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APP-SINDICATO 9 Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal O texto do Professor Francisco de Oliveira, que vere- mos a seguir, nos possibilita o entendimento das condições concretas da formação da sociedade brasileira, resultante de um neoliberalismo como um Frankenstein construído de pedaços de social-democratas. Para isso o autor faz a uma reflexão consistente e crítica explicitando as raízes e as con- sequências de se viver numa sociedade onde o mercado, mundial, se pretende autoregulador e um estado funda- mentado na acumulação e concentração de capital levando a perda da centralização do trabalho e as transformações in- ternas e externas da classe trabalhadora. Numa dinâmica de privatização do público, anulação da política, do dissenso, do desentendimento, violência, contradições, sob a alega- ção de um o sistema do Estado do Bem-Estar. Um texto e um debate de suma importância para um curso que pretende a apropriação e o entendimento destas categorias e formas de análise, fundamentais para entender as origens das desigualdades em que vivemos no intuito de buscarmos permanentemente a superação e a transforma- ção desta sociedade. Escola Ásia Escola privada - Brasil

Privatização Do Público

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Privatização Do Público

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  • APP-SINDICATO 9

    Privatizao do pblico,

    destituio da fala e anulao da

    poltica: o totalitarismo neoliberal

    O texto do Professor Francisco de Oliveira, que vere-

    mos a seguir, nos possibilita o entendimento das condies

    concretas da formao da sociedade brasileira, resultante

    de um neoliberalismo como um Frankenstein construdo de

    pedaos de social-democratas. Para isso o autor faz a uma

    reXexo consistente e crtica explicitando as razes e as con-

    sequncias de se viver numa sociedade onde o mercado,

    mundial, se pretende autoregulador e um estado funda-

    mentado na acumulao e concentrao de capital levando

    a perda da centralizao do trabalho e as transformaes in-

    ternas e externas da classe trabalhadora. Numa dinmica de

    privatizao do pblico, anulao da poltica, do dissenso,

    do desentendimento, violncia, contradies, sob a alega-

    o de um o sistema do Estado do Bem-Estar.

    Um texto e um debate de suma importncia para um

    curso que pretende a apropriao e o entendimento destas

    categorias e formas de anlise, fundamentais para entender

    as origens das desigualdades em que vivemos no intuito de

    buscarmos permanentemente a superao e a transforma-

    o desta sociedade.

    Escola sia

    Escola privada - Brasil

  • 10 APP-SINDICATO

    1. Adgio: Para o sol que se pe em toda parte

    O movimento neoliberal, entendido no sentido lato, talvez no esteja enganan-

    do quando prega a volta ao indivduo, ao reino do privado e ao consequente desman-

    telamento da institucionalidade contempornea que se forjou se no sob o signo do

    coletivo, pelo menos sob o signo da segurana, ao invs do signo do contrato mercan-

    til. Tudo isto foi o trnsito desde a Revoluo Francesa, com o Cdigo Napolenico, at

    o Estado do Bem-Estar; que se universalizou mesmo para os pases da periferia do ca-

    pitalismo, sob formas de simulacros, bem ou mal acabadas, seja do contrato mercantil,

    seja do Estado do Bem-Estar. J a reduo da volta ao indivduo com a prevalncia

    exclusiva do mercado como a nica instituio reguladora, auto-reguladora tanto da

    alocao dos recursos econmicos como das relaes sociais e da sociabilidade em

    sentido geral, mais problemtica, posto que o mercado enquanto instituio nada

    tem de uma mera soma, de um mero agregado de vontades individuais, embora este

    seja o pressuposto da teoria neoclssica, que assim faz a passagem do micro para o

    macro, da microeconomia para a macroeconomia, das decises individuais para a so-

    ciabilidade geral. Mas permanece sob suspeita essa passagem e, portanto o entendi-

    mento do mercado como uma instituio de regulao autoconstituda.

    Privatizao do pblico, desti-

    tuio da fala e anulao da pol-

    tica: o totalitarismo neoliberal

    OLIVEIRA, Francisco de. Os sentidos da democracia: polticas do dissenso e a hegemonia global. Orgs.

    Francisco de Oliveira e Maria Clia Paoli. Braslia: Editora Vozes, 1999, p. 55-81.

  • APP-SINDICATO 11 1111

    Se a reduo ao indivduo permanece no

    terreno meramente ideolgico, ainda que se

    constitua hodiernamente como a expresso ide-

    olgica par excellence do movimento neolibe-

    ral, a reduo ao privado - que no a mesma

    coisa que o indivduo - assenta-se noutras razes,

    sociologicamente distintas, das quais possvel

    pesquisar seus fundamentos no prprio proces-

    so da acumulao de capital e de sua concentra-

    o e centralizao. Ao lado dos processos da ins-

    titucionalizao do Estado do Bem-Estar.

    Na interpretao original da constituio da

    esfera pblica, que remonta a Hegel e retomada

    modernamente por Habermas, esta aparece como

    a constituio de um espao de sujeitos privados

    que assim se demarcam em relao ao Estado; em

    linguagem de Marx, a esfera pblica de sujeitos

    privados o lugar da concorrncia entre os ca-

    pitais, que inclui o mercado de fora de trabalho.

    Mas trata-se de uma esfera pblica burguesa. Uma

    rede'nio da esfera pblica burguesa para uma

    esfera pblica no burguesa - no chega a ser an-

    tiburguesa - processou-se com o Estado do Bem-

    Estar, onde os sujeitos privados, ou a concorrncia

    intercapitalista, e neste caso tambm o mercado

    de fora de trabalho, passam a ser regulados de

    fora, isto , por uma racionalidade que Habermas

    chamaria de administrativa, ainda que seu supor-

    te material seja o conXito de interesses, ou a luta

    de classes, em sentido marxiano mais rigoroso.

    A experincia social de mais de sessenta

    anos do Estado do Bem-Estar, se considerarmos

    a Grande Depresso de 29 como o marco da uni-

    versalizao de medidas de bem-estar, produziu o

    processo de sua naturalizao, vale dizer, no sen-

    tido habermasiano de esgotamento das energias

    utpicas. Na base dessa naturalizao esto dois

    fenmenos extremamente importantes, ao pri-

    meiro dos quais a literatura no d nenhuma im-

    portncia, e ao segundo dos quais j se dedicou

    bastante papel e que se tem chamado a perda de

    centralizao do trabalho (O\e, como representa-

    tivo), isto , as profundas modi'caes na classe

    operria. Mas o primeiro fenmeno diz respeito s

    burguesias e no que adiante chamarei seu proces-

    so de intensa subjetivao da acumulao de ca-

    pital, da concentrao e da centralizao, cujo em-

    blema e paradigma a globalizao, que expressa

    a privatizao do pblico, ou, ideologicamente,

    uma experincia subjetiva de desnecessidade,

    aparente, do pblico. Todo o discurso sobre as

    multinacionais, que ultrapassam e tornam obsole-

    tos os Estados Nacionais, so formas expressivas

    dessa subjetivao de uma experincia que, con-

    traditoriamente, foi alavancada (fessima palavra)

    justamente pelo Estado de Bem-Estar.

    Do outro lado da equao, um processo pareci-

    do tambm atuou, ainda que com outros resultados.

    Ao lado das transformaes na prpria classe traba-

    lhadora, suas transformaes internas (composio,

    especializao, sexo e gnero, composio etria,

    ocupaes e pro'sses etc.), que na verdade expres-

    sam suas transformaes externas, vale dizer, suas

    relaes com o capital, a posio na estrutura de clas-

    ses, o menor contedo de trabalho vivo em cada to-

    mo de valor agregado, o que se transforma em uma

    cadente quantidade operria, sua visibilidade, sua

    auto-identi'cao, o Estado do Bem-Estar produziu

    uma espcie de naturalizao administrativa das

    conquistas e dos direitos que, ao tornarem-se prati-

    camente universais, liberaram-se, num processo bas-

    tante conhecido do ponto de vista de sua produo

    conceitual e tambm histrica, de sua base mate-

    rial, vale dizer, das prprias classes trabalhadoras.

    Escola frica

  • 12 APP-SINDICATO

    O passo para, de novo com Habermas, esgotar as

    energias utpicas, como o abandono da militn-

    cia sindical e at mesmo da simples adeso ao

    sindicato, expressa-se nas baixas taxas de sindi-

    calizao.

    Todo esse processo a privatizao do pblico.

    Mais que as privatizaes das empresas estatais, que

    apenas em dois pases, Inglaterra e Frana, revesti-

    ram-se de contedos explicitamente ideolgicos da

    luta de classes, no sentido de que as empresas esta-

    tais eram os basties de importantes setores da clas-

    se operria que fundou e viabilizou o prprio Estado

    do Bem-Estar, enquanto que na grande maioria dos

    outros pases as privatizaes tiveram sentidos mui

    pragmticos, a subjetivao descrita uma privatiza-

    o da esfera pblica, sua dissoluo, a apropriao

    privada dos contedos do pblico e sua reduo, de

    novo, a interesses privados. No por outra razo que

    as medidas de privatizao, de dissoluo da esfera

    pblica, de destituio de direitos, de desregulamen-

    tao, por parte das burguesias e dos governos, en-

    contram resistncia social que no se transforma em

    alternativa poltica. que essa subjetivao comum

    aos dois lados da contenda, embora com sentidos de

    classe bem diversos, o que a resistncia social, sobre-

    tudo contra as medidas tpicas do Estado do Bem-

    Estar (seguro-desemprego, seguridade em geral,

    aposentadoria etc.) tem mostrado na Europa, apesar

    de que sua passagem para a poltica se v di'cultada

    justamente porque a ruptura da relao de conXito

    uma anulao da poltica, nos termos de Rancire.

    A administrabilizao do Estado do Bem-Estar

    a produo do consenso que, para Rancire, produz

    exatamente a anulao da poltica, posto que esta

    ... a que rompe a con'gurao sensvel na qual se de-

    'nem as parcelas e as partes ou sua ausncia a partir

    de um pressuposto que por de'nio no tem cabi-

    mento ali: a de uma parcela dos sem parcela1.

    2. Largo: A formao da sociedade no

    Brasil

    A formao da sociedade brasileira, se a re-

    constituirmos pela interpretao de seus intelec-

    tuais demirgicos, a partir de Gilberto Freyre, Caio

    Prado Jr., Srgio Buarque de Hollanda, Machado de

    Assis, Celso Furtado e Florestan Fernandes, um

    processo complexo de violncia, proibio da fala,

    mais modernamente privatizao do pblico, in-

    terpretado por alguns com a categoria de patrimo-

    nialismo, revoluo pelo alto, e incompatibilidade

    radical entre dominao burguesa e democracia;

    em resumo, de anulao da poltica, do dissenso,

    do desentendimento, na interpretao de Rancire.

    bvio que sua base estrutural constituiu-se

    com o escravismo, o qual resume todo o anterior.

    Particularmente Freyre pe as cores fortes na vio-

    lncia sexual como apropriao do corpo e anu-

    lao do outro, na proibio dos cultos africanos

    como proibio da fala, no rigor dos castigos como

    proibio da reivindicao. Srgio Buarque com o

    homem cordial insiste quase nas mesmas teclas: a

    astcia da intimidade cordial o horror das distn-

    cias que o signo do no reconhecimento da alte-

    ridade, das distintas proibies que anularam toda

    possibilidade de uma experincia subjetiva liberal.

    Caio Prado Jr. explicar a trama estrutural

    dessa anulao, que no decorrer de um carter

    qualquer ibrico - o exagero, talvez de Srgio Bu-

    1 RANCIRE, Jacques. O Desentendimento. Trad. de ngela Leite Lopes, So Paulo, Ed. 34, 1996, p.42.

    Escola Finlndia

  • APP-SINDICATO 13 131313

    arque - mas das determinaes advindas da simul-

    taneidade entre a colnia como coetnea do capi-

    talismo mercantil e o escravismo como a marca de

    sua defasagem.

    Machado de Assis, na leitura de Roberto

    Schwarz, desvela como a desfaatez de classe se

    faz linguagem, retrica, antecipando notavel-

    mente a dmarche de Srgio Buarque. Embora o

    registro terico com que Schwarz interpreta Ma-

    chado seja do campo marxista, notvel como

    dessa interpretao emergem Brs Cubas e Dons

    Casmurros que podem ser lidos no registro do

    homem cordial.

    Celso Furtado, em Formao econmica do

    Brasil, desvenda, sob o mesmo prisma do Marx

    de O 18 Brumrio, uma revoluo passiva que,

    sem embargo, mudou radicalmente os termos da

    dominao de classes, mantendo, entretanto, as

    antigas classes dominantes como aliadas de se-

    gundo plano: uma operao semilampedusiana.

    Toda essa riqueza de interpretao desgua em

    Florestan Fernandes, em A revoluo burguesa,

    cuja hiptese mais radical a da j quase impossi-

    bilidade de que a dominao burguesa se revista

    das formas revolucionrias, tendo em vista, agora,

    por sua vez, o esgotamento de suas energias ut-

    picas - Florestan no era um habermasiano, quem

    tampouco havia chegado, poca de A revoluo

    burguesa, a tais concluses.

    O que ele quis dizer que em no havendo

    rompido nunca com as bases do poder latifun-

    dirio, de um lado, e, de outro, em cedendo sua

    primazia ao imperialismo internacional, a bur-

    guesia nacional havia realizado a passagem para

    a dominao econmica de classe sem qualquer

    ruptura revolucionria. Mais que isto, as transfor-

    maes que o capitalismo introduz na estrutura

    de relaes sociais, sobretudo a emergncia de

    um proletariado independente, a libertao do

    campesinato dos laos de dependncia e da servi-

    do (escrevo no momento - abril de 97 - em que a

    marcha do Movimento dos Sem-Terra sobre Bras-

    lia recupera, notavelmente, o espao da poltica),

    acurralam o sistema de dominao de classe, com

    o que a burguesia reage sempre sob a forma de

    ditaduras.

    A histria brasileira, desde a Revoluo de

    30, mostra que no espao de 60 anos possvel

    contar duas ditaduras, a de Vargas entre 1930 e

    1945 e a que se seguiu ao golpe militar de 64, at

    1984, perfazendo 35 anos de ditadura em 60 anos

    de histria da mudana da dominao de classe.

    Mais, se se contar, alm dos golpes que resultaram

    em ditaduras, as tentativas de golpes falhados,

    chega-se mdia de um golpe ou tentativa para

    cada trs anos, desde 30 at 90. A hiptese de Flo-

    restan, que recolhe toda a fora da interpretao

    anterior, que vem de Gilberto at ele, parece en-

    contrar nos fatos da histria brasileira uma dram-

    tica e triste con'rmao.

    Todo o esforo de democratizao, de cria-

    o de uma esfera pblica, de fazer poltica, en'm,

    no Brasil, decorreu, quase por inteiro, da ao das

    classes dominadas. Poltica no sentido em que a

    de'niu Rancire, j citado: a da reivindicao da

    parcela dos que no tm parcela, a da reivindica-

    o da fala, que , portanto, dissenso em relao

    aos que tm direito s parcelas, que , portanto,

    desentendimento em relao a como se reparte o

    todo, entre os que tm parcelas ou partes do todo

    e os que no tm nada.

    Larga seria a reconstituio desse processo,

    com a desvantagem de que, embora os grandes

    clssicos brasileiros tenham posto o acento na vio-

    lncia da negao do outro, do corpo do outro, da

    fala do outro, da parcela dos sem parcela, dos do-

    minados, a recuperao da histria dos domina-

    dos muito recente. Tomaremos, pois, como pon-

    to de partida, brevemente, desde os anos trinta, e

    desde a tentativa de constituio dos partidos de

    classe, como movimentos das classes dominadas

    que abriram a poltica brasileira, ou, mais exata-

  • 14 APP-SINDICATO

    mente, realizaram a faanha de fazer poltica.

    notvel e reconhecido na literatura que

    tanto as sociedades de ajuda mtua organizadas

    pelo operariado quanto os prprios sindicatos,

    anarquistas, anarco-sindicalistas, socialistas e pos-

    teriormente comunistas, foram anulados e trans-

    formados pela ditadura de Vargas nos Institutos

    de Previdncia e nos sindicatos tutelados. Essa

    grande operao de silncio, de roubo da fala, que

    se sintetiza na busca da harmonia social, bem o

    signo da anulao da poltica. Quando os fatores da

    vitria aliada na Segunda Guerra Mundial intervie-

    ram na correlao interna de foras polticas (ou de

    foras de polcia, no sentido que lhe atribui Ranci-

    re), derrubando Vargas, as classes dominadas am-

    pliaram o espao de sua fala e o Partido Comunis-

    ta do Brasil (que tinha essa denominao, quela

    poca), chegou a ter uma bancada considervel na

    Cmara de Deputados, elegeu Prestes com a maior

    votao para o Senado - maior que a do prprio

    Vargas - tinha importantes bancadas em vrias As-

    semblias Estaduais e em muitas Cmaras de Vere-

    adores de importantes cidades, como Rio, Santos

    e Recife, tinham quase a metade das cadeiras. Em

    muitas cidades operrias o Partido Comunista do

    Brasil chegou a ser majoritrio nas respectivas C-

    maras de Vereadores. Em 1947, sob presso norte-

    americana, j inaugurada a Guerra Fria pelo famoso

    discurso de Churchill, a que responderam as clas-

    ses dominantes e as Foras Armadas brasileiras, o

    Partido Comunista do Brasil, que havia conseguido

    quase 10% da votao na eleio presidencial de

    45, foi posto na ilegalidade. Aqui no se trata de sa-

    ber qual o carter do Partido Comunista do Brasil:

    trata-se de uma operao de anulao do dissenso,

    de silenciamento de algo que exatamente no obe-

    decia aos cnones geomtricos da distribuio das

    parcelas. E inegvel, qualquer que seja a avaliao

    a respeito da prpria polcia do Partido Comunista

    do Brasil (h uma literatura a respeito cada dia mais

    volumosa), que ele recolhia sua maioria de votos da

    classe operria das cidades mais industrializadas.

    O varguismo ressurge nas eleies de 1950.

    Mas o processo do varguismo, em que ele busca

    apoiar-se no novo operariado urbano, que no pe-

    rodo anterior ele havia simplesmente silenciado,

    comea a inverter os termos do problema. Em ou-

    tras palavras, o varguismo rede'nido a partir da

    nova relao de foras estabelecida no seu inte-

    rior, entre os velhos propsitos de cooptao, que

    o nome sociolgico da anulao, e as necessida-

    des de abrir o espao para a iniciativa dos sindica-

    tos, impostas para que o prprio varguismo possa,

    agora, sobreviver ao confronto com a nova direita

    liberal ma non tropo (UDN), de base sobretudo

    urbana, e as velhas bases latifundirias, represen-

    tadas no antigo PSD. Isto , a operao de abertu-

    ra do varguismo uma operao poltica da classe

    trabalhadora, embora a interpretao sociolgica

    e de cincia poltica no Brasil insista no velho re-

    fro, que toma ares de paradigma, de que o var-

    guismo era a expresso de caudilhismo urbano.

    O suicdio de Vargas um golpe dirigido,

    sobretudo a esse processo; que o velho estadista

    o entendeu, ainda que parcialmente, prova-o seu

    gesto extremo, geralmente interpretado apenas

    como a recusa em entregar o poder aos seus ve-

    lhos inimigos; outras razes, de foro ntimo, no

    cabem nessa explicao, mas 'ca claro que, se elas

    existiam, o detonador foi a tentativa dos grupos

    dominantes em reduzir, novamente, o prprio Var-

    gas a apenas um caudilho que cooptava massas; Escola China

  • APP-SINDICATO 15 151515

    neste sentido, ainda que perigoso, ele era contro-

    lvel. J como parceiro, ainda que em nvel supe-

    rior, dos sindicatos, ele ameaava a polcia (pol-

    tica) brasileira, entendida em termos de Rancire.

    O golpe de 1964 tem todas as caractersti-

    cas, de forma extremamente forte, de uma total

    anulao do dissenso, do desentendimento, da

    poltica. Como alis, qualquer ditadura. A busca

    do consenso imposto - que em termos gramscia-

    nos pode parecer uma contradio - mostrava que

    a poltica elaborada pelas classes dominadas havia

    abalado at as razes consenso policial.

    As reformas de base, a grande bandeira uni-

    'cada dos anos cinquenta e sessenta, que se am-

    pli'ca extraordinariamente na dcada do golpe,

    signi'cavam o questionamento da repartio da

    riqueza, uni'cando tambm categorias diversas

    de trabalhadores urbanos, classes mdias antigas

    e novas, pro'ssionais de novas ocupaes, agora

    autonomizados e, em geral, tendo invertido sua

    velha relao com o populismo. O grande deba-

    te sobre a educao colocou num novo patamar a

    questo da escola pblica, da produo cient'ca

    e tecnolgica, o papel dos cientistas e intelectuais

    que, nessa nova relao, tornavam-se intelectuais

    orgnicos da poltica, sem que estivessem neces-

    sariamente ligados a partidos polticos.

    Mas talvez a ampli'cao mais notvel da

    poltica tenha ocorrido mesmo no lado do campe-

    sinato e dos trabalhadores rurais. As Ligas Campo-

    nesas, menos pelo seu real poder de fogo, medi-

    do do ponto de vista de travar uma luta armada

    com os latifundirios - quando ela ingressou por

    essa via seu verdadeiro potencial revolucionrio

    se exauriu -, deram a fala, o discurso, capaz de rei-

    vindicar a reforma agrria e de des-subordinar o

    campesinato, aps longos sculos, da posio de

    mero apndice da velha classe dominante latifun-

    diria. O movimento pelo sindicalismo rural, que

    conXitava em objetivos imediatos com as Ligas

    Camponesas, entretanto conXua com as mesmas

    no sentido de criar a poltica no Brasil. E isto dese-

    quilibrou profundamente a prpria relao entre

    as classes dominantes, que viram ameaada sua

    possibilidade de fazer poltica policial, tanto no

    sentido rancieriano, quanto no sentido literal. O

    elo mais fraco da cadeia, nos termos de Lnin, ha-

    via se revelado do lado dos latifundirios, e a cres-

    cente autonomia do campesinato e dos trabalha-

    dores rurais ameaava todo o esquema do poder.

    Para no esquecer nada, nas Foras Armadas

    os praas de pr, desde soldados at sargentos,

    reivindicaram o voto, isto , a fala, desestruturan-

    do a hierarquia, isto , a ordem em que as partes

    do bolo eram divididas. A poltica consistiu nisso:

    o desa'o hierarquia e a reivindicao do voto

    punham por terra o papel policial em sentido lite-

    ral que as Foras Armadas desempenham na pol-

    cia das classes dominantes.

    O golpe de Estado de 1964 e toda sua du-

    rao no foram seno o esforo desesperado de

    anular a construo poltica que as classes domi-

    nadas haviam realizado no Brasil, pelo menos des-

    de os anos trinta. Tortura, morte, exlio, cassao

    de direitos, tudo era como uma sinistra repetio

    da apropriao dos corpos e do seu silenciamen-

    Escola Peru

  • 16 APP-SINDICATO

    to, do seu vilipendiamento, da saga gilbertiana.

    Sindicatos mais que tutelados passaram a admi-

    nistraes diretamente nomeadas pelo Ministrio

    do Trabalho, alm, claro, da regulao adminis-

    trativa dos conXitos e da 'xao, igualmente por

    via administrativa, dos salrios, seus pisos e, por

    consequncia, seus tetos, e a prpria formao do

    mercado de fora de trabalho. Uma sinistra produ-

    o de mercadorias sem equivalente, sem a iluso

    da liberdade, que Friedrich Pollock j havia quali'-

    cado, nos anos trinta, como o sinal mais caracters-

    tico do fascismo. E uma anulao da possibilidade

    da reivindicao da parcela dos que no tm par-

    cela, tanto na produo quanto na distribuio do

    produto social.

    Penosamente, na brecha das prprias con-

    tradies da expanso capitalista poderosamente

    ajudada por esse quase fascismo, as classes sociais

    dominadas voltaram a reconstruir a poltica. Pon-

    do por terra e inviabilizando a poltica salarial do

    governo e, com isso, sua capacidade de previso

    e de aglutinao do novo e poderoso bloco bur-

    gus, recuperando suas entidades antes sob inter-

    veno e, engenhosamente, encontrando formas

    de, ao enfrentar diretamente os grandes grupos

    econmicos, obrigando-os a acordos salariais,

    evitando, assim, a tutela do Ministrio do Traba-

    lho que permanecia meramente formal. Criando

    comits de luta contra a carestia, na dcada de

    setenta, deslocando a luta do terreno da reivindi-

    cao salarial para o terreno das polticas pblicas,

    atravs dos movimentos populares, criando mi-

    lhares de comits pela anistia e pela constituinte,

    as classes dominadas reinventaram a poltica e

    novamente encurralaram as foras dominantes,

    que, falta de capacidade para se autodirigirem,

    haviam deixado, desde o golpe de 64, a tarefa diri-

    gente nas mos das Foras Armadas. Como crise

    de hegemonia, nunca resolvida, somou-se uma

    crise de previsibilidade, as Foras Armadas viram,

    de repente, fugir a terra de sob seus ps. Reapare-

    ceu, ento, em lugar do consenso imposto, o con-

    senso policial, isto , democrtico.

    Nessa passagem, o movimento popular

    prosseguiu na ofensiva, at a Constituinte de

    1988, a chamada cidad, por Ulysses Guimares.

    Toda a reivindicao anterior ganhou foros de di-

    reito, na letra da Carta Maior. O direito ao trabalho,

    o direito auto-organizao (os assalariados j ha-

    viam criado esse direito, ao criarem as centrais sin-

    dicais, proibidas legalmente at ento), o direito

    sade, o direito educao, o direito da criana e

    do adolescente, o direito terra, o direito ao habe-

    as-corpus (a talvez mais antiga negao do corpo

    na formao da sociedade brasileira), o direito ao

    habeas-data (talvez a outra mais antiga negao,

    a da fala, a do discurso), o direito a uma velhice

    digna e respeitada, en'm, todas as reivindicaes

    que signi'cam poltica como o processo mediante

    o qual se pe em xeque a repartio da riqueza

    apenas entre os que so proprietrios, ganhou

    uma forma, talvez a mais acabada que as condi-

    es histricas permitiam.

    Alm disso, convm no esquecer, em 1989,

    outra vez, talvez mais radicalmente que em 1964,

    exatamente como desenvolvimento da poltica

    Escola Brasil

  • APP-SINDICATO 17 171717

    das classes dominadas, o regime poltico e o pr-

    prio sistema social sofreram um terremoto que,

    na escala Richter de medio de abalos, talvez

    tenha chegado perto dos 7 (o mximo da esca-

    la Richter parece ser 8), quando o candidato da

    esquerda chegou a quase 50% dos votos no se-

    gundo turno das eleies presidenciais, contra

    Fernando Collor de Mello.

    As classes dominantes e o sistema como

    um todo entregaram-se totalmente ao seu sal-

    vador, apesar de que ele era um outsider, um

    messinico, e, como se revelou depois, desprepa-

    rado para costurar foras to disparatadas, alm

    de invadir santurios da corrupo instalados

    na trama dos negcios entre sistema privado de

    empresas, o sistema estatal produtivo e Estado

    condotiere que se dessangrava. Um sequestro

    de ativos 'nanceiros que s encontrou paralelos

    na crise de Weimar, sob Hjalmar Schacht, no to

    estranhamente o subsequente intocvel ministro

    das 'nanas do nazismo, foi aplaudido por todas

    as foras burguesas como o preo a pagar para

    salvar-se de Lula e seus sequazes petistas-comu-

    no-nacionalistas. O jornal A Folha de S. Paulo pu-

    blicou um editorial intitulado Custe o que cus-

    tar e viu, dias depois, que esse custo traduziu-se

    em invaso de seus escritrios e devassamento

    de sua contabilidade. Nem assim o jornal mudou,

    imediatamente, de posio.

    O que as classes dominantes e o sistema

    dominante em geral conferiram a Collor foi a

    transformao de seu mandato, conquistado na

    eleio com os votos populares contra um Esta-

    do que se desfazia e que ele simbolizou nos po-

    bres funcionrios como marajs, em um manda-

    to destrutivo da poltica construda pelas classes

    dominadas - a esse processo eu chamei de a fal-

    si'cao da ira, ttulo do livro em que tratei de in-

    terpretar a metamorfose entre o Collor vingador

    de marajs e o Collor destruidor das organiza-

    es populares.

    3. Prestssimo: para o ocaso brasiliano

    Esse processo desenvolve-se, agora, de for-

    ma plena e acabada, sob a gide da presidncia

    de Fernando Henrique Cardoso. Vale a pena ten-

    tar entend-lo sociologicamente, para buscar a

    raiz real de como a poltica policial tenta anular

    e destruir a poltica construda pelas classes domi-

    nadas.

    De qualquer modo, o intenso processo de

    acumulao alavancado (outra vez essa fessima

    palavra) pelo regime militar mudou as relaes

    e a hierarquia entre as classes dominantes, suas

    distintas expresses, suas fraes agrrias, indus-

    triais, 'nanceiras e de servios2, sua origem entre

    capital nacional, internacional e estatal produtivo,

    suas antigas fraturas regionais, a importncia dos

    ramos e setores, desde a antiga prevalncia txtil-

    alimentar atual qumico-petroqumico-metal-

    mecnico e particularmente automotivo, seus

    graus de concentrao, oligoplio e monoplio.

    Esse intenso processo, articulado 'nanceiramen-

    te pelo Estado como um capital 'nanceiro geral,

    e, na maior parte dos casos, como capital estatal

    produtivo - isto , o papel do Estado subsidiando

    a formao de capital e, ao mesmo tempo, atravs

    das empresas estatais, constituindo a nova rede

    de relaes industriais - na crise da dvida externa

    dos anos oitenta, terminou convertendo a refe-

    rida dvida em dvida interna pblica, com o que

    esgotou o papel de condotiere do Estado na ex-

    panso capitalista. O Estado falido, uma expres-

    so imprpria que a mdia tratou de divulgar, dava

    conta desse esgotamento.

    A crise interna do Estado colocou os holofo-

    tes sobre a despesa pblica e converteu as despe-

    sas sociais pblicas no bode expiatrio da falncia

    2 OLIVEIRA et alii. Quanto melhor, melhor: o acordo das montadoras, in: Novos estudos CEBRAP, n 36, julho/1993; e OLI-VEIRA, F. e COMIN, Alexandre, Os anis de Mercrio, relatrio de pesquisa ao CNPq, 1995.

  • 18 APP-SINDICATO

    do Estado condotiere, quando na verdade isto

    se deveu dvida interna pblica e ao servio da

    dvida externa da simultaneidade das duas crises,

    com a incapacidade clssica das burguesias em

    abrirem-se para a poltica, o que signi'ca dizer

    que a resoluo de seus impasses no conseguia

    ser arbitrada, abriu o passo a que a soluo bur-

    guesa viesse, uma vez mais, de fora para dentro,

    agora na forma da globalizao. Dito de outro

    modo, a soluo da inXao, que nada mais que

    o conXito distributivo pela mais valia, foi resolvido

    pela abertura comercial, isto , pela competio

    internacional que abocanhava partes crescentes

    da mais-valia produzida internamente. Com o que

    estabilizaram-se os preos, mas ao preo - boa

    a redundncia - de uma permanente injeo de

    capitais especulativos que, ao mesmo tempo que

    cobre a brecha comercial, atua sustentando uma

    moeda 'ctcia, que o

    real.

    Esse intenso

    processo levou a uma

    subjetivao perigosa

    por parte das burgue-

    sias, que isto a que se

    chama a privatizao,

    de que a privatizao

    das empresas estatais apenas a forma mais apa-

    rente. Do que se trata de algo mais radical, que

    a privatizao do pblico, sem a correspondente

    publicizao do privado que foi a contrapartida,

    ou a contradio, que construiu o sistema do Esta-

    do do Bem-Estar3.

    A privatizao do pblico uma falsa cons-

    cincia de desnecessidade do pblico. Ela se obje-

    tiva pela chamada falncia do Estado, pelo meca-

    nismo da dvida pblica interna, onde as formas

    aparentes so as de que o privado, as burguesias

    emprestam ao Estado: logo, o Estado, nessa apa-

    3 RANGEON, F. LIdeologie de LIntret General. Paris, Eco-nomica, 1986.

    rncia, somente se sustenta como uma extenso

    do privado. O processo real o inverso: a riqueza

    pblica, em forma de fundo, sustenta a reprodu-

    tibilidade do valor da riqueza, do capital privado.

    Esta a forma moderna de sustentao da crise do

    capital, pois anteriormente, como nos mostrou a

    Grande Depresso de trinta, assim como todas as

    grandes crises anteriores, o capital simplesmente

    se desvalorizava.

    A esse processo objetivo corresponde uma

    subjetivao da experincia burguesa no Brasil de

    hoje que radicalmente antipblica, no sentido

    da esfera pblica no burguesa ou cidad, como

    prefere Habermas, no sentido de uma experincia

    de transcendncia dos prprios mbitos de classe.

    Essa falsa conscincia de desnecessidade do

    pblico decorre da aparncia de emprstimo de

    dinheiro das em-

    presas ao Estado,

    via ttulos da dvida

    pblica mobiliria

    interna, de um lado,

    da herana da dita-

    dura militar em que

    a poltica policial

    era to-somente

    a repartio do produto social entre os proprie-

    trios, mediada por uma burocracia, elevada por

    alguns ulicos, entre os quais et pour cause o

    atual Ministro da Reforma do Estado e da Admi-

    nistrao, categoria de tecnocratas (um pasti-

    che do John Kenneth Galbraith de O novo Estado

    industrial) que no representava a razo do Estado

    ou do pblico, mas como a prpria expresso u-

    lica ideologizou querendo neutralizar, era apenas

    a expresso tcnica daquela repartio, excludos

    os que no eram proprietrios, do conXito pela re-

    ferida repartio.

    Essa aparncia levou a uma outra experin-

    cia, que a da constante troca de posies no Es-

    tado e na empresa privada: ministros e altos esca-

    A introduo de critrios micro

    na racionalidade estatal a trans-

    forma, subliminarmente, em

    uma racionalidade privada.

  • APP-SINDICATO 19 191919

    les que so retirados das empresas, que voltam

    s mesmas to logo deixam os cargos e funes

    estatais e/ou governamentais, numa promiscui-

    dade de que no h notcia mesmo em pases de

    forte tradio liberal. Essa promiscuidade como

    que atuou no sentido de borrar, subjetivamente,

    as barreiras e fronteiras entre o pblico e o pri-

    vado, ou mais radicalmente, atua no sentido de

    que tudo privado: as pessoas funcionam como

    persona, no apenas em razo de um trnsito que

    baralha os papis, mas porque a racionalidade das

    decises fundamentalmente privada. A intro-

    duo de critrios micro na racionalidade estatal

    a transforma, subliminarmente, em uma raciona-

    lidade privada. De par com o mtodo de custos/

    benefcios passa-se, como mestre Weber ensinou,

    da razo substantiva para a razo instrumental: h

    uma ruptura para um outro paradigma, que passa

    a presidir as decises do Estado. Assiste-se como

    que a uma regresso do universal abstrato como

    processo que cria o Estado como comunidade

    ilusria para o mero cho de interesses privados

    que, j agora, no se universalizam, j no tm,

    aparentemente, a necessidade de liberarem-se de

    sua forma de interesses privados, tal o nvel da do-

    minao, ou sobretudo da experincia subjetiva

    vivida pela burguesia.

    Tal mesmo o sentido das privatizaes

    stricto sensu. No parece haver razo para a

    existncia de uma forma diferente de empresa,

    precisamente de uma empresa que representas-

    se aquele universal abstrato, a comunidade ilus-

    ria, que pudesse assegurar as condies gerais da

    concorrncia intercapitalista. Em parte porque as

    prprias empresas estatais foram convertidas pela

    ditadura em simulacros de empresas privadas, e

    nessa condio operam pela mesma rationale:

    em parte porque as burguesias consideram que

    o domnio de classe que j lograram torna desne-

    cessrio que uma parte do sistema mova-se por

    leis distintas das que movem o sistema privado,

    vale dizer, uma formao diferente da taxa de lu-

    cro, uma relao com o Estado e com as prprias

    empresas privadas de outra qualidade, vale dizer,

    nos termos de Polanyi, que as empresas estatais

    representem a politizao necessria do merca-

    do, a correo da produo de mercadorias pelas

    mercadorias, como diria Sra\a.

    Na experincia cotidiana, de h muito as

    burguesias e seus altos correlatos, as altas classes

    mdias e todos os que Reich e Lasch chamaram

    de analistas simblicos, j no tm nenhuma ex-

    perincia de transcenderem seus limites de classe,

    a experincia de convivncia com outras classes

    sociais. Seus cotidianos so extremamente fecha-

    dos, cerrados, claustrofbicos, homogneos. Uma

    breve descrio servir para mostrar que esse co-

    tidiano foi forjando uma subjetividade a qual se

    aparenta com as outras j descritas, formando o

    homem privado contemporneo, que a base

    social sobre a qual se sustenta o neoliberalismo;

    que no 'nal de contas sua expresso.

    No Brasil, e provavelmente em todos os ou-

    tros, o grande burgus e seus correlatos tm um

    cotidiano totalmente fechado em seu prprio cr-

    culo. Em casa, cercado de criados, cujo estatuto

    de empregados assalariados foi realmente rebai-

    xado para o de servos; no por acaso, vrias perso-

    nalidades polticas, nos USA, tiveram seus nomes

    Escola Brasil

  • 20 APP-SINDICATO

    queimados para ocuparem posies no governo

    democrata de Clinton porque no pagavam pre-

    vidncia social para seus empregados; eles eram

    clandestinos. Isto ocorre no Brasil tambm entre

    as mais graduadas personalidades; ali no h di-

    logo nem a fala do outro. Ao sair para o traba-

    lho, o faz cercado da maior segurana: carros de

    segurana o seguem, frente e atrs, e muitos

    mesmo j se locomovem dentro da cidade de he-

    licpteros. Ao chegarem ao trabalho, a recepo

    se d por elevadores privados, em prdios inte-

    ligentes, e o mximo de contato com membros

    de outra classe social se d com as secretrias e

    com os serventes que servem caf e bebidas, nas

    reunies. A relao com as secretrias cada vez

    mais tecni'cada, sendo substitudo o contato hu-

    mano pelos faxes, internets, intercomunicadores,

    e o velho e bom telefone. A secretria , j, um ser

    meramente virtual.

    O cotidiano de um empresrio passa-se sem-

    pre nesse circuito fechado, de seu gabinete para

    reunies com outros em empresrios em ambien-

    tes semelhantes. Muito raramente defrontam-se,

    por exemplo, com representaes de trabalha-

    dores: se esse fato era mais comum na dcada de

    70, hoje ele rarssimo: no apenas os assesso-

    res os substituem, como a dinmica do conXito,

    por estratgia da burguesia, est transitando do

    sindicato para o cho de fbrica, do coletivo de

    trabalhadores de uma categoria para pequenos

    coletivos de trabalhadores de cada empresa, de

    cada fbrica e de cada seo de fbrica, onde no

    o patronato, com suas caras o'ciais, que est l,

    mas seus prebostes dos recursos humanos. As

    diversas estratgias que a sociologia chama de

    cooptao, que incluem todas as modalidades

    das chamadas japonesas, no so outra coisa

    seno a tentativa de quebrar a representativi-

    dade sindical e deslocar o eixo da negociao

    para o terreno micro do interesse de cada um,

    onde a possibilidade da fala como recurso dis-

    cursivo para a reivindicao completamente

    anulada. D-se como contrapartida prmios

    individuais, que reforam a excluso da fala (v.

    Cibele Rizek4).

    noite, para completar, o empresrio

    moderninho completa seu dia entre uma noi-

    tada, ao estilo Olacyr Moraes, gastando virtu-

    osamente aquilo que vitorianamente poupou,

    ou participa das grandes celebraes de hoje

    do mundo burgus, das quais ele inclusive

    patrocinador: algumas das grandes sesses da

    pera, dos patronos do Municipal, do Mozar-

    teum, da Sociedade de Cultura Artstica, alguns

    at so presidentes da fundao da Bienal de

    Artes Plsticas, ou simplesmente, na maio-

    ria dos casos, est fora do pas, divertindo-se

    comme il faut. Em todos os casos, os mesmos

    poderosos esquemas de segurana o seguem,

    esquadrinhando cada metro de terreno que

    pisam ou por onde passam, evitando, a qual-

    quer custo, qualquer contato com qualquer ser

    extraterrenal, vale dizer, de outra classe social.

    Raros deles exibem ainda uma antiga vocao

    altrusta, cuidando de instituies privadas de

    assistncia pblica, como Antnio Ermrio de

    Morais, mas mesmo a o pblico privado, pos-

    to que apenas constitudo pelos pacientes e

    estes, desde uma velha nomeao que data dos

    fins da Idade Mdia, j so destitudos da fala e

    da reivindicao, como os loucos (Michel Fou-

    cault, LHistoire de la Folie dans Ige Classique).

    4 RIZEK, C. e MELLO E SILVA, Leonardo. Relatrio do Proje-to Trabalho e quali'cao no Complexo Qumico paulista, julho 1996, mimeo.

    Escola Brasil

  • APP-SINDICATO 21 212121

    Uma das passagens possveis durante o dia

    o deslocamento para algum escritrio do Estado.

    Ali, sobretudo nos mais altos escales, o sentido

    de uma experincia que apenas privada, que se

    passa apenas entre homogneos, se reproduz: a

    fala igual, os objetivos so iguais, anulam-se as

    diferenas entre Estado e Sociedade, entre Esta-

    do e Mercado e 'nalmente entre o governo e as

    empresas; mais frequentemente, quem estava na

    empresa ontem, pode estar no Estado hoje, e vi-

    ce-versa. Tome-se o atual ministrio do Presidente

    Cardoso: nunca houve, em ministrio algum, uma

    taxa to alta de empresrios. E, reciprocamente,

    nunca houve uma taxa to alta de ex-altas 'guras

    do primeiro e segundo escalo que tenham dei-

    xado o governo e se instalado confortavelmente

    num banco ou numa alta consultoria empresa-

    rial ou ido diretamente para a alta direo de um

    grande grupo econmico-'nanceiro.

    Essa experincia subjetiva, ao lado da objeti-

    vidade - que sempre uma exteriorizao, lembre-

    mo-nos da velha lio dos Manuscritos econmico-

    'lso'cos, Marx e Engels, sim senhor - da falncia

    do Estado, constitui a pedra de toque da privatiza-

    o do pblico. Este aparece como desnecessrio.

    E uma reforma do Estado que o faa parecer-se

    com essa objetividade subjetivada, vale dizer, com

    a empresa privada e com a experincia burguesa

    cotidiana, constitui a rei'cao quase necessria

    desse movimento. No toa, o Ministro da Refor-

    ma do Estado e da Administrao o que encarna

    melhor essa proposta reducionista: o Estado deve

    ter a mesma rationale da empresa privada; deve

    retrair seus efetivos quando a crise o ordena; deve

    aplicar os mesmos critrios aos negcios (licitao

    de bens pblicos, p. ex.), que uma empresa priva-

    da. Desnecessrio dizer que o referido ministro

    provm no apenas da empresa privada, mas da

    tradio norte-americana de indiferena entre a

    funo pblica e a funo privada e mais: provm

    do ncleo emblemtico desse novo paradigma

    que a organizao de marketing.

    A crise do Estado, vista do ngulo de sua

    impotncia para deter, realmente, o monoplio

    da violncia legal, uma consequncia, objetiva-

    mente, de sua dilapidao 'nanceira, e, subjeti-

    vamente, da falsa conscincia da desnecessidade

    do pblico pelas burguesias e seus a'liados. En-

    cerrando-se claustrofobicamente em seu mundo,

    cercado de seguranas privados por toda parte,

    as burguesias desinteressaram-se da polcia, em

    sentido literal, como elemento ostensivo do mo-

    noplio da violncia pelo Estado. O estado de

    guerra civil larvar, e, em alguns casos, aberta, no

    seno uma consequncia dessa dupla determi-

    nao. Como resultado, a prpria polcia pblica

    privatizou-se no pior sentido: de um lado, a cor-

    rupo instalou-se para no mais sair, como cor-

    relato da grande corrupo burguesa - nos dias

    da ditadura, os grandes corpos de represso eram

    alugados pelas grandes organizaes para ofere-

    cerem proteo, no melhor sentido ma'oso. Essa

    experincia, em que policiais experimentaram re-

    laes com a alta burguesia, e experimentaram a

    aquisio de altas rendas, espraiou-se para todos

    os nveis policiais: da corrupo com o tr'co de

    drogas e os banqueiros do jogo de bicho, s em-

    presas de proteo e de transporte de valores, que

    so quase todas de propriedade de policiais, at

    os hotis de alta rotatividade, a alta cpula das

    polcias, civil e militar, trata, hoje, sobretudo, de

    negcios privados. De outro lado, os baixos esca-

    les tratam os conXitos privados entre os cidados

    como uma coisa dela, como um negcio privado,

    como se os conXitos privados entre cidados, que

    acontecem em qualquer parte do mundo, fossem

    conXitos com a polcia. O absentesmo burgus

    que tornou o Estado impotente e roubou-lhe o

    monoplio legal da violncia criou o monstro de

    uma polcia o'cial que age como se estivesse tra-

    tando de negcios privados: mata, tortura, extor-

    que, cobra proteo, no pressuposto, quase sem-

    pre con'rmado, de que o absentesmo burgus a

    torna imune e impune. Tal o outro sentido trgi-

    co da privatizao do pblico operado no Brasil.

  • 22 APP-SINDICATO

    Alm disso, nas condies concretas do ab-

    sentesmo burgus, da falsa conscincia da desne-

    cessidade do pblico, de sua privatizao, da im-

    potncia do Estado, e da poltica de estabilidade

    monetria, que sacri'ca o social no altar de uma

    falsa moeda, a guerra civil implantou-se no meio

    das classes pobres. Estudos do IPEA, apresenta-

    dos na ltima reunio anual da ABEP, j indicavam

    que assassinatos, suicdios e acidentes de trnsito

    apareciam como 70% das causa mortis na faixa

    etria masculina dos 15 aos 24 anos, nas capitais

    brasileiras, justamente quando o jovem entra no

    mercado de trabalho; um estranho mecanismo

    malthusiano! Estudos recentes, patrocinados pelo

    Programa de Aprimoramento das Informaes de

    Mortalidade-Pro-Aim, publicados na Folha de S.

    Paulo no domingo, 20 de abril de 97, esclareciam

    parte do enigma: so operrios braais, no qua-

    li'cados, 32% deles morreram, em 1995, antes de

    completarem 25 anos, que esto se matando uns

    aos outros. O homicdio , alis, tambm a princi-

    pal causa mortis em quatro (incluindo-se os bra-

    ais) dos sete grupos ocupacionais pesquisados.

    No se trata de um fenmeno criado no go-

    verno FHC, posto que ele decorre do largo pro-

    cesso que tentamos descrever, mas sem dvida a

    ideologia o'cial, a desmoralizao dos trabalha-

    dores, de funcionrios pblicos, a desmoralizao

    da prpria funo pblica, o apontar tudo que

    pblico como inimigo de cada indivduo tem uma

    carga simblica mortfera, que ampli'cou extraor-

    dinariamente a tragdia que j ocorria.

    Enquanto isso, as classes dominadas ten-

    tam, por todos os meios, construir a poltica, fazer

    poltica. Uma das formas mais exemplares a esse

    respeito foi construda pela experincia da cma-

    ra setorial da indstria automotiva, cujo processo

    est descrito, primeiramente sob a forma de hip-

    tese, em Oliveira et alii5, e analisado por Cardoso

    e Comin6 alm de mais alguns textos. Resumin-

    do, na ausncia de poltica industrial para o ramo

    automotivo, trabalhadores metalrgicos e empre-

    srios das montadoras de automveis e das au-

    topeas reuniram-se numa cmara setorial, cujo

    propsito original havia sido, simplesmente, o de

    regular preos. Depois de uma severa crise, que

    atingia os trabalhadores, que experimentaram,

    pela primeira vez, o fechamento de uma montado-

    ra no Brasil - depois das primeiras, como Renault,

    Kaiser e Chrysler que no incio dos anos sessenta

    retiraram-se do Brasil, vendendo suas plantas para

    algumas das atuais - e as empresas, que experi-

    mentaram srios reveses em suas taxas de lucro,

    o que aconteceu tambm com os produtores de

    autopeas, os trs atores principais modi'caram

    os termos da cmara setorial para compromissos

    de aumento da produo, renovao tecnolgica,

    garantia de emprego e de salrios, poltica de ex-

    portao, e uma srie bem longa de uma agenda

    de discusses e de objetivos que constitua uma

    verdadeira revoluo nas relaes capital-traba-

    lho no Brasil. A Unio entrou com uma reduo no

    IPI e os Estados da Unio com redues do ICMS,

    o que possibilitou pelo conhecido mecanismo

    da elasticidade - preo da demanda, uma rpida,

    sustentada e notvel recuperao de seus nveis

    e, consequentemente, dos nveis da produo. H

    toda uma literatura, representada principalmente

    5 OLIVEIRA et alii. Quanto melhor, melhor, in: Novos estu-dos, Cebrap, julho/1993.

    6 CARDOSO, Adalberto e COMIN, Alvaro. Cmaras Seto-riais, modernizao produtiva e democratizao das relaes capi-tal-trabalho. A experincia do setor automobilstico no Brasil, in: CASTRO, Nadya (org.). A mquina e o equilibrista. So Paulo, Paz e Terra, 1995; ARBIX, Glauco. Uma aposta no futuro: Os primeiros anos da Cmara Setorial. So Paulo, Scritta, 1996.

    Escola Brasil

  • APP-SINDICATO 23 2323232323

    por Armando Boito e Ricardo Antunes, do lado da

    esquerda e por Gustavo Franco, enfant gat do

    presidente FHC do lado da direita, que acusou e

    acusa ainda o acordo de corporativista.

    Em resumo, o acordo, que enquanto vida

    teve revelou-se notvel sob todos os pontos de

    vista, de repente entrou em declnio, desde que

    Fernando Henrique Cardoso assumiu a pasta da

    Fazenda, ainda no Governo Itamar Franco, sendo

    que o presidente era ostensivamente a favor do

    acordo. Cardoso comeou a boicot-lo sistemati-

    camente e, a partir do exerccio da presidncia, o

    boicote transformou-se simplesmente em liquida-

    o do acordo.

    No nenhum mistrio essa liquidao. O

    acordo no interessava ao governo FHC em pri-

    meiro lugar e acima de tudo porque ele constitua

    um recurso poltico, uma criao poltica de uma

    importante categoria de trabalhadores, central na

    luta de classes no Brasil, na organizao da princi-

    pal central do trabalho, a CUT. Isto se parece com

    voluntarismo, mas por trs dessa aparncia est o

    fato de que a permanncia do acordo obrigaria a

    uma permanente negociao e, portanto, nega-

    o de que, em termos de Rancire, o bolo j est

    repartido entre os proprietrios. O que os sect-

    rios de esquerda inclusive no conseguem ver

    que essa forma de poltica, mais que a aparncia

    revolucionria que a antiga atitude da CUT tinha,

    e que eles nostalgiam, punha em xeque a diviso

    do bolo, punha em xeque a propriedade, pois a in-

    troduo da tecnologia, a dispensa de trabalhado-

    res, teriam que passar pelo crivo do sindicato. Em

    outras palavras, o investimento dos proprietrios

    teria que passar pelo crivo dos trabalhadores. Teria

    sido um nvel que apenas a social-democracia em

    seus melhores momentos e talvez apenas na Su-

    cia e na Alemanha da co-gesto tenha alcanado.

    Em termos do projeto de governo de FHC,

    o acordo seria uma permanente pedra no sapato,

    inclusive porque ele teria uma qualidade pedag-

    gica difcil imediatamente de ser adotado por ou-

    tros setores7 em termos de regulao (no sentido

    atribudo pela escola francesa da regulao, Boyer,

    Aglietta, Lipietz e outros), mas que poderia obrigar

    a uma poltica macro em cujo epicentro o acordo

    agisse como paradigma. O acordo no se prestava

    no-disciplina dos preos, ou ao simples exerc-

    cio do poder de oligoplio das montadoras e das

    principais empresas de autopeas, ou a deixar-se

    inXuenciar pela abertura comercial.

    De outro lado, no interessava a FHC os li-

    mites que o acordo impunha para a entrada de

    outras montadoras, que era sua grande arma para

    seu projeto de crescimento e para garantia de en-

    trada dos dlares necessrios para manter a po-

    ltica de abertura que faz a permanente ameaa

    aos preos e mantm a estabilidade monetria. H

    vrias razes objetivas pelas quais o acordo no

    poderia, nunca, caber no per'l do governo FHC.

    Resta responder por que as montadoras e empre-

    sas de autopeas aderiram cmara, para depois

    entrar em acordo com o governo, retirando a via-

    bilidade ao pactado com os trabalhadores.

    A primeira parte da resposta que, nas con-

    dies de alta inXao, as empresas, que vinham

    apresentando srios prejuzos8 no tinham outros

    7 MELLO E SILVA, Leonardo. A generalizao difcil. Tese de Doutoramento. So Paulo, FFLCH-USP, Departamento de Sociolo-gia, 1997.

    8 COMIN, Alexandre. Crise e concentrao: Quem quem

    Escola Paquisto

  • 24 APP-SINDICATO

    parceiros para tentarem sair da situao seno os

    imediatamente interessados, isto , os trabalha-

    dores da categoria de metalrgicos. Toda uma his-

    tria anterior do prprio conXito entre eles havia

    mostrado aos dirigentes dessas empresas (v. en-

    trevista de Luis Adelar Scheuer, diretor da Merce-

    des-Benz e ento presidente da ANFAVEA, sobre

    Vicente Paulo da Silva, ento presidente dos me-

    talrgicos de So Bernardo, na revista VEJA) que

    as representaes dos trabalhadores com as quais

    lidavam tinham alta credibilidade nas suas cate-

    gorias e em vrios setores da sociedade. Mesmo

    em sendo 'liais de montadoras de grande porte

    no setor mundializado do automvel - o que no

    era o caso da maior parte das indstrias de au-

    topeas - parece ser que as matrizes estavam se

    desinteressando das 'liais brasileiras, de que o fe-

    chamento da fbrica de motores da Ford em So

    Bernardo do Campo foi um dos sinais mais eviden-

    tes. A associao Volskwagen-Ford vinha se reve-

    lando problemtica para ambas, mas as direes

    centrais pareciam no tomar nenhuma diretriz

    que as tirasse do atoleiro; os carros fabricados no

    Brasil tinham, em mdia, um atraso relativo de 10

    a 14 anos em relao aos que suas montadoras

    matrizes lanavam em seus mercados originais, e

    o grande competidor, o Japo, parecia no se in-

    teressar pelo mercado brasileiro, 'gurando aqui,

    desde os anos setenta, com uma minscula mon-

    tagem de utilitrios Toyota. Apenas a Fiat escapa-

    va do quadro geral de estagnao, fazendo da 'lial

    brasileira seu principal empreendimento fora da

    Itlia e inscrevendo-a, de'nitivamente, na sua es-

    tratgia mundial. Por isso, a Fiat havia passado de

    ltima colocada no ranking das montadoras no

    Brasil para o segundo lugar, logo atrs da Volkswa-

    gen. E, no por acaso, a Fiat sempre foi contra o

    na indstria de So Paulo, in: Novos estudos, Cebrap, n 39, ju-lho/1994; BELLO, Carlos Alberto. Queda da taxa de lucro e conXi-tos distributivos na indstria de So Paulo nos anos 80, in: CEBRAP Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento, Relatrio parcial da pesquisa Democracia e Poder Econmico: A Legislao Antitruste Brasileira diante dos processos de concordatas e centralizao de capitais escala mundial, So Paulo, 1996.

    chamado Acordo das Montadoras, nome pelo

    qual 'cou conhecida a Cmara Setorial do Ramo

    Automotivo.

    No momento em que o governo FHC, des-

    de o lanamento do Plano Real, ainda no governo

    Itamar, 'rmava sua condio de aglutinador dos

    interesses burgueses e amalgamador dos diver-

    sos grupos polticos, desde o centro para a direita,

    as montadoras retiraram tambm seu interesse

    do acordo automotivo. J no havia necessidade

    dos trabalhadores, segundo o novo estado da luta

    de classes e a hegemonia que o governo lograva,

    dia a dia, sobre as vrias fraes burguesas e sua

    capacidade de amalgamar interesses e clivagens

    to diversas. Prosseguir com o acordo seria deixar

    crescer uma caixa de ressonncia e de dissenso,

    num ambiente j apaziguado, segundo indicava

    toda a ambincia da poltica policial brasileira.

    O episdio do boicote e do estrangulamento

    da cmara setorial do setor automotivo revela at

    que ponto esvaziou-se propositalmente a esfera

    pblica que poderia regular os conXitos atravs

    da publicizao do dissenso, atravs da operao

    dialtica da privatizao do pblico - que consis-

    tia nos impostos que eram reduzidos para que o

    acordo funcionasse - e na publicizao do priva-

    do, isto , na prpria publicizao do dissenso e

    no fato de que os critrios do investimento, do lu-

    cro e suas margens, da reestruturao produtiva

    e do emprego das novas tecnologias, da defesa

    Escola Ir

  • APP-SINDICATO 25 2525252525

    do nvel do emprego e da renda dos trabalhado-

    res, passavam a ser discutidos e acordados publi-

    camente. Isto , as classes sociais transitavam de

    seus invlucros privados para sua forma pblica, o

    que leva a maioria da sociologia ingnua a pensar

    que j no h mais classes sociais.

    Fica-se, ento, apenas com a privatizao do

    pblico. Que nessa operao necessariamente se

    desfaz e torna-se meramente privado, particular,

    sem transcendncia. O que a destruio do pbli-

    co opera em relao s classes dominadas, como

    o exemplo da cmara setorial do setor automotivo

    nos mostra, a destruio de sua poltica, o roubo

    da fala, sua excluso do discurso reivindicativo e,

    no limite, sua destruio como classe; seu retro-

    cesso ao estado de mercadoria, que o objetivo

    neoliberal.

    Essa operao de destruio da fala, do dis-

    curso que reivindica, que interpela o outro, para

    substitu-Ia pelo eterno voc me entendeu de

    Rancire, que signi'ca que o outro no entendeu

    e no pode entender, tem sido sistemtica no go-

    verno FHC. Ao destruir os recursos polticos que

    uma categoria como a dos metalrgicos havia

    criado, quase como destru-la como classe, como

    j se a'rmou: da por diante, a operao do conXi-

    to, do dissenso, 'ca cada dia mais di'cultada, pela

    desmoralizao daquele que foi destitudo do dis-

    curso. Ele no pode mais avanar e j no pode

    recuar, sob pena de sua ao perder toda e'ccia,

    porque a reivindicao da parcela que ele reivin-

    dicou - a possibilidade de intervir nos prprios

    negcios da burguesia e de co-dirigir uma pol-

    tica de Estado - no tem o mesmo estatuto que

    a simples reivindicao do salrio. Instala-se uma

    desmoralizao da categoria, que se alastra como

    epidemia para quase todas as categorias de traba-

    lhadores. Dela s escapam aquelas cuja reivindica-

    o de outra natureza, melhor dizendo, de outra

    materialidade e que, por isso mesmo, constitui-se

    tambm em poltica desa'adora da geometria da

    distribuio da riqueza entre os proprietrios.

    por essa razo que o Movimento dos Sem Terra

    hoje o nico que faz poltica no Brasil e, se aceitar

    as armadilhas do governo, rapidamente cair em

    descrdito.

    A arma da desmoralizao da fala, do discur-

    so, tem sido uma das tnicas mais presentes no

    governo FHC. Sua arrogncia em nomear como

    ignorantes, atrasados, burros, neobobos, todos

    os que se opem a seus mtodos, no tem outro

    objetivo: a anulao da fala e, atravs dela, a des-

    truio da poltica, a fabricao de um consenso

    imposto, ao modo das ditaduras. Ele j obteve

    esse resultado, em parte, com os principais sin-

    dicatos de trabalhadores, que j no conseguem

    veicular seus discursos; ele j reduziu ao silncio

    uma importante parcela de trabalhadores: bas-

    ta dizer que os funcionrios pblicos federais h

    dois anos no recebem nenhum reajuste e neste

    ano da graa de 1997 o assunto sequer foi pau-

    tado por nenhum veculo de mdia! Sem embar-

    go da repetio ad nauseam da inexistncia de

    inXao, nestes dois anos, os salrios dos funcio-

    nrios pblicos experimentaram uma corroso

    de pelo menos 40%, o que signi'ca que seu po-

    der de compra foi reduzido a quase metade! Isto

    a anulao da fala reivindicante da maneira mais

    avassaladora que a histria brasileira, mesmo sen-

    do to anuladora, no conhecia desde h muito

    tempo. Neste sentido, Fernando Henrique Cardo-

    so retomou o mote de Collor dos funcionrios p-

    blicos como marajs, os expe todos os dias ao

    Escola ndia

  • 26 APP-SINDICATO

    oprbrio, numa operao de misti'cao de alto

    risco, para esconder a realidade de seu oramento

    de governo comprometido at a medula com os

    servios da dvida para sustentar a enxurrada de

    dlares que ancora a estabilidade monetria.

    No , pois, sem sentido que a poltica po-

    licial tenha se convertido numa operao de

    merchandising por excelncia. Reduzida, por

    um lado, relao Executivo-Legislativo, em que

    ela no desborda os termos do acordo entre pro-

    prietrios - tanto no sentido material quanto no

    sentido simblico - excluindo-se os que no so,

    de que prova de'nitiva o de'nhamento das v-

    rias organizaes criadas nas trs ltimas dcadas

    como formas de fazer poltica pelas classes po-

    pulares - os movimentos sociais, to famosos em

    certa poca e to adulados por certa sociologia de

    ocasio - substitudas outra vez pelo assistencialis-

    mo castrador do programa Comunidade Solidria,

    o governo resume-se a repetir o eterno tema da

    estabilidade monetria, que , a rigor, sua nica

    realizao.

    A constante presena do Presidente na

    mdia em si mesma, uma metamdia. Alm de

    que, em traduo livre, a estrutura comunicativa

    de nossa sociedade revela a no atualizao de

    uma srie de falas que remete, necessariamente,

    noo de excluso de certos falantes9, a presena

    do Presidente legitima a prpria mdia na sua fun-

    o de excluso dos falantes e na sua Substituio

    da poltica. No por outra razo que a poltica

    policial brasileira est se tornando cada vez mais

    norte-americana. E ningum utiliza mais a mdia

    como metamdia que o governo FHC: atravs dela,

    ele desquali'ca a oposio e os exclui do discurso

    pblico.

    Neste quadro, a violncia que campeia na

    sociedade brasileira e, sobretudo, a violncia que

    produzida pelos prprios aparelhos de Estado

    no seno uma plida sombra da excluso da

    fala e da privatizao do pblico, e, no seu rastro,

    da anulao da poltica. Mesmo quando parece

    partir da sociedade civil a vigilncia que cobra

    do Estado sua funo, como no caso recente da

    chacina no municpio de Diadema, o olho era o da

    mdia, o que signi'cava dizer, ao mesmo tempo, a

    efemeridade, sua substituio pela prxima not-

    cia, o deslocamento das responsabilidades do Es-

    tado para uma suposta sociedade civil e a morte

    da poltica, pois esse deslocamento somente pro-

    duz indignao, mas no produz poltica.

    Rolf Kuntz chamou, em artigo para a Revista

    USP10, o neoliberalismo de integrismo, fundamen-

    talismo. Nas condies concretas da sociedade

    brasileira - para no arriscar-me alm do meu ter-

    ritrio - o neoliberalismo, como um Frankenstein

    construdo de pedaos de social-democratas, an-

    tigos e novos oligarcas do Nordeste, populistas de

    direita, trnsfugas de esquerda, numa articulao

    presidida pelo prncipe dos socilogos, passa por

    uma estranha metamorfose: sua face real a do

    totalitarismo.

    9 MATA, Maria Cristina. La exclusin del habla, Buenos Ai-res, mimeo, 1997.

    10 KUNTZ, Rolf. O neoliberalismo um integrismo. Revista USP, So Paulo, mar-maio/1993, p. 54-61.

    Escola Alemanha