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Primeiro Capítulo Bio Glauber Rocha

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  • CONQU

  • UISTA 1939

  • Para nascer, ele quase matou a me. No casaro da rua da Vrzea, Lucinha viveu uma lon-ga noite de suor e lgrimas, padecendo com as dores ter-rveis das contraes. Com 20 anos, pequena e frgil, estava exausta e poderia desfalecer a qualquer momento. S a emoo do primeiro filho a mantinha lutando. Ao lado da cama, o mdico da famlia temia pela vida da me e do beb. Era urgente pedir

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    aajuda de um especialista, e Adamastor foi buscar o dr. Crescnsio, o nico obstetra de Conquista. Por suas mos e ferros, Glauber nasceu com 5 quilos, moreno, peludo e chorando alto. Raiava o dia 14 de mar-o e a Bahia comemorava o 92 aniversrio do poeta Castro Alves, morto aos 24 anos e marcado pela glria, a paixo e a tragdia.

    Conquista tinha estimados 50 mil habitantes na rea urbana e rural, comeava a prosperar com a agricultura e a pecuria da regio, e com a abertura da estrada Rio-Bahia. A 500 quilmetros de Salvador, ao p da Serra de Piripiri, mil metros acima do mar, desfrutava de clima ame-no e tinha invernos to frios que alguns conquistenses mais ufanistas a chamavam de Sua baiana.

    Moreno de lbios finos e bem-desenhados, Adamastor era caixei-ro-viajante. Com 14 anos, saiu de Ilhus para So Paulo, onde estabe-leceu a sua base de operaes. Comprava no Rio e vendia no interior de So Paulo, de Minas e do Sul da Bahia. Quando chegou a Conquista, tinha 35 anos, duas malas e um grande ba cheio de tecidos. Gostou da cidade, do clima, das moas bonitas e bem-vestidas. Seu faro co-mercial identificou um mercado promissor e carente, e Adamastor ne-gociou um abatimento para ficar 15 dias na penso de dona Ritinha. Ecomeou a vender as suas mercadorias de porta em porta.

    Simptico, educado e de palavra fcil, Adamastor era um vendedor nato, que oferecia suas mercadorias enquanto contava histrias diver-tidas ou trgicas de Copacabana e da avenida So Joo, que parecia conhecer com familiaridade, falava grias engraadas do Bixiga, dizia conhecer todas as fbricas de tecidos da Mooca. No era um bonito, mas agia como se fosse, ajudado por boas roupas e um andar gingado e malandro que aprendera no Rio de Janeiro e o distinguia dos locais.

    No fim do primeiro dia de trabalho, Adamastor voltou para a penso com as malas vazias e os bolsos cheios. Tomou um banho frio, vestiu cala e camisa de linho branco, se perfumou e foi para o bailinho do Clube Recreativo, onde as moas podiam ficar at 11 da noite.

    Lucinha era filha de fazendeiro, vivia com os pais e 13 irmos no casaro de sete quartos e quatro salas na rua da Vrzea. Foi educada

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    nos rgidos padres morais da Igreja Batista, lendo a Bblia e frequen-tando os cultos dominicais. Empolgada com uma companhia mam-bembe de teatro que se apresentara na cidade, Lucinha se encantou com a atriz que fazia a herona, que a maledicncia provinciana dizia ter largado o marido para fugir com um trapezista de circo. Quando se formou no colgio, pediu um presente ao pai: que a deixasse estudar teatro, ser atriz. Seu Antoninho disse que ela poderia estudar o que quisesse, mas no queria ser pai de puta. E encerrou o assunto. Luci-nha foi chorar no quarto.

    A vida seguia lenta e vazia em Conquista. Romntica e curiosa, de esprito inquieto, Lucinha lia tudo que lhe caa nas mos, romances femininos, clssicos, poesia, biografias de homens clebres. Tinha 16 anos quando se apaixonou perdidamente por Guilardo, alguns anos mais velho do que ela, que estudava Direito em Salvador e tinha fama de danarino, bomio e namorador. Quando os irmos descobriram, o expulsaram da cidade, na ponta de revlveres, deixando Lucinha com um buraco no corao.

    Enlutada, chorava e emagrecia, passava dias sem falar com nin-gum e recusava todos os convites, parou de estudar e de frequentar o culto dominical. Dona Marcelina a levou para Salvador e a internou em um colgio de freiras catlicas, onde, mesmo sendo batista, era obrigada a assistir missa todo dia.

    Um ano depois, voltou para Conquista e continuou aptica, comen-do e falando pouco, quase sem sair de casa. No se interessava por nada. Uma noite, as irms tanto insistiram que ela as acompanhou ao bailinho no sobrado do Clube Recreativo.

    No pequeno palco, o conjunto musical do crooner Moreno tocava sucessos de Orlando Silva e Francisco Alves. Na mesa, Lucinha e as irms viam Adamastor rodopiar pelo salo, danando duas ou trs m-sicas com uma moa, e depois com outra, e uma outra. Como um se-rial dancer, escolhia as mais bonitas, provocando uma onda de comen-trios abafados pela msica.

    Todos os olhos estavam sobre Adamastor quando ele se aproximou da mesa e tirou Lucinha para danar. E todo o salo a viu recusar. Ada-mastor insistiu, com gentileza. Lucinha negou, seca. Abalado com a temida tbua, Adamastor se retirou para o bar, sem perder o andar gingado de malandro carioca.

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    No dia seguinte, por acaso ou ousadia, Adamastor passava pela rua da Vrzea com suas malas quando a janela se abriu e Lucinha apare-ceu. Ele apenas fez um cumprimento com a cabea, sorriu como um vendedor, abrindo as malas na calada. Dona Marcelina veio para a janela.

    Perfumes franceses Fetiche e Rive Gauche, sedas finas, talcos, bo-tes, fivelas e aviamentos encheram os olhos de Lucinha e de dona Marcelina. E o bolso de Adamastor. Com uma tima venda efetuada, ele fechou as malas e, galante e atrevido, ofereceu um corte de tecido para Lucinha. Para que fizesse um vestido para ela, e um leno para ele.

    Lucinha no demonstrou nada alm da cortesia, mas gostou. Dona Marcelina, mais ainda: depois de tanto tempo de apatia, a filha se inte-ressava por alguma coisa, mesmo que fossem s perfumes, sedas e histrias de um caixeiro-viajante.

    As visitas e os presentes se sucederam. Aos poucos, nascia no co-rao ferido de Lucinha uma simpatia por ele. Adamastor era um ho-mem-feito, um macho sabido e viajado, que a tratava como uma princesa.

    Os estoques de Adamastor logo se esgotaram e ele voltou a So Paulo para buscar novas mercadorias e vender em Conquista e no in-terior. Decidira se mudar de mala e cuia para a cidade, o mercado re-gional se mostrava promissor, e estava apaixonado por Lucinha.

    Antes de partir, fez questo de comunicar sua deciso aos pais, e principalmente aos irmos, de sua amada. Eles andavam armados e Adamastor tinha ficado sabendo da histria de Guilardo. Tambm sabia que poucos pretendentes despertam mais suspeitas do que caixeiros--viajantes, pela prpria natureza de seu trabalho. Muitos tm vrias fa-mlias, como marinheiros do serto, uma amada em cada rodoviria.

    Lucinha percebia que Adamastor estava tomado pela paixo, j a experimentara com Guilardo e ainda sofria suas consequncias. Seu corao no batia mais forte por ele, mas tinha prazer em encontr-lo, admirava sua inteligncia e sua experincia, apreciava a corte elegante que ele lhe fazia. Comeou a acalentar a ideia de construir um amor onde havia apenas simpatia e um incio de amizade. A paixo e o aban-dono lhe haviam deixado cicatrizes e desconfianas. Com Adamastor

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    sentia-se segura e protegida, era o centro de suas atenes, com ele tinha chances de se libertar da opresso familiar e, talvez, encontrar o amor.

    Adamastor sentiu que a simpatia de Lucinha poderia se transformar em algo maior e mais profundo. Viajou e comeou a mandar longas cartas, bem-escritas, educadas e respeitosas, que revelavam um ho-mem srio e maduro, mas no escondiam o apaixonado. Com as car-tas, a distncia e a fantasia, Adamastor ganhou novas cores para Luci-nha. Por escrito, ele era melhor do que em pessoa. Na volta, o namoro comeou, com a aprovao da famlia. Adamastor queria ficar noivo e casar logo. Lucinha, nem tanto.

    Novas viagens e novas cartas, cada vez mais apaixonadas e ansio-sas. Lucinha respondia com parcimnia e cordialidade. No fim do ano, Adamastor vestiu um terno novo e colocou no bolsinho do palet o leno de seda feito por Lucinha com o corte de tecido que ele lhe dera. E foi fazer o pedido oficial de casamento.

    Com a famlia reunida na sala, sacou do bolso e leu uma longa carta de intenes, apresentando sua biografia, sua famlia e seu currculo profissional, para, no final, pedir respeitosamente a mo de Lucinha.

    Mo consentida, enxoval feito de linho ingls bordado, casamento realizado pelo pastor Joo Norberto. Grande festa no casaro da rua da Vrzea, todo reformado e pintado para o evento.

    Com dois meses de casamento, Lucinha j estava grvida. Adamas-tor vendeu as vacas com que o sogro lhes havia presenteado e montou o bazar Ita, onde Lucinha vendia tecidos, botes e aviamentos, en-quanto o marido viajava e ampliava seus negcios, se tornando repre-sentante de uma grande indstria de biscoitos e de um fabricante de louas e cristais de So Paulo.

    Quando se casou com Adamastor, Lucinha tinha sonhos e esperan-as. O amor ela s sentiu quando Glauber nasceu.

    O caixeiro-viajante Adamastor, que vendia tecidos do Rio na Bahia,

    conquistou o corao de Lucinha