tipos de desafios que aguardam por Eneias, a profecia de Apolo mostra-se

tanto um recurso narrativo para ligar o Canto VI aos próximos acontecimentos, como também

apresenta como habilidosamente Virgílio consegue referenciar e dar sentido a sua narrativa a partir

de outras histórias já consolidadas. Nesse sentido, vale destacar a presença dessas estruturas

narrativas que sustentam o enredo ao longo do épico, o que também nos releva sobre o refinamento

e conhecimento das fórmulas narrativas gregas por Virgílio.

Nos versos seguintes, Sibila retorna a possessão de si mesma e Eneias faz a ela um pedido:

que uma vez no mundo dos mortos, que a sacerdotisa o leve diretamente ao encontro do seu pai,

Anquises (v. 106 – v.109). A partir desse momento o diálogo entre Eneias e Sibila desenvolve-se

acerca de personagens mitológicos que conseguiram descer ao mundo Inferior ainda vivos. O herói

troiano elenca Orfeu (v. 119 – v.120); Pólux (v.121 – v.122) e Hércules (v.123) e argumenta que

como eles deve também merecer descer até o Orco. Nota-se que o argumento de Eneias se baseia

nos mitos gregos, colocando-o também sua causa como elegível e merecedora de tamanha tarefa.

Mas como foi possível a Eneias descer até os infernos?

4.2 Abrindo a entrada do Mundo Inferior

Os versos 133 a 155 nos ajudam a entender as tarefas que Eneias deve realizar para começar

sua jornada no reino de Plutão. Eneias deve trazer até Sibila um ramo com folhas douradas advindas

da floresta de Prosérpina, referenciada como “Juno infernal”, (Iunoni infernae, v. 138). Após

identificar esse pequeno ramo em meio a uma floresta escura em vales densos (Hunc tegit omnis

lucus et obscuris claudunt conuallibus umbrae. v.139) Eneias só poderá arrancar o ramo dourado

se esse for o seu destino (Fata uocant, v.147). Caso contrário, jamais poderá valer-se desse meio

para entrar no Mundo Inferior (aliter non uiribus ullis/ uincere nec duro poteris conuellere ferro,

v.148). Também devemos destacar que, assim como os outros heróis mitológicos, Eneias deve

descer ao Orco por um grande objetivo, sem desejos comuns, ressaltando assim mais uma

característica do herói, que se destina a realizar grandes feitos.

Eneias deve, então, achar o ramo para que a entrada do Orco se revele. Porém, ele só o

encontrará se este for o seu destino, ou seja, se realmente for necessário para o cumprimento do

seu dever encontrar Anquises. Podemos ver essa fórmula narrativa do destino regendo as ações do

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herói também no Canto IV quando Eneias recebe a mensagem de Mercúrio de deixar Cartago e a

rainha Dido para cumprir seu destino de fundar a nova Tróia (Canto IV, v. 223 – v. 237).

Outra tarefa ao qual é incumbido Eneias é a de praticar ritos funerários a um de seus

companheiros, como mostram os versos 149 ao 155, que diz:

Praeterea iacet exanimum tibi corpus amici (heu nescis) totamque incestat funere classem,

Dum consulta petis nostroque in limine pendes.

Sedibus hunc refer ante suis et conde sepulcro.

Duc nigras pecudes; ea prima piacula sunto.

Sic demum lucos Stygis et regna inuia uiuis

Aspicies”

Mas, enquanto isso – Mal sabes, coitado! -, insepulto, o cadáver

De um companheiro se encontra, o que a todos os mais contamina,

Enquanto aqui te demoras às voltas com esta consulta.

Antes do mais, o repouso lhe apresta, no túmulo o deita.

Seja a primeira expiação imolar reses negras do estilo.

Só desse modo hás de ver os domínios vedados aos vivos,

Selvas estígias (VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 149 – v. 155).

Destaca-se nessa passagem a característica de contaminação colocada ao morto insepulto

(incestat funere) ao restante dos companheiros. Aqui podemos inferir um elemento da religião

romana e seus costumes funerários. O morto insepulto era visto como causador de doenças e mau

agouros, sendo assim enterrado fora da cidade para não poluir a urbe (TOYNBEE, 1966, p. 43).

Outro rito que se destaca é a de limpeza do corpo na qual são chamados de ritos de expiação. A

função dos ritos de expiação é a de purificar o corpo do morto para sua entrada no Mundo Inferior

e também apresenta a característica de evitar contaminar o ambiente, mostrando-se como um dos

principais ritos funerários romanos (TOYNBEE, 1966, p. 44).

Cabe destaque também pensarmos acerca dos últimos versos destacados, quando Sibila

fala a Eneias que “Só desse modo hás de ver os domínios vedados aos vivos, Selvas estígias (Sic

demum lucos Stygis et regna inuia uiuis aspicies, v.154 – v.155). A sacerdotisa afirma que antes de

Eneias conseguir entrar no mundo dos mortos deve realizar os ritos funerários adequados ao seu

companheiro. Uma das chaves de entendimento para esse trecho do Canto é a que o espaço do

além-vida reserva-se àqueles que tiveram seus ritos funerários adequados. Essa ideia ganha força

mais à frente na narrativa quando Eneias encontra Palinuro, um dos seus companheiros, pois este

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não pode atravessar o rio Estige devido seu corpo não ter recebido as honras e ritos fúnebres

necessários, demarcando claramente a função mágica desses ritos na Eneida.

Eneias então encontra Miseno morto (v. 162 – v. 174) e como ordenado por Sibila realiza

os ritos fúnebres adequados (v.176 – v.184). Terminada a tarefa, o troiano deve completar sua outra

missão: achar o ramo dourado na floresta de Prosérpina. Ao deparar-se com uma floresta tão densa

e sem fim (Cum corde uolutat aspectans siluam immensam, v. 186) Eneias não consegue pensar

em como achará o ramo dourado, mas logo, ao ouvir sua prece, Vênus resolve ajudá-lo:

Atque haec ipse suo triste cum corde uolutat,

Aspectans siluam immensam, et sic uoce precatur:

“Si nunc se nobis ille aureus arbore ramus

Ostendat nemore in tanto, quando omnia uere

Heu nimium de te uates, Misene, locuta est”.

Vix ea fatus erat, germinae cum forte columbae

Ipsa sub ora uiri caelo uenere uolantes

Et uiridi sedere solo. Tum maximus heros

Maternas agnoscit aues laetusque precatur: Este duces,o, si qua uia est, cursumque per auras

dirigite in lucos, ubi pinguem diues opacat

Ramus humum. Tuque, o, dubiis ne défice rebus,

Diua parens.

E ao se deter na visão da floresta sem fim, revolvendo

No coração seus cuidados, destarte um pedido formula:

‘se nesta selva tremenda eu achasse o áureo ramo predito,

Tal como tão verazmente saiu tudo quanto a Sibila

Profetizou quanto a ti, ó Miseno!, o teu triste destino”.

Mal terminara, e eis que percebe a baixar do alto céu duas pombas

Gêmeas, aos olhos do herói claramente visíveis, que pousam

Na verde relva. Exultante, o magnânimo herói reconhece

Nos dois voláteis as aves maternas, e alegre prossegue:

“Sede-nos guia, se houver aí por cima caminho até o bosque, E dirigi vosso curso para a árvore densa onde o ramo

Faz sombra à terra! E tu, mãe, deusa augusta, não faltes ao filho

Nesta aflição!

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 185 – v.198).

A imagem de Eneias como filho de um mortal com uma deusa é reforçada mais uma vez

nessa passagem. Durante toda narrativa Virgílio reforça esse caráter divino em Eneias, o que irá

legitimar o povo romano enquanto sociedade e também as figuras ligadas ao herói do épico: Júlio

César e Otávio Augusto. Devemos salientar também que esses pequenos elementos vão

alimentando essa ideia central, na qual se intensifica nos trechos finais do Canto VI como veremos

mais adiante.

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Analisando o trecho, Eneias percebe a visão das pombas gêmeas como um auxilio divino de

sua mãe, Vênus (Maternas agnoscit) para encontrar o ramo. Também podemos perceber mais uma

fórmula narrativa utilizada no épico no que concerne aos deuses ajudando os heróis em suas

missões. Encontramos essa estratégia no Canto I da Ilíada, por exemplo, quando Apolo, após

receber o pedido de ajuda de Crises, em resposta a captura de sua sacerdotisa, lança uma peste

sobre as tropas dos Aqueus e ajuda o exército troiano em sua batalha (Ilíada, canto I, v. 11 – 68).

Nos versos finais Eneias pede para deusa não o deixe só nesse momento e, outra vez, Virgílio

ressalta a ligação maternal entre Eneias e Vênus (diua parens).

A narrativa segue com as pombas gêmeas pousando na copa de uma árvore (Sedibus optatis

geminae super arbore sidunt, v. 203) na qual o ramo dourado está. Rapidamente Eneias chega até

a árvore e arranca o galho áureo e leva-o até Sibila (Corripit Aeneas extemplo auidusque refringit/

Cunctantem, et uatis portat sub tecta Sibyllae, v. 210 – 211). Ao chegar até a sacerdotisa de Apolo

os últimos ritos funerários a Miseno estão sendo celebrados (v. 212 – v. 231) e Eneias prepara-se

para realizar os sacrifícios apresentados no começo do canto (v. 36 – v.39). Percebe-se uma

retomada da narrativa fechando assim um ciclo iniciado no começo do Canto VI: os sacrifícios

serão ofertados para a abertura da entrada do Mundo Inferior. Eneias vai até a entrada de uma

caverna em meio pantanoso (Spelunca alta fuit uastoque immanis hiatu, / scrupea, tuta lacu nigro

nemorumque tenebris, v.237 – v.238). Aqui Virgílio condiciona esse espaço a adjetivos que criam

imagens acerca do Orco. A utilização dos termos nigro e tenebris apresentam a ideia de

obscuridade e escuridão desse ambiente habitado pelos mortos. A narrativa segue e Virgílio assim

escreve sobre os sacrifícios de Eneias:

Quattuor hic primum migrantes terga iuuencos

Constituit, frontique inuergit uina sacerdos, Et summas carpens media inter cornua saetas

Ignibus imponit sacris, libamina prima,

Uoce uocans Hecaten caeloque Ereboque potentem.

Supponunt alii cultros tepidumque cruorem

Suscipiunt pateris. Ipse atri uelleris agnam

Aeneas matri Eumenidum magnaeque sorori

Ense ferit, sterilemque tibi, Proserpina, uaccam.

Tum Stygio regi nocturnas inchoat aras

Et solida imponit taurorum uiscera flammis,

Pingue superque oleum infundens ardentibus extis.

Para este ponto primeiro levou quatro negros novilhos;

A profetisa nos testos o vinho ritual lhes derrama.

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Logo depois, dentre os cornos as pontas das cerdas apara,

E, presto, às chamas sagradas lançou, as primeiras oblatas,

Alto chamando por Hécate, deusa no céu e no averno.

Outros as vítimas cortam por baixo e nas copas o sangue

Quente recolhem. Eneias, sacando da espada, uma ovelha

Negra oferece às Eumênidas, filhas da Noite, e à irmã Terra,

Deusa potente, e uma vaca, Prosérpina, estéril te vota.

Aras noturnas, depois, alça ao rei poderoso do Estige

e joga às chamas entranhas inteiras dos bois imolados;

Óleo abundante também sobre as vísceras quentes derrama

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v.243 – v.254).

Os sacríficos são realizados para os Deuses. Apesar de raros, a prática de sacrifício de

animais está envolvida na religião romana tendo como objetivo o auxílio dos deuses em alguma

tarefa (SPALDING, 1982, p.164). Aqui alguns seres mitológicos que habitam o além-vida são

citados: Hécate, a deusa dos caminhos e que faz referência também a Prosérpina, é a primeira a

receber os sacríficos em seu nome. Interessante notar a importância da deusa ao longo dessas

passagens, aparecendo mais vezes que o próprio deus do Orco, Plutão. Outro ponto importante

nesse trecho relacionado à figura de Hécate e Prosérpina está no verso 250 e 251: Eneias sacrifica

uma ovelha para as Eumênidas e uma vaca para Prosérpina. Se anteriormente o sacrifício a Hécate

já havia sido feito, por que há um novo sacrifício para Prosérpina? Hécate não está sendo

relacionada a Prosérpina nesse trecho? Nossa explicação sobre essa aparente confusão é de que as

deusas estão relacionadas, porém são entidades diferentes. Logo, faz-se necessário o sacrifício para

ambas.

A deusa Hécate tem atributos pouco definidos. Ela pode ser representada como aspecto de

vários deuses, como Diana e Apolo, assim como Prosérpina, são os mais recorrentes ao qual essa

deusa está ligada. Mais tarde veio a ser associada ao mundo dos mortos (KURY, 2003, p.172) e

Virgílio destaca essa característica da deusa no verso 247 (Hecaten caeloque Ereboque potentem)

ao qual Hécate está ligada tanto aos céus quanto ao Mundo Inferior. Mostrando a natureza diversa

da deusa, o autor nos permite especular que a Hécate retratada nesses versos está ligada também a

Diana, uma vez que a floresta e os sacrifícios de caça estão ligados à deusa, além da figura de

Hécate estar geralmente atrelada à irmã de Apolo. Ao pensarmos na lógica narrativa do Canto VI,

essa hipótese se apresenta com maior sentido do que a possibilidade de Hécate, nesse momento,

estar representando Diana, deusa da caça (BRANDÃO, 1987, p. 273). Optamos por esta hipótese

seguindo a indicação de João Ângelo Oliva Neto, ao qual relaciona Hécate com Diana (OLIVA

NETO, 2014, p. 873). Pensando na consistência da narrativa, percebemos e concordamos com o

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autor ao indicar Hécate como um aspecto de Diana ao qual recebe primeiramente os sacrifícios por

serem feitos na sua floresta e ser animais que serão imolados. Podemos relacionar também a relação

de Hécate com Diana a partir de uma relação de fronteiras: Diana é a deusa da caça, sendo também

a fronteira entre o mundo selvagem e o civilizado. Hécate, deusa das encruzilhadas, também

demarca a fronteira entre o mundo dos vivos e dos mortos.

Outros sacrifícios são realizados às criaturas infernais, como as Eumênidas, conhecidas

também como Fúrias e que habitam o Orco. As Fúrias apareceram outras vezes ao longo do canto,

principalmente quando relacionadas ao Tártaro. Também é citado, no verso 252, Caronte, o

barqueiro que controla a passagem pelo rio Estige (Stygio regi, v. 252) e a ele também são feitos

sacrifícios, uma vez que sua função se apresenta como essencial no além-vida.

Após os sacrifícios realizados à entrada do Orco abre-se e Eneias segue com Sibila,

enquanto o resto dos companheiros do troiano afastam-se do bosque (v. 255 – v.263). Nos versos

264 ao 267 Virgílio pede permissão aos Deuses infernais para narrar os acontecimentos e o além-

vida:

Di, quibus imperium est animarum, umbraeque silentes,

Et Chaos et Phlegethon, loca nocte tacentia late,

Sit mihi faz audita loqui; sit numine uestro

Pandere res alta terra et caligine mersas!

Deuses que o império exerceis sobre as almas, as sombras caladas,

o Caos sem luz, Flegetonte, moradas das noites silentes!

Seja-me lícito manifestar-me a respeito das coisas

Por mim ouvidas, contar os segredos do abismo e das trevas!

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, V. 264 – 267).

Virgílio utiliza uma fórmula narrativa bastante conhecida nos épicos com uma adequação:

a permissão das musas para narrar os feitos heroicos. Nos primeiros versos do Canto I o poeta

latino já havia feito isso ao pedir que a musa o recorde as causas e o motivo que levaram Eneias ao

seu destino (Musa, mihi causas memora, quo numine laeso, / quidue dolens regina deum tot uoluere

casus/ insignem pietate uirum, v. 8 – v. 10). No canto I da Odisseia e da Ilíada Homero também

invoca as musas para relatar os acontecimentos narrados (Ilíada, Canto I, v. 1-8; Odisseia, Canto

I, v. 1-5). Nota-se que esse aspecto da narrativa do épico é utilizado para o início do que será

narrado, o que nos leva a pensar a intenção de Virgílio ao refazê-la adaptada a esse momento da

narrativa do Canto VI.

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Devemos observar que Virgílio utiliza esse recurso no meio da narrativa e não como

abertura do canto, como geralmente percebemos nos épicos. Outro ponto refere-se a quem ele pede

permissão para narrar os acontecimentos: não são mais as musas, mas sim aos seres infernais (Di,

quibus imperium est animarum, umbraeque silentes). Dessa forma, o poeta adapta a fórmula para

o Mundo Inferior, demarcando, a partir da narrativa, um novo começo. Após essa passagem Eneias

caminhará pelo Orco e vivenciará um espaço que não é o dele, sendo assim proibido aos vivos. O

fato de Virgílio demarcar tão firmemente esse momento da narrativa reforça a importância do além-

vida para o poeta enquanto recurso narrativo, e, afinal, o Mundo Inferior se mostra um ponto de

reviravolta em todo o enredo: Eneias caminha pelos diversos espaços do Orco, encontra com seu

pai Anquises, vê as almas de Júlio César e Otávio Augusto e sai do Averno80 não mais como um

troiano e sim como o primeiro dos romanos.

4.3 O orfismo na narrativa do Canto VI

O Canto VI segue com Eneias entrando no Mundo Inferior e passando por diversos espaços

dentro do Orco. Nesses locais o protagonista da Eneida se encontra com companheiros de batalha,

heróis mitológicos, criaturas do submundo e almas divinas. De todos esses encontros a narrativa

segue e desemboca no principal deles: Eneias encontra-se com toda a sua gens, desde os sucessores

como seus antepassados. Como Virgílio consegue trazer sentido para esse momento da narrativa?

Como se justifica a possibilidade de ver no Mundo Inferior os indivíduos que ainda irão nascer?

Ademais, qual o sentido de mostrar a Eneias toda sua linhagem e o futuro?

Para responder essas questões é necessário entender, primeiramente, os elementos

utilizados por Virgílio para tornar a narrativa lógica. Uma das estratégias utilizadas pelo autor se

mostra na capacidade de agenciar diversos conhecimentos dentro do enredo: conseguimos

identificar o uso dos mitos, por exemplo, como um elemento agregador e argumentativo para as

decisões de Eneias, assim como a capacidade de mostrar elementos e categorias similares aos

épicos gregos, como a Ilíada e a Odisseia. Percebemos, portanto, que Virgílio se inspira e trabalha

em seu texto com elementos distintos, mas que se organizam e dão sentido para as ações dos

personagens no texto. A partir disso, destacamos nesse tópico a utilização de uma doutrina nascida

na Grécia chamada “Orfismo”, utilizada para dar sentido narrativo nas ações de Anquises e Eneias

80 Lago da Campânia, na Itália, consagrado a Plutão. Cria-se que o lago Averno era uma das entradas dos Infernos

(SPALDING, 1982, p. 31).

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quando conversam nos Campos Elíseos. Entretanto, devemos explicar quais as bases e o que é o

orfismo. A partir dessa base poderemos identificar evidências na narrativa em que sugerem o

diálogo entre Virgílio e a doutrina grega.

Os estudos sobre o orfismo esbarram com algumas questões complexas. Desde a validade

das fontes, escassas e de difícil compreensão, até a maneira pela qual essa doutrina foi sendo

transmitida ao longo dos séculos. Podemos afirmar, entretanto, que as práticas órficas existem na

Grécia Antiga pelo menos desde o século VI a.C. Seu nome vem de Orfeu, o fundador da doutrina

e herói mítico que desceu até o Hades para reencontrar Eurídice. Para entendermos minimamente

sobre o orfismo é intrínseco compreender acerca da figura de Orfeu dentro da mitologia grega.

Orfeu é tido, inicialmente, como um grande poeta detentor do canto mais belo e habilidades

sem iguais com a lira. Conta o mito que Orfeu apaixona-se por Eurídice e após a morte de sua

amada o poeta desce até o Hades para tentar resgatá-la de tal destino. Após mostrar sua canção para

o deus do submundo e Perséfone, Hades concorda com a libertação da alma de Eurídice e que ela

pode voltar com Orfeu para o mundo dos vivos, porém este não deveria olhar em momento algum

para Eurídice até o momento em que ambos conseguissem sair do mundo subterrâneo. Segundo o

mito, ao atravessar os portões do Hades, Orfeu não consegue conter sua alegria e vira-se para trás

e olha para a sua amada, que ainda não havia cruzado a fronteira dos dois mundos. Dessa forma a

alma de Eurídice perde-se para sempre no mundo dos mortos e Orfeu volta do submundo sem a

sua companheira. O fim do herói se dá ao ser atacado pelas mênades e sua cabeça é lançada ao mar

(BRANDÃO, 1990, p. 34).

No mito, a descida aos mortos que Orfeu faz se dá por uma razão nobre e virtuosa: o amor

por Eurídice. Brandão, entretanto, nos aponta uma outra razão baseada em seus estudos. Para o

classicista, a ida de Orfeu até o Hades se faz para conhecer o mundo dos mortos e, posteriormente,

guiar os homens pelo caminho conhecido pelo poeta (BRANDÃO, 1990, p.33). Tal leitura se faz

muito coesa e importante quando relacionamos o mito de Orfeu com a doutrina órfica, para a qual

um dos princípios trata do retorno dos homens a essa vida para além da morte. Nesse sentido, só

poderia conhecer os caminhos e espaços do outro mundo quem já tivesse andado pelos umbrais do

Hades. Orfeu oferece esse conhecimento aos homens e a partir dessa ideia a doutrina órfica se

fundamenta. Em contrapartida, não sabemos até que ponto o mito de Orfeu é utilizado pela doutrina

para corresponder aos preceitos que lhe são pregados ou se, de fato, existiu um “Orfeu histórico”.

De qualquer maneira, o mito se apresenta como peça fundante da doutrina e segue para além disso.

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O orfismo, enquanto doutrina, mostra-se marginal à cultura cívica helênica. Vernant nos

mostra que algumas características, até mesmo a cosmogonia do ponto de vista órfico, tem

disparidades dentro do pensamento religioso grego:

Um primeiro traço do orfismo aparece, assim, desde a origem: uma forma “doutrinal” que

o opõe tanto aos mistérios e ao dionisismo quanto ao culto oficial, para aproximá-lo da

filosofia. Essas teogonias são conhecidas por nós em versões múltiplas, mas cuja

orientação fundamental é a mesma: assumem o contraponto da tradição hesiódica. Em

Hesíodo, o universo divino organiza-se segundo um processo linear que conduz da

desordem à ordem, a partir de um estado original de confusão indistinta até um mundo

diferenciado e hierarquizado sob a autoridade imutável de Zeus. Entre os órficos, é o

inverso: na origem, o Princípio, Ovo primordial ou Noite, exprime a unidade perfeita, a

plenitude de uma totalidade fechada. Mas o Ser degrada-se à medida que a unidade se divide e se desloca para fazer aparecer formas distintas, indivíduos separados. A esse ciclo

de dispersão deve suceder um ciclo de reintegração das partes na unidade do Todo

(VERNANT, 1992. p. 87-88).

A cosmogonia grega está baseada fortemente em Hesíodo e em Homero, os dois grandes

poetas do mundo helênico. Ao inverter a concepção de nascimento do mundo, o orfismo mostra-

se como uma doutrina à parte da religião grega. Também se atribui a visão distinta do orfismo

dentro da cultura helênica à natureza de Orfeu. Este seria um trácio, um deus estrangeiro assim

como Dioniso, o que poderia ser uma razão para a pouca aceitação e assimilação da doutrina órfica

na Grécia. Outro ponto importante que Vernant nos faz refletir é que na origem do universo na

concepção órfica o mundo é pensado no seguinte ciclo: primeiramente existia um cosmos (unidade)

que se tornou caos (dividida em infinitas partes aos quais hoje compõem o universo) e que o destino

dos homens, como uma das partes dessa unidade, é retornar para a mesma. Cria-se então uma

concepção escatológica do universo ao qual os homens seguirão para o Todo, uma vez que, em

essência, fazem parte dessa unidade. Seguindo esse raciocínio percebemos uma outra ideia presente

no orfismo: a de imortalidade da alma. Atrelada a tal conceito, de que o homem teria em si uma

alma habitando seu corpo e esta iria para uma vida além da morte, surgiram diversas questões sobre

a autoria deste pensamento na cultura helênica. Entretanto, Giovanni Reale credita tal ideia aos

órficos, uma vez que diversos autores gregos afirmam irradiar dos seguidores de Orfeu tal

conhecimento (REALE, 1992, p.182-185).

Tais ideias mostram-se divergentes da cultura cívica grega, entretanto, percebe-se na Eneida

que elementos órficos se juntam a narrativa do Canto VI, principalmente as ideias de

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metempsicose81. Como explicar o florescimento dessas ideias no início do Principado de Augusto,

no século I a.C.? Como as ideias órficas, aparentemente marginais e de pouco crédito,

sobreviveram e chegaram até o conhecimento de Virgílio?

Como vimos, o orfismo foi uma doutrina religiosa paralela à religião cívica grega. Por

estar às margens do padrão grego restou-se muito pouco de seus escritos, mas ao longo dos séculos

vários autores comentaram e se debruçaram pelas questões levantadas pelos órficos. Em sua

maioria, ao remeterem-se aos seguidores do orfismo usavam-se adjetivos como “charlatões” e

“enganadores” (VERNANT, 1992, p. 90-91). Platão, por exemplo, ao tratar na República sobre a

justiça e injustiça para os poetas afirma que os seguidores de Orfeu se utilizariam de sua doutrina

para criar feitiços e enganar homens comuns de que atos injustos podem ser purificados sem

nenhuma pena (PLATÃO, A República, 364b-365a). É importante pensar que em um outro diálogo

Platão vai ter como tema central a imortalidade de alma82. Logo, a crítica dos autores não se faz

sobre os ensinamentos, muito pelo contrário, muitos deles são até levados em consideração e

apoiados, como no caso de Platão. A verdadeira crítica está nos indivíduos que “pregam” esses

conhecimentos.

Nesse caso, é possível perceber uma transferência desses saberes órficos: desde o seu

surgimento, com hinos e poemas atribuídos a Orfeu no século VI, com uma concepção religiosa e

visão de mundo até o passar dos séculos e a assimilação de alguns conceitos por parte de filósofos

como Platão e Aristóteles. Dessa forma, os elementos órficos passaram a sobreviver mesmo que

sua doutrina tenha vivido na marginalidade e seus seguidores chamados de enganadores. A essência

de seus ensinamentos foi transferida por gerações a partir do pensamento filosófico. Essa cadeia

de transmissão de conhecimento pode ser percebida em Aristóteles, que explicita o pensamento

órfico sobre a alma em seu livro homônimo:

Deste mal padeceu também a doutrina dos assim chamados versos órficos. Pois neles se

afirma que a alma dos que respiram penetram-lhes a partir de todo o exterior, conduzida

pelos ventos. Mas não há como isso acontecer às plantas, nem a certos animais, pois de

fato nem todos respiram. Disto se esquecem os que assim supuseram (ARISTÓTELES,

sobre a alma, 410b24).

81 Metempsicose ou transmigração da alma é o conceito que filósofos gregos utilizaram para aferir à condição da alma

que viaja para outro plano após a morte do indivíduo. Ver REALE, Giovanni Pré-Socráticos e o orfismo: história da

filosofia grega e romana, volume I. Edições Loyola, 2012, p. 181. 82 Platão. Fédon¸ Edipro, São Paulo, 2012.

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Apesar de Aristóteles discordar dos versos órficos ao qual se remete, podemos entender que

ao mencionar a doutrina em seu tratado sobre a alma revela-se certa relevância deste no pensamento

filosófico grego, ao ponto de figurar entre uma das concepções existentes. Essa manutenção e

discussão dos elementos da doutrina órfica certamente garantiram sua passagem e sobrevivência

ao longo dos séculos, fazendo-se apagar alguns princípios religiosos e garantindo a permanência

de elementos filosóficos. Dessa maneira, a elite romana, a qual tinha acesso a estudos e filosofias

de todos as regiões do Mediterrâneo certamente conseguiram encontrar nas páginas de Platão,

Aristóteles e outros expoentes da filosofia grega os traços e vestígios dos ensinamentos órficos.

Para além disso, a cultura órfica se expressava também em seus enterramentos, tendo práticas e

costumes funerários próprios.

Visto isso, a hipótese que defendemos é que a doutrina órfica tenha chegado até Virgílio

pela sua formação intelectual, nos pequenos círculos de estudo, aos quais provavelmente teve

contato com diversos autores gregos. Sabemos que a influência grega no mundo romano está

consolidada no início do Principado de Otávio Augusto, sendo comum em diversos círculos o

conhecimento de obras literárias e filosóficas. Podemos usar como exemplo o advento do

epicurismo a partir dos escritos de Lucrécio, até movimentos posteriores como o neoplatonismo,

representado na figura de Plotino. O estudo dessas doutrinas se mostra presente ao longo da história

romana, logo podemos supor que Virgílio tenha bebido dessas fontes. Porém, aqui surge um

problema: afirmamos, mais acima, que a Eneida contém elementos da doutrina órfica, e esta

certamente não figura entre as grandes doutrinas do Império Romano, mesmo apresentando-se em

textos filosóficos. Dessa forma, qual a real intenção de Virgílio ao desenvolver a narrativa a partir

desses elementos?

A resposta não é simples e requer algumas reflexões quanto ao Canto VI como um todo.

Primeiramente devemos entender a necessidade de explicação da narração por ela mesma, para

manter a lógica do mesmo. Os eventos narrados no texto representam um ponto fundamental, tanto

para a continuação da jornada de Eneias quanto para o objetivo da epopeia enquanto legitimadora

do princeps Otávio Augusto. Voltaremos a tais questões mais à frente, por hora vamos analisar as

evidências que apontam a doutrina órfica dentro do Canto VI.

A primeira delas surge entre os versos 645 e 650, momento este em que Eneias vislumbra

o próprio Orfeu a tocar próximo a entrada dos Campos Elíseos. Segue o trecho:

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Nec non Threicius longa cum ueste sacerdos

Obloquitur numeris septem discrimina uocum,

Iamque eadem digitis, iam pectine pulsat eburno.

Hic genus antiquum Teucri, pulcherrima proles,

Magnanimi heroes, nati melioribus annis,

Ilusque assaracusque et Troiae Dardanus auctor

Lá, o sacerdote da Trácia, de toga a arrastar, mui vistosa

Em consonância com as cordas da lira de sete cravelhas,

Canta, a pulsar o instrumento com plectro ebúrneo ou com os dedos

Ali se encontra a linhagem de Teucro, de antiga progênie,

Raça belíssima, heróis de alma grande, de tempos melhores;

São eles: Ilo mais Dárdano, e Assárco autor das muralhas de Troia excelsa

(VIRGÍLIO, Eneida, VI. 645 – 650).

No trecho a referência a Orfeu é clara: o sacerdote de Trácia, que toca lira e canta. Devemos

ressaltar que o local em que Orfeu se encontra é destinado apenas aos seres divinos, os Campos

Elíseos. Não é por acaso que o palácio de Plutão se encontra neste local. Podemos perceber então

que o Orfeu retratado por Virgílio não se trata apenas do herói que desceu até os mundos inferiores

por seu amor, Eurídice. Mas sim um ser divino, merecedor de habitar tal espaço sacro. Para além

disso, outro elemento que aponta a natureza divina é o termo “sacerdote” (sacerdos) para referir-

se a Orfeu, e não poeta, como costumeiramente era conhecido dentro da mitologia grega. Seguindo

a leitura do trecho, apresenta-se a linhagem troiana de Eneias. Interessante perceber que nesse

momento do texto, às portas do palácio de Plutão e no início dos Campos Elíseos, mostra-se o

passado de Eneias. Mais à frente, ao adentrar de fato aos campos, Eneias conhecerá seus sucessores,

o futuro da sua linhagem.

Nos versos 665 - 671 Eneias também passa a conhecer a linhagem de Orfeu, quando se

encontra com Museu. O encontro serve para perguntar ao filho do poeta aonde encontra-se

Anquises e em qual dos espaços já percorridos ele poderia se encontrar. Segue o trecho para análise:

Quos circumfusos sic est affata Sybilla,

Musaeum ante omnes, medium nam plurima turba

Hunc habet, atque umeris exstantem suspicit altis:

“Dicite, felices animae, tuque, optime uates,

Quae régio Anchisen, quis habet locus? Illius ergo

Uenimus et magnos Erebi transnauimus amnes.

Por eles mesmos cercada, interroga-os a vate Sibilia,

Com especial deferência a Museu, que os demais distinguiam,

Por ser mais alto de corpo e chamar a atenção de seus pares.

“Almas bem-aventuradas, e tu, virtuosíssimo vate:

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Em que região mora Anquises? O sítio escolhido? Por causa

Dele aqui viemos e do Érebo os rios terríveis cruzamos.

(VIRGÍLIO, Eneida, VI, 665 -671).

Nesses versos encontramos outra evidência da doutrina órfica no Canto VI. De forma mais

sutil que a anterior, Virgílio narra o encontro de Eneias e Sibila com Museu, filho de Orfeu. Ao

colocar tal famigerado encontro Virgílio mostra que Museu também é um ser divino, detentor da

linhagem de Orfeu e por isso encontra-se nos Campos Elíseos. Assim como o primeiro trcho que

analisamos, a referência ao orfismo se faz ao mostrar como divino as figuras que alicerçam tal

doutrina.

Sibila pergunta aos que acompanham Museu, mas principalmente a ele, o virtuoso ser, em

que lugar do Orco se encontra Anquises. Ao analisar a construção narrativa do Canto VI,

percebemos que Eneias e Sibila passam por diversos espaços procurando pelo pai do troiano, porém

com pouco sucesso. Ao adentrarem aos Campos Elíseos, lugar este que é reservado apenas aos

seres divinos, também o é o último lugar com a esperança de encontrar o que procuram. Virgílio

nos adianta aqui, nas entrelinhas, sobre a condição divina da gens Iuli. Ao passo do trecho anterior,

quando Eneias constata sua linhagem troiana nestes campos, sugere também que possivelmente

seu pai, que faz parte dessa grande árvore genealógica, deva também habitar tal espaço.

Mais à frente, nos versos 713 – 718 Anquises e Eneias conversam sobre o Rio Letes, ou rio

do esquecimento. Nesses versos apresenta-se a ideia de retorno das almas, a metempsicose. Vamos

ao trecho:

Tum pater Anchises: ‘Animae, quibus altera Fato

Corpora debentur, Lethaei ad fluminis undam

Securos latices et longa obliuia potant.

Has equidem memorare tibi atque ostendere coram Iampridem, hanc prolem cupio enumerare meorum,

Quo magis Italia mecum laetere reperta.

Disse-lhe Anquises: “As almas fadadas a uma outra existência As claras águas do Letes procuram beber, para obterem

O esquecimento total do que em vida anterior alcançaram.

Há muito tempo queria falar-te sobre isso e mostrar-te,

Alma por alma, esta longa cadeia dos seus descendentes,

Para comigo te regozijares da Itália encontrada

(VIRGÍLIO, Eneida, VI, 713-718).

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Tais versos apresentam a ideia da metempsicose, ou transmigração da alma. Nesse caso, o

rio Letes apaga as memórias das almas que precisam retornar ao mundo manifestado para uma

nova existência. Logo, estas não completaram o ciclo apresentado pela cosmogonia órfica de

Cosmos(unidade) – Caos (multiplicidade) – Retorno ao cosmos (retorno ao Todo). Necessita-se,

nesse caso, de uma nova experiência para tentar absorver tal compreensão escatológica e sentido

da vida. Nesse ponto podemos perceber a conotação mais gritante dos ensinamentos órficos dentro

da narrativa do Canto VI. Devemos atentar ao fato de ser Anquises quem apresenta a Eneias esse

conhecimento. O valor de verdade é passado através da ligação entre Pai e filho, mantendo a

respeitabilidade do saber a partir de uma autoridade. Logo, Eneias entende esse funcionamento do

mundo e o aceita passivamente por tratar-se de uma figura de autoridade em sua vida que o

apresenta.

4.4 Um encontro de romanos

Outro ponto fundamental na narrativa é apresentado nos versos 788 - 798: Anquises alegra-

se para mostrar a Eneias a cadeia de seus descendentes, ou seja, aqueles que irão triunfar sobre a

Itália e fazer de Roma uma grande cidade, assim como outrora Troia mostrou ser. Aqui faz-se a

ponte entre a linhagem passada, vista a partir das almas dos troianos que já morreram, com também

o futuro dos descendentes de Eneias, as almas que ainda não chegaram a viver no mundo

manifestado e que esperam pela sua vez. A narrativa de Virgílio vai encaminhando o leitor a um

desfecho imponente para o fim do Canto VI, ao qual Eneias encontra os principais personagens da

história romana (e da sua). A partir dos versos 788 – 798 Anquises apresenta, após falar dos

descendentes que constituirão Alba Longa, todos os grandes homens de Roma, desde Rômulo até

Otávio Augusto. Este, como veremos, o mais elogiado pelo discurso do sábio Anquises, que o

constrói como um grande herói, temido por seus inimigos. Vamos aos versos 788 até 798:

Hunc geminas nunc flecte acies, hanc aspice gentem

Romanosque tuor. Hic Caesar et omnis Iuli

Progênies Magnum caeli uentura sub axem.

Hic uir, hic est, tibi quem promitti saepius audis,

Augustus Caesar, diui genus, aurea condet

Saecula qui rursus Latio regnata per arua

Saturno quondam, super et Garamantas et Indos

Proferet imperium; iacet extra sidera tellus, Extra anni solisque uias, ubi caelifer Atlas

Axem úmero torquet stellis ardentibus aptum.

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Volta a atenção para aqui; teus romanos contempla de perto, Gente da tua prosápia. Este é o César, da estirpe de Iulo,

Sem faltar um, que há de um dia exaltar-se até ao polo celeste.

Este aqui...sim, este mesmo, é o herói prometido mil vezes,

Cesar Augusto, de origem divina, que o século de ouro

Restaurará nas campinas do reino do antigo Saturno

E alargará seus domínios às fontes longínquas dos índios

E os garamantes, às terras situadas além de mil astros,

Longe da rota do sol e do tempo, onde o atlante celífero

Sobre as espáduas sustenta esta esfera trauxiada de estrelas

(VIRGÍLIO, Eneida, VI, 788 – 798).

Anquises apresenta nessa passagem Júlio César e Otávio Augusto. O grande elogio feito

aos contemporâneos de Virgílio, como pode-se notar, não é por acaso: Otávio Augusto é

profetizado como o grande herói de origem divina que guiará Roma por um século de ouro

(Augustus Caesar, diui genus, aurea condet). Tal elogio ecoa não para Eneias, mas sim para os

leitores da Eneida no século I a.C. A construção da narrativa vai tecendo seus fios até esse momento

crucial dentro do Canto VI, ao qual Virgílio proporciona um encontro entre Eneias e Otávio

Augusto. Nesse ponto podemos perceber a função narrativa da doutrina órfica dentro da Eneida:

dar sentido à visão do futuro que Eneias tem, ao entrar no outro mundo e ver as almas dos seus

sucessores.

O orfismo, de um ponto de vista narrativo, consegue, assim, causar uma dupla função dentro

do texto: primeiro o de dar sentido ao texto por ele mesmo: Eneias entende que seu destino está

atrelado ao desses homens que ainda estarão por vir. Percebe então sua obrigação divina em chegar

ao Lácio e ser o “primeiro” dos romanos. Dessa forma, a lógica do texto pode prosseguir com o

protagonista pronto para continuar sua saga. A segunda função da doutrina órfica se apresenta ao

dar a possibilidade de Virgílio mostrar e “provar” aos romanos a legitimidade de Otávio Augusto

como princeps, o primeiro dos romanos, assim como Eneias, agora já configurado como um

romano, vai até o Lácio e funda Alba Longa.

Tais afirmações ganham peso nos versos 851 – 854, no qual Anquises, após uma listagem

dos grandes romanos e suas conquistas (v. 810 – 849), chama Eneias de romano (tu regere império

populos, Romane. v. 851) e demarca assim a transformação do herói troiano. Anquises diz:

Tu regere império populos, Romane, memento;

Hae tibi erunt artes; pacisque imponere morem,

Parcere subiectis et debellare superbos’

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Sic pater Anchises

Mas tu, romano, aprimora-te na governança dos povos.

Essas serão tuas artes; e mais: leis impor e costumes,

Poupar submissos e a espinha dobrar dos rebeldes e tercos.

O pai Anquises falou

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 851 – v. 854).

O trecho destacado revela o conselho de Anquises para como Eneias deveria conduzir seu

povo. Aqui percebemos uma continuação da ideia ligada aos grandes romanos do passado de

Virgílio, e do futuro opulente dos descendentes de Eneias. Ao descrever a linhagem romana de

Eneias, Anquises sempre atrela ao personagem citado a sua contribuição para a formação do seu

povo. O pai do teucro cita, por exemplo, Numa, o primeiro a dar leis à sua gente (Regis Romani,

primus qui legibus urben fundabit, v. 810) e Cipião, o Africano (Scipiadas, cladem Libyae, v.843),

que liderou as legiões romanas contra Aníbal na Segunda Guerra Púnica. Ao ligar os feitos desses

grandes personagens da história romana, Anquises mostra a Eneias a tônica do seu governo e a

importância de cumprir o que lhe fora destinado. Ao falar sobre poupar submissos e a espinha

dobrar dos rebeldes (pacisque imponere morem, parcere subiectis et debellare superbos, v. 852 –

853) Anquises demonstra a forma de governar e conquistar romana, ressaltada também nos versos

anteriores. Podemos perceber que Virgílio descreve os grandes feitos dos romanos, principalmente

no que tange ao caráter de expansão do território, com uma dupla finalidade: mostrar a força e

soberania do povo guiado por Eneias e apresentar quais as características que Eneias deverá buscar

a partir de agora como um romano83.

O último personagem a ser visto por Eneias é Marcelo84, o sucessor de Otávio Augusto que

nunca chegou a ser imperador (GRIMAL, 1992, p. 51). Nos versos 867 – 886 Anquises descreve

toda a história de Marcelo e lamenta o fim prematuro do jovem romano:

Tum pater Anchises, lacrimis ingressus obortis:

O nate, ingentem luctum ne quaere tuorum;

ostendent terris hunc tantum fata neque ultra

esse sinent. Nimium uobis Romana propago uisa potens, superi, própria haec si dona fuissent.

83 Esses pontos são ressaltados em outros Cantos da Narrativa, principalmente nos cantos X e XII, ao qual Eneias trava

batalhas e forma alianças, seguindo, de fato, o princípio de poupar os que ao romano se alia e enfrenta os inimigos que

não cedem. 84 Marcelo (Marco Cláudio Marcelo) era sobrinho de Augusto, sendo filho de Otávia Menor e de Caio Cláudio Marcelo

Menor. Marcelo morreu em 23 a.C., quando a Eneida estava sendo escrita. Possivelmente os versos foram escritos

retratando o acontecimento.

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Quantos ille uirum magnam Mauortis ad urbem

campus aget gemitus, uel quae, Tiberine, uidebis

funera, cum tumulum praeterlabere recentem!

Nec puer Iliaca quisquam de gente Latinos

in tantum spe tollet auos, nec Romula quondam

ullo se tantum tellus iactabit alumno

Heu pietas, heu prisca fides inuictaque bello

dextera! Non illi se quisquam impune tulisset

obuius armato, seu cum pedes iret in hostem,

seu spumantis equi foderet calcaribus armos. Heu, miserande puer, si qua fata áspera rumpas,

tu Marcellus eris. Manibus date lilia plenis,

purpúreos spargam flores animamque nepotis

his saltem acumulem donis, et fungar inani

munere.

O pai Anquises, então, olhos ternos banhados de pranto:

“Oh! Não me fales, meu filho, no luto dos teus descendentes!

Sim, hão de os Fados trazê-lo até a vida; porém logo

Retirá-lo-ão deste mundo. Os mortais, grandes deuses!, de Roma

Vossos iguais pareceram, se acaso esse dom perdurasse!

Quantos gemidos nos campos vizinhos ao burgo de Marte!

Ó divindade do Tibre, quão fundos suspiros e prantos

Ainda ouvirás, ao passares de leve na tumba recente!

Nenhum mancebo da raça troiana tão alto há de o nome De seus avoengos latinos levar, nem a terra de Rômulo

Tanto se envaidecerá de outro aluno mais belo do que este!

Ó destra invicta! Ó piedade!, virtude dos nossos maiores!

Impunemente nenhum inimigo ousaria enfrentá-lo

Em campo raso, o mais ágil infante ou talvez atrevido

Cavaliriano, enfincadas esporas no nobre ginete.

Pobre menino! Se chegas um dia a vencer o teu fado,

outro Marcelo serás. Dai-me lírios a mãos derramadas

Para que ao menos de flores púrpureas eu cubra meu neto

Nesta apagada homenagem aos Manes da cara cabeça.

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v. 867 – v. 886).

O teor da passagem na narrativa mostra o lamento pelo jovem Marcelo. Anquises diz que

os gemidos e choro pela sua morte são ouvidos para além de Roma (Quantos ille uirum magnam

Mauortis ad urbem, campus aget gemitus, v.872 – 873). Os elogios feitos por Anquises são tanto

sobre as virtudes (Heu pietas, v. 878) como suas habilidades na guerra (bello dextera, v. 879).

Ainda é dito que Marcelo é o mais belo aluno85 e que não há outro como este. Podemos

dimensionar, a partir de todas as honras e elogios recebidos, que a figura de Marcelo era, de fato,

importante para o seguimento do Império. Segundo Beard, Otávio Augusto sofreu diversos reverses

85 Aqui o sentido de aluno, segundo o comentador da edição João Angelo de Oliva Neto, remete-se à ideia de integrante

da sociedade romana.

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no que concerne a deixar um sucessor para o Império (BEARD, 2017, p. 374). Percebemos aqui,

mais uma vez, como a narrativa do Canto VI está imersa dentro do seu contexto histórico, uma vez

que a morte do jovem sucessor do Império fora contemporânea ao processo de escrita da Eneida,

sendo a epopeia imersa nesse momento de luto. Também podemos notar, mais uma vez, a

habilidade de Virgílio ao colocar, na última ponta dessa longa cadeia de descendentes, o futuro

imperador que não foi. Dessa maneira traça-se uma cronologia da gens Iuli ao longo da história

romana, legitimando, a partir de uma narrativa fundante, o presente imperador.

Nos versos finais (v. 893 – 900) Anquises ensina a Eneias como sair do Mundo Inferior,

mostrando-lhe duas portas:

Sunt geminae Somni portae, quarum altera fertur

Córnea, qua ueris facilis datur exitus umbris;

Altera candenti perfecta nitens elephanto, Sed falsa ad caelum mittunt insomnia Manes.

His ubi tum natum Anchises unaque Sibyllam

Porsequitur dictis portaque emittit eburna,

Ille uiam secat ad naues sociosque reuisit.

Tum se ad Caietae recto fert litore portum.

Ancora de prora iacitur, stant litore puppes.

Há duas portas do Sono: uma é córena; por esta saída

Fácil passagem as sombras encontram dos sonhos verazes.

Outra, de cândido e puro marfim, de que os Manes se servem,

Para do céu enviar aparências em tudo enganosas.’

Sempre a falar com seu filho e a Sibila, levou-os Anquises

À porta ebúrnea, intente, e ali mesmo dos dois se despede.

Rapidamente dirige-se Eneias às naves e aos sócios,

E vai direito a Caieta, sem nunca da terra afastar-se. Âncoras soltas das proas; de popas as praias se enfeitam

(VIRGÍLIO, Eneida, Canto VI, v.893-900).

As portas tratadas por Anquises é uma referência à Odisseia (Odisseia, Canto XIX, v. 560

– 567). Uma das portas é utilizada pelas sombras (umbris) e outra pelos Manes para conectar-se ao

mundo dos vivos. Devemos salientar que as portas são chamadas de portas do Sono (Somni Portae)

e que a elas são colocadas o adjetivo de serem utilizadas para passarem enganosas imagens dos

céus (Sed falsa ad caelum mittunt). Tal trecho, ao fim do Canto, pode estar relacionado com a

fórmula narrativa utilizada por Virgílio ao pedir permissão de narrar o espaço que não é destinado

aos vivos: por não ser necessário ao conhecimento dos vivos uma imagem do céu, os Manes os

oferecem uma imagem enganosa, mas ainda assim mantendo uma ligação entre os dois mundos a

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partir dos sonhos. Ademais, cria-se uma dualidade, similar ao Tártaro/Campos Elíseos,

determinando por qual das portas deve-se passar a partir do tipo de alma que és: se fores um manes,

poderá utilizar a porta de puro marfim (Nitens Elephanto) e se fores uma sombra, uma alma que

não teve seus ritos funerários adequados, percorrem a porta da córnea, distinguindo mais uma vez

o Manes como uma alma diferenciada dentro desse espaço dos mortos. Eneias é levado para a porta

utilizada pelos Manes e sai do Mundo Inferior sem nenhuma dificuldade, porém com uma jornada

inteira pela frente: é chegada a hora da saga do romano, não mais o sobrevivente de Troia, iniciar-

se. Dessa maneira, podemos voltar às questões levantadas no início da discussão: como podemos

entender o Canto VI como uma visão romana do outro mundo se nela existem aspectos que não

são da cultura romana? Percebemos, ao longo do capítulo, que em muitos aspectos da narrativa

elementos de outras culturas, geralmente a grega, está mergulhado por toda a Eneida.

Em linhas gerais, ao analisarmos o conteúdo e narrativa do Canto VI percebemos que os

elementos pouco comuns à cultura romana cumprem uma função narrativa para dar sentido ao

enredo e amarrar a lógica do texto. Tais questões não estão relacionadas, diretamente, ao que

compete à cultura romana, porém entrelaçam-se na narrativa virgiliana e ganham corpo dentro da

saga de Eneias. Não podemos pensar em Virgílio, por exemplo, como um seguidor de Orfeu que

sutilmente colocou sua crença dentro do texto. Entretanto, em contrapartida, torna-se mais

plausível a hipótese que o poeta latino, na posição privilegiada de ter acesso a tais conhecimentos,

fez uso dos ensinamentos órficos e da tradição narrativa do épico para manter a coesão de seu texto.

Assim perceberemos então a verdadeira “mágica” de Virgílio: transformar o Canto VI em uma

possível ode ao imperador Otávio Augusto, revestindo toda a narrativa de elementos simbólicos,

que constroem um espaço mítico ao qual os deuses que lá habitam estão na companhia do grande

princeps.

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CONCLUSÃO: SOBRE UM MUNDO EM PASSAGEM

A Eneida tornou-se uma obra clássica no mundo Ocidental. Virgílio foi fonte de inspiração

para diversos poetas, tanto os latinos de sua época, como Lucano (39 d.C. – 65 d.C.) até Dante

Alighieri e Camões, ambos já citados nessa dissertação. Visto isso, como medir o impacto de uma

obra ou indivíduo no mundo? Talvez pelo que legou às futuras gerações. Sabemos que essa

concepção pode soar como um discurso dos vencedores, aqueles que escrevem a história com o

sangue de seus inimigos e se apresentam como heróis sentados em uma pilha de corpos. Mas não

buscamos acentuar ou reforçar essa visão. Acima da posição política que assumiu, de colocar-se

ou não à serviço do princeps, o que Virgílio produziu rompeu com as fronteiras políticas de seu

tempo, tornando-se um dos grandes referenciais da literatura clássica.

Por tais questões nos foi importante defender a hipótese de que o poeta não estava apenas

“cumprindo ordens”, mas sim colocando todo seu potencial em uma causa que lhe parecia justa e

necessária. Para defender essa hipótese, nos foi muito caro retirar de Virgílio a passividade de ser

um poeta à serviço do imperador e buscamos dar-lhe mais autonomia intelectual, um homem que,

acima de tudo, pensava acerca das necessidades do seu tempo. Utilizamos, para compreender a

relação entre o poeta e seu tempo, a teoria da estruturação de Anthony Giddens, na qual o papel da

agência dos indivíduos é fundamental para dinamizar a estrutura dominante. A teoria de Giddens

permitiu vislumbrar um caminho fora da relação de dominação total das estruturas e evitou cairmos

na armadilha oposta, a de autonomia completa dos indivíduos. Percebemos, a partir da utilização

da teoria da estruturação, que as relações sociais devem ser pensadas sempre de maneira dinâmica,

na qual a estrutura tem influência sobre os indivíduos e que estes, a partir de sua ação prática,

também causam mudanças, de maior ou menor grau, nas estruturas.

Pensando essa relação tentamos acentuar o papel do autor dentro de sua obra. Não podemos

desligar a vida de Virgílio de seu momento histórico, de suas concepções e crenças. Tentamos, ao

longo de toda dissertação, deixar esse aspecto claro, pois ao relacionarmos os aspectos de sua

biografia, apontando sua trajetória e participação nos círculos intelectuais de Roma, podemos

perceber que sua afeição pela legitimação de Otávio como princeps pode ser além de uma questão

econômica ou política. Um dos nossos objetivos foi compreender e demonstrar que o papel de

Virgílio e da Eneida dentro do cenário sociopolítico de Roma estava atrelado a bem mais que uma

questão econômica ou preferência política. Buscamos defender a hipótese de que o objetivo de

Virgílio perpassa tais questões, sendo a Eneida, antes de tudo, o desejo de um homem por paz, uma

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vez que viveu em um tempo histórico marcado por crises, tomadas de poder e instabilidade. Logo,

o poeta vê na figura de Otávio alguém capaz de garantir a ordem e estabilidade de seu povo e suas

instituições. É inegável o valor político de Eneida. Apesar de não ser um homem ávido por cargos

públicos, Virgílio fez política, era um homem político. Como mostrado no capítulo I, suas outras

obras também são dedicadas, em parte, a pessoas e assuntos políticos, sempre apresentados a partir

de uma estética poética. Logo, o capítulo I debruçou-se sobre todas essas questões referentes a vida

de Virgílio e o seu tempo, tentando apresentar uma relação entre o poeta, sua obra e os

acontecimentos que lhe cercarão ao longo de sua existência

Apresentamos ao longo do capítulo II os aspectos que compõem essa estética na Eneida.

Além da análise das estruturas narrativas que compõem o épico, tentamos demonstrar como a

tradição literária grega chega até Virgílio, fazendo com que o poeta tome essa tradição e a adapte

aos moldes latinos. Apresentamos as diferenças na construção desses princípios nas epopeias de

Homero e Virgílio, uma vez que tentamos combater a ideia de que a Eneida foi apenas uma “cópia”

dos épicos gregos. Para além disso, Virgílio soube construir em sua narrativa uma lógica interna,

que responde a uma necessidade própria do texto, afastando-se assim de uma simples reprodução

dos temas e episódios ocorridos na Iliada e a Odisseia. A saga de Eneias, a partir de nossa análise,

se constrói tendo um sentido literário e coerência dentro da sua narrativa, na qual tem como base

sim os épicos gregos, mas não se limita a suas perspectivas. Eneias, por exemplo, é um herói latino

por excelência, tendo características próprias, não sendo apenas uma reprodução de um Aquiles ou

Odisseu. Virgílio, portanto, não limitou sua obra a reproduzir elementos de uma tradição literária,

mas busca na tradição as bases de sua narrativa e utiliza sua obra para responder e apresentar

questões que estão para além da obra, referentes ao mundo em que viu, ouviu e viveu.

Apesar de dedicarmos uma boa quantidade de páginas acerca da posição de Virgílio e o

papel da Eneida como legitimadora do principado de Otávio Augusto, nossa principal meta nessa

dissertação foi a de demonstrar como o espaço do Orco é construído no Canto VI do épico.

Discutimos sobre o papel do morto na sociedade romana, a necessidade e função dos ritos

funerários para os mortos (e também para os vivos) e, finalmente, como Virgílio constrói esses

diversos espaços dentro do que ele chama de Orco no épico. Nosso objetivo constitui-se em

demonstrar como essa construção espacial ocorre a partir da narrativa e apresentarmos os

elementos que foram agenciados pelo poeta para amarrar sua narrativa e criar representações dentro

dos mais variados espaços ao longo do Canto VI.

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Trabalhamos com a hipótese de que os espaços do além-vida orbitam em três categorias

que se relacionam entre si: o espaço mítico, o espaço imaginário e o espaço simbólico. Usamos o

conceito de espaço mítico de Yi Fu Tuan por ser um espaço por excelência desconhecido pela

experiência humana e, ainda assim, busca nos dar respostas à pergunta existencial do “para onde

vamos?”. Esse espaço também se constitui como imaginário, uma vez que se utiliza de elementos

do real e, a partir dessa relação do poeta com o real, projeta-se na narrativa as ideias acerca desse

outro mundo. Essa percepção do imaginário, a qual seguimos a denominação deste por Marc Augé,

e sua significação nos leva, consequentemente, a um terceiro espaço, na qual foi definido por Maria

Luisa de La Fico Guzzo como espaço simbólico. A construção desses espaços e sua representação

geram símbolos, tanto positivos, como a figura de Eneias e suas virtudes e o espaço dos Campos

Elíseos, como negativos, como os outros espaços Orco e os seres em que lá habitam, como Caronte,

por exemplo.

Desse modo, não podemos pensar o espaço do além-vida como homogêneo e sem forma

definida. Virgílio descreve, matiza e ordena esse espaço, a priori, uniforme e mostra que há uma

clara distinção entre os mortos que ali habitam os seus espaços. Para além disso, o poeta utiliza

essa diferenciação dos espaços para criar uma relação entre o morrer e a conduta moral do morto.

Logo, nossa hipótese segue a linha definida por Thiago Eustáquio da Mota, de que a construção

espacial do espaço do Orco também atende a uma definição de uma moral romana, sendo Eneias

o exemplo máximo de conduta a partir da pietas, dignitas e exempla, virtudes que são apreciadas

e ligadas ao protagonista ao longo de toda a saga, e em nosso caso mais específico, ao longo do

Canto VI

Durante toda a análise do Canto VI buscamos tornar notável o papel dos ritos funerários na

narrativa. Para além de suas funções com o morto, é possível notar que os ritos demarcam

momentos de passagem, seja física ou simbólica. Eneias precisa de ritos para entrar no mundo dos

mortos, para abrir a porta que divide esses dois mundos; para atravessar o rio Estige exige-se que

os ritos funerários tenham sido realizados da forma mais adequada possível; as almas que estão

para sair do mundo dos mortos e retornar à vida devem beber a água do Rio Letes. Todos esses

aspectos demarcam a transformação dos espaços e dos indivíduos que transitam por estes. As

demarcações dessas passagens são realizadas de diferentes maneiras: desde a geográfica, com rios,

cavernas, bosques, até aspectos morais (espaços habitados a partir dos desvios cometidos em vida).

Todas as questões espaciais, desde a análise dos espaços, estão contempladas no capítulo III.

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Devido à importância do assunto em nossa dissertação decidimos separar a análise espacial da

narrativa em um capítulo específico, deixando a análise do Canto VI, em geral, para o capítulo IV.

O capítulo IV dessa dissertação, portanto, teve como foco a análise do Canto VI a partir da

perspectiva metodológica das totalidades narrativas. Nesse método de análise do discurso deve-se

compreender um texto como um organismo, a qual cada verso cumpre uma função em torno de

uma ideia central, tal qual uma célula trabalha em prol de um ser vivo. Logo, cada verso, passagem

que ocorre dentro do Canto VI atende à uma ideia ou tema do Canto. Do mesmo modo, o próprio

Canto tem uma função dentro de todo o épico, porém essa parte não fora contemplada na presente

dissertação, uma vez que demandaria uma análise mais completa e envolveria toda a obra de

Virgílio. Desse modo, nos limitamos a compreender a totalidade narrativa do Canto VI, mas

percebe-se que essa totalidade ainda pode estender-se a uma esfera maior dentro de toda a narrativa

da Eneida. Ademais, nossa análise buscou compreender como a narrativa do Canto VI se constrói

com base na ideia de legitimação do principado de Otávio Augusto. Podemos falar que esse é o

objetivo central da narrativa do Canto VI na esfera externa, para a sociedade romana do século I

a.C. Para além disso, também há um objetivo e ideia central no Canto VI que atende a uma lógica

interna. tendo uma função dentro de toda a narrativa da Eneida.

No canto VI Eneias também sofre transformações. Torna-se, finalmente, um romano, como

vimos no capítulo IV. A narrativa acompanha o herói, que se encontra com sua gens romana. Deixa-

se o passado para trás, Troia nesse momento some, torna-se a referência para o novo povo que está

a surgir. A partir de então temos o romano Eneias, o primeiro dos romanos. O primeiro, tal qual o

princeps Otávio. Ao olharmos sob essa perspectiva, podemos caracterizar o Canto VI como um

momento da narrativa marcado por passagens. Passagens de mundos, de vida e morte, de passado

e futuro. Se retomarmos a perspectiva da totalidade narrativa, poderíamos classificar o Canto VI

como um Canto de passagem na saga de Eneias. Essa ideia não é nova, na verdade muitos literatos

buscaram essa concepção em décadas passadas. O Canto VI, para alguns destes, marca a passagem

da parte “Odisseica” da Eneida para a parte “Ilíada” do épico. Ao observar os diversos momentos

no Canto VI a qual envolvem passagens essa percepção de transição apresenta-se como plausível.

Outro indício interessante sobre essa hipótese é perceptível quando observamos que os cantos

seguintes (VII ao XII) são marcados por batalhas entre Eneias e povos do Lácio, na conquista da

região, o que se caracteriza como a parte “Ilíada” da Eneida. Desse modo, os primeiros cinco

cantos tratarão, em um grande resumo das aventuras de Eneias e sua tripulação pelo mar e por

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Cartago. Esse é o momento “Odisseu” de Eneias. Os outros cantos poderiam ser vistos como um

momento “Aquiles”, visto que em sua última batalha o herói romano deixa-se tomado pela ira e

mata seu adversário, Turno. Porém, não cabe a nós entrar nessa discussão, levaríamos mais algumas

dezenas de páginas para firmá-la. Destacamos aqui, entretanto, a reflexão acerca da função do

Canto VI dentro de toda a epopeia: a de ser um Canto de passagem. A construção dessa ideia ocorre

ao longo do próprio canto, com as diversas demonstrações que ocorrem ao longo de seus versos.

Assim, essas pequenas passagens constroem essa concepção de transição a qual aporta para a

totalidade narrativa do épico.

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