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Privatização Do Público
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APP-SINDICATO 9
Privatizao do pblico,
destituio da fala e anulao da
poltica: o totalitarismo neoliberal
O texto do Professor Francisco de Oliveira, que vere-
mos a seguir, nos possibilita o entendimento das condies
concretas da formao da sociedade brasileira, resultante
de um neoliberalismo como um Frankenstein construdo de
pedaos de social-democratas. Para isso o autor faz a uma
reXexo consistente e crtica explicitando as razes e as con-
sequncias de se viver numa sociedade onde o mercado,
mundial, se pretende autoregulador e um estado funda-
mentado na acumulao e concentrao de capital levando
a perda da centralizao do trabalho e as transformaes in-
ternas e externas da classe trabalhadora. Numa dinmica de
privatizao do pblico, anulao da poltica, do dissenso,
do desentendimento, violncia, contradies, sob a alega-
o de um o sistema do Estado do Bem-Estar.
Um texto e um debate de suma importncia para um
curso que pretende a apropriao e o entendimento destas
categorias e formas de anlise, fundamentais para entender
as origens das desigualdades em que vivemos no intuito de
buscarmos permanentemente a superao e a transforma-
o desta sociedade.
Escola sia
Escola privada - Brasil
10 APP-SINDICATO
1. Adgio: Para o sol que se pe em toda parte
O movimento neoliberal, entendido no sentido lato, talvez no esteja enganan-
do quando prega a volta ao indivduo, ao reino do privado e ao consequente desman-
telamento da institucionalidade contempornea que se forjou se no sob o signo do
coletivo, pelo menos sob o signo da segurana, ao invs do signo do contrato mercan-
til. Tudo isto foi o trnsito desde a Revoluo Francesa, com o Cdigo Napolenico, at
o Estado do Bem-Estar; que se universalizou mesmo para os pases da periferia do ca-
pitalismo, sob formas de simulacros, bem ou mal acabadas, seja do contrato mercantil,
seja do Estado do Bem-Estar. J a reduo da volta ao indivduo com a prevalncia
exclusiva do mercado como a nica instituio reguladora, auto-reguladora tanto da
alocao dos recursos econmicos como das relaes sociais e da sociabilidade em
sentido geral, mais problemtica, posto que o mercado enquanto instituio nada
tem de uma mera soma, de um mero agregado de vontades individuais, embora este
seja o pressuposto da teoria neoclssica, que assim faz a passagem do micro para o
macro, da microeconomia para a macroeconomia, das decises individuais para a so-
ciabilidade geral. Mas permanece sob suspeita essa passagem e, portanto o entendi-
mento do mercado como uma instituio de regulao autoconstituda.
Privatizao do pblico, desti-
tuio da fala e anulao da pol-
tica: o totalitarismo neoliberal
OLIVEIRA, Francisco de. Os sentidos da democracia: polticas do dissenso e a hegemonia global. Orgs.
Francisco de Oliveira e Maria Clia Paoli. Braslia: Editora Vozes, 1999, p. 55-81.
APP-SINDICATO 11 1111
Se a reduo ao indivduo permanece no
terreno meramente ideolgico, ainda que se
constitua hodiernamente como a expresso ide-
olgica par excellence do movimento neolibe-
ral, a reduo ao privado - que no a mesma
coisa que o indivduo - assenta-se noutras razes,
sociologicamente distintas, das quais possvel
pesquisar seus fundamentos no prprio proces-
so da acumulao de capital e de sua concentra-
o e centralizao. Ao lado dos processos da ins-
titucionalizao do Estado do Bem-Estar.
Na interpretao original da constituio da
esfera pblica, que remonta a Hegel e retomada
modernamente por Habermas, esta aparece como
a constituio de um espao de sujeitos privados
que assim se demarcam em relao ao Estado; em
linguagem de Marx, a esfera pblica de sujeitos
privados o lugar da concorrncia entre os ca-
pitais, que inclui o mercado de fora de trabalho.
Mas trata-se de uma esfera pblica burguesa. Uma
rede'nio da esfera pblica burguesa para uma
esfera pblica no burguesa - no chega a ser an-
tiburguesa - processou-se com o Estado do Bem-
Estar, onde os sujeitos privados, ou a concorrncia
intercapitalista, e neste caso tambm o mercado
de fora de trabalho, passam a ser regulados de
fora, isto , por uma racionalidade que Habermas
chamaria de administrativa, ainda que seu supor-
te material seja o conXito de interesses, ou a luta
de classes, em sentido marxiano mais rigoroso.
A experincia social de mais de sessenta
anos do Estado do Bem-Estar, se considerarmos
a Grande Depresso de 29 como o marco da uni-
versalizao de medidas de bem-estar, produziu o
processo de sua naturalizao, vale dizer, no sen-
tido habermasiano de esgotamento das energias
utpicas. Na base dessa naturalizao esto dois
fenmenos extremamente importantes, ao pri-
meiro dos quais a literatura no d nenhuma im-
portncia, e ao segundo dos quais j se dedicou
bastante papel e que se tem chamado a perda de
centralizao do trabalho (O\e, como representa-
tivo), isto , as profundas modi'caes na classe
operria. Mas o primeiro fenmeno diz respeito s
burguesias e no que adiante chamarei seu proces-
so de intensa subjetivao da acumulao de ca-
pital, da concentrao e da centralizao, cujo em-
blema e paradigma a globalizao, que expressa
a privatizao do pblico, ou, ideologicamente,
uma experincia subjetiva de desnecessidade,
aparente, do pblico. Todo o discurso sobre as
multinacionais, que ultrapassam e tornam obsole-
tos os Estados Nacionais, so formas expressivas
dessa subjetivao de uma experincia que, con-
traditoriamente, foi alavancada (fessima palavra)
justamente pelo Estado de Bem-Estar.
Do outro lado da equao, um processo pareci-
do tambm atuou, ainda que com outros resultados.
Ao lado das transformaes na prpria classe traba-
lhadora, suas transformaes internas (composio,
especializao, sexo e gnero, composio etria,
ocupaes e pro'sses etc.), que na verdade expres-
sam suas transformaes externas, vale dizer, suas
relaes com o capital, a posio na estrutura de clas-
ses, o menor contedo de trabalho vivo em cada to-
mo de valor agregado, o que se transforma em uma
cadente quantidade operria, sua visibilidade, sua
auto-identi'cao, o Estado do Bem-Estar produziu
uma espcie de naturalizao administrativa das
conquistas e dos direitos que, ao tornarem-se prati-
camente universais, liberaram-se, num processo bas-
tante conhecido do ponto de vista de sua produo
conceitual e tambm histrica, de sua base mate-
rial, vale dizer, das prprias classes trabalhadoras.
Escola frica
12 APP-SINDICATO
O passo para, de novo com Habermas, esgotar as
energias utpicas, como o abandono da militn-
cia sindical e at mesmo da simples adeso ao
sindicato, expressa-se nas baixas taxas de sindi-
calizao.
Todo esse processo a privatizao do pblico.
Mais que as privatizaes das empresas estatais, que
apenas em dois pases, Inglaterra e Frana, revesti-
ram-se de contedos explicitamente ideolgicos da
luta de classes, no sentido de que as empresas esta-
tais eram os basties de importantes setores da clas-
se operria que fundou e viabilizou o prprio Estado
do Bem-Estar, enquanto que na grande maioria dos
outros pases as privatizaes tiveram sentidos mui
pragmticos, a subjetivao descrita uma privatiza-
o da esfera pblica, sua dissoluo, a apropriao
privada dos contedos do pblico e sua reduo, de
novo, a interesses privados. No por outra razo que
as medidas de privatizao, de dissoluo da esfera
pblica, de destituio de direitos, de desregulamen-
tao, por parte das burguesias e dos governos, en-
contram resistncia social que no se transforma em
alternativa poltica. que essa subjetivao comum
aos dois lados da contenda, embora com sentidos de
classe bem diversos, o que a resistncia social, sobre-
tudo contra as medidas tpicas do Estado do Bem-
Estar (seguro-desemprego, seguridade em geral,
aposentadoria etc.) tem mostrado na Europa, apesar
de que sua passagem para a poltica se v di'cultada
justamente porque a ruptura da relao de conXito
uma anulao da poltica, nos termos de Rancire.
A administrabilizao do Estado do Bem-Estar
a produo do consenso que, para Rancire, produz
exatamente a anulao da poltica, posto que esta
... a que rompe a con'gurao sensvel na qual se de-
'nem as parcelas e as partes ou sua ausncia a partir
de um pressuposto que por de'nio no tem cabi-
mento ali: a de uma parcela dos sem parcela1.
2. Largo: A formao da sociedade no
Brasil
A formao da sociedade brasileira, se a re-
constituirmos pela interpretao de seus intelec-
tuais demirgicos, a partir de Gilberto Freyre, Caio
Prado Jr., Srgio Buarque de Hollanda, Machado de
Assis, Celso Furtado e Florestan Fernandes, um
processo complexo de violncia, proibio da fala,
mais modernamente privatizao do pblico, in-
terpretado por alguns com a categoria de patrimo-
nialismo, revoluo pelo alto, e incompatibilidade
radical entre dominao burguesa e democracia;
em resumo, de anulao da poltica, do dissenso,
do desentendimento, na interpretao de Rancire.
bvio que sua base estrutural constituiu-se
com o escravismo, o qual resume todo o anterior.
Particularmente Freyre pe as cores fortes na vio-
lncia sexual como apropriao do corpo e anu-
lao do outro, na proibio dos cultos africanos
como proibio da fala, no rigor dos castigos como
proibio da reivindicao. Srgio Buarque com o
homem cordial insiste quase nas mesmas teclas: a
astcia da intimidade cordial o horror das distn-
cias que o signo do no reconhecimento da alte-
ridade, das distintas proibies que anularam toda
possibilidade de uma experincia subjetiva liberal.
Caio Prado Jr. explicar a trama estrutural
dessa anulao, que no decorrer de um carter
qualquer ibrico - o exagero, talvez de Srgio Bu-
1 RANCIRE, Jacques. O Desentendimento. Trad. de ngela Leite Lopes, So Paulo, Ed. 34, 1996, p.42.
Escola Finlndia
APP-SINDICATO 13 131313
arque - mas das determinaes advindas da simul-
taneidade entre a colnia como coetnea do capi-
talismo mercantil e o escravismo como a marca de
sua defasagem.
Machado de Assis, na leitura de Roberto
Schwarz, desvela como a desfaatez de classe se
faz linguagem, retrica, antecipando notavel-
mente a dmarche de Srgio Buarque. Embora o
registro terico com que Schwarz interpreta Ma-
chado seja do campo marxista, notvel como
dessa interpretao emergem Brs Cubas e Dons
Casmurros que podem ser lidos no registro do
homem cordial.
Celso Furtado, em Formao econmica do
Brasil, desvenda, sob o mesmo prisma do Marx
de O 18 Brumrio, uma revoluo passiva que,
sem embargo, mudou radicalmente os termos da
dominao de classes, mantendo, entretanto, as
antigas classes dominantes como aliadas de se-
gundo plano: uma operao semilampedusiana.
Toda essa riqueza de interpretao desgua em
Florestan Fernandes, em A revoluo burguesa,
cuja hiptese mais radical a da j quase impossi-
bilidade de que a dominao burguesa se revista
das formas revolucionrias, tendo em vista, agora,
por sua vez, o esgotamento de suas energias ut-
picas - Florestan no era um habermasiano, quem
tampouco havia chegado, poca de A revoluo
burguesa, a tais concluses.
O que ele quis dizer que em no havendo
rompido nunca com as bases do poder latifun-
dirio, de um lado, e, de outro, em cedendo sua
primazia ao imperialismo internacional, a bur-
guesia nacional havia realizado a passagem para
a dominao econmica de classe sem qualquer
ruptura revolucionria. Mais que isto, as transfor-
maes que o capitalismo introduz na estrutura
de relaes sociais, sobretudo a emergncia de
um proletariado independente, a libertao do
campesinato dos laos de dependncia e da servi-
do (escrevo no momento - abril de 97 - em que a
marcha do Movimento dos Sem-Terra sobre Bras-
lia recupera, notavelmente, o espao da poltica),
acurralam o sistema de dominao de classe, com
o que a burguesia reage sempre sob a forma de
ditaduras.
A histria brasileira, desde a Revoluo de
30, mostra que no espao de 60 anos possvel
contar duas ditaduras, a de Vargas entre 1930 e
1945 e a que se seguiu ao golpe militar de 64, at
1984, perfazendo 35 anos de ditadura em 60 anos
de histria da mudana da dominao de classe.
Mais, se se contar, alm dos golpes que resultaram
em ditaduras, as tentativas de golpes falhados,
chega-se mdia de um golpe ou tentativa para
cada trs anos, desde 30 at 90. A hiptese de Flo-
restan, que recolhe toda a fora da interpretao
anterior, que vem de Gilberto at ele, parece en-
contrar nos fatos da histria brasileira uma dram-
tica e triste con'rmao.
Todo o esforo de democratizao, de cria-
o de uma esfera pblica, de fazer poltica, en'm,
no Brasil, decorreu, quase por inteiro, da ao das
classes dominadas. Poltica no sentido em que a
de'niu Rancire, j citado: a da reivindicao da
parcela dos que no tm parcela, a da reivindica-
o da fala, que , portanto, dissenso em relao
aos que tm direito s parcelas, que , portanto,
desentendimento em relao a como se reparte o
todo, entre os que tm parcelas ou partes do todo
e os que no tm nada.
Larga seria a reconstituio desse processo,
com a desvantagem de que, embora os grandes
clssicos brasileiros tenham posto o acento na vio-
lncia da negao do outro, do corpo do outro, da
fala do outro, da parcela dos sem parcela, dos do-
minados, a recuperao da histria dos domina-
dos muito recente. Tomaremos, pois, como pon-
to de partida, brevemente, desde os anos trinta, e
desde a tentativa de constituio dos partidos de
classe, como movimentos das classes dominadas
que abriram a poltica brasileira, ou, mais exata-
14 APP-SINDICATO
mente, realizaram a faanha de fazer poltica.
notvel e reconhecido na literatura que
tanto as sociedades de ajuda mtua organizadas
pelo operariado quanto os prprios sindicatos,
anarquistas, anarco-sindicalistas, socialistas e pos-
teriormente comunistas, foram anulados e trans-
formados pela ditadura de Vargas nos Institutos
de Previdncia e nos sindicatos tutelados. Essa
grande operao de silncio, de roubo da fala, que
se sintetiza na busca da harmonia social, bem o
signo da anulao da poltica. Quando os fatores da
vitria aliada na Segunda Guerra Mundial intervie-
ram na correlao interna de foras polticas (ou de
foras de polcia, no sentido que lhe atribui Ranci-
re), derrubando Vargas, as classes dominadas am-
pliaram o espao de sua fala e o Partido Comunis-
ta do Brasil (que tinha essa denominao, quela
poca), chegou a ter uma bancada considervel na
Cmara de Deputados, elegeu Prestes com a maior
votao para o Senado - maior que a do prprio
Vargas - tinha importantes bancadas em vrias As-
semblias Estaduais e em muitas Cmaras de Vere-
adores de importantes cidades, como Rio, Santos
e Recife, tinham quase a metade das cadeiras. Em
muitas cidades operrias o Partido Comunista do
Brasil chegou a ser majoritrio nas respectivas C-
maras de Vereadores. Em 1947, sob presso norte-
americana, j inaugurada a Guerra Fria pelo famoso
discurso de Churchill, a que responderam as clas-
ses dominantes e as Foras Armadas brasileiras, o
Partido Comunista do Brasil, que havia conseguido
quase 10% da votao na eleio presidencial de
45, foi posto na ilegalidade. Aqui no se trata de sa-
ber qual o carter do Partido Comunista do Brasil:
trata-se de uma operao de anulao do dissenso,
de silenciamento de algo que exatamente no obe-
decia aos cnones geomtricos da distribuio das
parcelas. E inegvel, qualquer que seja a avaliao
a respeito da prpria polcia do Partido Comunista
do Brasil (h uma literatura a respeito cada dia mais
volumosa), que ele recolhia sua maioria de votos da
classe operria das cidades mais industrializadas.
O varguismo ressurge nas eleies de 1950.
Mas o processo do varguismo, em que ele busca
apoiar-se no novo operariado urbano, que no pe-
rodo anterior ele havia simplesmente silenciado,
comea a inverter os termos do problema. Em ou-
tras palavras, o varguismo rede'nido a partir da
nova relao de foras estabelecida no seu inte-
rior, entre os velhos propsitos de cooptao, que
o nome sociolgico da anulao, e as necessida-
des de abrir o espao para a iniciativa dos sindica-
tos, impostas para que o prprio varguismo possa,
agora, sobreviver ao confronto com a nova direita
liberal ma non tropo (UDN), de base sobretudo
urbana, e as velhas bases latifundirias, represen-
tadas no antigo PSD. Isto , a operao de abertu-
ra do varguismo uma operao poltica da classe
trabalhadora, embora a interpretao sociolgica
e de cincia poltica no Brasil insista no velho re-
fro, que toma ares de paradigma, de que o var-
guismo era a expresso de caudilhismo urbano.
O suicdio de Vargas um golpe dirigido,
sobretudo a esse processo; que o velho estadista
o entendeu, ainda que parcialmente, prova-o seu
gesto extremo, geralmente interpretado apenas
como a recusa em entregar o poder aos seus ve-
lhos inimigos; outras razes, de foro ntimo, no
cabem nessa explicao, mas 'ca claro que, se elas
existiam, o detonador foi a tentativa dos grupos
dominantes em reduzir, novamente, o prprio Var-
gas a apenas um caudilho que cooptava massas; Escola China
APP-SINDICATO 15 151515
neste sentido, ainda que perigoso, ele era contro-
lvel. J como parceiro, ainda que em nvel supe-
rior, dos sindicatos, ele ameaava a polcia (pol-
tica) brasileira, entendida em termos de Rancire.
O golpe de 1964 tem todas as caractersti-
cas, de forma extremamente forte, de uma total
anulao do dissenso, do desentendimento, da
poltica. Como alis, qualquer ditadura. A busca
do consenso imposto - que em termos gramscia-
nos pode parecer uma contradio - mostrava que
a poltica elaborada pelas classes dominadas havia
abalado at as razes consenso policial.
As reformas de base, a grande bandeira uni-
'cada dos anos cinquenta e sessenta, que se am-
pli'ca extraordinariamente na dcada do golpe,
signi'cavam o questionamento da repartio da
riqueza, uni'cando tambm categorias diversas
de trabalhadores urbanos, classes mdias antigas
e novas, pro'ssionais de novas ocupaes, agora
autonomizados e, em geral, tendo invertido sua
velha relao com o populismo. O grande deba-
te sobre a educao colocou num novo patamar a
questo da escola pblica, da produo cient'ca
e tecnolgica, o papel dos cientistas e intelectuais
que, nessa nova relao, tornavam-se intelectuais
orgnicos da poltica, sem que estivessem neces-
sariamente ligados a partidos polticos.
Mas talvez a ampli'cao mais notvel da
poltica tenha ocorrido mesmo no lado do campe-
sinato e dos trabalhadores rurais. As Ligas Campo-
nesas, menos pelo seu real poder de fogo, medi-
do do ponto de vista de travar uma luta armada
com os latifundirios - quando ela ingressou por
essa via seu verdadeiro potencial revolucionrio
se exauriu -, deram a fala, o discurso, capaz de rei-
vindicar a reforma agrria e de des-subordinar o
campesinato, aps longos sculos, da posio de
mero apndice da velha classe dominante latifun-
diria. O movimento pelo sindicalismo rural, que
conXitava em objetivos imediatos com as Ligas
Camponesas, entretanto conXua com as mesmas
no sentido de criar a poltica no Brasil. E isto dese-
quilibrou profundamente a prpria relao entre
as classes dominantes, que viram ameaada sua
possibilidade de fazer poltica policial, tanto no
sentido rancieriano, quanto no sentido literal. O
elo mais fraco da cadeia, nos termos de Lnin, ha-
via se revelado do lado dos latifundirios, e a cres-
cente autonomia do campesinato e dos trabalha-
dores rurais ameaava todo o esquema do poder.
Para no esquecer nada, nas Foras Armadas
os praas de pr, desde soldados at sargentos,
reivindicaram o voto, isto , a fala, desestruturan-
do a hierarquia, isto , a ordem em que as partes
do bolo eram divididas. A poltica consistiu nisso:
o desa'o hierarquia e a reivindicao do voto
punham por terra o papel policial em sentido lite-
ral que as Foras Armadas desempenham na pol-
cia das classes dominantes.
O golpe de Estado de 1964 e toda sua du-
rao no foram seno o esforo desesperado de
anular a construo poltica que as classes domi-
nadas haviam realizado no Brasil, pelo menos des-
de os anos trinta. Tortura, morte, exlio, cassao
de direitos, tudo era como uma sinistra repetio
da apropriao dos corpos e do seu silenciamen-
Escola Peru
16 APP-SINDICATO
to, do seu vilipendiamento, da saga gilbertiana.
Sindicatos mais que tutelados passaram a admi-
nistraes diretamente nomeadas pelo Ministrio
do Trabalho, alm, claro, da regulao adminis-
trativa dos conXitos e da 'xao, igualmente por
via administrativa, dos salrios, seus pisos e, por
consequncia, seus tetos, e a prpria formao do
mercado de fora de trabalho. Uma sinistra produ-
o de mercadorias sem equivalente, sem a iluso
da liberdade, que Friedrich Pollock j havia quali'-
cado, nos anos trinta, como o sinal mais caracters-
tico do fascismo. E uma anulao da possibilidade
da reivindicao da parcela dos que no tm par-
cela, tanto na produo quanto na distribuio do
produto social.
Penosamente, na brecha das prprias con-
tradies da expanso capitalista poderosamente
ajudada por esse quase fascismo, as classes sociais
dominadas voltaram a reconstruir a poltica. Pon-
do por terra e inviabilizando a poltica salarial do
governo e, com isso, sua capacidade de previso
e de aglutinao do novo e poderoso bloco bur-
gus, recuperando suas entidades antes sob inter-
veno e, engenhosamente, encontrando formas
de, ao enfrentar diretamente os grandes grupos
econmicos, obrigando-os a acordos salariais,
evitando, assim, a tutela do Ministrio do Traba-
lho que permanecia meramente formal. Criando
comits de luta contra a carestia, na dcada de
setenta, deslocando a luta do terreno da reivindi-
cao salarial para o terreno das polticas pblicas,
atravs dos movimentos populares, criando mi-
lhares de comits pela anistia e pela constituinte,
as classes dominadas reinventaram a poltica e
novamente encurralaram as foras dominantes,
que, falta de capacidade para se autodirigirem,
haviam deixado, desde o golpe de 64, a tarefa diri-
gente nas mos das Foras Armadas. Como crise
de hegemonia, nunca resolvida, somou-se uma
crise de previsibilidade, as Foras Armadas viram,
de repente, fugir a terra de sob seus ps. Reapare-
ceu, ento, em lugar do consenso imposto, o con-
senso policial, isto , democrtico.
Nessa passagem, o movimento popular
prosseguiu na ofensiva, at a Constituinte de
1988, a chamada cidad, por Ulysses Guimares.
Toda a reivindicao anterior ganhou foros de di-
reito, na letra da Carta Maior. O direito ao trabalho,
o direito auto-organizao (os assalariados j ha-
viam criado esse direito, ao criarem as centrais sin-
dicais, proibidas legalmente at ento), o direito
sade, o direito educao, o direito da criana e
do adolescente, o direito terra, o direito ao habe-
as-corpus (a talvez mais antiga negao do corpo
na formao da sociedade brasileira), o direito ao
habeas-data (talvez a outra mais antiga negao,
a da fala, a do discurso), o direito a uma velhice
digna e respeitada, en'm, todas as reivindicaes
que signi'cam poltica como o processo mediante
o qual se pe em xeque a repartio da riqueza
apenas entre os que so proprietrios, ganhou
uma forma, talvez a mais acabada que as condi-
es histricas permitiam.
Alm disso, convm no esquecer, em 1989,
outra vez, talvez mais radicalmente que em 1964,
exatamente como desenvolvimento da poltica
Escola Brasil
APP-SINDICATO 17 171717
das classes dominadas, o regime poltico e o pr-
prio sistema social sofreram um terremoto que,
na escala Richter de medio de abalos, talvez
tenha chegado perto dos 7 (o mximo da esca-
la Richter parece ser 8), quando o candidato da
esquerda chegou a quase 50% dos votos no se-
gundo turno das eleies presidenciais, contra
Fernando Collor de Mello.
As classes dominantes e o sistema como
um todo entregaram-se totalmente ao seu sal-
vador, apesar de que ele era um outsider, um
messinico, e, como se revelou depois, desprepa-
rado para costurar foras to disparatadas, alm
de invadir santurios da corrupo instalados
na trama dos negcios entre sistema privado de
empresas, o sistema estatal produtivo e Estado
condotiere que se dessangrava. Um sequestro
de ativos 'nanceiros que s encontrou paralelos
na crise de Weimar, sob Hjalmar Schacht, no to
estranhamente o subsequente intocvel ministro
das 'nanas do nazismo, foi aplaudido por todas
as foras burguesas como o preo a pagar para
salvar-se de Lula e seus sequazes petistas-comu-
no-nacionalistas. O jornal A Folha de S. Paulo pu-
blicou um editorial intitulado Custe o que cus-
tar e viu, dias depois, que esse custo traduziu-se
em invaso de seus escritrios e devassamento
de sua contabilidade. Nem assim o jornal mudou,
imediatamente, de posio.
O que as classes dominantes e o sistema
dominante em geral conferiram a Collor foi a
transformao de seu mandato, conquistado na
eleio com os votos populares contra um Esta-
do que se desfazia e que ele simbolizou nos po-
bres funcionrios como marajs, em um manda-
to destrutivo da poltica construda pelas classes
dominadas - a esse processo eu chamei de a fal-
si'cao da ira, ttulo do livro em que tratei de in-
terpretar a metamorfose entre o Collor vingador
de marajs e o Collor destruidor das organiza-
es populares.
3. Prestssimo: para o ocaso brasiliano
Esse processo desenvolve-se, agora, de for-
ma plena e acabada, sob a gide da presidncia
de Fernando Henrique Cardoso. Vale a pena ten-
tar entend-lo sociologicamente, para buscar a
raiz real de como a poltica policial tenta anular
e destruir a poltica construda pelas classes domi-
nadas.
De qualquer modo, o intenso processo de
acumulao alavancado (outra vez essa fessima
palavra) pelo regime militar mudou as relaes
e a hierarquia entre as classes dominantes, suas
distintas expresses, suas fraes agrrias, indus-
triais, 'nanceiras e de servios2, sua origem entre
capital nacional, internacional e estatal produtivo,
suas antigas fraturas regionais, a importncia dos
ramos e setores, desde a antiga prevalncia txtil-
alimentar atual qumico-petroqumico-metal-
mecnico e particularmente automotivo, seus
graus de concentrao, oligoplio e monoplio.
Esse intenso processo, articulado 'nanceiramen-
te pelo Estado como um capital 'nanceiro geral,
e, na maior parte dos casos, como capital estatal
produtivo - isto , o papel do Estado subsidiando
a formao de capital e, ao mesmo tempo, atravs
das empresas estatais, constituindo a nova rede
de relaes industriais - na crise da dvida externa
dos anos oitenta, terminou convertendo a refe-
rida dvida em dvida interna pblica, com o que
esgotou o papel de condotiere do Estado na ex-
panso capitalista. O Estado falido, uma expres-
so imprpria que a mdia tratou de divulgar, dava
conta desse esgotamento.
A crise interna do Estado colocou os holofo-
tes sobre a despesa pblica e converteu as despe-
sas sociais pblicas no bode expiatrio da falncia
2 OLIVEIRA et alii. Quanto melhor, melhor: o acordo das montadoras, in: Novos estudos CEBRAP, n 36, julho/1993; e OLI-VEIRA, F. e COMIN, Alexandre, Os anis de Mercrio, relatrio de pesquisa ao CNPq, 1995.
18 APP-SINDICATO
do Estado condotiere, quando na verdade isto
se deveu dvida interna pblica e ao servio da
dvida externa da simultaneidade das duas crises,
com a incapacidade clssica das burguesias em
abrirem-se para a poltica, o que signi'ca dizer
que a resoluo de seus impasses no conseguia
ser arbitrada, abriu o passo a que a soluo bur-
guesa viesse, uma vez mais, de fora para dentro,
agora na forma da globalizao. Dito de outro
modo, a soluo da inXao, que nada mais que
o conXito distributivo pela mais valia, foi resolvido
pela abertura comercial, isto , pela competio
internacional que abocanhava partes crescentes
da mais-valia produzida internamente. Com o que
estabilizaram-se os preos, mas ao preo - boa
a redundncia - de uma permanente injeo de
capitais especulativos que, ao mesmo tempo que
cobre a brecha comercial, atua sustentando uma
moeda 'ctcia, que o
real.
Esse intenso
processo levou a uma
subjetivao perigosa
por parte das burgue-
sias, que isto a que se
chama a privatizao,
de que a privatizao
das empresas estatais apenas a forma mais apa-
rente. Do que se trata de algo mais radical, que
a privatizao do pblico, sem a correspondente
publicizao do privado que foi a contrapartida,
ou a contradio, que construiu o sistema do Esta-
do do Bem-Estar3.
A privatizao do pblico uma falsa cons-
cincia de desnecessidade do pblico. Ela se obje-
tiva pela chamada falncia do Estado, pelo meca-
nismo da dvida pblica interna, onde as formas
aparentes so as de que o privado, as burguesias
emprestam ao Estado: logo, o Estado, nessa apa-
3 RANGEON, F. LIdeologie de LIntret General. Paris, Eco-nomica, 1986.
rncia, somente se sustenta como uma extenso
do privado. O processo real o inverso: a riqueza
pblica, em forma de fundo, sustenta a reprodu-
tibilidade do valor da riqueza, do capital privado.
Esta a forma moderna de sustentao da crise do
capital, pois anteriormente, como nos mostrou a
Grande Depresso de trinta, assim como todas as
grandes crises anteriores, o capital simplesmente
se desvalorizava.
A esse processo objetivo corresponde uma
subjetivao da experincia burguesa no Brasil de
hoje que radicalmente antipblica, no sentido
da esfera pblica no burguesa ou cidad, como
prefere Habermas, no sentido de uma experincia
de transcendncia dos prprios mbitos de classe.
Essa falsa conscincia de desnecessidade do
pblico decorre da aparncia de emprstimo de
dinheiro das em-
presas ao Estado,
via ttulos da dvida
pblica mobiliria
interna, de um lado,
da herana da dita-
dura militar em que
a poltica policial
era to-somente
a repartio do produto social entre os proprie-
trios, mediada por uma burocracia, elevada por
alguns ulicos, entre os quais et pour cause o
atual Ministro da Reforma do Estado e da Admi-
nistrao, categoria de tecnocratas (um pasti-
che do John Kenneth Galbraith de O novo Estado
industrial) que no representava a razo do Estado
ou do pblico, mas como a prpria expresso u-
lica ideologizou querendo neutralizar, era apenas
a expresso tcnica daquela repartio, excludos
os que no eram proprietrios, do conXito pela re-
ferida repartio.
Essa aparncia levou a uma outra experin-
cia, que a da constante troca de posies no Es-
tado e na empresa privada: ministros e altos esca-
A introduo de critrios micro
na racionalidade estatal a trans-
forma, subliminarmente, em
uma racionalidade privada.
APP-SINDICATO 19 191919
les que so retirados das empresas, que voltam
s mesmas to logo deixam os cargos e funes
estatais e/ou governamentais, numa promiscui-
dade de que no h notcia mesmo em pases de
forte tradio liberal. Essa promiscuidade como
que atuou no sentido de borrar, subjetivamente,
as barreiras e fronteiras entre o pblico e o pri-
vado, ou mais radicalmente, atua no sentido de
que tudo privado: as pessoas funcionam como
persona, no apenas em razo de um trnsito que
baralha os papis, mas porque a racionalidade das
decises fundamentalmente privada. A intro-
duo de critrios micro na racionalidade estatal
a transforma, subliminarmente, em uma raciona-
lidade privada. De par com o mtodo de custos/
benefcios passa-se, como mestre Weber ensinou,
da razo substantiva para a razo instrumental: h
uma ruptura para um outro paradigma, que passa
a presidir as decises do Estado. Assiste-se como
que a uma regresso do universal abstrato como
processo que cria o Estado como comunidade
ilusria para o mero cho de interesses privados
que, j agora, no se universalizam, j no tm,
aparentemente, a necessidade de liberarem-se de
sua forma de interesses privados, tal o nvel da do-
minao, ou sobretudo da experincia subjetiva
vivida pela burguesia.
Tal mesmo o sentido das privatizaes
stricto sensu. No parece haver razo para a
existncia de uma forma diferente de empresa,
precisamente de uma empresa que representas-
se aquele universal abstrato, a comunidade ilus-
ria, que pudesse assegurar as condies gerais da
concorrncia intercapitalista. Em parte porque as
prprias empresas estatais foram convertidas pela
ditadura em simulacros de empresas privadas, e
nessa condio operam pela mesma rationale:
em parte porque as burguesias consideram que
o domnio de classe que j lograram torna desne-
cessrio que uma parte do sistema mova-se por
leis distintas das que movem o sistema privado,
vale dizer, uma formao diferente da taxa de lu-
cro, uma relao com o Estado e com as prprias
empresas privadas de outra qualidade, vale dizer,
nos termos de Polanyi, que as empresas estatais
representem a politizao necessria do merca-
do, a correo da produo de mercadorias pelas
mercadorias, como diria Sra\a.
Na experincia cotidiana, de h muito as
burguesias e seus altos correlatos, as altas classes
mdias e todos os que Reich e Lasch chamaram
de analistas simblicos, j no tm nenhuma ex-
perincia de transcenderem seus limites de classe,
a experincia de convivncia com outras classes
sociais. Seus cotidianos so extremamente fecha-
dos, cerrados, claustrofbicos, homogneos. Uma
breve descrio servir para mostrar que esse co-
tidiano foi forjando uma subjetividade a qual se
aparenta com as outras j descritas, formando o
homem privado contemporneo, que a base
social sobre a qual se sustenta o neoliberalismo;
que no 'nal de contas sua expresso.
No Brasil, e provavelmente em todos os ou-
tros, o grande burgus e seus correlatos tm um
cotidiano totalmente fechado em seu prprio cr-
culo. Em casa, cercado de criados, cujo estatuto
de empregados assalariados foi realmente rebai-
xado para o de servos; no por acaso, vrias perso-
nalidades polticas, nos USA, tiveram seus nomes
Escola Brasil
20 APP-SINDICATO
queimados para ocuparem posies no governo
democrata de Clinton porque no pagavam pre-
vidncia social para seus empregados; eles eram
clandestinos. Isto ocorre no Brasil tambm entre
as mais graduadas personalidades; ali no h di-
logo nem a fala do outro. Ao sair para o traba-
lho, o faz cercado da maior segurana: carros de
segurana o seguem, frente e atrs, e muitos
mesmo j se locomovem dentro da cidade de he-
licpteros. Ao chegarem ao trabalho, a recepo
se d por elevadores privados, em prdios inte-
ligentes, e o mximo de contato com membros
de outra classe social se d com as secretrias e
com os serventes que servem caf e bebidas, nas
reunies. A relao com as secretrias cada vez
mais tecni'cada, sendo substitudo o contato hu-
mano pelos faxes, internets, intercomunicadores,
e o velho e bom telefone. A secretria , j, um ser
meramente virtual.
O cotidiano de um empresrio passa-se sem-
pre nesse circuito fechado, de seu gabinete para
reunies com outros em empresrios em ambien-
tes semelhantes. Muito raramente defrontam-se,
por exemplo, com representaes de trabalha-
dores: se esse fato era mais comum na dcada de
70, hoje ele rarssimo: no apenas os assesso-
res os substituem, como a dinmica do conXito,
por estratgia da burguesia, est transitando do
sindicato para o cho de fbrica, do coletivo de
trabalhadores de uma categoria para pequenos
coletivos de trabalhadores de cada empresa, de
cada fbrica e de cada seo de fbrica, onde no
o patronato, com suas caras o'ciais, que est l,
mas seus prebostes dos recursos humanos. As
diversas estratgias que a sociologia chama de
cooptao, que incluem todas as modalidades
das chamadas japonesas, no so outra coisa
seno a tentativa de quebrar a representativi-
dade sindical e deslocar o eixo da negociao
para o terreno micro do interesse de cada um,
onde a possibilidade da fala como recurso dis-
cursivo para a reivindicao completamente
anulada. D-se como contrapartida prmios
individuais, que reforam a excluso da fala (v.
Cibele Rizek4).
noite, para completar, o empresrio
moderninho completa seu dia entre uma noi-
tada, ao estilo Olacyr Moraes, gastando virtu-
osamente aquilo que vitorianamente poupou,
ou participa das grandes celebraes de hoje
do mundo burgus, das quais ele inclusive
patrocinador: algumas das grandes sesses da
pera, dos patronos do Municipal, do Mozar-
teum, da Sociedade de Cultura Artstica, alguns
at so presidentes da fundao da Bienal de
Artes Plsticas, ou simplesmente, na maio-
ria dos casos, est fora do pas, divertindo-se
comme il faut. Em todos os casos, os mesmos
poderosos esquemas de segurana o seguem,
esquadrinhando cada metro de terreno que
pisam ou por onde passam, evitando, a qual-
quer custo, qualquer contato com qualquer ser
extraterrenal, vale dizer, de outra classe social.
Raros deles exibem ainda uma antiga vocao
altrusta, cuidando de instituies privadas de
assistncia pblica, como Antnio Ermrio de
Morais, mas mesmo a o pblico privado, pos-
to que apenas constitudo pelos pacientes e
estes, desde uma velha nomeao que data dos
fins da Idade Mdia, j so destitudos da fala e
da reivindicao, como os loucos (Michel Fou-
cault, LHistoire de la Folie dans Ige Classique).
4 RIZEK, C. e MELLO E SILVA, Leonardo. Relatrio do Proje-to Trabalho e quali'cao no Complexo Qumico paulista, julho 1996, mimeo.
Escola Brasil
APP-SINDICATO 21 212121
Uma das passagens possveis durante o dia
o deslocamento para algum escritrio do Estado.
Ali, sobretudo nos mais altos escales, o sentido
de uma experincia que apenas privada, que se
passa apenas entre homogneos, se reproduz: a
fala igual, os objetivos so iguais, anulam-se as
diferenas entre Estado e Sociedade, entre Esta-
do e Mercado e 'nalmente entre o governo e as
empresas; mais frequentemente, quem estava na
empresa ontem, pode estar no Estado hoje, e vi-
ce-versa. Tome-se o atual ministrio do Presidente
Cardoso: nunca houve, em ministrio algum, uma
taxa to alta de empresrios. E, reciprocamente,
nunca houve uma taxa to alta de ex-altas 'guras
do primeiro e segundo escalo que tenham dei-
xado o governo e se instalado confortavelmente
num banco ou numa alta consultoria empresa-
rial ou ido diretamente para a alta direo de um
grande grupo econmico-'nanceiro.
Essa experincia subjetiva, ao lado da objeti-
vidade - que sempre uma exteriorizao, lembre-
mo-nos da velha lio dos Manuscritos econmico-
'lso'cos, Marx e Engels, sim senhor - da falncia
do Estado, constitui a pedra de toque da privatiza-
o do pblico. Este aparece como desnecessrio.
E uma reforma do Estado que o faa parecer-se
com essa objetividade subjetivada, vale dizer, com
a empresa privada e com a experincia burguesa
cotidiana, constitui a rei'cao quase necessria
desse movimento. No toa, o Ministro da Refor-
ma do Estado e da Administrao o que encarna
melhor essa proposta reducionista: o Estado deve
ter a mesma rationale da empresa privada; deve
retrair seus efetivos quando a crise o ordena; deve
aplicar os mesmos critrios aos negcios (licitao
de bens pblicos, p. ex.), que uma empresa priva-
da. Desnecessrio dizer que o referido ministro
provm no apenas da empresa privada, mas da
tradio norte-americana de indiferena entre a
funo pblica e a funo privada e mais: provm
do ncleo emblemtico desse novo paradigma
que a organizao de marketing.
A crise do Estado, vista do ngulo de sua
impotncia para deter, realmente, o monoplio
da violncia legal, uma consequncia, objetiva-
mente, de sua dilapidao 'nanceira, e, subjeti-
vamente, da falsa conscincia da desnecessidade
do pblico pelas burguesias e seus a'liados. En-
cerrando-se claustrofobicamente em seu mundo,
cercado de seguranas privados por toda parte,
as burguesias desinteressaram-se da polcia, em
sentido literal, como elemento ostensivo do mo-
noplio da violncia pelo Estado. O estado de
guerra civil larvar, e, em alguns casos, aberta, no
seno uma consequncia dessa dupla determi-
nao. Como resultado, a prpria polcia pblica
privatizou-se no pior sentido: de um lado, a cor-
rupo instalou-se para no mais sair, como cor-
relato da grande corrupo burguesa - nos dias
da ditadura, os grandes corpos de represso eram
alugados pelas grandes organizaes para ofere-
cerem proteo, no melhor sentido ma'oso. Essa
experincia, em que policiais experimentaram re-
laes com a alta burguesia, e experimentaram a
aquisio de altas rendas, espraiou-se para todos
os nveis policiais: da corrupo com o tr'co de
drogas e os banqueiros do jogo de bicho, s em-
presas de proteo e de transporte de valores, que
so quase todas de propriedade de policiais, at
os hotis de alta rotatividade, a alta cpula das
polcias, civil e militar, trata, hoje, sobretudo, de
negcios privados. De outro lado, os baixos esca-
les tratam os conXitos privados entre os cidados
como uma coisa dela, como um negcio privado,
como se os conXitos privados entre cidados, que
acontecem em qualquer parte do mundo, fossem
conXitos com a polcia. O absentesmo burgus
que tornou o Estado impotente e roubou-lhe o
monoplio legal da violncia criou o monstro de
uma polcia o'cial que age como se estivesse tra-
tando de negcios privados: mata, tortura, extor-
que, cobra proteo, no pressuposto, quase sem-
pre con'rmado, de que o absentesmo burgus a
torna imune e impune. Tal o outro sentido trgi-
co da privatizao do pblico operado no Brasil.
22 APP-SINDICATO
Alm disso, nas condies concretas do ab-
sentesmo burgus, da falsa conscincia da desne-
cessidade do pblico, de sua privatizao, da im-
potncia do Estado, e da poltica de estabilidade
monetria, que sacri'ca o social no altar de uma
falsa moeda, a guerra civil implantou-se no meio
das classes pobres. Estudos do IPEA, apresenta-
dos na ltima reunio anual da ABEP, j indicavam
que assassinatos, suicdios e acidentes de trnsito
apareciam como 70% das causa mortis na faixa
etria masculina dos 15 aos 24 anos, nas capitais
brasileiras, justamente quando o jovem entra no
mercado de trabalho; um estranho mecanismo
malthusiano! Estudos recentes, patrocinados pelo
Programa de Aprimoramento das Informaes de
Mortalidade-Pro-Aim, publicados na Folha de S.
Paulo no domingo, 20 de abril de 97, esclareciam
parte do enigma: so operrios braais, no qua-
li'cados, 32% deles morreram, em 1995, antes de
completarem 25 anos, que esto se matando uns
aos outros. O homicdio , alis, tambm a princi-
pal causa mortis em quatro (incluindo-se os bra-
ais) dos sete grupos ocupacionais pesquisados.
No se trata de um fenmeno criado no go-
verno FHC, posto que ele decorre do largo pro-
cesso que tentamos descrever, mas sem dvida a
ideologia o'cial, a desmoralizao dos trabalha-
dores, de funcionrios pblicos, a desmoralizao
da prpria funo pblica, o apontar tudo que
pblico como inimigo de cada indivduo tem uma
carga simblica mortfera, que ampli'cou extraor-
dinariamente a tragdia que j ocorria.
Enquanto isso, as classes dominadas ten-
tam, por todos os meios, construir a poltica, fazer
poltica. Uma das formas mais exemplares a esse
respeito foi construda pela experincia da cma-
ra setorial da indstria automotiva, cujo processo
est descrito, primeiramente sob a forma de hip-
tese, em Oliveira et alii5, e analisado por Cardoso
e Comin6 alm de mais alguns textos. Resumin-
do, na ausncia de poltica industrial para o ramo
automotivo, trabalhadores metalrgicos e empre-
srios das montadoras de automveis e das au-
topeas reuniram-se numa cmara setorial, cujo
propsito original havia sido, simplesmente, o de
regular preos. Depois de uma severa crise, que
atingia os trabalhadores, que experimentaram,
pela primeira vez, o fechamento de uma montado-
ra no Brasil - depois das primeiras, como Renault,
Kaiser e Chrysler que no incio dos anos sessenta
retiraram-se do Brasil, vendendo suas plantas para
algumas das atuais - e as empresas, que experi-
mentaram srios reveses em suas taxas de lucro,
o que aconteceu tambm com os produtores de
autopeas, os trs atores principais modi'caram
os termos da cmara setorial para compromissos
de aumento da produo, renovao tecnolgica,
garantia de emprego e de salrios, poltica de ex-
portao, e uma srie bem longa de uma agenda
de discusses e de objetivos que constitua uma
verdadeira revoluo nas relaes capital-traba-
lho no Brasil. A Unio entrou com uma reduo no
IPI e os Estados da Unio com redues do ICMS,
o que possibilitou pelo conhecido mecanismo
da elasticidade - preo da demanda, uma rpida,
sustentada e notvel recuperao de seus nveis
e, consequentemente, dos nveis da produo. H
toda uma literatura, representada principalmente
5 OLIVEIRA et alii. Quanto melhor, melhor, in: Novos estu-dos, Cebrap, julho/1993.
6 CARDOSO, Adalberto e COMIN, Alvaro. Cmaras Seto-riais, modernizao produtiva e democratizao das relaes capi-tal-trabalho. A experincia do setor automobilstico no Brasil, in: CASTRO, Nadya (org.). A mquina e o equilibrista. So Paulo, Paz e Terra, 1995; ARBIX, Glauco. Uma aposta no futuro: Os primeiros anos da Cmara Setorial. So Paulo, Scritta, 1996.
Escola Brasil
APP-SINDICATO 23 2323232323
por Armando Boito e Ricardo Antunes, do lado da
esquerda e por Gustavo Franco, enfant gat do
presidente FHC do lado da direita, que acusou e
acusa ainda o acordo de corporativista.
Em resumo, o acordo, que enquanto vida
teve revelou-se notvel sob todos os pontos de
vista, de repente entrou em declnio, desde que
Fernando Henrique Cardoso assumiu a pasta da
Fazenda, ainda no Governo Itamar Franco, sendo
que o presidente era ostensivamente a favor do
acordo. Cardoso comeou a boicot-lo sistemati-
camente e, a partir do exerccio da presidncia, o
boicote transformou-se simplesmente em liquida-
o do acordo.
No nenhum mistrio essa liquidao. O
acordo no interessava ao governo FHC em pri-
meiro lugar e acima de tudo porque ele constitua
um recurso poltico, uma criao poltica de uma
importante categoria de trabalhadores, central na
luta de classes no Brasil, na organizao da princi-
pal central do trabalho, a CUT. Isto se parece com
voluntarismo, mas por trs dessa aparncia est o
fato de que a permanncia do acordo obrigaria a
uma permanente negociao e, portanto, nega-
o de que, em termos de Rancire, o bolo j est
repartido entre os proprietrios. O que os sect-
rios de esquerda inclusive no conseguem ver
que essa forma de poltica, mais que a aparncia
revolucionria que a antiga atitude da CUT tinha,
e que eles nostalgiam, punha em xeque a diviso
do bolo, punha em xeque a propriedade, pois a in-
troduo da tecnologia, a dispensa de trabalhado-
res, teriam que passar pelo crivo do sindicato. Em
outras palavras, o investimento dos proprietrios
teria que passar pelo crivo dos trabalhadores. Teria
sido um nvel que apenas a social-democracia em
seus melhores momentos e talvez apenas na Su-
cia e na Alemanha da co-gesto tenha alcanado.
Em termos do projeto de governo de FHC,
o acordo seria uma permanente pedra no sapato,
inclusive porque ele teria uma qualidade pedag-
gica difcil imediatamente de ser adotado por ou-
tros setores7 em termos de regulao (no sentido
atribudo pela escola francesa da regulao, Boyer,
Aglietta, Lipietz e outros), mas que poderia obrigar
a uma poltica macro em cujo epicentro o acordo
agisse como paradigma. O acordo no se prestava
no-disciplina dos preos, ou ao simples exerc-
cio do poder de oligoplio das montadoras e das
principais empresas de autopeas, ou a deixar-se
inXuenciar pela abertura comercial.
De outro lado, no interessava a FHC os li-
mites que o acordo impunha para a entrada de
outras montadoras, que era sua grande arma para
seu projeto de crescimento e para garantia de en-
trada dos dlares necessrios para manter a po-
ltica de abertura que faz a permanente ameaa
aos preos e mantm a estabilidade monetria. H
vrias razes objetivas pelas quais o acordo no
poderia, nunca, caber no per'l do governo FHC.
Resta responder por que as montadoras e empre-
sas de autopeas aderiram cmara, para depois
entrar em acordo com o governo, retirando a via-
bilidade ao pactado com os trabalhadores.
A primeira parte da resposta que, nas con-
dies de alta inXao, as empresas, que vinham
apresentando srios prejuzos8 no tinham outros
7 MELLO E SILVA, Leonardo. A generalizao difcil. Tese de Doutoramento. So Paulo, FFLCH-USP, Departamento de Sociolo-gia, 1997.
8 COMIN, Alexandre. Crise e concentrao: Quem quem
Escola Paquisto
24 APP-SINDICATO
parceiros para tentarem sair da situao seno os
imediatamente interessados, isto , os trabalha-
dores da categoria de metalrgicos. Toda uma his-
tria anterior do prprio conXito entre eles havia
mostrado aos dirigentes dessas empresas (v. en-
trevista de Luis Adelar Scheuer, diretor da Merce-
des-Benz e ento presidente da ANFAVEA, sobre
Vicente Paulo da Silva, ento presidente dos me-
talrgicos de So Bernardo, na revista VEJA) que
as representaes dos trabalhadores com as quais
lidavam tinham alta credibilidade nas suas cate-
gorias e em vrios setores da sociedade. Mesmo
em sendo 'liais de montadoras de grande porte
no setor mundializado do automvel - o que no
era o caso da maior parte das indstrias de au-
topeas - parece ser que as matrizes estavam se
desinteressando das 'liais brasileiras, de que o fe-
chamento da fbrica de motores da Ford em So
Bernardo do Campo foi um dos sinais mais eviden-
tes. A associao Volskwagen-Ford vinha se reve-
lando problemtica para ambas, mas as direes
centrais pareciam no tomar nenhuma diretriz
que as tirasse do atoleiro; os carros fabricados no
Brasil tinham, em mdia, um atraso relativo de 10
a 14 anos em relao aos que suas montadoras
matrizes lanavam em seus mercados originais, e
o grande competidor, o Japo, parecia no se in-
teressar pelo mercado brasileiro, 'gurando aqui,
desde os anos setenta, com uma minscula mon-
tagem de utilitrios Toyota. Apenas a Fiat escapa-
va do quadro geral de estagnao, fazendo da 'lial
brasileira seu principal empreendimento fora da
Itlia e inscrevendo-a, de'nitivamente, na sua es-
tratgia mundial. Por isso, a Fiat havia passado de
ltima colocada no ranking das montadoras no
Brasil para o segundo lugar, logo atrs da Volkswa-
gen. E, no por acaso, a Fiat sempre foi contra o
na indstria de So Paulo, in: Novos estudos, Cebrap, n 39, ju-lho/1994; BELLO, Carlos Alberto. Queda da taxa de lucro e conXi-tos distributivos na indstria de So Paulo nos anos 80, in: CEBRAP Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento, Relatrio parcial da pesquisa Democracia e Poder Econmico: A Legislao Antitruste Brasileira diante dos processos de concordatas e centralizao de capitais escala mundial, So Paulo, 1996.
chamado Acordo das Montadoras, nome pelo
qual 'cou conhecida a Cmara Setorial do Ramo
Automotivo.
No momento em que o governo FHC, des-
de o lanamento do Plano Real, ainda no governo
Itamar, 'rmava sua condio de aglutinador dos
interesses burgueses e amalgamador dos diver-
sos grupos polticos, desde o centro para a direita,
as montadoras retiraram tambm seu interesse
do acordo automotivo. J no havia necessidade
dos trabalhadores, segundo o novo estado da luta
de classes e a hegemonia que o governo lograva,
dia a dia, sobre as vrias fraes burguesas e sua
capacidade de amalgamar interesses e clivagens
to diversas. Prosseguir com o acordo seria deixar
crescer uma caixa de ressonncia e de dissenso,
num ambiente j apaziguado, segundo indicava
toda a ambincia da poltica policial brasileira.
O episdio do boicote e do estrangulamento
da cmara setorial do setor automotivo revela at
que ponto esvaziou-se propositalmente a esfera
pblica que poderia regular os conXitos atravs
da publicizao do dissenso, atravs da operao
dialtica da privatizao do pblico - que consis-
tia nos impostos que eram reduzidos para que o
acordo funcionasse - e na publicizao do priva-
do, isto , na prpria publicizao do dissenso e
no fato de que os critrios do investimento, do lu-
cro e suas margens, da reestruturao produtiva
e do emprego das novas tecnologias, da defesa
Escola Ir
APP-SINDICATO 25 2525252525
do nvel do emprego e da renda dos trabalhado-
res, passavam a ser discutidos e acordados publi-
camente. Isto , as classes sociais transitavam de
seus invlucros privados para sua forma pblica, o
que leva a maioria da sociologia ingnua a pensar
que j no h mais classes sociais.
Fica-se, ento, apenas com a privatizao do
pblico. Que nessa operao necessariamente se
desfaz e torna-se meramente privado, particular,
sem transcendncia. O que a destruio do pbli-
co opera em relao s classes dominadas, como
o exemplo da cmara setorial do setor automotivo
nos mostra, a destruio de sua poltica, o roubo
da fala, sua excluso do discurso reivindicativo e,
no limite, sua destruio como classe; seu retro-
cesso ao estado de mercadoria, que o objetivo
neoliberal.
Essa operao de destruio da fala, do dis-
curso que reivindica, que interpela o outro, para
substitu-Ia pelo eterno voc me entendeu de
Rancire, que signi'ca que o outro no entendeu
e no pode entender, tem sido sistemtica no go-
verno FHC. Ao destruir os recursos polticos que
uma categoria como a dos metalrgicos havia
criado, quase como destru-la como classe, como
j se a'rmou: da por diante, a operao do conXi-
to, do dissenso, 'ca cada dia mais di'cultada, pela
desmoralizao daquele que foi destitudo do dis-
curso. Ele no pode mais avanar e j no pode
recuar, sob pena de sua ao perder toda e'ccia,
porque a reivindicao da parcela que ele reivin-
dicou - a possibilidade de intervir nos prprios
negcios da burguesia e de co-dirigir uma pol-
tica de Estado - no tem o mesmo estatuto que
a simples reivindicao do salrio. Instala-se uma
desmoralizao da categoria, que se alastra como
epidemia para quase todas as categorias de traba-
lhadores. Dela s escapam aquelas cuja reivindica-
o de outra natureza, melhor dizendo, de outra
materialidade e que, por isso mesmo, constitui-se
tambm em poltica desa'adora da geometria da
distribuio da riqueza entre os proprietrios.
por essa razo que o Movimento dos Sem Terra
hoje o nico que faz poltica no Brasil e, se aceitar
as armadilhas do governo, rapidamente cair em
descrdito.
A arma da desmoralizao da fala, do discur-
so, tem sido uma das tnicas mais presentes no
governo FHC. Sua arrogncia em nomear como
ignorantes, atrasados, burros, neobobos, todos
os que se opem a seus mtodos, no tem outro
objetivo: a anulao da fala e, atravs dela, a des-
truio da poltica, a fabricao de um consenso
imposto, ao modo das ditaduras. Ele j obteve
esse resultado, em parte, com os principais sin-
dicatos de trabalhadores, que j no conseguem
veicular seus discursos; ele j reduziu ao silncio
uma importante parcela de trabalhadores: bas-
ta dizer que os funcionrios pblicos federais h
dois anos no recebem nenhum reajuste e neste
ano da graa de 1997 o assunto sequer foi pau-
tado por nenhum veculo de mdia! Sem embar-
go da repetio ad nauseam da inexistncia de
inXao, nestes dois anos, os salrios dos funcio-
nrios pblicos experimentaram uma corroso
de pelo menos 40%, o que signi'ca que seu po-
der de compra foi reduzido a quase metade! Isto
a anulao da fala reivindicante da maneira mais
avassaladora que a histria brasileira, mesmo sen-
do to anuladora, no conhecia desde h muito
tempo. Neste sentido, Fernando Henrique Cardo-
so retomou o mote de Collor dos funcionrios p-
blicos como marajs, os expe todos os dias ao
Escola ndia
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oprbrio, numa operao de misti'cao de alto
risco, para esconder a realidade de seu oramento
de governo comprometido at a medula com os
servios da dvida para sustentar a enxurrada de
dlares que ancora a estabilidade monetria.
No , pois, sem sentido que a poltica po-
licial tenha se convertido numa operao de
merchandising por excelncia. Reduzida, por
um lado, relao Executivo-Legislativo, em que
ela no desborda os termos do acordo entre pro-
prietrios - tanto no sentido material quanto no
sentido simblico - excluindo-se os que no so,
de que prova de'nitiva o de'nhamento das v-
rias organizaes criadas nas trs ltimas dcadas
como formas de fazer poltica pelas classes po-
pulares - os movimentos sociais, to famosos em
certa poca e to adulados por certa sociologia de
ocasio - substitudas outra vez pelo assistencialis-
mo castrador do programa Comunidade Solidria,
o governo resume-se a repetir o eterno tema da
estabilidade monetria, que , a rigor, sua nica
realizao.
A constante presena do Presidente na
mdia em si mesma, uma metamdia. Alm de
que, em traduo livre, a estrutura comunicativa
de nossa sociedade revela a no atualizao de
uma srie de falas que remete, necessariamente,
noo de excluso de certos falantes9, a presena
do Presidente legitima a prpria mdia na sua fun-
o de excluso dos falantes e na sua Substituio
da poltica. No por outra razo que a poltica
policial brasileira est se tornando cada vez mais
norte-americana. E ningum utiliza mais a mdia
como metamdia que o governo FHC: atravs dela,
ele desquali'ca a oposio e os exclui do discurso
pblico.
Neste quadro, a violncia que campeia na
sociedade brasileira e, sobretudo, a violncia que
produzida pelos prprios aparelhos de Estado
no seno uma plida sombra da excluso da
fala e da privatizao do pblico, e, no seu rastro,
da anulao da poltica. Mesmo quando parece
partir da sociedade civil a vigilncia que cobra
do Estado sua funo, como no caso recente da
chacina no municpio de Diadema, o olho era o da
mdia, o que signi'cava dizer, ao mesmo tempo, a
efemeridade, sua substituio pela prxima not-
cia, o deslocamento das responsabilidades do Es-
tado para uma suposta sociedade civil e a morte
da poltica, pois esse deslocamento somente pro-
duz indignao, mas no produz poltica.
Rolf Kuntz chamou, em artigo para a Revista
USP10, o neoliberalismo de integrismo, fundamen-
talismo. Nas condies concretas da sociedade
brasileira - para no arriscar-me alm do meu ter-
ritrio - o neoliberalismo, como um Frankenstein
construdo de pedaos de social-democratas, an-
tigos e novos oligarcas do Nordeste, populistas de
direita, trnsfugas de esquerda, numa articulao
presidida pelo prncipe dos socilogos, passa por
uma estranha metamorfose: sua face real a do
totalitarismo.
9 MATA, Maria Cristina. La exclusin del habla, Buenos Ai-res, mimeo, 1997.
10 KUNTZ, Rolf. O neoliberalismo um integrismo. Revista USP, So Paulo, mar-maio/1993, p. 54-61.
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