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CURSO DE FILOSOFIA MEDIEVAL
PROF. MARCOS AURÉLIO FERNANDES
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Unidade I: No limiar da Idade Média
A filosofia não se dá sem ancestralidade. Para se compreender a filosofia é
preciso um diálogo com a sua história, com o seu passado. É que,
paradoxalmente, as forças de futuro do pensamento se encontram recolhidas,
no pensado e no impensado, do passado. Também a filosofia medieval teve
uma ancestralidade e só pode ser compreendida, se levarmos em conta esta
ancestralidade. Para reconhecer esta ancestralidade, é preciso que
perguntemos: quais são as fontes do grande manancial de pensamento que
é a “história da filosofia medieval”?
A história do ocidente medieval provém do fluxo de três tradições, a grega,
a hebraica e a romana. Atenas, Jerusalém e Roma são os centros do mundo
antigo, a partir de cujas heranças se o ocidente medieval irá se constituir.
Atenas e Jerusalém são dois mundos heterogêneos e irredutíveis um ao outro.
Um, é o mundo do pensamento, que experimenta a ousadia do
questionamento do ser e a sempre iminente angústia ontológica do nada. O
outro é o mundo da fé, que experimenta a adesão confiante e firme à
revelação de Deus e a continuamente possível tentação da infidelidade.
Porém, no cristianismo dos primeiros séculos, primeiramente, e na Idade
Média, depois, estes dois mundos irão se encontrar, só se separando
novamente no início da modernidade.
No limiar da Idade Média encontram-se dois luminares da era patrística do
cristianismo, que são as duas maiores autoridades para os pensadores
medievais latinos. O primeiro, Agostinho, pertence ele mesmo ao mundo
latino. O segundo, Dionísio, pertence ao mundo grego.
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Aula 01 - Agostinho
O horizonte para uma hermenêutica do pensamento de Agostinho se
traça a partir do espírito de seu tempo e de sua busca existencial.
Agostinho vive em si mesmo o ocaso do mundo antigo. Ele é um
homem que prepara a passagem da antiguidade para uma nova
época, aquela que nós, modernos, chamamos de “medieval”. A nota
fundamental, que dá o tom a todo o seu pensamento é a quaestio
Dei (a busca de Deus), que, em seu entendimento é a própria busca
da verdade e da felicidade. Seu pensamento é marcado por um forte
cunho existencial. Em cada texto de seus escritos ressoa a
facticidade da existência humana vivida em primeira pessoa (eu),
diante de um Tu (Deus), e em comunhão com um nós (os outros).
Por isso, sua linguagem é, basicamente, a da “confissão”. Confessar
é, aqui, trazer à fala a alegria da libertação, que o homem
experimenta na busca e no encontro da verdade. Por isso, a
confissão é, em Agostinho, canto de louvor. A própria miséria da
existência humana, experimentada no horizonte desta libertação, se
transfigura. Até mesmo a culpa se torna “feliz culpa”, quando o
homem experimenta a graça de uma verdade libertadora. E esta
verdade libertadora Agostinho experimenta no horizonte da fé
cristã. É, pois, a partir deste horizonte hermenêutico que Agostinho
se apropria criticamente da filosofia grega, tornando-se um dos
maiores pensadores de todos os tempos.
1.1 O itinerário de Agostinho e o espírito de seu tempo
Aurélio Agostinho, em seu itinerário biográfico, marcado pela busca da
verdade, se confronta com as diversas possibilidades de realização humana,
presentes em seu tempo. Nascido no ano de 354 na Numídia (território a
oeste de Cartago), em Tagaste, como filho de pai romano e pagão (Patrício)
e de mãe africana e cristã (Mônica), Agostinho vive em sua própria carne o
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encontro de duas culturas que se mesclam naquela região do norte da África:
a cultura púnica autóctone e a cultura romana dominante. Vive também em
sua alma uma divisão: a luta entre o apelo sensual (herdado do pai) e o apelo
espiritual (herdado da mãe). Apesar de sua mãe ser cristã, Agostinho não
adere à fé em Cristo, a não ser em idade adulta, com o batismo no ano de
387. O itinerário espiritual de Agostinho, até chegar à fé cristã, expressa as
várias tendências culturais de seu tempo. Na escola, recebeu uma formação
baseada na leitura dos autores latinos e voltada, sobretudo, para a linguagem
(Cícero, Vergílio, Horácio, Ovídio e Catulo) e para a história (Salústio e Lívio).
O encontro com a filosofia se deu a partir da leitura do diálogo Hortênsio de
Cícero, uma exortação à filosofia, entendida como “amor à sabedoria”. Ali
Agostinho se depara com um pensamento que ele fará seu por toda a vida:
que todo o homem quer ser feliz; que a verdadeira felicidade não consiste
em fazer o que se quer, mas em querer e fazer o bem, ou seja, que a
verdadeira felicidade se encontra na virtude, que torna o homem bom e suas
obras boas.
Em busca da verdade e da verdadeira felicidade, e em meio às lutas com sua
sensualidade – que se ameniza um pouco com o encontro de uma
companheira, com quem ele tem um filho, Adeodato (Dado por Deus) –,
Agostinho adere ao maniqueísmo. No dualismo ético e metafísico
característico desta forma sincrética de gnosticismo – que mistura
cristianismo gnóstico, zoroastrismo, hinduísmo e budismo – Agostinho
encontra um reflexo de sua própria alma dividida. O pertencimento a esta
forma de gnosticismo se dava em três estágios: os hýlicos (materiais), os
psíquicos – também chamados de auditores (ouvintes) – e os pneumáticos
(espirituais) ou eleitos. Agostinho chegou ao grau de ouvinte. No
maniqueísmo ele encontrou uma explicação (provisória) para o problema do
mal. Segundo esta doutrina de Manés (ou Mani), a realidade se divide em
dois princípios conflitantes: o do bem – espiritual – e o do mal – a matéria.
Entretanto, no maniqueísmo Agostinho não encontrou uma síntese de fé e
razão. De fato, sua crença era mantida apesar de muitas perguntas de sua
razão ficar sem resposta. Após o encontro em Cartago com um líder
maniqueu, chamado Fausto, que não conseguiu responder às suas perguntas,
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que se relacionavam especialmente com a astrologia e com a concepção
materialista de Deus e da alma, Agostinho abandona o maniqueísmo.
Após esta frustração, ele busca refúgio no ceticismo da nova academia. Tende
para os filósofos acadêmicos, que em todas as questões promoviam a dúvida
e afirmavam que o homem não pode apreender nenhuma verdade com
certeza absoluta. Todo conhecimento era apenas provável. Para eles, a
felicidade se encontrava na conquista da ataraxia (imperturbabilidade da
alma), que se alcança através do exame crítico de toda tese (skepsis) e da a
suspensão de todo o juízo (epoche). Já Cícero tinha adotado o ceticismo como
orientação de vida. Entretanto, o ceticismo de Agostinho não chegou a ser
uma postura generalizada – ele não abandonou a fé em Deus, por exemplo.
Tratava-se, para ele, mais de uma postura crítica em matéria de
conhecimento.
Por fim, porém, Agostinho duvida da própria postura de duvidar de tudo. A
superação da fase cética vem com a leitura de escritos platônicos, mais
propriamente, de escritos neoplatônicos, como os de Plotino e Porfírio, em
geral na tradução de Mário Vitorino, quando Agostinho já se encontrava na
Itália. Agostinho, de fato, tinha deixado Cartago no ano de 384; e, após um
ano em Roma, conseguira o cargo de mestre de retórica junto ao palácio do
Imperador em Milão. O neoplatonismo ajuda-o a fazer uma passagem do
dualismo para o monismo metafísico. De fato, o pensamento neoplatônico
encara a realidade como constituída a partir de um único princípio:
justamente o princípio do Uno. Para o platonismo o mal não é uma realidade
em si, que nega e se rivaliza com o bem. Ontologicamente, o mal é uma
privação do bem, o que equivale a dizer: uma privação do ser. O
neoplatonismo deu a Agostinho também a possibilidade de um conhecimento
não materialista de Deus (o Uno, o Bem) e da Alma. Ademais, a doutrina do
Nous (Intelecto) possibilitou a Agostinho uma aproximação à especulação
acerca do Logos (Verbum = Verbo) desenvolvida pelo cristianismo desde
Justino e os alexandrinos (Clemente, Orígenes), a partir do Prólogo do
Evangelho de João e da concepção judaico-helenista acerca da Sabedoria
(Sophia) de Filo de Alexandria. Segundo esta tradição, Cristo é o Logos, isto
é, o Deus junto de Deus, a potência divina da Sabedoria eterna com a qual
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Deus cria todas as coisas, a Palavra da Vida e da Verdade, o mestre universal,
que ilumina todo o homem que vem a este mundo. Segundo a leitura da
história desenvolvida por esta tradição, gregos e judeus foram presenteados
com pedagogos, que os preparam para o encontro com este Mestre universal.
Os gregos tiveram na filosofia o seu pedagogo, assim os judeus tiveram a
Torah (Lei, Instrução). Mas, ambos, judeus e gregos, na plenitude dos
tempos, puderam conhecer o próprio Mestre, com a encarnação do Logos,
em Jesus Cristo. Ora, nos escritos neoplatônicos Agostinho encontrou
pensamentos muito semelhantes àqueles do Prólogo de João. Mas não
encontrou que “o Logos se fez carne e habitou entre nós”. O encontro com o
Logos encarnado, com Cristo, Agostinho só faz quando, em Milão, conhece o
bispo Ambrósio, e passa a ler as cartas de Paulo. De início se aproxima de
Ambrósio unicamente pelo interesse de aprender algo mais da arte retórica.
Mas depois, começa a se interessar pelo conteúdo dos discursos de Ambrósio.
Além da presença imponente de Ambrósio e da leitura das cartas de Paulo,
outros fatores estimularam Agostinho a dar o passo decisivo, ou melhor, a
fazer o salto para a fé: o testemunho da conversão de Mário Vitorino, o
tradutor platônico, e as histórias sobre o monge egípcio Antônio (ou Antão),
que heroicamente combateu o bom combate da fé contra as insídias da sua
sensualidade e da tentação diabólica. Assim, em 387, Agostinho se fez batizar
por Ambrósio, juntamente com seu filho Adeodato. O itinerário espiritual de
Agostinho, pois, vai do sensualismo maniqueu ao cristianismo, passando pelo
ceticismo e pelo platonismo. Na fé cristã, portanto, a busca de Agostinho pela
verdade e pela felicidade – por Deus – encontrou um firme ponto de apoio,
uma resposta ao seu coração inquieto: “porque nos criastes para Vós e o
nosso coração vive inquieto, enquanto não repousar em Vós” (Confissões I
1) (AGOSTINHO, 1988, p. 23).
O tempo que imediatamente antecede e sucede ao seu batismo é o mais
fecundo em escritos filosóficos. Em 386 Agostinho forma com seus amigos
uma comunidade de vida, dedicada ao estudo e à oração, num retiro chamado
Cassicíaco, junto de Milão. Ainda na Itália, ele escreve um opúsculo contra o
ceticismo (Contra academicos); um sobre a felicidade (De beata vita); outro
sobre o lugar do bem e do mal na ordem universal criada por Deus (De
ordine); e um diálogo íntimo (“de si consigo mesmo”) sobre a investigação
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das coisas inteligíveis e sobre a imortalidade da alma (Soliloquium), tema que
é retomado em outros textos desta fase, como o De imortalitate animae (Da
imortalidade da alma) e o De quantitate animae (Da grandeza da alma),
sobre a relação entre alma e corpo. Ainda é deste período o projeto de
escrever sobre as ciências da época, cujas raízes remontavam ao tempo dos
sofistas (séc. IV a.C), ou seja, as disciplinas das sete artes liberais (artes
liberales: o trivium – gramática, dialética e retórica – e o quadrivium –
geometria, música, aritmética e astronomia). Deste projeto, Agostinho
conseguiu realizar somente a redação em parte de um escrito sobre a
gramática e sobre a música. De volta a Tagaste, em 388, Agostinho ainda
escreve o diálogo De Magistro (Do mestre), sobre a linguagem e a educação,
e termina o livro De vera religione (Da verdadeira religião), sobre a relação
entre a fé e o saber.
Na fé cristã Agostinho considera ter encontrado a verdadeira religião, o
caminho universal da libertação da alma, procurado pelos filósofos
neoplatônicos, e, na verdadeira religião, a verdadeira filosofia, pois, amar a
sabedoria é, em última instância, amar a Deus. A partir de então os textos
de Agostinho expressam sempre mais o empenho de buscar uma
compreensão, movendo-se ao interno da própria fé: credo ut intelligam –
creio para compreender, é o seu mote. Surge, então, um grande número de
escritos exegéticos, onde Agostinho recorre muito ao método alegórico
promovido por Orígenes, escritos sobre a fé e sobre a moral cristãs, bem
como escritos polêmicos contra as doutrinas heréticas de seu tempo (os
próprios maniqueus, os donatistas e os pelagianos). No campo da dogmática
pode-se destacar o seu tratado De Trinitate (Da Trindade), onde Agostinho
considera a alma humana em suas potências – memória, intelecto e vontade
– como imagem da Trindade. Ainda é importante a discussão sobre a relação
entre graça, pecado e natureza, suscitada com o pelagianismo, que pregava
a possibilidade da auto-salvação do homem, negando o pecado original e a
necessidade da graça divina. Para Agostinho, a natureza humana não se
encontra em sua pureza originária, mas se acha decaída e degenerada, o que
impossibilita ao homem salvar-se pelas suas próprias forças. Assim como o
pecado degenera a natureza humana, a graça a regenera e a resgata. A
consideração sobre a liberdade humana encontra-se, pois, sempre no centro
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da tensão dialética entre pecado e graça. A liberdade não se encontra sem a
verdade. Ela é fruto sempre de um processo de libertação. Nesta libertação,
porém, o empenho humano não é tudo. Embora não se realize a libertação
sem empenho, a libertação mesma é sempre mais do que empenho humano:
é graça divina. A liberdade é, pois, dom de uma conquista, que exige do
homem o melhor de sua boa vontade e que, no entanto, supera o próprio
homem, como evento de gratuidade divina.
De libertação e de liberdade falam, enfim, as duas principais obras de
Agostinho. As Confissões proclamam a alegria da libertação nas vicissitudes
da sua história pessoal. A Cidade de Deus investiga os vestígios da ação
libertadora de Deus na história da humanidade como um todo, que, à luz da
fé se torna ela mesma história de salvação, isto é, história de libertação
operada pela revelação da verdade de Cristo e com a instauração do reino de
Deus. As Confissões foram escritas como um canto novo do homem novo,
um louvor à grandeza e à misericórdia divina que socorre o homem em sua
pequenez e miséria. Já a Cidade de Deus foi escrita a partir do ano de 410,
por ocasião do saque de Roma, por Alarico, rei dos Godos. A violação da
“Cidade eterna” (Roma) foi um abalo no mundo da época. Os pagãos diziam
que o responsável pela fraqueza de Roma era o cristianismo. Enquanto Roma
fora governada sob a proteção dos deuses pagãos, ela dominou o mundo;
agora que Roma era governada sob a proteção do Deus cristão, o Deus de
um crucificado, ela se enfraquece e é dominada pelos bárbaros. Agostinho
defende, nesta obra, o cristianismo desta acusação. Roma fora grande não
por causa dos deuses pagãos e sim por causa da moralidade herdada dos
primeiros romanos. Do mesmo modo, sua queda não era devida ao Deus
cristão e sim à corrupção daquela mesma moralidade, que se instalara nas
instituições do Império. Esta defesa dá a Agostinho também a ocasião de
pensar o sentido da história à luz da fé cristã. Surge, assim, a primeira
teologia da história, que reúne um vasto saber enciclopédico e historiográfico
sobre a história antiga e uma forte especulação filosófica sobre o sentido da
historicidade da vida humana como tal. Agostinho morre em 430, com os
Vândalos às portas da cidade de Hipona (Hippo Regius, atual Annaba, na
Argélia), onde ele fora bispo desde o ano de 397. Ele morre, pois, vendo o
fim de uma potência mundial, que parecia inabalável: o Império Romano.
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1.2 A apropriação crítica da filosofia grega à luz da fé cristã
O sentido do pensamento de Agostinho e de sua apropriação crítica da
filosofia grega no horizonte da fé cristã, talvez possa ser elucidado com
palavras daquele que o doutor de Hipona considerava o maior de todos os
filósofos, Platão. No Fédon (85 C-D), denomina sua investigação filosófica de
“segunda navegação” (deuteros plous). Na linguagem marinheira do tempo,
“segunda navegação” era aquela que se fazia com os próprios remos, sem a
ajuda do vento. Para Platão, a primeira navegação era aquela que os
primeiros filósofos tinham empreendido com o pensamento em torno do ser
como physis (natureza). A segunda navegação, porém, feita com a ajuda da
dialética, era aquela que ele mesmo empreendia com o pensamento em torno
do ser como idea (ideia, forma essencial) e que portava ao vislumbre do
mundo inteligível, para além do mundo sensível, portanto, ao que nós
chamamos de conhecimento meta-físico. Desde Platão, toda a história
ocidental fora condicionada pelo pensamento e conhecimento metafísico, por
esta sua “segunda navegação”. O próprio Platão, no entanto, percebeu os
limites desta forma de investigação, feita com os recursos da razão finita. A
filosofia é como uma jangada, que o filósofo usa, para atravessar o mar da
vida, na falta de um barco sólido, que só uma revelação divina poderia dar:
De fato, tratando-se destes assuntos (a saber: relacionados
com o sentido da vida e da morte), não é possível se não fazer
uma destas coisas: ou aprender de outros qual seja a verdade;
ou então descobri-la por si mesmos; ou ainda, se isso for
impossível, aceitar, entre os raciocínios humanos, aquele que
for melhor e menos fácil de se confutar, e sobre este, como
sobre uma jangada (epi skhedias), afrontar o risco da travessia
do mar da vida (diapleusai ton bion); a menos que se possa
fazer a viagem de modo mais seguro e com menor risco
(asphalesteron kai akindynoteron) sobre uma nave mais sólida
(epi bebaioterou okhematos), ou seja, confiando-se a uma
divina revelação (epi logou theiou tinos). (Platão, Fedon, 85 c-
d tradução nossa). (cfr. PLATONE, 1997, p. 198-199).
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Ora, Agostinho não hesitou em confiar-se à revelação divina que ele
encontrou na sabedoria da fé cristã. O lignum crucis – o lenho da cruz –
tornou-se para ele o barco sólido e seguro para aportar no porto estável do
ser, superando, assim, as instabilidades do mar do vir a ser. Como se fosse
uma ressonância ao discurso de Platão sobre a segunda navegação, as
palavras de Agostinho declaram:
A partir do momento que se vê que todas estas coisas (a saber:
do mundo) são mutáveis, o que é aquilo que é, senão o que
transcende todas as coisas que são e não são neste mundo?
Quem, pois, compreenderá isto? Ou quem, de qualquer
maneira, que tenha empenhado as forças da sua mente para
poder compreender tanto quanto seja possível aquilo que é, é
capaz de chegar àquilo que, de qualquer maneira, com sua
mente consegue colher? É como se alguém visse de longe a
pátria, mas houvesse no meio o mar que o separa dela. Ele vê
onde deve ir, mas lhe falta o meio com que ir. Assim é para nós,
que queremos chegar àquela nossa estabilidade, onde aquilo
que é é, porque este somente é sempre assim como é. Há no
meio o mar deste mundo através do qual devemos ir, enquanto
muitos nem mesmo veem onde devem ir. Por isso, a fim de que
existisse também o veículo com que ir, veio de lá Aquele ao qual
queremos ir. E o que ele fez? Preparou o lenho com o qual
pudéssemos atravessar o mar. De fato, ninguém pode
atravessar o mar deste mundo, se não é conduzido pela cruz de
Cristo. A esta cruz poderá agarrar-se, às vezes, mesmo aquele
que tem os olhos doentes. E quem não vê onde deve ir, não se
separe da cruz, e a cruz o conduzirá (Agostinho, Comentário ao
Evangelho de João: II, 2 tradução nossa). (cfr. AGOSTINHO,
2000, p. 493-495).
Agostinho tinha consciência daquilo que Paulo proclamara (1Cor 1, 17 – 2,
16): que a sabedoria da cruz é loucura para aqueles que buscam a sabedoria
deste mundo (para os gregos) e vice-versa, que a sabedoria deste mundo é
loucura para aquele que vê na cruz a sabedoria de Deus. Entretanto, ele
postula que a sabedoria que a razão busca encontra-se, em última instância,
na “loucura da cruz”. A verdadeira filosofia se encontra na revelação do
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mistério da cruz. Este pensamento já tinha emergido em Justino e em
Clemente de Alexandria, por exemplo. Antes de Agostinho, já outro insigne
autor da patrística latina tinha salientado a heterogeneidade, para não dizer
a discrepância e a “inimizade” entre a busca filosófica da razão humana e a
revelação divina: Tertuliano (séc. II-III), um dos apologistas do cristianismo
diante dos ataques da cultura dominante. Com palavras inflamadas e com
uma retórica impressionante, feita de antíteses e de paradoxos, diz
Tertuliano:
O que tem o filósofo e o cristão em comum? O discípulo da
Grécia e o discípulo do Céu? O pretendente à fama e o
pretendente à vida eterna? O fazedor de palavras e o realizador
de ações? O destruidor e o edificador das coisas? O amigo e o
inimigo do erro? O falsificador da verdade e o seu
reconstituidor? O seu ladrão e o seu vigia? (Apologia 46). O que
tem em comum Atenas e Jerusalém, a Academia e a Igreja, os
heréticos e os cristãos? (Da Prescrição 7). O filho de Deus foi
crucificado: não dá vergonha, porque é vergonhoso. E o filho de
Deus morreu: é credível, porque improvável. E foi sepultado: é
certo, porque impossível (Da Carne de Cristo 5 – tradução
nossa). (Apud ÜBERWEG, 1927, p. 50).
Tertuliano acentuou ao máximo a oposição entre fé e razão. Agostinho
reconheceu a heterogeneidade entre a razão e a fé, mas não acentuou esta
oposição, antes buscou conciliá-las numa síntese bem peculiar, onde a fé
assume sob si a busca filosófica da razão e funciona como instância crítica
desta. Na Idade Média, o que venceu foi a posição de Agostinho, apesar de
sempre ter havido tendências fideístas, como a de Pedro Damião, no século
XII, por exemplo. Esta união de coisas tão distintas, filosofia e fé, permite,
na visão de Agostinho, uma navegação mais segura no mar desta vida, para
aportar no porto do ser, isto é, na estabilidade d’Aquele que é o que é,
d’Aquele que é sempre assim como é, conforme a revelação do nome divino
a Moisés: Ego sum qui sum: qui est, misit me ad vos (Eu sou quem sou:
quem é, mandou-me a vós) (Êxodo 3, 14). É assim que a metafísica, o
empenho autônomo da investigação racional que questiona o ser, e a
teologia, o empenho da busca da compreensão da fé, que se volta para o
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Deus de Jesus Cristo, se unem. Esta união marcará o destino da filosofia até
o fim Idade Média.
O programa de investigação filosófica em Agostinho se resume nesta frase:
Deum et animam scire cupio. Nihil plus? Nihil omnino (Desejo conhecer Deus
e a alma. Nada mais? Absolutamente nada mais) (Solilóquio I 2, 7). Portanto,
ao preceito do oráculo délfico (Gnote seauton – conhece-te a ti mesmo!),
Agostinho acrescenta o conhecimento de Deus. Nesse duplo conhecimento,
pois, está o essencial da investigação filosófica agostiniana. De que adianta
ao homem o conhecimento do mundo inteiro, se ele ignora a si mesmo e a
Deus? Por isso, das três partes da filosofia, a saber, a física, a lógica e a ética,
a mais importante é, nesta perspectiva, a ética. A física, ou filosofia natural,
só vale se conduz ao conhecimento da causa primeira; a dialética, ou filosofia
racional, é apenas instrumental, uma disciplina que ensina a aprender e a
ensinar e que investiga de que modo o homem pode conhecer a verdade; já
a ética, ou filosofia moral, é o que mais importa, pois ela é a busca do bem
maior para o homem, ou seja, da felicidade, que consiste na fruição de Deus
(frui Deo), o Sumo Bem, o Bem puro e simples. O sentido do filosofar está
na própria busca da felicidade por parte do homem: nulla est homini causa
philosophandi, nisi ut beatus sit (não há nenhuma outra causa que leva o
homem a filosofar, a não ser a busca de ser feliz) (A Cidade de Deus XIX 1).
Na verdade, a filosofia natural, a racional e a moral, constituem um tríplice
caminho, que reconduz o homem a Deus, pois Deus é causa subsistendi
(causa do subsistir), ratio intelligendi (razão do entender) e ordo vivendi
(ordem do viver) (A Cidade de Deus VIII 4).
É a partir dessa perspectiva que Agostinho valora a filosofia grega. O
conhecimento dos filósofos jônicos e itálicos da natureza só tem valor
enquanto conduz ao conhecimento (vago ainda) de uma razão divina a
governar o cosmo. Sócrates merece atenção, pois mudou o foco da física para
a ética. Platão é o maior dos filósofos. Agostinho conta Aristóteles entre os
mais antigos platônicos, apesar de este ter fundado a sua própria “seita”, a
dos peripatéticos; e considera-o “homem de excelente engenho”, superior a
muitos dos platônicos, mas inferior em estilo a Platão (Cfr. A Cidade de Deus
VIII 12). Platão e os filósofos que o seguem, como Plotino, Porfírio e Jâmblico,
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se destacam pelo empenho metafísico (transcendental). Para Agostinho, eles
se encontram na sua mesma dinâmica, ou seja, no movimento do quaerere
Deum (buscar Deus): cuncta corpora transcenderunt quaerentes Deum;
omnem animam mutabilesque omnes spiritus transcenderunt quaerentes
summum Deum (transcenderam todos os corpos, em busca de Deus;
transcenderam também todas as almas mutáveis e os espíritos, em busca do
sumo Deus). (A Cidade de Deus VIII 6). O neoplatonismo teria até mesmo,
segundo Agostinho, vislumbrado algo da Trindade. De fato, Agostinho
entrevê uma analogia entre a tríade ser, entender, viver (esse, inteligere,
vivere) ou a tríade Uno (hen), Intelecto (Nous) e Alma do mundo (Psyché),
com o mistério trinitário do Pai, Filho e Espírito Santo. O neoplatonismo teria
ainda o mérito de propor ao homem a busca da purificação, da iluminação e
da visão de Deus e um ideal de virtude maior, que consiste no ser semelhante
a Deus (A Cidade de Deus IX 17).
Entretanto, movidos pela soberba, os filósofos neoplatônicos não foram
capazes de aderir ao Verbo encarnado: ao Deus que se esvaziou a si mesmo,
fazendo-se semelhante ao homem e tornando-se servo de todo o homem, a
ponto de, por amor aos homens, sofrer a morte de Cruz. De fato, estes
filósofos mostraram-se vãos, ao aderir aos sacrifícios pagãos e ao culto dos
demônios (entendidos como mediadores entre os deuses e os mortais), como
foi o caso de Porfírio, o qual confessou não ter ainda constado que nenhuma
seita teria encontrado “a senda universal para a libertação da alma” (A Cidade
de Deus IX 33). Tornaram-se cegos para o único mediador entre Deus e o
homem, o Deus-homem, Cristo Jesus. Cumpriu-se assim o oráculo do profeta
Isaías: perdam sapientiam sapientium et prudentiam prudentium reprobabo
(porei a perder a sabedoria dos sábios e reprovarei a prudência dos
prudentes) (Cfr. Confissões VII 9). De fato, a “senda universal para a
libertação da alma” se encontra no seguimento humilde do Cristo Crucificado,
o Logos feito carne, humanado, que os platônicos, em sua soberba, não
reconhecem.
Também os céticos da Nova Academia se desviaram. Eles invertem a ordem
das coisas, afirmando que o investigar torna o homem mais feliz do que o
saber. Ora, sem a possibilidade de uma posse da verdade, não tem sentido
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nem mesmo a busca e a investigação. É esta posse que, acima de tudo, torna
o homem feliz, como, de resto, afirmou também Aristóteles (Cfr. Ética a
Nicômaco X 7). Eles afirmaram que o homem, no máximo, pode chegar a um
conhecimento provável do real. Como pode se dar o provável, sem o
verdadeiro? Não é o verdadeiro a medida a partir da qual se mede o provável?
Ademais, quem investiga pode perceber que o desejo do verdadeiro que é
inerente ao homem não é em vão. Em diversos níveis de conhecimento, é
possível ao homem o conhecimento da verdade. No nível do conhecimento
sensível, por exemplo, pode-se afirmar que os sentidos não nos enganam,
como se costuma afirmar. Na verdade, como já observaram os estoicos,
somos nós que nos enganamos em nossos juízos sobre o que os sentidos nos
mostram. Já o conhecimento racional se baseia sobre um princípio que
absolutamente certo: o princípio de não contradição. Dada uma disjunção
contraditória, um dos membros deve ser verdadeiro e o outro falso. Mesmo
se o conhecimento sensível e o conhecimento racional fossem enganosos, há
algo que se subtrai a todo engano: si fallor, sum (se me engano, existo), diz
Agostinho, antecipando, de certa maneira, o cogito, ergo sum, de Descartes
(Cfr. A Cidade de Deus XI 26). Com efeito, é certíssima a evidência da auto-
presença da mente para si mesma, evidência que ela tem, junto dos atos ou
vivências que ela realiza:
Quem, porém, pode duvidar que a alma vive, recorda, entende,
quer, quer, pensa, sabe e julga? Pois, mesmo se duvida, vive;
se duvida, lembra-se do motivo de sua dúvida; se duvida,
entende que duvida; se duvida, quer estar certo; se duvida,
pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que não
deve consentir temerariamente. Ainda que duvide de outras
coisas não deve duvidar de sua dúvida. Visto que se não
existisse, seria impossível duvidar de alguma coisa (Da Trindade
X 10, 14). (AGOSTINHO, 1994, p. 328).
15
1.3 A busca da felicidade e da verdade como busca de Deus (quaestio
dei)
A busca de Deus (quaestio Dei), em Agostinho, passa, pois, pelo
conhecimento da alma (anima), melhor, do espírito (animus) ou mente
(mens), ou seja, não tanto da dimensão sensitiva da alma, mas de sua
dimensão espiritual, que transcende o mundo sensível, o mundo dos corpos.
Graças a essa transcendência, a mente pode conhecer-se a si mesma em sua
autopresença imediata e em sua evidência indubitável. Ao homem, o caminho
que conduz à verdade passa necessariamente pelo conhecimento de si
mesmo e pelo recolhimento no mais íntimo de si. Agostinho indica: noli foras
ire, in te redi; in interiore homine habitat veritas (Não vás para fora, entra
em ti mesmo: no homem interior habita a verdade) (A Verdadeira Religião,
72). A partir deste aceno, Agostinho, por exemplo, convida o homem a
investigar a grandeza, amplidão e profundidade da memória (Confissões X 7-
19). E se admira: “grande é a potência da memória, ó meu Deus! Tem não
sei quê de horrendo, uma multiplicidade profunda e infinita. Mas isto é o
espírito, sou eu mesmo. E que sou eu, ó meu Deus? Qual é a minha natureza?
Uma vida variada de inumeráveis formas com amplidão imensa” (Confissões
X 17). Investigando a si mesmo, Agostinho acaba encontrando o que supera
a si mesmo: a presença de Deus na mente do homem, como Verdade que o
ilumina desde dentro, como Vida de sua vida. E mais, ele encontra, ainda, na
mente humana, uma analogia da Trindade, na tríade ser, conhecer e amar,
que espelha o Pai, princípio sem princípio do ser, o Filho, princípio principiado
como o Intelecto do Pai, e o Espírito Santo, o princípio espirado do amor que
une Pai e Filho: “somos, conhecemos que somos e amamos esse ser e esse
conhecer (...). Como conheço que existo, assim também conheço que
conheço. E quando amo essas duas coisas, acrescento-lhes o próprio amor,
algo que não é de menor valia” (A Cidade de Deus XI 26).
O homem busca a felicidade, mas a felicidade consiste em se alegrar com a
verdade, pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa, isto é,
não seria felicidade. Como o homem, porém, pode alcançar a verdade?
Resposta: dentro de si mesmo. A Verdade habita o homem interior; ela é o
próprio Deus que ilumina o homem desde dentro. Ubi enim inveni veritatem,
16
ibi inveni Deum meum ipsam veritatem (onde encontrei a verdade, ali
encontrei o meu Deus, que é a verdade mesma) (Confissões X 24). Ora, há
uma diferença ontológica entre a Verdade e o verdadeiro. A verdade é aquilo
que possibilita o verdadeiro como verdadeiro. Agostinho entende a verdade,
primordialmente não no sentido lógico, como a retidão do juízo, pois esta já
supõe a verdade pré-predicativa, a verdade no sentido manifestativo, ou seja,
a verdade no sentido ontológico: verdade é o que é; ou ainda: verdade é o
que mostra aquilo que é (quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religião
XXXVI 66). Verdadeiro é aquilo que se mostra tal como é ou que é tal como
se mostra. Verdade é aquilo que produz tal mostrar, ou seja, é aquilo que
ilumina tanto a coisa conhecida como o próprio ato de conhecer. Assim como
o olho do corpo conhece o visível graças à claridade da luz sensível, também
o olho da mente, o intelecto da criatura espiritual, conhece o inteligível graças
à claridade da luz divina, ou seja, da Verdade. Ora, esta Verdade não é algo
que se submete ao juízo do homem. Pelo contrário, para que o juízo do
homem seja verdadeiro, isto é, reto, é necessário que ele esteja de acordo
com as regras da verdade. A estas regras Agostinho chama de rationes
aeternae (razões eternas), pois são imutáveis em si mesmas. Elas dão acesso
ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas, quer no campo
teórico, quer no campo prático. Elas dão acesso, portanto, ao mundo
inteligível, ao reino das ideias, como chamava Platão. Por exemplo: como
pode o homem injusto conhecer o que é justo? De onde ele tira a ideia da
justiça, já que ele é injusto, se não da luz da Verdade que ilumina o homem
sobre o que é justo e injusto?
Onde, pois, estarão escritas essas regras? Elas que possibilitam
ao injusto reconhecer o que é justo, descobrir que deve possuir
aquilo que ele mesmo não possui? Onde hão de estar escritas
senão no livro daquela luz que se chama Verdade? Nesse livro
é que se baseia toda lei justa que é transcrita e que se transfere
para o coração do homem que pratica a justiça. Não como se
ela emigrasse de um lado para o outro, mas a modo de
impressão na alma. Tal como a imagem de um anel fica
impressa na cera, sem se apagar do anel (Da Trindade XIV 15,
21). (AGOSTINHO, 1994, p. 469-470).
17
A Verdade não se encontra somente no íntimo mais íntimo do homem. Ele
também se encontra acima dele, no sentido de transcendê-lo. Enquanto a
mente do homem é mutável, a Verdade é imutável. Enquanto a mente criada
é temporal, a Verdade incriada é eterna. Ao in te ipsum redi (entra em ti
mesmo) corresponde também o transcende te ipsum (ultrapasse a ti
mesmo), pois a verdade não é somente “íntima” (o que há de mais interior),
mas também “suma” (o que há de mais elevado) no homem. E esta Verdade
é Deus: Tu autem eras interior intimo meo et superior summo meo (Tu, com
efeito, eras mais íntimo que o meu próprio íntimo e mais sublime que o ápice
do meu ser! (Confissões III 6).
1.4 Criação e temporalidade
Platão tinha postulado o mundo inteligível das ideias ou essências como
eterno e imutável, separado do mundo sensível. O Demiurgo de Platão ordena
o mundo sensível a partir do mundo inteligível. Agostinho entende que as
ideias se encontram na mente ou no Intelecto divino (no Logos ou Verbo).
Elas são pensamentos de Deus, segundo os quais ele cria todas as coisas.
São, pois, as razões eternas e estáveis das coisas, os fundamentos de tudo
aquilo que surge e perece (rationes rerum – razões ou fundamentos das
coisas), que estão presentes na Sabedoria criadora de Deus. São formas
formadoras e não formas formadas, que estão presentes e atuantes na
matéria do universo como logoi spermatikoi (sementes do Logos) ou rationes
seminales (razões que atuam como sementes), isto é, são potencialidades de
geração e de formação que a matéria traz consigo, em seu bojo, diz
Agostinho, mesclando, assim, uma concepção ao mesmo tempo platônica e
estoica das ideias.
Em lugar da emanação neoplatônica, Agostinho põe a tese de uma creatio ex
nihilo (criação a partir do nada). A emanação é um processo necessário e
eterno. Segundo este processo, as coisas emergem do Uno de maneira não
imediata, mas através de uma série de mediações. A criação é, ao contrário,
um ato livre e contingente, que não tem nenhum pressuposto, a não ser a
própria vontade criadora que Deus traz consigo, ou seja, a vontade de
18
comunicar o ser para além de si mesmo. Dizer que a criação é ex nihilo (do
nada) é dizer que ela é a partir da absoluta liberdade de Deus. Nada é
pressuposto desta criação a não ser a gratuidade desta liberdade. Mesmo o
caos originário, de onde surge o cosmos é um caos criado. A matéria informe,
um quase-nada, é entendida como o substrato indeterminado, que recebe a
o ser como forma determinante das coisas. Se a forma é o elemento estável
e definidor das coisas, a matéria é o elemento instável: princípio de mutação,
que traz consigo o sentido da transitoriedade do vir a ser. Ademais, a criação
é uma comunicação do ser que é imediata. “Tudo o que é, enquanto tem o
ser, o tem de Deus” (Da Verdadeira Religião: XVIII 36, 97). Criação é
comunicação do ser. É, portanto, evento que acontece por meio da Palavra
(Logos / Verbo), que é a própria Sabedoria eterna de Deus. É nesta Sabedoria
que estão as Ideias como arquétipos (formas originárias) de todas as coisas.
Na mente divina, porém, não estão somente as ideias universais das coisas,
mas também as ideias de cada ser individual. A individualidade ou
singularidade das coisas adquire, assim, uma dignidade eterna e infinita, que
não tinha no pensamento grego. Cada indivíduo foi como indivíduo, isto é, na
sua singularidade, pensado por Deus, desde a eternidade (Epístola XIV 4).
Se do ponto de vista de Deus a criação é uma comunicação do ser, do ponto
de vista da criatura ela é uma participação do ser. A criatura só é à medida
que participa do ser, que lhe é comunicado livre e gratuitamente pelo Criador.
Por si mesma, ela é um nada e tende para o nada. Por isso, a conservação
do mundo é uma continuação do ato criador de Deus. Se Deus retirasse o ser
que ele comunica à criatura, esta voltaria para o nada.
A decisão de criar, por parte de Deus, é eterna (Cfr. A Cidade de Deus XI
4ss). Mas o mundo criado, em virtude da sua finitude, é temporal. Tempo e
espaço só existem no mundo criado e com o mundo criado. O tempo é a
medida do movimento, do devir, do surgir e perecer. Só há tempo onde há
mutabilidade. Mas, só há medida onde haja uma mente que atue o ato de
medir. A mente humana vive a experiência imediata do tempo como duração.
“Em ti, ó meu espírito, meço os tempos!” (Confissões XI 27). Nessa
experiência da duração, primeiro vem o futuro, como o que ainda não é;
depois vem o presente, como o que já é; depois, o passado, como o que não
mais é. Na vivência da duração, o futuro é expectativa; o presente é atenção;
19
o passado, memória. O tempo é uma distentio animae: o distender do
espírito. Os três tempos, na verdade, são um único tempo: o presente. O
futuro é o presente da expectativa; o presente é o presente da atenção; o
passado, o presente da memória. Futuro, presente e passado são, portanto,
três formas de presente. Eles pressupõem sempre a autopresença do espírito
a si mesmo. O tempo é, assim, um vestígio ou uma imagem da eternidade:
o presente estável, que não conhece nem mutação nem duração. O homem
se encontra, assim, entre o tempo e a eternidade, em virtude da ambivalência
de sua natureza. Ele se encontra no meio, entre o ser absoluto e o nada (o
não-ser absoluto). Isso lhe provoca fascínio e horror: Inhoresco, inquantum
dissimilis ei sum, inardesco, inquantum similis ei sum (horrorizo-me,
enquanto sou dissímile dela [da luz divina], inflamo-me, enquanto sou símile
a ela) (Confissões XI 9).
1.5 O Bem, a vontade e a ordem do amor
A comunicação do ser é um ato da bondade de Deus. Aliás, Deus não é um
bem, mas o bem pura e simplesmente. Ele é o sumo Bem. Na concepção
platônica, o Bem é aquilo que deixa e faz ser, é aquilo que torna o ente apto
a ser. Por isso é que o Bem está além do ser, além de toda entidade (epekeina
tes ousias). Plotino colocou o Uno além do ser. O Uno é o próprio Bem. Em
Agostinho, Deus é o Bem Uno, anterior a toda a pluralidade de bens.
Torna a olhar a Verdade, se o podes. Por certo, tu não amas
realmente senão aquilo que é bom (...). Bom é isto e bom é
aquilo. Prescinde disso e daquilo e contempla o próprio Bem, se
podes. Então verás a Deus, que é bom, não por algum outro
bem, mas o Bem de todos os bens (...). Portanto, a Deus se há
de amar, não como se ama a este ou aquele bem, mas como se
ama o próprio Bem. É esse o bem da alma que se há de procurar
(...). Somente o Bem é bom (Da Trindade: VIII 3, 4).
(AGOSTINHO, 1994, p. 263-264).
Na adesão ao Bem puro e simples e na sua fruição está a felicidade
(beatitudo) do homem. Para este Bem tende, fundamentalmente, a vontade
20
do homem. A vida do espírito consiste em conhecer e querer, razão e
vontade. Vontade (voluntas) é, porém, essencialmente, amor (amor).
Quando a vontade do homem se volta para as muitas coisas mutáveis e nelas
se dispersa, ou seja, quando ela se volta para os muitos bens particulares, o
amor se torna cobiça (concupiscentia). In multa defluximos (Nós nos
deslizamos para muitas coisas) (Confissões X 29). A concupiscência da carne,
que é a busca desenfreada do prazer, a concupiscência dos olhos, que é o
desejo vão da curiosidade, e a soberba, que é a cobiça de ser amado e
temido, sem querer amar e temer, armam, a cada passo da existência do
homem, uma cilada. A vida do homem é uma tentação sem trégua: Numquid
non ‘temptatio est vita humana super terram’ sine ullo interstitio? (Não é,
pois, ‘a vida humana sobre a terra uma tentação’ sem interstício?)
(Confissões X 28). Por se deixar arrastar para as muitas coisas, o homem se
torna um peso para si mesmo: “Oneri mihi sum” (sou um peso para mim
mesmo) e a vida se torna para ele um enfado (molestia). Por já sempre se
ter perdido e alienado de sua existência autêntica, o homem se torna uma
questão para si mesmo: quaestio mihi factus sum (tornei-me uma questão
para mim mesmo) (Confissões IV 4).
Quando, porém, a vontade se volta para o único e eterno Bem, que torna
boas todas as coisas, o amor se torna caridade (caritas) e o homem alcança
a contenção da própria existência, recolhendo-se no Uno (continentia) e
obtendo a leveza do ser. Para que isso aconteça, é preciso que o homem, em
suas ações e em seus hábitos, siga a ordem do amor (ordo amoris). Isso
requer, em primeiro lugar, observar a diferença entre uti (usar) e frui (fruir,
encontrar prazer em). Em primeiro lugar, o homem precisa servir-se das
criaturas, em vez de buscar nelas a satisfação plena dos seus desejos, pois a
meta última da vontade é o Sumo Bem. Deter-se nas criaturas seria conter a
marcha da vontade em seu caminho para o seu fim último. Em segundo lugar,
o homem precisa amar menos o que é menos digno de ser amado: o corpo,
menos do que o espírito. Pois, no próprio homem, há uma hierarquia de ser:
o homem é uma alma que se serve de um corpo: mortali atque terreno utens
corpore ([a alma é uma substância racional] que se serve de um corpo mortal
e terreno) (Dos Costumes da Igreja I 27). Em terceiro lugar, o homem
precisa amar em igual medida o em igual modo deve ser amado: o próximo.
21
Em quarto lugar, o homem precisa amar acima de tudo o que acima de tudo
é digno de ser amado: Deus, o Sumo Bem, o próprio amor.
A vontade, portanto, é dotada de livre arbítrio: ela pode se voltar para o
Sumo Bem ou dele se desviar, invertendo a ordem do amor, isto é, amando
menos o que é mais digno de ser amado e vice-versa, amando mais o que é
menos digno de ser amado. Se, do ponto de vista ontológico, o mal é uma
privatio boni (uma privação do bem); do ponto de vista ético, o mal é uma
inversão na ordem do amor, uma inversão que tem origem na própria
vontade. O livre-arbítrio, portanto, não é, em si, um bem supremo, e sim um
bem mediano, pois com o livre-arbítrio o homem pode perder ou conquistar
a sua liberdade. É que livre-arbítrio é condição necessária para a liberdade,
mas não suficiente. Para ser livre, o homem não pode deixar de se libertar
continuamente, pela verdade, para o Bem. Por isso, não basta ao homem ter
uma vontade livre. Para que ele seja feliz, é preciso que tenha uma vontade
boa (bona voluntas). Contudo, boa é aquela vontade que se dirige e adere ao
Sumo Bem. A questão é se o homem, por si só, é capaz de alcançar este
Sumo Bem. Para Agostinho, a vontade do homem é, desde o seu nascimento,
uma vontade impotente para alcançar o que ela se propõe. E isso é uma
decorrência do pecado original. Contra Pelágio, desde a perspectiva da fé
cristã, ele postula que somente a graça pode regenerar a vontade do homem
e torna-la capaz de alcançar aquilo que ela busca em última instância: a
fruição do Sumo Bem.
1.6 As duas cidades, o ethos social e o sentido da história
A medida de um homem é a medida de seu amor. Cada um é aquilo que ele
ama e como ele ama. Isto vale não somente para o indivíduo. Vale também
para as comunidades humanas e para esta comunidade de seres racionais,
que é a Civitas (Cidade, Estado). A civitas é, pois, uma comunidade espiritual,
fundada num ordenamento ético e jurídico. Não qualquer congregação de
seres humanos é uma civitas, mas sim aquela cuja fundamentação repousa
na ratio (razão) e, por conseguinte, no vínculo da lex (lei). A civitas é, por
conseguinte, uma societas rationalium – sociedade de seres racionais –
22
fundada sobre o povo, especialmente, sobre o costume dos antepassados
(mos maiorum). A civitas é, portanto, uma res publica, uma realidade pública,
a forma de sociedade, instituída pelo povo. Agostinho assim definiu o conceito
de ‘povo’: populus est coetus multitudinis rationalis rerum quas diligit
concordi communione sociatus (“o povo é o conjunto de seres racionais
associados pela concorde comunidade dos objetos amados”) (A Cidade de
Deus XIX 24). Por isso, dirá Agostinho, se quisermos conhecer a identidade
de um povo, é preciso perguntar: o que é que ele ama? Este mesmo critério
Agostinho usa para refletir sobre a história.
A história da humanidade, lida à luz da história da salvação, contida na Bíblia,
é, para Agostinho, a história de duas Cidades, fundadas por dois amores: a
Civitas terrena (Cidade Terrena), simbolizada biblicamente por Babilônia,
arquétipo da desordem e da injustiça, e a Civitas Dei (Cidade de Deus),
simbolizada por Jerusalém, arquétipo da ordem e da justiça. “Dois amores
fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a
Deus, a terrena: o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial.
Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus” (A Cidade de Deus
XIV 28). As duas Cidades, portanto, são dois tipos de constituição do mundo
da convivência humana, duas formas de organização da vida social, cada uma
fundada por uma espécie de amor e seu ethos. Podemos ressaltar a
concepção de poder que fundamenta a arte de governar em uma e outra
Cidade: “naquela, seus príncipes e nações avassaladas veem-se sob o jugo
da concupiscência de domínio; nesta, servem em mútua caridade, os
governantes, aconselhando, e os súditos, obedecendo” (A Cidade de Deus
XIV 28). Ou seja: numa, o poder é exercido a partir da cobiça de dominação
sobre os outros homens, noutra, o poder é exercido a partir da intenção de
servir e ajudar a construir uma comunidade humana justa.
As duas cidades encontram-se, durante toda a história, misturadas. Por
conseguinte, não coincidem com a Igreja e o mundo. A Cidade de Deus tem
habitantes mesmo entre os que estão fora dos limites da Igreja visível, como
a cidade terrena também tem habitantes mesmo entre aqueles que estão
contados como cristãos. A Igreja militante é ainda uma realidade mista,
híbrida: traz em si justos e injustos, habitantes da Cidade de Deus e da cidade
23
terrena. Somente a Igreja triunfante, na eternidade, é que será uma
realidade pura e sem mancha de pecado, em que habitarão somente os
justos.
A história é um processo teleológico. A consumação deste processo consiste
na revelação e constituição definitiva do Reino de Deus: o triunfo da
Jerusalém Celeste. A temporalidade histórica é caracterizada pela
tempestuosidade dos combates entre os humanos que se agitam na
diversidade e mesmo no conflito de seus interesses. A paz terrena é sempre
frágil, fruto dos acordos interesseiros dos homens. Os homens que amam a
justiça, porém, devem promover esta paz terrena, mas almejando a paz
celeste e perpétua, que é a verdadeira meta da história e que consiste em o
homem fruir de Deus e em Deus. Mas, o que é a paz como tal? Agostinho
responde: “a paz de todas as coisas é a tranquilidade da ordem”. E o que é a
ordem? “A ordem é a disposição que às coisas diferentes e às iguais
determina o lugar que lhes corresponde” (A Cidade de Deus XIX 13).
Estante do saber
O livre-arbítrio
(http://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/santo_agostinho
_-_o_livre-arbitrio.pdf), de Agostinho.
Confissões
(http://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/santo_agostinho
_-_confissoes.pdf), de Agostinho.
A vida de Agostinho (http://www.zahar.com.br/doc/t1055.pdf),
capítulo 02 do livro Santo Agostinho de Gareth Matthews.
Agostinho e o ceticismo
(http://criticanarede.com/hist_cepticismo.html), excerto do capítulo
03 do livro Santo Agostinho de Gareth Matthews.
Agostinho de Hipona (http://gloria.tv/?media=75103), filme de
Roberto Rossellini.
24
Agostinho é, portanto, um pensador de alto nível e de intensa
dinâmica existencial. Sua influência foi bastante forte em toda a
Idade Média e chega até aos nossos dias. Na Alta Idade Média (do
século V até o ano mil) sua influência é decisiva para formar o
espírito medieval latino. Até o século XII, esta influência não
encontra concorrência. Com ele, vigora a filosofia de Platão e do
neoplatonismo, porém. No século XIII, com a recepção de
Aristóteles, esta hegemonia platônico-agostiniana é quebrada,
sobretudo na obra de Tomás de Aquino. Agostinho acabou sendo,
portanto, o elo de dois mundos: o antigo e o medieval. Durante
vários séculos, somente outro pensador, com outro estilo de
pensamento, pode emergir como uma referência alternativa: o
Pseudo-Dionísio Areopagita.
25
Aula 02 – O Pseudo-Dionísio Areopagita
Depois de Agostinho, o segundo nome da tarda antiguidade mais
importante como fonte para o pensamento medieval é o do Pseudo-
Dionísio Areopagita. Se Agostinho é do círculo cultural latino, o
Pseudo-Dionísio é do círculo cultural grego. Nesta aula vamos
estudar o pensamento do Areopagita, que gozou de tanta
autoridade na Idade Média.
Esta aula não possui fontes. Favor incluí-las.
2.1 O corpus de escritos do Pseudo-Dionísio
Na Idade Média, um conjunto de escritos, o corpus dionysiacum, teve uma
alta relevância para a filosofia e teologia. Assim é chamado este conjunto de
escritos pois foi legado sob a autoria de Dionísio Areopagita, o filósofo
convertido por Paulo em sua pregação no areópago em Atenas, na qual o
Apóstolo anuncia aos gregos o “Deus desconhecido” (agnostos theos) (Atos
dos Apóstolos 17, 17-34). Este conjunto de escritos, pois, foi transmitido com
o peso de uma autoridade apostólica. Mas, não deixou de corroborar a
importância deste “corpus” o nível de especulação filosófica e teológica nele
inserida. O verdadeiro escritor destes escritos permanece-nos ignorado. Já
Abelardo (1079 – 1142) levantou a dúvida sobre a autoria deles, No século
XV, por sua vez, Lourenço Valla realizou de modo mais rigoroso uma crítica
à autenticidade da autoria atribuída a Dionísio, o Areopagita. Mas somente
no século XIX é que a falsificação ficou provada. Daí o nome: Pseudo-Dionísio.
Aqui, porém, por comodidade, vamos chamá-lo como os medievais o
chamavam, ou seja, simplesmente de Dionísio.
As pesquisas mais recentes corroboram a hipótese de que o autor do corpus
dionysiacum teria vivido na virada do século V para o século VI, no espaço
26
da Síria (HEINZMANN, 1992, p. 116). O corpus está escrito em grego. O autor
promove uma síntese de neoplatonismo tardio – ele é um herdeiro de Proclo
(410 – 485) – e de especulação cristã – neste sentido ele é também herdeiro
da patrística grega do século IV, sobretudo dos capadócios, e, em especial,
de Gregório de Nissa (334 – 394).
2.2 Deus e sua cognoscibilidade
Dionísio, em sua obra, aborda as possibilidades e os limites do conhecimento
e do discurso humano sobre Deus (HEINZMANN, 1992, p. 117). O
pensamento de Dionísio se expõe em contínua tensão dialética. De um lado,
está a teologia afirmativa; de outro, a teologia negativa (PSEUDO DIONISIO
AREOPAGITA, 1990, p. 374-377). A teologia afirmativa (kataphatike) é
descendente (kata = do alto para baixo). Ela nomeia Deus com os nomes que
são acessíveis à razão e que são dados pela revelação. Afirma que Deus é;
que ele é unidade (monas) e tríade (trias); que ele é ser, vida e sabedoria;
que, como ser, ele deixa e faz ser todo o ente; como vida, ele anima todo o
vivente; como sabedoria, ele ilumina e instrui todo o inteligente. Depois,
nomeia Deus com os nomes que são acessíveis ao discurso cotidiano, tirado
do mundo sensível, usando metáforas: dizendo que Deus é vento, é água, é
fogo, é rocha, é águia, é leão, etc. Ora, o discurso simbólico sobre Deus é um
discurso que, fala da semelhança na dessemelhança. E o discurso racional
sobre Deus é um discurso também limitado, pois fala de Deus com os nomes
e os conceitos que nos são acessíveis. Por isso, torna-se necessária a teologia
negativa (apophatike), que realiza, por meio do negar, um retorno a Deus.
De fato, o prefixo “apo” dá a entender um movimento de eliminação, mas
também de retorno e distanciamento. Aqui se nega que Deus seja qualquer
determinação que nós atribuímos a ele, por meio de imagens ou de conceitos
da nossa linguagem. Deus não é nada de sensível; também não é nada
daquilo que nos é inteligível, pois transcende tudo, tanto o sensível, quanto
o inteligível. Na teologia afirmativa, o divino se dá em proximidade crescente,
à medida que ele se deixa dizer em nossa linguagem conceitual e simbólica.
Noutra, o divino não se deixa dizer, ele se subtrai sempre de novo e só se dá
nessa subtração, isto é, na distância de seu mistério e no retraimento de sua
transcendência. A teologia afirmativa é como uma pintura; a negativa, como
27
uma escultura. A pintura põe. A escultura tira. Mas, tanto no pôr como no
tirar, ambas fazem aparecer algo de novo. Contudo, Deus não é nada daquilo
que aparece tanto numa como noutra. Tanto o conhecimento que o homem
alcança pela via positiva, como o que ele consegue pela via negativa, só têm
sentido dentro do movimento maior, que dá sentido a ambas, quer dizer,
dentro da experiência da busca da união amorosa com a Deidade, ou seja,
dentro da teologia mística. É na união (henosis) amorosa com a Deidade que
se dá a completa semelhança do homem com Deus, melhor, se dá a
deificação (theosis) do homem. E esta é a meta da teologia mística.
Deus, propriamente, não é. Dizer isso, no contexto da teologia negativa, não
significa dizer que ele não existe. Significa, antes, afirmar que ele transcende
o ser e todo o ente. Ele é superessencial (hyperousios), ou seja, ele supera
toda essência (ousia). Ele está além de tudo (epekeina ton panton). Ele é
superdesconhecido (hyperagnostos). O homem só pode conhecê-lo pela
ignorância, que está acima de todo o conhecimento: no saber mais excelente,
que é o não-saber. Ele está envolvido na caligem, isto é, na escuridão do
mistério. Só no silêncio o homem conhece o inominável. O pensamento de
Dionísio está a serviço desse silêncio. Tudo o que ele diz, o faz a partir desse
silêncio. Tudo o que ele fala, o faz para se deixar tocar por este silêncio. Mas,
o que é que se pode dizer de Deus, mesmo sabendo que ele é o indizível? A
regra primeira é que tudo o que o homem pode dizer de Deus deve dizê-lo
de maneira a exprimir a sua excelência (hyperokhe), já que ele transcende
tudo. Os medievais denominarão esta forma de falar de Deus de via
eminentiae (via da excelência), pela qual se atribui a Deus o que há de melhor
e em grau superlativo.
Deus é a causa, o princípio, a essência e a vida de tudo. Causa (aitia) é aquilo
que responde (aiteo) pelo surgimento de uma coisa. Princípio (arkhe) é o que
não somente faz começar, mas também sustenta e faz consumar alguma
coisa. Deus é essência de tudo, não no sentido de que tudo é Deus
(panteísmo), mas no sentido de que Deus concede a tudo a vigência e a
presença no ser. Deus é vida de tudo, no sentido de que toda a dinâmica do
universo é por ele regida, sustentada, animada e vivificada. Se ele retira o
seu sopro do universo, tudo volta ao pó do nada. Ele é o Senhor do ser, o ser
28
que está acima de todo o ente e de toda a essência. Ele é o fundamento do
ser de todos os entes. Mas, trata-se de um fundamento abissal, pois é
fundamento sem fundo, que se retrai e se retira do horizonte do ser, à medida
que transcende o próprio ser. Como Criador, ele chama para dentro do
horizonte do ser (eis to einai) todos os entes. Em si, ele não é nada daquilo
que existe e não pode ser conhecido em qualquer uma das criaturas. Porém,
por outro lado, tudo o que existe é uma determinada imagem e semelhança
dele. Quanto mais alto ele se encontrar na ordem do ser, ou seja, quanto
mais perfeito for o ente, ele expressa mais e de modo mais esplendoroso a
bondade do Criador. Ele é o Uno, que é o autor do Todo. Este Todo articula o
múltiplo a partir do Uno e em vista do Uno (uni-verso: vertido no e para o
Uno).
2.3 O universo hierático
A totalidade do ente, o universo, é uma ordem bela (kosmos), pois em tudo
há certa ressonância e resplendor do Criador (HEINZMANN, 1992, p. 119-
121). É uma hierarquia: uma ordem principiada e regida pelo poder sagrado
(hieros) . Nesta ordem, os entes, em diferentes graus de perfeição, remetem
ao Criador, à medida que participam mais ou menos do ser, da vida, da
inteligência. Todo o cosmos é uma teofania (manifestação de Deus). Todo o
universo celebra uma liturgia onde cada ente é revestido de uma
correspondência simbólica ou analógica, que permite ao homem ascender a
Deus. Em toda a parte, através dos diversos coros dos entes terrenos e
celestes, sensíveis e inteligíveis, celebra-se o ofício divino, a obra de Deus na
criação. Espíritos celestes e terrestres se estruturam, de modo a receber e a
comunicar o ser, a força e a atuação que procedem de Deus. Surgem daí as
hierarquias, a celeste e a eclesiástica, cada uma estruturada triadicamente:
os nove coros angélicos no céu e os seis graus do múnus santificador na
Igreja (bispos, presbíteros, diáconos; monges, leigos e catecúmenos).
Entretanto, o grau do múnus de santificar nem sempre coincide efetivamente
com o grau de santidade pessoal. Se os graus do múnus de santificar
apresentam uma dinâmica descendente, os graus de efetiva santificação
constituem uma dinâmica ascendente. Os graus do ser-santificado coincidem
com os níveis de progresso na via mística, pelos quais o homem vai se
29
assemelhando cada vez mais com Deus, até ser um com o Uno, tornando-se
deificado. Também a dinâmica de elevação do homem a Deus é triádica. O
primeiro nível é o da purificação (katharsis), o segundo, da iluminação
(photismos) e o terceiro, da perfeição (teleiosis). A visão cósmica, portanto,
de Dionísio é hierárquica e hierática. É ambas as coisas, porém, pelo fato de
em tudo e por toda a parte acontecer a hierofania (manifestação sagrada) de
Deus. É num mundo assim que o homem cristão medieval, latino ou
bizantino, vai viver. Tudo será banhada de uma aura dourada: o halo do
sagrado, do santo, do divino. Em sua disposição religiosa, este homem vai
recorrer não tanto à magia ou à teurgia, como propunham os filósofos
neoplatônicos, como Jâmblico e Proclo, mas à liturgia cristã: a celebração dos
mistérios de Deus nos mistérios da existência humana e da natureza. Espaço
e tempo se carregam de um sentido sagrado.
Esta concepção de mundo, essencialmente metafísica e religiosa, une a visão
cristã da criação e a visão neoplatônica da emanação numa síntese bem
peculiar. Ela é fundamentalmente otimista. Todo o ente é bom na mesma
medida em que é. Pois, na criação, o Bem se difunde, comunicando o ser a
todo o ente. O mundo é produto da bondade divina. Deus cria com um ato
livre e gratuito de bondade e cria cada coisa imediatamente (sem mediações,
como afirmava a teoria neoplatônica da emanação), o que indica um interesse
por cada criatura, ao contrário da tese de alguns filósofos gregos, como
Epicuro, por exemplo, que afirmavam que Deus não se interessa pelo mundo.
Se há o mal, ontologicamente ele vem de uma privação do bem; eticamente
ele vem das livres escolhas das criaturas racionais, à medida que invertem a
ordem hierárquica dos bens, valorizando mais o que tem menos dignidade e
valorizando menos o que tem mais dignidade. Por isso é que o homem precisa
retornar para Deus, galgando os níveis da purificação, da iluminação e da
perfeição. Quando um homem se eleva até Deus, ele ergue consigo todo o
universo. No livre destinar das criaturas racionais, portanto, está cada vez
em jogo o retorno do universo a Deus, do múltiplo ao Uno.
Estante do saber
30
Da Hierarquia Celeste
(http://sumateologica.files.wordpress.com/2010/02/pseudo-
dionisio_da_hierarquia_celeste.pdf), de Pseudo-Dionísio.
O símbolo contra o texto: Pseudo-Dionísio Areopagita e a
irrepresentabilidade divina
(http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num7/numero7_2.html),
de Henrique Marques Samyn.
A mística de Dionísio e o seu modo de assumir as possibilidades
filosóficas e teológicas da razão tiveram grande efeito na Idade
Média. Através de Máximo, o confessor (falecido em 622), ela atuou
sobre a Igreja do Oriente (Bizantina). Ele foi honrado, sobretudo, na
França medieval, que o identificava com o São Dionísio (Saint
Denis), bispo de Paris nos primórdios da história da Igreja. Através
de Hilduíno (827 – 835) e de João Escoto Eriúgena, intelectuais
importantes no renascimento promovido por Carlos Magno, atuou
sobre os teólogos monásticos do século XII (Ricardo e Hugo de São
Vitor; Guilherme de Saint Thierry). No século XIII, os escritos do
“corpus dionysiacum” foram comentados por nada mais nada menos
do que por Roberto Grosseteste, Alberto Magno e Tomás de Aquino.
Boaventura, o mais insigne teólogo da mística franciscana, também
o teve como autoridade. Nos séculos XIV e XV, Dionísio influi no
maior místico especulativo que a Idade Média conheceu: Mestre
Eckhart, bem como em sua escola (Tauler e Ruysbroeck). Através
destes últimos e de Dionísio, o Cartuxo, a influência de Dionísio
chega a Nicolau de Cusa, o último pensador medieval, que se tornou
um elo entre dois mundos: o medieval e o moderno, pois, com sua
“douta ignorância” possibilitou uma nova concepção do saber
moderno, aquela que fundou o projeto da física matemática.
Unidade II: A filosofia na alta Idade Média latina
Em 476 ocorreu a queda do Império Romano do Ocidente. Odoacro, ex-rei
dos hérulos e soldado mercenário, chefe da guarda pretoriana, depôs o
imperador Rômulo Augusto em Ravena. Este fato costuma ser apontado como
31
o início da Idade Média. Com a queda do Império Romano do Ocidente, o
cristianismo foi a única força histórica universalista que podia reunir o que
restou da civilização romana e o que os povos “bárbaros” traziam consigo.
Era o fim da Antiguidade, uma era em que o homem acreditava simplesmente
poder seguir as forças da natureza e da sua razão, para alcançar a felicidade
pessoal e coletiva. O cristianismo, ao contrário, ensinava que havia algo de
errado com o homem e que, se ele seguisse simplesmente a sua natureza,
acabaria errando o alvo de sua busca pela felicidade. O homem precisava de
uma força sobrenatural, pois sua natureza se tinha degenerado e se tornara
desnatural. Era a graça que poderia elevar a natureza do homem para que
ele alcançasse a felicidade, aquela que fosse possível nesta vida e a felicidade
plena na vida eterna. Os primeiros séculos medievais, a assim chamada Alta
Idade Média (do século V ao ano mil), foi um tempo de penitência e purgação.
Os mosteiros se tornaram os centros de difusão da civilização, da cultura e
da espiritualidade, uma espiritualidade baseada no lema de Bento de Núrsia
(c. 480 – c. 547): ora et labora (ora e trabalha). Diz-se que este tempo, em
que os senhores feudais e a Igreja dominaram, foi uma longa noite história,
que só se interrompera com o renascimento urbano dos séculos XII e XIII,
com a irrupção do poder burguês, o surgimento das universidades e a
influência do aristotelismo na filosofia. Mas nesta noite o homem ocidental
não deixou de ter sonhos místicos e não faltaram espíritos vigilantes. Trata-
se, no dizer de Chesterton, biógrafo de Francisco de Assis e de Tomás de
Aquino, de “uma noite demorada e austera, noite de vigília, à qual não faltara
a visita das estrelas” (CHESTERTON, 1961, p. ?).
Em meio a esta noite brilharam as luzes de alguns luminares do saber. Nós
vamos estudar dois deles: Boécio e João Escoto Eriúgena.
Aula 03 – Boécio
Boécio (c. 480 – 524) é considerado o último romano e o primeiro
filósofo da Idade Média. Nasceu em Roma e era de família nobre.
Participou do governo de Teodorico, rei dos ostrogodos, mestre dos
exércitos, que subiu ao poder no ocidente, no ano de 488, com o
32
apoio do então Imperado Romano do Oriente, Zenão (474 – 491).
Boécio foi uma peça chave na translação do pensamento grego para
a nova era que estava começando, o que nós chamamos de Idade
Média. Teodorico, que tinha passado a sua infância em
Constantinopla (461 – 471), colocou sua capital em Ravena e
moldou a sua cúria segundo o modelo bizantino. Confiou a Boécio a
tarefa de promover a transmissão do saber antigo às nova geração,
mas também nomeou-o para cargos administrativos e políticos. De
fato, Boécio chegou a ocupar o papel de cônsul e também o mais
alto cargo do governo, o cargo de magister officium (“mestre dos
ofícios”). Mas caiu sobre ele a suspeita de conspiração com
Constantinopla, ele foi preso e depois morto, por ordem do rei. Na
prisão, ele compôs uma das obras mais célebres da literatura latina:
o livro “De Consolatione Philosophiae” (Da Consolação da Filosofia).
Esta aula não possui fontes. Favor incluí-las.
3.1 O projeto de Boécio: a translação do saber da antiguidade
O projeto da vida de Boécio foi mediar, como intérprete, a passagem da
filosofia grega para a nova época (HEINZMANN, 1992, p. 95-115). Queria
escrever sobre as “artes livres” (artes liberales) – as do trivium, disciplinas
sobre a linguagem (gramática, dialética e retórica) e as do quadrivium,
disciplinas matemáticas (geometria, música, aritmética e astronomia) –, que
eram consideradas uma propedêutica ao estudo filosófico. Adaptando os
tratados matemáticos de Nicômaco de Gerasa, escreveu pelo menos uma
instrução sobre a aritmética (Institutio arithmetica) e outra sobre a música
(Institutio musica). O papel de intérprete da filosofia grega para o novo
mundo ele exerceu em duplo sentido: como tradutor e como comentador dos
textos filosóficos gregos. Seu desejo era traduzir e comentar todas as obras
de Platão e todas as de Aristóteles. Morreu sem cumpri-lo. Boécio partilhava
do entendimento dos neoplatônicos, segundo o qual Aristóteles seria uma
33
propedêutica a Platão. Almejava restituir a concordância entre ambos (in
unam revocare concordantiam). Segundo a prática dos neoplatônicos, o
estudo filosófico começava com as obras lógicas de Aristóteles, consideradas
como instrumentais (organon - instrumento) ou como condições para a
construção do saber científico. Boécio passou à posteridade como o
comentador das Categorias e do Da Interpretação. Comentou também o
Isagoge, de Porfírio, que era uma introdução (eisagoge) às Categorias de
Aristóteles e, portanto, uma introdução à introdução à filosofia. Além disso,
escreveu vários opúsculos sobre lógica, que, juntamente com os escritos de
Aristóteles e de Porfírio, fizeram parte da chamada logica vetus (Lógica
Velha), que predominou até o século XII. Entretanto, Boécio não era somente
um lógico, mas também um metafísico e teólogo. Os medievais o chamaram
de noster summus philosophus (nosso supremo filósofo). Os seus opúsculos
sobre os mistérios da revelação e da fé cristã, os Opuscula sacra, passaram
à Idade Média revestidos de autoridade. Eles tiveram o mérito de traduzir
para o latim palavras fundamentais da dogmática cristã, cunhadas a partir da
filosofia grega e inseridas no discurso teológico, a partir dos confrontos com
as heresias trinitárias e cristológicas: palavras como substância, acidente,
essência, natureza, pessoa, potência, ato, matéria, etc. No campo teológico
ele se torna exemplar do slogan: fidem si poteris rationemque coniunge (se
podes, une a fé e a razão) (Opuscula Sacra, Patrologia Latina 64, 1302) (Cfr.
BOÉCIO, 2005, p. 195 e 309).
3.2 A lógica: as categorias, os categoremas e o problema dos
universais
Para Boécio, a lógica não tem um fim em si mesma, mas serve à filosofia. Ele
não deixa claro sua posição sobre o estatuto da lógica: se ela é uma disciplina
apenas instrumental – supellex atque instrumentum (ferramenta e
instrumento) –, ou se ela é parte integrante da filosofia mesma, filosofia
racional, como se dizia – tractatus de propositionibus atque syllogismis et
cetera (tratado sobre as proposições e os silogismos, e outras coisas). Sua
posição parece querer conciliar ambas as posições: a lógica é parte integrante
da filosofia, já que ela tem o seu objeto próprio; mas ela é também
34
instrumento, pois funciona metodicamente a serviço de outras disciplinas da
filosofia.
No campo da lógica, Boécio elabora uma teoria sobre as categorias (LIBERA,
1998, p. 255-257). As categorias são modos de se atribuir predicados ao
sujeito. Boécio distingue entre categorias substanciais (substância, qualidade
e quantidade) e categorias acidentais (as sete outras categorias de
Aristóteles). No caso das categorias substanciais, a predicação constitui uma
atribuição do ser e expressam a identidade do sujeito; no das caso das
categorias acidentais, não, a predicação não atribui um predicado intrínseco
ao ser, mas sim extrínseco, uma vez que não expressa algo de sua
identidade. Boécio elabora também uma teoria sobre os termos concretos.
Há termos concretos que expressam algo de substancial, como o nome
“animal” e termos que expressam algo de acidental, como o nome “branco”.
Assim também, há uma predicação essencial, quando o termo indica algo de
substancial, ou seja, quando ele faz parte da definição do sujeito, como
“animal” no predicado “animal racional mortal” atribuído ao sujeito “homem”;
e há também uma predicação acidental, quando o termo não indica algo que
faz parte da definição do sujeito, como “branco” quando referido ao sujeito
“homem”. O termo acidental é designado como de subiecto (a partir do
sujeito) e o termo essencial é designado como in subiecto (no sujeito). Boécio
ainda elabora uma teoria sobre a natureza da relação dos termos abstratos
com os termos concretos. O termo concreto acidental “branco”, por exemplo,
guarda uma dupla relação: com o sujeito que ele nomeia (a coisa branca em
questão) e com a forma da qual ele deriva (a brancura). O termo “branco”
nomeia um acidente, uma qualidade de um sujeito (a coisa em questão).
Mas, por outro lado, ele é um termo derivado de outro termo, que é abstrato,
mas que nomeia algo de essencial: a brancura. “Branco” pode ser predicado
de alguma coisa; mas “brancura” não pode. “Brancura” nomeia uma forma
essencial: a brancura é aquilo pelo que o branco é branco. Essa dupla relação
é chamada de paronímia. Paronímia é a característica de uma palavra que
deriva de outra, dito de outro modo, que recebe de outro a sua denominação,
como branco vem de brancura, gramático vem de gramática, e corajoso de
coragem. Ora, esta apresentação da paronímia dá margem a uma
interpretação platonizante, pois permite uma aproximação com a eponímia
35
platônica, segundo a qual a imposição dos nomes acontece à medida que as
ideias se reproduzem nas coisas sensíveis que delas participam. Assim, o
“branco” recebe o nome de “brancura”. Segundo a interpretação platônica, o
branco é branco por participar, isto é, tomar parte da essência comum, da
ideia ou forma essencial da brancura. Esta concepção toca, então, o famoso
“problema dos universais”.
Boécio, depois de Porfírio, é responsável pelo surgimento do chamado
“problema dos universais” (LIBERA, 1999, p. 130-134). Na sua introdução às
Categorias de Aristóteles, Porfírio colocara o problema, mas sem querer
resolvê-lo. Os conceitos universais são aqueles que se referem aos
predicáveis. Os categoremas ou predicáveis designam os modos em que um
predicado se predica de um sujeito, ou seja, as diversas formas de relações
lógicas que o predicado possa ter com o sujeito. Porfírio os chamou de cinco
“vozes” (voces). São eles: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente.
Porfírio perguntou se gênero e espécie, enquanto determinações universais
(comuns a vários sujeitos), são realidades subsistentes em si mesmas ou se
são apenas conceitos produzidos pelo pensamento, ou seja, se são entidades
reais ou apenas mentais. Depois, se são entidades reais, vem a pergunta se
são corpóreas ou incorpóreas. E adiante: se são incorpóreas, pergunta-se se
são separadas das coisas sensíveis (transcendentes) ou se são unidas a elas
(imanentes). Depois de discutir as antinomias do problema, Boécio aponta a
seguinte solução, que se refaz à de Alexandre de Afrodísia: gênero e espécie
nomeiam formas essenciais, portanto, entidades reais, que, por um lado, são
incorpóreas, mas que, por outro lado, se dão como formas imanentes às
próprias coisas, não existindo separadas delas. Na verdade, a coisa concreta
é o resultado da união da forma essencial, inteligível, com a matéria
acidental, sensível. Os sentidos apreendem ambos os momentos constituintes
de maneira misturada e confusa. O intelecto, porém, tem a capacidade de,
por sua própria força de pensamento, separar o que está unido na coisa: a
forma essencial, como elemento inteligível, e a matéria, como elemento
sensível. O universal, portanto, só existe imanente à coisa concreta, mas só
pode ser apreendido de modo separado. O ato intelectual de separar o
inteligível do sensível Boécio chama de divisão (divisio) ou abstração
(abstractio). Divisão é fazer acontecer uma visão do inteligível junto do
36
sensível; abstração é extrair mentalmente o inteligível do sensível. Este
processo de divisão/abstração, por sua vez, se faz com a ajuda da
comparação. Comparando vários indivíduos, prescindindo das suas
diversidades e concentrando a atenção somente em suas semelhanças, eu
apreendo a espécie. Por sua vez, comparando várias espécies, deixando de
lado suas diversidades e ressaltando somente suas semelhanças, eu intuo o
gênero. Com outras palavras: a espécie é um conceito que se forma a partir
da semelhança de vários indivíduos e o gênero é um conceito que se forma a
partir da semelhança de várias espécies. Portanto, os universais, como
conceitos, são produtos da abstração. Mas, eles não são conceitos vazios.
Eles nomeiam algo de real, embora não concreto, algo que existe na coisa
concreta e que a determina em seu ser: as formas essenciais ou as naturezas
das coisas. A abstração pressupõe, antes de toda a comparação, uma
capacidade de ver, isto é, de cointuir (contueri) e espelhar (speculari) o que
há de essencial e inteligível na coisa concreta. Trata-se, pois, de uma solução
que concilia Aristóteles, para quem as formas essenciais são imanentes às
coisas; e Platão, para quem as formas essenciais ou ideias são entidades
reais, tão reais que determinam toda realização das coisas concretas. Apesar
do vocabulário aristotélico, porém, no seu teor, ela pende mais para o lado
de Platão. Ela lê o problema das categorias e dos categoremas de Aristóteles
com os olhos de Platão.
A lógica é, por assim dizer, o átrio da filosofia. Adentrando no espaço interno
da filosofia, deparamo-nos com seu duplo modo de ser: ela é filosofia
especulativa, que trata das naturezas das coisas (de rerum naturis); e
filosofia prática, que trata da ação e do viver do homem com os outros
homens.
3.3 A filosofia especulativa
Investigando a natureza das coisas, o intelecto se depara com três tipos de
naturezas: as naturalia (coisas naturais), as intelligibilia (realidades
inteligíveis) e as intellectibilia (neologismo de Boécio, que aqui traduzimos
com um neologismo em português, usando a expressão “realidades
37
intelectíveis). Naturais são as coisas corpóreas, sensíveis. Inteligíveis são as
almas humanas, que, embora sendo em si mesmas espirituais, não são puros
espíritos, mas sim espíritos unidos aos corpos. Intelectíveis, por sua vez, são
os seres puramente espirituais e imutáveis, Deus em primeiro lugar. De
maneira platônica e seguindo a linha de Orígenes e Agostinho, Boécio entende
as realidades inteligíveis (as almas humanas) como espíritos decaídos no
mundo dos corpos.
Na sua obra De hebdomadibus (Dos sete dias da criação), Boécio formula
uma teoria ontológica seguindo o modelo axiomático da matemática (LIBERA,
1998, p. 252-254). Nesta teoria, ele anuncia a diferença entre ser (esse) e
ente (id quod est). São nove teses:
1. A primeira tese é introdutória. Apresenta a posição segundo a qual
ser e ente são conceitos comuns, que todos pressupõem, embora
só muito raramente e com dificuldade são explicitamente notados
pelos homens. Com outras palavras, estes conceitos são
compreensíveis por si mesmos, mas são difíceis de serem
compreendidos para nós, que não exercitamos o intelecto de
maneira a apreender aquilo que é o mais comum e o mais primordial
na realidade, pois estamos sempre voltados para as muitas coisas
particulares.
2. Dito isso, Boécio anuncia a sua segunda tese: diversum est esse et
id quod est (diverso é o ser e aquilo que é, o ente). Esta tese
anuncia a diferença ontológica, ou seja, a diferença entre ser e ente
(aquilo que é). Boécio explica que o ser, por si só, ainda não é nada
(de ente). Apenas o ente é (subsiste), pois recebe a forma que o
faz ser (forma essendi). Boécio parece entender o ser como algo de
transcendental e entender o ente a partir da categoria de substância
(o que é como o que subsiste).
3. A terceira tese diz que o ser não participa de nada, enquanto o ente
participa (do ser). Com efeito, só o que já é pode participar (tomar
parte) de algo outro. O ser mesmo (ipsum esse), pelo fato de não
ser (nada de ente), não participa de nada. Aqui Boécio traz à tona
o conceito de participação (participatio), que, desde Platão, nomeia
38
o tipo de relação do ente com o ser, mas não a relação do ser com
o ente.
4. A quarta tese anuncia que o ser mesmo é puro ser, não tendo nada
fora de si e que o ente não é somente o que ele é, mas tem também
algo fora de si. Esta tese se compreende melhor com a tese
seguinte.
5. Na quinta tese Boécio introduz a diferença entre substância, aquilo
que o ente é em si mesmo; e acidente, aquilo que o ente tem fora
de si mesmo. Substância nomeia o apenas ser alguma coisa (esse
tantum aliquid). Acidente, porém, nomeia o ser alguma coisa
naquilo que é (esse aliquid in eo quod est), ou seja, o ser inerente
a alguma coisa.
6. A sexta tese dá a entender a primazia do ser sobre o ser-alguma-
coisa, sobre o ser isto ou aquilo (uma forma determinada): para
(simplesmente) ser, tudo o que é (todo o ente) participa do ser;
mas, para ser alguma coisa, todo o ente deve participar também de
outra coisa (diferente do ser puro e simples). O ser, portanto, vem
antes de ser-alguma-coisa. Todo o ente participa do ser, enquanto
é. E participa de uma determinada forma de ser, enquanto é alguma
coisa (esta essência e não outra). Com outras palavras: o ente
participa do ser (puro e simples) e participa de uma essência (uma
determinada forma de ser).
7. A sétima tese diz: tudo o que é simples tem o ser e o ente como
um. Aqui se anuncia o estatuto ontológico dos seres simples, as
entidades superiores, divinas, no neoplatonismo, Deus, no
cristianismo: Deus é simples. Isto quer dizer: nele, ser e ente fazem
uma unidade e não uma dualidade. Deus não tem o ser, ele é o
(seu) ser.
8. A oitava tese completa a sétima, falando do contrário do que é
simples, isto é, do que é composto: em todo o ser composto, uma
coisa é o ser, outra coisa é o ente. Portanto, no composto há uma
dualidade de ser e ente. Neste caso, o ente não é o seu ser; ele
apenas tem o seu ser.
9. A nona e última tese fala do diverso e do semelhante. O diverso
provoca repulsa. O semelhante busca, anseia pelo semelhante. O
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que deseja alguma coisa além de si mesmo mostra que é por
natureza semelhante àquilo que deseja. Esta tese serve para
fundamentar uma ideia central na ontologia de Boécio e sempre
reiterada na tradição medieval, a de que todo o ente é bom. Esta
tese se fundamenta de maneira silogística da seguinte maneira:
todo o ente deseja o seu próprio bem; todo o ente deseja o seu
semelhante; logo, todo o ente que deseja o bem é ele mesmo um
bem.
A partir da diferença ontológica (entre ser e ente), pode-se intuir a diferença
teológica, entre Deus e o mundo. Deus é aquele em que ser e ente são um.
Deus é o que ele é. A criatura, não. A criatura apenas tem o seu ser, a partir
daquilo que ela é. Ela é sempre um isto ou aquilo. Depois, em Deus há uma
identidade imediata entre sua substância e o seu predicado (atributo), o que
não acontece com a criatura. Por exemplo: uma criatura só pode ser justa, à
medida que participa da justiça. Há uma diferença e uma relação extrínseca
entre o justo e a justiça, no caso da criatura. Em Deus, não. Nele, há uma
identidade entre o justo e a justiça. Dito de outro modo: Deus não é justo,
mas é a própria justiça. Ou ainda: Deus não é justo pelo fato de participar da
justiça; Deus é justo, por ser a própria justiça. No caso de se estar falando
de Deus e de seus atributos, a identidade ou a relação intrínseca entre o
sujeito e o predicado vale para as categorias essenciais (substância,
qualidade, quantidade); mas não vale para as categorias acidentais. Neste
caso, vale o contrário. As categorias acidentais, com efeito, enunciam algo
extrínseco a Deus. Já dizem algo de extrínseco a qualquer sujeito finito. No
caso de Deus, porém, esta “estranheza” aumenta ainda mais. Assim, por
exemplo, tomemos a categoria “onde”. Se eu disser que um homem está na
praça, isto não enuncia algo de intrínseco ao homem, mas algo de extrínseco.
O achar-se localizado aqui ou ali não faz parte de seu ser e sim de um seu
“estar”. Em relação a Deus isso é ainda mais evidente. Quando se diz que
Deus está em todo o lugar, por exemplo, o que se pretende dizer é que Deus
não está em lugar algum.
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3.4 A filosofia prática
Tudo isso pertence à filosofia especulativa. Boécio, no entanto, investigou
também a filosofia prática (HEINZMANN, 1992, p. 101-104). Esta é, antes de
tudo, ética individual; e investiga o modo como o homem pode alcançar a
felicidade pela prática da virtude. Depois, ela é também ética social ou
política; e investiga como é que na sociedade e no Estado podem reinar a
justiça, a prudência, a fortaleza e a moderação. Entre uma e outra se
encontra, ainda, a ética doméstica, que investiga o melhor modo de conduzir
a família para o bem.
Todo o empenho do homem aspira a uma única coisa, ao seu bem último e
pleno, ou seja, à sua felicidade. A felicidade é aquela condição em que todos
os bens se reúnem de modo perfeito (BOÉCIO, 1999, p. 186-187). Esta
felicidade, o homem não pode encontrar fora (extra), mas somente dentro
(intra) de si. Ora, o homem aspira, naturalmente, aos verdadeiros bens. Estes
bens, porém, remetem ao bem supremo. Aspirando ao seu supremo bem, o
homem, no fundo, aspira ao Bem puro e simples, que é idêntico ao Uno. Esta
aspiração ao Uno/Bem puro e simples é o amor (o Eros de Platão). O amor,
a aspiração ao Uno/Bem, é o princípio estruturante do cosmo e da vida
humana. A ruina da alma humana se dá quando ela se perde fora de si, em
busca das muitas coisas, dos muitos bens. Sua salvação, quando ela se
recolhe em si mesma e aí se transcende, movida pela aspiração ao Uno/Bem.
O homem está posto entre Deus e o animal. Está no poder de sua liberdade
elevar-se até Deus ou rebaixar-se ao nível da vida animal. O homem está
também entre o tempo e a eternidade. O tempo é conduzido pela providência
divina. A providência (providentia) é aquela divina razão, que tudo ordena e
dispõe no supremo Senhor de todas as coisas. Deus governa o mundo com
leis imutáveis e estáveis. Imóvel, move todas as coisas. O destino (fatum) é
aquela necessidade das leis imutáveis, que a providência impõe às coisas
mutáveis. O homem que se afasta de Deus e se perde na multiplicidade das
coisas materiais, sente o destino como fatalidade. Porém o homem que aspira
a Deus, retornando, a partir de sua liberdade, para o Uno/Bem, sente o
destino como providência divina. Ele entende que todas as coisas são
conduzidas pela providência e pelo destino para o bem, melhor, para o seu
41
bem. Por isso, ele pode sempre esperar e orar. A esperança do homem,
porém, em última instância aspira a uma felicidade que não é temporal, mas
eterna. O tempo não pode conter toda a plenitude da vida divina. Ele se
dispersa na multiplicidade dos momentos, que se sucedem uns aos outros. A
eternidade é um presente que não passa. O presente é uma imagem da
eternidade de Deus. Esta, porém, consiste nisso: na posse perfeita e
totalmente simultânea da vida infinita (interminabilis vitae tota simul et
perfectio possessio).
Na concepção de Boécio, este homem que perfaz seu caminho a partir da sua
liberdade, medindo-se com o destino e com a providência divina, é pessoa.
Pessoa é uma substância indivídua, de natureza racional (naturae rationabilis
individua substantia). Cada homem constitui a sua individualidade, a partir
de sua “natureza racional”, isto é, a partir de sua liberdade, de sua
capacidade de conhecer a verdade e de amar, isto é, de aspirar ao bem. À
medida que ele conhece a verdade e pratica o bem, ele se torna mais
propriamente pessoa e alcança, assim, a semelhança com Deus, que também
é um ser pessoal, melhor, tri-pessoal. De fato, o fim último do homem, ao
participar da eternidade de Deus, isto é, da plenitude de sua vida, é deificar-
se (deos fieri).
Estante do saber
Boécio e o problema dos futuros contingentes
(http://www.principios.cchla.ufrn.br/23P-205-232.pdf), de William de
Siqueira Piauí.
A influência de Boécio sobre a Idade Média Latina foi rica: não só na
lógica, mas também na metafísica e na teologia; não só na filosofia
especulativa, mas também na filosofia prática, especialmente na
ética. Não só no conteúdo do que ele ensinou, mas também na
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linguagem que ele cunhou com a língua latina. Alcuíno o considerou
uma autoridade. Abelardo, no século XII, o tomou como o maior dos
filósofos latinos. O Livro das Sentenças, de Pedro Lombardo, que
será comentado pelos grandes mestres do século XIII, o cita
continuamente. Ainda no século XII, o seu pensamento influenciará
sobretudo a Escola de Chartres e Gilberto Porretano. Muitos serão
os insignes pensadores que comentarão suas obras, incluindo
Tomás de Aquino. O livro De Consolatione Philosophiae (Da
Consolação da Filosofia) será comentado por João Escoto Eriúgena,
Guilherme de Conches, Pedro d’Ailly, Dionísio, o Cartuxo, entre
outros. Será traduzido, ainda na Idade Média, para o inglês, francês,
alemão e grego. Dante e Boccaccio o estimarão. Outros, como João
Gerson e Mateus de Cracóvia, o imitarão, escrevendo também uma
Consolatio Theologiae (Consolação da Teologia).
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Aula 04 – João Escoto Eriúgena
Na Alta Idade Média, João Escoto Eriúgena, no século IX, foi o
pensador que levou à consumação a apropriação da cultura e do
pensamento antigo por parte do mundo latino, apropriação que
começara com Boécio. Ele é o maior nome da época do
renascimento carolíngio. Vamos, pois, estudá-lo nesta aula.
4.1 Nas pegadas do Pseudo-Dionísio Areopagita
Foi como filósofo, e não tanto como teólogo, que João Escoto Eriúgena (c.
810 – c. 877) entrou para a história do pensamento medieval. Seus grandes
feitos foram, primeiro, ter dado entrada no mundo latino, à tradição grega
que se refaz a Gregório de Nissa, Dionísio Areopagita e Máximo, o Confessor
(580-662); segundo, ter apresentado uma concepção do Todo da realidade,
na sua obra prima De divisione naturae (Da divisão da natureza), muito mais
elevada no domínio da linguagem e do pensamento, do que toda outra obra
de seu tempo, no mundo latino.
Johannes Scotus Eriugena: assim era o seu nome para os medievais. Na
literatura atual, ele é chamado ora de Erígena, ora de Eriúgena. O seu nome
diz a sua origem: Scotus significa que vem da Escócia; Eriúgena, ou Erígena,
que ele vem da Irlanda (Eire, em irlandês). Esta combinação – Scotus
Eriugena – se explica pelo fato de a Irlanda ser chamada, naquele tempo, de
Scotia Maior (Escócia Maior). Sua atividade, porém, se dá na França, em
Paris, sob o governo de Carlos, o Calvo.
O conhecimento da língua grega o permitiu traduzir os escritos de Gregório
de Nissa, Dionísio Areopagita e Máximo, o Confessor. Já havia uma tradução
das obras de Dionísio, feita por Hilduíno, abade do mosteiro de São Dionísio,
no tempo do Imperador Luís, o Pio, mas esta era ininteligível. Por isso, Carlos,
o Calvo, recomendou a Eriúgena que fizesse outra. Eriúgena não estudou
somente os escritos de Dionísio, mas também os de seu principal herdeiro no
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oriente, Máximo, o Confessor. Máximo tinha dado prosseguimento à doutrina
de Dionísio, tornando-a um pouco mais acomodada aos moldes da ortodoxia.
No centro de sua obra está a tese sobre a encarnação, muito apreciada no
oriente, a saber, de que Deus se fez homem para que o homem fosse feito
Deus. Trata-se da theosis (deificação) do homem, que é a consumação da
criação, o retorno de todas as coisas a Deus. Como o homem é microcosmo
(um cosmo em miniatura), ao se unir ao homem Deus une-se a todo o cosmo
e, quando o homem é deificado, com ele todo o universo é também deificado:
Deus se torna tudo em todas as coisas.
4.2 A divisão da natureza
A obra prima de Eriúgena, escrita na forma de diálogo entre um nutritor
(nutridor, professor) e de um alumnus (pupilo, aluno), traz em seu título a
língua grega e latina, sinal de que o pensador pensa em latim, mas a partir
da língua grega. O título está assim formulado: Peri physeos merismou id est
De divisione naturae. Peri physeos merismou é a expressão grega, que
Eriúgena repete, em língua latina, depois de um id est (isto é): De divisione
naturae. Objeto da investigação é, portanto, o tema mais antigo da filosofia:
a Physis, o que os latinos traduziram por Natura. Ambas as palavras nomeiam
não a natureza no sentido parcial das ciências naturais, mas a natureza em
sentido filosófico: o ser, sendo como a totalidade do ente, ou seja, de tudo
aquilo que é. A palavra grega, physis, dá a entender a experiência do ser
como surgimento (phyo = surgir, brotar, nascer). De modo análogo, a palavra
latina, natura, significa a experiência do nascer (nasci = nascer, vir à luz).
Natureza é o vigor de ser como surgimento e nascimento, como irrupção no
claro, como vir à luz. A obra trata, pois, do ser em sua originariedade e de
suas “divisões”.
A palavra divisio (divisão) tem um sentido próprio no contexto do
neoplatonismo. Não tem o sentido classificatório que damos ao termo. Não
somos nós que dividimos a natureza, mas a natureza mesma que se “divide”.
Por sua vez, divisão (divisio) não tem o sentido de partir, mas sim o sentido
de fazer-se ver (visio = visão). O ser originário se faz ver em diferentes
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espécies. Espécie significa, aqui, o modo como algo se faz ver, como se ele
se dá à visão (aspectus), melhor, a forma, o contorno, o brilho e esplendor
de ser (speciosus = formoso, brilhante). No contexto neoplatônico, divisio
(divisão) corresponde à analysis: o modo como o Uno se desdobra e se
articula em uma multiplicidade. É movimento de exitus (saída do Uno) e de
descensus (descida). Assim acontece, por exemplo, na dinâmica dos
universais: o movimento de aparecimento dos entes vai se dando do
generalissimum (o mais geral) ao specialissimum (o mais especial). Para a
concepção neoplatônica, gênero é o elemento gerador, originário (genus =
nascimento, origem); espécie (species) é a forma e o esplendor do que é
gerado. O movimento de desdobramento do uno ao múltiplo vai do
generalíssimo ao especialíssimo e, uma vez alcançada a espécie última, a
multiplicação se finaliza como multiplicação de indivíduos. Individuum é
aquilo que é dividido (divisum) ao extremo e que não é mais divisível
(indivisum). O contrário da divisio (divisão) é a resolutio (literalmente:
desligamento; em sentido figurado, porém: a dissolução ou dissipação, no
caso, do múltiplo), isto é, quando o múltiplo se desfaz, pelo seu retorno ao
uno. O caminho de ascensão (ascensus) e retorno (reditus), que vai do
múltiplo ao uno, parte do indivíduo e das múltiplas espécies e chega ao
generalíssimo (o ser como substância). A divisão da natureza, porém, não se
dá segundo a dinâmica de gêneros e espécies, mas se dá de modo
transcendental, pois o que nela se faz ver ultrapassa todo o criado e a própria
categoria de substância. Refere-se à dinâmica de desdobramento do ser em
sentido transcendental e não do ser em sentido categorial (substância = ser
em si).
As divisões da natureza não constituem partes de um todo, mas
manifestações diversas do Todo. Divisio (divisão) é o ato pelo qual a
“Natureza”, melhor, o Todo, o Absoluto, a plenitude originária e una do ser,
que nós chamamos de Deus, se desdobra, melhor, se comunica, se faz visível.
Ela é teofania: divina apparitio (Da divisão da Natureza III 19). As quatro
divisões da Natureza são, pois, destinações do Todo, são momentos de uma
história do ser, cuja origem e fim se encontram na eternidade.
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Torna-se me visível que a divisão da natureza através de quatro diferenças
recebe quatro espécies: das quais a primeira está naquela que cria e não é
criada; a segunda, naquela que é criada e cria; a terceira, naquela que é
criada e não cria; e a quarta, naquela que nem cria nem é criada (Da divisão
da Natureza I 1).
1. A primeira aparição do ser se dá naquela natureza que não é criada e
cria: Deus como causa creatrix (causa criadora). Deus é a essência-ente,
possibilidade real e realidade possibilitadora de tudo o que vem a ser,
fundamento abissal de todas as coisas. Pelo ato criador, ele comunica
existência a tudo o mais. Enquanto ser originário e pleno, Deus é tudo, é o
Todo, o Uno, o absoluto, o eterno. Nada há fora dele.
2. A segunda aparição do ser se dá naquela natureza que é criada e que
cria. Trata-se, aqui, das causae primordiales (causas primordiais ou
primeiras) de todas as coisas, o que Platão chamou de ideias, as formas
originárias ou arquétipos de todas as coisas. Esta concepção, porém, em
Eriúgena só se entende caso se tome como horizonte a doutrina cristã
trinitária, mais especificamente, a doutrina cristã do Logos-Filho de Deus.
Cada coisa, antes de ser em si mesma e no espaço-tempo do mundo, é em
Deus, como um pensamento e um desejo no espírito de Deus, ou melhor, no
Filho de Deus. A criação é um desdobramento e uma ressonância da geração
do Filho. No Filho, o Pai se diz. Nele, o Pai concebe e diz todas as coisas, por
bem-querer, de modo absolutamente gratuito. Criação é comunicação do ser,
comunicação que se dá por meio do Filho: a Palavra (o Logos, o Verbo, a
Sabedoria, a Arte) eterna do Pai. “No princípio Deus criou o céu e a terra”,
isto é, a totalidade dos entes. “No princípio”, isto é, na Palavra (Logos), no
Filho, que é coessencial e coeterno com Deus, o Pai. Por isso, criação tem um
quê de geração. O criado é cria de Deus, concebido, gestado e trazido à luz
por Deus no Filho de Deus, desde a eternidade. A natureza das coisas que
estão na mente ou no espírito divino é criada, mas é também criadora. A
verdade de cada coisa do mundo consiste em ela ser assim como era no
pensamento de Deus. As ideias eternas das coisas são arquétipos, formas
formadoras, que determinam o modo de ser de cada coisa que vem à luz no
espaço-tempo do mundo.
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3. A terceira aparição se dá naquela natureza que é criada, mas não é
criadora. Natureza naturada, não natureza naturante, para usar uma
terminologia análoga, presente na modernidade, desde Spinoza. Trata-se,
aqui, da natureza do mundo, estendida no espaço-tempo. O mundo surge do
nada: do nada da receptividade para o ser, denominado de materia prima
(matéria primordial). “O mundo é, pois, feito de matéria sem forma; matéria
sem forma, totalmente, de nada; e, por isso, também o mundo é feito
totalmente de nada” (Da divisão da Natureza III 22). Cada coisa do mundo é
concreta. Isto quer dizer: ela se faz visível por meio de uma concreção
(concretum: particípio passado de concrescere = crescer junto, adensar,
condensar). Os dois elementos que entram na composição do concreto é a
forma, elemento determinante do modo de ser, e a matéria, princípio de
receptividade, que se predispõe a ser. Só que, agora, como matéria formada.
O mundo criado é, neste sentido, a forma terminal do processo criativo do
ser. Por ser terminal, já não cria. É, no entanto, criado. Criar é, aqui, dar
existência, possibilitar subsistência e consistência de ser. O ser não é
somente essência, mas também existência. Existência significa a positividade
de ser: de ser no espaço-tempo do mundo, de ser em si (substância) e de
ser relação com outras coisas, de ter uma densidade e uma consistência de
ser. Esta concepção de ser, de cunho “existencial”, é nova em relação ao
neoplatonismo, que entendia o ser de modo essencialista.
4. A quarta aparição do ser se constitui na natureza não criada e que não
cria. É Deus como fim de todas as coisas, o Bem para o qual tudo tende e
pende, como à sua consumação, perfeição e plenitude. Aqui se trata de Deus
como a plenitude serena em que todo o movimento criativo se aquieta e se
silencia; o silêncio em que a sinfonia da criação se recolhe. A primeira e a
quarta divisões, portanto, correspondem a Deus como o princípio e o fim de
todas as coisas, alfa e ômega de tudo. Nas palavras do próprio Eriúgena:
E, pois, a primeira e a quarta são um, porque elas são
inteligíveis somente a respeito e a partir de Deus; é ele, pois, o
princípio de todas as coisas que são dadas com ele, dele a partir
de si, e é o fim de todas as coisas, que o apetecem, para que
nele se aquietem eterna e imutavelmente (Da divisão da
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Natureza II 2 – tradução nossa). (Apud ÜBERWEG & HEINZE,
1927, p. 174).
O fim de tudo é o retorno (reditus), a reversão (reversio) para Deus. É o
recolhimento do múltiplo no Uno. Na consumação de todas as coisas, Deus é
tudo em tudo. Escutemos as próprias palavras de Eriúgena. Ele diz que, neste
estágio, Deus
... já deixou de criar, uma vez que todas as coisas estão
convertidas para dentro de suas razões eternas nas quais
permanecerão e permanecem, desistindo também de serem
chamadas pelo nome de criaturas; Deus, pois será tudo em
tudo, e toda a criatura será obumbrada, uma vez que foi
convertida para dentro de Deus, como os astros ao surgir do sol
(Da divisão da Natureza III 23). (Apud ÜBERWEG & HEINZE,
1927, p. 174).
4.3 Deus e as criaturas
Qual, porém, a relação entre Deus e a criatura? A imensa intimidade entre
Deus e a criatura que se apresenta nessa concepção de Eriúgena levantou
suspeitas, ao longo da história, de panteísmo. Contudo, há panteísmo onde
o Deus em questão não é tomado como ser pessoal e onde o ato criador é
encarado como simples emanação e não como um ato livre e gratuito de
amor. Não é o caso de Eriúgena. Apesar das ressonâncias neoplatônicas, o
seu pensamento é fundamentalmente cristão. O horizonte de sentido de sua
exposição é o mistério trinitário. A processão do universo a partir de Deus se
dá por meio do Filho. É o Espírito Santo que vivifica todas as coisas. É por
meio da deificação do homem que o universo retorna para Deus e nele se
aquieta. O homem é criado de tal maneira, que nele todas as coisas estão
contidas. Ele é o microcosmo, por ser o elo que liga as duas extremidades
criaturais: o mundo do espírito e o mundo do corpo, o inteligível e o sensível.
A queda do homem é a queda do universo. A salvação do homem é a própria
salvação do universo. Ao unir-se ao homem, na encarnação, Deus se une ao
próprio universo. A intimidade que existe entre Deus e a criatura é uma
49
intimidade da relação paternal-filial e mesmo da relação esponsal. A
deificação não é uma eliminação do humano no homem, mas a sua plena
consumação, pois o homem já fora criado à imagem e semelhança de Deus.
A reversão e resolução de todas as coisas em Deus não é a supressão da
individualidade, mas a sua consumação (cfr. Da Divisão da Natureza V 8-13).
Não há confusão entre Deus e a criatura. “Conquanto, Deus não é o todo da
criatura, nem a criatura parte de Deus, assim do mesmo modo, a criatura
não é o todo de Deus, nem Deus, parte da criatura” (Da divisão da Natureza
II 1) (Apud ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 174). Entretanto, há absoluta
intimidade e proximidade entre Deus e a criatura, uma plena identificação, o
que só se torna possível a partir de uma admirável condescendência amorosa
por parte de Deus, pois, ao criar, Deus se faz, de certa maneira, “criado”, isto
é, renunciando-se à sua absoluteza, Deus se dispõe a entrar no horizonte do
ser criatural, a se relacionar com a criatura no plano de ser dela mesma:
Nada, pois, subsiste fora dela (da natureza divina). Conclui-se
que somente ela, verdadeira e propriamente, é em todas as
coisas e nada verdadeira e propriamente é, que não seja ela.
Assim, não devemos compreendê-las como duas coisas
distantes, Senhor e criatura, mas como um e o mesmo. Pois,
tanto a criatura é subsistente em Deus, quanto Deus de modo
admirável e inefável é criado na criatura, manifestando-se a si
mesmo; invisível, fazendo-se visível; incompreensível, fazendo-
se compreensível; oculto, fazendo-se aberto; incógnito,
fazendo-se conhecido; carente de forma e aspecto, fazendo-se
formoso e especioso; sendo super-essencial, fazendo-se
essencial; e sendo super-natural, fazendo-se natural (...); em
todas as coisas criando, faz-se criado em todas as coisas; sendo
feitor de todas as coisas, torna-se feito em todas as coisas. (Da
Divisão da Natureza III 17) (Apud ÜBERWEG & HEINZE, 1927,
p. 173).
Paradoxalmente, o infinito se torna finito. Mas, um infinito que não pode ser
finito não é verdadeiro infinito. A condescendência de Deus não depõe contra
a sua transcendência, antes a atesta e corrobora. De uma maneira dialética,
porém, pela via negativa, é preciso reafirmar a transcendência de Deus.
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Eriúgena o faz, ao modo de Dionísio. A via negativa leva a intuir Deus como
não criado nem criador. Mas, agora, de um modo todo especial. Deus é agora
intuído não como princípio nem como fim de todas as coisas; não mais como
ser nem como natureza, nem como essência nem como ente; mas como o
que transcende tudo isso, como “super-essencial”. Essentia est, affirmatio;
essentia non est, abdicatio; superessentialis est, affirmatio simul et negatio
(É essência, afirmação; não é essência, abdicação; é super-essencial,
afirmação e, simultaneamente, negação) (Da divisão da Natureza I 16). A via
negativa é via de abdicação. É renunciando a Deus que o homem intui algo
do mistério de Deus, não como criador, princípio e fim da criatura, mas como
Deus mesmo, na sua Deidade. Em sua Deidade, Deus se dá como silêncio.
Aqui todo o afirmar e negar se recolhe. Como o que transcende todo o ser,
toda a essência e natureza, todo o ente e existente, Deus pode ser chamado
de Nada?
4.4 Ser e nada
Eriúgena faz uma investigação sobre os modos em que nós falamos de ser e
de nada (ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 170-171). Há pelos menos cinco
modos de interpretar o ser e o nada, ou melhor, aquelas coisas que são (ea
quae sunt) e aquelas que não são (ea quae non sunt). Tudo depende, do
ponto de vista semântico, do sentido que a cópula est (é) ou non est (não é)
recebe na proposição.
1. Num primeiro sentido, dizemos que é àquilo que se faz conhecer
diretamente, por meio da experiência sensível. Neste sentido Deus
nada é, mas não somente Deus. Também a essência de cada coisa
e as ideias ou razões eternas das coisas na mente de Deus nada
são. Nós não conhecemos o que a coisa é (sua essência), mas
apenas que ela é (sua existência). De sua essência nós só temos
um conhecimento indireto, oblíquo, por via dos acidentes, ou
melhor, dos atributos e propriedades, sendo algumas mais
características e substanciais do que as outras. Do mesmo modo,
Deus e as ideias são por nós pensados, mas não conhecidos, se por
51
conhecimento entendermos aquilo que se dá de modo sensível.
Neste primeiro sentido, pois, o que é metafísico é um nada.
2. Em segundo lugar, na ordem do criado, diz-se que é a tudo aquilo
que se deixa apreender num determinado nível, que não é, a tudo
o que transcende esse nível, estando num nível superior. A cada
vez, o superior é um nada em relação ao inferior, que não o
apreende. O vegetal nada é para o mineral; o animal, nada é para
o vegetal; a alma intelectiva nada é para o animal (alma sensitiva);
o anjo nada é para o homem. Nada é, aqui, designação para
transcendência, superação no ser, superioridade de ser.
3. Em terceiro lugar, chamamos de nada àquilo que é apenas
potencial, ao que ainda não é, ao que ainda não se realizou: como
a semente nada é em relação à árvore.
4. Em quarto lugar, chamamos de nada àquilo que é corporal, pois
surge e perece, isto é, passa do não-ser para o ser e do ser para o
não-ser, aparece e desaparece.
5. Em quinto lugar, num sentido moral, chamamos de nada ao pecado,
pois é um dano à imagem e semelhança de Deus no homem. Desta
exposição podemos inferir que Deus pode ser chamado de “nada” à
medida que este nome designa sua transcendência superessencial,
ou seja, à medida que ele transcende todo o ser, toda a essência e
natureza, todo o ente e existente, à medida que ele é intuído como
sendo unicamente ele mesmo, absoluto, isto é, solto de toda
relação com a criatura, nem como princípio nem como fim de todas
as coisas.
Estante do pensar
52
A natureza como teofania em Orígenes e João Eriúgena
(http://www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/pdfs_
filosofia/vol9n1/19a24_art03_lupi%5Brev_ok%5D.pdf), de João Lupi.
O conceito de participação em João Escoto Eriúgena
(http://www.filosofia.cchla.ufrn.br/dissertacoes/iris%20fatima.pdf),
de Íris Fátima da Silva.
Por causa das suspeitas de panteísmo, o pensamento de Eriúgena
foi prejudicado em sua recepção no pensamento medieval. Muitas
vezes sua influência foi implícita e tácita. Há um grande número de
manuscritos de suas obras, o que atesta que ele foi muito lido na
Idade Média. Citam-no autores como Berengário de Tours, Isaac de
Stella e Alano de Lila. Honório Augustodunense, na primeira metade
do século XII, recorre amplamente ao seu pensamento em sua obra
intitulada “Clavis physicae” (A chave da física). O que prejudicou
bastante a leitura do Da divisão da Natureza foi a interpretação
panteísta dada por Amalrico de Bena e pelos amalricianos. Este
ensinou abertamente a identidade de Deus e da criatura. Para ele,
Deus é a essência e a forma de toda a criatura. Tudo é um e este Um
é Deus. Os amalricianos, por sua vez, ensinavam que Deus atua em
nós o querer e o agir e que, por conseguinte, não havia nenhuma
diferença entre bem e mal, entre mérito e culpa. Diziam ainda que o
Pai se encarnou em Abraão e nos patriarcas; que o Filho se
encarnou em Jesus Cristo; e que o Espírito Santo se encarnara
neles, os amalricianos, para suprimir a Igreja e instituir um reino de
conhecimento e de amor. Quem traz em si o amor está no céu. Não
há, de fato, nem céu nem inferno. Vê-se que a sutil relação de
identidade e diferença que existe no pensamento de Eriúgena cede
lugar, no caso dos amalricianos, a uma concepção grosseira, onde a
identidade perde toda tensão dialética e todo o tom de encontro
pessoal com Deus e a identificação se torna crassa confusão. Por
causa de tudo isso, a leitura do Da divisão da natureza foi proibida
pelo concílio de Paris em 1210 e esta decisão foi ratificada quinze
anos depois pelo papa Honório III. Apesar disso, admiradores de
53
Dionísio no século XIII, como Alberto Magno, Tomás de Aquino, e os
franciscanos citaram Eriúgena como o “comentador” de Dionísio.
João Gerson e Nicolau de Cusa, no fim da Idade Média, também o
têm como um dos seus autores favoritos.
54
Unidade III: A filosofia na Idade Média românica (séculos X-XII)
O século X foi um século de consolidação do projeto de Estado e de civilização,
começado com Carlos Magno. A França é o centro da Europa. Do ponto de
vista religioso, um fato que marca a história é a fundação da Abadia de Cluny.
As reformas monásticas vão se seguindo, no século XI, com uma renovação
feita pelos beneditinos, com o apogeu de Cluny e com o surgimento de novas
ordens, como os cartuxos (1084) e os cistercienses (1098). Na arte, o
românico dá o tom do espírito desta época. A cristandade medieval se lança
no projeto de realizar na terra a Cidade de Deus, preconizada por Agostinho.
No fim do século XII e início do século XIII o mundo cristão latinófono toma
contato com o pensamento da antiguidade grega de uma maneira mais
profunda através das traduções dos manuscritos dos filósofos gregos. O
intercâmbio cultural entre os latinos e os bizantinos se intensifica. Com a
reconquista de Toledo, começa também um movimento amplo de tradução
de textos dos filósofos do Islã: árabes e judeus. Através disso tudo a filosofia
ver-se-á modificada pela grande influência de Aristóteles, dito “O Filósofo”
por antonomásia. Vamos também, nesta unidade, fazer um passo para trás
e ver como a filosofia foi se desenvolvendo nestes outros mundos e como ela
chega ao mundo cristão latinófono.
55
Aula 05 – Anselmo de Cantuária
Para a filosofia, porém, o século X é um século obscuro. Após
Eriúgena, o pensamento se cala. Eriúgena parece ter sido a última
ressonância da antiguidade na Idade Média. A filosofia antiga, que
tinha começado com os poemas sobre a “Physis” termina com um
tratado sobre a “divisão” da physis (Natureza). Há uma
continuidade, de Parmênides a Eriúgena. Entre Eriúgena e Anselmo,
o maior representante do pensamento no século XI, há o silêncio,
um hiato que separa dois mundos. Eriúgena é a consumação do
pensamento antigo na Idade Média, Anselmo, a abertura de um
novo pensamento, de um pensar original, que vai ganhando forma e
densidade no século XII e que rebenta no século XIII. Anselmo
nasceu em Aosta, no Piemonte (Itália), entrou para o mosteiro de
Bec, na Normandia (França), onde foi aluno de Lanfranco, e se
tornou, desde 1093 até a sua morte, arcebispo de Cantuária
(Canterbury, Inglaterra).
Nesta aula vamos estudar as contribuições de Anselmo para a
história da filosofia: a sua teoria da significação e da denominação;
sua posição sobre o problema da relação entre fé e razão; e sua
demonstração da existência de Deus.
5.1 Teoria da significação e da denominação: as categorias
Um feito importante de Anselmo foi a união de lógica e gramática, em sua
obra De Grammatico (Do gramático). Nesta obra, Anselmo une a semântica
de Aristóteles com a gramática de Prisciano, elaborando uma teoria da
significação e da denominação. A teoria da significação e da denominação
parte do problema da paronímia (LIBERA, 1998, p. 295-298). Paronímia
(Paronymia) é a característica de uma palavra que deriva de outra, ou seja,
que recebe de outro a sua denominação, como gramático vem de gramática,
e corajoso de coragem, segundo os exemplos dados por Aristóteles no
56
primeiro capítulo das Categorias. O problema que Anselmo se põe é como
“gramático” pode ser, ao mesmo tempo, uma qualidade e uma substância.
Portanto, a ela se atribui a paronímia. Trata-se de um nome ambíguo.
“Gramático” significa, propriamente, isto é, per se, um acidente, mais
claramente, uma qualidade, a saber, “conhecedor da gramática”. Mas, de
uma maneira indeterminada, esta expressão remete a uma substância, isto
é, a um indivíduo que tem esta qualidade: a de ser conhecedor de gramática.
“Gramático”, portanto, significa“per aliud (por outro), isto é, de maneira
indireta, uma substância: este homem, que tem a qualidade de ser
conhecedor de gramática. O termo “homem” denomina e significa direta,
principal e propriamente a substância: este indivíduo. Já o termo “gramático”
é ambíguo: por um lado, denomina a substância significando-a de modo
indireto e indeterminado (per aliud): designa um indivíduo, que é conhecedor
de gramática; por outro lado, o termo “gramático” recebe a sua denominação
de “gramática” e significa per se, isto é, por si mesmo, um acidente, isto é,
uma qualidade: conhecedor de gramática.
A partir desta teoria da denominação e significação, Anselmo aplica à
gramática as categorias da ontologia aristotélica. Parte do seguinte estado de
coisas: o conhecimento da gramática não é essencial ao homem, embora seja
essencial ao gramático. Todo homem pode entender a linguagem sem
precisar da gramática; mas nenhum gramático pode expor uma compreensão
da linguagem sem a formação própria da gramática. Os conceitos de
“gramático” e de “homem” são diferentes. “Homem” nomeia um quid, um
determinado “quê”, uma substância. Designa uma substância primeira
(substantia prima) enquanto significa este homem, este indivíduo. Designa
uma substância segunda (substantia secunda) enquanto significa a espécie
chamada “homem”, a espécie humana. O nome “homem” é, por isso,
chamado de substantivo. “Gramático” nomeia, diretamente, um quale, uma
qualidade. O nome “gramático” é, por isso, um adjetivo. Ele só significa um
quid (substância) por meio de um quale (qualidade). O dialético se ocupa
diretamente com as palavras (voces: vozes) e só mediatamente, por meio
das palavras, com as coisas (res). Neste sentido, ele deve levar em
consideração o que as palavras significam direta e imediatamente (per se).
Por isso, à pergunta – quid est grammaticus? (o que é “gramático”?) – deve
57
responder: vox significans qualitatem (uma palavra que significa uma
qualidade), um adjetivo. Grammaticus designa, pois, diretamente uma res
(coisa/algo de real), que é um acidente, um quale (uma qualidade) e equivale
a habens grammaticam (tendo conhecimento da gramática). Grammaticus
designa, então, de modo indireto (per aliud) e de modo denominativo (per
apellationem) o homem.
Pode-se ver, pois, que, na obra De grammatico, Anselmo molda a gramática
segundo a lógica e a metafísica, mais precisamente, segundo a ontologia da
substância. Esta iniciativa possibilitou, por sua vez, o surgimento de uma
lógica da linguagem, no século XII, com Gilberto Porretano e Pedro Abelardo,
e, no século XIII, de uma gramática especulativa, que tratava dos modos de
significar (De modis significandi) das palavras. Assim, as categorias
aristotélicas foram aplicadas à morfologia e à sintaxe. As abordagens da
linguagem de Roger Bacon, Martinho e João de Dácia e Tomás de Erfurt vão
nesta direção. Deste último é a obra Grammatica Speculativa (Gramática
Especulativa), que, no século XX, foi objeto de estudo do doutorado de Martin
Heidegger, ainda quando o texto era atribuído a Duns Scotus.
5.2 A fé em busca do intelecto
O mote de Anselmo é: “fides quaerens intellectum (fé buscando
entendimento). Trata-se de uma retomada do mote de Agostinho: credo ut
intelligam (creio para compreender). Assim se dá o método especulativo de
Anselmo: A ratio (razão), como pensamento que se exerce pela “meditatio”
(meditação), busca, no horizonte da fides (fé), o intellectus (a compreensão,
o entendimento, o insight) (HEINZMANN, 1992, p. 166-169). Como, porém,
entender melhor a relação entre fides e ratio (razão) em Anselmo? Não se
trata de chegar à fé a partir da razão, como queriam os entusiastas da
dialética. Isso é impossível e danoso. Mas, trata-se de chegar a uma
compreensão da fé a partir do exercício da razão, um exercício que não põe
em questão a própria fé, mas a supõe, como horizonte irrenunciável. Pois, o
que está em jogo na fé, é mais do que uma crença ou opinião, ou mesmo a
adesão a uma doutrina, é, acima de tudo, a fidelidade a alguém: ao Deus fiel
58
e à sua auto-revelação. A fé, aqui, é entendida em duplo modo: como fides
qua, o ato de crer, e como fides quae, o crido, o conteúdo do que se crê. A
teologia é intellectus fidei: empenho de intelecção que se dá a partir da fé
(do ato de crer, fides qua) e que se volta para a compreensão do crido (do
conteúdo da fé, fides quae). A fides (fé) é dom de Deus. O intellectus
(intelecto), empenho do homem. Por isso, fides quaerens intellectum pode
significar também, em nível mais originário: o dom de Deus que, a priori,
ama, busca e quer, no homem, o empenho de compreender, que é empenho
de receber. Teologia é, assim, o saber de um encontro que se dá entre o Deus
que se dá a revelar e o homem que se dispõe a acolher e a compreender tal
auto-revelação de Deus. Do mesmo modo que o conceito de “fides” (fé),
também o conceito de ratio (razão) é duplo. Por um lado, ratio denomina a
razão como capacidade do homem de processar a compreensão e apreensão
de sentido das coisas (intellectus). Por outro, ratio é entendido como o
fundamento e o fundo essencial de alguma coisa (ratio rei). A teologia
consiste em ser a investigação das rationes necessariae (razões necessárias)
daquilo que é crido (fides quae). Ela procura encontrar e expor as razões da
fé, ou seja, o fundamento essencial e racional daquilo que é crido. É neste
sentido que Anselmo busca realizar algumas investigações teológicas sola
ratione (somente com a razão), isto é, expondo unicamente argumentos de
razão, sem recorrer a argumentos de autoridade (da Escritura ou dos Padres
da Igreja).
A busca do intellectus (compreensão) ou das rationes necessariae (razões
necessárias) no horizonte da fé pressupõe, contudo, a verdade como possível.
Mas, o que é a verdade? Anselmo dedica uma obra em forma de diálogo a
esta questão (De Veritate). Trata-se de uma questão essencial. Ela pergunta
pela essência da verdade – quid sit veritas? (o que é a verdade?). Anselmo
parte da experiência: dizemos que há verdade está ali onde se dá o
verdadeiro. Há a verdade de uma indicação (significatio) e a verdade de uma
enunciação (enunciatio); a verdade de uma opinião (opinio), por um lado, e
a verdade de uma vontade (voluntas) ou de uma ação (actio), por outro; há
ainda uma verdade dos sentidos (sensus) e uma verdade da essência das
coisas (essentiae rerum). Muitas são, pois, as formas de verdade: há uma
verdade do conhecer, a verdade lógica; uma verdade do agir, a verdade ética;
59
e uma verdade do ser, a verdade ontológica. A verdade ontológica é o
fundamento da verdade lógica. Com efeito, causa da verdade do juízo ou
enunciado está no ser ou não ser da coisa enunciada (res enunciata). Mas, o
que faz com que todas estas formas de verdade sejam verdade? A resposta
de Anselmo é: a rectitudo (retidão), ou seja, que algo seja como ele deve
ser. Verdade é, portanto, a coincidência ou identidade entre o ser e o dever-
ser da coisa. Mas, de onde a coisa haure o seu dever-ser? O que é normativo
para o real é o ideal, normativo para a coisa é a ideia da coisa. Conhecimento
e ação estão sempre mensurando o fático (o ser real) a partir da essência,
ideia ou norma (o ser ideal, o dever-ser). Isto quer dizer: a verdade lógica e
a verdade ética pressupõem a verdade ontológica. Mas a ideia da coisa se
funda e se fundamenta, originariamente, na mente de Deus. A verdade das
coisas (verdade ontológica) consiste em elas serem aquilo que eram na
mente de Deus, ou seja, em corresponder ao projeto criador divino. As coisas
são imagens concretizadas dos pensamentos de Deus. A ratio necessaria
(razão necessária) de uma coisa é justamente a exposição desta verdade
essencial das coisas, a verdade da essência da coisa. Deus é a verdade
originária, suprema e infinita, a partir da qual as coisas recebem o seu ser
verdadeiro e as formas de verdade se concretizam. Com efeito, a rectitudo
da Verdade, que é Deus, é diferente da rectitudo das formas de verdade
derivadas desta verdade originária. A verdade das coisas recebe sua medida
da summa veritas per se subsistens (verdade suprema que subsiste por si
mesma), que é Deus mesmo. A verdade de Deus não recebe medida de
nenhuma outra, pois ela mesma é o parâmetro, a partir donde se mede a
verdade das coisas (ontológica), e, por conseguinte a verdade do
conhecimento (lógica) e a verdade da ação (ética). Esta verdade, por
conseguinte, não pode se dar de modo plural. Ela é singular: única em si
mesma, e una em todas aquelas outras formas de verdade.
Mas, voltando à pergunta pela essência da verdade, como caracterizar um
conceito formal de verdade, que vale tanto para as formas de verdade
derivadas quanto para a verdade absoluta, una, infinita e suprema? Para
Anselmo, a essência da verdade se deixa dizer nesta indicação: Veritas est
rectitudo mente sola perceptibilis (verdade é a retidão perceptível só com a
mente). A retidão segundo a qual a coisa é o que deve ser, ou seja, é o que
60
ela é no pensamento ou no projeto criador de Deus, constitui a verdade
ontológica. Tanto a retidão predicativa, de uma significação ou de um
enunciado, bem como a retidão de um conhecimento dado pela experiência
ou pela razão, que caracteriza a verdade lógica; quanto a retidão de uma
opinião, vontade ou ação, que caracteriza a verdade ética; quanto, ainda a
retidão segundo a qual uma coisa é o que ela deve ser, isto é, correspondendo
ao pensamento dela no desígnio criador de Deus; todas estas formas de
retidão recebem sua medida da verdade originária, infinita, absoluta e
incriada: Deus. Verdade é a percepção da retidão, percepção que se dá sola
mente (com a mente somente), isto é, numa apreensão puramente
inteligível.
5.3 Demonstrações da existência de Deus
A investigação sobre a verdade remeteu à verdade absoluta e originária,
Deus. Mas, como demonstrar sola ratione, isto é, só com a razão, as rationes
necessariae, ou seja, os fundamentos racionais da fé na existência de Deus?
Numa primeira obra, o Monologion, Anselmo tenta demonstrar a existência
de Deus por meio de dois argumentos a posteriori, isto é, partindo da
experiência (ANSELMO, 1995, p. 48-59). Ele o faz seguindo a via platônico-
agostiniana. Num primeiro argumento, Anselmo toma em consideração
conceitos transcendentais: bonum (bom), ens (ente), unum (uno). Anselmo
parte da existência de bens no mundo, que são mais ou menos bons. Alguns
bens nós consideramos bons pela utilidade (propter utilitatem); outros, pela
sua beleza (propter honestatem). Estes bens são medidos e valorados como
mais ou menos bons. Deve haver, então, uma medida pelas quais se medem
os bens. Esta medida deve ser um bem absoluto e não um bem relativo, algo
que é um bem por si mesmo (bonum per se ipsum) e não um bem por
participação, algo que não é um bem, mas o bem. Trata-se, portanto, do
summum bonum (sumo bem), que nós chamamos Deus. Este mesmo
raciocínio vale para a grandeza e para a dignidade. Vale, por fim, para o ser.
Tudo o que é parece ser através e a partir de algo que ele não é. Deve haver
algo, através do que e a partir do que tudo o que é, é: o ente que é a partir
de si mesmo, o sumo ente. E este sumo ente não pode ser senão um só: uma
61
vez que a própria verdade exclui que sejam muitos, aquilo por meio do que
tudo é, é necessário que seja um, aquilo pelo que tudo o que é, é. O segundo
argumento toma em consideração uma ordem gradativa no ser de tudo o que
é: a natureza da árvore é menos digna do que a natureza do cavalo, que é
menos digna do que a natureza do homem. Numa há somente o ser, noutra
o ser, o viver e o sentir, noutra, por fim, o ser, o viver, o sentir e o pensar.
Esta gradualidade de naturezas aponta para uma única natureza suprema.
Esta é o que ela é, por si mesma, e tudo o que é, é o que é por ela. Melhor:
trata-se de uma natureza, que é por si mesma boa e grande; que é por si
mesma aquilo que ela é; que é por si mesma o que é sempre verdadeiro,
bom e grande; e que é o sumo bem, a suma grandeza, o sumo ente ou a
suma substância, ou seja, que é o Altíssimo, de tudo aquilo que é. Esta
argumentação pressupõe, pois, o ser por participação (participatio), que é
sempre relativo, a saber, o ser da criatura; e o ser em sentido absoluto, que
é o ser de Deus. O relativo é por outro (ens ab alio). Já o absoluto é por si
mesmo (ens a se). Os muitos relativos pressupõem, contudo, um único
absoluto.
Já no Proslogion (alocução), Anselmo busca um argumento único (unum
argumentum), que possa demonstrar de modo a priori a existência de Deus.
Vejamos o teor do seu argumento:
(1) Portanto, o Senhor, tu que dás a compreensão da fé, dá-me compreender, por quanto tu sabes ser útil, que tu és como cremos, e que tu és aquilo que cremos. Ora, nós cremos que tu és algo em relação ao qual não se pode pensar nada de maior. (2) Ou talvez não existe alguma natureza assim, porque “o insipiente disse no seu coração: ‘Deus não existe’” (Salmo 14, 1 e 53, 1)? Mas, certamente, aquele mesmo insipiente, quando ouve isso que eu digo: “algo em relação ao qual não se pode pensar nada de maior”, entende aquilo que ouve; e aquilo que entende está no seu intelecto, mesmo se não compreenda aquele ser. (3) De fato, uma coisa é uma coisa ser no intelecto, e outra coisa é compreender que aquela coisa existe. Pois, quando um pintor pensa previamente sobre aquilo que há de fazer, ele tem isso no seu intelecto, mas não compreende ainda que existe aquilo que ainda não fez. Quando, porém, já pintou, ele tem no intelecto e compreende que existe aquilo que já fez. (4) Portanto, também o insipiente deve convencer-se de que ao menos no intelecto existe algo em relação ao qual não se pode
62
pensar nada de maior, porque, quando ouve isso, compreende. E o que quer que ele compreende, está no intelecto. E certamente isso em relação ao qual não se pode pensar nada de maior, não pode existir somente no intelecto. Se, pois, existe somente no intelecto, pode-se pensar que existe também na realidade, o que é maior. (5) Se, portanto, isso em relação ao qual não se pode pensar algo de maior existe somente no intelecto: isso mesmo em relação ao qual não se pode pensar algo de maior é aquilo em relação ao qual se pode pensar algo de maior. Mas, com certeza, isso não pode ser. Portanto, existe, sem nenhuma dúvida, algo em relação ao qual não se pode pensar algo de maior, seja no intelecto, seja na realidade1.
Trata-se de um argumento que busca não precisar de outros argumentos
para demonstrar, mas que seja suficiente para demonstrar por si mesmo que
Deus em verdade existe. Este “argumento único” de Anselmo foi chamado
por Kant de “argumento ontológico”. No capítulo II, a partir do espírito do
credo ut intelligam (creio para compreender) ou do fides quaerens intellectum
(a fé buscando a compreensão) – que, aliás, é o subtítulo da obra –, Anselmo
diz: et quidem credimus te esse aliquid quo nihil maius cogitari possit (o certo
é que cremos que tu és algo, acima do qual não se pode pensar nada de
maior). Esta denominação assinala a transcendência de Deus. Que ela fale
do Deus da fé e da revelação torna-se claro pelo fato de Anselmo orar a este
Deus, cuja existência ele quer provar (!). Mas, será mesmo que se trata de
uma prova, em sentido apologético? Ou se trata mais de demonstrar, melhor,
de mostrar a racionalidade daquilo que se crê? Neste caso, seria a penumbra
da fé buscando a clareza da compreensão. Em todo o caso, a expressão
aliquid quo nihil maius cogitari possit (algo, acima do qual não se pode pensar
nada de maior) não é nova: está enraizada na tradição latina (Sêneca, Cícero,
Agostinho, Boécio). Nova é a explicação que se segue. O insipiente diz em
seu coração: não há Deus, Deus não existe (cfr. Salmo 13, 1). A proposição
“Deus existe”, como enunciado de algo crido, ou seja, de um conteúdo da fé,
não é evidente por si mesma. É preciso, pois, que intervenha a razão. Pois
bem: o insipiente entende o que significa a expressão aliquid quo nihil maius
1 Anselmo d’Aosta: Proslogion. Milano: Rizzoli, 1992, p. 80-85.
63
cogitari possit (algo, acima do qual não se pode pensar nada de maior).
Enquanto esta expressão é entendida, ela está em seu intelecto: intelligit
quod audit, et quod intelligit, in intellectu eius est, etiam si non intelligat illud
esse (entende o que ouve, e aquilo que entende está em seu intelecto,
mesmo se não entende aquele ser). Uma coisa, porém, é ser no intelecto
(esse in intellectu), outra é ser real (esse rem). Por exemplo, o pintor tem
em mente uma obra. Esta obra, enquanto simplesmente pensada e
intencionada pelo pintor, só tem o ser no intelecto do pintor. Agora, se esta
obra é produzida e levada a cabo, ela passa a ser realmente, a ter um ser
real, um ser na realidade efetiva (esse in re). Assim, o que existe somente
no intelecto é menor do que aquilo que existe efetivamente na realidade. Ora,
é certo que aquilo acima do qual não se pode pensar nada de maior não pode
ser somente no intelecto: si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari
esse et in re, quod maius est (de fato, se existe só no intelecto, se pode
pensa-lo existente também na realidade e este é ainda maior). Negar que
Deus exista na realidade, portanto, conduz a uma contradição: “por
conseguinte, se aquilo acima do qual não se pode pensar nada de maior,
existe só no intelecto, aquilo acima do qual não se pode pensar nada de maior
é aquilo acima do qual se pode pensar uma coisa maior”. Isso feriria o
princípio de não-contradição: seria afirmar e negar ao mesmo tempo o
mesmo predicado do mesmo sujeito: “Deus é aquilo acima do qual não se
pode pensar nada de maior e Deus é aquilo acima do qual se pode pensar
algo de maior”. A negação da existência de Deus é racionalmente absurda.
A afirmação da existência de Deus é racionalmente evidente. A conclusão é,
pois: “sem dúvida, portanto, algo acima do qual não se pode pensar nada de
maior existe, quer no intelecto, quer na realidade”. Mas, porque então o
insipiente diz em seu coração que Deus não existe? Anselmo distingue entre
o simples pensar (cogitare) uma palavra, que é uma voz significativa (vox
significans) e o entender o que é significado com ela, ou seja, entender a
coisa mesma, aquilo que ela é (intelligere id ipsum, quod res est) (Capítulo
IV). Se se entende aquilo que se pensa, quando se nomeia “aquilo acima do
qual não se pode pensar nada de maior”, não se pode pensa-lo como não
existente (Capítulo III). (ANSELMO, 1990, p. 140-141).
64
Um monge contemporâneo de Anselmo, de nome Gaunilo, porém, não ficou
convencido com a demonstração. Por isso, escreveu um livro intitulado Liber
pro insipiente (Livro em favor do insipiente). Para ele, a passagem do esse in
intellectu (ser no intelecto) para o esse in re (ser na realidade) não é
evidente. Há uma diferença entre o ser pensado e o ser real. Eu posso pensar
uma ilha no oceano que ultrapasse a todas as outras em seus atributos e essa
ilha não existir realidade. A resposta de Anselmo é que Deus não é uma ilha.
Isto quer dizer que Gaunilo não observou a singularidade deste ente cuja
existência está em questão nesta demonstração (ANSELMO, 1990, p. 173-
192). O argumento de Gaunilo poderia valer para um ente qualquer, mas não
para o ente supremo. Entretanto, a objeção de Gaunilo abre a perspectiva de
uma objeção que sempre de novo se repetiu contra o argumento único do
Proslogion: o argumento de Anselmo faria um salto indevido da ordem do
pensar para a ordem do ser, pois afirma que, pelo fato de não se poder pensar
Deus como não existente, deve-se concluir que ele existe realmente.
Entretanto, Anselmo distingue, sim, estas duas ordens e afirma que a ordem
do ser é maior do que a ordem do puro pensar. É justamente tendo isso como
pressuposto, que ele afirma que não se pode dizer que Deus existe só no
pensamento e não na realidade e que se deve dizer que Deus existe, quer no
pensamento, quer na realidade.
O argumento de Anselmo provoca uma reflexão relevante sobre pensar e ser.
Parece pressupor uma identidade entre pensar e ser: as leis do pensar seriam
também as leis do ser. Não se pode pensar Deus como não existente, logo,
Deus existe. Uma tese assim teria sentido se fosse pressuposta a identidade
de pensar e ser. Entretanto, Anselmo supõe uma diferença entre o ser-
pensado (esse in intellectu) e o ser realmente (esse in re). O que ele afirma
que Deus não pode ser pensado como algo que existe apenas no pensamento.
Quem entende aquilo que está dizendo, quando fala de Deus, não pode
pensá-lo como não existente. Essa impossibilidade não é somente
psicológica; nem somente lógica; mas é ontológica; ou seja, ela não é
fundamentada somente na ratio (razão) do homem, mas também na ratio rei
(no sentido da coisa mesma) e trata-se de uma ratio necessaria (razão
necessária). Com este argumento, será que Anselmo pretende encerrar Deus
no limite de um conceito e da razão humana? A resposta é: não. A própria
65
expressão usada para designar Deus – aquilo acima do qual não se pode
pensar nada de maior – aponta para a grandeza transcendente do sujeito em
questão. Anselmo sabe que Deus é maior do que aquilo que o homem pode
pensar dele: quod maior sit quam cogitari possit (que é maior do que aquilo
que se pode pensar). Deus não é um primeiro ente no universo dos muitos
entes. Entre o ente supremo e o fundamento pelo qual tudo o que é, é, há
uma diferença abissal. Dizer que Deus é o ente supremo, entendendo esta
excelência em sentido relativo e ôntico, é ainda pouco. É preciso dizer muito
mais, isto é, é preciso apontar para a sua excelência no ser, enquanto aquilo
pelo que tudo o que tem o ser, ou melhor, enquanto vere esse, ser em sentido
verdadeiro, ou seja, o ente que tem a singularidade de ser a pura, simples e
absoluta perfeição do ser. Quem pensa Deus não pode somente chegar ao
limite do pensável, deve também, em pensando-o, ultrapassar esse próprio
limite. A expressão “aquilo acima do qual não se pode pensar nada maior” é
um convite a pôr-se no limite do pensável e a ali intuir o que ultrapassa todo
o pensável: a plenitude pura e simples, absoluta do ens a se (ente que é a
partir de si), melhor, do vere esse (ser em sentido verdadeiro e próprio).
Estante do saber
Anselmo de Cantuária sobre a verdade do pensamento
(http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/30/04.pdf), de
Roberto Hofmeister Pich.
Perfeições puras segundo Anselmo de Aosta
(http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/31/09.pdf) e O
papel da razão em Anselmo de Aosta
(http://www.ufpel.edu.br/ich/filosofiamedieval/pdf/anselmo_papel.pd
f), ambos de Manoel Vasconcellos.
O modo como Anselmo abordou a relação entre fé e razão se tornou
paradigmático para a teologia escolástica. Sua teoria da significação
66
e da denominação influiu na elaboração de uma doutrina da
“analogia entis” (analogia do ente), que iremos estudar em Tomás
de Aquino. Sua abordagem lógica da gramática influiu na lógica
linguística do século XII (Gilberto de Poitiers e Pedro Abelardo) e
sua abordagem ontológico-categorial da gramática influiu na
elaboração de uma gramática especulativa no século XIII (Roger
Bacon, Tomás de Erfurt). Mas, o que fez história mesmo ao longo
dos séculos foi o “argumento único” do Proslogion. Na Idade Média,
estão a seu favor Guilherme de Auxerre, Boaventura, Mateus de
Aquasparta, Egídio Romano e Duns Scotus. Já Tomás de Aquino e
Guilherme de Ockham não o aceitam. Descartes o assume, desligado
do seu contexto. Kant o critica e rejeita. Hegel o apoia. Cada um, a
partir de sua perspectiva de pensamento. O que não se pode negar
é que Anselmo foi uma autoridade para os medievais e constitui
também um pensador respeitado também pelos pensadores
modernos. E, se os continentais hoje o consideram devido aos seus
temas, os analíticos o retomam devido ao rigor formal lógico de
suas exposições e devido à sua teoria lógico-semântica.
67
Aula 06 – Pedro Abelardo
Os homens do século XII respiram ares de modernidade: já não se
acham simplesmente como herdeiros dos antigos, mas também
como iniciadores de algo novo. Coisas novas vão acontecendo em
todos os campos da vida destes homens. Por toda a parte sopram
novos ares. Podemos aqui citar: o surgimento do “amor cortês” em
meio à aristocracia cavalheiresca; o renascimento urbano com o
despontar das comunas; a importância das escolas catedrais, como
a de Chartres e a de São Vitor, a reforma monástica dos
cistercienses, tendo Bernardo de Claraval como protagonista; a
mística das mulheres, tendo em Hildegarda de Bingen um dos seus
expoentes; a hermenêutica da história e a profecia de uma nova era
em Joaquim de Fiori; as lutas entre dialéticos e anti-dialéticos; os
esforços de sistematização com as Sumas e os Livros das
Sentenças, tendo Pedro Lombardo como principal iniciador desta
literatura; e, por fim, mas não com a menor importância, o começo
das traduções dos árabes e dos manuscritos gregos, que vão
renovar o pensamento no século XIII.
Pedro Abelardo (1079-1142) é aquele homem em que a
modernidade do século XII, isto é, a irrupção de um novo modo de
ser histórico, se faz visível. Pedro o Venerável o saudou como o
Aristóteles de seu tempo. Por outro lado, foi ferrenhamente
combatido por Bernardo de Claraval e condenado por dois concílios
por causa deste embate. Abelardo nasceu no Burgo Les Pallet, perto
de Nantes, filho do cavaleiro Berengário e de sua esposa Lucia. Foi
aluno de Roscelino de Compiègne, o grande representante do
nominalismo do século XII e de Guilherme de Champeaux, que
representava uma posição de extremo realismo na querela dos
universais.
68
Esta aula não possui fontes. Favor incluí-las.
6.1 Abelardo e a querela dos universais
Uma concepção nominalista dos universais já aparece no século XI. Hermann
de Tournai, na primeira metade do século XII, cita alguns nomes de mestres,
que ensinavam a dialética juxta quosdam modernos (segundo o modo dos
modernos), ou seja, não segundo Boécio. Estes consideravam que o estatuto
dos universais – qual o tipo de ser se deva atribuir a eles - se encontrava in
voce (na palavra) e não in re (na coisa). Anselmo afirma que estes “heréticos
da dialética” consideravam que os universais não fossem nada mais do que
flatus vocis (sopro da voz). A estes modernos e heréticos da dialética
pertence, sem dúvida, Roscelino de Compiègne, que foi mestre de Abelardo.
João de Salisbury, em seu Metalogicus, diz que a posição segundo a qual os
universais, isto é, o gênero e a espécie, se dão na voz, ou melhor, que as
palavras mesmas, em sua sonância física, é que são universais, surgiu e
desapareceu com o próprio Roscelino. O próprio Abelardo, com efeito,
rejeitou a posição extrema do seu mestre. Em vez da tese universale est vox
(universal é a voz), Abelardo apresentou outra tese: universale est sermo
(universal é o discurso, a linguagem) (ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 205-
213).
Abelardo não aceitou também a posição contrária, a do realismo de seu outro
mestre, Guilherme de Champeaux, o amigo de Bernardo, que, mais tarde,
após ter sido derrotado na disputa com Abelardo, abandonou a dialética e
fundou a Escola de São Vitor. Guilherme ensinava que uma e mesma coisa
(res), essencialmente universal, encontrava-se ao mesmo tempo nos vários
indivíduos da mesma espécie, de sorte que estes não se distinguem quanto
à essência, mas apenas pelo conjunto de acidentes. Depois da disputa com
Abelardo, porém, mudou a formulação de sua tese e, em vez de dizer que a
mesma e única coisa (res) existir essencialmente (essentialiter) nos vários
indivíduos, diz que esta mesma e única coisa (res) existe indiferentemente
(indifferenter) nas coisas individuais. Em todo o caso, para ele, o universal
era uma coisa (essencial ou indiferente) que existia nas coisas individuais.
Numa perspectiva tão realista (realis = aquilo que diz respeito à res, coisa),
69
a dimensão do conceito e do pensamento se retira completamente
(ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 205-213).
Abelardo reformula o problema de Porfírio (HEINZMANN, 1992, p. 178-179).
Este formulou o problema dos universais com três perguntas. Abelardo
apresenta uma quarta pergunta. Na perspectiva de Abelardo, o problema se
apresenta assim: 1. Se os universais (gênero e espécie) têm verdadeiro ser
ou se eles consistem somente em algo pensado e dito (in opinione). 2. Caso
se admita que os universais tenham verdadeiro ser, isto é, existência real,
são eles de natureza corporal ou incorporal? 3. Eles existem separados das
coisas sensíveis ou são imanentes a elas? 4. É necessário que exista alguma
coisa correspondente à denominação dos gêneros e espécies, ou o universal
continua a existir ex significatione intellectus, ou seja, a partir da significação
do conceito, mesmo se não houvesse mais nenhum indivíduo que
correspondesse àquela denominação? Ex.: se não houvesse mais nenhuma
rosa, a palavra rosa continuaria a ter significado?
Abelardo rejeita a posição realista segundo a qual o universal é uma coisa
essencialmente idêntica na diversidade dos indivíduos. Argumenta ele: se nos
indivíduos existe uma coisa essencialmente idêntica e se eles se distinguem
apenas pelas formas, segue que uma e mesma coisa toma formas opostas.
Por exemplo: a “animalidade”, essencialmente idêntica no homem e no bicho,
apresenta as formas opostas da racionalidade e da irracionalidade. O que é
impossível. Abelardo rejeita também a posição ainda realista segundo a qual
o universal é uma coisa indiferentemente idêntica na diversidade dos
indivíduos. Esta tese entende que uma mesma coisa é universal e individual.
A singularidade se funda numa diferenciação (discretio), já a universalidade
consiste numa indiferenciação (indifferentia), ou seja, numa convergência de
semelhanças (convenientia similitudinis). A objeção principal de Abelardo se
volta contra a pressuposição desta tese, de que universalidade e
individualidade poderiam ser compreendidas de maneira puramente
acidental. Isto acarretaria a consequência de que a individualidade pudesse
ser definida por si mesma, o que é contraditório. Abelardo rejeita também a
tese de que o universal é uma coleção (colletio) ou soma de objetos
individuais que caem sob um conceito. Assim, todos os homens constituem o
70
universal “homem”. Esta tese tem o inconveniente de exigir que o universal
como todo devesse estar em cada indivíduo.
Entretanto, qual a resposta que Abelardo dá à questão dos universais? Já
dissemos que há uma diferença entre a posição de Roscelino e a de Abelardo.
A do primeiro diz:“universale est vox (universal é voz). Voz é a palavra como
ocorrência física de um som, de um ruído, como algo natural. A posição de
Abelardo diz: universale est sermo (universal é discurso, linguagem). O
discurso, ao contrário, é uma institutio hominum, uma instituição dos
homens. A voz é algo de natural, a palavra ou o discurso é algo de humano,
cultural. Embora a palavra seja também voz, ela é mais do que voz, ela é
uma voz significativa. O ato de significar, porém, é sempre um ato humano,
que se funda na convivência dos homens entre si e no seu mundo cultural.
Além disso, Abelardo define assim o universal: est autem universale
vocabulum quod de pluribus singillatim habile est ex inventione sua praedicari
– universal é um vocábulo que, com base numa instituição ou invenção
humana, é apto a ser predicado individualmente de muitos (Lógica para
iniciantes 16). O universal é, pois, algo que diz respeito à linguagem e não a
coisas. O universal, porém, não é simples vox, som da boca humana, mas é
um vocabulum, vocábulo, isto é, uma vox significativa, uma voz que significa
alguma coisa. Mais ainda: o universal é sermo, algo que se dá no exercício
concreto do discurso, no falar uns com os outros. Neste sentido, o universal
já foi sempre encontrado pelo homem no exercício histórico, social e cultural
do discurso. O homem o encontra (invenit) e à medida que o encontra no
exercício concreto do discurso (sermo), quer dizer, do falar humano no
mundo da convivência, o universal é uma invenção (inventio) ou uma
instituição, isto é, uma fixação ou estipulação, sócio-cultural-histórica
(institutio).
Na verdade, Abelardo apreende uma dupla função do universal (HEINZMANN,
1992, p. 180). A primeira é a da apellatio (denominação), entendida como a
capacidade de indicar objetos perceptíveis sensivelmente. A segunda é a da
significatio, quando se trata de se referir a objeto que não é perceptível
sensivelmente. Assim, quando uso o nome “Pedro” para este homem aqui, o
que está acontecendo é uma denominação. Mas, quando uso o nome
71
“homem” como conceito de uma espécie, o que está acontecendo é uma
significação. É que “Pedro” é uma res (coisa), mas “homem”, não. “Homem”
é um conceito (intellectus). A coisa é singular, individual. O conceito é
universal. A palavra pode designar uma coisa, mas pode também designar
um conceito. O erro do realismo está em entender o conceito como coisa
universal.
Entretanto, como se dá a gênese do conceito? Resposta: através da
abstração. O conceito é um produto da capacidade abstrativa do intelecto
humano. A sensibilidade (sensus) oferece a coisa em sua individualidade; o
intelecto (intellectus), ou seja, a razão (ratio) ou a mente (animus) produz o
conceito em sua universalidade. Abstrair é ater-se unicamente à semelhança
formal entre as coisas. Abstrair é uma questão de atenção: é levar em
consideração somente a semelhança entre coisas diferentes individualmente.
Esta semelhança é expressa no conceito. O conceito é uma res imaginaria
quaedam et ficta, uma coisa imaginária e fictícia, uma imagem ou
representação do real. O universal é uma imagem comum e indistinta de
muitas coisas. Como quando eu digo “casa” não tenho em vista esta ou
aquela casa na sua singularidade e com suas qualidades particulares, mas eu
tenho em vista algo de comum e de indiferenciado que pode ser dito de todas
as casas individuais. O conceito “casa” expressa aquilo que é comum e
semelhante em relação a todas as casas individuais, realmente existentes. O
conceito, portanto, enquanto universal, tem em vista a forma communis, a
forma comum das coisas individualmente diversas. A representação
imaginária que é produzida pela razão (figmentum) serve de intermediação
entre o real e o conceito. Aquilo que o intelecto intenciona no conceito
universal não é algo realmente existente, mas a forma comum. Por isso,
mesmo quando não existe a coisa individualmente dada, realmente existente,
o conceito permanece capaz de significar alguma coisa. Por exemplo, se não
existe mais nenhuma rosa neste mundo, o conceito de rosa continuaria
significativo, pois ele se referiria não a rosas existentes, mas à forma comum,
abstrata, de todas as rosas, que já existiram ou que poderiam existir. A
posição de Abelardo, pois, está entre o nominalismo puro e simples de
Roscelino e o realismo extremo de Guilherme de Champeaux. Em busca de
um nome para esta posição, ela poderia ser chamada de conceptualismo.
72
6.2 Dialética e a teologia
Outra contribuição importante de Abelardo para a história do pensamento
medieval é o método dialético do Sic et non (Sim e não), nome de uma de
suas obras (ABELARDO, 2000, p. 122-135). Este método, que consiste em
contrapor dialeticamente as opiniões das auctoritates (autoridades, autores
significativos da tradição), foi doravante amplamente aplicado na teologia
medieval. Trata-se de uma nova forma de investigação, que consiste
fundamentalmente na colocação de questões (quaestio, interrogatio) e na
busca da resposta por meio da confrontação entre tese e antítese. Trata-se
também de uma nova concepção sobre a relação entre auctoritas
(autoridade) e ratio (razão), pois confia a esta a incumbência de dar a
resolução às contradições entre os ditos das autoridades da tradição.
Não obstante, Abelardo é favorável ao uso da dialética e não ao seu abuso
no campo teológico. A ratiuncula humana (razãozinha humana) não pode
compreender nem dizer o mistério divino. Ele distingue entre intelligere seu
credere (entender e crer), por um lado, e o cognoscere e comprehendere
(conhecer e compreender), por outro. Aqui na terra o homem não pode
conhecer e compreender o mistério divino, pode somente entender e crer
algo dele. Por isso, o poder da dialética é limitado nesta esfera. O homem
deve sempre se recordar do que Platão dizia a respeito do Sumo Bem, quando
o comparava com o Sol, que não pode ser fitado por muito tempo pelo olhar
do homem. Com efeito, o homem não pode fitar diretamente o mistério
divino. Deus é, aqui, incompreensível para o homem e este pode somente
entender algo dele por meio de imagens e semelhanças (similitudines).
Abelardo aplicou-se, no campo teológico, sobretudo ao estudo da Trindade.
O Pai se dá a conhecer, segundo ele, como potentia (potência), o Filho como
sapientia (sapiência) e o Espírito Santo como benignitas (benignidade) de
Deus. A princípio, Abelardo considerou que os filósofos conhecessem algo da
Trindade, pois entre os platônicos, falava-se de três hipóstases constituidoras
de todas as coisas: o Uno (Hen), o Intelecto (Nous) e a Alma do Mundo
(Psyche). Depois, sob a invectiva de Bernardo de Claraval, Abelardo
73
retrocedeu nesta opinião, que era comum entre os pensadores da Escola de
Chartres também. Entretanto, não abdicou de identificar a Anima Mundi
(alma do mundo) com o Espírito Santo. O ensinamento trinitário de Abelardo,
porém, foi condenado como modalismo, graças à impugnação de Bernardo,
em 1140 no Sínodo de Sens. Depois disso, Abelardo teve que se retirar no
claustro de Cluny, acolhido por Pedro o Venerável. Característico é também
o entendimento teológico da encarnação de Abelardo, que foge ao de
Anselmo e de Agostinho. Segundo estes, o Filho de Deus se tinha feito homem
para libertar o homem do poder do diabo e tinha sofrido para dar satisfação
à justiça divina. Para Abelardo, não é este o motivo central da encarnação.
Deus se faz homem no Cristo por amor. Sua encarnação e paixão são para o
homem um exemplo de amor e o homem é salvo à medida que adere a este
amor e o pratica em relação a Deus e ao próximo.
Abelardo deu uma conotação menos objetivista e mais pessoal também à sua
ética. A obra intitulada Scito te ipsum (Conhece-te a ti mesmo) é uma
monografia incompleta sobre os princípios éticos do cristianismo, que retoma
o princípio délfico ou socrático do autoconhecimento (HEINZMANN, 1992, p.
184-185). Na ética, o que vem em primeiro plano não são valores objetivos
nem normas, não é nem mesmo obras ou feitos exteriores, mas as intenções
e as atitudes do homem. Somente a intenção é o decisivo para a moralidade
dos atos humanos. Deus julga o homem não segundo suas obras exteriores,
mas segundo suas intenções interiores. As obras são indiferentes em seu
valor ético. O que dá valor às obras é a intenção. O pecado não é uma
transgressão objetiva de uma norma moral, mas é um agir contra a própria
consciência.
Abelardo também deu uma contribuição importante para uma compreensão
medieval do diálogo intercultural (LIBERA, 1998, 326-327). Sua obra
intitulada Dialogus inter Philosophum, Iudaem et Christianum (Diálogo entre
um filósofo, um judeu e um cristão) é testemunho desta postura aberta e
dialogante de Abelardo. Os três são caracterizados como adoradores do Deus
único, mas cada qual à sua maneira. Eles dialogam e buscam a arbitragem
do autor, isto é, de Abelardo. Neste diálogo Abelardo retoma a concepção
trazida por Justino, segundo a qual o Logos é o mestre universal, aquele que
74
ilumina toda a humanidade em sua busca pela verdade. A abertura católica
(universal) desta concepção se expressa na convicção de que nenhum
ensinamento é tão falso que não contenha algo de verdadeiro, ainda que seja
um pequeno vestígio da verdade. O filósofo de Abelardo tem traços árabe-
muçulmanos. Ele é nascido em terras do Islã e criado na tradição islâmica,
mas procura a verdade por meio de argumentos e segue mais a razão do que
as opiniões dos homens. A partir dessa postura, ele estuda criticamente as
“seitas” (divisões religiosas) de seu mundo. Abelardo vê na investigação da
razão por um fundamento comum de verdade a base para um diálogo inter-
religioso e intercultural. Como se pode ver, a fisionomia do filósofo de
Abelardo não corresponde somente ao filósofo árabe-muçulmano, cujo perfil
cai bem com o de Avempace (Abu Bakr ibn al Saigh), contemporâneo de
Abelardo, mas esta fisionomia cai bem também com a do próprio Abelardo e
dos filósofos que, a partir de então, vão apresentar traços de modernidade
em meio à Idade Média. O diálogo de Abelardo foi interrompido por sua
morte. Neste tempo, estavam chegando ao ocidente as primeiras influências
dos árabes na filosofia.
Estante do saber
Virtude, vício e pecado nas obras éticas de Pedro Abelardo (1079 -
1142) (http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/29/29-
06.pdf), de Pedro Rodolfo Fernandes da Silva.
Lei natural e seus desdobramentos no Dialogus inter philosophum,
judaeum et christianum, de Pedro Abelardo
(http://www.revistaindice.com.br/pedrorodolfo.pdf), de Pedro Rodolfo
Fernandes da Silva.
Abelardo assinala uma guinada na autocompreensão do homem
ocidental em pleno século XII. Entretanto, ele não deixou uma
escola. Sua posição sobre o problema dos universais vai repercutir
75
no nominalismo e do conceptualismo do século XIV, que será
responsável pela autodestruição da grande síntese escolástica do
século XIII e pela irrupção de uma nova época, marcadamente pelo
desenvolvimento da ciência moderna. Seu método dialético, porém,
foi decisivo para o desenvolvimento da escolástica no século XIII.
No fim do século XII, sob o impulso dado por Abelardo e por Hugo
de São Vitor, começam as primeiras tentativas de colecionar os
ditos das autoridades da tradição com o fim de promover uma
disputa dialética em torno deles. É a época da “Summa
sententiarum” (Suma das sentenças) e dos “Libri sententiarum”
(Livros das Sentenças). A obra mais famosa neste sentido ficou
sendo a de Pedro Lombardo (+ 1160): “Libri quatuor sententiarum”
(Os quatro livros das sentenças). O primeiro livro trata da doutrina
sobre Deus; o segundo, sobre a criação; o terceiro, sobre a
redenção; e o quarto, sobre os sacramentos e a escatologia. Até o
século XVI será costume entre os candidatos ao doutorado em
teologia, ler e comentar, durante dois anos, os quatro livros das
sentenças de Pedro Lombardo. De início os comentários produzidos
serão mais aderentes ao texto. Depois, o texto vai se tornando
apenas o pretexto para a discussão das questões (quaestiones), que
vão sendo desenvolvidas com cada vez maior autonomia por parte
dos comentadores. O peso vai passando da autoridade da tradição
para a força autônoma da razão. E isso, juntamente com as
traduções dos escritos dos pensadores árabes, judeus e gregos, foi
decisivo para o desenvolvimento do pensamento medieval latino
nos séculos seguintes.
76
Aula 07 - A filosofia no mundo bizantino
Em 529, o Imperador do Império Romano do Oriente, Justiniano,
mandou fechar a Academia de Platão. Os filósofos de Atenas –
Damáscio, Simplício, Eulâmio, Prisciano da Lídia, Hérmias, Diógenes
e Isidoro de Gaza – deixam o Império Bizantino e se refugiam por
três anos em terras do Império Sassânida. Em 532 eles retornam ao
território do Império Bizantino e se instalam em Harran (a Carrhae
dos latinos), na mesopotâmia setentrional, perto de Edessa. É uma
cidade importante na história da humanidade. De lá, segundo a
Bíblia, teria partido Abraão rumo à terra prometida. Esta mesma
cidade, de cultura assíria, irá acolher, no século IX, filósofos árabes.
Nesta aula vamos estudar como a filosofia viveu em meio ao mundo
cultural e espiritual do Império Bizantino, buscando aprender suas
características neste meio e compreender o modo como se delineou
uma tradição filosófica bizantina, diferenciada daquela latina.
7.1 Características da filosofia em Bizâncio
O mundo bizantino, de língua grega, é outra concreção da romanidade,
aquela que se mantém com o Império Romano do Oriente, cuja capital era
Constantinopla (Bizâncio). Em Bizâncio a filosofia, do século IX ao XV, tem
uma fisionomia e uma história própria. Quatro aspectos marcam o seu perfil
(LIBERA, 1998, p. 19-20). 1. Para os bizantinos, a filosofia, denominada de
“helênica” é algo de estranho; para eles há a filosofia exterior, que é a filosofia
dos filósofos, e há a filosofia interior, que coincide com a teologia cristã, que
seria a verdadeira filosofia. 2. A filosofia usufrui de autonomia em relação à
teologia e a teologia não é entendida como teo-lógica, ou seja, como
aplicação da dialética à discussão das questões pertinentes à fé. 3. A teologia
é essencialmente monástica e não é ensinada na academia; esta tem a função
de formar funcionários do poder imperial e a filosofia é assimilada dentro
77
desta perspectiva. 4. O filósofo bizantino é essencialmente um enciclopedista,
um polyhistor, ou seja, um estudioso que domina vários âmbitos da pesquisa.
7.2 As raízes da tradição filosófica bizantina
As raízes da tradição filosófica bizantina se encontram em João Filoponos, no
Pseudo-Dionísio Areopagita e em João Damasceno. João Filoponos (490-570)
viveu em Alexandria. Sobreviveu à perseguição de Justiniano aos filósofos.
Combateu Proclo e comentou Aristóteles. Em 642 Alexandria foi tomada pelos
árabes omíadas. Isso foi decisivo para a história da filosofia, pois os filósofos
árabes aprenderam a ler Aristóteles especialmente pela lente dos
comentadores alexandrinos da tarda antiguidade. Entretanto, a mediação
entre a filosofia antiga e a filosofia medieval bizantina se deu especialmente
pela atuação do Pseudo-Dionísio Areopagita (séc. V-VI), que já estudamos, e
por João Damasceno (+ 754). Uma obra deste último é significativa para a
história da filosofia. Trata-se da obra intitulada Fonte do Conhecimento (Pege
gnoseos). A obra começa com uma introdução à lógica e à ontologia,
inspirada em Porfírio e em Amônio. Na linha da tradição de Filo, Clemente de
Alexandria e Gregório de Nissa, ele vê na filosofia uma serva da teologia,
posição que também será especialmente afirmada por Pedro Damião, no
ocidente, no século XII. A segunda parte da obra dá uma visão das heresias
cristãs. A terceira parte desenvolve sistematicamente a doutrina dos Padres
da Igreja. A teologia dos Padres é articulada em quatro livros: sobre Deus,
sobre a criação, sobre a encarnação e, por último, sobre a glorificação do
homem-Deus, sobre os sacramentos e sobre a escatologia – grosso modo, a
mesma articulação adotada, mais tarde, por Pedro Lombardo (século XII) nos
seus Livros das Sentenças. Esta terceira parte foi traduzida para o latim por
Burgúndio de Pisa (1151) sob a encomenda do papa Eugênio III (1145-1153).
Alberto Magno e Tomás de Aquino a cita sob o nome de De fide ortodoxa (Da
fé ortodoxa) (LIBERA, 1998, p. 76-77). Entre as contribuições de João
Damasceno está a sua teoria dos nomes divinos: a distinção entre nomes
“negativos”, que dizem o que Deus não é, e não o que ele é, e os nomes
“positivos”, que nos dizem o que convém à natureza de Deus (seus atributos),
e não a sua natureza mesma. Outra contribuição é a sua afirmação resoluta
78
da transcendência divina: que Deus está além do conhecimento, porque – tal
como o Bem de Platão – é “além da essência” (epekeina tes ousias). Por fim,
ficou famosa também a sua interpretação de Êxodo 3,14, segundo a qual o
“sou quem sou” significa a incompreensibilidade de Deus e que Deus possui
e reúne em si a totalidade do ser, como um oceano de substância, infinito e
ilimitado.
7.3 Os renascimentos nos tempos de Fócio e de Miguel Psellos
Paralelamente, na segunda metade do século IX, aconteceram o
renascimento carolíngio e o renascimento bizantino. Tanto em um como em
outro, a filosofia se encontra na corte imperial e serve para formar
funcionários do alto escalão. O primeiro renascimento bizantino se dá com
Fócio (c. 820-891) (LIBERA, 1998, p. 33-34). Ele é Patriarca de
Constantinopla após a querela do iconoclasmo (730-843). Foi ele quem
enviou Cirilo e Metódio para a evangelização dos eslavos. Mas foi ele também
o protagonista bizantino do primeiro cisma entre a Igreja grega e a Igreja
latina. No centro deste cisma esteve a questão do Filioque. Enquanto a Igreja
latina afirmava que o Espírito Santo provinha do Pai e do Filho, a Igreja Grega
defendia que o Espírito Santo provinha do Pai por processão, assim como o
Filho provinha do Pai por geração. Sua contribuição para o pensamento, no
entanto, é pouca, pois é mais um enciclopedista do que um pensador criativo.
O segundo e mais significativo renascimento bizantino se dá, porém, no
tempo de Miguel Psellos (1018 - c.1078) (LIBERA, 1998, p. 34-39; ÜBERWEG
& HEINZE, 1927, p. 283-285). Este chegou a ocupar o cargo de “cônsul dos
filósofos” na Academia de Constantinopla. Foi ele quem, encarregado pelo
Imperador Isaac Comênio, redigiu o Ato de acusação a Miguel Cerulário
(1054), o patriarca de Constantinopla que protagonizou o segundo cisma
entre as Igrejas latina e grega, devido a questões de jurisdição sobre igrejas
da Itália Meridional e de igrejas latinas de Constantinopla. Miguel Cerulário
tinha excomungado o papa Leão IX e este tinha excomungado o patriarca
Miguel Cerulário. Este acabou sendo deposto e desterrado pelo sínodo graças
à acusação de Miguel Psellos. Miguel Psellos considerava Gregório Nazianzeno
e Platão como as duas maiores autoridades na tradição. Chegou a comentar
79
os Oráculos Caldaicos, texto considerado pelos filósofos neoplatônicos,
especialmente Proclo, como revelação divina. Contribuiu, na lógica, para uma
teoria dos silogismos. Sucessor de Miguel Psellos no cargo de “Cônsul dos
filósofos” foi João Ítalo (+ 1055), defensor do aristotelismo neoplatonizante.
Foi suspeito de heresia pela aplicação da dialética no campo teológico. Foi
proibido de ensinar por causa das teses pagãs (“helênicas”, segundo a
linguagem da época) que ele defendia.
7.4 A filosofia em bizâncio nos séculos XII e XIII
No começo do século XII, o filósofo Nicolau de Methone (+1165) escreve uma
refutação dos Elementos de Teologia, de Proclo (ÜBERWEG & HEINZE, 1927,
p. 285). A tentativa de aplicar o aristotelismo lógico à teologia leva à
condenação outro filósofo: Eustrato de Nicéia (c. 1050 – c. 1120) (LIBERA,
1998, p. 40-42). Este formulou uma teoria do Bem supremo como princípio
único de todos os seres; como o que possui o ser de maneira eminente e
antecipadamente. Entende que Deus tem em si mesmo, antes da criação, de
maneira supraintelectual e supraessencial, as ideias de todas as coisas.
Colaborou para formar a doutrina dos três estados do universal, importante
na escolástica medieval. O primeiro estado seria o universal ante rem (antes
da coisa): correspondente à ideia ou arquétipo do ente na mente de Deus. O
segundo estado seria o universal in re (na coisa): correspondente à forma
imanente das coisas. O terceiro estado seria o universal post rem (depois da
coisa): correspondente ao conceito geral abstrato, extraído a partir do
sensível pelo intelecto. Chegou a ser traduzido para o latim por Roberto
Grosseteste. Outro traduzido pelo mesmo autor latinófono foi Miguel de Éfeso
( + c. 1110) (LIBERA, 1998, p. 42-43). Junto com Eustrato, fez parte de um
círculo de filósofos reunido pela princesa Ana Comneno. Também ele
comentou escritos de Aristóteles. Contudo, o aristotelismo destes autores era
baseado numa leitura neoplatonizante do Estagirita. No século XII há certo
intercâmbio com o mundo latino na corte dos Comneno. Há filósofos latinos
em Constantinopla: Leão Toscano e Hugo Eteriano. Há também filósofos
latinos que traduzem textos filosóficos do grego para o latim. São os
chamados graecizantes. Entre eles aparecem os nomes de: Burgúndio de Pisa
80
(c. 1110-1193) e Tiago de Veneza, o primeiro tradutor medieval latino de
Aristóteles.
Em 1204 Constantinopla foi tomada pelos latinos na Quarta Cruzada. O
Império Latino de Constantinopla durou até o ano de 1261. Neste período, a
filosofia calou-se em Constantinopla. Extinguido o Estado e o ensino na corte
imperial, extingue-se também a produção filosófica. Entretanto, alguns
filósofos se refugiaram no Império de Nicéia. Dentre estes, Nicéforo
Blemnydes. Por este tempo, o filho do Imperador João III, Teodoro Dukas
Láscaris (que veio a ser Teodoro II) escreveu duas obras filosóficas de
importância: Sobre a unidade da natureza e Interpretação do universo. Após
a morte deste, Miguel VIII Paleólogo retoma Constantinopla (1261). Depois
da reconquista, outro filósofo se destaca: Jorge Paquímero, que comenta
Dionísio e a segunda parte do Parmênides de Platão. Também faz um resumo
da obra de Boécio. Jorge Paquímero se opôs à união entre as Igrejas Latina
e Grega levada a cabo, temporariamente, no concílio de Lião (1274) (LIBERA,
1998, p. 47-49).
7.5 A filosofia em bizâncio nos séculos XIV e XV
As atividades acadêmicas de Constantinopla renascem, no século XIV, com a
do Katholikon Museion (Museu Universal), sob o reinado de Andrônico II
(LIBERA, 1998, p. 49-59). Muitos ocidentais começaram a frequentar esta
instituição. Dentre estes, dois humanistas italianos: Francesco Filelfo e Enea
Silvio Picolomini (futuro papa Pio II). Este intercâmbio será essencial para o
Renascimento. No início do século XIV, os estudiosos bizantinos se dividem
em duas tendências, uma voltada para a física antiga e outra voltada para a
astronomia “moderna”. Nicéforo Chumnos (1250-1327), aristotélico convicto,
representa a primeira tendência, e Teodoro Metoquita (1270-1322), defensor
da astronomia ptolomaica, a segunda.
O que domina durante o século XIV é a controvérsia do hesicasmo ou
quietismo. A tensão, nesta querela, é entre racionalismo e misticismo. O
hesicasmo fala da hesykhia (repouso, quietude) como uma experiência de
81
iluminação, semelhante à de Moisés no monte Horeb ou a da transfiguração,
experimentada pelos discípulos Pedro, Tiago e João no monte Tabor, e
também como uma experiência de visão da glória divina, que conduz à
deificação. Sua proveniência é antiga, remonta a Gregório de Nissa.
Entretanto, o próprio do hesicasmo medieval é o método de recolhimento
interior, exposto, por exemplo, por Simeão, o Novo Teólogo (949-1022). Este
método ensinava a “oração do coração” ou a “oração de Jesus”, aliado a uma
concentração da atenção da mente no umbigo, daí o fato de os místicos que
praticavam este método serem chamados de onfalopsíquicos (os que têm a
alma no umbigo). O maior adversário dos hesicastas foi Barlaam de Simara
(c. 1290- c. 1348). O maior defensor do hesicasmo, porém, foi Gregório
Palamás (1296-1359). A doutrina de Palamás é a reafirmação de uma tese
central da teologia bizantina: a deificação (théosis) do cristão. A disputa foi
vencida pelos hesicastas. Em 1368, com efeito, Gregório Palamás foi
canonizado. Barlaam foi condenado em 1341 e se refugiou no ocidente,
convertendo-se ao catolicismo e tornando-se bispo. Chegou a ensinar o grego
a Petrarca. Um nome de destaque na filosofia deste tempo foi Nicéforo
Gregora (c. 1265-1360), também conhecido como Nicéforo o filósofo.
Escreveu uma monumental História Romana (em 37 volumes), uma crônica
de 1204 a 1359. Critica tanto o palamismo como o antipalamismo. Negava a
distinção entre a essência divina e as suas “energias”, bem como a
possibilidade de qualquer conhecimento místico. Foi aprisionado por três anos
após a vitória do palamismo no sínodo de 1351. A doutrina de Gregório
Palamas, por sua vez, foi levada adiante por Nicolau Cabasillas (1320-1398).
Este, em sua obra intitulada Sobre a vida em Cristo, acentua a primazia, em
relação às obras exteriores, da consciência, da intenção e da boa vontade.
Dá mais importância ao amor e à renúncia de si do que aos exercícios
ascéticos. Valoriza sumamente a liturgia bizantina, com toda a sua teologia
simbólica.
A segunda metade do século XIV foi dominada pela controvérsia em torno ao
tomismo. A grande figura do tomismo bizantino é Demétrio Kydones (c.
1324-1397/1398). O principal adversário, por sua vez, é Calixto Angelikudes
(c. 1340-1420). Este, favorável ao palamismo, combate na doutrina de
Tomás a identificação entre a essência divina e suas perfeições e a tese
82
tomista de que os bem-aventurados irão ter uma visão da essência divina na
eternidade, embora ao homem peregrino neste mundo seja esta mesma a
visão algo impossível. Para Calixto esta visão da essência divina é por
princípio impossível, quer na temporalidade, quer na eternidade. A visão
beatífica é um ser iluminado pela glória divina e não um conhecimento da
essência de Deus.
O debate do século XV é dominado pela oposição entre platônicos e
aristotélicos. Do lado platônico, neste tempo, destaca-se Gemistos Pleton
(1355/1360- c. 1452). Do lado aristotélico, Jorge Escolário (c. 1405-1472),
que chegou inclusive a traduzir e comentar o De ente et essentia (Do ente e
da essência) de Tomás de Aquino.
Com a queda de Constantinopla sob o domínio dos turcos otomanos,
liderados por Maomé II, em 1453, muitos humanistas platonizantes
bizantinos migrarão para a Itália e ajudarão a constituir o
humanismo italiano renascentista, que se oporá ao aristotelismo
escolástico e reabilitará o helenismo pagão, fazendo irromper,
assim, o advento da modernidade propriamente dita.
83
Aula 08 – A filosofia nos mundos islâmico e judaico medieval
Vejamos, neste momento, como a filosofia viveu em terras do Islã.
Antes de tudo vamos estudar como a filosofia foi recebida,
aculturada e cultivada no Islã oriental. Depois vamos ver como ela
se fez presente no Islã ocidental, mais precisamente na Andaluzia, a
Espanha muçulmana. Vamos também estudar como a filosofia foi
cultivada pelos judeus medievais, especialmente por aqueles que
viveram no Islã nos tempos em que a filosofia mais floresceu.
8.1 A translação da filosofia para o Islã por obra de filósofos pagãos
e cristãos na Pérsia e na Síria
Durante a época omíada (661-750) a filosofia que se faz presente em terras
do Islã é cultivada por pagãos e cristãos (LIBERA, 1998, p. 70-77). Em Harran
os filósofos pagãos tomam o nome de sabeus, invocando vínculo com Ssabi,
que os muçulmanos consideravam filho de Hermes, tomado como um dos
profetas pelo Islamismo. Adaptam o aristotelismo ao contexto monoteísta.
Consideram como princípio de tudo uma mônada eterna e absoluta (Deus);
afirmam uma criação eterna e necessária, ou seja, afirmam a coeternidade
de causa e efeito (Deus-Universo) no ato criador e consideram a criação um
processo necessário, que se opera naturalmente, como os raios que emanam
do disco solar. Deus é a causa das substâncias imateriais, que são surgem
por meio de sua primeira emanação: a Inteligência. A Inteligência é a única
coisa saída imediatamente de Deus, pois do Uno só pode vir imediatamente
o único, não o múltiplo e este único, tese que remonta a Alexandre de
Afrodísia. Ora, este único é a Inteligência. Desta, por sua vez, emanam as
outras inteligências que são as substâncias imateriais e, por fim, as
substâncias materiais.
Os cristãos da Síria e da Pérsia, nestorianos e jacobitas, acolheram o domínio
muçulmano como uma libertação do poder imperial bizantino. Foram também
acolhidos, na condição de “protegidos” (dhimmi) do Império Islâmico.
84
Pagavam tributos, mas gozavam de liberdade para cultivar sua crença.
Enquanto o nestorianismo, ao afirmar a dualidade sem união das duas
naturezas de Cristo, convergia bem com o zoroastrismo persa,
essencialmente dualista; o jacobismo, monofisita, ao afirmar uma única
natureza em Cristo, vinha a calhar bem com o islamismo. Em todo o caso,
ambos as dissidências cristãs encontraram abrigo e espaço no islamismo. Do
século VII ao X eles vão levar adiante o cultivo da filosofia e também da
medicina. Alfarabi e Avicena foram alunos de cristãos. Enquanto a princípio
os sírios mais davam do que recebiam, do ponto de vista cultural, ao fim o
que acontecia era o contrário, os sírios mais recebiam da cultura islâmica do
que davam. Os principais comentadores de Aristóteles entre os sírios foram:
Jorge dos Árabes (+724), ‘Ishobokht (+ c. 780), Davi bar Paulos (+ c. 785),
Moses bar Kepha (+ 903). Entre os jacobitas destacam-se os tradutores de
Aristóteles para o siríaco, refugiados num mosteiro junto ao rio Eufrates,
chamado Qenneshrin, a saber: Severo Sebokht (+ 666/667), Atanásio de
Balad (+ 686) e Tiago de Edessa (+ 708). João Damasceno (+ 754) chegou
a viver sob o domínio muçulmano, no reinado de Omar II (717-720), que era
hostil aos cristãos. Refugiou-se, então, no mosteiro melquita helenófono de
São Sabas e tornou-se o teólogo do patriarca de Constantinopla, João V,
durante a controvérsia do iconoclasmo. O Imperador iconoclasta Constantino
Cropônimo conseguiu sua anatematização no concílio de Hieréia e o
ridicularizou trocando o seu sobrenome árabe de Mansur (vitorioso) para
manzer (bastardo), colocando-o, assim, sob a sombra do islamismo. João
Damasceno escreveu uma Controvérsia entre um muçulmano e um cristão.
8.2 A aculturação da filosofia no Islã
O intercâmbio cultural entre islamismo e cristianismo nestoriano e jacobita
(monofisita) foi significativo. Atesta-o a correspondência entre o líder
nestoriano Timóteo e o califa al-Mamum (813-833). Na era abássida (750-
945/946) acontece uma efetiva aculturação da filosofia entre os árabes
(LIBERA, 1998, p. 77-96). Ao fim deste período, os filósofos, cristãos e
muçulmanos, se expressam em língua árabe. Se o Aristóteles siríaco é apenas
o Aristóteles lógico, o Aristóteles árabe é o Aristóteles integral, incluindo até
85
mesmo obras apócrifas e pseudoepígrafas. Segundo Ibn al-Nadîm, o próprio
Aristóteles teria aparecido em sonho ao califa para exortá-lo a reunir em
Bagdad os seus manuscritos e os dos grandes filósofos gregos. O califa
obedeceu ao seu sonho e mandou várias embaixadas culturais a Bizâncio e
conseguiu reunir os textos de Aristóteles e de seus comentadores da tarda-
antiguidade. Assim, desde 830 funcionava, em Bagdad, uma instituição
chamada Bayt al-hikmah (“Casa da Sabedoria”), que reunia todos os
tradutores da época. Formados no aristotelismo de tradição siríaca, o grupo
de tradutores incluía cristãos e não cristãos. Além das obras autênticas foram
também traduzidas obras apócrifas, que foram postas em circulação sob a
autoria de Aristóteles: entre estas, o Livro do Bem Puro, conhecido no
ocidente com o nome de Liber de causis (Livro das causas) e a Teologia dita
de Aristóteles. A fonte principal do Livro do Bem Puro (ou Livro das Causas)
é Elementatio theologica (Elementos de Teologia) de Proclo. A Teologia de
Aristóteles é, na verdade, um texto que remonta aos ensinamentos de
Alexandre de Afrodísia, de Plotino e de Proclo. Algum texto de Platão, ao
menos a República, parafraseada por Averróis, foi traduzido também, mas
não chegou até nós. Também foram traduzidos textos apócrifos de Platão,
como o Testamento de Platão para a educação dos jovens e tratados de
alquimia. Parte considerável das Enéadas de Plotino também foi traduzida.
Nas traduções, os tradutores se dividiram entre aqueles que traduziam
palavra por palavra (tradução ad verbum: voltada para a palavra ao pé da
letra) e aqueles que buscavam antes o sentido da frase e traduziam para uma
frase que dissesse este sentido em árabe, sem se preocupar com uma
correspondência verbal (tradução ad sensum: voltada para o sentido da
frase). Os tradutores cristãos de Bagdad não somente traduziam para o árabe
como também escreviam uma obra própria também usando o árabe como
língua. Entre estes se destaca Yahyâ ibn Adi (893/894-974), denominado de
“o lógico”, pelos árabes. O objeto da lógica é constituído pelos sons vocais
que significam coisas universais (o que Aristóteles chama de ta katholou: os
universais), isto é, os gêneros, as diferenças, as espécies, os próprios e os
acidentes comuns. O objetivo da lógica consiste em conectar os ditos signos
com a realidade por eles designada. A esta apresentação do estatuto da lógica
segue uma concepção de verdade: a verdade proposicional, que consiste na
86
adequação entre a coisa e o intelecto (adaequatio rei et intellectus, dirão os
latinos).
Os primeiros séculos islâmicos procederam, pois, a uma aculturação da
filosofia ao mundo muçulmano: nasce a falsafa (filosofia, em árabe) (LIBERA,
1998, p. 97-103). No século VIII desenvolveu-se uma teologia propriamente
enraizada na tradição religiosa do Profeta Maomé, chamada de kalâm. Não
se trata de uma teologia como ciência dos mistérios da fé, do tipo do que
acontecia no mundo cristão. O kalâm surge como uma apologia da tradição
religiosa em face aos ensinamentos filosóficos gregos que contradiziam a
doutrina islâmica e aos ensinamentos dos cristãos e, ao mesmo tempo, uma
leitura jurídico-religiosa. Os que cultivavam o kalâm se chamavam
muttakallimûn e se dividiam em escolas, como os mutazilitas (de mutazila:
os isolados) e os seus adversários, os asharitas (partidários de Abû’l-Hasan
al Ashari). Os mutazilitas, surgidos a partir da separação de Wâsil ibn Ata (+
c. 750) em relação a seu mestre Hasan al-Basri (+ c. 730), defendiam cinco
teses: 1. A unidade absoluta de Deus. 2. A justiça divina. 3. A promessa e a
ameaça. 4. A morada entre as duas moradas, ou seja, a situação do crente
em estado de pecado, que não se encontra nem fora da fé nem dentro da fé.
5. A obrigação para o crente de ordenar o bem e proibir o mal. O principal
adversário dos mutazilitas foi Ashari (874-935). Defendia que o Corão era a
palavra eterna e incriada de Deus, colocando, assim, outro princípio junto de
Deus, ameaçando, segundo a visão dos mutazilitas, a unidade da substância
divina. Afirma a existência de atributos divinos, inclusive a onisciência divina
(negada pelos mutazilitas). Também defende que, na eternidade, o homem
poderá ter a visão da essência divina, tese rejeitada pelos mutazilitas e
também por boa parte dos teólogos bizantinos e defendida por Tomás de
Aquino. No campo moral, afirmava que o homem não é propriamente criador
de seus atos, mas somente “adquirente”.
Estante do saber
87
Filosofia Árabo-Islâmica (Breve relance histórico)
(http://www.lusosofia.net/textos/sidarus_adel_filosofia_no_islao.pdf)
, de Adel Sidarus.
Falsafa – a filosofia entre os árabes
(http://falsafa.dominiotemporario.com/doc/FALSAFA_LIVRO_PAG_NE
T.pdf), de Miguel Attie Filho.
8.3 Al Kindi
Al Kindi (800-866) é o primeiro filósofo muçulmano (LIBERA, 1998, p. 103-
107; ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 303-304; HEINZMANN, 1992, p. 145-
146). Foi chamado de o “filósofo dos árabes”. Ele procura mostrar a não
contradição entre a concepção filosófica de Deus e a da mensagem corânica.
Afirmava que o sentido da filosofia é tornar o homem, tanto quanto for
possível, semelhante a Deus. Mais próximo dos mutazilitas, para ele Deus é
o Uno Verdadeiro, transcendente a todo o predicado, um ser causal
absolutamente simples, ao qual não se aplica nenhuma categoria ou atributo.
Com seu Tratado sobre o Intelecto, ao comentar o De anima (Da alma) de
Aristóteles, mais especificamente o livro III, Al Kindi introduziu toda uma
discussão sobre o intelecto agente, que doravante vai percorrer toda a
história da filosofia medieval. O pano de fundo do problema é o da relação
entre experiência e intelecto. Al Kindi distingue a partir de sua leitura de
Aristóteles alguns “momentos” que constituem o intelecto ou a atividade
intelectual. Primeiramente, afirma que a alma intelectiva é imaterial e
impassível. Depois, que o intelecto é em si mesmo vazio de todas as coisas.
Enquanto pensa todas as coisas, distingue-se no intelecto um princípio ativo,
o intelecto agente (nous poietikos) e um princípio receptivo, o intelecto
passivo (nous pathetikos). O intelecto agente se dá como pura
espontaneidade e como atividade essencial e permanente. A estes dois
momentos ou princípios do intelecto, um ativo e outro receptivo, Al Kindi
acrescenta um terceiro, que corresponde ao momento em que o intelecto
alcança o saber, ou seja, o “intelecto adquirido” (intellectus adeptus, dirão os
latinos). Há também um quarto momento, o “intelecto demonstrativo”
(intellectus demonstrativus), que é a visão da íntima relação entre as
88
premissas e as conclusões. Al Kindi foi visto, no governo do califa al-
Mutawakil, como “pagão” ou “grego”, foi perseguido e suas obras foram
confiscadas. Tendo demonstrado sua ortodoxia dentro da tradição religiosa
islâmica, recebeu-as de volta.
8.4 Alfarabi
Outro fundador da filosofia entre os muçulmanos foi Alfarabi (870-950)
(LIBERA, 1998, p. 112-116; ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 304-307;
HEINZMANN, 1992, p. 146-147). Nasceu no Turquestão, estudou lógica com
os mestres cristãos de Bagdad e terminou os seus dias em Damasco. Foi
chamado de “Segundo Mestre” (o primeiro era Aristóteles). Era um sufi. O
sufismo era uma corrente ascética e mística islâmica, nascida no século VIII.
No século IX, porém, sofreu grandes perseguições por parte da ortodoxia
sunita. Ensinava a doutrina de um retorno ao Princípio divino através do
aniquilamento de tudo o que distingue a alma humana de seu Criador.
Também ensinava a doutrina da união do homem com Deus pela inabitação
de Deus no homem. Deus fala na alma do homem que se une a ele
perfeitamente e esta palavra que habita na alma é uma palavra de Verdade.
Trata-se de doutrinas que conhecem certa analogia no ensinamento de
místicos cristãos, como Mestre Eckhart, por exemplo. Alfarabi ensinou a
contingência de todas as coisas, apresentando a tese da diferença entre
essência e existência, que será retomada por Tomás de Aquino. Nas coisas
criadas, a essência não é a existência. O ser que ela é, a criatura recebe,
assim como recebe também o fato de existir. A essência é o universal que se
concretiza numa existência singular, num indivíduo. As coisas do universo
não têm o movimento a partir delas mesmas, mas o recebem do primeiro
movente imóvel, que é Deus. O movimento do universo vem de Deus e
retorna para ele. Alfarabi combina a doutrina da criação, comum ao
islamismo, ao judaísmo e ao cristianismo, com a doutrina da emanação,
própria do neoplatonismo (Plotino). O Primeiro é aquele de quem procede o
ser. Ele tem o ser como aquilo que lhe é próprio. Tudo o que é recebe dele o
ser, como por uma efusão, irradiação ou emanação. Do Primeiro, que é o
Uno, provém o Primeiro Intelecto, que anima o primeiro céu. Daí advêm
89
também as demais inteligências, que animam as esferas celestes, até a
décima Inteligência, que anima e governa o mundo sublunar, isto é, o mundo
do devir, quer dizer, do surgir e perecer. Esta décima Inteligência é o
Intelecto Agente, que também leva o homem a conhecer. Alfarabi atribui um
conhecimento do universal e do individual tanto ao sentido quanto ao
intelecto. Diversamente da opinião comum – singulare sentitur, universale
intelligitur (o singular é sentido, o universal é entendido) – afirma que há um
conhecimento do universal pelos sentidos e um conhecimento do individual
pelo intelecto. A tese de um conhecimento intelectivo do singular será
retomada, no mundo latino, por Duns Scotus e Guilherme de Ockham. A
iluminação do Intelecto Agente é que possibilita ao homem abstrair o
universal e apreendê-lo no conceito. O intelecto humano passa, assim, de
uma condição potencial (in potentia), para uma atual (in effectu) e, por fim,
alcança sua consumação na plena aquisição do saber (adeptus ou acquisitus).
A doutrina aristotélica do intelecto, portanto, em Alfarabi, sofre uma
reinterpretação em sentido neoplatônico e cosmológico.
8.5 Ibn Sina (Avicena)
Um dos maiores nomes da filosofia do Islã é Avicena (LIBERA, 1998, p. 117-
124; ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 307-310; HEINZMANN, 1992, p. 148-
149). Ibn Sina ou Avicena (980-1037), médico e filósofo, viveu em
Hamadhân, na Pérsia (hoje Irã), onde chegou a ser vizir (wazîr: aquele que
carrega o fardo) do príncipe buída Shams al-Dawla. Foi aprisionado por um
tempo após a morte deste. Sua obra mais famosa foi o Kitâb al-Shifâ’ (Livro
da cura), uma obra enciclopédica, que abrangia todas as ciências particulares
de seu tempo bem como a filosofia. Foi chamado de “Terceiro Aristóteles” (o
segundo foi Alfarabi). O seu primordial interesse é a metafísica. Em sua
Autobiografia, Avicena diz ter lido quarenta vezes a Metafísica de Aristóteles
sem ter compreendido. Já em desespero, foi salvo pela leitura de Desígnio da
Metafísica, obra de Alfarabi, que lhe iluminou o entendimento da obra de
Aristóteles. A metafísica de Avicena é um tema de particular importância na
história da filosofia medieval. Metafísica é a ciência do ente enquanto ente,
ou seja, do ente no tocante ao seu ser. O ser é o que por primeiro é
90
apreendido e compreendido em toda relação do intelecto com o ente. Em
sentido pleno, ente é aquilo que é necessário, isto é, aquilo que é e não pode
não ser. O ente necessário é o que é por si e a partir de si mesmo (o que os
latinos chamarão de ens a se). Este ente se chama Deus. Divergindo do
neoplatonismo, Avicena diz que Deus é o Uno e o Ser; o neoplatonismo dizia,
com efeito, que Deus estava acima e além do ser. Esta diferença se entende
porque o neoplatonismo entende o ser como ser-determinado e como
correlato do pensamento. Ora, se Deus, o Uno, está acima do pensamento,
então está também acima do ser. Entretanto, para Avicena, o Uno vigora
como a plenitude do próprio ser, uma vez que é o ser necessário. Em Deus,
essência e existência são o mesmo. Essência designa o “o que é” o ente, a
sua natureza, e existência, o “que é”, o ato ou o fato de ser. Há também o
ente não necessário, o ente contingente, que é, quando poderia ou pode não
ser (os latinos chamarão de ens ab alio, ente a partir de outro, visto que este
ente, para ser, precisa receber o próprio ser, isto é, a essência e a existência).
Contudo, Avicena entende que o ato criador de Deus, que ele interpreta como
uma emanação ou processão, é um processo necessário, eterno e feito por
mediações. Já os pensadores cristãos medievais vão ressaltar que este ato é
livre, temporal e contingente (Deus podia não ter criado o mundo), como
também imediato (Deus cria diretamente cada coisa). Não obstante sua
dependência de Deus o mundo é eterno, pois a emanação do mundo a partir
do Uno é eterna, junto com o Uno.
Do Uno vem o um e não o múltiplo. O primeiro que procede do Uno é a
Inteligência primordial, que contém em si as ideias das coisas todas. Desta
Inteligência, pois, procedem as demais Inteligências. Como Alfarabi, também
Avicena interpreta as Inteligências cosmologicamente, como substâncias
espirituais que animam e regem as esferas celestes. A última Inteligência
emanada é o Intelectus Agens, o intelecto agente. Este é a origem do mundo
visível. Ele dá a cada coisa do mundo visível o seu ser, isto é, a sua essência.
Ele é o doador das formas (dator formarum), sendo a forma, entendida como
essência ou modo de ser determinante, o momento de inteligibilidade de cada
coisa. O elemento determinado pela forma é a matéria. A matéria é o
princípio da multiplicidade e da pura potencialidade e, enquanto princípio, é
eterno. A matéria, enquanto princípio de potencialidade, responsável pelo
91
devir, isto é, pelo surgir, mas também pelo perecer das coisas. Se a forma é
princípio de unidade e de identidade no ser, a matéria é princípio de
multiplicidade e de alteridade. Ela pela matéria que as coisas vêm a ser como
muitas e como diversas. É pela matéria que uma espécie se multiplica em
indivíduos numericamente diversos. Por isso, a matéria é também princípio
de individuação: aquilo pelo que o indivíduo se torna este indivíduo e não
outro. O singular traz em si algo de genérico, de específico e de acidental:
por exemplo, Sócrates é animal, é homem e é este indivíduo aqui, que se
chama pelo nome próprio de Sócrates. O genérico e específico são dados pela
forma. O acidental-individual é dado pela matéria.
Há três maneiras de a forma subsistir: na mente divina, nas coisas e no
conceito do intelecto humano. A forma ou essência, por um lado, é uma ideia
na mente do ente necessário, Deus. Ela ali tem a sua subsistência originária.
Por outro lado, ela se dá em cada coisa, como momento imanente e
integrante de cada coisa, sendo aquilo que define o ser da coisa. A forma ou
essência é, portanto, transcendente (em Deus) e imanente (na coisa). Em si
mesma, a forma não é nem singular, nem universal. Ela se torna universal
no intelecto humano que a apreende graças à atuação originária do Intelecto
Agente. É o Intelecto Agente quem responde pela abstração inicial da forma,
entendida como espécie inteligível da coisa. Nosso intelecto humano recebe
a forma abstrata da coisa, abstraída justamente graças à atuação do Intelecto
Agente, e a compreende como o elemento inteligível, único e idêntico, válido
para vários indivíduos, sendo aquilo pelo que vários indivíduos são
semelhantes e pertencem a uma mesma espécie. A semelhança entre várias
espécies, por sua vez, produz o conceito de gênero. Aquilo, porém, pelo qual
as espécies se distinguem, é a diferença específica. Espécie, gênero e
diferença específica são conceitos universais, isto é, são conceitos que valem
para muitos indivíduos. O conceito se dá como modo de referência do
intelecto com aquilo que o intelecto apreende e compreende. Avicena
distingue dois modos de o intelecto se relacionar com o ente. O intelecto pode
se dirigir para as coisas reais. Então temos o conceito das coisas (os latinos
chamariam isso de intentio prima: intenção primeira). A física se move neste
plano ou dimensão do conceito, pois na física se opera com conceitos das
coisas. O intelecto, porém, pode se dirigir aos conceitos e operar com
92
conceitos de conceitos (este direcionamento os latinos chamam de intentio
secunda – intenção segunda – como “intentio logica” – intenção lógica). A
lógica trata de conceitos de conceitos, como espécie, gênero e diferença.
O homem é um composto de matéria e forma como todos os outros entes do
mundo visível. A matéria é o corpo, a forma, a alma. A alma é, pois, a forma
do corpo. A forma aqui é entendida como entelekheia, princípio de
consumação. Ou seja, é a alma o princípio pelo qual o corpo se forma, isto é,
surge, cresce e se consuma, alcançando sua perfeição. Avicena entende o
homem como um composto cuja unidade é substancial. Isso quer dizer: o
homem não é a unidade de duas substâncias diversas, corpo e alma, mas a
unidade de uma única substância, que é composta de corpo e alma. Avicena
rompe, pois, com a tradição dualística platônica, seguindo a concepção da
unidade substancial do composto humano, apresentada por Aristóteles.
Foi grande a influência de Avicena no mundo cristão. Suas obras foram
traduzidas com grande interesse, na Espanha, por Domingos Gundissalino
juntamente com o judeu Avendeath-Avendehut-ibn-David. Roger Bacon o
considerava o “chefe e príncipe dos filósofos”. Alberto Magno e Tomás de
Aquino incorporaram muito de sua filosofia. Duns Scotus o tem como uma
das autoridades mais consideradas na metafísica. Apesar das reservas e
mesmo oposições, devido à concepção emanacionista de um mundo eterno,
o pensamento nos séculos XIII e XIV do ocidente seria impensável sem
Avicena.
Estante do saber
A filosofia primeira (1ª Parte
http://falsafa.dominiotemporario.com/doc/tiraz_2_alkindi_1.pdf) (2ª
Parte
http://falsafa.dominiotemporario.com/doc/alkindi_2_de_3_tiraz.pdf)
(3ª Parte
http://falsafa.dominiotemporario.com/doc/alkindi_3_3_pagina_falsaf
a.pdf), de Al-Kindi.
93
O livro a respeito dos princípios das opiniões dos habitantes d’ A Cidade
Excelente (I-VI) (http://falsafa.dominiotemporario.com/doc/al-
madina_1_6_Tiraz.pdf), de Alfarabi.
Alma e intelecto em Ibn Sina (Avicena)
(http://revista.institutohypnos.org.br/arquivos/14/artigo6.pdf), de
Miguel Attie Filho.
Entrevista de Miguel Attie Filho sobre o Livro da Alma de Avicena: (1ª
Parte http://www.youtube.com/watch?v=LcA2M36g_O0) (2ª Parte
http://www.youtube.com/watch?v=KTke1en5GX0&feature=related)
8.6 A contraofensiva dos teólogos: Sarrastani e Algazali
No século XI, em 1055, termina a era dos abássidas e os califas perdem o
poder diante dos sultões turcos, começando, assim, a era dos seljúcidas. Os
sultões favoreceram a teologia sunita, fundando escolas chamadas de
Madrasas, colégios de ensino do direito e das ciências úteis à religião. Com o
fortalecimento dos teólogos sunitas, a ofensiva se volta contra Avicena e os
filósofos, bem como contra os xiitas. Dois nomes se destacam nesta ofensiva
dos teólogos: Algazali e Sarrastani (LIBERA, 1998, 124-129). Este último,
Sarrastani (1086-1153), escreveu um livro, Luta contra os filósofos (Kitâb
Musâra’at al-falâsifa) e também outro, intitulado Livro das religiões e das
seitas. O alvo da luta de Sarrastani é principalmente Avicena. Nega que possa
haver “filósofos muçulmanos”. A filosofia dos filósofos que atuam nas terras
do Islã representa para ele uma ruptura com a tradição religiosa islâmica,
com o Livro, a Revelação e a Profecia. A filosofia e os filósofos são
apresentados com estranhos ao Islã. A aceitação dos filósofos pagãos da
antiguidade no mundo cultural do Islã lhe parece uma aberração. Do ponto
de vista do conteúdo, Sarrastani ataca, por exemplo, a incoerência de
Avicena, de propor a concepção de Deus como o Único e de apresenta-lo, ao
mesmo tempo, de maneira triádica, ou seja, como pensamento, pensante e
pensado. A filosofia de Avicena teria, assim, a mesma dificuldade que a
teologia cristã: conjugar, em Deus, a unidade e a triplicidade. Apesar de
ferrenho opositor da filosofia e dos filósofos, Sarrastani, porém, tinha um
agudo senso filosófico. Era justamente com este agudo senso filosófico que
94
ele combatia a filosofia e os filósofos, sobretudo Avicena. Para combater à
altura a filosofia é preciso filosofar. É o que aconteceu de certa maneira com
Sarrastani, mas é também o que aconteceu de maneira ainda mais forte com
Algazali (LIBERA, 1998, p. 124-127; ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 310-312;
HEINZMANN, 1992, p. 149-150) .
Algazali (Abu Hamid Muhamamad ibn Muhamad ibn Tawus Ahmad Al-Tusi al-
Shafi) (1058-1111), era um homem religioso – ele era sufi – dedicado a
combater os filósofos e a filosofia do Islã, em especial Avicena. De espírito
místico, dizia que não existe nenhum “ele” a não ser “Ele”, Deus. Algazali
nasceu em Tubaran, lecionou em Bagdad, em Hamadan e em Tus. Jurista e
teólogo, ele admitia as ciências úteis à religião, mas combatia a filosofia como
nociva. Entretanto, para combater a filosofia, ele mesmo filosofou e deixou
um contributo importante para a história da filosofia. Na verdade, Algazali
não combatia a racionalidade como tal, mas sim o estilo de racionalismo que
se concretizou na filosofia dos filósofos do Islã. O resultado paradoxal é que,
combatendo racionalmente o racionalismo dos filósofos, ele contribuiu com a
filosofia. O êxito desta empreitada acabou sendo uma filosofia cética. A obra
em que Algazali realiza este combate se divide em duas partes: a primeira se
intitula Maqâsid al-Falâsifa (As intenções dos filósofos); a segunda, por sua
vez, se intitula Tahâfut al-falasifa: pode-se traduzir por “A incoerência dos
filósofos” ou ainda como “O esboroamento dos filósofos”. No medievo latino
ela foi traduzida como Destructio philosophorum (A destruição dos filósofos).
Os pontos da religião que Algazali considerava mais ameaçados pelos
filósofos eram: a criação temporal do mundo a partir do nada, a realidade
dos atributos divinos, o conhecimento divino das coisas particulares, o
milagre e a ressurreição do corpo. Algazali primeiramente expõe as teses dos
filósofos tais como elas se apresentam, sem refutá-las. Sua exposição é tão
fiel, que em muitos leitores latinos, cujos manuscritos eram incompletos,
criou a impressão de que Algazali tivesse sido o mais fiel discípulo de Avicena,
o mesmo que ele queria combater! A exposição das teses dos filósofos
envolve a lógica, a física e a metafísica. Na metafísica, Algazali organiza as
teses em torno de três temas: o mundo, a alma, Deus. Mais tarde, na
metafísica escolar elaborada por Wolff e Baumgartner, fontes de Kant, a
metafísica se articulará, justamente, em três disciplinas que serão chamadas
95
de metafísicas especiais: a cosmologia, que trata do mundo; a psicologia, que
trata da alma; e a teologia, que trata de Deus. Os argumentos de refutação
das teses dos filósofos, usados por Algazali, conduzem a uma filosofia cética.
Algazali parte do pressuposto de que os artigos de fé não podem ser
demonstrados racionalmente, mas não também não podem ser refutados
racionalmente. Mas, querendo deixar aberta a possibilidade daquilo que a
religião afirma, Algazali procura combater uma compreensão racionalista da
realidade. Neste sentido, ele ataca o eixo da concepção racionalista, que é o
princípio de razão suficiente (tudo tem uma razão), mais exatamente, ele
ataca o princípio de causalidade (tudo tem uma causa), combatendo uma
concepção da realidade que encara todo o processo como necessário, e que
não deixa espaço para a ação divina no mundo. Quando o filósofo afirma, por
exemplo, que o fogo é a causa eficiente da combustão de alguma coisa, ele
está dizendo demais. A experiência não mostra nada de causalidade, ou seja,
o advir de uma coisa a partir de outra coisa. A causalidade é uma suposição
da mente do homem. Observamos que com o fogo advém a combustão. Não
observamos que do fogo advém a combustão. O nexo de causalidade é uma
ilação que extrapola o observado, o campo da experiência. Podemos
conhecer que algo aparece com o aparecimento de outro algo, ou que algo
aparece após o aparecimento de outro algo, mas não podemos observar que
algo aparece a partir do aparecimento de outro algo. Na verdade, o fogo é
apenas uma ocasião para o aparecimento da combustão. Não é a sua causa
mais própria, muito menos a sua causa única. Deus é, na verdade, a única
causa de tudo o que acontece. Tudo o mais, que consideramos causa dos
eventos na realidade, é apenas ocasião e não propriamente causa. Esta
doutrina antecipa o ocasionalismo de Malebranche. Por outro lado, a negação
do princípio de causalidade antecipa o ceticismo de Hume.
Algazali ainda deixou uma importante contribuição com o seu Livro das
religiões e das seitas, uma renovação das ciências da religião. No âmbito da
religião, acentua a importância da vontade. Em lugar do racionalismo,
emerge o voluntarismo, ou seja, a afirmação do primado da vontade sobre o
intelecto. Ali também defende o poder miraculoso de Deus, sua liberdade e
transcendência, ou seja, sua não submissão à necessidade cósmica.
96
No Islã oriental, Algazali foi o último grande pensador. Outros que vieram
depois são menos conhecidos, ao menos no ocidente (LIBERA, 1998, p. 129-
137). Abul Barakat Al-Bagdadi (+ c. 1164), judeu convertido ao islamismo,
trouxe importantes contribuições para a lógica. Sua teoria da lógica é muito
semelhante à do nominalismo do século XIV do ocidente, especialmente à de
Guilherme de Ockham. Escreveu também um comentário ao livro bíblico do
Eclesiastes. Abd al-Letif al-Bagdadi (+ 1231) reinterpretou a estrutura onto-
teo-lógica a metafísica aristotélica segundo esquemas neoplatônicos.
Aristóteles é extremamente platonizado, lido segundo a chave interpretativa
de Plotino e Proclo. Nele, aparece uma concepção do Logos, que lembra
aquela dos pensadores cristãos, desde Justino. A Inteligência que provém da
fonte primeira, do Uno, é o Logos. Ele rege todas as coisas. Tudo o que existe
conhece nele e por ele o que lhe convém: seres inanimados e animados,
plantas e animais. É também por ele que a alma racional conhece o
verdadeiro e nele repousa. Ele é a providência divina espalhada por todo o
universo. É o grande Nomos: a lei divina que tudo rege. É a luz do Deus
altíssimo, pelo qual tudo passa a ser o que lhe é próprio e o que lhe incumbe.
Com as invasões mongóis, iniciadas em 1242, o Islã oriental sofre um forte
abalo, também no âmbito cultural. Durante o tempo de recuo ante à ameaça
mongol, que trazia destruição e provocava o êxodo de inteiras populações, o
islamismo oscila entre o xiismo e o sunismo. Depois que o Islã oriental se
recompõe, a filosofia já não é mais criativa. A herança de Avicena é a única
que se impõe e os filósofos são apenas epígonos.
8.7 A filosofia no Islã ocidental
Paralelamente e além do desenvolvimento da filosofia no Islã oriental, foi se
dando outro desenvolvimento no Islã ocidental, especialmente na Espanha
muçulmana, ou seja, na Andaluzia, que se tornou um dos maiores centros
culturais da Idade Média.
97
8.7.1 Os iniciadores da filosofia na Espanha muçulmana
A contribuição mais significativa ocorreu entre os séculos X e XII. O primeiro
grande pensador da Andaluzia foi Ibn Hazm (994-1064), que viveu na época
do califado de Córdoba (LIBERA, 1998, p. 145). Foi jurista e crítico das
interpretações jurídicas de seu tempo. Dividiam as opiniões dos pensadores
entre aqueles os partidários da eternidade do mundo e os que defendiam sua
adventicidade. Entre os primeiros estão os falâsifa (filósofos), que afirmam
uma criação eterna. Entre os segundos, há os que admitiam vários criadores,
como os maniqueus, que admitem dois princípios, um do bem e outro do mal,
e os cristãos (que são triteístas na ótica muçulmana); há também os que
admitem um único criador, como os judeus e os muçulmanos. De 1086 a
1147 a Espanha vive sob o domínio dos “almorávidas”. Originariamente,
estes constituíam uma comunidade ascética e militar, consagrada à oração e
ao djihâd (guerra santa). Ibn Badjdja (+ 1139), conhecido no mundo latino
como Avempace, viveu em Saragoça e foi vizir na época do governador Ibn
Tifalwit (LIBERA, 1998, p. 151-156). Em uma obra intitulada O regime do
solitário realiza uma versão do bios theoretikos (vida contemplativa) de
Aristóteles dentro do contexto político do Islã. Procura tematizar o estilo de
vida que deve levar o cidadão ideal que só tem poder sobre si mesmo, ou
seja, o modo de vida do homem que antecipa, na cidade real, a vida que seria
a sua, na cidade ideal. Este cidadão é um homem solitário, que funda, porém,
uma comunidade espiritual de homens solitários, saídos da massa. É o
homem que se eleva do conhecimento sensível para o inteligível; melhor, do
conhecimento inteligível abstrativo para o conhecimento inteligível intuitivo
(conhecimento das Inteligências Separadas). Mais ainda: é o homem que se
une ao Intelecto Agente separado e que, em sua inteligibilidade, conhece-se
a si mesmo. Enfim, é o homem divino simplesmente. De 1147 a 1269 a
Andaluzia foi governada pelo almôadas, de origem marroquina. O pai da
filosofia nesta era foi Ibn Tufayl, mas o seu maior representante foi Ibn Ruchd
ou Averróis. Ibn Tufayl (+ 1185) diz que há uma sabedoria e uma beatitude
maior do que a propugnada por Ibn Badjdja (Avempace). É quando a ascese
intelectual é substituída pelo êxtase. A união ou conjunção (ittisâl) com o
Intelecto Agente separado se alcança para além de toda especulação. A mais
plena visão se dá quando o fundo (sirr) do homem se torna o espelho de
98
Deus. Passa-se, assim, do conhecimento especulativo-discursivo para o
conhecimento sapiencial, isto é, que consiste em saborear o divino. Há
paralelos desta concepção, no mundo cristão, em Agostinho e na tradição
agostiniana em geral, como em Alexandre de Hales e Boaventura, que
propugnam a superioridade do intellectus (intelecto) e da intelligentia
(inteligência) acima da ratio, ou seja, da razão como capacidade de
conhecimento abstrativo-discursivo, bem como a superioridade da sapientia
(sapiência, sabedoria, no sentido de um conhecimento que saboreia o divino)
sobre a scientia (ciência, conhecimento especulativo).
8.7.2 Ibn Ruch (Averróis)
Ibn Ruchd ou Averróis (1126-1198) foi o filósofo do Islã de maior influência,
mas também o mais contestado (LIBERA, 1998, p. 164-185; ÜBERWEG &
HEINZE, 1927, p. 313-322; HEINZMANN, 1992, p. 150-152). Estudou direito,
medicina e teologia. Foi juiz e médico. Nasceu e viveu em Córdoba. Após sua
atividade como filósofo, porém, foi exilado em Lucena (Elisama), seus livros
foram queimados e morreu longe de sua terra natal, em Marrakesh. Sua
vocação aristotélica, porém, começou graças a um desejo do soberano Abu
Yaqub Yusuf, que reclamava ao filósofo Ibn Tufayl do fato de Aristóteles ser
incompreensível. Ibn Tufayl já se sentia muito velho para pôr-se na
empreitada de comentar o Estagirita. Por isso, pediu ao seu mais brilhante
aluno que o fizesse. E essa foi a missão da vida de Ibn Ruchd, que a cumpriu
de bom grado. Averróis foi chamado de “O comentador” (por antonomásia)
de Aristóteles. Como tal, procurou neutralizar os elementos neoplatônicos
que interferiam na interpretação dos textos de Aristóteles. Seu objetivo era
alcançar o sentido exato destes textos e torna-los acessíveis aos outros.
Escreveu três tipos de comentários: pequenos, médios e grandes. É
sobretudo nos pequenos comentários (resumos, chamados no mundo latino
de sumas ou epítomes), que ele expõe seu próprio pensamento.
Averróis defende a tese de uma criação eterna. A criação é um processo
eterno e necessário, que procede do Primeiro Movente imóvel (Primus motor
imobilis). Não há, portanto, uma criação do nada (ex nihilo), livre e temporal.
99
Esta Causa Primeira é vista, pois, como parte da própria realidade do
universo, embora seja inacessível ao conhecimento imediato do homem. Para
Averróis, a imortalidade da alma é indemonstrável pelos recursos da própria
razão. Somente a revelação (a Profecia, o Alcorão) a atesta. Do ponto de
vista da razão, pode-se afirmar que a alma é forma do corpo e que, como tal,
é passageira como ele. Embora a essência ou gênero humano seja eterno, o
indivíduo é mortal. A afirmação de uma impossibilidade de demonstração
racional da imortalidade da alma e da criação, sem, contudo, negar a
revelação divina presente no Livro da Profecia (Alcorão), deu aos cristãos a
impressão de que Averróis propugnasse uma dupla verdade contraditória, ou
seja, a verdade da razão, que nega a imortalidade e a criação, e a verdade
da fé, que afirma o que aquela nega.
Para Averróis, a alma individual é a sensitiva. Esta alma, no processo do
conhecimento, une-se ao intelecto, que opera nela. Este é o chamado
intelecto hílico (material). O intelecto hílico é um mediador entre o indivíduo
humano e o Intelecto Agente separado. O intelecto hílico, de fato, está
potencialmente voltado para a união com os indivíduos humanos (almas
sensitivas existentes), mas, por outro lado, está sempre voltado para o
Intelecto Agente. O intelecto hílico ou possível é único para todos os homens.
O máximo que os indivíduos humanos, enquanto almas sensitivas,
conseguem alcançar é a produção de fantasias, melhor, de imagens ou
representações tiradas do mundo sensível (os latinos chamam a imagem ou
representação sensível individual da coisa de phantasma). Trata-se do
“intelecto especulativo” (que reflete o inteligível por meio de imagens
sensíveis ou fantasias). É o intelecto hílico que põe o indivíduo humano, com
seu intelecto especulativo, em contato como Intelecto Agente separado.
Através deste contato, ou melhor, desta união, o que é inteligível é libertado
do sensível. A abstração é um efeito da ação do Intelecto Agente, sempre em
ato, sobre nosso conhecimento. Ser homem é ser capaz de transcender o
sensível e apreender o inteligível e, por meio deste processo, mediado pelo
intelecto hílico, unir-se ao Intelecto Agente, eterno, separado e sempre em
ato. A consumação deste processo se concretiza no que Averróis chama de
“intelecto adquirido”, que é a conjunção ou união da alma com o Intelecto
Agente. Nesta conjunção está a felicidade suprema do homem. Esta doutrina
100
de Averróis foi interpretada no mundo cristão como a afirmação da tese da
unidade do intelecto de todos os homens. Foi rejeitada por negar a
imortalidade da alma individual e sua espiritualidade. Mais tarde Leibniz
caracterizou esta doutrina como “monopsiquismo”. Mas Averróis não afirma
que a alma (psykhe) dos homens é uma só. Afirma que os indivíduos
humanos são almas sensitivas e que o seu intelecto natural é o intelecto
especulativo, ou seja, aquele que reflete por meio de representações
imaginárias; afirma também que os homens conhecem por meio de um único
intelecto hílico, por cuja mediação eles se unem ao Intelecto Agente.
Averróis respondeu à crítica feita aos filósofos por Algazali – a Incoerência
dos filósofos – com uma obra intitulada A incoerência da incoerência. Apontou
para a contradição performativa que traz consigo a postura cética: ao negar
a validade universal do conhecimento, reivindica a este princípio uma
validade universal, ou seja, reivindica o que nega. Averróis também não
aceita a limitação empírica que Algazali impõe à razão, no intuito de liberar o
espaço para a revelação e atuação divina. Para Ibn Ruchd a razão não é
limitada pela experiência, mas vai além desta, graças à possibilidade de
abstração que lhe é concedida.
Ibn Ruchd ou Averróis ainda escreveu sobre a relação entre filosofia e
religião. Considerava que ambas fossem caminhos diversos para alcançar a
única verdade. O Livro Sagrado, que contém a Profecia, segundo ele, possui
um sentido óbvio, acessível à massa dos simples crentes; e um sentido
escondido, acessível somente à elite intelectual dos filósofos. Entre os simples
crentes da massa e os filósofos que compõem a elite intelectual estão os
teólogos (muttakallimûn: os estudiosos do kalâm, a teologia do estilo
dominante). Os simples crentes seguem a via da retórica ou oratória, isto é,
seguem os discursos persuasivos, que falam por imagens e que tocam aos
sentimentos. Os teólogos, qualquer que seja a sua escola (mutazilitas ou
asharitas), seguem a via da dialética, que lida com premissas apenas
prováveis em seus raciocínios. Já os filósofos seguem a via dos argumentos
demonstrativos, que partem de premissas verdadeiras e certas. Averróis faz
uma crítica impiedosa aos teólogos. Considera-os como desnecessários e
danosos a ambos, aos simples fiéis e aos filósofos. Esta crítica, bem como
101
suas posições nada ortodoxas dentro do islamismo, lhe granjeou a
perseguição religiosa, a condenação, a queima de seus livros, o exílio em
Lucena e a morte em Marrakesh. Com a condenação de Averróis a falsafa
(filosofia) se calou no Islã. Apenas o kalâm (teologia) e o sufismo, a típica
mística muçulmana, continuaram dando alento ao pensamento no islamismo
dos séculos posteriores. Com a reconquista cristã da Espanha muçulmana,
começa uma intensa aculturação da filosofia dos filósofos do Islã e a recepção
de Aristóteles provoca uma grande revolução no pensamento medieval latino.
No Império Otomano, de origem turca, que conquistou Constantinopla em
1453, o Islã se enclausurou em si mesmo. As traduções, os comentários e os
debates da filosofia se paralisaram. As madrasas, escolas destinadas à
reprodução ideológica, se restringiram aos estudos jurídicos e a ortodoxia
sunita rigorosa se impôs inconteste sobre as consciências dos homens do Islã.
Estante do saber
Religião e Filosofia em Algazali
(http://www.hottopos.com/mp4/gazali_mplus4.htm#maxi),
organização de A. R. Hanania.
O aristotelismo e o pensamento árabe: Averróis e a recepção de
Aristóteles no mundo medieval
(http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/rphl/n24/n24a04.pdf), de
Eduardo C. B. Bittar.
8.8 A filosofia entre os judeus medievais
Na Idade Média, os judeus se encontravam espalhados em meio ao mundo
dominado pelo Islã, pelo Oriente Médio, pelo Norte da África e pela Península
Ibérica. Foram influenciados culturalmente pelo islamismo, mas não
deixaram de criar uma cultura própria (LIBERA, 1998, p. 191-193). Havia os
teólogos que seguiam a forma árabo-muçulmana de fazer teologia (o kalâm),
como Yusuf ben Abraão al-Basir (séc. XI); e havia os que recusam o kalâm,
como Maimônides (séc. XII). Do mesmo modo, em termos de filosofia, havia
102
os filósofos que seguiam o modelo árabo-muçulmano de fazer filosofia (a
falsafa), de modo mais aderente e os que o seguiam de modo mais livre,
adaptando-o ao contexto judaico de costumes e de língua; havia também os
que ultrapassam a falsafa, quer cultivando a filosofia em modo próprio
sozinha, quer conciliando-a com a mística hebraica medieval típica, ou seja,
a Cabala. Vejamos, pois, um pouco da tradição filosófica judia na Idade
Média.
8.8.1 Raízes e posições fundamentais do pensamento filosófico
judaico
O primeiro encontro entre filosofia e judaísmo se deu na tarda-antiguidade,
em Alexandria, na obra de Fílon (+ 40 d.C.), que identificou o Deus revelado
a Moisés (cfr. Êxodo 3,14) com o Ser absoluto (FILONE, 1994, p. 7-51). Obra
de pensamento judaico é também a cabala (QBLH ou Kabbalah: recepção),
forma de misticismo judaico, que se tornou influente nos séculos XII e XIII.
Dentre os escritos mais antigos da Cabala está o Sephir Jezira (Livro da
Criação), escrito antes do ano 500 d.C. Nele afluem elementos platônicos,
neoplatônicos e gnósticos (BUSI & LOEWENTHAL, 1999, p. 35-46).
Entre as posições fundamentais do pensamento judaico está a apresentação
de Deus como ser pessoal absoluto e transcendente e do mundo como sua
criação livre. O homem está em face de Deus numa relação de pessoa para
pessoa, ou seja, num autêntico encontro eu-tu. A dignidade do homem se
expressa especialmente pela vontade e pela sua liberdade. Estas posições
fundamentais vão influir na filosofia dos filósofos judeus medievais.
8.8.2 Isaac Israeli
Isaac Israeli (c. 855 – c. 955/956) é o primeiro filósofo judeu de destaque
(LIBERA, 1998, p. 198-202; ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 333-334;
HEINZMANN, 1992, p. 153). Compilador e neoplatônico, sua obra mais
conhecida é o Livro das Definições, obra traduzida para o latim por Gerardo
103
de Cremona. Entende a filosofia como amor à sabedoria; depois, ao modo
neoplatônico, como assemelhação a Deus pela compreensão das verdades
das coisas e, ao modo de Platão, como zelo e preocupação constante com a
morte. A estas definições da filosofia acrescenta ainda outra: a filosofia é
conhecimento de si. Reinterpreta Plotino adaptando a sua filosofia ao
contexto judaico. No topo e origem de tudo está o Uno, que é Deus, o criador
ou a causa primeira de todas as coisas. O seu poder e a sua vontade são
modalidades e atividades de sua essência. Outros dois princípios de toda a
realidade são a Forma primeira e a Matéria primeira. Depois vêm as
inteligências (hipóstases intelectuais) e as almas. Há a alma racional, a alma
sensitiva e a alma vegetativa. Depois vem a Natureza ou o Céu e, por fim, o
mundo dos corpos. A natureza rege a geração dos corpos, a alma rege a
natureza e a inteligência rege a alma. Citações de Isaac Israeli aparecem em
Alberto Magno e Tomás de Aquino.
8.8.3 Ibn Gabirol (Avicebron)
Outro nome importante da filosofia judaica é o de Ibn Gabirol (LIBERA, 1998,
p. 202-210; ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p.335-338; HEINZMANN, 1992, p.
153-154) . Salomão Ibn Gabirol (1021-1051), conhecido no mundo latinófono
como Avicebron, escreveu um poema religioso muito admirado pelos judeus
de seu tempo: o Keter Malkouth (A coroa real). Seus versos foram
conservados na liturgia judaica. No entanto, no mundo latino, ele é mais
conhecido por outra obra, intitulada em latim, como Fons Vitae (Fonte da
vida), que foi objeto de admiração e de crítica para alguns autores
(http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/article/viewFile/18
08/1338). Sua filosofia foi bem controvertida no mundo latino por causa da
teoria chamada de “hilemorfismo universal”: a doutrina segundo a qual, todo
o mundo criado é composto de matéria (hyle) e forma (morphe). Esta
doutrina foi defendia pelos franciscanos e atacada pelos dominicanos, isto é,
por Alberto Magno e Tomás de Aquino, que viam nela a ameaça do
materialismo. Para Ibn Gabirol não há somente matéria corporal, mas
também matéria espiritual. A matéria é princípio constitutivo essencial de
todo o ente criado: esse est existentia formae in materia (ser é existência da
104
forma na matéria). Ele não entende a matéria em sentido aristotélico como
pura potencialidade, nem mesmo a entende em sentido meramente
neoplatônico como princípio de multiplicidade e diversidade. Para ele, a
unidade de todas as coisas é dada pela matéria, enquanto a diversidade é
dada pela forma diferente que cada coisa tem. Matéria significa, aqui,
portanto: substrato, quer seja um substrato corporal, no caso dos corpos,
quer seja um substrato espiritual, no caso dos puros espíritos. Nesta
concepção, todo o ente criado tem um substrato ontológico que recebe o ser
isto ou aquilo por meio da forma e este substrato receptivo é a matéria. Dito
de outro modo, a matéria é o princípio de poder-ser no sentido de poder-
receber uma forma. Ibn Gabirol define o sentido da existência humana a
partir da filosofia como conhecimento de si mesmo. Conhecer-se a si mesmo,
porém, é conhecer todas as coisas, pois o homem é um microcosmo. A
perfeição da alma racional consiste em vir a ser um mundo inteligível, como
também dizia Avicena. Se o homem conhece a si mesmo, isto é, sua
corporalidade e espiritualidade, ele conhece todas as coisas, pois todas as
coisas são ou corporais ou espirituais e o homem é ambas as coisas: espiritual
e corporal. Contudo, autoconhecimento do homem é o momento em que o
universo começa o seu retorno para a fonte do ser e da vida, Deus. O fim do
homem, por sua vez, é unir-se ao mundo superior, é a conjunção (dibbuq ou
coniunctio) com a fonte da vida, Deus, onde todas as coisas encontravam-se
originariamente como essências ou ideias.
8.8.4 Maimônides
O maior nome, porém, da filosofia judaica medieval é o de Maimônides
((LIBERA, 1998, p. 216-225; ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 339-342;
HEINZMANN, 1992, p. 154-157). Moisés ben Maymun (Maimônides:
1135/1138-1204) nasceu em Córdoba, mas, devido às perseguições aos
judeus, teve que se refugiar de cidade em cidade, até chegar ao Cairo. Assim
como Averróis, Maimônides tinha Aristóteles como o grau supremo do
intelecto humano, só superado por aqueles que receberam a inspiração divina
(os profetas). Sua obra mais famosa se intitula Moreh Nebukhim, cuja
tradução latina soa: Dux neutrorum sive perplexorum (Guia dos indecisos ou
105
perplexos), uma das culminâncias do pensamento medieval. Impregnado de
cultura árabo-muçulmana e enraizado na tradição judaica, consegue uma
síntese teológica que ultrapassa a falsafa (filosofia típica dos árabes) e o
kalâm (teologia típica dos árabes e judeus). Procura expor o sentido da
Torah e do Talmude, indo além de sua literalidade (sentido esotérico). Trata
dos filósofos e da profecia; das religiões e dos ritos. Critica severamente os
teólogos (muttakallimûn): estes não só deixaram de demonstrar alguma
coisa, mas inverteram o mundo e alteraram as leis da natureza. Um problema
importante discutido por Maimônides é o da criação. Segundo ele, não se
pode, pela filosofia, isto é, com demonstrações puramente racionais,
demonstrar que o mundo seja eterno ou que seja criado. O máximo que o
teólogo consegue alcançar é mostrar a nulidade das demonstrações alegadas
pelos filósofos em favor da eternidade do mundo. A eternidade do mundo não
é objeto de objeto de demonstração nem de fé. Já a criação é objeto de fé
(na tradição profética) e não de demonstração. A física e a metafísica podem
aduzir razões em favor da necessidade da existência de um primeiro movente
imóvel do universo. Aqui Deus aparece como causa primeira e como
pensamento de pensamento (nous noeseos). Deus é uno: nele há a total
identidade de pensar, pensante e pensado. Paralelamente, no homem há uma
identidade entre o pensamento e a coisa pensada (o ser). A compreensão de
Deus a partir do mundo criado, porém, é limitada, pois entende Deus somente
como causa do mundo, sem apreender a sua essência em si mesma. Moisés
Maimônides interpreta a criação como ato livre e Deus como ser pessoal
transcendente, diante do qual o homem se encontra numa relação eu-tu. A
perfeição ética é o caminho para o homem se aproximar de Deus.
Para Maimônides, o profeta é o filósofo consumado. A iluminação intelectual
ou perfeição especulativa prepara o estado profético. A profecia é uma
emanação de Deus que se estende por meio do Intelecto Agente sobre a
faculdade racional e a imaginativa do homem. É o mais alto grau a que a
razão humana pode, por graça, chegar. Se a emanação divina ilumina
somente a faculdade racional, sem atingir a imaginativa, temos os sábios; se
ilumina também a imaginativa, temos os profetas; se ilumina somente a
faculdade imaginativa, temos os magos e os legisladores. A ciência se faz por
meio do silogismo. Há homens que só podem aprender uma ciência já feita e
106
há homens que são capazes de descobrir por si mesmos os meios termos
necessários para a dedução silogística. Estes são os que desenvolvem os
graus maiores da intelectualidade, apreendendo melhor os inteligíveis e se
unindo ao Intelecto Agente.
Maimônides teve grande influência no mundo cristão. Foi citado
especialmente por Alberto Magno e Tomás de Aquino. A filosofia judaica
continuará na Idade Média cristã, especialmente na França. Gersônides
(1288-1344) e Moisés de Narbonne (1300-1362) serão os principais
continuadores da tradição filosófica judaica, além daqueles que se dedicaram
a conciliar filosofia e cabala. A aventura filosófica do judaísmo medieval
termina, porém, na Itália, com Judá ben Isaac, conhecido como Leão, o
Hebreu (c. 1460- c. 1523), cujos Diálogos de Amor tiveram papel decisivo no
êxito do neoplatonismo de Florença.
Podemos concluir esta aula fazendo algumas ponderações gerais
sobre o estudo da filosofia em Bizâncio, no Islã e no judaísmo
medieval. Antes de tudo, observamos que cada um destes mundos
possui uma experiência de pensamento própria, com suas posições
fundamentais e com seu estilo peculiar. O pensamento destes
mundos é mais do que a filosofia. Ele se dá também na medicina, no
direito e na religião, com sua forma de teologia própria e sua
mística também própria. A filosofia, porém, é aculturada no
contexto destes mundos e se torna uma concreção de pensamento
que assimila as demais tendências do pensamento. O resultado
demonstra a riqueza do espírito humano em suas várias tradições
culturais. É o produto desta riqueza que chega ao ocidente cristão
latinófono pelas traduções que começam a ocorrer no fim do século
XII e no início do século XIII. Trata-se de um sobrevento de grande
impacto, que transforma o mundo medieval latinófono. O esforço
hermenêutico que estas tradições têm de constituírem e
interpretarem sua própria identidade à luz do confronto com as
alteridades constitui o diálogo dos mundos, que é a Idade Média,
um diálogo onde participam gregos pagãos e bizantinos, cristãos
107
“heréticos” e muçulmanos, muçulmanos e judeus, cristãos latinos e
muçulmanos e judeus.
108
Unidade IV – A filosofia no período gótico da Idade Média latina:
séculos XIII-XIV
O século XIII no mundo cristão latino é o tempo do renascimento urbano, do
surgimento das universidades, do advento de Aristóteles no pensamento e
do estilo gótico na arte.
A arte gótica dá bem o tom da vida espiritual daquele tempo. Seu símbolo
maior é a catedral. Ela mostra que aqueles que habitavam “a idade das
trevas” eram apaixonados pela luz. Ela é a síntese entre a poesia da pedra e
a potência da luz. A catedral é, com efeito, ordenada para captar a luz e
guardá-la como algo transformado, de imaterial, como se pensava que ela
fosse, nesta matéria muito rara e sutil que é um vitral sob uma abóbada
muito alta. A catedral gótica é a luz da teologia escolástica encarnada na
poesia da pedra. Na experiência espiritual testemunhada pela arte gótica,
tudo é figura e sinal, interpretação e remissão para o Espírito. É o Espírito
que, numa força criadora infinita, cria para si uma vida transbordante. Nesta
vida absoluta, todos, e cada um, podem, sem senões nem restrições,
participar. Carece somente de ter olhos para ver. Há que se irromper na
dimensão da contemplação a fim de que, através de uma película de
aparência, poder tocar em toda a parte o Absoluto. Nesta nova experiência
espiritual da humanidade do Ocidente latino, é permitido ao homem viver se
elevando, através das diversas dimensões da criação, para Deus. Cada
degrau da criação traz em si o todo, cada vez de maneira diferente. Das
dimensões materiais dos corpos às dimensões espirituais dos anjos, da
multiplicidade das substâncias compostas à simplicidade das substâncias
separadas, se perfaz uma escada, através da qual é possível se elevar para
Deus. A catedral gótica é a recordação e o protótipo de uma passagem
ilimitada para uma potência sempre crescente, ou seja, de uma escalada.
Talvez, uma escalada que prepara para um salto, um salto no abismo da
escuridão luminosa de Deus. É que a catedral faz de todo o mundo uma
igreja. Ela mostra que também e sobretudo fora está se realizando,
constantemente, um ofício divino. Em toda a parte. No ser. Pois ser é Deus.
A catedral é uma demonstração de que o homem pode, por toda a parte,
109
estar na casa de Deus. Basta que o homo religiosus (homem religioso), que
é sempre um homo viator (homem a caminho, viandante), realize a
passagem, o transitus, a páscoa, cada vez e sempre de novo, até a suprema
passagem, que se cumpre no salto da morte. Religião é passagem. Ela acena
para a contemplação, para aquele olhar que vê tudo em tudo – e Deus em
cada coisa.
Vamos ver, nesta unidade, como o pensamento, que se faz filosófico-
teológico-místico se apresenta por esta época. Vamos estudar o expoente
deste pensamento: Tomás de Aquino. Nas outras aulas vamos estudar
Boaventura de Bagnoreggio, Duns Scotus, Guilherme de Ockham e Mestre
Eckhart.
110
Aula 09 – Tomás de Aquino
O século XIII, no tocante aos estudos, é marcado pelo surgimento
das universidades, pela implantação do método escolástico e pelo
advento de Aristóteles. O maior expoente da escolástica deste
tempo é Tomás de Aquino. Tentemos, pois, compreender o
horizonte de seu pensamento em seu conjunto e em seus momentos
essenciais. Tentemos, porém, antes de tudo, entender Tomás de
Aquino em seu contexto.
Esta aula está carente de indicação de suas fontes. Favor incluí-las.
9.1 A recepção de Aristóteles no mundo cristão latinófono
De 1150 a 1250 toda a obra de Aristóteles foi traduzida. Não somente o
Organon, mas também os escritos de metafísica, de física, psicologia e ética.
A recepção de seu pensamento começa pelos idos de 1200, especialmente na
Universidade de Paris. De início, Aristóteles foi proibido, depois, acabou sendo
recomendado. A proibição de Aristóteles se deve a pelo menos três teses que
colocaram em questão convicções fundamentais da fé cristã: a criação ex
nihilo (a partir do nada), a imortalidade individual da alma e a doutrina da
providência divina. No ano de 1210, um sínodo de Paris proibiu a leitura dos
textos de filosofia da natureza de Aristóteles. Uma proibição de 1215, porém,
inclui a Metafísica. Em 1231, o papa Gregório IX confirmou a proibição, mas
com a ressalva: “até que fossem corrigidos” (os seus escritos). Entretanto,
não somente os mestres da faculdade de artes, mas também os da teologia
seguiram lendo, comentando, discutindo e criticando Aristóteles, até que, em
1255, os escritos de Aristóteles fossem recomendados oficialmente no
programa de estudos da faculdade de Artes. Aristóteles se tornou,
simplesmente, o “Filósofo” e a admiração que Avicena, Averróis e Maimônides
nutriram pelo Estagirita se passou também aos filósofos cristãos do mundo
latinófono.
111
A recepção de Aristóteles, contudo, não foi tranquila. Foi agravada
especialmente pelas teses defendidas por alguns filósofos da Faculdade de
Artes (Artes Liberais), como Siger de Brabante (+ 1286) e Boécio de Dácia
(+ 1284), que seguiam a interpretação de Aristóteles promovida por Averróis
(“Averroismo Latino”). A tese heterodoxa principal consistia na afirmação da
unidade do intelecto para todos os homens, seguindo certa interpretação de
Averróis (Leibniz chamou esta tese de “Monopsiquismo”). Via-se nesta tese
uma ameaça à imortalidade individual da alma humana. Uma das principais
metas do cristianismo: a salvação do indivíduo acaba sendo ameaçada por
essa tese (HEINZMANN, 1992, p. 158-160).
9.2 Tomás: o teólogo
Tomás de Aquino nasceu em 1224, na Itália (perto de Nápoles). Foi educado
com os beneditinos em Monte Cassino e estudou as Artes Liberais no centro
imperial de estudos de Nápoles, onde teve como mestre Pedro de Hibérnia.
Contrariando sua família, entrou para a Ordem dos Pregadores (a ordem
mendicante dos dominicanos). Estudou depois com Alberto Magno (1200-
1280) em Paris e em Colônia. Com este aprendeu a dedicar-se ao estudo de
Aristóteles. Sua atividade de ensino se dá antes de tudo em Paris. Depois
ensina na Itália, em Roma, Viterbo e Nápoles. Em sua segunda fase em Paris
enfrenta uma polêmica dirigida contra as ordens mendicantes e também
combate os aristotélicos extremos da faculdade de Artes. Tomás de Aquino
se entende, antes de tudo como teólogo. Num dos raros momentos em que
fala de si em sua obra, ele declara: “A tarefa principal da minha vida, à qual
me sinto obrigado em consciência diante de Deus, é que todas as minhas
palavras e todos os meus sentimentos falem d’Ele”. Antes de morrer, tem
uma experiência mística que o leva a dizer: “Não posso mais. Tudo aquilo
que escrevi me parece palha em comparação com aquilo que vi” (Apud
TORREL, 2003, p. 26). Morre em 1274, com 50 anos de idade, perto da abadia
cisterciense de Fossanuova, a caminho do Concílio de Lião. Foi em vida e
depois da morte contestado pelos agostinistas, tanto os de fora como os de
dentro de sua própria ordem. Dentre suas obras, no interesse da filosofia, se
destacam o opúsculo intitulado De ente et essentia (Do ente e da essência),
112
os diversos Comentários a Aristóteles, as Questões disputadas, a Suma
Contra os Gentios e a Suma Teológica.
A Suma Teológica é a obra mais célebre de Tomás, embora tenha ficado
inacabada. Sua intenção pedagógica nesta obra se deixa declarar com as
palavras: “Os doutores da verdade católica devem instruir não só os iniciados,
mas também os principiantes (...), por isso, o intento que nos propomos
nesta obra é o de expor tudo aquilo que concerne à religião cristã no modo
mais conveniente à formação dos principiantes” (Apud TORREL, 2003, p. 30).
Ele assim explica o gênero da Suma: “... tentaremos, confiando na divina
ajuda, expor a doutrina sagrada com a maior brevidade e clareza permitida
por tal disciplina” (Apud TORREL, 2003, p. 31). Tomás é um pensador
sistemático que reflete sobre um assunto partindo dos princípios últimos
claramente sistematizados. Mas como é ao mesmo tempo o pensador
objetivo, cada pormenor que trata não é considerado apenas pretexto para
discorrer sobre os princípios, mas é na verdade ponderado com particular
atenção, ainda que à primeira vista não pareça conformar-se facilmente com
os grandes motivos principais de seu pensamento. Tomás declara o limite do
conhecimento teológico, na tradição do Pseudo-Dionísio, a quem chegou a
comentar. Nós não podemos saber de Deus o que ele é, mas somente o que
ele não é. Tomás sabe bem que a precisão e objetividade da verdadeira
teologia só tem um fim em vista: arrancar o homem da claridade fácil da sua
existência, para mergulhá-lo no mistério da incompreensibilidade de Deus,
onde o homem ultrapassa a compreensão para se render à adoração. Para
ele, só na medida em que a teologia dos conceitos compreensíveis se revogar
na teologia da incompreensibilidade que toma o homem de veneração diante
do mistério, é que é verdadeiramente teologia. A teologia apresenta, na
Suma, três temas, segundo o esquema do exitus (saída de Deus) e reditus
(retorno para Deus): fala-se, antes de tudo, de Deus; em seguida, do
movimento da criatura racional para Deus; enfim, do Cristo, o qual, enquanto
homem, é via para ascender a Deus.
113
9.3 A autonomia da razão
Mesmo sendo principalmente teólogo, Tomás não deixou de valorizar a
filosofia. Sempre trabalhava em paralelo. Por exemplo, quando escrevia a
parte da Suma que trata da moral cristã, ele trabalhava também,
paralelamente, um comentário à Ética de Aristóteles (TORREL, 2003, p. 22).
Apesar de transitar bem na dimensão da filosofia e da teologia, ele não quis
que ambas se confundissem. No ocidente cristão, é o primeiro a postular uma
autonomia da filosofia em relação à teologia. Paradoxalmente, porém, esta
postulação de autonomia da filosofia não é motivada pela reivindicação de
uma libertação da razão em relação à fé, mas sim, por tomar a sério os
dogmas da fé: a criação e a encarnação. Durante séculos, o cristianismo tinha
seguido pela via do espiritualismo e transcendentalismo. O juízo final era o
dogma principal. Platão era a filosofia mais adequada para apoiar esta via de
transcendência. Mas, a partir do século XII, como demonstra a arte gótica, o
cristianismo sofre uma guinada radical: volta-se para o mundo como criação
de Deus e para a humanidade de Deus. Daí decorre também, na filosofia, a
exigência de uma guinada anti-platônica. O idealismo transcendental
platônico cede o lugar ao realismo empírico aristotélico. É preciso se voltar
para o mundo sensível, o mundo da experiência, no qual nós, de início e na
maior parte das vezes nos encontramos. Não ter vergonha de reconhecer que
nossa aventura no conhecimento começa sempre “de baixo”, do mundo
sensível. Depois, não querer construir o conhecimento em especulações
soltas no ar, mas atendo-se ao que se mostra concretamente – a manifestis
non discendere (não se afaste do que é manifesto!), diz ele (De Spiritualibus
Creaturis 5: apud HEINZMANN, 1992, p. 205). Deus cria dando o ser ao
mundo e o mantendo neste mesmo ser. Entretanto, ao criar, Deus deixa sua
obra repousar em si mesma, ou melhor, deixa que sua obra tenha em si
mesma o princípio de sua atividade. Enquanto os agostinistas, de modo
pessimista, salientavam as consequências do pecado para a razão humana,
que se tornou cega para o essencial, para o mundo do espírito e para Deus,
Tomás salienta, de modo otimista, que o homem fora criado por Deus como
sua imagem e semelhança, isto é, como um ser livre e autônomo. A
onipotência do criador não suprime a liberdade do homem, antes, a promove.
Criar é deixar-ser. É não somente um ato de dependência, mas é também
114
um ato de liberação. A “causa primeira” não anula, antes promove a
autonomia das “causas segundas” que atuam no mundo. A autonomia da
razão é o horizonte da filosofia. Aliás, a filosofia é o máximo empenho de
autonomia da razão (HEINZMANN, 1992, p. 204-205).
A afirmação desta autonomia é também o motivo pelo qual Tomás prefere,
na teoria do conhecimento, a teoria da abstração de Aristóteles do que a
teoria da iluminação de Agostinho. Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles,
entende a conquista do conhecimento como um empenho do próprio homem,
uma disposição adquirida graças ao esforço humano de compreender as
coisas. O conhecimento humano sempre parte dos sentidos. Os sentidos nos
revelam coisas sensíveis, substâncias individuais. Conhecer é abstrair.
Abstrair é, antes de tudo, prescindir: prescindir do que é sensível, do que é
particular. Abstrair é, depois, extrair: extrair o inteligível, o elemento
universal. O intelecto tem o poder de distinguir mentalmente o que, na
realidade, é inseparável: o inteligível e o sensível, o individual e o universal.
O homem transcende o mundo da experiência pela capacidade abstrativa da
razão. A razão, a partir da abstração, forma o conceito; a partir do conceito,
enuncia juízos sobre o real; a partir dos juízos, realiza raciocínios
(silogismos); concatenando os juízos e articulando razões necessárias e
prováveis, a razão elabora a ciência. A ciência é, portanto, uma construção
do homem. Mas esta construção se dá graças à capacidade que lhe foi dada
pelo Criador. Esta capacidade é a “luz natural da razão”. A ciência e a filosofia
são uma conquista do homem, que segue esta luz natural da razão. A fé já
um dom de Deus, que é infuso no homem como graça de uma iluminação
sobrenatural. Assim, mesmo seguindo uma concepção Aristotélica do
conhecimento como abstração, Tomás ainda entende o conhecimento como
“iluminação”, embora seja uma iluminação que advém do intelecto como
potência naturalmente inserida na alma humana, que é criada por Deus. Deus
é a fonte de ambas as formas de conhecimento: a da razão natural e a da fé
sobrenatural. Por isso, ambas não podem se contradizer.
A envergadura do intelecto é de tal magnitude, que Tomás chega a firmar de
que a alma intelectual é, de certo modo, todas as coisas. Isso quer dizer: o
intelecto tem a capacidade para conhecer todo o ente, qualquer que seja o
115
seu modo de ser, pois todo o ente, enquanto criação do intelecto divino, é
inteligível. Há uma correlação fundamental entre pensar e ser. Seguindo sua
própria capacidade, o intelecto é apto a partir das coisas e se elevar até Deus.
Como fica claro ao fim de seu opúsculo juvenil O ente e a essência, a filosofia
de Tomás é a demonstração de uma elevação da mente para Deus, uma
elevação que o homem faz a partir de suas próprias forças (TOMÁS DE
AQUINO, 1990, p. 241). Autonomia é isso: o erguer-se a si mesmo do
homem, a partir da capacidade de sua liberdade. Entretanto, embora
fundamentalmente orientada para o todo, a razão não pode tudo. Acima da
luz natural da razão, está a luz sobrenatural da fé. Se a filosofia é a ciência
da autonomia da razão, a teologia é a ciência da obediência, melhor, da
recepção agradecida e afeiçoada da fé. A fé é “virtude infusa”. A disposição
de crer não vem do homem, mas de Deus. E a teologia é uma ciência bem
singular, pois é a ciência de uma verdade, cuja revelação não é acessível à
investigação autônoma da razão, mas é sobrenatural, isto é, puramente
gratuita. A filosofia é experiência do empenho da razão. A teologia é a
experiência da gratuidade da fé. Ambas, no entanto, isto é, razão e fé, vêm
de Deus. Uma, a filosofia, está fundada na ordem da criação e da luz natural
da razão. A outra, a teologia, está fundada na ordem da salvação e na luz
sobrenatural da fé (revelação).
Tomás de Aquino assume uma posição diferenciada em relação à tradição
dominante na Idade Média latina até o século XIII. Ele opera uma distinção
nítida entre filosofia e teologia. Não só. Ele até postula certa autonomia da
filosofia em relação à teologia. Filosofia e teologia são saberes distintos. A
filosofia é o conhecimento que surge da luz natural da razão. A teologia é o
conhecimento que parte da luz sobrenatural da revelação e se move no
horizonte da fé. A filosofia pode se elevar a Deus, mas é um conhecimento
que se alcança por via da razão natural, partindo-se das criaturas, como
aparece na exposição das "cinco vias" que demonstram a existência de Deus.
A razão chega a uma causa primeira do ser, ao ente supremo, necessário,
absoluto ao qual, diz Tomás, "nós chamamos Deus". A filosofia, porém, pode
ser o que ela é sem se subordinar à teologia. A subordinação da filosofia à
teologia é uma necessidade ou possibilidade do teólogo, não do filósofo
enquanto tal. A teologia, por sua vez, parte da revelação divina. Os mistérios
116
da Trindade e da Encarnação, por exemplo, escapam à razão. A razão, no
máximo, pode preparar os preambula fidei (os preâmbulos da fé) (ÜBERWEG,
1927, p. 429). A passagem da razão natural à fé não se dá por continuidade
e sim por um salto. À fé só se chega com a própria fé. E a fé é uma virtude
infusa (infundida, derramada), um dom sobrenatural. Aqui a palavra fé não
é o mesmo que crença. O ato de crer é, aqui, um dom sobrenatural e gratuito
de Deus. A partir da fé, porém, se edifica a teologia, que recorre à razão para
clarear melhor o sentido daquilo que se crê, sem, porém, extinguir o mistério.
Com a razão, o máximo que o crente consegue é mostrar a não absurdidade
daquilo que ele crê. Ademais, todo o conhecimento que temos de Deus,
mesmo com o auxílio da fé, é limitado. Nós podemos dizer o que Deus não é,
mas não o que ele é.
9.4 As demonstrações da existência de Deus em Tomás: as cinco vias
Tomás considera necessário demonstrar a existência de Deus, já que ela não
nos é imediatamente evidente, ou seja, não é objeto de uma intuição (visão
direta e imediata) (ROVIGHI, 1991, p. 99-100). A existência de Deus é per
se nota simpliciter (evidente por si mesma, pura e simplesmente) ou per se
nota quoad se (evidente por si mesma, segundo si mesma), mas não é per
se nota quoad nos (evidente por si mesma, para nós). A existência de Deus
seria para nós imediatamente evidente se conhecêssemos sua essência, mas,
como não a conhecemos, então também não temos a evidência imediata da
sua existência. A evidência só resulta de um processo demonstrativo da
razão, prescindindo, aqui, evidência própria da fé e da revelação (.
Na Suma Teológica (I, q. 2, art. 3), Tomás apresenta cinco vias para
demonstrar a existência de Deus. A primeira via é a do devir. Partindo da
experiência, é certo que algumas coisas se movem (certum est aliqua
moveri). Tudo aquilo que devém ou muda é mudado por outro (omne quod
movetur ab alio movetur). Ora, a razão requer que, na ordem das causas,
não se vá ao infinito (hic autem non est procedere in infinitum). A conclusão
é que deve haver um primeiro movente ou uma primeira causa do devir, que
seja, ela mesma imutável. E esta causa, diz Tomás, “nós chamamos Deus”.
117
Esta primeira via parte, pois, do fato do motus. Em Tomás motus não é
simplesmente movimento como nós hoje entendemos (no sentido de
deslocamento). Motus é, em sentido muito mais abrangente, devir, mutação,
passagem do não ser ao ser, ou do poder-ser (potentia) à realidade efetiva
de ser (actus). Enquanto as causas segundas são somente causas do devir
das coisas (causae fiendi), a causa primeira é, na verdade, a causa do ser
(causa essendi) das coisas que devêm.
A segunda via parte da consideração da causa eficiente. Nas coisas da
experiência há uma ordem de causalidade eficiente. Contudo, não é possível
que algo seja causa eficiente de si mesmo (nec est possibile quod aliquid sit
causa efficiens sui ipsius). Ela deveria ser antes de si mesma, o que é
impossível. Também não é possível ir ao infinito nesta ordem das causas
eficientes. Logo, é necessário pôr uma causa eficiente primeira e a esta “todos
chamam Deus”. Se a primeira via demonstra a necessidade de um primeiro
movente do devir, que seja ele mesmo imutável, a segunda via demonstra a
necessidade de uma causa primeira do ser, que seja ela mesma não causada.
A terceira via parte da experiência, de que há no mundo coisas que podem
ser e não ser, isto é, as coisas contingentes, que são geráveis e corruptíveis.
Ora, tudo que é contingente tem uma causa. Sua passagem do não-ser ao
ser requer uma causa. Também aqui não se há de ir ao infinito na ordem das
causas. Portanto, é necessário que haja alguma coisa que seja
necessariamente e indefectivelmente por si mesma. “E isto é Deus”. A ordem
das causas possíveis e contingentes requer uma primeira causa necessária e
indefectível.
A quarta via parte da gradação que se encontra nas coisas. Nelas, há o mais
e o menos bom, o mais e o menos verdadeiro. A gradação na perfeição,
porém, requer a referência a um máximo perfeito, a algo que seja
sumamente ente, sumamente verdadeiro e sumamente bom. Aquilo que é
maximamente é a causa daquilo que, no seu gênero, é menos perfeito, como
o fogo, que é o maximamente quente é causa de calor de outros corpos.
Assim, existe um ente que é a causa do ser, da bondade, da verdade e da
perfeição de todas as coisas e “este nós chamamos Deus”.
118
A quinta via parte do governo das coisas. Todas as coisas, mesmo aquelas
que são privadas do conhecimento, agem por um fim, pois buscam aquilo que
é melhor para elas. Isto acontece não por acaso, pois a ordem teleológica
demonstra algo de uma orientação e direção inteligente no devir das coisas.
É como uma flecha que é direcionada por um arqueiro. Portanto, há um ente
inteligente pelo qual todas as coisas naturais são ordenadas a um fim, “e este
nós chamamos Deus”.
9.5 A analogia do ente
Uma vez demonstrada a necessidade da existência de Deus, como entender
a relação entre o ser de Deus e o das criaturas? Para Tomás de Aquino há
uma analogia entre o ser da criatura e o ser de Deus (HEINZMANN, 1992, p.
207-208). Analogia é uma identidade entre os diferentes, uma semelhança
entre os dessemelhantes. Deus é. A criatura também é. Há uma identidade
no ser. A perfeição, que consiste no ato de ser (actus essendi) é a mesma,
em Deus e na criatura. Contudo, há uma diferença entre ambos e essa
diferença é de grau ou proporcionalidade (analogia de proporcionalidade).
Deus é e é sumamente, ou seja, infinitamente. A criatura é e é de modo
limitado sempre, ou seja, finitamente. Depois, no horizonte do ser criatural,
há maior e menor perfeição de ser, pois o universo está ordenado
hierarquicamente: de cima para baixo: espíritos puros ou inteligências
(anjos) em coros hierárquicos, depois o homem (como elo entre o mundo
espiritual e o mundo corporal), depois os seres corpóreos: animais, vegetais,
minerais, por fim, os elementos fundamentais (fogo, ar, água e terra) e, no
limite, a materia prima (matéria primeira ou primordial), um quase não-ser,
a pura possibilidade de receber o ser. De alto a baixo, as criaturas recebem
o ser e o transmitem em graus do maior para o menor. Mas, qualquer que
seja o grau de perfeição no ser que tenha uma criatura, o seu grau é sempre
limitado. A criatura é um ser composto. No caso dos seres corpóreos, há uma
composição de matéria e forma (como no homem, a matéria é o corpo e a
forma é a alma). Depois, nos seres que são puros espíritos, embora não haja
mais uma composição de matéria e forma, há ainda uma composição
ontológica de potência (possibilidade) e ato (realidade). A criatura não é a
119
sua essência, ela tem a sua essência. E ter uma essência é participar de uma
possibilidade determinada de ser, de um modo e vigência de ser determinado.
A criatura não é o seu ser pois ela recebe o ser (o ato de ser, a existência) e
o ser tal ente que ela é (a essência) de outro ente. Ela é, como diziam os
medievais, ab alio (a partir de outro). Já Deus, não. Deus é o ser que ele é.
Nele, o ato de ser (a existência) coincide com o ser tal ente que ele é
(essência). Deus é o seu ser e o é imediatamente, sem passar de uma
potência (possibilidade, ainda não ser) para um ato (realidade, já ser). Ele é
ato (realidade) sem potência (possibilidade), é ato puro (actus purus).
Sempre é o que ele é. Neste sentido de plenitude, Deus é o ser mesmo
subsistindo em si mesmo (ipsum esse subsistens): ele não é somente o sumo
ente, mas é o ser em que não há nada de não ser, a essência que é puro e
pleno ser, a realidade realíssima em si mesma, ainda que seja, para nós, a
última realidade (pois o que vem primeiro na ordem do ser, vem por último
na ordem do conhecer). Entretanto, apesar destas diferenças - ser puro e
pleno de Deus e ser composto e restrito da criatura - há uma identidade entre
a perfeição de ser de Deus e a da criatura. Porém, essa identidade se dá
numa relação de proporcionalidade (variação de grau). E isso é o que se
chama de analogia do ente (analogia entis).
9.6 A essência nas substâncias compostas e o princípio de
individuação
A essência se encontra de modo absoluto na substância e de modo relativo
nos acidentes. As substâncias, porém, podem ser de dois tipos: compostas e
simples. As substâncias compostas são menos nobres do que as simples. No
entanto, elas nos são mais acessíveis e fáceis de serem apreendidas. Quando
Tomás fala de substância composta, ele entende uma composição de forma
e matéria. Forma é o princípio de determinação de um ente. É pela forma que
um ente é tal ente, com este modo de ser e não outro. Se a forma é o
determinante, a matéria é o determinado. Matéria é determinabilidade, poder
receber uma determinação. Quando um artesão vai fazer uma mesa, ele pode
assumir para a feitura desta obra, diversos tipos de matéria: pedra, madeira,
120
vidro, etc. A forma é o que é a obra que deve ser feita. A matéria é o de que
a obra deve ser feita.
Nas substâncias compostas a essência não é a simples forma; nem a simples
matéria; nem a relação de matéria e forma; mas o composto íntegro (sínolo)
de matéria e forma (TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 206). A matéria é o
elemento indeterminado e determinável. A forma é o momento determinado
e determinante. A matéria é de que a coisa é feita. A forma é o que é esta
coisa que é feita. A matéria é receptiva para a forma. A forma é doadora à
matéria. A forma doa o ser à matéria. A matéria recebe o ser da forma. Na
realidade, jamais encontramos uma materia prima (uma matéria sem forma).
A materia prima seria o nada de que toda a criatura pode receber o ser. Nós
encontramos sempre somente a matéria formada. Mas, uma coisa formada
de matéria e forma pode, por sua vez, servir de matéria para outra forma. A
essência não é a matéria somente, pois a essência é princípio de
inteligibilidade e de conhecimento, já a matéria não é aquilo que me faz
conhecer a coisa, mas é somente aquilo que faz a coisa existir de fato, em
ato. O que me faz conhecer a coisa é a forma (princípio de determinação). A
essência não é somente a forma, pois a essência é o que vem à fala no
conceito por meio da definição. E a definição de alguma coisa se faz
acrescentando ao gênero a diferença específica. Ora, o gênero corresponde à
matéria ("animal" na definição de "homem") e a diferença corresponde à
forma ("racional" na definição de "homem"). Na definição de homem eu tenho
tanto o elemento da forma (racionalidade: o que determina a diferença entre
a espécie homem e as demais espécies de animais) e o elemento matéria
(animal: pois a animalidade serve de matéria para a forma da humanidade,
por isso, podemos inferir, o corpo humano é organismo animal, mas é
organismo animal determinado pela vitalidade própria do homem). Pois bem,
a essência na substância composta é o todo: matéria-e-forma. Se a essência
fosse somente a forma, não teríamos como diferenciar física e matemática.
A física estuda o devir dos entes que surgem e perecem. Ora, estes entes são
compostos de forma e matéria. Esta composição é o que dá a eles a sua
concretude individual. Já a matemática abstrai da matéria e intui apenas o
elemento formal dos corpos (como o número na aritmética; a figura na
geometria). A essência também não é a relação entre forma e matéria.
121
Relação é um acidente. Já a composição de matéria-e-forma é algo de
essencial, inerente e intrínseco à substância composta. A matéria é o que faz
um ente ser em ato, isto é, ser de fato, se realizar de fato; já a forma é o
que faz um ente ser de fato este tal ente, que ele é. O branco (matéria) faz
a brancura existir em ato (como algo de real, como um fato). A brancura
(forma) faz o ente ser tal ente, ou seja, ser branco.
O princípio de individuação é a matéria assinalada nas dimensões do espaço
e no tempo (materia signata) (TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 207). Se todo
homem participa da mesma essência (a humanidade), partilhando de uma
mesma espécie, o que diferencia cada indivíduo como tal? O que é que torna
cada indivíduo este indivíduo que ele é? Esta pergunta visa o princípio de
individuação. Para Tomás, o princípio da individuação das substâncias
compostas é a matéria - mas não a matéria pura e simplesmente e sim a
matéria assinalada, perfilada e configurada na concretude de um espaço e de
um tempo, de uma história. Todos os indivíduos têm matéria, mas o que
define este indivíduo como este indivíduo é a unicidade concreta de sua
matéria e a historicidade desta mesma matéria.
Para Tomás, o indivíduo é indefinível, já que a definição se faz por gênero e
diferença específica. Não há uma definição para a essência de Sócrates, mas
só uma definição para a essência de "homem". Quando digo que Sócrates é
homem, não estou definindo Sócrates como Sócrates. Estou dizendo que
Sócrates é um indivíduo da espécie humana. Ora, certamente isso diz algo
de essencial em relação a Sócrates, mas não diz tudo, nem o que é o
elemento pelo qual Sócrates é Sócrates. Pelo contrário, diz algo pelo qual
Sócrates tem algo em comum com Platão. Por isso, só a espécie é definível,
o indivíduo não. Eu posso indicar um indivíduo, posso também descrevê-lo,
mas não posso defini-lo. No indivíduo, a essência se encontra individuada.
Chamamos de pessoa a um indivíduo de natureza racional, como dizia a
definição de Boécio.
122
9.7 A essência e as intenções lógicas: o problema dos universais
Como fica a essência em relação às "intenções lógicas": gênero, espécie,
diferença? No capítulo III de sua obra “De ente et essentia” (TOMÁS DE
AQUINO, 1990, p. 207-216), Tomás se propõe analisar também como ente e
essência se relacionam com as "intenções lógicas", isto é, com os conceitos
de gênero, espécie e diferença (os chamados “universais”). Aristóteles falou
de uma substância primeira, o ente na sua singularidade - como um "este
aqui" e de uma substância segunda, o ente na sua universalidade - como o
gênero e a espécie. O problema sobre o estatuto dos entes denominados de
substância segunda (os universais) foi chamado na história da filosofia de o
problema dos universais. No modo como Tomás trata da relação da essência
com o gênero e a espécie, podemos ver como ele dá uma solução a este
problema, que Porfírio, comentando Aristóteles, transmitiu à história, sem ele
mesmo resolver.
Como a essência se relaciona com os conceitos universais de gênero, espécie
e diferença específica no caso das substâncias compostas? Em sentido
absoluto, a essência não é nem individual nem universal. Em sentido relativo,
a essência é individuada no indivíduo. Tomás nega que as essências sejam
separadas das coisas singulares, ou seja, nega a tese platônica, que postula
a subsistência de ideias ou essências separadas dos entes singulares, no
“mundo das ideias”, o hiperurânio. As ideias ou essências das coisas podem
ter três formas de subsistir: na mente de Deus (ante rem: antes da coisa),
nas coisas (in re: na coisa) e depois da coisa (post rem). Tomás pressupõe a
subsistência da essência na mente de Deus, antes do ato criador. No âmbito
do mundo criado, por sua vez, a essência existe propriamente individuada no
indivíduo. Depois, a essência é abstraída pelo intelecto. O intelecto produz o
universal. No conceito universal a essência apresenta-se universalizada, ou
seja, ela é um predicado que enuncia um atributo de muitos indivíduos. A
abstração separa (mentalmente) o que está unido (realmente) no ente
singular: a essência e a existência, o inteligível e o sensível, a forma e a
matéria. O universal recolhe o momento essencial, inteligível, formal da
coisa. Depois, comparando indivíduos entre si, o intelecto apreende certa
semelhança formal (essencial, típica, estrutural) entre os indivíduos. Esta
123
semelhança que expressa a essência de vários indivíduos, a semelhança
formal-estrutural, é a espécie. Quando comparamos, por sua vez, a
semelhança entre as espécies e apreendemos algo de comum entre várias
espécies, então produzimos o conceito de gênero. Tomás diz que os
universais expressam a essência, mas de maneira indistinta. Na espécie, fica
indistinto as notas individuais e individuantes do ente singular. No gênero,
fica indistinto e implícito aquilo que é peculiar de cada espécie (o específico).
Em resumo: os universais expressam a essência das substâncias compostas
de maneira abstrata e indistinta: a espécie enuncia a essência, abstraindo
das notas individuais, o gênero enuncia a essência, abstraindo das notas
específicas do ente. Contudo, neste caso, a essência é tomada em sentido
relativo ao ente e de maneira abstrata. É desta forma que a essência subsiste
não na coisa (o ente real), mas "na alma", isto é, no intelecto. O (conceito)
universal, porém, não é uma mera ficção do intelecto (como afirmava o
nominalismo), mas é uma produção do intelecto que tem fundamento nas
semelhanças reais entre as coisas reais (cum fundamento in re).
9.8 A unidade substancial do homem e a imortalidade da alma
humana
Como a essência se relaciona com as substâncias separadas (inteligências,
puros espíritos, anjos), com a substância divina e com os acidentes em Tomás
de Aquino? Toda a criatura é composta de potência (possibilidade) e ato
(realidade), pois não tem o ser a partir de si (a se), como a Causa Primeira,
mas tem o ser a partir de outro (ab alio). Mas nem toda a criatura é composta
de matéria e forma. No cosmo, há a dimensão do espírito, onde vigem as
puras formas e há a dimensão do corpo, onde toda a forma é uma forma que
informa (plasma) uma matéria. Minerais, vegetais, animais e a alma racional
(do homem) são formas que informam a matéria corpórea. Neste âmbito, a
matéria assinalada pelas dimensões quantitativas do espaço (materia signata
quantitate) é o princípio de individuação. Por isso, neste âmbito de entes, as
espécies são compostas por uma diversidade e pluralidade numérica de
indivíduos. O homem está no topo desta escala de entes, que são compostos
de matéria e forma. No mineral, há o ser, no vegetal o ser é viver, no animal
124
o ser é viver como um ente capaz de sentir e no homem, ser é viver como
ente capaz de pensar. O princípio da vida vegetal chama-se alma vegetativa,
responsável pela nutrição e crescimento, por exemplo. O princípio da vida
animal chama-se alma sensitiva, responsável não somente pelas funções
vegetativas do corpo, mas também pelas funções sensoriais e mesmo pela
memória e pela imaginação. O princípio da vida humana é a alma intelectual,
que é responsável pelas funções vegetativas, sensitivas e espirituais. Para
Tomás, o homem não é um composto de duas substâncias (uma corpórea e
outra espiritual). O homem é um todo, caracterizado pela unidade substancial
da alma racional (forma) e do corpo (matéria). Não há uma pluralidade de
formas no homem (como afirmava a escola franciscana, que punha uma
forma do corpo - forma corporeitatis - junto com uma forma da alma). Só há
uma forma, que dá o ser, o viver, o sentir e o pensar (conhecer e amar) ao
corpo. Esta unidade substancial de uma alma essencialmente racional (que
assume sob si as funções sensitivas e vegetativas) com um corpo, é o
composto (sínolo) ou a substãncia humana. O corpo não é algo de acidental,
pois é a partir dele que se dá a formação da individualidade desta substância,
que vem a se chamar de "pessoa" (substância individuada de natureza
espiritual).
Dentre as funções da alma humana, há algumas que estão essencialmente
relacionadas com o corpo: como as vegetativas (crescimento, nutrição) e as
sensitivas (percepção sensorial, imaginação sensível, memória sensível). Mas
há também uma função que transcende toda a relação com o corpo, e esta
função é o pensar (intelligere). A capacidade que o pensamento tem de
abstrair do sensível o inteligível e de conhecer o universal é um testemunho
da transcendência (em relação ao mundo corpóreo) da alma humana
(espiritualidade da alma). Pelo seu intelecto, a alma é capaz de conhecer todo
o inteligível, de convergir com tudo o que é, de ser, de certa maneira, todas
as coisas (HEINZMANN, 1992, p. 217). O homem é o microcosmo não
somente por unir em si mesmo os dois extremos do universo, pelo fato de
ser o elo que liga o espiritual e o corporal, mas ele é o microcosmo também,
e sobretudo, por ser capaz de, pelo intelecto, conhecer e convir com tudo o
que é, pois tudo o que é, à medida que é, é também inteligível e verdadeiro.
Esta capacidade transcendental do intelecto torna a alma humana um
125
espírito. Espírito é aquele ente capaz de conhecer e amar. É com o espírito e
como espírito que aparece, no universo, a dimensão da liberdade. No homem,
a liberdade - a capacidade do livre-arbítrio, do domínio de si e do poder-ser-
princípio das próprias ações - é a imagem de Deus, que é espírito
perfeitíssimo, criador dos espíritos e dos corpos.
A matéria não subsiste sem a forma. Sem a forma, ela se corrompe, como o
corpo de um cadáver. Mas, pode a forma subsistir sem a matéria? No caso
das substâncias espirituais, como a alma humana e também os espíritos
puros ou inteligências, a forma subsiste por si mesma, sem matéria. Tomás
postula, de fato, para a alma humana a possibilidade de subsistir mesmo
depois da morte, quando o corpo se corrompe (imortalidade da alma).
Entretanto, como cristão, afirma que uma alma sem corpo é um estado de
exceção. A tese da unidade substancial do composto humano (corpo e alma),
que a um primeiro momento foi condenada e vista por muitos como
ameaçadora à tese da imortalidade da alma, era, na verdade, uma
salvaguarda à fé na ressurreição da carne (HEINZMANN, 1992, p. 214-215).
O platonismo é que fala de uma imortalidade da alma. O cristinianismo,
porém, professa a fé na ressurreição da carne. Mas, como fica a
individualidade do homem na morte? Não é a matéria o princípio de
individuação? Para Tomás, a obra da individualidade começa a união da alma
a um corpo. Mas esta união funciona como princípio somente, não como fim
da individualidade. Fim da individualidade é a pessoa como ser espiritual. A
individuação é uma obra que dá forma à alma espiritual humana. Portanto, a
individualidade pode subsistir mesmo na morte. Embora este estado da
imortalidade da alma requeira o estado da ressurreição da carne, para se
cumprir os ditames da natureza composta do homem. A alma humana é,
portanto, uma forma auto-subsistente e, enquanto tal, é separada. Mas o
homem é uma substância composta e o destino natural da alma humana é a
união com um corpo. Este é o seu destino eterno e não um destino acidental,
que vem por conta de uma queda no mundo sensível, como pensavam os
platonismos.
126
9.9 A essência nas substâncias separadas
A alma humana, pela sua espiritualidade e pela sua imortalidade, dá
testemunho da possibilidade e da realidade de "substâncias separadas".
Aristóteles falava de Inteligências que moviam os céus / os corpos celestes.
O neoplatonismo entendeu as inteligências como emanações do Nous e como
hipóstases divinas que moviam as esferas celestes. Assim também
entenderam os filósofos árabes. O filósofo judeu Maimônides questionou se
as Inteligências moviam mesmo os céus. O cristianismo entendeu estas
Inteligências como seres angélicos e os dispensou da função de mover os
céus e os corpos celestes. Tomás postula que estes seres sejam puras formas,
isto é, forma sem matéria (TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 222-229). São
substâncias simples, se levarmos em consideração a composição de matéria
e forma. Nas substâncias compostas, a forma é o que dá o ser, a matéria é
o que recebe o ser. A essência é o próprio composto de matéria e forma. Nas
substâncias simples, a essência é a própria substância simples, feita de forma
somente. A quididade da sustância simples é o próprio simples, assim como
a quididade da substância composta é o próprio composto.
Como fica a individualidade destas substâncias, já que não têm matéria? Nas
substâncias compostas, o princípio de individuação é a matéria. Por isso, a
espécie se divide em uma pluralidade de indivíduos numericamente diversos.
No caso das substâncias simples, o ser-um do indivíduo não é do tipo de uma
unidade numérica. O indivíduo neste caso, não é um entre outros, não é mais
um da sua espécie. O indivíduo, este um que se apresenta, é, neste caso, a
própria espécie. O vigor e o esplendor de ser (espécie) nesta forma é tão
intenso e uno, que ela não se divide e não se multiplica em vários indivíduos,
mas ela constitui uma única individualidade. Por outro lado, a individuação é
tão intensa, que, nesta dimensão do espírito, o indivíduo realiza em si mesmo
todas as possibilidades de ser da sua espécie. Indivíduo é espécie e espécie
é indivíduo, no mundo do espírito. Por isso, a pessoalidade não diminui aqui,
mas, ao contrário, ela cresce. Os seres simples são ainda mais pessoas do
que os humanos. Pois pessoa é uma substância individuada de natureza
(essência) espiritual ou intelectual. Se o intelecto é, na alma humana, razão;
nos seres simples o intelecto é uma capacidade de conhecimento também
127
simples. No homem, o intelecto é razão: procede finitamente, abstraindo do
sensível o inteligível; procede também mediatamente, momento por
momento, produzindo na mente o conceito universal, para ter mais claro a
essência das coisas. O intelecto das puras Inteligências, porém, não é assim.
Elas veem diretamente as essências, elas intuem o inteligível de maneira pura
e imediata, pois elas mesmas são puramente inteligentes. O semelhante
conhece o semelhante, segundo um antigo princípio grego. O homem
conhece o inteligível partindo e por meio do sensível por ser um ser
inteligente, mas também corpóreo-sensível. A inteligência pura conhece o
inteligível sem precisar da mediação do sensível e sem precisar da finitude
da razão, de seu caráter abstrativo e discursivo. A visão da essência é simples
naqueles cuja essência é também simples. Esta visão da essência é o que se
chama de intelecto. O homem é um ente de alma intelectual, mas é o mais
baixo na ordem dos seres intelectuais. No homem, o intelecto é razão
(capacidade abstrativa e discursiva). A razão é a marca da finitude do
intelecto humano. Não obstante, o homem, enquanto intelecto (espírito =
capacidade de conhecer e de amar), à medida que se volta para o verdadeiro
(pelo conhecimento) e para o bem (pela vontade), pode galgar os diversos
graus de espiritualidade dos espíritos (pode ser 'angélico', 'querúbico',
'seráfico'). Tomás diz que, apesar de podermos dizer que há gêneros e
espécies (=indivíduos/pessoas) no mundo espiritual das inteligências puras,
não podemos conhecer em que consiste as diferenças específicas que os
distinguem uns dos outros.
Apesar disso tudo, os puros espíritos não são absolutamente simples. Sua
simplicidade é relativa. Eles recebem o ser. São a partir de outro (ab alio).
Passam do não ser para o ser, enquanto seres criados. Passam, isto é, da
potência (possibilidade) para o ato (realidade), no ato criador. Eles não são
a sua essência, eles têm a essência e a têm à medida que a recebem da
Causa Primeira. Por isso, há neles uma diferença de forma (essência) e ser
(actus essendi: ato de ser; existência). A quididade das Inteligências é a
própria inteligência. Mas o ente, neste caso, não é imediatamente a sua
essência, para ser o ente que ele é, é preciso que ele receba a existência. A
essência designa o "o que é", a existência, o "que é".
128
A diferença entre essência e existência na criatura é uma tese fundamental
da ontologia medieval. Muito se discutiu se esta diferença era real ou apenas
mental ou se era algo intermédio entre o real e o apenas mental. Para Tomás,
a diferença entre essência e existência é real. A existência acrescenta algo
que a essência por si mesma não traz: o ato de ser. Que o ato de ser seja
algo de novo e independente do simples poder-ser de uma essência, é uma
tese que coloca Tomás do lado oposto ao platonismo, onde o ser era
iminentemente a essência e o existente era visto apenas como uma realização
transitória e fugaz da essência. Tomás inverte a metafísica? Parece que sim!
A essência só é essência enquanto pensado por um existente (seja Deus ou
o intelecto criado) ou enquanto individuada num existente. Isto é o oposto
do platonismo. Não há essência sem existência e toda essência é a essência
do existente ou para um existente (HEINZMANN, 1992, p. 210).
Chegamos, então, ao topo e à meta do discurso de O Ente e a Essência: Deus
(TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 230-235). O discurso deste opúsculo é, de
fato, uma elevação da mente para Deus, percorrendo graus ascendentes de
ser: das substâncias compostas às simples; das criadas à incriada; do ens ab
alio (ente que recebe o ser de outro), ao ens a se (ente que é o seu próprio
ser a partir de si mesmo). Ele é simplicíssimo, pois nele não há composição
de tipo algum, nem de matéria e forma, nem de potência e ato. A própria
composição de essência e existência se desfaz numa unidade absolutamente
simples. Uno em si mesmo, em Deus a essência e a existência constituem
uma única coisa. Em Deus, a essência é ente. Em Deus, a essência é o
existente e o existente é a essência. Deus não tem o ser que ele é, mas é o
ser que ele é. Deus é o ato puro de ser, o real realíssimo. Deus é o ser mesmo
(ipsum esse). De modo que alguns chegaram a dizer que Deus não tem
essência. Enquanto tal, Deus está fora de todo o gênero (extra omne genus).
É o transcendente por excelência. Vai além de todo o dizer e pensar da
criatura. Tudo o que podemos dizer dele é o que ele não é não o que ele em
si mesmo é. Sua transcendentalidade, porém, é diversa da
transcendentalidade do ens communis (o ente tomado na sua máxima
generalidade, anterior a toda a diferenciação de gênero, espécie e indivíduo).
Em Deus, a individuação é máxima: ele é o Único. Ele não é um entre outros,
nem é um todo especial. Ele é, simplesmente, o Um. E sua Unidade se faz
129
pela sua bondade. É por ser maximamente ser, que Deus é maximamente
bom. É por ser maximamente bom, que Deus é sumamente Uno. As pessoas
divinas, que compõem a Trindade, são momentos diversos do Único Deus,
mas, porque elas são sumamente amadas e sumamente amantes, elas são
uma Unidade essencial e substancial.
Resumindo: em Deus a essência é sua própria existência; nas criaturas
intelectuais, a essência é diferente da existência e é o próprio simples; nas
criaturas corporais, a essência é diferente da existência e é o próprio
composto de matéria e forma.
Mas, como ficam os acidentes? Tudo o que foi falado diz respeito a
substâncias. Os acidentes fazem parte da essência das substâncias? Os
acidentes têm essência? O que é acidente? Tomás empreende uma
investigação sobre a relação entre a essência e os acidentes na última parte
de “De ente et essentia” (TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 235-241). Acidente é
o sobrevém (accidit) ao ente, àquilo que o ente é em si mesmo (essência-
existência: substância; incluindo matéria e forma, no caso das substâncias
compostas). Se a substância é ente no sentido de "ser em si" (in se); o
acidente é ente enquanto o que não subsiste em si mesmo, mas somente em
outro (in alio). Por exemplo: o vermelho, enquanto cor, é uma qualidade de
algo, de um corpo. A cor vermelha sobrevém a este corpo como algo que o
determina ulteriormente. Nós não temos conhecimento direto da substância
das coisas, mesmo das coisas que nos rodeiam em nosso mundo sensível. Só
temos conhecimento das substâncias, por meio dos seus acidentes, isto é,
por meio das propriedades ou atuações desta substância. Há acidentes que
são propriedades intrínsecas da substância, que determinam mais
intrinsecamente o ente, como a qualidade e a quantidade, e há acidentes que
são propriedades extrínsecas, como a relação, o onde, o quando, etc. Os
acidentes intrínsecos decorrem da forma e os extrínsecos, da matéria, isto
no caso das substâncias compostas. Isto quer dizer que, para conhecermos
algo da essência das substâncias compostas, a qualidade e a quantidade são
modos de acesso imprescindíveis. A qualidade e a quantidade, pois, estão em
maior proximidade com a essência das substãncias compostas.
130
Há acidentes dos indivíduos (por exemplo, o fato de Sócrates estar na ágora
é algo de casual, acidental) e há acidentes da espécie (o fato de Sócrates ser
branco é algo de casual, acidental, contingente). Há acidentes que são
produzidos por princípios essenciais. Por exemplo: o calor do fogo; ou o riso
do homem. O calor é algo que manifesta o ser do fogo de maneira essencial,
embora seja em si mesmo algo de acidental. O calor é uma característica do
modo fundamental de agir do fogo e o agir de um ente decorre de seu ser
(agere sequitur esse: o agir segue o ser) (HEINZMANN, 1992, p. 220). O riso
pode ser algo de casual no homem, mas a capacidade de rir manifesta algo
que é próprio do homem, denotando uma característica típica e, por isso,
remetendo a algo de essencial no homem. Somente o homem produz uma
comédia, por exemplo. O riso é, em princípio, um sinal de inteligência e a
inteligência é uma nota essencial do homem, enquanto ser racional. O sorriso
manifesta a espiritualidade do homem, sua capacidade de se surpreender
com a graciosidade do ser, se dando como verdade e como beleza.
Os acidentes têm essência? Como não? Se eles são entes, têm essência. A
brancura é a essência do branco, a vermelhidão (o rubor) é a essência do
vermelho. Contudo, há uma diferença entre a denominação da essência no
caso dos acidentes e no caso das substâncias, quando vamos falar de espécie
e de gênero. "Animal racional" denomina a essência (definição) de homem.
Usamos palavras concretas para dizer a essência de uma substância. Já para
dizer a essência de um acidente, usamos palavras abstratas. O vermelho é
concreto: tem uma infinda gama de nuances ou matizes de vermelho. Mas a
essência do vermelho é a vermelhidão ou rubor. Palavras como "vermelhidão”
ou "rubor" são abstratas, mas dizem algo de essencial de um acidente. A
vermelhidão nomeia a espécie de vários casos particulares de vermelho. Por
sua vez, a vermelhidão é uma espécie do gênero cor, melhor, é uma espécie
de colorido ou coloração. Cor é um conceito abstrato, um conceito de gênero.
Nós não encontramos cores por aí, encontramos coisas vermelhas, verdes,
azuis, etc. Melhor, encontramos vermelhos, azuis, verdes em uma imensa
gama de matizes... Mas, acidentes só se dão nas criaturas. Em Deus não há
acidentes. À substância divina não sobrevém qualquer determinação ulterior
ou exterior, pois ela é una, simples, absoluta e plena. Os atributos da
substância divina são determinações que se resolvem na sua simplicidade.
131
Em Deus, não é uma coisa a misericórdia e outra a justiça. Em Deus, a justiça
é misericórdia e a misericórdia é justiça; por sua vez, justiça e misericórdia
são Deus em Deus, ou seja, elas se recolhem na unidade simples da
substância divina, do ser divino, que é o próprio ser (ipsum esse), o ser pleno.
É para este ser que caminha toda a especulação de o Ente e a Essência.
Tomás termina O ente e a essência, com um Amém. Todo este discurso
ontológico era uma elevação da alma para Deus. Se ente e essência é o que
por primeiro o intelecto concebe e se constituem, assim, o ponto de partida
de todo o discurso filosófico, Deus, o ente-essência ou a essência-ente, o ser
mesmo (ipsum esse), é o ponto de chegada do discurso filosófico.
Estante do saber
Textos
O ente e a essência
(http://www.lusosofia.net/textos/aquino_tomas_de_ente_et_essentia
.pdf), de Tomás de Aquino.
Tempo e Eternidade em Santo Tomás de Aquino
(http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num11/10.%20Carlos%2
0Nougue.pdf), de Carlos Nougué.
A psicologia de Tomás de Aquino: a vontade teleologicamente
orientada pelo intelecto
(http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a17/oliveira01.pdf), de
Cláudio Ivan de Oliveira.
Vídeos
A verdade segundo Tomás de Aquino
(http://www.youtube.com/watch?v=9E0paEH9LKg)
O Ente segundo Tomás de Aquino
(http://www.youtube.com/watch?v=8FAmW5EW_A0&feature=related
)
Evidência segundo Tomás de Aquino
(http://www.youtube.com/watch?v=QlNb_r77D74&feature=related)
132
Movimento e Natureza — Aristóteles e Tomás de Aquino
(http://www.youtube.com/watch?v=b_HH1WXQhjs&feature=related)
A síntese de pensamento de Tomás de Aquino é a mais imponente
da Idade Média. Seu pensamento é uma verdadeira construção de
uma catedral gótica, feita não de pedras e vitrais, mas de conceitos.
Com solidez e leveza, com ousadia e equilíbrio esta construção se
levanta ao mais alto, ao Altíssimo. Sua filosofia pode ser bem
entendida como uma ascensão da mente para Deus. É justamente
na construção arrojada e firme que Tomás se avantaja sobre os
demais escolásticos. Alberto Magno é mais abrangente, Boaventura
é mais ardoroso, Duns Scotus é mais rigoroso. Entretanto, em
nenhum destes pensadores o pensamento filosófico-teológico-
místico ousou construir em solo aristotélico uma catedral gótica
feita de conceitos e proposições. Seu pensamento no início foi
estranhado e combatido por agostinistas, franciscanos, dominicanos
e seculares, como João Peckham, Pedro de João Olivi, Roberto
Kilwardby e Pedro de Tarantaisa e Henrique de Gand. A condenação
que o bispo de Paris, Estevão Tempier, lançou contra várias teses
filosóficas aristotélicas em 1277, atingia não somente aos
averroistas da faculdade de Artes, mas também a ele. Não
obstante, vários outros conseguiram entrever a sua grandeza. A
Ordem dos Pregadores (dominicanos), aos poucos, o elegeu como o
teólogo oficial. Acabou sendo canonizado, no século XIV e, na
modernidade, escolhido pela Igreja como o doutor comum (Doctor
Communis). O tomismo, no entanto, permaneceu muito aquém,
como uma filosofia e teologia de epígonos. As discussões com
escotistas se perderam em pontos de vista e debates estéreis de
escolas. Não obstante, as intuições e posições de Tomás passaram
para a escolástica tardia, especialmente aquela cultivada pelos
jesuítas, e, através desta, à filosofia moderna. Suarez é um
mediador dos mais importantes neste processo. Descartes não
deixará de ter influências da escolástica em geral e, certamente,
133
também dos dois maiores pensadores da tradição cristã: Agostinho
e Tomás de Aquino.
134
Aula 10 - Boaventura de Bagnoreggio
No franciscano Boaventura de Bagnoreggio (Nome de batismo: João de Fidanza –
1217/18-1274) o pensamento se faz mística. Ele é a consumação da linhagem de
pensadores da tradição, que remonta a Clemente de Alexandria e Orígenes e passa
por Agostinho e Dionísio, por Anselmo, Ricardo e Hugo de São Vitor. Nesta tradição há
o seguinte esquema: o conhecimento sensível (dos sentidos) abre ao homem a
experiência do mundo; o homem transcende o conhecimento sensível pela sua
capacidade inventiva, surgindo, assim as artes mecânicas (saber artesanal e técnico),
que, por sua vez, são superadas pelas sete artes liberais (as ciências teóricas: as
matemáticas e as da linguagem); estas então fluem para a filosofia (tripartida em
filosofia racional, natural e moral); a filosofia, por sua vez, é assumida sob e ao interno
da teologia, como a busca das razões da fé; a teologia especulativa, porém, é exercício
de iluminação e desemboca no silêncio contemplativo e na imersão mística (a
experiência da "caligem": as “trevas luminosas” do mistério divino). Neste sentido, a
filosofia é um momento no Itinerário da mente para Deus (Itinerarium mentis in
Deum). Ela é o saber que o homem alcança a partir da luz interior, que é a luz do seu
intelecto. Mas há ainda uma luz superior: que é a luz da revelação.
10.1 A filosofia no itinerário da mente para Deus
O conhecimento filosófico, portanto, na concepção de Boaventura, não pode ser
cultivado em função dele mesmo. Seria como parar no itinerário da mente para Deus.
Ademais, se o homem permanece abandonado ao uso da sua razão somente, ele
fatalmente erra. Pois, falando como teólogo, Boaventura adverte que a natureza
humana foi corrompida pelo pecado e uma das consequências desta corrupção da
natureza humana é a ignorância. A natureza humana não se encontra em seu estado
perfeito originário, mas em estado degenerado. A razão é como uma flecha que não
consegue alcançar o seu alvo por si mesma. A verdade plena, que a razão busca, só é
encontrada quando a razão é iluminada pela verdade sobrenatural da revelação. A
revelação assume, porém, a razão dentro dela mesma. Por isso, a fé não se limita a crer,
135
mas quer também compreender aquilo que crê. Ela se empenha com todas as forças da
razão em compreender o sentido daquilo que crê e disso surge a teologia. Entretanto,
todo o empenho racional da razão no interior da teologia consiste na busca de se abrir
à iluminação do alto. Todo o conhecimento vem de Deus e retorna para Deus. Por fim,
porém, o homem deve fazer calar em si mesmo toda a voz da especulação e, no silêncio,
reconhecer que o mistério de Deus está além de toda especulação. Por fim, a questão
é experimentar afetivamente este mistério, no silêncio, transportando-se para dentro
dele, para dentro da sua caligem (treva) luminosa, suprarracional e superessencial,
como dizia Dionísio Areopagita.
A título, pois, de esboço para uma introdução no âmbito de tal pensamento, demos
alguns acenos a partir de duas obras de S. Boaventura: o De Reductione Artium ad
Theologiam (Da redução das artes à teologia) e o Itinerarium Mentis in Deum (Itinerário
da mente para Deus). O opúsculo comumente intitulado De Reductione Artium ad
Theologiam, pode ser situado, quanto à data de sua composição, dentro do período em
que S. Boaventura era Magister Regens (Mestre Regente) na Universidade de Paris, isto
é, entre 1253 e 1257, ano em que ele foi eleito ministro geral da ordem franciscana, o
sétimo na sucessão dos ministros gerais que governaram a Ordem depois do Fundador,
Francisco de Assis. Pode-se ver uma afinidade entre este opúsculo e sua obra prima, o
Itinerarium Mentis in Deum, que foi escrito no ano de 1259, portanto, 33 anos depois da
morte de Francisco de Assis. O mesmo tipo de tematização se encontra também nas
Collationes De Septem Donis Spiritus Sanctii (Conferências sobre os sete dons do Espírito
Santo) e nas Collationes in Hexaemeron (Conferências sobre os seis dias da criação),
conferências universitárias pronunciadas em Paris, aquelas de 1268, e estas de 1273
aproximadamente. Em todos estes escritos o sentido dos estudos é esclarecido como o
empenho da busca contemplativa de Deus através dos diversos modos de constituição
da realidade e do conhecimento. Realidade e conhecimento, aliás – há que se lembrar –
não estão no pensamento medieval, assim como estão no pensamento moderno, frente
a frente, face a face como contrapostos, a modo do esquema sujeito-objeto. Para o
pensamento medieval o conhecimento mesmo é a realidade na sua máxima
potencialização. Somente no conhecimento, isto é, no âmbito do Intelecto, é que a
realidade se chega a si mesma em sua inteligibilidade e encontra sua luminosidade plena
136
através da compreensão e da linguagem. O mundo mesmo se eleva e se esclarece no
seu próprio ser através da mente que se deixa aviar na busca de Deus, o ser mesmo,
fonte e plenitude de todo o ser. Quando se fala da realidade se está falando do
conhecimento, e vice-versa. Por isso, as obras de S. Boaventura estão sempre falando
do mesmo itinerário de busca, no qual a realidade e o conhecimento, para a finitude do
pensamento humano, se iluminam na sua plena claridade.
10.2 A luz fontal e suas irradiações
A Idade Média, vulgarmente considerada uma época de trevas, amou sumamente a luz.
A arte gótica é testemunha disso. Também o é a metafísica da luz, desenvolvida em
Oxford, por Roberto Grosseteste e pelo franciscano Roger Bacon. Em Boaventura,
podemos falar, mais propriamente, de uma mística da luz. O conhecimento, que é luz e
que torna a realidade esclarecida e transparente, provém da luz fontal, que é Deus, e
para ele deve poder retornar, graças ao empenho do homem de se deixar iluminar pelas
diversas luzes que o solicitam. Os dois textos que estamos tomando em consideração, o
Da redução das artes à teologia e o Itinerário da mente para Deus começam com a
citação bíblica da Epístola de Tiago (cap. 1, vers. 17): “omne datum optimum et omne
donum perfectum desursum est, descendens a Patre luminum” – “toda dádiva ótima e
todo dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes” (BOAVENTURA, 1998, p. 291
e 351). Tudo quanto há, todo o ser e todo conhecer, é bom, é mesmo ótimo, pois tem a
sua origem em Deus mesmo, o sumo e eterno Bem. É o próprio S. Boaventura quem
elucida: “nesta palavra se toca a origem de todas as iluminações, e ao mesmo tempo,
com ela, se insinua a emanação generosa, liberal, das múltiplas luzes a partir daquela
luz fontal” (BOAVENTURA, 1998, p. 351). Para o pensamento medieval o sentido do ser
se expressa como luz. Seja no reino dos corpos seja no reino do espírito os entes ocupam
seu lugar no cosmo de acordo com a capacidade deles de receber e de transmitir a luz.
O ser é luz. Deus, o ser absoluto, que é uno e que é tudo, o ente a se, o ente que,
enquanto criador, se faz fonte de todo o ser que ele mesmo não é, de todo ser relativo,
que só existe na medida em que participa da comunicação do ser que provém do criador,
é o princípio fontal de toda a iluminação. Deus é luz (Deus est lux) no sentido mais
próprio e originário. Dele emana como que um manancial, uma cascata, de luz. Os
137
diferentes degraus do ser criado não são outra coisa que diferentes níveis de iluminação,
ou diferentes níveis de participação no ser que Deus mesmo comunica a partir de si. A
criatura, com efeito, só é algo, na medida em que participa desta comunicação do ser,
isto é, desta iluminação divina. Por si mesma e em si mesma ela é um puro nada, uma
pura escuridão. Enquanto é algo, na sua finitude, a criatura é, portanto, cada vez uma
síntese entre luz e escuridão, entre ser e nada, entre ato e potência, forma e matéria.
Quanto mais material, tanto mais obscura; quanto mais espiritual, tanto mais luminosa
é a criatura. Só Deus é o ser puro e absoluto, a luz sem escuridão alguma, o ato puro, a
forma de todas as formas. O homem é chamado a ascender pelos diversos degraus do
ser criado e, através, desta ascensão, a preparar cada vez o salto para dentro da
claridade total, fontal, originária que é Deus mesmo. O Itinerarium Mentis in Deum
(Itinerário da mente para dentro de Deus) é a preparação para este salto, um salto para
dentro do abismo da luminosidade originária e absoluta de Deus.
O De reductione artium ad Theologiam (Da redução das artes à teologia) é uma
elucidação desta via iluminativa, ou seja, a via que o espírito percorre para ser
plenamente iluminado (BOAVENTURA, 1998, p. 351-367). Nesta obra, o Doutor Seráfico
nomeia quatro iluminações. Na quaternidade iluminativa assinalada por Boaventura se
encontra toda iluminação que é emanada a partir da irradiação daquela luminosidade
fontal que é o próprio Deus. S. Boaventura elenca uma luz exterior, uma luz inferior,
uma luz interior e uma luz superior.
10.3 A luz exterior: as artes mecânicas
A luz exterior é aquela das assim chamadas artes mecânicas (BOAVENTURA, 1998, p.
351-353). Na Idade Média, assim como na Antiguidade, tanto o artesanal como o
artístico, tanto o útil como o agradável, pertenciam ao âmbito da arte. O conteúdo
semântico da palavra arte era muito mais vasto. Um eco desta compreensão antiga da
arte se deixa insinuar em palavras do nosso vocabulário, tais como artífice, artesão,
artefato, artesanal e, até mesmo, em expressões aparentemente diferentes tais como
em fazer arte no sentido da jovialidade de uma criança, de sua inventividade ao mesmo
tempo ousada e inocente. A arte é o empenho que traz à luz uma obra. É um saber e um
poder criar, produzir, inventar obras. Enquanto empenho, exige de quem nele se lança
138
o exercício, a retomada do próprio fazer num perfazer sempre mais aprimorado junto à
coisa que se toma como material para a obra. A arte diz, portanto, um modo de ser e de
proceder, elementar e primário, através do qual o homem lida com a realidade. É no
corpo a corpo da lida com a realidade, com as coisas, com as situações, consigo mesmo,
que o homem faz gerar todo um mundo que não existia naturalmente: o mundo-cultura.
Na verdade, o homem não somente gera artefatos e obras a partir de seu fazer
inventivo, mas também – neste mesmo fazer – ele gera a si mesmo e ao seu mundo
cultural e histórico, ele co-nasce, isto é, ele nasce junto com o mundo, ele conhece a si
e seu mundo e tudo que lhe vem ao encontro a partir deste empenho de lida e de corpo
a corpo com o elementar das coisas e das situações.
A partir do texto de Boaventura podemos compreender que existem dois tipos básicos
de arte. Um é o das artes chamadas mecânicas; outro, porém, o das artes chamadas
liberais. A arte mecânica é uma luz que guia o homem para a produção de artefatos que
vêm de encontro à indigentia corporis, à indigência do corpo, isto é, à necessidade
elementar do humano na sua finitude corpórea, física, material: alimentar-se, vestir-se,
morar e proteger-se, curar-se das doenças e afastar a tristeza do espírito. Boaventura,
na trilha de Hugo de São Vítor, enumera sete artes mecânicas: lanificium, armatura,
agricultura, venatio, navigatio, medicina, theatrica, ou seja, as artes de produzir o
vestuário, seja para o uso civil seja para o militar, nomeadas como lanifício e armadura;
as artes de produzir o alimento, seja vegetal seja animal, nomeadas como agricultura e
caça; a arte mercantil de providenciar, através do comércio, aquilo que não se tem à
mão para o uso cotidiano, nomeado como navegação; a arte de prevenir e de curar as
doenças, de vir em socorro da enfermidade do corpo, nomeado como medicina; e, por
fim, a arte do divertimento, de produzir espetáculos que venham de encontro à
indigência da alma, à tristeza, nomeada como arte do teatro (HUGO DE SÃO VÍTOR,
2001, p. 111-123). Boaventura recorda que “toda arte mecânica é para produzir ou
consolação ou comodidade; é para excluir ou a tristeza ou a indigência; é para o útil ou
para o agradável” (BOAVENTURA, 1998, p. 352). O Doutor Seráfico chama de mecânica
a estas artes. Deve-se entender aqui a palavra “mecânico” a partir de seu sentido
originário. Com efeito, a palavra “mecânica” vem do verbo grego mekhanáomai, que
significa o ter a esperteza no bolar um plano, saber preparar e executar bem uma obra,
139
manufaturar com habilidade e competência alguma coisa. Mekhané significa o meio, o
instrumento, o recurso da habilidade e da competência. Arte mecânica quer dizer,
portanto, o gosto, a habilidade e a competência inventiva do humano que o levam a
providenciar o elementar para vir em socorro da sua finitude no mundo. Boaventura
chama de luz exterior a iluminação inventiva que guia o homem através das artes
mecânicas.
Existem, porém, outras artes, nas quais o homem, livre da indigência do corpo, pode se
dedicar à busca do conhecimento pelo conhecimento, guiado pelo simples e
desinteressado gosto pelo desvelamento da realidade tal como ela se apresenta ao
espírito humano. São as chamadas artes liberais. Na idade média elas compreendiam o
quadrivium (geometria, aritmética, astronomia e matemática) e o trivium (gramática,
dialética e retórica), isto é, as artes que guiam o espírito humano no conhecimento das
coisas (res) e da linguagem (verbum). A dedicação a elas supõe o otium, a scholé, isto é,
o cultivo livre e desinteressado do saber, a dedicação gratuita pelas coisas do espírito.
Mas tais artes, na idade média, estavam compreendidas como disciplinas pertencentes
ao âmbito da filosofia, o que Boaventura chama de luz interior.
10.4 A luz inferior: o conhecimento sensível
A luz inferior é aquela do conhecimento sensível, isto é, aquela que guia o homem na
experiência da natureza, experiência que ele faz através da sensibilidade (BOAVENTURA,
1998, p. 353-354). Através dos cinco sentidos – a vista, a audição, o olfato, o gosto e o
tato – o homem conhece de modo natural e originário o mundo circundante. Ver, ouvir,
cheirar, degustar e tocar são modos de conhecimento do mundo. Através dos cinco
sentidos o homem, enquanto microcosmus ou minor mundus (microcosmo ou mundo
menor) opera a descoberta do mundo sensível, o macrocosmus ou maior mundus
(macrocosmo ou mundo maior). É que os cinco sentidos guardam uma correspondência
e uma relação de conveniência com os cinco elementos que constituem todos os corpos:
a terra, a água, o ar e o fogo, mais a quinta essência, que para S. Boaventura é indicada
pela luz. O conhecimento do mundo sensível, por sua vez, tem a função de proporcionar
ao homem a percepção das coisas e, nesta percepção, o prazer proveniente da beleza,
da suavidade ou da salubridade delas; e, para além da percepção e do prazer, o
140
conhecimento sensível serve também como ponto de partida para o conhecimento
inteligível do mundo que se dá através da sensibilidade. No Itinerarium Mentis in Deum
os dois primeiros degraus da ascensão para Deus são constituídos pelo conhecimento
sensível (BOAVENTURA, 1998, p. 300-315). Através das coisas descobertas pela
sensibilidade e nelas mesmas nós podemos entrever o poder, a sabedoria e a bondade
do Criador. Elas são, assim, como que vestígios, sombras, simulacros do Criador.
10.5 A luz interior: o conhecimento filosófico
A luz interior é aquela da filosofia. Esta luz guia o homem no conhecimento das verdades
intelectuais (BOAVENTURA, 1998, p. 354-356). Trata-se ou das verdades do discurso
(veritas sermonum – filosofia racional ou lógica), ou das verdades das coisas (veritas
rerum – filosofia natural ou física), ou ainda das verdades dos costumes (veritas morum
– filosofia moral ou ética). No fundo, trata-se da mesma subdivisão da filosofia que os
antigos estabeleceram: episteme logike (conhecimento lógico), episteme physike
(conhecimento físico) e episteme ethike (conhecimento ético). As disciplinas filosóficas
se dão ao redor de três eixos fundamentais: o logos, a physis e o ethos, isto é, a razão
discursiva em si mesma; depois, a totalidade dos seres a partir do modo de constituição
ontológica que lhes é próprio; e, por fim, o âmbito da liberdade, ou seja, da vida humana
enquanto entregue à responsabilidade do bem viver e do bem agir. Trata-se, portanto,
de investigar as razões da intelecção, as causas do ser e a ordem do viver. Da filosofia
racional fazem parte, segundo Boaventura, as disciplinas referentes à compreensão e à
linguagem, ou seja, a gramática, a lógica e a retórica. Da filosofia natural, por sua vez,
fazem parte as disciplinas referentes aos diversos modos de ser dos entes, ou seja, a
física que diz respeito aos entes que surgem e perecem, a matemática, que diz respeito
àquilo que é imanente à matéria, mas que em si mesmo é imutável, ou seja os números
e as figuras e, por fim, a metafísica, que investiga as causas imutáveis e os princípios
essenciais dos entes no seu ser. Da filosofia moral, enfim, fazem parte a ética individual,
a ética social e a ética política. S. Boaventura diz que a luz do conhecimento filosófico é
dita interior “porque inquire as causas interiores e latentes, e isto através dos princípios
das disciplinas e da verdade natural, que são inseridas naturalmente no Homem”. Trata-
se, portanto, de exercitar o intellectus, ou seja, de intuir o essencial de todas as coisas,
141
de recolher da realidade aquilo que ela tem de mais essencial, que só se torna visível
através de uma visão intelectual, de ir ao fundo das coisas, de sondar o fundamento a
partir de onde tudo se constitui. Realizando tal tarefa o homem se essencializa a si
mesmo, pois a vocação natural do homem é ser a instância na qual o ser de todas as
coisas vem à luz. Por isso, a filosofia diz respeito, em última instância, à essencialização
do próprio homem, ao seu autoconhecimento e à descoberta da verdade que se
encontra nele mesmo. A postura filosófica fundamental é, assim, concebida na trilha da
tradição socrática do “conhece-te a ti mesmo” e, além disso, agostiniana, ou seja, aquela
que convida a descobrir no homem interior o lugar próprio da verdade.
10.6 A luz superior: a sagrada escritura
A luz superior é aquela da graça e da Sagrada Escritura. Tal luz é dita superior “porque
conduz para as realidades superiores, manifestando o que está acima da razão e porque,
não pela invenção, mas pela inspiração desce do Pai das luzes” (BOAVENTURA, 1998, p.
356-357). Trata-se, portanto, de uma iluminação que está além da habilidade, da
competência, da inventividade e da capacidade de investigação do homem. Não está no
raio das possibilidades do homem. Mas é graça de um encontro com o Deus e Pai de
Jesus Cristo, o Crucificado. A iniciativa deste encontro é de Deus mesmo e não do
homem. Ele é o amor que amou os homens por primeiro. E porque os amou quis
comunicar a si mesmo, revelar-se e doar-se a eles no seu Filho. A autorrevelação ou
autocomunicação de Deus em Jesus Cristo, testemunhada pelas Sagradas Escrituras,
constitui a iluminação própria da verdade salutar, ou seja, daquela verdade que é,
fundamentalmente, verdade de salvação. Não se trata mais, aqui, de conhecer verdades
que estão ao alcance do próprio homem na finitude de seu intelecto, como na filosofia.
Trata-se, agora, de acolher a iluminação de uma verdade que salva, isto é, que tem o
poder de gerar o homem para uma nova existência, para a vida e a liberdade dos Filhos
de Deus. A salvação é a recondução do homem a esta nova existência, é o seu
renascimento em uma nova vida, um novo céu e uma nova terra. Desta quarta
iluminação fala-nos o mesmo s. Boaventura no Itinerarium quando fala do quarto
degrau na ascensão para Deus. Toda a Sagrada Escritura tem em vista a obra da salvação.
Aqui nós nos movemos dentro da ordem da caridade, para usar a terminologia de Pascal.
142
O amor é a essência e a finalidade da revelação das Sagradas Escrituras. O que se deve
crer diz respeito ao evento maior da história da salvação, que testemunha o imenso
amor com que Deus nos amou: a Encarnação do Verbo incriado, o Filho de Deus. O que
se deve praticar a partir da leitura das escrituras não é outra coisa que o amor, e isto na
sua dupla forma, de amor a Deus e de amor ao próximo. Aquilo a que se deve tender,
aquilo que devemos aspirar com todas as forças de nosso ser é a união no amor com
este Deus que vem a nós através de Jesus Cristo, o Crucificado. A leitura das Sagradas
Escrituras deve ser sempre guiada buscando o que se deve crer, como se deve viver, e
como aderir a Deus na união que o amor nos proporciona. Daí resulta os três sentidos
espirituais da Sagrada Escritura, tão marcantes na exegese e hermenêutica medieval, ou
seja, o alegórico, o moral e o anagógico. O alegórico dá ao crente a clareza da
compreensão acerca daquilo que ele deve crer, ou seja, acerca do evento da
Encarnação. O moral ou tropológico lhe ensina como ele deve viver seguindo o
mandamento do amor. O anagógico lhe ensina como ele deve se deixar conduzir para
aderir a Deus na suprema união amorosa para a qual o homem é atraído. Desta leitura
das Sagradas Escrituras, acrescida e aprofundada com a leitura dos Padres e doutores
da Igreja, mestres na fé, na conduta da vida cristã e na contemplação é que surge o que
S. Boaventura chama de Teologia.
O De reductione artium ad theologiam é, portanto, uma re-flexão na qual toda a
iluminação que procede de Deus retorna, isto é, é reconduzida (reductio) à sua origem.
Todo o saber deve poder conduzir o homem a Deus, pois todo genuíno saber é um dom
de Deus. Toda a realidade deve remeter a Deus, pois toda a realidade é um aceno que
remete para a sua origem: Deus mesmo. Boaventura lê toda a realidade à luz de um
sentido último, isto é, à luz do encontro com o Deus de Jesus Cristo Crucificado. Em
todos os modos de constituição da realidade e do conhecimento, seja aquele da
capacidade inventiva do homem, seja aquele que se dá por vias de sua sensibilidade,
seja aquele que conduz o homem à sua essencialização mais própria através da busca
dos primeiros princípios de todas as coisas, o Doutor Seráfico surpreende sempre
acenos, vestígios, imagens, semelhanças que permitem co-intuir a presença do Deus da
revelação, quer da revelação natural que se dá por meio da criação, quer da revelação
sobrenatural que se dá por meio Sagrada Escritura, semelhanças que remetem à ordem
143
da caridade, que fazem vibrar o coração do homem no desejo da união com o Sumo
Bem. O De reductione artium ad theologiam é, por conseguinte, uma conversão ou
retorno (reditus) de todo o saber à ordem da graça ou da caridade.
Depois de falar das quatro iluminações S. Boaventura conclui:
Das coisas que foram ditas concluímos que, embora pela primeira divisão seja quádrupla
a luz que desce do alto, são porém seis as suas diferenças: a saber, a luz da Sagrada
Escritura, a luz da cognição sensitiva, a luz da arte mecânica, a luz da filosofia racional,
a luz da filosofia natural, a luz da filosofia moral. E, portanto, são seis as iluminações
nesta vida e elas têm ocaso, porque toda a ciência será destruída; e, assim, lhes sucede
o sétimo dia do repouso, que não tem ocaso, a saber a iluminação da glória.
(BOAVENTURA, 1998, p. 357-358).
As seis diferentes iluminações, os seis degraus na ascensão para Deus, tudo isso fala da
nova criação, do homem novo formado à imagem do Verbo incriado e encarnado. Mas
estes senários falam também da finitude da experiência espiritual do Homo Viator, ou
seja, do homem do peregrino que busca a Deus. O amor é já certo descanso, um
prenúncio e um início do sétimo dia, o dia do repouso, símbolo da quietude da paz que
se dá por meio da união amorosa com Deus na eternidade. A iluminação natural conduz
à iluminação da graça e esta, por sua vez, à iluminação da glória. A ciência é algo de
provisório, o seu sentido não é outro que o amor, ou seja, a caridade, aquilo que deve
permanecer para sempre, por toda a eternidade.
10.7 Deus como ipsum esse (o ser mesmo)
No Itinerarium Mentis in Deum (Itinerário da mente para Deus), depois de falar dos
quatro primeiros degraus da ascensão da alma para Deus, os quais correspondem à
contemplação de Deus extra nos (fora de nós) e intra nos (dentro de nós), Boaventura
fala da contemplação de Deus supra nos (acima de nós). Trata-se de fixar o olho do
espírito, isto é, a mens, na claridade mesma de Deus. No quinto degrau se contemplam
as perfeições invisíveis de Deus à luz do nome de Deus enquanto ipsum esse, o ser
mesmo. De tal contemplação nos fala S. Boaventura:
144
... querendo, pois, contemplar as perfeições invisíveis de Deus referentes à unidade da
essência, fixe primeiramente o olhar no ser mesmo e veja que o ser mesmo é em si
certíssimo, de tal modo que não pode ser cogitado como não sendo, porque o ser mesmo
puríssimo não se dá a não ser na plena fuga do não-ser. Com efeito, assim como o nada
absoluto nada tem de ser nem de suas propriedades, assim também o ser mesmo nada
tem de não-ser, nem em ato nem em potência, nem segundo a verdade da coisa nem
segundo a nossa estimação. Como, porém, o não ser é a privação do ser, ele não recai
na nossa intelecção a não ser em virtude do ser; o ser, porém, não é apreendido pelo
intelecto em virtude de um outro, porque tudo aquilo que é apreendido pelo intelecto ou
é apreendido como não-ente, ou como ente em potência, ou como ente em ato. Se, pois,
o não ente não pode ser compreendido a não ser em virtude do ente, e o ente em
potência a não ser por meio do ente em ato – e ser nomeia o mesmo ato puro de ser,
então ser é aquilo que originariamente cai sob apreensão do intelecto; e aquele ser é o
que é ato puro. Mas tal ser não é um ser particular, que é ser limitado, porque é mesclado
de potência; nem é ser análogo, porque este nem mesmo está em ato, nem mesmo
existe. Resta, portanto, que aquele ser é o ser divino. (tradução nossa. Cfr. BOAVENTURA,
1998, p. 332-333).
O ser mesmo é a verdade no sentido originário, é o fenômeno por excelência.
Manifestíssimo e certíssimo em si mesmo. O ser que exclui de si todo o não-ser. O ser
que é plena positividade, posição absoluta. O ser que é por si mesmo é o que por si
mesmo se dá a compreender, de modo originário. Tal ser é puro ato de ser. Tal é o ser
divino. Torna-se estranho, pois, que, sendo o ser divino o ser manifestíssimo por que é,
então, que o nosso intelecto só com muito custo é que se dá conta deste ser. Na trilha
de Aristóteles o próprio Boaventura esclarece acerca desta cegueira do intelecto
humano:
... é pois admirável a cegueira do intelecto que não considera aquilo que originariamente
vê e sem o que não pode conhecer nada. Mas como o olho que está voltado para as
várias diferenças das cores não vê a luz, por meio da qual vê todo o resto – ou se vê não
se dá conta dela – assim o olho da nossa mente, voltado para os entes particulares e
universais, não adverte o ser mesmo, que é fora de todo o gênero, ainda que este seja o
primeiro que se dá à nossa mente e que através dele todos os outros se nos ocorrem.
145
Donde aparece de modo veríssimo que ‘assim como o olho do morcego se atém à luz,
assim também o olho da nossa mente se atém aquilo que é manifestíssimo da natureza’;
porque acostumado às trevas dos entes e às imagens sensíveis, quando intui a luz mesma
do sumo ser, parece-lhe que nada vê; não compreendendo que esta caligem mesma é a
suma iluminação da nossa mente, assim como quando o olho vê a pura luz, parece-lhe
nada ver. (tradução nossa. Cfr. BOAVENTURA, 1998, p. 334).
10.8 Deus como summum bonum (sumo bem)
No âmbito do lumen naturale (luz ou lume natural da razão) a contemplação do ser
mesmo é a nossa suma iluminação. No âmbito, porém, do lumen supranaturale (luz ou
lume sobrenatural da fé) ainda é possível uma iluminação ulterior, que é descrita por
Boaventura no sexto degrau do Itinerarium. Assim como no quinto degrau a
contemplação do ser mesmo conduzia à convicção da unidade do ser divino, no sexto
degrau a contemplação do Sumo Bem conduz à convicção da trindade pessoal deste
mesmo ser. O ponto de partida é o princípio do bonum diffusivum sui (o bem difusivo
de si mesmo). Depois de dar as razões de tal convicção da fé, S. Boaventura nos convida:
... se podes, contempla, pois, com o olho da mente a pureza desta bondade, que é ato
puro dum princípio que ama caritativamente com um amor gratuito, com um amor
devido e com os dois amores simultaneamente. Um amor que é pleníssima comunicação
do sumo Bem por meio da inteligência e da vontade: pelo primeiro modo, produzindo o
Verbo – em quem se dizem todas as coisas – e, pelo segundo, produzindo o Dom – em
quem se doam todos os outros dons. A perfeita comunicabilidade do sumo Bem far-nos-
á compreender que é necessário exista a Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
(tradução nossa. Cfr. BOAVENTURA, 1998, p. 339-340).
Mas, adverte-nos, S. Boaventura, em tal contemplação não devemos nos deixar
enganar, como se estivéssemos compreendendo o incompreensível. Aqui a nossa razão
se embate na incompreensibilidade do paradoxo. Os mistérios da fé, a Trindade e a
Encarnação, vigoram no paradoxo. E isto deixa o espírito do contemplativo atônito de
admiração. A busca de Deus através do caminho da iluminação cristã chega ao seu ápice
146
na contemplação da Encarnação, isto é, do mistério paradoxal do Deus-Homem. Diz-nos
o Doutor Seráfico:
... nesta consideração o espírito se ilumina perfeitamente, contemplando, como no sexto
dia da Criação, o homem feito à imagem de Deus. Com efeito, se a imagem é uma
semelhança expressiva, quando nossa mente considera em Jesus Cristo – que é, por
natureza, a imagem do Deus invisível – a nossa humanidade tão admiravelmente
exaltada e tão inefavelmente unida, vendo reunidos numa só pessoa o primeiro e o
último, o sumo e o ínfimo, o centro e a circunferência, o alfa e o ômega, a causa e o
efeito, o criador e a criatura – isto é, o ‘livro escrito por dentro e por fora’- então ela já
chegou ao termo do seu itinerário. Agora chegou à perfeição de suas iluminações, como
Deus chegou à perfeição de suas obras no sexto dia da Criação. (BOAVENTURA, 1998, p.
344).
10.9 A caligem: a claridade superluminosa do ser divino
A razão se embate com o paradoxo na contemplação dos mistérios mais abscônditos da
fé: a Trindade e a Encarnação. Aqui reina o incompreensível, a coincidentia oppositorum
(coincidência ou conjunção dos opostos). Aqui a investigação mergulha na Docta
ignorantia, para usar uma expressão de Nicolau de Cusa. No sétimo degrau do
Itinerarium, Boaventura convida, pois, o leitor a dar o salto no abismo da claridade
divina. É o mergulho na noite luminosa do ser divino, a “caligem”, de Dionísio
Areopagita. Diz-nos o Doutor Seráfico: “Agora resta à nossa mente transcender e passar,
pela consideração destas coisas, não apenas além deste mundo sensível, mas também
além de si mesma”. Nesta passagem, porém, há que se recorrer ao mediador entre Deus
e o homem: Jesus Cristo Crucificado, que é o caminho e a porta, a escada e o veículo
para o homem chegar ao ser divino. Entretanto, para que esta passagem seja perfeita,
é mister que o homem abandone todas as operações intelectuais, se deixe transportar
e transformar em Deus, com o seu mais profundo afeto. É este um dom místico e
secretíssimo que
... ninguém conhece, senão quem o recebe. Nem o recebe, senão quem o deseja. Nem o
deseja, senão quem está inflamado profundamente pelo fogo do Espírito Santo que Jesus
147
Cristo enviou à terra. Por isso o Apóstolo diz que esta sabedoria foi revelada pelo Espírito
Santo. Já que, para obter esta passagem das criaturas a Deus, nada pode a natureza e
pouco o esforço humano, é preciso dar pouca importância à indagação e muita à unção,
pouca à língua e muita à alegria interior, pouca à palavra e aos livros e muita ao dom de
Deus – isto é, ao Espírito Santo -, pouca ou nada à criatura e toda à essência criadora –
o Pai, o Filho e o Espírito Santo (...) Se agora procuras saber como isso acontece,
pergunta-o à graça e não à ciência, ao desejo e não à inteligência, ao gemido da oração
e não ao estudo dos livros, ao esposo e não ao mestre, a Deus e não ao homem, à
escuridão e não à clareza. Pergunta-o, não à luz, mas ao fogo que tudo inflama e
transfere a Deus com uma unção que arrebata e um afeto que devora. (BOAVENTURA,
1998, p. 346).
O salto do mergulho na noite clara e silenciosa do mistério de Deus é uma morte mística.
Trata-se daquela morte que é posta como condição da possibilidade para a visão de
Deus. Por isso diz S. Boaventura:
... morramos, pois, e entremos nas trevas. Imponhamos silêncio às nossas inquietações,
concupiscências e imaginações. Com Cristo crucificado passemos ‘deste mundo ao Pai’,
para que, depois de no-lo ter sido mostrado, possamos dizer com Filipe: ‘Isto nos basta’,
e possamos ouvir com São Paulo: Basta-te a minha graça’. (BOAVENTURA, 1998, p.348).
Estante do pensar
Teologia e Metáfora em Boaventura
(http://www.lusosofia.net/textos/martins_antonio_rocha_teologia_e_metafora_boav
entura.pdf), de António Rocha Martins.
Junto com Tomás de Aquino, Boaventura é a culminância do pensamento filosófico-
teológico-místico do século XIII. Nele, as intuições fundamentais da espiritualidade
franciscana encontra uma formulação filosófico-teológica, a tradição agostiniana
chega a uma síntese admirável e a mística do Pseudo-Dionísio encontra uma expressão
escolástica. Boaventura mostra que escolástica e mística são uma unidade
148
substancial, uma dupla expressão de pensamento. Sua visão do cosmos como uma
teofania, concede um sentido simbólico a todas as coisas. O universo se torna um todo
relacional, onde tudo remete a tudo e o todo remete ao Verbo. Tudo é palavra, pois
tudo é ressonância do Verbo divino, que diz: “faça-se a luz” (fiat lux). Nele, a metafísica
da luz, trabalhada por Roberto Grosseteste e por Roger Bacon, recebe novos impulsos.
Sua valorização da interioridade recorda a Agostinho, que exorta a buscar a verdade
no homem interior. Sua ênfase na afetividade e na vontade, reassume a interpretação
da teologia dada pelo seu mestre Alexandre de Hales, que entendia o conhecimento
teológico não como ciência, mas sim como sapiência, ou seja, como um saber
experimental-afetivo do divino. De Alexandre de Hales também, Boaventura retoma
a visão do “bonum diffusivum sui” (o Bem difusivo de si mesmo) como princípio de
todas as coisas no universo, assim como o Sol da Alegoria da Caverna, de Platão. Sua
valorização do indivíduo vai ser um contributo importante para a escola franciscana,
que se seguirá com Duns Scotus. Duns Scotus e Guilherme de Ockham vão, no século
seguinte, dar continuidade, ao seu modo, às decisões e intuições prévias do
franciscanismo na filosofia e na teologia. É interessante como Francisco de Assis, que
se dizia “simplex et idiota” (simples e idiota), pôde imprimir em toda uma escola
filosófico-teológica da Idade Média, um espírito e uma tônica própria. Alexandre de
Hales, Boaventura, Roger Bacon, Duns Scotus e Guilherme de Ockham beberam de
uma mesma fonte e deram, cada qual a seu modo, expressão escolástica ao espírito
do poeta trovador de Assis, que, de pés no chão e roupa surrada, tomava dois gravetos
em suas mãos e os tocava ao ombro como se fosse um violino, cantando o Canto da
Criação, que ressoa em todas as coisas.
149
Aula 11 – A filosofia na crise do século XIV
A capacidade de criar história do medievo cristão começa a declinar
a partir da segunda metade do século XIII. A partir da crise vai
acontecendo uma autodestruição do medievo cristão. Desta crise,
na lenta transição dos séculos XIV e XV, surge o mundo novo da
época moderna. Em meio a ela, a metafísica se torna filosofia
transcendental em Duns Scotus e a mística especulativa chega a seu
ápice no dominicano Mestre Eckhart. Acontece, assim, a passagem
de uma ontologia substancial para uma ontologia relacional,
funcional-sistêmica ou estrutural. Vejamos, então, nesta aula, o que
acontece com e na filosofia neste tempo de crise e de passagem.
11.1 A crise
A partir da segunda metade do século XIII, entram em crise e declinam juntas
as três instituições medievais portadoras de pretensões universais: o Sacro
Império-Romano Germânico, o sistema feudal-cavalheiresco e o Papado.
Um pouco por toda a parte vai mudando a maneira de sentir a
vida e viver o mundo. O ar que se respira já não é a atmosfera
da criação de Deus, presente continuamente em toda criatura.
A organização vertical e hierarquizada por instâncias perde o
fôlego social e histórico e deixa de ser aceita espontânea e
tranquilamente na prática das ações e dos comportamentos. O
homem medieval começa a desacreditar que as instituições em
vigor e a ordem vigente sejam modelos e paradigmas criados
por Deus, quer direta, quer indiretamente. (LEÃO, 2008, p. 243-
244).
No século XIV, começa a emergir o poder da burguesia. Ao mesmo tempo,
começa a primeira grande guerra europeia, a Guerra dos Cem Anos (1337-
1453), tendo a França e Inglaterra como protagonistas. Em meados do
século, a peste negra grassa sobre a Europa, vitimando milhões de pessoas.
150
A morte parece reinar em clima apocalíptico. O filme O sétimo selo
(http://www.youtube.com/watch?v=YknL-BWzSwY), de Ingmar Bergman
mostra bem a atmosfera daquele fim de época e constitui uma parábola sobre
o nosso tempo. Naquele tempo, irrompem movimentos de contestação de
toda a ordem estabelecida. No movimento franciscano, desde o fim do século
XIII, os “Espirituais” (Pedro de João Olivi, Ubertino de Casale, Ângelo
Clareno), emergindo no vazio da perplexidade epocal, retomam o profetismo
do abade Joaquim de Fiori (séc. XII) e dão voz a uma visão escatológica e
apocalíptica da história. Para eles, era instaurado o tempo das grandes
tribulações, necessário para uma radical purificação e reforma da Igreja e
para o advento do tempo novo, que marcaria o Reinado do Espírito. Naquele
tempo, em meio à perda de cadência das forças históricas, só restava a
esperança, ainda que frágil.
Nestas condições, não foi difícil o homem medieval sentir-se sem continente,
em transição de paradigma, de passagem para um outro mundo. Os velhos
padrões desvaneceram e os novos parâmetros ainda não se consolidaram. É
momento de desorientação e angústia. Os modelos se desvaneceram, os
valores gastaram-se e os princípios ficaram sem força. Predomina um
intervalo de mundo. É tempo de transformação, não, apenas, de modos e de
maneiras de viver, de formas e matizes de relacionamentos, mas, sobretudo,
de estruturas e princípios. É dia de libertação de tudo que se desgastou, mas
também momento de aventuras, de riscos e de ousadias. Nos interstícios
encontram espaços as esperanças mais díspares e as experiências mais
desencontradas. Nas universidades, outros tantos baluartes do universalismo
medieval, junto com o Papado e o Império, com o feudalismo e o artesanato,
o realismo dos universais sofre os primeiros abalos do nominalismo. Nas
cidades alemãs, cresce a força das tentativas de mudanças sociais. Entre o
povo surgem sempre novas seitas e emergem por toda a parte movimentos
religiosos diversos e opostos entre si, mas idênticos todos em contestar a
mediação institucional da Igreja e em reivindicar autonomia para indivíduos
e grupos. Nos mosteiros e nos conventos, tanto masculinos, quanto
femininos, grassa profunda inquietação. A religiosidade herdada e as formas
tradicionais de piedade já não satisfazem as demandas pessoais de um
contato imediato e vivo com Deus. Grande é a sedução de correntes
151
exotéricas e proféticas. Reina uma atmosfera trabalhada por inquietações de
toda sorte e eivada de fermento revolucionário.
Impregnada de fermento revolucionário está a crítica da política que vem à
tona no pensamento de Marsílio Ficino e de Guilherme de Ockham.
11.2 A crítica político-eclesiástica de Marsílio Ficino e de Guilherme
de Ockham
Marsílio foi contemporâneo de Ockham e de Dante e tem a particularidade de
ter sido o primeiro a formular uma obra de Filosofia Política ou ciência política,
denominada Defensor pacis (O Defensor da Paz), antecedendo assim a Hugo
Grotius e Hobbes, aos quais alguns autores atribuem tal título. Marsílio abre
sua obra O Defensor da Paz com uma referência às ameaças e conflitos que
colocam em risco a sociedade. Entre estes conflitos, Marsílio indica a
pretensão papal e eclesiástica à plenitude do poder (plenitudo potestatis). A
existência desta pretensão não possui legitimidade na civitas. A finalidade da
ciência política de Marsílio é construir uma teoria que dê as condições
necessárias para a satisfação das necessidades e que se alcance o bem viver,
que seria o fim perfeito, completo e independente de qualquer outro.
Também na linha da separação entre poder espiritual e poder temporal, vai
a crítica política de Guilherme de Ockham (GUILHERME DE OCKHAM, 1998 e
2002).
O cânon da Igreja Católica a respeito da plenitude ou caráter teocrático do
papado, plenitudo potestatis, isto é, de que o Papa recebeu de Cristo tal
plenitude de poderes a ponto de ter o direito de dispor de qualquer coisa,
tanto na ordem espiritual como na temporal, é refutado por Ockham. Seu
argumento baseia-se na convicção de que se o papa houvesse recebido de
Cristo tal plenitude de poderes e se comportasse em consonância com isso,
submeteria a si todos os cristãos. Isto resultaria em uma escravidão pior do
que a antiga, pois diria respeito a todos os homens, confirmando a
contrariedade desta tese não apenas ao Evangelho, mas às exigências
fundamentais da convivência humana.
152
Na verdade, o Papa é ministrator, não dominator, sendo o seu dever servir,
e não sujeitar. O seu poder foi instituído em favor dos seus súditos, e não
para que lhes fossem retirada aquela liberdade que está fundamentada nos
ensinamentos de Cristo. Tal poder não cabe nem ao Papa nem ao Concílio,
porque ambos são falíveis. É a igreja, como comunidade livre de fiéis, que
sanciona as verdades que constituem a sua vida e o seu fundamento. A
teocracia e a aristocracia não têm lugar na igreja, sendo necessário abrir
espaço para os fiéis, membros efetivos da igreja, cuja comunidade é a única
à qual cabe a infalibilidade.
Além de redimensionar o poder do Papa no interior da igreja, ele faz o mesmo
nas suas relações com o poder temporal. Se a autoridade do Papa tem caráter
apenas pastoral e moral, ele não pode legislar para todo o povo no que se
refere ao temporal, âmbito que é da competência do Imperador. Trata-se de
duas esferas de âmbitos e competências independentes e autônomas. Logo,
a autoridade imperial não é sagrada, não provindo de Deus através do Papa.
A partir disso, pode-se concluir que Ockham pretendia defender o Imperador
contra o Papa, no sentido de defender seus direitos contra o absolutismo
papal. Porém, mais do que na política imperial, seu interesse estava voltado
para a igreja, a qual ele pretendia que fosse reformada nas estruturas e nas
orientações. O Papa é falível, assim como o Concílio. Só é infalível a igreja
como comunidade universal de fiéis, que não pode ser dissolvida por
nenhuma vontade humana porque, conforme a promessa de Cristo, durará
até a consumação dos séculos. Para tanto, contudo, a igreja precisa sofrer
uma reforma no sentido de retornar à pobreza evangélica, sem ambições
terrenas nem pretensões autoritárias, remetendo-se ao ideal franciscano.
É indicativo o fato de que à reivindicação da separação entre poder espiritual
e poder político, veiculada em Marsílio Ficino e em Guilherme de Ockham, se
junte, no âmbito teorético, a reivindicação da separação entre filosofia e
teologia. Esta reivindicação pode-se ouvir, especialmente, na obra de Duns
Scotus e de Guilherme de Ockham.
153
Estante do saber
O pensamento de Marsílio de Pádua e o pensamento político e eclesiológico
tardo-medieval
(http://www.outrostempos.uema.br/volume03/vol03art06.pdf), de Moisés
Romanazzi Tôrres.
As relações de poder na Idade Média tardia - Marsílio de Pádua, Álvaro Pais
e Guilherme de Ockham
(http://www.lusosofia.net/textos/souza_jose_antonio_as_relacoes_de_pode
r_na_idade_media_tardia.pdf), de José Antônio de C. R. de Souza.
11.3 A estrutura ontoteológica da ciência transcendental ou
metafísica em Duns Scotus
O franciscano escocês João Duns Scotus (1265/1266- 1308) ensinou em
Paris, Oxford e Colônia. Ele acentua ainda mais do que Tomás de Aquino, a
distinção entre filosofia e teologia (HEINZMANN, 1992, p. 234-235). A
filosofia primeira ou metafísica é um estudo que investiga o ente enquanto
ente e os transcendentais, isto é, os conceitos que transcendem todos os
conceitos de gênero e espécie e que são determinações posteriores do
conceito de ente (res, aliquid, unum, verum, bonum - coisa, alguma coisa,
um, verdadeiro, bom) (HEINZMANN, 1992, p. 237-238). O conceito de ente
é o mais universal. Abrange tudo. E vem antes de toda e qualquer
diferenciação. É a partir deste conceito que nós podemos conhecer tudo o
mais. Até mesmo Deus nós só podemos conhecer a partir do conceito de ente.
Podemos, com efeito, conhecê-lo como o ente infinito, diverso do ente finito.
A demonstração da existência de Deus consiste em fazer ver que o infinito é
possível, que é necessário e que é real. O conhecimento de Deus como ente
infinito, porém, é limitado. "Ente" não é um conceito de "Deus" (conceptus
dei), mas é um conceito que nós atribuímos a Deus (conceptus de deo). Dizer
que Deus é o ente infinito é o que nós podemos, mas com isso não podemos
crer que estamos dizendo a essência de Deus. Além disso, nós podemos
atribuir a Deus a perfeição do ser, atribuindo a ele os conceitos
154
transcendentais no seu grau máximo: Deus é o sumo ente, o sumo bem, o
sumo verdadeiro, o sumamente uno, etc.
11.3.1 Filosofia e teologias
A filosofia, pois, que começa com o conhecimento do ente termina no
conhecimento de Deus. Outro, porém, é o conhecimento que a teologia tem
de Deus. Ela parte da revelação. E a revelação diz: Deus est caritas (Deus é
amor). A teologia, a “nossa teologia” (theologia nostra ou theologia quoad
nos, teologia segundo nós), é um saber que busca desdobrar racionalmente,
isto é, especulativamente, o que Deus revelou de si mesmo na história da
salvação (ela pressupõe a fé numa revelação divina na história). Desse saber
os filósofos não fazem idéia. Entretanto, o saber teológico não é exercido em
função do conhecimento teórico, e sim em função do conhecimento prático:
ele visa mover o homem para o amor, para a caridade, entendendo a caridade
como amor prático a Deus e ao próximo.
Filosofia e Teologia: ambas são bem distintas para Duns Scotus. A filosofia é
um saber natural. A teologia, um saber sobrenatural. O sobrenatural, porém,
não é antinatural. Ele, pelo contrário, eleva e realiza a transcendência do
natural. O natural não é anti-sobrenatural. Pelo contrário, o natural aspira
naturalmente pelo sobrenatural. Portanto, embora filosofia e teologia sejam
saberes distintos, de ordens distintas, estas ordens não se repugnam, pelo
contrário, elas se completam. Sendo assim, a filosofia não perde, antes
ganha, quando se deixa iluminar por horizontes que só a teologia pode
oferecer ao filósofo. O saber da fé alarga o horizonte para o conhecimento
humano e a filosofia só pode sair ganhando com este alargamento. Apesar
disso, filosofia e teologia têm objetos materiais e formais distintos. O objeto
material (o tema de estudo) da filosofia é o ente enquanto ente, como dizia
Aristóteles. Isso quer dizer: o objeto da filosofia primeira ou primordial
(metafísica) é o mesmo objeto primeiro do intelecto: o ente enquanto ente,
isto é, o ser do ente. A filosofia investiga o ser de todo o ente, buscando seus
princípios. Ao perguntar pelos princípios e causas de todo o ente, a filosofia
se dá com o Primeiro Princípio, possível, real e necessário. E este Primeiro
155
Princípio, que a filosofia descobre chama-se, numa linguagem religiosa, Deus.
Portanto, o ponto de partida da filosofia é o ente enquanto ente (o objeto
primeiro do intelecto humano) e o ponto de chegada da filosofia é a idéia de
Deus enquanto Primeiro Princípio de todo o ente (o objeto último, mais
inacessível do intelecto humano). Quanto ao objeto formal (a perspectiva em
que se dá o estudo em questão), filosofia e teologia também se diferem. A
filosofia é o conhecimento do ente à luz da razão. E mesmo quando a filosofia
encontra a idéia de um Primeiro Princípio, e o denomina Deus, este
conhecimento de Deus é um conhecimento puramente racional. Já o objeto
formal (a perspectiva que ilumina o conhecimento) da teologia é a revelação
divina, contida na Escritura Sagrada. Quando a teologia fala de Deus, fala
dele não como de um Primeiro Princípio, mas como ser pessoal, melhor, com
Trindade de pessoas numa única substância da Deidade. Além disso, filosofia
e teologia se diferenciam pela finalidade. A filosofia é ciência especulativa:
sua finalidade é a contemplação da verdade por causa da própria verdade. Já
a teologia é ciência prática: sua finalidade é amar a Deus por causa dele
mesmo e amar ao próximo por causa de Deus.
Portanto, filosofia e teologia são conhecimentos distintos no seu objeto e na
sua perspectiva. A teologia filosófica é uma culminância da ontologia. A
teologia da fé pode até se apropriar da teologia filosófica, como ponto de
partida, porém. Em si, ela deve ir muito mais além. O teólogo, porém, pode
ter conhecimentos que ajudam a abrir visões novas em relação aos problemas
filosóficos. A busca natural que a razão tem pelo conhecimento não é negada,
mas é superada e assumida sob e ao interno do horizonte sobrenatural da fé.
A “nossa teologia”, porém, não consegue conhecer Deus como Deus, mas
somente Deus enquanto revelado na história humana. Deus como Deus só
pode ser conhecido pelo homem na vida eterna. Por isso, a teologia mais
elevada possível ao homem não é nem a teologia da metafísica, nem a
teologia da fé, mas a teologia da visão beatífica de Deus, que os bem-
aventurados têm. A nossa teologia não é baseada na intuição. Já a teologia
dos bem-aventurados, sim, será uma teologia muito melhor do que a nossa
(pobre) teologia. Pois então o homem poderá conhecer Deus face a face.
Entretanto, há ainda outra teologia, inacessível ao homem: a teologia em si
(theologia in se). Essa é a teologia de Deus. Só Deus conhece Deus. E esse
156
conhecimento, o saber que Deus tem de si mesmo, é a teologia em sentido
verdadeiro, próprio e pleno (BOULNOIS, 1999, p. 102-106).
11.3.2 Ontologia: a universalidade transcendental do conceito de
ente
A metafísica é o estudo do ente enquanto ente e dos transcendentais. Antes
de tudo, ens (o ser-sendo, o ente) é aquele conceito ao qual se reconduz toda
a multiplicidade dos conceitos. De fato, os conceitos das coisas se
reconduzem aos conceitos das categorias e esses conceitos categoriais, por
sua vez, nos remetem, em última instância, àqueles conceitos que são
chamados de transcendentais, por estarem fora de toda a classificação
categorial, ou seja, estão extra omne genus (fora de todo o gênero) e
perpassam todo o ente enquanto ente, isto é, todo o ente enquanto
simplesmente é, ou ainda, todo o ente no seu ser. Eles são formalitates
(formalidades) intuídas ex parte rei (da parte da coisa), ou seja, através do
processo cognoscitivo próprio da razão humana, que é a abstração.
Ora, o conceito ens, justamente por ser o mais abstrato é o mais prenhe de
concretude, justamente por ser o mais vazio é o mais prenhe de plenitude,
justamente por ser o mais indeterminado é o mais passível de determinação.
Sua universalidade, que se dá a modo de um “todo vazio”, está apta não
somente a deixar ser a compreensão de todo e qualquer ente na sua
singularidade, como este ente aqui em sua haeceitas (“istidade”: a forma
irredutível do indivíduo na sua singularidade) (HEINZMANN, 1992, p. 235-
237), como também a compreensão do ente finito em seu conjunto e em sua
conjuntura, a saber, o mundo como uni-verso; também está apta a deixar
ser a totalidade do ente infinito, ou seja, o ser divino, que é vere esse et
totum esse (ser verdadeiro e absoluto) (HEIZMANN, 1992, p. 238-240).
A positividade do conceito de ens não somente se dá por graça de sua
universalidade transcendental, mas também mercê de sua unidade
absolutamente simples. Por força dessa simplicidade absoluta (simpliciter
simplex) o conceito de ens é indefinível e irredutível. Aqui o intelecto esbarra
157
numa espécie de paredão incontornável e intransponível. Nessa resistência e
recusa, o que há de mais óbvio no mundo, o simplesmente ser, se torna o
mais enigmático. Mas, talvez seja justamente por graça dessa densidade
impenetrável, que a um primeiro olhar parece ser um vazio e uma
indeterminação radicais, que o conceito de ens seja aquele do qual não
podemos fugir em todos os nossos empenhos de conceituar e dizer tudo
quanto é e tudo quanto há.
Enfim, a positividade do conceito de ens também se dá por graça de sua
originariedade. Em todo e qualquer conhecimento, o intelecto já terá sempre
conhecido o ens. Ele é o prae-cognitum (conhecido prévio) em todo o
cognoscere (conhecer). O ens é o primum objectum intellectus (objeto
primeiro do intelecto). Eis porque nós, em tudo quanto apreendemos e
compreendemos, já sempre fomos referidos ao ens e já sempre o
pressupomos, partindo dele em todas as nossas tentativas de denominação,
conceituação, definição, dedução, no “âmbito” de nossa inteligência
especulativa, como também em todas as nossas tentativas de ação e
operação, no “âmbito” de nossa inteligência prática.
Enfim, a universalidade transcendental, a unidade absolutamente simples e
originariedade do ens fazem desse conceito o mais fecundo e capaz de dar à
nossa razão finita a possibilidade de transcender o ente finito e seu
conhecimento habitual, passando para a contemplação do ente infinito,
vislumbrando um quê da superabundância e superfluência de seu ser.
Passamos, assim, do todo vazio para o todo pleno. No movimento dessa
passagem, que é, na verdade, uma elevação da mente para Deus, jamais
deixamos o elemento do ens, ou seja, a proximidade de nossa referência ao
ser. É na proximidade do ser que nós experimentamos a proximidade e a
distância de Deus. É no vazio do ser que a plenitude do ser divino se divulga.
158
11.3.3 Teologia metafísica: o ente infinito e os mosaicos dos nomes
divinos
Para se dizer a positividade do ens que é inteira e absolutamente a se (a
partir de si), enquanto ens infinitum, ens necessarium, ens Creator (ente
infinito, necessário, criador); depois, para dizer a positividade eminente e
supereminente de seu modo de ser, enquanto summum bonum, summum
verum, summum unum (sumo bem, sumo verdadeiro, sumo uno); e ainda,
para dizer a positividade de sua onipotência e onisciência, bem como de sua
inteligência e vontade excelentes, é preciso que recorramos à positividade
primordial do conceito de ens. Com efeito, toda predicação que realizamos
de Deus é ab ente (a partir do conceito de ente). Entretanto, o conceito de
ente não é um conceito de Deus (Conceptus Dei), mas um conceito acerca de
Deus (Conceptus de Deo). De fato, quando denominamos Deus de ens
infinitum (ente infinito), por exemplo, não estamos dizendo a essência
mesma de Deus, mas algo de próprio dessa essência, assim como quando
nós denominamos o homem de um “vivente que ri” não estamos dando a
definição da quididade do homem, mas estamos nos referindo a algo que é
próprio dele, a partir de sua essência mesma. Ademais, essa denominação
ens infinitum que é, segundo Scotus, a mais apropriada para se predicar de
Deus, embora seja uma denominação simples, não é absolutamente simples,
pois ela conjuga o conceito de ens e o conceito de infinitum. Isso mostra,
mais uma vez, o limite de nossa denominação e predicação do nome divino.
Na finitude de nossa condição peregrina, só nos é dado um conhecimento
complexo daquele ente que, em si, é absolutamente simples! Em todo caso,
quer para marcarmos a diferença e a unidade apenas analógica entre o ser
de Deus e o ser das criaturas, quer para denominarmos o nome divino através
de seus atributos no modo da eminência e supereminência, sempre
precisamos recorrer à positividade do conceito primordial do ens.
Pela luz natural da razão, no entanto, nos é dado um conhecimento finito
dessa infinitude. Por esse conhecimento, os nomes do inominável se finitizam
na eminência e supereminência dos atributos. Numa primeira impressão, eles
são negativos, pois negam algo da criatura. No entanto, se olharmos bem,
eles negam a negatividade da criatura. Com outras palavras, eles são
159
positivos, de tal maneira que neles se expressa a positividade do divino, como
negação da negação. Seja como for, no entanto, os conceitos que lhes servem
de “matéria” para denominar o divino são hauridos, sempre, daqueles
conceitos que, em si mesmos, não estão submetidos às categorias de gênero
e espécie. São, por assim dizer, conceitos transcendentais.
A bem da verdade, o conhecimento humano de Deus, in via, in statu iste (a
caminho, neste estado em que nos encontramos na vida terrena), é bem
apoucado. Tanto na ordem da graça, isto é, no horizonte da fé e da revelação,
quanto na ordem da natureza, ou seja, no horizonte da luz natural da razão,
vale dizer, no horizonte da metafísica, o que o humano pode saber de Deus
é módico. Somente no lumen gloriae (luz da glória) ou seja, no esplendor da
revelação definitiva e eterna de Deus é que o humano pode fruir, na visio
beatifica (visão beatífica, visão que torna feliz), de um conhecimento de Deus
sub ratione deitatis (sob a razão ou na perspectiva da deidade), quer dizer,
de um conhecimento de Deus enquanto Deus, em sua deidade, ou ainda, com
outras palavras, de Deus ut haec essentia (Deus enquanto essa essência
aqui), enquanto esta essência em sua singularidade. Mas esse conhecimento
de Deus, essa theologia beati (theologia dos bem-aventurados), hoje,
enquanto estamos em caminho, nos é inacessível. Enquanto estamos a
caminho, somos presenteados apenas com a luz frágil da razão natural e com
a penumbra da fé. Entretanto, o saber da fé, a theologia nostra, que se dá
na contemplação amorosa do Deus de Jesus Cristo, que é caritas (amor,
caridade), contemplação essa que se cumpre “em enigma e como por
espelho” (Paulo), assume por debaixo de si o conhecimento de Deus que é
possível à luz natural da razão. Ora, esse conhecimento, que é um
conhecimento do divino (theoria), mais do que um conhecimento de Deus
mesmo (theós), uma teologia, é um conhecimento do divino (theion), ou seja,
é uma “teiologia”. Não obstante, ele, que é o “ápice da teoria” (theoria - como
‘visão de Deus’). É, como dizia Aristóteles, recordado por Duns Scotus, fonte
de indizível alegria e realização da felicidade natural do humano:
No que concerne às substâncias eternas, os frágeis
conhecimentos que nós temos delas nos trazem, contudo, em
razão da excelência dessa contemplação, mais alegria que todas
as coisas que nos circundam, da mesma maneira como frágil
160
olhar fugidio que se volta para pessoas amadas nos doa mais
alegria e alegria maior do que o conhecimento exato de muitas
outras coisas. (De partibus animalium I, 5: 644b 31-35. Apud
DUNS SCOTUS, 1988, p. 107-108).
Com outras palavras, a teologia, no sentido de uma contemplação dos nomes
divinos, pressupõe a ontologia, que é uma investigação metafísica, isto é,
uma inquirição acerca do ente e dos transcendentais. É a partir da onto-logia
que a teo-logia recebe a sua condição de possibilidade e toda a sua
envergadura. Temos, assim, um círculo: a teo-logia funda a onto-logia, como
o fim funda o começo e a onto-logia funda a teo-logia, como o começo deixa
ser a marcha rumo ao fim. Assim, a metafísica, onto-logia em seu começo e
teo-logia em seu fim, como expressão da transcendência, é subsumida pela
dinâmica agraciada e agradecida da razão natural que responde ao toque do
mistério do ser, que se doa e se retrai no conceito do ente.
Na verdade, em Scotus, a figura metafísica do divino é uma espécie de
mosaico dos transcendentais, um mosaico que se transforma em ícone, à
medida que, na proximidade do que nos está ao alcance, guarda a distância
da sacralidade do mistério. Entretanto, a distância do sagrado não é distância
de um inacessível que nos ultrapassa, mas é a distância de uma proximidade
por demais próxima. Em Scotus, a figura metafísica do divino, vivente no
elemento da sacralidade do mistério, é apenas imagem especular que guarda
uma remissão ao Deus da revelação, que é caritas (amor, caridade). Ao
investigar os atributos divinos, Scotus reflete e contempla a figura divina
configurada à luz do ser e dos transcendentais e, no seu brilho, ele vislumbra
um quê do mistério da positividade e da cordialidade do Deus da revelação,
que é caritas. É por isso que, na sua linguagem, a especulação metafísica se
transforma em prece, isto é, em adoração e louvor.
Deus Nosso Senhor, ao teu servo Moisés, quando ele se
informava do teu nome junto de ti, veríssimo doutor, para o
apresentar aos filhos de Israel, sabendo o que a inteligência dos
mortais pode conceber acerca de ti, respondeste, dando a
conhecer o teu nome bendito: ‘Eu sou aquele que sou’ (Ex.
3,14). Tu és o ser verdadeiro, tu és o ser todo. Se tal me fosse
possível, era isto em que acredito que eu queria saber. Ajuda-
161
me, Senhor, a investigar o quanto pode chegar a conhecer do
ser verdadeiro, que tu és, a nossa razão natural, começando a
partir do ser, que a ti mesmo atribuíste. (DUNS SCOTUS, 1990,
p. 111)
Aqui fica claro que a pergunta pela condição de possibilidade do conhecimento
de Deus, à luz natural da razão, se dá no sentido de uma contemplação do
Nome de Deus, como pura positividade do ser, isto é, como superabundância
e superfluência do ser. A teo-logia da metafísica se transforma, assim, na
contemplação dos nomes divinos, na esteira da tradição do Dionísio
Areopagita. Em Scotus, a teo-logia metafísica é subsumida de tal maneira
que, em cada “Tu és”, ressoa um nome do Altíssimo, unindo à
condescendência cordial da revelação a finitude agraciada e agradecida da
razão. Os transcendentais são subsumidos de modo a deixar ser a
ressonância do “Tu és” em sua plena positividade de ser, isto é, na
superabundância e superfluência do infinito amor. Em todos eles ressoam
variações de um mesmo tema, a saber, o tema do ser. Daí que a busca e
investigação, sim, a inquirição do que se pode conhecer de Deus à luz natural
da razão é uma especulação e meditação que se realiza ab ente (a partir do
ente).
11.4 A obra de Duns Scotus
A obra de Duns Scotus mostra um extraordinário espírito de autonomia.
Embora reverencie Agostinho e Anselmo como as maiores autoridades da
tradição ocidental cristã, seu pensamento não pode ser identificado como um
agostinismo tradicional. Embora conheça e cite com frequência Aristóteles e
os filósofos árabes e judeus do Islã, especialmente Avicena e Averróis, seu
pensamento não pode ser identificado com o aristotelismo. Dialoga
criticamente com a tradição e com os pensadores mais expressivos de seu
tempo, como o tomista Egídio de Roma (1244-1316) e o agostinista Henrique
de Gand (+ 1293). Por outro lado, admira criticamente a Godofredo de
Fontaines (+ 1306), aristotélico de orientação moderada. Era um pensador
que levava o rigor lógico da demonstração tão a sério, que lhe foi dado o
162
título de Doctor Subtilis (Doutor sutil). Contudo, mais do que criticar, o que
Duns Scotus queria mesmo era, autonomamente, traçar uma nova
construção do pensamento filosófico, especulativo-metafísico e prático-ético,
e da teologia. Há quem o tenha visto como um precursor de Kant, em sua
delimitação e definição da metafísica como ciência transcendental. Mas Duns
Scotus ainda deixa lugar para uma teologia como culminância da metafísica,
o que não se pode dizer de Kant. Além disso, o transcendental de Duns Scotus
é ontológico, fundado na realidade mesma, e não estrutural e a priori,
fundado na subjetividade. O espírito que anima, porém, o pensamento de
Duns Scotus é a caridade. Seu pensamento bem pode ser definido a partir do
ordo caritatis (Ordem da caridade). Para ele, enfim, o amor é o sentido de
ser de todas as coisas. Nunca em forma mais seca, disse um estudioso do
pensamento franciscano (Agostinho Gemelli), se exprimiu amor mais
profundo, mais inteligente e mais forte. Nenhuma doutrina jamais respondeu
como esta às inclinações mais elementares e fundamentais dos homens e –
dir-se-ia, de todos os seres vivos: o anseio pela felicidade, pela especial
felicidade que é o bem – bonum.
Assim, na sobriedade do pensamento e no rigor da especulação filosófico-
teológica, se esconde a alma franciscana de Duns Scotus. Uma alma que, em
tudo e junto a tudo que pensa, está sempre à espreita do rigor da caridade.
Na linguagem prosaica de sua escolástica, porém, vibra tênue a suavidade e
delicadeza do amor.
Na Divina Comédia, ao chegar ao Paraíso, mais precisamente ao Céu do Sol,
Dante se encontra com a os Bem-aventurados Domingos e Francisco, entre
outros, que dançam e cantam em torno do poeta. Ali também ele vê duas
coroas de espíritos sapientes. A primeira se configura em torno de Tomás e
a segunda em torno de Boaventura. Em cada uma dessas duas coroas, em
sua generosidade poética, Dante coloca uma persona non grata (pessoa não
agradável, mal vista). Na coroa de Tomás aparece o averroísta Siger de
Brabante. E na de São Boaventura o monge calabrês, dotado de espírito
profético, Joaquim de Fiori. No Canto XIV, porém, Dante vê se configurar
diante de si uma terceira coroa, trazendo novas revelações. E o poeta canta:
163
E eis que à roda, em luz igual brotava / Um brilho sobre a luz
que já lá era, / Como horizonte que se iluminava./ E tal como
ao cair da tarde houvera / Começando no céu mais aparências,
/ Como de a vista ser e não ser vera, / Pareceu-me mais novas
subsistências / Lá começar de ver, e andar um tanto / Fora das
outras duas circunferências. / Ó vero cintilar do Espírito Santo!/
Como se fez de súbito candente / Aos olhos que, vencido, não
levanto (ALIGHIERI, 2005, p. 715-716).
Podemos ler nestes versos o presságio de uma nova escola e de um novo
pensamento que trouxesse novas descobertas e novas perspectivas, que até
então não se encontravam nem em Santo Tomás, nem em São Boaventura.
Ora, isso acontece de modo inusitado e surpreendente em Duns Scotus.
Estante do saber
Tempo e eternidade: um modelo em Duns Scotus (c. 1265-1308) e
uma nota sobre Francisco de Meyronnes (c. 1280-1327)
(http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num11/14.%20Roberto.p
df) e Poder absoluto e conhecimento moral
(http://www.revistafilosofia.unisinos.br/pdf/177.pdf), de Roberto
Hofmeister Pich.
João Duns Escoto
(http://www.lusosofia.net/textos/costa_freits_manuel_barbosa_joao_
duns_escoto.pdf) e A existência de Deus segundo Duns Escoto
(http://www.lusosofia.net/textos/costa_freitas_manuel_barbosa_exis
tencia_deus_segundo_duns_escoto.pdf), de Manuel Barbosa da Costa
Freitas.
Duns Scotus: a lei natural na moral e na política
(http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/27-28/27-28-
3.pdf), de Alfredo Culleton.
João Duns Escoto (c. 1265-1308) Subsídios bibliográficos
(http://repositorio-
164
aberto.up.pt/bitstream/10216/55688/3/meirinhosescoto000126348.p
df), organizado e com introduções por José Francisco Meirinhos.
Duns Scotus fez escola e seu pensamento por muito tempo se
ofereceu como uma alternativa ao tomismo e ao agostinismo.
Entretanto, o escotismo mesmo, lutando contra o tomismo, se
perdeu em querelas de escolas. O pensamento de Duns Scotus é
maior do que o escotismo, assim como o de Tomás é maior do que o
tomismo.
165
Aula 12 – Guilherme de Ockham e Mestre Eckhart
A crise iniciada no século XIII se configura, sobretudo, no
pensamento de Guilherme de Ockham. Do nominalismo e da
concepção ontológica da mística de Eckhart, confluída para o
pensamento de Nicolau de Cusa, surgirá a ontologia da ciência
moderna, onde tudo se dessubstancializa e cada coisa passa a não
ser mais do que um nó de relações com outras coisas.
12.1 Guilherme de Ockham
Guilherme de Ockham acredita menos no poder da razão do que Duns Scotus.
Para ele todo o conhecimento metafísico de Deus é vão e inútil. No século XII
os pensadores acreditavam poder abranger a Trindade com o poder da razão
(Abelardo, por exemplo). No século XIII, Tomás de Aquino admitiu o
conhecimento da existência de um Deus como dentro das possibilidades da
razão. E subtraiu a possibilidade de um conhecimento da Trindade. Guilherme
de Ockham retira até mesmo a possibilidade de o homem conhecer a
existência de Deus a partir da razão. O regresso ao infinito, usado por Tomás
nas cinco vias para demonstrar a existência de Deus poderia, segundo ele,
ser admitido racionalmente. Resultado: não há um rigor necessário na
demonstração racional da existência de Deus. A existência de Deus é, então,
questão de fé e não de razão. Se isso vale para a existência de Deus, vale
ainda mais para a Trindade. Ockham, assim, não somente distingue, mas
separa com um corte radical a filosofia e a teologia. A filosofia é o
conhecimento que o homem autonomamente pode alcançar seguindo em
busca da verdade e tendo como parâmetro a evidência lógica. A teologia é o
saber da fé, tanto no sentido do saber que a fé gera quanto no sentido do
saber que tem a fé (o crer e o crido) como seu tema. Vemos assim que de
Boaventura a Ockham nós vamos de um extremo ao outro.
166
12.1.1 A onipotência divina e a contingência do ente criado: o
primado do indivíduo e o problema dos universais
O registro central do pensamento de Guilherme de Ockham é a afirmação da
onipotência divina e de sua liberdade absoluta e soberana (ROMBACH, 1965,
p. 78-139). Da fé na onipotência divina advém também a fé na criação.
Embora a criação seja objeto de fé, ela determina a concepção ontológica em
relação ao todo do ente criado. Se a criação é um ato livre, então o criado é
contingente (HEINZMANN, 1992, p. 244-247; TODISCO, 1998, 24-71).
Contingente é o não-necessário, o que é quando poderia não ter sido, o que
é assim, quando poderia ter sido diferente. A liberdade e a temporalidade do
ato criador de Deus e a contingência do criado são o característico da
concepção cristã, em diferença, por exemplo, do modo de pensar dos
pensadores árabes-muçulmanos, para os quais a criação, ou melhor, a
emanação do uno por parte do múltiplo, é necessária e eterna. Estas teses
teológicas de fundo acabam determinando também as posições filosóficas de
Guilherme de Ockham. Diferentemente da concepção neoplatônica da
emanação, ressalta-se, aqui, o fato de Deus ser a causa imediata da criação.
Suprimem-se, pois, também todas as mediações. Pluritas non est ponenda
sine necessidade - A pluralidade não há de ser posta sem necessidade. Assim
soa o princípio de pensamento que no século XVII foi chamado de "navalha
de Ockham". Passando esta navalha na concepção do surgimento de todas
as coisas, Ockham elimina o mundo das ideias. Enquanto para Platão o
cosmos surge da conjugação das ideias eternas e da atividade do demiurgo
que ordena a matéria segundo o modelo destas mesmas ideias ou essências;
enquanto o platonismo cristão postulava que Deus criara o mundo a partir
das ideias presentes no seu Intelecto ou no seu Verbo (Logos); Guilherme de
Ockham afirma que Deus cria sem a necessidade da mediação de ideias ou
de emanações. Ele cria direta e imediatamente cada ente na sua
singularidade. Com isso o indivíduo recebe uma imensa dignidade.
O pensamento grego não valorizava o indivíduo. Ele era algo de acidental. O
essencial era a essência, eterna e imutável, que se dava no gênero e na
espécie. O indivíduo era uma concreção efêmera e acidental da essência. Já
Duns Scotus afirmara que o princípio de individuação (aquele pelo qual o
167
indivíduo se torna indivíduo) não era simplesmente a matéria determinada
segundo as dimensões do espaço e marcada pela quantidade, segundo
afirmara Tomás de Aquino. A individualidade não provém de algo acidental
ou de uma privação. A individualidade é algo de positivo. Duns Scotus
chamou isso de haecceitas (istidade): a forma da individualidade, deste
(haec) ente na sua singularidade. Na trilha de Duns Scotus, também
Guilherme de Ockham valoriza a individualidade. Para ele, não há a
necessidade de postular uma essência universal anterior à própria coisa (a
ideia ou arquétipo da coisa na mente de Deus). Para ele, o ser autêntico é o
indivíduo.
Se para Tomás de Aquino, na trilha de Aristóteles, o indivíduo é incognoscível
(pois conhecer é universalizar), para Duns Scotus e Guilherme de Ockham há
um conhecimento intelectivo do indivíduo na sua singularidade. Este é o
conhecimento incomplexo, o conhecimento que é anterior a todo o
conhecimento proposicional-dedutivo (que é complexo). O conhecimento
incomplexo, por sua vez, pode ser intuitivo e abstrativo. O conhecimento
intuitivo é aquele que opera uma visão direta e imediata do indivíduo, isto é,
do ente na sua singularidade. Quando vejo este Ipê florido, esta visão é direta
e imediata. E é uma visão intelectiva. Eu apreendo e compreendo este Ipê
florido como este Ipê florido. E este Ipê florido é único no mundo, irrepetível,
singular. E eu o apreendo na sua individualidade e singularidade, melhor, na
sua existência individual, única, irrepetível, singular. Entretanto, se eu
prescindo desta sua existência e desta sua individualidade, eu obtenho uma
noção abstrata de "Ipê". Por via da abstração e da comparação entre todos
os indivíduos que apresentam esta mesma forma e que correspondem a esta
mesma noção, eu produzo o conceito de espécie. Então eu falo do Ipê como
de uma espécie. A espécie é aquilo que há de comum entre todos os
indivíduos que apresentam esta mesma forma ou modo de ser. Se eu
abstraio, por sua vez, das diferenças entre as espécies e considero apenas o
que há de comum entre elas, então eu obtenho a noção de gênero. Assim,
os conceitos de espécie e de gênero são apenas produções mentais, que
derivam da abstração das notas comuns a diversos indivíduos. Não se trata
de nominalismo puro e simples (como o de Roscelino), pois este afirma que
os universais são meros sons ou vozes, mas de um conceptualismo à maneira
168
de Abelardo, pois Guilherme de Ockham afirma que o conceito, embora sendo
uma produção da mente e do discurso (sermo), guarda uma referência a algo
de real, contudo, presente na realidade concreta do indivíduo. A partir desta
concepção do problema dos universais Ockham vai mudar também a
concepção de ciência. A ciência não se refere propriamente às coisas reais,
mas às nossas concepções e aos nossos discursos sobre as coisas. A ciência
não trata propriamente do real, mas de nossa linguagem acerca do real.
12.1.2 A via moderna da philosophia sermocinalis: a mudança na
compreensão da essência da verdade
A posição de fundo do pensamento de Ockham mostra uma transformação
radical, por se dar na dimensão dos princípios e estruturas que regem a
compreensão do ser do ente no seu todo, e, por conseguinte, de Deus, do
mundo, do homem, do conhecimento, da linguagem, da verdade.
Antes de tudo, Ockham se apresenta como um pensador que pode ser
contado entre os moderni, ou seja, aqueles que se confrontam de maneira
crítica com os veteres ou antiqui e buscam abrir novos caminhos de
pensamento em meio à situação de perplexidade epocal. De fato, Ockham
segue a via moderna da philosophia sermocinalis, ou seja, o estilo de filosofar
que privilegia a linguagem, melhor, a lógica do discurso como instância
privilegiada de discussão das questões filosóficas, contrapondo-se, assim à
via tradicional da philosophia realis, mais voltada para as coisas efetivas do
real do que para a linguagem do pensamento (TODISCO, 1998, p. 20-24).
Neste sentido, Guilherme de Ockham é um nome que deve chamar a atenção
da filosofia da linguagem contemporânea, sobretudo dos analíticos.
Esse estilo de filosofar é indício de uma transformação na compreensão da
essência da verdade. Para ele, as coisas em si mesmas não são nem
verdadeiras nem são não–verdadeiras, isto é, falsas. A verdade concerne à
coisa apenas enquanto e na medida em que ela é intencionada pelo intelecto
(ut intellecta). A verdade diz respeito à coisa apenas e na medida em que ela
emerge e aparece na claridade do intelecto (apparens in intellectu tantum),
169
se tornando, assim, uma res intencionalis. Uma vez apreendida pelo intelecto,
a coisa recebe um ser mental, uma existência intencional, diferente de seu
ser e de sua existência real. Para Ockham, o intelecto é, ao mesmo tempo,
passivo e ativo. É passivo, enquanto recebe em sua claridade a manifestação
da coisa. É ativo à medida que a concebe. Para a mente, conceber é ficar
prenhe da manifestação da coisa, é gerar em si a coisa como objeto, é
produzir dentro de si (concipere enim est producere intra se).
O intelecto é, portanto, generativo, produtivo: ele recebe e concebe a coisa,
produzindo-a mentalmente como objeto no conceito. O conceito da coisa é
uma intentio prima: o intelecto visa, antes de tudo, a coisa, através do seu
conceito. O intelecto conhece a coisa, antes de tudo, através de uma cognitio
intuitiva. Ele coisa a coisa mesma e não, como se pensava, uma imagem ou
representação da coisa. A intuição é a visão imediata da coisa mesma na sua
singularidade. É a recepção da autodoação imediata e concreta dessa coisa
na sua singularidade. A notitia intuitiva atesta a existência da coisa em sua
fatualidade singular. A coisa conhecida imediatamente pelo intelecto, pois, é
produzida mentalmente através do intelecto. O produto dessa produção é o
conceito.
A primeira atividade, pois, do intelecto consiste em conhecer intuitivamente
a coisa como este sujeito (substantia, subjectum) e em concebê-la, isto é,
produzi-la mentalmente como objeto, ou seja, torná-la uma res intencionalis,
uma coisa intencional, que existe mentalmente (um objectum). Mas não se
esgota nisso. À capacidade de conhecer intuitivamente segue a capacidade
de conhecer abstrativamente (cognitio abstrativa). Se o conhecer intuitivo é
sempre o conhecimento de uma singularidade, o conhecer abstrativo é
sempre o conhecimento do que há de comum entre coisas singulares (cognitio
communis). Ao conceber esta casa como uma casa o intelecto produz
abstrativamente o conceito “casa”, que vale para todas as casas singulares.
Conceituar é também generalizar. O conhecimento intuitivo é um conhecer
adequado, próximo e claro da coisa (cognitio in se). O conhecimento
abstrativo é um conhecer derivado, distante e difuso das coisas (cognitio in
alio).
170
O intelecto é capaz não somente de conhecer as coisas (intuitiva e
abstrativamente). É também capaz de pensar o conceito das coisas que
conhece. Pensando, ele produz conceitos de conceitos, que são visados numa
segunda potência, por assim dizer (intentio secunda). A lógica opera nesse
nível de pensamento. Ockham vai aproveitar em suas investigações
filosóficas as melhores contribuições da nova lógica que tinha surgido com
Pedro Hispano no século XII: a logica modernorum (lógica dos modernos) ou
logica terminorum (lógica dos termos) (Cfr. GUILHERME DE OCKHAM, 1999,
passim). A contribuição mais importante diz respeito à teoria da suposição
(HEINZMANN, 1992, p. 252-254; TODISCO, 1998 , p. 72-110).
12.1.3 O discurso e a teoria da suposição
O intelecto conhece pensando e pensa conhecendo. Pensar é, aqui, discorrer.
O pensamento é discursivo: fala pensando e pensa falando. Recorrendo à
terminologia latina, o intellectus humano é ratio: pensamento discursivo-
demonstrativo. O conceito corresponde ao termo simples do discurso mental
(sermo) operado pela razão. Os termos da linguagem são sinais. O conceito
é, neste contexto, o sinal primordial (signum primarium) da linguagem
mental ou pensamento discursivo. Enquanto sinal, o conceito deixa a coisa
vir de encontro ao pensamento que discorre. Ele a representa, no sentido de
fazer as vezes dela, de estar em se lugar, de assumir a sua posição. O
conceito supõe (supponit) a coisa; acontece com base nessa suposição da
coisa (suppositio: quase pro alio positio).
Um termo funciona numa suppositio personalis se deixar vir ao encontro a
coisa em sua autodoação intuitiva. Neste caso, ele está para uma coisa na
sua singularidade (ex.: Homo currit – um homem ou este homem corre).
Funciona numa suppositio simplex se está para uma pluralidade ou
comunidade de coisas abarcadas por um mesmo conceito abstrato (ex: Homo
est species – “Homem” é uma espécie). Funciona, enfim, numa suppositio
materialis se está para um termo oral ou escrito: supponit vel pro voce vel
pro scripto (ex.: “Homo” est nomen, substantivum – “Homem” é nome,
substantivo).
171
O pensamento discursivo não somente fala das coisas, mas fala também das
palavras, com as quais fala das coisas. Essa fala em segunda potência, por
assim dizer, é típica do discurso gramatical, da gramática. Assim como o
pensamento em segunda potência, que opera com conceitos de conceitos, é
típico da lógica. Nas bitolas da gramática e da lógica é que se vem pensando,
na tradição do ocidente, a linguagem.
A linguagem é, para Ockham, o caminho pelo qual se discutem as questões
filosóficas, a começar da ontologia: o discurso a respeito do ser do ente. O
ser é determinado pelo pensar e esse vige, enquanto razão, como linguagem.
O que diz o verbo “ser”? É o verbo primordial da linguagem como um todo.
Funciona, primeiramente, como cópula. Articula um juízo de atribuição:
atribui um predicado (P) a um sujeito (S): S é P (ex.: O homem é um animal).
Constitui, pois, a condição fundamental de possibilidade de todo juízo, ou
seja, de todo o enunciado ou proposição que opera na forma de uma
predicação.
Em segundo lugar, o verbo ser profere a existência de uma coisa. Enquanto
aparece num juízo de existência, não atribui nada ao sujeito, isto é, não põe
nada de novo, não acrescenta nada à coisa, ao sujeito da proposição (ex.:
este homem é, existe). Kant diria: ser não é um predicado real. O existir de
uma coisa diz respeito não propriamente àquela coisa enquanto tal, mas
àquela coisa enquanto um ente (ex.: “o homem é, existe” não diz respeito ao
propriamente ao homem, mas a todo o ente real e ao homem apenas
enquanto é um ente real). Tomado nessa acepção de existir, o verbo ser
(esse) diz tanto quanto ser real (esse reale), pronuncia a realitas (realidade)
da res (coisa). O ser real é igual para todos os entes, embora os entes sejam
reais em diferentes modos. Essa concepção contrasta de modo agudo com a
visão hierarquizada dos entes, típica do medieval. Segundo essa visão os
entes teriam mais ou menos ser, de acordo com sua capacidade de participar
do ser que lhes fora comunicado por Deus (analogia entis: participatio et
communicatio). Agora se dá um nivelamento ontológico radical. No tocante
ao ser, ao ser real, toda a coisa é igual.
172
Em terceiro lugar, o verbo ser confere essência à coisa (ex.: “homem é animal
racional”). Era opinião comum que a essência se deixava dizer na
universalidade do conceito. Para Ockham, porém, em si, a essência não é
nem singular nem universal. A essência “homem” não coincide propriamente
nem com este homem singular nem com o conceito geral de “homem”.
Melhor, a essência diz respeito mais apropriadamente à coisa singular do que
ao conceito geral. Cada coisa tem a sua essência. Mas a essência não é algo
de estranho à coisa, antes, coincide com essa coisa mesma na sua
singularidade. A essência é o indivíduo mesmo na sua singularidade (na sua
haecceitas, diria Scotus). Ela não se distingue realmente do indivíduo. A
distinção é somente de caráter lógico, mental. Nesta concepção, pois, o
indivíduo em seu ser concreto é investido de uma importância absoluta. O
indivíduo não é a reprodução particular de uma essência geral, nem é o
exemplar de uma idéia (modelo, protótipo, arquétipo na mente de Deus). O
poder criador do Deus onipotente não precisa de modelos ideais para criar
entes reais. Cada indivíduo emerge na existência, investido de absoluta
originalidade, a partir da infinita potência criadora de Deus, sem a mediação
de um mundo de ideias. O mundo das ideias perde, pois, o seu vigor e
vigência. O indivíduo real é o que vale de fato.
Além disso, acontece um nivelamento ontológico entre essência (substância)
e acidentes. Essência diz o ser algo de algo (ex.: o ser homem deste homem).
Significa “o que é” o ente, o seu puro “quê”. Tem, portanto, uma significação
nominal e não verbal, como nos primórdios. Ora, o “algo” e suas propriedades
se encontram no mesmo nível. A coisa é o que ela manifesta de seu “que”.
Ela é as suas propriedades, as suas manifestações. A essência não é algo que
está por detrás de suas aparências ou por debaixo de suas propriedades e
ações. É o que se dá nessas aparências, nessas propriedades e ações. Assim,
cada determinação da coisa (acidente), por assim dizer, deixa de ser
acidental, casual, e passa a ser essencial. Isso vai ser decisivo para o
surgimento da ciência moderna, que renuncia a ser um conhecimento das
coisas como são, para ser o conhecimento das coisas como aparecem e como
aparecem relacionadas umas com as outras. Somente neste sentido é que o
empirismo pode encontrar uma justificativa de princípio ao interno da filosofia
da ciência.
173
12.1.4 Crítica da teologia metafísica
Em Guilherme de Ockham, a lógica repercute na ontologia e, ao mesmo
tempo, na teologia especulativa (HEINZMANN, 1992, p. 257-260; TODISCO,
1998, p. 110-140). Na trilha da tradição ocidental, a metafísica é onto-teo-
logia. O ser é determinado a partir do pensar, o on a partir do logos. Tanto o
on (ens) no sentido de koinótaton (ens communis: o ente no sentido de uma
universalidade comum, que tudo abrange) quanto no sentido de akróstaton
(ens summum: o ente sumo, isto é, Deus). Como se dá a crítica de Ockham
à teologia especulativa da metafísica?
Primeiramente, ele recusa assumir o “ser” como nome apropriado de Deus.
A rigor, nenhum nome pode ser atribuído apropriadamente a Deus. Nós não
dispomos de um conceptus proprius de Deus. O nome “Deus” não é nenhum
nome próprio. É um nome comum. Nós só podemos falar de Deus com nomes
comuns. Toda denominação distintiva de Deus permanece extrínseca à sua
essência, por nós ignorada. Nenhum nome diz a essência divina na sua
singularidade. Todo nome que atribuímos a Deus fala d’Ele a partir do mundo
da criatura. Encobre o abismo de diferença que vigora entre Deus e a criatura.
Assim, a univocidade dos nomes é apenas conceitual, jamais é real. O
primado do nome “ser” em relação a Deus só procede, à medida que o nome
“ser” não diz nada de acidental ou de qualitativo. Entretanto, mesmo esse
nome permanece inapropriado como todos os demais nomes. Então, qual o
sentido dos nomes divinos? O seu sentido consiste em criar um campo de
nominabilidade para o inominável. A nominabilidade é uma necessidade do
homem, esse ser falante. Trata-se, porém, de uma necessidade limitada,
pois, se é verdade que o homem precisa nomear Deus para com ele se
relacionar, também é verdade que essa nominabilidade não precisa ser
apropriada para ele poder crer e amar a Deus.
Em segundo lugar, Ockham considera impossível qualquer demonstração
rigorosa da existência de Deus, seja a posteriori seja a priori. Antes de tudo,
demonstrar a existência do que quer que seja é um procedimento insensato.
Não se pode demonstrar que A seja, nem que A não seja. Demonstrar é um
174
procedimento lógico, que requer mediação de conceitos. Ora, a existência de
qualquer coisa só se dá na imediatez de um conhecimento intuitivo, jamais
se faz acessível por vias de um conhecimento abstrativo e de um
procedimento raciocinativo. Contudo, não temos um conhecimento intuitivo
de Deus. Depois, inferir a existência de Deus a partir da existência do mundo
(Deus como causa prima) é um procedimento não necessário. O regressus
ad infinitum na série das causas, cuja recusa exerce um papel fundamental
nas cinco vias de Tomás, não é impossível. Para Ockham, não o fato de o
mundo existir requer necessariamente a existência de Deus, mas sim o fato
de o mundo não deixar de existir. O regressus ad infinitum, plausível ao se
pensar numa ordem das causas producentes, não é plausível ao ser pensar
numa ordem de causas conservantes. Só se pode supor uma primeira causa
eficiente por se ter que supor uma primeira causa conservante. Também uma
demonstração a priori da existência de Deus (Anselmo) é sem sentido. Se
não conhecemos a essência de Deus, não podemos deduzir de sua essência
a sua existência. Depois, mesmo se nos apoiássemos em uma idéia de Deus
que fosse distintiva (como o summum ens ou o ens perfectissimum), a
demonstração seria muito frágil, pois essa idéia não seria apropriada a Deus
mesmo, pois ela seria uma idéia formada por via de eminência partindo-se
das criaturas. No fundo, não estaria falando de Deus mesmo, mas de Deus a
partir das criaturas. Enfim, mesmo se a inferência de que tal ente supremo
deve necessariamente existir fosse correta, não significaria que da sua
correção lógica se poderia mostrar a sua existência mesma.
Ademais, não se pode provar, segundo Ockham, a onipotência de Deus. Esse
é um artigo de fé: dico quod non potest demonstrari, quod deus sit
omnipotens, sed sola fide tenetur – digo que não se pode demonstrar, que
Deus é onipotente, mas há que se ater a isso somente pela fé (Quolibeta
Septem, Opera Theologica IX, I, q. 1). Aqui, pois, se deixa o âmbito do
racional e se salta para dentro do âmbito da fé.
O discurso metafísico a respeito de Deus aparece como extremamente frágil,
na perspectiva do pensamento filosófico e teológico de Guilherme de Ockham.
Ele marca, assim, a crise da onto-teo-logia medieval. Uma crise da metafísica
medieval, que aparece como uma autodestruição filosófica num primeiro
175
plano, mas que talvez seja motivada, num plano mais profundo, pela própria
teologia da onipotência e da liberdade divina, concebida no horizonte da fé.
O pensamento de Ockham opera, assim, uma demolição da metafísica
tradicional e marca uma transformação de princípios na estruturação da
compreensão do ser do ente, do ser do conhecimento e do ser da verdade.
Neste sentido, lembra a obra de pensamento de Kant. Em meio ao ruir do
aparato metafísico que amparava e firmava, como um firmamentum, a
existência do homem cristão medieval, pouca coisa permanece de pé.
Primeiro, a fé, que se baseia nela mesma e não nos arrazoados da razão.
Segundo, o conhecimento intuitivo das coisas singulares, que acontece numa
evidência imediata. Em terceiro, porém, um conhecimento ainda mais
intuitivo, isto é, um conhecimento ainda mais imediato e evidente, claro e
distinto do que o conhecimento intuitivo da coisa singular: trata-se do
conhecimento que a mente, o intelecto, tem de si mesmo. Esse conhecimento
é o único indubitável. Com efeito, diz Ockham, eu posso duvidar de que o rei
está sentado, mas, enquanto duvido, não posso duvidar de que duvido
(Comentário às sentenças livro II, q. 21). A evidência mais certa é aquela
que a mente, o intelecto, tem de si mesma, à medida que pensa: a evidência
que se dá como uma autopresença da mente a si mesma, o cogito
(Comentário às sentenças, prólogo, q. 1). A única certeza indubitável da
razão é a auto-apreensão da mente - neste sentido ele antecede o cogito sum
de Descartes.
Estante do saber
Existe uma Resposta Ockhamiana (ou não Ockhamiana) ao Ceticismo?
(http://www.cle.unicamp.br/cadernos/pdf/Ernesto%20Perini%20Santos.pdf
), de Ernesto Perini-Santos.
A propriedade de suposição na lógica de Ockham
(http://www.ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/revistalable/magno.pdf), de
Magno de Souza Simões e Mariluze Ferreira de Andrade e Silva.
176
As inferências temporais em Guilherme de Ockham
(http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num7/numero7_7.html), de
Guilherme Wyllie.
Anselmo y Ockham: uma fe para distintas lógicas-semióticas
(http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num7/numero7_6.html), de
Jorge Francisco Aguirre Sala (em espanhol).
12.2 Mestre Eckhart
Em meio à crise do século XIV, a escolástica se separa da mística. Se a
escolástica começa a se esclerosar, contudo, a mística mantém o seu vigor
especulativo em alta. O maior místico especulativo da Idade Média é o
dominicano alemão Mestre Eckhart (c. 1260-c. 1327), herdeiro da herança
neoplatônica da escola de Colônia, fundada por Alberto Magno. Sua obra é
escrita em parte em latim e em parte em alemão medieval. A obra latina é
de caráter mais escolástico, já a obra alemã é de caráter mais místico. Seu
modo de dizer é ousado e, por isso, granjeou-lhe as suspeitas de heresia.
Quando algumas de suas teses foram condenadas como suspeitas de heresia,
porém, ele já tinha morrido. Na mística de Eckhart o pensamento
especulativo é posto contra seus limites extremos, falando a linguagem
dialética ou mesmo a linguagem do paradoxo.
12.2.1 O Ser é Deus
Mestre Eckhart inverte a proposição de Tomás de Aquino: Deus est ipsum
esse (Deus é o ser mesmo) (LEÃO, 2008, p. 257-259; HEINZMANN, 1992,
268-274)). No Prólogo geral de sua obra prima ele anuncia a proposição:
esse est Deus (o ser é Deus). A sua obra prima, que foi planejada, mas não
executada, era o Opus Tripartitum, obra tripartida, que constava de: Opus
Propositionum, a obra das proposições; Opus Quaestionum, a obra das
questões; e o Opus Expositionum: a obra das exposições. A proposição em
questão era a primeira do Opus Propositionum. Isso quer dizer que ela é tese
177
fundamental de Eckhart. “Esse est Deus” – Ser é Deus. No comentário ao
livro do Eclesiástico, Eckhart comenta o verso 21 do capítulo 24: “qui edunt
me, adhuc esuriunt”: “aqueles que se nutrem de mim, ainda têm fome”. E
Eckhart diz: “omne ens edit deum utpote esse” - todo ente se nutre de Deus,
para que possa ser. Ou seja: tudo o que é só é na medida em que recebe o
poder ser e o fato de ser de Deus. Tudo o que o ente é o é por graça e virtude
de Deus. Por si mesmo, o ente criado nada é. Tire-lhe o ser que é dado por
Deus, e o ente volta ao nada. “Extra esse et ante esse solum est nihil” - fora
do ser e em face do ser só há o nada. O ser que o ente tem é-lhe dado apenas
de empréstimo. O ser é uma propriedade de Deus e não da criatura. Da
criatura é somente o nada. E mesmo o nada da criatura, enquanto nomeia
uma possibilidade de ser alguma coisa, de receber o ser de outro, é também
uma dádiva de Deus. O ser é comunicado à criatura, como uma dádiva
indevida, supérflua, absolutamente gratuita. "Todas as criaturas são um puro
nada. Não digo que são insignificantes, pequenas, nulas, ou qualquer outra
coisa assim. Elas são um puro nada", diz Eckhart.
Entre o criado e Deus não há diferença de grau na perfeição do ser, como
afirmava a doutrina da analogia do ente em Tomás. Há, sim, um abismo total:
o abismo do nada. Somente Deus é e tudo o que há de ser na criatura, bem
como todas as perfeições transcendentais do ser que lhe é comunicada (a
bondade, a verdade, a unidade, a beleza), tudo isso é de Deus, melhor, tudo
isso é Deus. E a criatura participa disso (se nutre, alimenta-se disso) por pura
dádiva e como que "por empréstimo". De Deus é o ser, pois o ser é Deus. Da
criatura o nada e do nada advém o fato da criatura ser sempre um ser
determinado, um “esse hoc et hoc” – um ser isto e aquilo.
Tudo isso é dito positivamente. Mas, Eckhart, como bom pensador, também
diz o contrário disso. Dizem que os pensadores se contradizem sempre uns
aos outros. Eckhart, como bom pensador, contradiz a si mesmo. Na
proposição "esse est Deus” (o ser é Deus), Eckhart elabora uma ontologia da
identidade. Nesta ontologia, à criatura pertence somente o nada. Em seguida,
Eckhart elabora uma ontologia da diferença, salientando a transcendência de
Deus em relação ao ser e atribuindo o nada a Deus e o ser à criatura.
178
12.2.2 Deus é pensar
A ontologia da diferença se dá na proposição: “Deus est intelligere” – Deus é
pensar (HEINZMANN, 1992, 273-274). Mas não um pensar que pensa o que
já é. Sim, um pensar que, em pensando, faz ser o que é. Enquanto tal, Deus
está acima do ser (epekeina tes ousias, como dizia Platão). A criatura é. Ser
é, aqui, ser um ente determinado, um "hoc et hoc" (isso e aquilo). Neste
sentido, ser é algo de criatural. Deus não é, à medida que ele transcende
todo o ser. A niilidade, porém, de Deus é diversa da niilidade da criatura,
exposta na primeira proposição (esse est Deus). A niilidade de Deus é sua
transcendência, como já indicava João Escoto Eriúgena. Dizer que Deus é o
ser pleno e puro, é ainda dizer muito pouco de Deus. Em si, de Deus não se
pode dizer nem que ele é nem que ele não é. Em si, Deus está além de todo
o ser e não ser. Pois ele, como intellectus, é a fonte de todo o ser e não ser
(o nada da criatura). Tudo é à medida que é um pensamento de Deus, um
pensamento pensado deste a eternidade, não como o artista pensa a sua
obra, mas sim como a mãe pensa em seu filho, que vai nascer. Pois a criação
é geração, melhor, é participação na filiação, pois é no Filho (o Logos ou
Intelecto) que Deus cria todas as coisas. E tudo o que é no Filho, pelo Filho e
para o Filho. Por isso, a maior obra do homem consiste em vir a ser o que ele
era, em Deus, antes de existir (no mundo e em si mesmo): ser filho no Filho,
ser Deus com Deus e em Deus, por pura graça, não como algo que é devido
por natureza.
12.2.3 O desprendimento e o amor
O homem volta à sua origem em Deus pelo desprendimento, pois Deus
mesmo é, em última instância, desprendimento (MESTRE ECKHART, 2006,
passim; 2008, passim). Com o nome “desprendimento” nós tentamos
traduzir uma palavra primordial no pensamento de Eckhart. Em alemão a
palavra é “Abgeschiedenheit” (em alemão medieval Eckhart diz, na verdade,
Abgescheidenheit). O sufixo “-heit” corresponde, aproximadamente, ao
nosso “dade”. Designa ser, vigor de ser, ser como vigência e regência de uma
presença. O sufixo se acrescenta a “Abgeschieden-”. Por sua vez, ali nós
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temos o prefixo “ab” e o verbo “scheiden”. “Ab” assinala certo retraimento.
Diz o distanciamento do que se retrai, do que se retira, do que se vela e se
encobre. Assim, “Abschied” significa despedida. O movimento de quem se
despede é o de ir se retirando. Quem se retira, na despedida, some no
horizonte, se vela e se encobre em sua invisibilidade. Abgeschiedenheit diz,
portanto, antes de tudo a transcendência absoluta de Deus, melhor, acena
para o retraimento de sua deidade. Esse retraimento é o fundo abissal, que
deixa e faz tudo ser o que é. É do abismo dessa identidade que emerge e
brota toda a diferença, que articula e compõe o uni-verso. “Abgeschiedenheit”
é o retraimento que deixa e faz ser a unicidade de cada sendo na sua
diferença, isto é, na singularidade de sua identidade. É o suporte que recolhe
e acolhe toda e qualquer diferença como a unidade de tudo em tudo. A
“Abgeschiedenheit” – o desprendimento –, como sentido do ser, vige como
abissal retraimento, como o silêncio de fundo de todas as coisas, como o
humilde e recatado pudor do mistério originário. É a partir desse silêncio, que
se percute e repercute a linguagem do Um. É a partir do abismo do
retraimento que o ser emerge como fontal e originária superabundância da
doação da liberdade criativa, que deixa e faz ser todas as coisas, na sua
diferença, na identidade consigo e com todo o universo. “Abgeschiedenheit”
– desprendimento – é a proximidade calma de um vigor que rege sem se
impor, que se doa, retirando-se e retraindo-se para dentro do pudor de seu
mistério.
A plena vigência do desprendimento como sentido do ser chama-se, em
Eckhart, Minne, uma palavra medieval para amor. Eckhart não recorre à
palavra usual para amor, Liebe, mas à palavra que se diz no contexto do
amor cavalheiresco medieval, Minne. Originariamente, Minne designava a
ternura e o vigor do amor misericordioso, que se desdobra em diligente
cuidado e antecipação solícita, em bem-querer atencioso, que se empenha
por poupar e proteger, defender e salvar. Minne, depois, passou a designar
a intimidade do amor de enamoramento no encontro entre um homem e uma
mulher e na doação mútua e inteira, a modo do amor esponsal. A partir do
século XII e XIII passou a nomear o protótipo do amor-dedicação de um
cavaleiro para com uma dama, o motivo de suas lutas, de suas façanhas e
de suas gestas. Na linguagem medieval, Minne trinken – beber o amor - era
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comemorar a dádiva do amor, era recordar a gratuidade e a graciosidade do
encontro amoroso, da afeição e da intimidade que ele fazia surgir.
Comemorar a dádiva é recebê-la, sempre de novo, numa gratidão que a faz
frutificar.
Em Eckhart, a palavra “Minne” evoca e re-corda o mais antigo de tudo quanto
há: o desprendimento como dádiva do amor primeiro, isto é, primordial.
“Minne” é o desprendimento como fonte que jorra cordial na superabundância
e superfluência da doação de toda e qualquer possibilidade de ser. É a soltura
e a leveza do desprendimento que, encobrindo-se a si mesmo no recato de
sua humildade, deixa brotar e jorrar de si toda e qualquer possibilidade de
ser. Esse modo de ser do desprendimento como amor, um discípulo tardio de
Eckhart, no século XVII, cantou como o florescer por florescer da Rosa: “A
rosa é sem por quê, / floresce por florescer, / não olha p’ra seu buquê, / nem
pergunta se alguém a vê”.
Estante do saber
Os sermões alemães completos
(http://caminhodomeio.files.wordpress.com/2009/06/meister-
eckhart-os-sermoes-alemaes.pdf), de Mestre Eckhart.
Mestre Eckhart: misticismo ou “aristotelismo ético”?
(http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/filalema/filalema_11/rod
rigo_03.pdf), de Rodrigo Guerizoli.
As imagens da nobreza na vida e nas obras de Mestre Eckhart
(http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num9/artigos/13.pdf) e
“Xeque-mate ao tempo, às formas e ao lugar...”. Mestre Eckhart entre
o fluir do tempo e o remanso da Eternidade
(http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num11/13.%20Matteo.p
df), de Matteo Raschietti.
12.3 Da mística à ciência: Nicolau de Cusa
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O ser, que é Deus, no retraimento de sua deidade, vigora como amor. Isso é
algo do pensamento de Eckhart e de sua mística. Estranhamente, este
pensamento e essa mística atuaram em Nicolau de Cusa (1401-1464)
(HEIZMANN, 1992, p. 279-290). E do Cusano veio uma influência que
determinou o nascimento da ciência moderna. A ontologia da diferença
possibilitou uma compreensão do universo como um todo relacional, onde
cada ente é o que é à medida que é em relação com outro ente; portanto,
uma ontologia do sistema ou da estrutura. Não há, aqui, um ser em si do
ente. Todo o ente finito é o que é a partir da relação com outro ente. É um
algo outro (aliquid: aliud quid, outro quê). Deus mesmo, porém, dirá Nicolau
de Cusa, é o não-outro (non aliud). É ele mesmo. E basta. A partir de então
a transparência passa a ser o sentido da criação. A verdade de cada coisa
passa a residir na sua estrutura interna. O mundo passa a se mostrar como
a estruturação, em que cada coisa só é o que é na sua relação com as outras
coisas, dentro da grande ordem universal. O universo mesmo passa a ser
experimentado como uma espécie de creatio continua (criação contínua)
imanente. Tudo é somente no devir de uma gênese cocriativa universal. Por
isto, o conhecimento se volta para as conjunturas funcionais dos diversos
momentos estruturais do universo. Assim, a moderna ciência da natureza
seria filha do gótico, da mística, quer ela saiba, quer não. Já Boaventura dizia
ser a Escritura um livro, que só nos foi dado porque já não éramos capazes
de ler o livro da criação. Também Mestre Eckhart afirmava que quem não
conhecesse mais do que as criaturas – isto é, quem tivesse um conhecimento
límpido da transparência das criaturas – não precisaria de prédica, pois cada
criatura é plena de Deus e é um livro. Se, mais tarde, Galilei declarava ser a
“filosofia” – o saber da uni-totalidade – escrita no livro da natureza em
caracteres matemáticos, isto só era possível sobre o fundo da mística
medieval, do seu pensamento especulativo e da arte gótica.
Estante do pensar
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Nicolau de Cusa (1401-1464) (http://publique.rdc.puc-
rio.br/revistaalceu/media/alceu_n4_Konder.pdf), de Leandro Konder.
O tema do “pecado original” na teoria do conhecimento de Nicolau de
Cusa (http://www.principios.cchla.ufrn.br/24P-267-296.pdf), de
Gianluca Cuozzo.
A visão disso tudo se fez poesia, porém, em alguns versos de Dante,
cantados no “Primeiro Canto” do Paraíso, na Divina Comédia (Cfr.
ALIGHIERI, 2005, p. 601) e é com estes versos que terminamos
nosso estudo de filosofia medieval, pois neles se deixa ver o sentido
do Mesmo, que, de diversas formas, foi pensado pelos pensadores
medievais:
As coisas todas quantas
Têm uma ordem entre si, e isso é forma,
Que faz o universo a Deus semelhante.
Aqui as altas criaturas veem o vestígio
Da eterna valência, que é fim,
Ao qual se conforma a supradita norma.
Na ordem, que eu digo, tendem
Todas as naturezas, por diversas sortes,
Ao seu princípio, com mais ou menos vigor.
Daí, se movem a diversos portos
Através do grande mar do ser, e a cada uma
É dado instinto para que lá aporte.
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