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  • Usos e abusos da priso provisria no Rio de Janeiro Avaliao do impacto da Lei 12.403/2011 1

    Agradecimentos

    AgrAdecemos desembargadora Leila mariano, atual presidente do Tribunal de Justia do estado do rio de Janeiro, pelo apoio inestimvel realizao deste trabalho, principalmente no que se refere aos contatos com juzes, promotores e defensores pblicos entrevistados na pesquisa qualitativa.

    Nosso agradecimento estende-se, evidentemente, aos profissionais mencionados e tambm aos delegados de polcia e advogados particulares que gentilmente concordaram em compartilhar conosco suas percepes e opinies sobre priso provisria e efeitos da Lei 12.403/2011.

    Agradecemos tambm aos funcionrios do TJ/RJ, Max Eduardo Mariotti Gonalves, diretor da Distribuio do Tribunal, e Marcelo Villar Aballo, tcnico do Judicirio e funcionrio da Distribuio. Ambos conviveram dois meses com os estagirios da pesquisa, fornecendo-lhes as atas de distribuio para consulta. Sem o valioso auxlio desses profissionais teria sido muito mais difcil realizar o levantamento.

    Finalmente, registramos nosso reconhecimento open society Foundations que apoiou e viabilizou o trabalho.

    rio de Janeiro, novembro de 2013

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    Sumrio

    Prefcio 3

    Introduo 5

    1. A priso provisria antes e depois da Lei 12.403/2011 8

    1.1. Quando a exceo a regra 8

    1.2. Mensurando o impacto da nova lei 11

    1.3. Desproporcionalidade entre medida e sentena 14

    1.4.Doiscasosextremos:furtoetrficodedrogas18 1.5. Suspenso condicional do processo 22

    1.6. Medidas cautelares utilizadas 22

    1.6.1. Alternativas priso 22

    1.6.2. Fiana: o preo da liberdade 26

    2. O que pensam sobre medidas cautelares os operadores da justia criminal 29

    2.1. Entrevistas 30

    2.1.1. Juzes 30

    2.1.2. Promotores 33

    2.1.3. Defensores pblicos 35

    2.1.4. Advogados particulares 38

    2.1.5. Delegados de polcia 38

    2.2. Audincias 40

    2.3. Decises judiciais 43

    2.4. Garantia da ordem pblica, criminalizao da pobreza e demonizao das drogas 46

    Concluso 50

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    Prefcio

    A grAnde virTude do TrAbALho de pesquisa apresentado pela ARP e pelo CESeC conseguir colocar uma lente de aumento no quadro referente s prises cautelares, com acurada anlise em termos quantitativos e qualitativos sobre prisionalizao, de forma cientfica, para que todos possam ter clareza do que est acontecendo no mundo das prises, da lei e do sistema de justia e, assim, apropriar-se de melhores elementos para mudar o rumo desta histria.

    A grande marca do poder punitivo no Brasil se revela pelo excessivo encarceramento provisrio. o projeto realizado pelas entidades mencionadas indica que no rio de Janeiro os presos provisrios so da ordem de 40% da populao carcerria. Quase metade!

    Por certo, a inteno do legislador era alterar esse quadro abusivo com a edio da lei 12.403/11, que estatuiu reformas processuais no tocante s medidas cautelares, mas o gesto dos que fazem parte do sistema de justia, especialmente do Poder Judicirio, no faz o mesmo movimento e talvez nem o gesto do legislativo tenha a eficcia para fazer tal aproximao.

    H uma distncia entre inteno e gesto, pois a prisionalizao ainda a medida cautelar mais utilizada, como se ver nas prximas pginas.

    este trabalho no pode ser destinado apenas aos juzes, promotores, advogados e defensores. Deve ser dissecado pelos poderes Executivo e Legislativo, pelo mundo acadmico, no s do direito, por todos que de alguma forma interferem ou possuem qualquer interlocuo no sistema prisional.

    entre tantas informaes que a pesquisa traz, chamam minha ateno dois aspectos. Primeiro: o aumento de concesso de fianas pela autoridade policial, na ordem de 9% e pelo Judicirio em 0,6%, sendo que ao mesmo tempo temos a reduo da concesso de liberdade provisria mediante termo de comparecimento, que decresce 7%, tudo a indicar que h uma situao mais gravosa. Ser possvel afirmar que antes os presos saiam em liberdade sem despender dinheiro e agora s conseguem a liberdade mediante pagamento? Qual a significao que podemos dar para tal quadro? radicalizamos mais a seletividade do direito penal, punindo ainda mais os mais pobres?

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    O segundo e assustador aspecto do estudo refere-se ao trfico de drogas, pois a priso provisria mantida at o julgamento quase que na integralidade dos casos (98%). Portanto, aplicao zero da lei de medidas cautelas para o crime que tem o maior aumento processual penal. somente na ltima fase desses processos, em cerca de 30% deles, que h a soltura, j que a pena imposta no a priso em regime fechado ou semi-aberto.

    Pode-se afirmar que os indivduos que de algum modo tangenciam os crimes previstos na lei de entorpecentes so os que exponencialmente representam o inimigo nos dias de hoje, e sabemos que os inimigos so destitudos de natureza humana, razo pela qual lhe so subtrados os atributos da humanidade e por consequncia da cidadania.

    Importante lembrar que foi no perodo das ditaduras da Amrica Latina que se lanou fortemente a guerra contra as drogas. At hoje colhemos tal fruto, ainda plantamos a mesma rvore e a regamos com o mximo miditico possvel. A pesquisa aponta bem a fervorosa utilizao da expresso ordem pblica usada na lei, nas decises e manifestaes do Ministrio Pblico, tal como se empregava no perodo da ditadura.

    Talvez seja possvel afirmar que a lei pode ter trazido algumas mudanas, mas foroso reconhecer que ela no teve o potencial de alterar de forma significativa o quadro de prisionalizao.

    o problema est na lei? nos seus aplicadores? o que fazer? Por que os juzes esto a fazer exigncias de comprovao de trabalho, num pas em que o desemprego e o emprego informal so uma realidade? Por que a questo do entorpecente impacta tanto os juzes? Por que as instituies que devem fazer a defesa dos presos, tambm participam da cadeia seletiva?

    Debruar-se sobre estas perguntas est a exigir o pleno conhecimento do que o CESeC e a ARP produziram com esta pesquisa, que nos brindam com o apoio da open society.

    os resultados certamente permitiro pensar possveis caminhos para a superao do quadro dantesco, que desagua em cada cela, em cada canto das penitencirias e cadeias deste brasil, em cada ser humano que nela est encarcerado.

    Kenarik boujikian Magistrada do Tribunal de Justia de So Paulo, presidenta

    e co-fundadora da Associao Juzes para a Democracia,

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    Introduo

    um dos ProbLemAs mAis drAmTicos do sistema penitencirio brasileiro o grande nmero de presos provisrios que ele abriga: so 195 mil e representam 35% das pessoas encarceradas no pas como um todo. No Rio de Janeiro, somam aproximadamente 11 mil, ou 39% do total de presos do estado.1

    No se deve esquecer que a Constituio brasileira, pelo princpio da presuno de inocncia, garante a toda pessoa acusada de crime o direito de aguardar em liberdade o resultado do processo. A priso, por conseguinte, s deveria ocorrer em casos excepcionais, sobretudo quando a liberdade do acusado colocasse em risco a tramitao regular do processo, permitindo-lhe, por exemplo, coagir testemunhas, vtimas e/ou operadores do sistema de segurana e justia. Mas o que deveria ser exceo aqui tem constitudo regra: aplica-se a torto e a direito a priso cautelar, at mesmo nos numerosos casos em que, pela natureza do crime, a pena ao final do processo com toda a probabilidade no ser de priso. esse sistemtico desrespeito ao texto constitucional e aos tratados internacionais de que o Brasil signatrio que mantm superlotadas as carceragens de presos provisrios em todo o pas, em condies de vida ainda mais desumanas que as dos prisioneiros j condenados pela Justia.

    Levando em conta que, entre os vrios determinantes desse quadro, est a precarssima assistncia jurdica acessvel aos presos de baixo poder aquisitivo vale dizer, grande maioria das pessoas encarceradas , a Associao para a Reforma Prisional (ARP) desenvolveu de janeiro de 2009 a junho de 2011, na cidade do Rio de Janeiro, um experimento controlado de prestao de assistncia jurdica a presos provisrios mantidos em delegacias de polcia do municpio.2

    1 Depen/Ministrio da Justia. Populao carcerria sinttico, dezembro de 2012. [disponvel em http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm]

    2 Quando esse primeiro projeto se iniciou, ainda havia mais de 2 mil presos provisrios custodiados em delegacias fluminenses. A partir de janeiro de 2011 ficou proibida a entrada de novos detentos em carceragens policiais e eles passaram a ser encaminhados diretamente a casas de custdia do sistema penitencirio estadual. em junho de 2012, as ltimas carceragens policiais foram extintas no estado, com a transferncia dos presos provisrios remanescentes para a recm inaugurada Cadeia Pblica Hlio Gomes, no Complexo Penitencirio de Mag.

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    o objetivo imediato era obter liberdade processual no menor prazo possvel para o maior nmero de pessoas e o objetivo mais geral, mensurar e avaliar os impactos dessa assistncia, comparada da defensoria pblica e de advogados particulares no vinculados ao projeto. graas ao apoio da open society Foundations, parceria estabelecida entre a ArP e a Polcia civil do estado do rio de Janeiro, e colaborao do Tribunal de Justia do estado, foi possvel assistir diretamente a 130 presos provisrios, acusados de crimes contra o patrimnio sem violncia nem grave ameaa e de trfico de drogas sem ligao com faces criminosas ou seja, de tipos de delitos para os quais a legislao brasileira faculta liberdade durante o processo.

    o trabalho revelou que cerca de 2/3 dos presos provisrios com desfecho processual conhecido estavam encarcerados ilegalmente, quer pelo fato de os juzes no concederem a liberdade mesmo quando garantida pela legislao, quer porque os promotores no exerciam seu papel de fiscais da lei e/ou porque os defensores pblicos no formulavam pedidos de liberdade nos primeiros 20 dias aps a distribuio do Auto de Flagrante, como reza a norma legal. comprovou-se tambm que a assistncia de advogados particulares geralmente s acessvel a quem tem recursos para pag-la, mas oferecida gratuitamente aos presos includos no experimento da ARP mais eficaz em obter a liberdade do que aquela prestada pela defensoria pblica. Isso atesta claramente o carter seletivo do sistema de justia criminal brasileiro, com sua opo preferencial pelos pobres, e mostra o quanto o funcionamento de tal sistema ainda est distante do mnimo compatvel com um estado democrtico de direito.3

    Em julho de 2011, quando esse primeiro projeto chegava ao fim, entrou em vigor a Lei 12.403, ou Lei das medidas cautelares, que abria para o Judicirio um grande leque de alternativas priso processual e que, em princpio, deveria contribuir para uma significativa reduo do nmero de presos provisrios no pas, beneficiando sobretudo os (muitos) rus acusados de delitos para os quais a pena, ao final do processo, no seria de privao da liberdade.4

    Monitorar os efeitos da nova lei e verificar se de fato ela contribua para ampliar o acesso s garantias constitucionais dos acusados de crimes tornou-se ento o objetivo de um novo projeto, desenvolvido pela ArP e pelo cesec entre julho de 2012 e outubro de 2013, outra vez com apoio da Open Society Foundations. Os resultados desse projeto, expostos no presente trabalho, derivaram de uma combinao de pesquisas quantitativa e qualitativa, em que se analisaram

    3 Os resultados completos do estudo foram divulgados na publicao Impacto da assistncia jurdica a presos provisrios: um experimento na cidade do Rio de Janeiro, disponvel em http://www.ucamcesec.com.br/wordpress/wp-content/uploads/2011/09/PresosProvisorios_final.pdf.

    4 O texto integral da Lei 12.403 pode ser consultado em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12403.htm.

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    processos, entrevistaram-se operadores do direito e observaram-se diretamente audincias de instruo e julgamento. Como no experimento anterior, a rea geogrfica focalizada foi a cidade do rio de Janeiro.

    Por meio da anlise quantitativa, buscou-se mensurar o impacto da Lei 12.403/2011 na observncia do direito dos acusados de responderem a processo em liberdade e procurou-se identificar que medidas cautelares, do rol proposto na lei, os juzes fluminenses teriam passado a adotar como alternativa priso. Para isso, construiu-se um banco de dados com todos os Autos de Priso em Flagrante, relativos a qualquer tipo de crime, distribudos no frum da capital do estado do rio de Janeiro durante o ano de 2011. A partir de informaes processuais bsicas coletadas nas atas de distribuio,5 obtiveram-se no site do TJ-rJ os dados necessrios para analisar a situao jurdica de 6.084 rus envolvidos num total de 5.432 processos.6 desse conjunto de acusados, 3.339 haviam sido detidos antes de 7 de julho de 2011, quando a nova lei entrou em vigor, e 2.745, depois sendo a comparao entre os dois grupos o mtodo adotado para se avaliar quantitativamente os impactos da lei. entretanto, por diversos motivos, sobretudo por falta de informaes bsicas, foi necessrio eliminar da anlise uma parte dos casos, cujo total se reduziu a 4.859 acusados, 2.653 deles (55%) detidos antes e 2.206 (45%) depois da entrada em vigor da Lei 12.403/2011.7

    A pesquisa qualitativa, por sua vez, objetivou captar opinies e percepes dos operadores do direito sobre a Lei das cautelares e, mais genericamente, sobre priso provisria e liberdade processual, bem como observar o comportamento de promotores, magistrados e defensores em audincias de instruo e julgamento posteriores entrada em vigor da lei. Foram realizadas, no total, 36 entrevistas com juzes, promotores de justia, defensores pblicos, advogados particulares e delegados de polcia, e acompanharam-se dez audincias escolhidas aleatoriamente no Frum Central da Capital do Rio de Janeiro. Tambm se examinaram cerca de 800 decises judiciais, com o intuito de conhecer os argumentos dos magistrados para justificar a priso provisria na vigncia da nova lei.

    5 documento por meio do qual se podem consultar todos os processos distribudos num determinado dia no Tribunal de Justia do estado do rio de Janeiro.

    6 Convm lembrar que uma mesma pessoa pode ser ru em mais de um processo, logo o total de rus no corresponde necessariamente a um conjunto de pessoas diferentes.

    7 O total de 4.859 refere-se aos casos no arquivados e nos quais havia informao sobre a primeira medida cautelar imposta pelo juiz logo aps a distribuio do Auto de Priso em Flagrante.

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    1. A priso provisria antes e depois da Lei 12.403/2011

    1.1. Quando a exceo a regra

    AT O PRIMEIRO SEMESTRE DE 2011, os juzes escolhiam entre manter os rus presos durante o processo ou conceder-lhes o direito de responder em liberdade, geralmente sob determinadas condies, como o comparecimento peridico em juzo e a comunicao sobre deslocamento para fora da comarca. no j mencionado projeto desenvolvido pela ArP em 2010-11, constatou-se que os magistrados fluminenses claramente preferiam a priso provisria, o que em princpio poderia ser atribudo ao estreito leque de medidas cautelares alternativas de que dispunham. com o advento, em julho de 2011, da Lei 12.403, ampliando sobremaneira o rol de medidas aplicveis isolada ou cumulativamente, seria de esperar que a maior margem de escolha oferecida aos juzes resultasse em expressiva diminuio do recurso priso provisria. Certamente era essa a inteno da lei, cuja observncia deveria fortalecer o princpio da presuno de inocncia e racionalizar o uso da priso cautelar.

    Mas, na prtica, no foi exatamente o que ocorreu. Como j havia apontado o projeto anterior da ARP, a presente pesquisa constatou que a priso provisria de longe a medida cautelar mais adotada e que continuou a prevalecer amplamente no ano de entrada em vigor da Lei 12.403. o que mostra o Grfico 1, a seguir, retratando os percentuais de detidos em flagrante em 2011 que permaneceram ou no presos aps a primeira medida cautelar.8 Como se v, nada menos de 79% das 4.859 decises judiciais conhecidas, relativas a flagrantes de todos os tipos de crimes no ano de 2011, resultaram em privao da liberdade dos acusados.

    8 O clculo se baseia na primeira deciso do juiz logo aps a priso em flagrante. Alm da priso provisria propriamente dita, foram includas nessa categoria a priso domiciliar e a internao provisria, cujos nmeros, no entanto, so muito pequenos (1 e 3 casos, respectivamente). Ressalte-se que, por lei, a primeira deciso judicial sobre o direito de responder ao processo em liberdade deve ocorrer em at 48h aps a priso em flagrante, mas a liberdade tambm pode ser concedida em outro momento no curso do processo.

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    Para verificar se e como variavam as decises judiciais de acordo com diferentes tipos de crimes, desconsideraram-se os casos em que o ru era acusado de mais de um delito, visto que um tipo penal pode interferir na medida adotada para outro. Com isso, a anlise se restringiu a 3.993 casos, sendo 2.153 anteriores e 1.780 posteriores ao advento da nova lei. Observa-se, no Grfico 2, que somente em duas modalidades prevaleceram medidas alternativas ao encarceramento: falsificao de sinal de fiscalizao alfandegria (147 rus, dos quais apenas dois ficaram em priso provisria) e violao de direito autoral (71 acusados, dos quais 11 permaneceram presos).

    embora se perceba uma relao entre gravidade do crime e proporo de prises aplicadas, nota-se que na quase totalidade dos casos de trfico de drogas, independentemente da gravidade da acusao (por exemplo, o fato de o ru estar ou no vinculado a faco criminosa), a primeira deciso do juiz foi a priso preventiva: de 440 flagrantes de trfico (sem associao com outros crimes) distribudos em 2011, apenas seis receberam outro tipo de medida cautelar que no a priso.

    Nota-se ainda, no Grfico 2, que 90% dos casos de porte ilegal de armas foram tratados com priso preventiva, embora a legislao faculte, para esse tipo de delito, a arbitragem de fiana pelo delegado ou pelo juiz. e mesmo os acusados de crimes no-violentos contra o patrimnio, como receptao, furto e estelionato, tiveram, na maioria, o flagrante convertido em priso provisria.

    Entre as justificativas ouvidas com mais frequncia nas entrevistas para o amplo uso da priso cautelar est a da falta de documentao que comprove residncia e trabalho lcito do ru condies supostamente imprescindveis para se conceder liberdade processual. Tal justificativa ser discutida mais em detalhe no captulo 2, mas vale a pena citar aqui o argumento de um magistrado, que ilustra bem essa posio:

    Priso provisria

    3.818 (79%)

    Outras medidas

    1.041 (21%)

    Grfico 1. Primeira medida cautelar imposta aps a priso em flagrante para todos os tipos de crimes no ano de 2011

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    Grfico 2. Primeira medida cautelar imposta aps a priso em flagrante no ano de 2011, por tipo de crime (em %)

    (*) Foram agrupados na rubrica outros todos os delitos com menos de 60 casos, exceto homicdio

    Se concedida a liberdade, alguns rus a gente no consegue depois obter endereo, porque no tem endereo no TER [Tribunal Regional Eleitoral], que so os rgos que a gente oficia. A Receita Federal, o Infoseg, e o TRE, so os rgos que normalmente a gente oficia para tentar obter o endereo. Normalmente, os criminosos no so eleitores, ento no tm endereo no TRE. Isso inviabiliza. A fica um monte de processo parado, suspenso, porque no tem como dar andamento, e acaba ficando muito tempo, vai prescrevendo, quer dizer, a prestao jurisdicional acaba ficando frustrada. Estando preso, a gente sabe que vai conseguir finalizar o processo, ainda que depois ele suma, no d cumprimento pena, mas a outra etapa (Juiz 5).

    Revela-se a que a preocupao com o cumprimento de metas (nmero de processos concludos) pode sobrepor-se obrigao de respeitar o direito dos rus. A priso provisria por falta de documentos fere no s o princpio da presuno de inocncia como o do nus da prova para quem acusa, alm de descumprir a legislao quando se trata de crimes para os quais est

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    prevista a liberdade processual. mas nada disso parece ter relevncia diante dos supostos riscos de fuga do ru e prescrio do processo. Embora seja evidentemente legtima a preocupao com a celeridade e a finalizao das aes judiciais, resulta um contrassenso a noo de que, em nome disso, possam-se violar garantias legais dos acusados para no frustrar a prestao jurisdicional. Afinal, o objetivo dessa prestao no justamente assegurar o cumprimento da lei?

    Surpreende tambm no depoimento acima a aparente desimportncia atribuda ao cumprimento da pena aps a concluso do processo. Como diz o entrevistado, ainda que depois [o ru] suma, isso ocorrer numa outra etapa, j sob responsabilidade de outro juiz. Pode-se inferir dessa fala que no h maiores preocupaes com a punio pelo crime cometido, apenas com o encerramento da fase processual. ou, pelo contrrio, numa interpretao ainda mais pessimista, que se trata de punir o ru por antecipao, mantendo-o encarcerado, uma vez que no h garantia do cumprimento da pena ao final do processo.

    1.2. Mensurando o impacto da nova lei

    A Fim de AvALiAr os eFeiTos dA Lei 12.403 no uso da priso provisria, compararam-se as primeiras medidas relativas priso ou liberdade dos rus adotadas pelos juzes em dois momentos de 1 de janeiro a 6 de julho de 2011, antes da vigncia dessa lei, e de 7 de julho a 31 de dezembro do mesmo ano, quando ela j estava em vigor. os dois perodos, por simplicidade, sero doravante denominados primeiro e segundo semestres de 2011.

    A expectativa inicial era de que a nova norma, abrindo aos juzes um leque muito maior de medidas cautelares aplicveis, causasse de imediato uma reduo significativa das decises de priso, perceptvel nos dados do segundo semestre do ano. Para essa anlise foram considerados 4.859 casos no arquivados e com informao sobre a primeira medida cautelar adotada. Era importante assegurar, metodologicamente, a no interferncia de outros fatores alm da entrada em vigor da lei, de modo a no enviesar a comparao o que ocorreria, por exemplo, se o percentual de casos arquivados fosse mais alto no primeiro do que no segundo semestre, ou se, num dos dois perodos, houvesse uma proporo muito maior de processos sem informao sobre a primeira medida aplicada. As diferenas, entretanto, foram pouco significativas: arquivaram-se 13,3% dos casos no primeiro semestre e 11,3% no segundo; dos no arquivados, a proporo de informaes faltantes sobre a primeira deciso variou de 8,4% a 9,4% entre os dois perodos.

    No Grfico 3, a seguir, constata-se, como esperado, uma queda na aplicao da priso provisria depois da vigncia da Lei 12.403/2011, mas tambm se nota que a medida continuou a predominar

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    amplamente, ou seja, que o impacto da nova lei, pelo menos no agregado dos casos e num horizonte temporal imediato, foi muito inferior ao que se poderia esperar, considerando a maior margem de escolha subitamente posta disposio dos juzes.

    Por outro lado, na comparao desagregada por tipo de crime (Grfico 4), observam-se significativas redues do uso da priso provisria, entre um semestre e outro, para os delitos de violao de direito autoral e falsificao de sinal alfandegrio, assim como para os crimes no-violentos contra o patrimnio (furto, receptao, estelionato), ao passo que para roubo, trfico de drogas, homicdio e porte ilegal de arma, as mudanas foram muito pequenas ou nulas. vale dizer, a nova lei teve impacto bem maior sobre os crimes menos graves do que sobre os mais graves. Mas, ainda assim, cerca de metade das prises em flagrante por crimes sem violncia como furto, estelionato e receptao continuaram sendo convertidas em prises provisrias no perodo de vigncia da lei.

    Quando se examina a evoluo dos roubos e furtos por ms de distribuio dos autos de priso em flagrante, chamam ateno os diferentes comportamentos apresentados pelos tipos simples e qualificados no primeiro e no segundo semestres de 2011 (Grfico 5). Enquanto os flagrantes de furto e de roubo simples caem abruptamente em julho, ms da entrada em vigor da nova lei, os de furto qualificado e roubo circunstanciado aumentam, tambm de forma repentina, nesse mesmo ms.9

    Tem-se a um indcio de que a tipificao inicial dos delitos possa ter sido endurecida com a entrada em vigor da lei, talvez numa tentativa de assegurar a imposio de priso provisria para rus que deveriam ficar em liberdade. Se, como os dados sugerem, essa foi uma estratgia

    9 Apesar de as sries serem muito curtas para que se obtenham estimativas estveis, as correlaes negativas entre crime simples e crime qualificado ou circunstanciado so muito altas: no caso de furtos, o ndice de correlao de Pearson entre as duas sries -90 e no de roubos, -0,97.

    Grfico 3. Priso provisria como primeira medida cautelar, antes e depois da Lei 12.403/2011 (em %)

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    Grfico 4. Priso provisria imposta na primeira deciso do juiz, antes e depois da Lei 12.403/2011, por tipo de crime (em %)*

    (*) Considerando 3.993 casos de acusados por um nico crime, 2.153 anteriores e 1.780 posteriores ao advento da nova lei.

    Grfico 5. Nmero de prises em flagrante por furto, furto qualificado, roubo e roubo circunstanciado, segundo ms da distribuio

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    consciente dos delegados, ela no parece ter tido muito sucesso, pois a proporo de prises provisrias aplicadas como primeira medida pelos juzes reduziu-se expressivamente no s nos casos de furtos simples, mas tambm, ainda que em menor grau, no de qualificados, enquanto, para os casos de roubo, tanto simples como circunstanciados, as variaes foram nulas ou muito pequenas (ver Grfico 4, acima).

    1.3. Desproporcionalidade entre medida e sentena

    NA DECISO SOBRE COMO O Ru RESPONDER a processo (se solto ou preso), os operadores do direito devem levar em considerao o resultado esperado desse processo, ou seja, a provvel pena a ser aplicada ao caso em questo, segundo os critrios legais. Portanto, de acordo com o princpio da proporcionalidade ou da homogeneidade, no caberia impor priso provisria a casos em que, no final do processo, havendo condenao, o acusado muito provavelmente receber uma pena alternativa priso ou uma pena de priso em regime aberto.

    Dos 4.859 casos no arquivados e com informao sobre medida cautelar que a pesquisa analisou, 3.672 (75,6% do total) haviam atingido a fase da sentena em janeiro de 2013, quando da ltima consulta ao sistema do TJ-RJ, e continham informao sobre a sentena final proferida. A proporo de casos sem informao de desfecho (24,4% do total) foi mais alta entre os iniciados com flagrante no segundo semestre do ano (28,6%) do que entre os iniciados no primeiro (20,9%), o que pode implicar algum vis na comparao entre os dois perodos, embora nada indique a ocorrncia de distores muito significativas.

    Como se observa na Tabela 1, ao longo de todo o ano de 2011 s 30,9% dos casos vlidos resultaram em condenaes a priso em regime fechado10 e outros 18,7% a priso em regime semiaberto.

    essa distribuio praticamente no se altera entre o primeiro e o segundo semestres de 2011, mas h uma ligeira diminuio das penas privativas de liberdade e um pequeno aumento tanto dos outros tipos de penas quanto das absolvies (Grfico 6). De qualquer modo, antes ou depois da vigncia da nova lei, cerca de 2/3 das pessoas detidas em flagrante, no universo de casos vlidos (isto , no arquivados e com informao de desfecho processual), recebeu ao final do processo uma sentena distinta da priso em regime fechado.

    10 Incluindo 9 medidas de internao que, embora no sejam definidas como punies, implicam igualmente a privao de liberdade do sentenciado.

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    Tabela 1. resultado de processos iniciados em 2011 com priso em flagrante e concludos at janeiro de 2013

    Sentena Nmero % % de casos vlidos

    condenao a regime fechado 1.136 23,4 30,9

    condenao a regime semiaberto 686 14,1 18,7

    condenao a regime aberto 169 3,5 4,6

    outras penas 584 12,0 15,9

    Absolvio 288 5,9 7,8

    outras situaes processuais 759 15,6 20,7

    Ru revel 50 1,0 1,4

    Total com informao 3.672 75,6 100,0

    sem informao 1.187 24,4 -

    Total de casos 4.859 100,0 -

    Grfico 6. Resultado de processos iniciados em 2011 com priso em flagrante, antes e depois da Lei 12.403, e concludos at janeiro de 2013 (em %)*

    (*) Considerados 3.672 casos com informao sobre desfecho do processo, sendo 2.098 originados de flagrantes anteriores e 1.574 posteriores entrada em vigor da nova lei.

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    (*) Considerados 3.015 casos com informao sobre desfecho do processo e relativos a acusados de um nico crime, sendo 1.742 anteriores e 1.273 posteriores entrada em vigor da nova lei. No entraram no grfico os tipos de crimes com menos de 100 sentenas, para no gerar percentuais muito instveis. o caso, por exemplo, dos 67 processos de homicdio iniciados com flagrante em 2011, dos quais apenas 23 haviam chegado a termo em janeiro de 2013.

    Grfico 7. Condenaes a pena de priso em regime fechado para processos iniciados com flagrante em 2011, antes e depois da Lei 12.403, e concludos at janeiro de 2013, segundo tipo de crime (em %)*

    Levando em considerao o tipo de crime (Grfico 7), verifica-se que s os acusados de roubo e trfico de drogas receberam majoritariamente condenaes a regime fechado; nas demais modalidades de delitos, a maioria dos processos acabou sem condenao ou com penas distintas da privao completa da liberdade.

    Para uma avaliao mais precisa do grau em que a priso provisria est sendo usada indevidamente, necessrio, porm, verificar qual a percentagem de casos que terminaram com sentenas diversas da privao de liberdade sobre o total de acusados que receberam como primeira medida cautelar a priso preventiva. Focalizando apenas os casos com informao sobre desfecho do processo e acusao de um nico tipo de crime, o universo de anlise fica circunscrito a 3.015 decises judiciais, como no Grfico 7. fundamental ressaltar que esse subuniverso no representa necessariamente, em termos estatsticos, o total de flagrantes ocorridos no ano de 2011, pois no deriva de escolha aleatria e sim da aplicao de sucessivos filtros, que, como j mencionado, podem introduzir algum tipo de vis nos resultados. Logo, o

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    que se segue apenas um exerccio ilustrativo, vlido para os 3.015 casos examinados, mas no generalizvel automaticamente ao conjunto das decises judiciais do TJ/rJ.

    A primeira parte do Grfico 8 mostra que s 1/3 dos rus que permaneceram presos aps o flagrante terminaram recebendo uma sentena de priso em regime fechado. Considerando-se que a priso cautelar muitas vezes dura semanas ou meses e que transcorre sempre em regime fechado, possvel afirmar que 2/3 das prises preventivas impostas ao conjunto de casos em anlise funcionaram como antecipao agravada da pena, j que ao final do processo os rus no foram sentenciados privao completa da liberdade. Em outras palavras, pode-se afirmar que uma parcela muito significativa das prises provisrias foi imposta abusivamente, isto , em franco conflito com o princpio de proporcionalidade entre medida cautelar e punio aplicada: nada menos de 42% dos acusados que foram mantidos presos aps o flagrante terminaram cumprindo penas diversas da priso ou, quando muito, uma pena de priso em regime aberto; 6% foram absolvidos e 15% enquadraram-se em outras situaes processuais, como suspenso condicional do processo ou da pena, extino de punibilidade ou rejeio da denncia.

    Grfico 8. Resultado de processos iniciados em 2011 com priso em flagrante e concludos at janeiro de 2013, segundo a primeira medida cautelar aplicada

    8.1. Priso preventiva (n = 2.243) 8.2. Outras medidas (n = 572)

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    J a segunda parte do grfico (8.2) exibe a distribuio de desfechos processuais para o grupo dos que receberam, logo aps o flagrante, outros tipos de medidas cautelares que no a priso preventiva. Observa-se que s 2,3% dos rus desse grupo tiveram no final uma condenao priso em regime semiaberto ou fechado; 20,8% foram punidos com regime aberto ou penas alternativas (pecunirias, de prestao de servios etc.) e a grande maioria sequer foi condenada: ou recebeu absolvio, ou recaiu em outras situaes processuais. cabe ressaltar, contudo, que o total de pessoas a que se refere a figura 8.2 no chega a 20% do total de rus considerados na anlise.

    1.4. Dois casos extremos: furto e trfico de drogas

    vALe A PenA um exAme mAis deTido dos casos de furto e de trfico de drogas, pelo peso que representam no total das 6.084 decises judiciais da comarca do Rio de Janeiro em 2011 (24,8% e 14,1%, respectivamente) e tambm por motivarem atitudes muito distintas ou mesmo opostas no que se refere concesso ou no de liberdade processual.

    A Lei 12.403, em seu artigo 313, I, admite a priso provisria nos casos em que a pena mxima prevista para o delito seja superior a quatro anos; logo, para crimes com pena mxima inferior a essa, o acusado deveria responder em liberdade ao processo. Cabe lembrar tambm que o Cdigo Penal brasileiro (art. 44, 3) permite aplicar pena restritiva de direitos a rus cuja pena de at quatro anos, quando tiverem praticado crimes sem violncia ou grave ameaa pessoa, e mesmo se forem reincidentes.

    O crime de furto enquadra-se nesse caso, sendo considerado de mdio potencial ofensivo pelos operadores do direito que a pesquisa entrevistou; no deveria aplicar-se a ele, portanto, a priso processual, salvo quando associado a outros delitos mais graves, sujeitos a penas maiores, ou quando a liberdade do ru pudesse comprometer o andamento do processo, por exemplo, por coao de testemunhas ou destruio de provas. mas, embora, aps a entrada em vigor da nova lei, tenha havido significativa queda na aplicao dessa medida aos casos de furto, ela continuava sendo imposta a praticamente metade dos acusados no segundo semestre de 2011 (Grfico 9) o que no condiz com a afirmativa recorrente de juzes e promotores ouvidos pela pesquisa de que a nova lei teria tornado quase automtica a concesso de liberdade processual para os casos de furto simples (ver, adiante, Captulo 2).

    A exigncia de comparecimento em juzo, utilizada antes da nova lei como condio para a liberdade provisria e transformada por essa lei em medida cautelar, teve pouca variao entre

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    os dois perodos. A grande diferena se verificou nas fianas em sede policial, que, antes praticamente inexistentes, passaram a ser aplicadas a mais de um em cada cinco casos de furto. e, embora a priso provisria ainda prevalea entre as primeiras medidas adotadas pelos juzes, mesmo aps a mudana legislativa, seria razovel esperar que, com o transcurso do tempo, se acentuasse a tendncia ao uso cada vez menor desse recurso para o crime em questo, com o consequente aumento de outras medidas cautelares que no implicam privao de liberdade para o acusado.

    Convm notar que menos de 10% dos processos de furto com desfecho conhecidos resultaram em sentenas de priso em regime fechado, aps a vigncia da Lei 12.403, e outros 18% em regime semiaberto, como mostra o Grfico 10.

    Se, no caso do furto, o impacto da nova lei perceptvel, ainda que no to radical quanto acreditam alguns dos operadores entrevistados, o trfico de drogas representa o extremo oposto: mesmo depois da entrada em vigor da Lei 12.403, praticamente a totalidade dos casos (98%) continuou recebendo como primeira medida a priso provisria um tratamento mais drstico at que o dispensado aos casos de homicdio, em que 91 a 93% dos acusados permaneceram presos durante o processo aps a vigncia da lei (ver Grfico 4, mais acima).

    Observe-se que, dos processos por trfico com informao de desfecho, cerca de metade resultou em sentenas de priso em regime fechado e cerca de 8%, em regime semiaberto, como se v no Grfico 11. Embora alta, a primeira proporo bem inferior de prises impostas

    Grfico 9. Primeira medida cautelar imposta aps a priso em flagrante por furto no ano de 2011, antes e depois da Lei 12.403 (em %)*

    (*) Considerados 849 casos de furto no arquivados, com informao sobre primeira medida imposta e relativos a acusados desse nico crime, sendo 604 anteriores e 245 posteriores entrada em vigor da nova lei.

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    Grfico 10. Resultado de processos de furto iniciados em 2011 com priso em flagrante, antes e depois da Lei 12.403, e concludos at janeiro de 2013 (em %)*

    (*) Considerados 623 casos de furto no arquivados, com informao sobre desfecho do processo e relativos a acusados desse nico crime, sendo 459 anteriores e 164 posteriores entrada em vigor da nova lei.

    Grfico 11. Resultado de processos de trfico de drogas iniciados em 2011 com priso em flagrante, antes e depois da Lei 12.403, e concludos at janeiro de 2013 (em %)*

    (*) Considerados 397 casos de trfico no arquivados, com informao sobre desfecho do processo e relativos a acusados desse nico crime, sendo 226 anteriores e 171 posteriores entrada em vigor da nova lei.

    inicialmente, evidenciando que a aplicao quase automtica da priso provisria para os acusados de trfico no leva em conta, como deveria, a possibilidade de que muitos deles no venham a ser punidos com a privao completa da liberdade ao final do processo.

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    A partir das entrevistas realizadas com juzes e analisadas mais detalhadamente no segundo captulo deste trabalho, foi possvel perceber que se recorre priso processual mesmo quando no h convico de tratar-se efetivamente de trfico de drogas, uma vez que a lei brasileira deixa ampla margem de discricionariedade na definio de quem seja usurio ou traficante. No s a tipificao inicial do delito pela polcia pode ser falha e enviesada, ou no conter elementos suficientes para identificar a natureza do fato, como a prpria priso pode ter sido ilegal. Mas, conforme explicitam alguns juzes, a dvida e a ausncia de provas, em vez de faz-los pender para a concesso de liberdade ao acusado, leva-os a optar pela manuteno da priso.

    E, o que pior, essa primeira rotulao, muitas vezes incapaz de convencer os prprios magistrados, no tende a se alterar durante o processo, quando em geral a nica nova evidncia que surge o laudo definitivo de constatao de substncia entorpecente. No h, via de regra, aprofundamento da investigao preliminar feita no auto de priso em flagrante, o que implica supervalorizao do testemunho dos policiais que efetuaram a priso, ou, mais do que isso, a presuno de veracidade do Auto de Priso em Flagrante, no lugar da presuno de inocncia do ru.11

    como se ver mais detalhadamente na parte qualitativa deste trabalho, o uso generalizado e indiscriminado da priso provisria para os casos de trfico de drogas decorre tambm da periculosidade genericamente atribuda a esse tipo de crime e a seus autores, no obstante as fortes evidncias de que a maior parte dos ditos traficantes de drogas que superlotam as prises brasileiras no corresponde ao imaginrio assustador que povoa o senso comum e informa as escolhas dos magistrados. O trecho da deciso abaixo, justificando a imposio de priso provisria a um acusado de trfico, ilustra bem a influncia desse imaginrio demonizador, sancionado pela lei brasileira, que define o trfico como crime hediondo:

    ... o trfico de drogas o grande responsvel pela guerra civil no declarada vivida na sociedade carioca, sendo a conduta atribuda ao indiciado de natureza hedionda, em tese, relevante para a disseminao das substncias entorpecentes, gerando inseguran-a e fragilidade populao, demandando, desse modo, a restrio ambulatorial do de-nunciado para o resguardo da ordem pblica... (Processo 0249862-65.2011.8.19.0001)

    11 Pesquisa realizada pelo NEV/uSP mostrou que em 74% das prises em flagrante por trfico na cidade de So Paulo, entre novembro de 2010 e janeiro de 2011, os policiais que efetuaram a priso eram as nicas testemunhas, sendo que, em 48% dos casos, a pessoa no portava nenhuma substncia no momento da priso; nesses casos, portanto, o vnculo entre o acusado e a droga foi estabelecido exclusivamente pela palavra dos policiais. Cf. JESuS, Maria Gorete marques de et al. Priso Provisria e Lei de Drogas Um estudo sobre os flagrantes de trfico de drogas na cidade de So Paulo. so Paulo, nev/usP 2011. [disponvel em http://www.nevusp.org/portugues/index.php?option=com_ content&task=view&id=2513&Itemid=96]

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    1.5. Suspenso condicional do processo

    A LEI 9.099/1995, que criou os Juizados especiais criminais para processarem e julgarem crimes de menor potencial ofensivo, prev em seu artigo 89 a possibilidade de suspenso condicional do processo, ou sursis processual, desde que preenchidos certos requisitos, como o de ser o acusado primrio e no responder a outro processo, alm de a pena mnima prevista para o delito ser de at um ano. Nesse caso, o ru tem direito suspenso condicional do processo pelo perodo mnimo de dois anos, durante o qual dever cumprir algumas condies impostas pelo juzo e ao fim do qual, no tendo sido revogado o sursis, a punibilidade ficar extinta.

    Na presente pesquisa verificou-se que 713 (19,5%) dos 3.663 casos no arquivados com informao de desfecho terminaram em suspenso condicional do processo. contudo, aproximadamente 17% desses 713 acusados permaneceram presos at a audincia especial, um perodo que muitas vezes se prolonga para a realizao de diligncias, como a obteno da Folha de Antecedentes Criminais (FAC) e outros esclarecimentos. A morosidade no fornecimento da documentao, pelo qual o prprio Estado responsvel, constitui, assim, mais um dos fatores que conspiram contra os direitos dos acusados, como ilustra o depoimento de um juiz, a seguir:

    Existe um problema que a eu considero por dficit de estrutura. Muitas vezes existe a dificuldade da apreciao dessas medidas. Por qu? A gente no tem acesso FAC, o sistema do Sipem muitas vezes no funciona, em sede de planto voc no tem informaes, muitas vezes quando vem... a gente entra no portal da Secretaria de Segurana e constata que o ru tem outras passagens, mas a gente no consegue esclarecer essas passagens... (Juiz 4)

    1.6. Medidas cautelares utilizadas

    1.6.1. Alternativas priso

    PubLicAdA em mAio de 2011 e tornada de aplicao obrigatria 60 dias depois, a Lei 12.403 foi recebida por alguns meios de comunicao em tons alarmistas, com manchetes sugerindo que seus efeitos seriam a abertura indiscriminada das cadeias e a soltura imediata de dezenas de milhares de presos, para alegria dos criminosos e desespero do cidado de bem.12

    12 uOL Notcias (matria consultada em julho de 2011 e no mais disponvel no site).

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    outros, contudo, ressaltaram aspectos positivos da lei, como a reduo da superlotao das cadeias, a economia de gastos pblicos com a manuteno do sistema e o fim da punio excessiva e antecipada dos chamados ladres de galinha.13

    A nova legislao, como j dito, inseriu no ordenamento jurdico brasileiro um conjunto de medidas cautelares diversas da priso provisria, para que esta deixasse de ser a regra durante a tramitao dos processos. Nos termos do artigo 319 do CPP, alterado pela lei 12.403, so as seguintes as medidas aplicveis isolada ou cumulativamente:14

    I. Comparecimento peridico em juzo, no prazo e nas condies fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;

    II. Proibio de acesso ou frequncia a determinados lugares quando, por circunstncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infraes;

    iii. Proibio de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;

    IV. Proibio de ausentar-se da comarca quando a permanncia seja conveniente ou necessria para a investigao ou instruo;

    v. recolhimento domiciliar no perodo noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residncia e trabalho fixos;

    VI. Suspenso do exerccio de funo pblica ou de atividade de natureza econmica ou financeira quando houver justo receio de sua utilizao para a prtica de infraes penais;

    VII. Internao provisria do acusado nas hipteses de crimes praticados com violncia ou grave ameaa, quando os peritos conclurem ser inimputvel ou semi-imputvel (art. 26 do Cdigo Penal) e houver risco de reiterao;

    viii. Fiana, nas infraes que a admitem para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstruo do seu andamento ou em caso de resistncia injustificada ordem judicial;

    ix. monitorao eletrnica.

    13 O Estado de So Paulo, 01/07/2011. [Disponvel em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,pais-tera-de-rever-casos-de-ladroes-de-galinha,739275,0.htm. ltimo acesso: outubro de 2013]

    14 Lei n 12.403, de 4 de maio de 2011. Altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Cdigo de Processo Penal, relativos priso processual, fiana, liberdade provisria, demais medidas cautelares, e d outras providncias. [Disponvel em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12403.htm]. Continuam constituindo medidas cautelares a priso domiciliar (CPP, art. 317) e a priso provisria (art. 310).

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    Como se viu mais acima (Grfico 1), a priso provisria foi de longe a primeira medida mais aplicada pelos juzes, logo aps a distribuio do Auto de Flagrante, ao longo do ano de 2011, inclusive na vigncia da nova lei. Considerando agora todas as medidas cautelares impostas em diferentes momentos dos processos iniciados nesse ano, a Tabela 2 confirma a ampla prevalncia da priso provisria nas 4.859 decises no arquivadas, com informao sobre medidas, que a pesquisa analisou.

    Note-se que, alm da priso, s duas outras medidas previstas pela lei tiveram algum peso significativo no conjunto dessas decises o comparecimento em juzo e a fiana em sede policial todas as demais tendo participao muito pequena ou mesmo nula durante o perodo focalizado.

    Para avaliar o impacto da Lei 12.403/2011 nos seis meses posteriores sua entrada em vigor, a Tabela 3 discrimina a aplicao de medidas cautelares anteriores e posteriores a essa data, sempre levando em conta todas aquelas aplicadas em diversas etapas do processo, e no

    Tabela 2. Medidas cautelares aplicadas aos casos de priso em flagrante em 2011*

    Tipo de medida N de medidas% do total de

    casos**

    Priso provisria 3.849 79,2

    comparecimento em juzo 1.442 29,7

    Fiana em sede policial 447 9,2

    Proibio de ausentar-se da comarca 115 2,4

    Proibio de acesso ou frequncia a determinados lugares 52 1,1

    Fiana em juzo 50 1,0

    Proibio de manter contato com pessoa determinada 44 0,9

    recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga 32 0,7

    internao provisria 8 0,2

    Priso domiciliar 4 0,1

    monitorao eletrnica 2 0,0

    Total de medidas 6.045 _

    (*) Trata-se dos 4.859 casos no arquivados e com informao sobre alguma medida cautelar. (**) Os percentuais da coluna somam mais de 100% porque diversos casos receberam mais de uma medida.

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    apenas no momento inicial. observa-se, em primeiro lugar, que h de fato uma queda dos casos submetidos a prises provisrias, embora no muito acentuada (pouco menos de 13%) e uma reduo da parcela de medidas de comparecimento em juzo. Tais redues entre o primeiro e o segundo semestres de 2011 foram compensadas por um significativo crescimento das fianas em sede policial que, de 5% do total de casos, passaram a representar 14% e pelo peso maior, embora ainda insignificante, adquirido por outras medidas restritivas como a proibio de ausentar-se da comarca, de manter contato com certas pessoas e de frequentar determinados locais.15

    Tabela 3. Medidas cautelares aplicadas aos casos de priso em flagrante antes e depois da Lei 12.403/2011 (em % do total de casos)*

    Tipo de medida Antes Depois

    Priso provisria 84,1 73,3

    comparecimento em juzo 32,6 26,2

    Fiana em sede policial 5,1 14,2

    Proibio de ausentar-se da comarca 1,0 4,0

    Fiana em juzo 0,6 1,5

    Proibio de manter contato com pessoa determinada 0,5 1,5

    Proibio de acesso ou frequncia a determinados lugares 0,3 2,0

    recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga 0,3 1,1

    internao provisria 0,2 0,2

    Priso domiciliar 0,0 0,1

    monitorao eletrnica 0,0 0,1

    Total de medidas 3.307 2.738

    Total de casos 2.653 2.206

    (*) Trata-se dos 4.859 casos no arquivados e com informao sobre alguma medida cautelar.(**) Os percentuais da coluna somam mais de 100% porque diversos casos receberam mais de uma medida.

    15 cabe notar que o antes e o depois referem-se data em que foi distribudo o Auto de Priso em Flagrante. como a Tabela 3 leva em conta medidas cautelares adotadas em qualquer etapa do processo, no apenas no primeiro momento, algumas das medidas que aparecem na coluna antes podem ter sido aplicadas j depois da vigncia da lei.

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    Os dados comparativos parecem indicar, assim, uma tendncia, ainda que muito tmida, ao maior uso de medidas alternativas manuteno dos rus em priso. Entretanto, s monitoramentos futuros permitiro dizer se isso constitui realmente de uma tendncia e se ela de fato se acelerou nos anos seguintes entrada em vigor da nova lei. Ou se, pelo contrrio, as mudanas verificadas so apenas marginais e, a despeito da disponibilidade de tantas medidas cautelares que no implicam privao da liberdade do ru, a priso provisria continuar sendo regra no sistema judicial fluminense.

    Entre os fatores que no recomendam expectativas muito otimistas est o argumento frequentemente invocado por juzes e promotores de que a verificao do cumprimento de grande parte das medidas previstas na lei invivel com os mecanismos de fiscalizao atualmente existentes, motivo pelo qual os operadores se recusam a aplic-las, temendo a fuga dos rus e a interrupo dos processos. como disse um magistrado,

    ... existem medidas que s existem no papel, no foram efetivamente implementadas pela administrao, seja pelo Executivo, seja pelo Judicirio. Ento se para fazer e se para fiscalizar, voc s pode fazer aquilo que voc efetivamente tem como controlar. Eu s tenho como controlar o comparecimento mensal. Eu vou mandar botar uma tornozeleira eletrnica e vou ficar esperando durante quanto tempo para ela aparecer? (Juiz 1)

    Curiosamente, porm, o comparecimento mensal em juzo, exaltado por esse e por outros entrevistados como sendo o recurso mais controlvel e eficaz, passou a representar uma proporo menor do total de medidas cautelares aplicadas aps a entrada em vigor da nova lei (ver Tabela 3, acima). O que sugere que, ao menos no perodo inicial de vigncia dessa lei e ainda que de forma muito tmida, outras medidas consideradas inviveis por falta de condies de fiscalizao, passaram a ser experimentadas por alguns operadores do sistema de segurana e justia do Rio de Janeiro, muito particularmente a fiana em sede policial.

    1.6.2. Fiana: o preo da liberdade

    AnTes do AdvenTo dA Lei 12.403, o artigo 322 do cdigo de Processo Penal determinava que a autoridade policial s poderia conceder fiana nos casos de infrao punida com deteno ou priso simples; nos demais casos, a medida deveria ser arbitrada pelo juiz. A nova lei ampliou significativamente a abrangncia de situaes s quais se aplica a fiana em sede policial,

  • Usos e abusos da priso provisria no Rio de Janeiro Avaliao do impacto da Lei 12.403/2011 27

    permitindo aos delegados de polcia conced-la aos acusados de qualquer delito punvel com pena mxima de at quatro anos de priso, salvo em alguns casos como quebra de fiana anterior ou quando presentes os motivos que autorizam a decretao da priso preventiva.16

    Nos dados da pesquisa, observa-se um aumento muito expressivo das fianas em sede policial para crimes sem violncia, como receptao (de zero a 32% do total de casos iniciados em 2011); furto (de 1 para 22% ver Grfico 9, mais acima) e violao de direito autoral (de 6 para 76% do total). Com relao aos crimes mais graves, porm, praticamente no houve alteraes. Interessa notar, a propsito, que o grande aumento das fianas para furto refere-se unicamente aos casos de furto simples; j nos de furto qualificado, a mudana foi irrisria: de 2% antes da lei para 3% depois. Aparentemente, como foi sugerido na anlise do Grfico 5, mais acima, os delegados teriam passado, com mais frequncia, a tipificar esse crime de forma mais grave aps a entrada em vigor da nova lei, talvez para induzir os juzes a continuar impondo a priso provisria aos acusados de furto.

    em todo o ano de 2011, levando em conta todos os casos, no s os de crime nico, foram arbitradas por delegados de polcia 447 fianas, 72% das quais relativas aos crimes de violao de direito autoral, falsificao de sinal alfandegrio, furto simples, receptao e estelionato.

    Quando se consideram somente os presos em flagrante por um nico crime, em casos com informao sobre desfecho do processo, o total de fianas em sede policial ao longo do ano de 2011 de 277; na grande maioria, esses casos resultaram em suspenso condicional do processo (65,7%), rejeio da denncia ou absolvio sumria (13%) e absolvio (5,8%), sendo muito pequena a parcela de acusados que cumpriu pena: nenhum deles foi condenado priso e 4,7% foram punidos com prestao de servios comunidade. Interessa notar tambm que em somente 16 dos 277 casos (5,8%) houve suspenso do processo por ausncia do ru percentual muito prximo ao verificado para o conjunto de medidas cautelares diversas da priso provisria (ver Grfico 8.2). Assim, um argumento frequentemente utilizado por operadores do direito contra essas medidas e em favor da permanncia dos rus na cadeia durante o processo no encontra respaldo nos dados obtidos pela pesquisa; esta mostra, ao contrrio, a irracionalidade de tal justificativa: por causa de menos de 6% de rus ausentes, mantm-se encarceradas quase 80% das pessoas que respondem a processo no rio de Janeiro.

    16 nova redao dada pela Lei 12.403/2011 aos artigos 323 e 324 do cPP. disponvel em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12403.htm. A lei tambm exclui expressamente os delitos de racismo, tortura, terrorismo e os chamados crimes hediondos, incluindo trfico de drogas (art. 323 do CPP e art. 2, II, da Lei 8.072/1990).

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    como se ver no segundo captulo, os delegados entrevistados pela pesquisa acreditam que a Lei 12.403 contribuiu significativamente para diminuir o uso da priso provisria e aprovam, sobretudo, a ampliao da margem de ao da polcia, ao permitir-lhes arbitrar fiana para um nmero bem maior de casos. Mas alguns tambm expressaram receio de adotar posturas pr-constituio, concedendo liberdade aos acusados, pois temem ser mal interpretados por juzes e promotores. Vale ressaltar, de qualquer modo, que o expressivo aumento do recurso fiana como medida cautelar para alguns tipos de crimes deveu-se sua maior utilizao pelos delegados de polcia, muito mais do que pelos juzes do tribunal, que aplicaram essa medida a apenas 50 casos (ver Tabela 2, acima), na maioria de furto, estelionato e receptao.

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    2. O que pensam sobre medidas cautelares os operadores

    da justia criminal

    A PesQuisA QuALiTATivA, realizada em delegacias da Polcia civil e em varas criminais do Frum Central da Capital do Rio de Janeiro entre agosto de 2012 e maro de 2013, consistiu em: (a) entrevistas a delegados, juzes, promotores, defensores e advogados privados para conhecer suas vises acerca da Lei das Cautelares; (b) acompanhamento direto de audincias para verificar se e como essa lei est sendo aplicada; e (c) anlise de sentenas, para saber como os magistrados vm justificando a concesso ou no de liberdade processual aps a vigncia da nova lei.

    varas e delegacias foram escolhidas de forma aleatria: sortearam-se dez varas criminais, entre as 28 em funcionamento no Frum da Capital, e cinco delegacias, entre aquelas que encaminham processos diretamente a esse frum. no total, obtiveram-se 36 entrevistas, com roteiros especficos para cada tipo de profissional, distribudas da seguinte maneira: dez juzes, dez promotores pblicos, seis defensores pblicos, cinco advogados particulares e cinco delegados de polcia.

    Os dois blocos iniciais dos roteiros continham perguntas sobre furto e trfico de drogas, com o propsito de entender como a liberdade ou priso provisria era aplicada a esses dois delitos, um de menor potencial ofensivo e outro sujeito a penas maiores. no terceiro bloco havia questes mais gerais sobre a aplicao da Lei 12.403/2011 a qualquer tipo de crime. Para os delegados, contudo, as perguntas focalizaram mais detidamente a questo da fiana em sede policial.

    Alm das entrevistas, a equipe de pesquisa assistiu a dez audincias, uma em cada vara criminal sorteada, utilizando um protocolo de observao padronizado, que estipulava as informaes bsicas a coletar. A escolha das audincias tambm foi relativamente aleatria: chegando vara criminal os pesquisadores observavam a sesso que se estava iniciando, independentemente do crime, do tipo de ru (solto ou preso) ou do tipo de defesa (pblica ou particular) em questo.

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    2.1. Entrevistas

    2.1.1. Juzes

    no Processo PenAL brAsiLeiro, que adota o sistema acusatrio, o juiz tem por atribuio no s decidir se o ru culpado ou inocente como zelar pela legalidade do processo, mantendo postura equidistante tanto da acusao quanto da defesa. esse alto grau de discricionariedade, ainda que essencial ao trabalho da Justia, deixa margem na prtica a decises subjetivas, informadas mais por valores e inclinaes pessoais dos magistrados do que por critrios de racionalidade e equidade. Fato, alis, reconhecido pelos prprios juzes que a pesquisa entrevistou, no tocante concesso ou no de liberdade processual e aplicao ou no da Lei 12.403. Eis um exemplo:

    Ento, um juiz pode entender que naquela hiptese o ru deve permanecer preso. E, vem outro juiz naquela mesma situao e diz eu acho que essa pessoa no deve permanecer presa, que poderia responder em liberdade esse processo. por isso que eu disse que envolve o subjetivismo, no sentido da apreciao daquela norma, de condies daquela pessoa ser encarcerada ou no, que muda dependendo da pessoa e como fundamenta. Eu posso no concordar com aqueles fundamentos, mas tem gente que vai concordar (Juiz 5)

    Com efeito, alguns juzes afirmaram que j concediam liberdade provisria para acusados de furto antes da nova lei e que, portanto, esta nada alterou. outros disseram ter passado a conceder o benefcio com mais frequncia porque agora se sentem legalmente amparados, chegando um deles a assegurar que a concesso de liberdade processual tornou-se praticamente automtica nos casos de furto simples. outros ainda declararam que, independentemente das prescries da Lei 12.403, s conferem liberdade provisria para furto aps analisar minuciosamente o histrico do ru, tendo em vista a garantia da ordem pblica e o bom andamento da instruo penal vale dizer, indeferem a liberdade quando h antecedentes criminais ou quando falta endereo e/ou prova de emprego fixo dos acusados.

    Mas, se existe essa grande variao de posies no caso de furto, no de trfico de drogas as posturas so quase unnimes: com ou sem a nova lei, a grande maioria dos juzes mantm em priso os acusados desse tipo de crime. A justificativa de que se trata de crime hediondo, para o qual est previsto o cumprimento inicial da pena em regime fechado,17 logo no faria sentido

    17 ver Art. 44 da Lei 11.343/2006.

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    conceder liberdade provisria aos acusados.18 Adiciona-se a isso o argumento de que, via de regra, o trfico se associa a outros delitos, o que reforaria a necessidade de manter os rus em priso na etapa processual.

    Mesmo reconhecendo a grande margem de ambiguidade deixada pela lei brasileira na diferenciao entre usurio e traficante, e mesmo admitindo a possibilidade de erros ou omisses na tipificao inicial do crime feita pela polcia, os magistrados no hesitam em aplicar a priso provisria, que, como mostram os resultados quantitativos da pesquisa, continuou representando, na vigncia da nova lei, 98% das primeiras medidas impostas aos acusados de trfico (ver Captulo 1). Em vez do in dubio pro reo, parece prevalecer amplamente, nesse caso, o arbitrrio princpio na dvida, ru preso:

    No meu juzo eles ficam presos. Aqui no meu juzo eles ficam presos. At que a gente v para a audincia e descubra o que realmente aconteceu na situao, eles ficam presos. (Juiz 6)

    Como regra eu indefiro, porque muito prematuro chegar um flagrante, por exemplo, com trfico. Algum foi autuado por um crime, foi tipificado como trfico. Voc no tem instruo nenhuma ali, voc ainda no tem prova nenhuma, a instruo criminal nem comeou, ento j soltar, j dizer que no trfico, est cedo, est prematuro. Ento como regra eu mantenho preso. (Juiz 4)

    Ento hoje em dia com essa modalidade, para voc comear a separar quem o traficante e quem o usurio, fica muito complicado. Voc tem que ir para a instruo, voc tem que ouvir, as coisas comearam a se complicar, para provar quem o traficante, quem o usurio. (Juiz 8)

    Vrios entrevistados mencionaram a mudana de tratamento dado ao trfico de drogas em 2012, quando uma resoluo do Senado Federal suspendeu da Lei 11.343/06 a expresso vedada a converso em penas restritivas de direitos (art. 33, 4), que foi declarada inconstitucional por deciso definitiva do Supremo Tribunal Federal.19 de acordo com alguns entrevistados, isso

    18 Entretanto, como foi visto no captulo quantitativo (Grfico 11), cerca de 40% dos acusados de trfico no segundo semestre de 2011 receberam, ao final do processo, uma sentena diferente da priso em regime semiaberto ou fechado.

    19 Habeas Corpus n 97.256/RS, maio de 2012. A redao original do artigo 33, 4o, da Lei 11.343/2006 era: nos delitos definidos no caput e no 1o deste artigo, as penas podero ser reduzidas de um sexto a dois teros, vedada a converso em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primrio, de bons antecedentes, no se dedique s atividades criminosas nem integre organizao criminosa.

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    gerou certa mudana na postura dos juzes, fazendo com que o trfico passasse a ser percebido como um crime menos grave, mas ainda assim no passvel de liberdade processual.

    em suma, para boa parte dos magistrados ouvidos pela pesquisa, a Lei das cautelares aumentou a concesso de liberdade provisria para os casos de furto, mas no alterou quase nada em relao ao trfico de drogas o que converge com os resultados obtidos no levantamento quantitativo. importante sublinhar, contudo, que a viso dos entrevistados sobre a lei em questo no se ancora apenas em suas percepes sobre diferentes tipos de crimes. Deriva tambm da ideia de que essa lei introduziu uma srie de alternativas priso provisria que o Judicirio no est aparelhado para fiscalizar, por exemplo, a medida de proibio de acesso ou frequncia a determinados lugares (Lei 12.403/2011, art. 319 II), que seria totalmente incua dada a inviabilidade de monitorar se o ru a cumpre efetivamente. o dilogo a seguir ilustra bem essa posio:

    Pesquisador: Vou fazer uma srie de perguntas sobre a lei 12.403/2011 em relao a qualquer crime.

    entrevistado: Posso pegar a lei e jogar fora? Pronto, respondi todas as suas perguntas.

    Pesquisador: [O sr.] acha que ela vem sendo aplicada na prtica?

    entrevistado: Impossvel aplicar a lei. (...) Porque simplesmente no implementaram as condies de aplicabilidade da lei, a no ser o comparecimento mensal. (...) Enquanto se fizer lei que cria alternativas e cria sistemas que no so implementados, nenhuma lei vai levar ningum a lugar nenhum. um tal de finge que faz e finge que obedece, que uma coisa, uma bno... (Juiz 5)

    Provavelmente deriva da o fato mostrado pela pesquisa quantitativa de que, entre as medidas alternativas priso utilizadas com mais frequncia, esto o comparecimento e a fiana em juzo, cujo cumprimento mais fcil de averiguar.

    segundo alguns entrevistados, mesmo com problemas, a nova lei teria trazido resultados positivos, como a separao entre criminosos de maior e de menor periculosidade, diminuindo o tempo de encarceramento dos que cometem delitos de baixo potencial ofensivo. E tambm a garantia de aplicao de acordos internacionais, como a conveno Americana de direitos Humanos, e da prpria Constituio Federal de 1988, que estabelecem o princpio da presuno de inocncia. Outros acreditam, no entanto, que o principal objetivo da lei foi reduzir a superlotao carcerria e desafogar o sistema penitencirio, o que, segundo eles, estaria na contramo do clamor da sociedade por mais ordem pblica e menos impunidade. na medida em que a priso

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    seria socialmente percebida como a pena mais eficaz, por isolar o acusado e evitar que cometa novos crimes, a liberdade durante o processo, preconizada pela lei, s estaria contribuindo para aumentar a sensao de impunidade e lenincia, especialmente em delitos que causam comoo pblica e em que se cobram do Judicirio medidas efetivas contra os perpetradores.

    Aparentemente, como sugerem as entrevistas, vrios juzes compartilham a viso popular acerca da eficcia do encarceramento para a paz social e veem no esprito da Lei 12.403/2011 sobretudo um desservio ordem pblica, muito embora reconheam a dificuldade de definir de forma clara e precisa em que consistiria essa ordem pblica, como se ver na seo 2.4, adiante.

    2.1.2. Promotores

    de Acordo com A consTiTuio FederAL brAsiLeirA, incumbe ao Ministrio Pblico a defesa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individuais indisponveis, cabendo-lhe, no processo penal, a funo de promover, privativamente, a ao penal pblica, na forma da lei. Nesse caso, deve verificar se h elementos para propor a ao, oferecendo a denncia, e manifestar-se sobre o direito de o acusado responder ao processo em liberdade. Em matria de aplicao da priso provisria e das medidas cautelares, os promotores pblicos desempenham, portanto, um papel muito relevante.

    via de regra, suas concepes sobre liberdade e priso provisrias convergem com as dos juzes entrevistados. Foi possvel notar, alis, durante a observao de audincias, que magistrados e promotores geralmente mostram grande afinidade de posies, tendendo a concordar na maior parte do tempo, sem questionamentos de parte a parte. A neutralidade idealmente esperada dos juzes e sua independncia em relao ao Ministrio Pblico no parecem ser norma nas varas criminais do Rio de Janeiro; comum, inclusive, nos processos, o magistrado simplesmente informar que o ilustre representante do Ministrio Pblico opinou pela converso da priso em flagrante em priso preventiva.

    Para alguns dos promotores ouvidos, a Lei 12.403 aumentou o atendimento a pedidos de liberdade provisria em casos de furto sujeito a menos de quatro anos de recluso, sendo exceo hoje em dia os processos com ru preso por furto simples.20 Outros afirmam, contudo, que mesmo nesse caso, havendo reincidncia ou falta de registro de emprego ou de moradia fixa, a tendncia manter o ru encarcerado durante o processo.

    20 No o que mostram os dados da pesquisa quantitativa: como se viu no Captulo 1 deste trabalho, praticamente metade dos acusados de furto continuava recebendo como primeira medida a priso processual.

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    Muitos entrevistados parecem profundamente convictos de que os acusados de trfico de drogas devem mesmo permanecer reclusos enquanto aguardam julgamento. Tal como os juzes mencionados mais acima, alguns promotores argumentam que a liberdade provisria no se aplica a esse caso, por tratar-se de um crime hediondo, com repercusso social, que afeta a ordem pblica e vem acompanhado, quase sempre, de outras condutas delitivas. s em situaes excepcionais, envolvendo uma quantidade nfima de droga e sem evidncias claras de ligao com faco criminosa, o ru deveria responder em liberdade ao processo.

    Quanto aos efeitos da Lei 12.403 no funcionamento das varas criminais, no houve consenso entre os entrevistados. Alguns afirmaram que ela trouxe maior amparo legal para a concesso de liberdade provisria aos acusados por crimes mais leves, enquanto outros asseguraram que seu impacto tem sido muito limitado e que a nica mudana significativa foi a necessidade de se fundamentar mais detalhadamente a negao da liberdade processual. segundo esses promotores, portanto, o nico resultado da nova lei foi dar-lhes mais trabalho para fazerem o que j faziam antes: manifestar-se pela permanncia dos rus em priso.

    Como tambm j foi dito em relao aos juzes, h o reconhecimento de que a concesso ou no da liberdade provisria depende muito de critrios valorativos e ideolgicos do operador do direito:

    Tem um pessoal mais duro, que podia ser o pessoal chamado da lei e ordem, tem uma linha muito mais liberal que acha que o crime um problema social e o criminoso uma vtima da sociedade, e que a priso no adianta para nada, que ele deve ser solto. Tm essas duas vises extremas e dentro dessas duas vises extremas h uma srie de outras correntes que transitam ali. Basicamente isso, a linha mais dura, lei e ordem, e a linha solta todo mundo. (Promotor 4)

    Alguns entrevistados sublinharam a existncia de casos dbios, em que no h elementos suficientes para tipificar o crime, por exemplo, para saber se foi de roubo ou de furto. A tendncia, nesses casos, representar pela priso provisria pois, segundo eles, a dvida deve beneficiar a sociedade e no o ru. Tal inclinao para o polo in dubio pro societate, em detrimento do in dubio pro reo, no est presente apenas no discurso dos promotores, mas tambm no de outros operadores do direito ouvidos pela pesquisa. Parece prevalecer a ideia de que, se h algum potencial risco para a sociedade, deve-se optar pela priso do ru. Isso no s contraria o princpio da presuno de inocncia como amplifica extraordinariamente o grau de subjetividade das decises: afinal, se no h elementos sequer para diferenciar um roubo de um furto, com base em qu sero avaliados os riscos que o ru oferece sociedade?

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    no tocante s medidas cautelares previstas na Lei 12.403/2011, no h consenso acerca de qual seria a mais eficaz. Parte dos entrevistados apontou o comparecimento peridico em juzo, por garantir a vinculao do ru ao processo. Outros assinalaram a fiana em sede policial, com a ressalva, porm, de que essa medida costuma ser imposta a rus de baixo poder econmico, muitas vezes incapazes de arcar com o valor estipulado, o que implica sua permanncia em priso. J as demais medidas cautelares previstas na lei foram consideradas totalmente ineficazes, dada a impossibilidade de fiscalizar o seu cumprimento. E, para uma parcela dos promotores ouvidos, a priso provisria continua sendo o melhor meio de garantir a tramitao regular de um caso no Judicirio.

    Tal como entre os juzes, h entre os agentes do Ministrio Pblico uma forte convico de que a Lei das cautelares vai contra os anseios de proteo dos cidados, pois favorece a soltura de pessoas que, aos olhos da sociedade, deveriam ficar presas. Para eles, a populao supostamente clama por uma atitude mais firme do Estado no combate criminalidade, mas, em vez disso, criam-se mecanismos de garantias individuais que destoam das aspiraes coletivas, e prejudicam a ordem pblica, a paz e a tranquilidade social termos cuja definio, contudo, os prprios agentes admitem ter dificuldade de precisar (ver seo 2.4).

    2.1.3. Defensores pblicos

    recenTemenTe, em 2011 e 2012, a Organizao dos Estados Americanos (OEA) publicou duas resolues recomendando aos estados-membros a adoo de modelos de defensoria pblica como forma de promover o acesso justia. No Brasil, a Constituio Federal de 1988 determina que todo acusado deva ser assistido por um advogado, pblico ou particular, no momento da priso e j consagra a defensoria pblica como instituio essencial funo jurisdicional do estado, na defesa dos interesses de seus assistidos.21 mas, apesar do que reza a legislao, 72% das comarcas do pas ainda no tinham defensoria pblica em 2013.22

    21 Alm disso, o Cdigo de Processo Penal brasileiro estabelece que a defensoria estadual deve ser comunicada sobre a priso no prazo mximo de 24 horas. Mas comum, na comarca da capital do Rio de Janeiro, que, mesmo tomando conhecimento da priso nesse prazo, a defensoria s entre em contato com o ru quando o processo j est em andamento e s solicite a liberdade provisria aps 20 dias da priso, conforme se viu na primeira pesquisa ArP/cesec sobre presos provisrios, j referida anteriormente.

    22 mapa da defensoria Pblica no brasil/2013. iPeA/AnAdeP. [disponvel em http://www.ipea.gov.br/sites/ mapadefensoria/defensoresnosestados]. Vale ressaltar que a defensoria do Rio de Janeiro a mais antiga do pas, cobre mais de 90% das comarcas do estado e est bem provida de profissionais, dispondo atualmente de 796 defensores, 98% do nmero previsto, ao passo que em vrias outras unidades da federao esse nmero fica bem abaixo do total de cargos existentes. A pesquisa iPeA/AnAdeP mostra ser muito grande a perda de quadros nas defensorias, em funo, sobretudo, dos salrios baixos (inferiores ao de outras carreiras estatais na rea jurdica) e das condies de trabalho ruins.

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    Pela prpria natureza do seu trabalho, defensores costumam ser mais favorveis do que juzes e promotores concesso da liberdade processual. vrios dos defensores que a pesquisa entrevistou revelaram-se frustrados por constatar que ainda prevalece no Judicirio a perspectiva de que a priso regra, no exceo o que, segundo eles, faz da liberdade provisria uma medida quase excepcional, subvertendo o princpio de presuno de inocncia e ferindo garantias previstas na constituio.

    Nesse contexto, alguns defensores afirmaram que s entram com pedido de liberdade quando sabem que h alguma possibilidade de o juiz deferi-lo. um deles chegou a admitir que cultiva credibilidade junto ao juiz e ao promotor formulando poucas solicitaes e tentando com isso aumentar as chances de que sejam atendidas. vrios disseram evitar o pedido de liberdade provisria para flagrantes de drogas, salvo quando h fortes indcios de que o ru usurio e no traficante. Compreende-se, assim, porque, mesmo na vigncia da nova lei, 98% dos acusados de trfico permanecem presos aps o flagrante, como mostram os resultados da pesquisa quantitativa expostos no Captulo 1: promotores e juzes esto convencidos de que no lhes devem conceder liberdade e os defensores pblicos sequer a solicitam porque sabem que no sero atendidos, criando-se com isso um mecanismo quase automtico de manuteno do encarceramento para esses rus.

    J nos casos de furto, os agentes da Defensoria percebem uma tendncia bem mais liberal da parte dos promotores e magistrados:

    No h nem a necessidade [de entrar com pedido], porque normalmente nesse tipo de crime a orientao da lei, e que tem sido cumprida aqui pelos promotores, tanto da vara criminal onde eu atuo, quanto das que eu tenho visto at hoje, que eles sejam imediatamente soltos. Isto , vem priso em flagrante, essa priso em flagrante levada ao conhecimento do promotor, e a orientao, se ele for primrio e no tiver anotaes na folha de antecedentes, isso no normal, ele no pede a converso em preventiva. Ento quando vem para ns, para a defesa, no dia a dia, ele j est solto. (Defensor 3)

    Mas, mesmo nesses casos, segundo os defensores, haveria dificuldades para conseguir a liberdade processual decorrentes do perfil socioeconmico da clientela, na maioria classificvel como hipossuficiente, sem condies de arcar, por exemplo, com o pagamento de fiana. Para alguns entrevistados, isso reflete a realidade do sistema de justia criminal brasileiro, que indicia, julga, condena e prende majoritariamente indivduos pobres, moradores de favelas, com baixa escolaridade e sem emprego formal. Muitos rus, ademais, no apresentam os documentos

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    necessrios obteno de liberdade provisria, dificultando a comprovao em juzo de residncia, emprego fixo e vnculos familiares.

    embora a Lei 12.403/2011 tenda a ser vista pelos defensores como instrumento para efetivar os princpios da presuno de inocncia e da priso como exceo, um entrevistado sublinhou que ela apenas chove no molhado, pois reafirma princpios que h muito deveriam fazer parte da prtica cotidiana do sistema de justia criminal. Para esse agente, portanto, o que deve ser ressaltado no so propriamente os benefcios da nova lei e sim o absoluto descumprimento de garantias constitucionais, que as novas medidas s estariam buscando minimizar:

    Ento assim, nesse sentido, em termos de teoria normativa, choveu no molhado, talvez no desse nem pra consider-la norma, j que ela no estava inovando no sistema, ela estava concre... mais do que concretizar, porque... No, tudo bem. Trouxe algumas regras especficas, n, mas ela veio pra reafirmar a Constituio, e isso s torna, no meu entendimento, mais grave o no cumprimento da lei... (Defensor 2)

    Ademais, prevalece entre os entrevistados a percepo de que a lei quase nada alterou nas prticas do Judicirio. mesmo nos casos de furto, em que promotores e juzes dizem ter aumentado muito a concesso da liberdade provisria, os defensores no veem resultados to evidentes e asseguram que a liberdade continua sendo indeferida em grande parte dos casos a pretexto da reincidncia, da falta de documentos que comprovem moradia e emprego do ru, ou das supostas ameaas ordem pblica. O principal impacto da Lei 12.403 teria sido, ento, a exigncia de um maior esforo argumentativo do Ministrio Pblico para fundamentar a manuteno dos rus em priso e no um efetivo avano na aplicao das garantias constitucionais.

    Nas poucas situaes em que a liberdade provisria concedida, geralmente o que substitui a priso o comparecimento peridico em juzo. Parte dos defensores entrevistados considera interessante o monitoramento eletrnico, mas afirma que as tornozeleiras s esto disponveis no mbito da execuo penal, no no das varas criminais. Quanto s outras medidas cautelares previstas pela lei, a maioria converge com juzes e promotores em avaliar que so pouco ou nada eficazes, devido s enormes dificuldades de fiscalizao.

    Ao contrrio daqueles, porm, os agentes da Defensoria tendem a rejeitar fortemente a ideia de que a ordem pblica justifica a priso provisria. No s porque o termo carece de definio precisa, mas sobretudo porque a justificativa seria inconstitucional, um resqucio da ditadura militar que continuaria at hoje servindo de fundamento manuteno de pessoas presas, muitas vezes ilegalmente.

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    2.1.4. Advogados particulares

    Todos os AdvogAdos enTrevisTAdos disseram que formulam quase sempre o pedido de liberdade provisria ou de habeas corpus, nem que seja para mostrar produtividade aos clientes em contraste com os defensores pblicos, que, como se viu, s apresentam a solicitao quando avaliam ter alguma chance de ser atendidos, levando em conta as caractersticas do acusado e/ou do tipo de crime em questo.

    mas os pedidos dos advogados no se amparam necessariamente na Lei 12.403/2011. Alis, dos cinco advogados particulares que a pesquisa ouviu, s dois conheciam a lei e mesmo assim de forma superficial. Importa lembrar que esse tipo de profissional geralmente atua em diversas reas do direito, no apenas na criminal, e tende a lanar mo de leis mais gerais, como o cdigo Penal e o antigo Cdigo de Processo Penal, desconhecendo as mais recentes e especficas, como a focalizada nesta pesquisa.

    informados das medidas cautelares cabveis, os entrevistados reagiram de modo semelhante ao de juzes e promotores, considerando a maioria ineficaz, devido dificuldade de fiscalizao. como disse um deles:

    ... no adianta criar um instituto bom, mas que no tem controle nenhum. Sabe que aquilo no tem controle, no vai decretar aquilo, porque decretar aquilo e no decretar a mesma coisa. Controle nenhum. (Advogado 5)

    A percepo desses advogados, convergindo com a dos defensores, de que no houve nenhuma mudana significativa na atitude dos juzes em relao liberdade provisria, nem mesmo nos casos de furto e muito menos nos de trfico de drogas. A argumentao para neg-la seria a mesma nos dois casos: proteger a sociedade dos riscos que a conduta do ru pode ocasionar. um entrevistado disse que, no incio do processo, mesmo nos casos de furto, quase sempre aplicado o in dubio pro societate, enquanto, no final, se ainda persistir dvida, passa a prevalecer o in dubio pro reo. Por operar com essa lgica, portanto, dificilmente os juzes acatam pedidos de liberdade na etapa inicial rotinizando uma prtica que fere o princpio da presuno de inocncia e viola garantias previstas na Constituio do pas.

    2.1.5. Delegados de polcia

    como deTerminA A consTiTuio FederAL, incumbe Polcia civil as funes de polcia judiciria e a apurao de infraes penais, exceto as militares, sendo atribuio dos delegados de polcia presidir a lavratura do auto de priso em flagrante e, se for o caso, arbitrar o valor da fiana

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    ao acusado. Com a Lei das Cautelares, como j mencionado, ampliou-se significativamente o espao de atuao desses agentes, que agora podem determinar a fiana para os crimes com pena mxima de at quatro anos. Os dados do levantamento quantitativo, expostos no captulo anterior, mostram, com efeito, que a fiana em sede policial foi uma das medidas cautelares cuja utilizao mais cresceu nos seis meses aps o advento da Lei 12.403.

    Em geral, os delegados ouvidos pela pesquisa fizeram uma avaliao positiva da nova lei, principalmente pelo fato de ter ampliado muito a margem de ao da polcia. como ressaltou um deles:

    ... houve uma abrangncia maior em relao a isso, porque houve maior critrio de discricionariedade do delegado em relao a isso. A possibilidade de o delegado ter que fazer justia. No cabe ao delegado fazer justia, cabe Justia fazer justia. Mas, eu entendo que como o caso vem primeiro na nossa mo, h sim necessidade, dentro da lei, de fazer justia. E essa lei abrangeu maiores casos, podendo o delegado com critrios de discricionariedade maior, aplicar esse instituto para um nmero maior de delitos. (Delegado 5)

    Eu acho vlida a fiana. Na verdade ela s ratifica aquilo que o direito penal mnimo preconiza (Delegado 2)

    Eu acho interessante porque aumenta o critrio de discricionariedade do delegado, abrange um pouco, muitas vezes a gente no tinha isso, tinha que trabalhar com a lei, a lei rgida e nosso critrio de discricionariedade foi diminuindo [com o] tempo (Delegado 1)

    Os entrevistados afirmam que a nova lei aumentou o nmero de fianas concedidas nas delegacias para casos de furto. contrariando a percepo de outros operadores do direito antes mencionados, especialmente dos defensores pblicos, garantem que a liberdade tornou-se praticamente regra para esse tipo de crime, sendo mais difcil, hoje, manter preso um indiciado por furto, mesmo quando no tem bons antecedentes. Mas, no caso do trfico de drogas, ao qual a fiana no se aplica, os acusados continuariam privados da liberdade processual.

    H certa divergncia entre os policiais quando avaliam o instrumento da fiana. uns enxergam sobretudo a desvantagem de ele liberar indivduos que deveriam ficar presos, enquanto outros enfatizam a vantagem da rpida obteno de liberdade provisria para autores de crimes de bagatela.

  • Usos e abusos da priso provisria no Rio de Janeiro Avaliao do impacto da Lei 12.403/201140

    Embora o valor da fiana seja fixado dentro de parmetros legais, levando em conta o tipo de crime e o perfil econmico do indiciado, no h uma tabela detalhada que estipule os montantes aplicveis a cada caso.23 estes tendem a variar de acordo com avaliaes circunstanciais: se o delegado entender que o crime tem aspectos reprovveis por exemplo, se foi cometido contra uma pessoa idosa , aumentar o valor e se, ao contrrio, considerar que, alm de ser pobre, o indiciado cometeu um delito sem grande importncia, fixar uma quantia mais baixa. Para crimes contra o patrimnio, os entrevistados disseram utilizar um critrio adicional: o prejuzo econmico infligido vtima. Mas, como eles prprios admitem, essas decises so intuitivas e subjetivas, pois no h tempo nem meios de coletar informaes minuciosas sobre o perfil do acusado, nem de analisar as circunstncias e repercusses do delito.

    Fazendo coro a alguns defensores ouvidos pela pesquisa, um dos policiais criticou a permanncia do termo ordem pblica na Lei 12.403/2011, como justificativa para manter a priso provisria. segundo ele, o legislador j havia falhado quando incluiu o termo no cdigo de Processo Penal e errou outra vez ao preserv-lo na nova legislao. Alm de ser uma expresso vaga, de difcil definio, o recurso justificativa da ordem pblica garantiria um espao muito amplo para a subjetividade dos agentes. Mas tambm houve quem considerasse vlida a expresso, por sintonizar o operador do direito com a repercusso social do crime e permitir-lhe avaliar os riscos mais amplos da soltura do indiciado.

    2.2. Audincias

    um dos ProPsiTos dA observAo de AudinciAs foi verificar se a defesa formulava novo pedido de liberdade nos casos em que o ru ainda estivesse preso e se o contato do juiz com o ru contribua ou no para que este obtivesse a liberdade. outro objetivo foi o de analisar a dinmica do ato processual e o comportamento dos operadores jurdicos. como j dito, observaram-se dez audincias nas varas criminais da comarca do Rio de Janeiro, selecionadas aleatoriamente.