14
M P or uma poética da performatividade: or uma poética da performatividade: or uma poética da performatividade: or uma poética da performatividade: or uma poética da performatividade: o teatr o teatr o teatr o teatr o teatro performativo o performativo o performativo o performativo o performativo J osette Féral Josette Feral é professorada Universidade do Quebéc. Tradução: Lígia Borges. Revisão da tradução: Cícero Alberto de Andrade Oliveira. 1 Laurent Goumarre, Christophe Kihm. “Performance contemporaine” [Performane contemporânea] in Artpress, Paris, n. 7, nov-déc-janv., 2008. eu objetivo hoje é apresentar os concei- tos de performance e performatividade, amplamente utilizados nos Estados Uni- dos há duas décadas, e que gostaria de utilizar para redefinir o teatro que se faz hoje e carrega em seu cerne estas duas noções. Esse teatro, que chamarei de tea- tro performativo, existe em todos os pal- cos, mas foi definido como teatro pós-dramáti- co a partir do livro de Hans-Thies Lehmann, publicado em 2005, ou como teatro pós-mo- derno. Gostaria de lembrar aqui que seria mais justo chamar este teatro de ‘performativo’, pois a noção de performatividade está no centro de seu funcionamento. Para realizar este objetivo, uma incursão em direção à noção de performance se impõe, performance concebida aqui como forma artís- tica (a performance art) e a performance conce- bida como ferramenta teórica de conceituação do fenômeno teatral, conceito popularizado por Richard Schechner, particularmente nos Esta- dos Unidos, e que constitui a base principal so- bre a qual se estruturam os “Estudos da Perfor- mance” nos países anglo-saxões. Minha abordagem será feita em três mo- mentos: por um lado, tentarei delimitar as no- ções em vigor, traçando um mapa dos princi- pais sentidos que lhe são atribuídos; em seguida, tentarei estabelecer algumas das características da performatividade e, enfim, por meio de exemplos e excertos de peças, tentarei mostrar como alguns dos espetáculos evocados são pro- priamente performativos. Por uma poética da performatividade: Por uma poética da performatividade: Por uma poética da performatividade: Por uma poética da performatividade: Por uma poética da performatividade: o teatr o teatr o teatr o teatr o teatro performativo o performativo o performativo o performativo o performativo “A performance poderia ser hoje um ponto nevrálgico do contemporâneo”. 1 Existe, desde sempre, entre a performance e o teatro, uma desconfiança recíproca que não pa- rou de se desenvolver ao longo dos anos, uma desconfiança que Michael Fried resume nestas palavras lapidares, freqüentemente evocadas: “A arte degenera à medida em que se aproxima do teatro” ou ainda “O sucesso, ou mesmo a sobrevivência das artes, começa crescentemente 197 R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:25 197

Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

  • Upload
    vandat

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

M

PPPPP or uma poé t i c a da pe r fo rmat i v i dade :o r uma poé t i c a da pe r fo rmat i v i dade :o r uma poé t i c a da pe r fo rmat i v i dade :o r uma poé t i c a da pe r fo rmat i v i dade :o r uma poé t i c a da pe r fo rmat i v i dade :o t ea t ro t ea t ro t ea t ro t ea t ro t ea t ro pe r fo rma t i voo pe r fo rma t i voo pe r fo rma t i voo pe r fo rma t i voo pe r fo rma t i vo

JJJJJ osette Féral

Josette Feral é professorada Universidade do Quebéc. Tradução: Lígia Borges. Revisão da tradução:Cícero Alberto de Andrade Oliveira.

1 Laurent Goumarre, Christophe Kihm. “Performance contemporaine” [Performane contemporânea] inArtpress, Paris, n. 7, nov-déc-janv., 2008.

eu objetivo hoje é apresentar os concei-tos de performance e performatividade,amplamente utilizados nos Estados Uni-dos há duas décadas, e que gostaria deutilizar para redefinir o teatro que se fazhoje e carrega em seu cerne estas duasnoções. Esse teatro, que chamarei de tea-tro performativo, existe em todos os pal-

cos, mas foi definido como teatro pós-dramáti-co a partir do livro de Hans-Thies Lehmann,publicado em 2005, ou como teatro pós-mo-derno. Gostaria de lembrar aqui que seria maisjusto chamar este teatro de ‘performativo’, poisa noção de performatividade está no centro deseu funcionamento.

Para realizar este objetivo, uma incursãoem direção à noção de performance se impõe,performance concebida aqui como forma artís-tica (a performance art) e a performance conce-bida como ferramenta teórica de conceituaçãodo fenômeno teatral, conceito popularizado porRichard Schechner, particularmente nos Esta-dos Unidos, e que constitui a base principal so-bre a qual se estruturam os “Estudos da Perfor-mance” nos países anglo-saxões.

Minha abordagem será feita em três mo-mentos: por um lado, tentarei delimitar as no-ções em vigor, traçando um mapa dos princi-pais sentidos que lhe são atribuídos; em seguida,tentarei estabelecer algumas das característicasda performatividade e, enfim, por meio deexemplos e excertos de peças, tentarei mostrarcomo alguns dos espetáculos evocados são pro-priamente performativos.

Por uma poética da performatividade:Por uma poética da performatividade:Por uma poética da performatividade:Por uma poética da performatividade:Por uma poética da performatividade:o teatro teatro teatro teatro teatro performativoo performativoo performativoo performativoo performativo

“A performance poderia ser hoje umponto nevrálgico do contemporâneo”.1

Existe, desde sempre, entre a performance e oteatro, uma desconfiança recíproca que não pa-rou de se desenvolver ao longo dos anos, umadesconfiança que Michael Fried resume nestaspalavras lapidares, freqüentemente evocadas:“A arte degenera à medida em que se aproximado teatro” ou ainda “O sucesso, ou mesmo asobrevivência das artes, começa crescentemente

197

R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:25197

Page 2: Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

sssss a l a ppppp r e t a

198

a depender de sua capacidade de negar o tea-tro”2. Entretanto, se há uma arte que se benefi-ciou das aquisições da performance, é certamen-te o teatro, dado que ele adotou alguns doselementos fundadores que abalaram o gênero(transformação do ator em performer, descriçãodos acontecimentos da ação cênica em detri-mento da representação ou de um jogo de ilu-são, espetáculo centrado na imagem e na ação enão mais sobre o texto, apelo à uma receptivi-dade do espectador de natureza essencialmenteespecular ou aos modos das percepções pró-prias da tecnologia...). Todos esses elementos,que inscrevem uma performatividade cênica,hoje tornada freqüente na maior parte das ce-nas teatrais do ocidente (Estados Unidos, Paí-ses-Baixos, Bélgica, Alemanha, Itália, ReinoUnido em particular), constituem as caracterís-ticas daquilo a que gostaria de chamar de “tea-tro performativo”. Desejaria discutir algumasdas características deste teatro e de sua evoluçãoposicionando-o em relação às práticas artísticasnorte-americanas, mas também flamengas, bri-tânicas, etc....

* * *

Primeiramente, e para contextualizar estareflexão, parece-me que um retorno rápido so-

bre o sentido (ou os diferentes sentidos) da pa-lavra performance se faz necessário. Gostaria defazê-lo rapidamente lembrando as publicaçõesde duas obras fundadoras de dois eixos ao lon-go dos quais a questão da performance seriadiscutida no decorrer dos anos 80, duas obrascujo impacto no meio acadêmico literário e ar-tístico seria importante. A primeira, The End ofHumanism de Richard Schechner (1982, PAJPublications)3. Ela abria de certa forma a déca-da e reunia textos publicados no decorrer dosanos precedentes por uma questão fundamen-tal: O que é a performance? Ou melhor, o queé uma performance? Schechner ampliava ali anoção para além do domínio artístico para nelaincluir todos os domínios da cultura. Em suaabordagem, a performance dizia respeito tantoaos esportes quanto às diversões populares, [tan-to] ao jogo [quanto] ao cinema, [tanto] aos ri-tos dos curandeiros ou de fertilidade [quanto]aos rodeios ou cerimônias religiosas. Em seusentido mais amplo, a performance era “étnicae intercultural, histórica e a-histórica, estética eritualística, sociológica e política”4.

Esse trabalho de definição daquilo quepode recobrir a noção irá se afinando – mas,também, tornando-se cada vez mais abrangente– nos livros que se seguiriam, particularmenteem Teoria da Performance5 e em Estudos Perfor-mativos: uma introdução (2002)6. Em quadros

2 Paris in Art and objecthood, publicado inicialmente in Artforum 5, Nova York, June 1967, depois reto-mado em Dutton. P. P. Minimal Art: A Critical Anthology. New York: Battcock, 1968, p. 139 e 145.

3 Era o segundo livro da série Performance studies, lançado por Brooks McNamara, o primeiro sendoaquele de Victor Turner, From Ritual to Theatre: The Human Seriousness of Play. New York: PerformanceArt Journal, 1982.

4 Proposta de Brooks McNamara e Richard Schechner no texto de apresentação da série.5 Publicado desde 1977, mas retomado em 1988e depois em 2003, Nova York, Routledge.6 R. Schechner, Performance studies: an introduction, New York, Routledge, 2002, mas também em The

future of ritual: writings on culture and performance, New York, Routledge, 1993; By Means ofperformance: intercultural studies of theatre and ritual, Cambridge, Cambridge University Press, 1990;Between Theater and antropology, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1985.

R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:25198

Page 3: Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

PPPPPor uma poética da performatividade: o teatro performativo

199

cada vez mais inclusivos que ele desenvolverá (es-boço pp. 71 e 72 – e p. 245 vers fr)7, Schechnerchega a incluir neles, junto à noção de perfor-mance, todas as formas de manifestações teatrais,rituais, de divertimento e toda manifestação docotidiano8. Uma inclusão tão vasta suscita, semdúvida, um problema importante. Por tantoquerer abarcar, não nos arriscamos a diluir a no-ção e sua eficácia teórica? Esta é uma primeiraquestão que convém ser colocada.

Por trás dessa redefinição da noção deperformance e de sua inscrição no vasto domí-nio da cultura, é preciso antes ver um desejopolítico – muito fortemente ancorado na ideo-logia americana dos anos 80 (ideologia que per-dura até hoje) – de reinscrever a arte no domí-nio do político, do cotidiano, quiçá do comum,e de atacar a separação radical entre cultura deelite e cultura popular, entre cultura nobre ecultura de massa. A expansão da noção de per-formance sublinha portanto (ou quer sublinhar)o fim de um certo teatro, do teatro dramáticoparticularmente e, com ele, o fim do próprioconceito de teatro tal como praticado há algu-mas décadas. Mas esse teatro está realmentemorto, apesar de todas as declarações que afir-mam seu fim? A questão permanece atual mes-mo nos Estados Unidos. Esta é a segunda ques-tão que gostaríamos de levantar.

Levantando os mesmos questionamentos,mas de um ponto de vista teórico diferente (fi-losófico e estético desta vez) um segundo livroé publicado alguns anos mais tarde (1986) cujotítulo After the Great Divide analisa os laçosentre o modernismo, cultura de massa e pós-modernismo (Modernism, Mass culture, Postmo-dernism)9. Andreas Huyssen, professor em Co-lumbia, reúne ali artigos que testemunham umareflexão iniciada no fim dos anos 70 e no co-meço dos anos 80 e se empenha em mostrar,desta vez sob uma perspectiva puramente artís-tica – e não sociológica e antropológica –, o queé o modernismo – e não as vanguardas históri-cas – que é responsável por uma ruptura entreuma visão elitista da arte e da cultura popular eque é igualmente responsável pelo afastamentoda arte das esferas política, econômica e social.Huyssen lembra que as vanguardas históricasrecusam separar a arte de sua inscrição no real.Sua visão trata da performance no seu sentidopuramente artístico – e não antropológico. Elese coloca numa visão essencialmente estéticaque continua a dominar na maior parte denossos departamentos das artes do espetáculo.A performance, no seu sentido, é a performancearte, uma arte que abalou nossa visão de artenas décadas de 70 e 80. (Tratarei das caracterís-ticas dessa arte um pouco mais adiante).

7 Ver quadro p. 71 (3.1 Overlaping circles) e 72 (3.2 Theater can be considered a specialezed kind ofperformance [o teatro pode ser considerado uma forma especializada de performance]) da edição 2003de Performance theory, Nova York, Routledge, 2003 e o quadro p. 245 (2.2 La ‘boucle infinie’ [A ‘voltainfinita’] ref. do croquis na versão inglesa: p. 68 de Performance studies, an introduction). “A ‘voltainfinita’ ilustra a positividade da dinâmica de intercâmbio [troca]. Os dramas sociais afetam os dramasestéticos e vice-versa. As ações visíveis de um dado drama social são sustentadas – moldadas, condicio-nadas, guiadas – por processos estéticos subjacentes e técnicas teatrais/retóricas específicas. De maneirarecíproca, a estética teatral numa dada cultura é sustentada – moldada, condicionada, guiada – porprocessos de interação social subjacentes” in R. Schechner, Performance (trad. Mari Percorari), p. 245.

8 O que Elizabeth Burns e Erving Goffmann já haviam feito antes dele. Burns tinha, assim, mostradoque a teatralidade impregna o cotidiano. Ver E. Burns, Theatricality, Londres, Longman, 1973; E.Goffman, La mise em scène de la vie quotidienne [ A colocação em cena da vida cotidiana], Paris, Éditionsde Minuit, 1973 [1959].

9 Andreas Huyssen, Blommington, Indiana, Univ Press, 1986.

R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:25199

Page 4: Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

sssss a l a ppppp r e t a

200

Meu objetivo aqui não é o de favoreceruma visão mais que outra, mas de enfatizar queemergem, por meio destas duas visões deperformance – uma herdada da vanguarda e daarte da performance (a de Huyssen e de tudoque poderei chamar, para ser breve, de tradiçãoeuropéia dos países latinos), a outra herdada deuma visão antropológica e intercultural com aqual Schechner contribui fortemente para suadifusão – os dois grandes eixos a partir dos quaispodemos pensar o teatro – e, mais amplamen-te, as artes – hoje.

A concepção de Schechner é dominantenos países anglo-saxões; a de Huyssen em cer-tos países europeus (França), ou Canadá, emnossas universidades, nas escolas de formaçãoque buscam preservar uma visão puramente es-tética da arte.

O interesse da evocação desses dois eixos(performance como arte e performance comoexperiência e competência) vem do fato de queemerge, no cruzamento deles, uma grande par-te do teatro atual, um teatro cuja diversidadedas características atuais Hans-Thies Lehmannanalisou com precisão e que ele definiu comopós-dramáticas, mas para o qual eu gostaria depropor a denominação “teatro performativo”,que me parece mais exata e mais de acordo comas questões atuais.

De fato, se é evidente que a performanceredefiniu os parâmetros permitindo-nos pensara arte hoje, é evidente também que a prática daperformance teve uma incidência radical sobreprática teatral como um todo. Dessa forma, se-

ria preciso destacar também, mais profunda-mente, essa filiação que opera uma rupturaepistemológica nos termos e adotar a expressão“teatro performativo”.

* * *

Performer, quer seja num sentido primei-ro “de superar ou ultrapassar os limites de umpadrão” ou ainda no [sentido] de “de se engajarnum espetáculo, um jogo ou um ritual”, impli-ca ao menos em três operações, diz Schechner.

1. ser/estar10 (“being”), ou seja, se comportar(“to behave”);2. fazer (“doing”). É a atividade de tudo o queexiste, dos quarks11 aos seres humanos;3. mostrar o que faz (“showing doing”, ligado ànatureza dos comportamentos humanos). Esteconsiste em dar-se em espetáculo, em mostrar(ou se mostrar).

Estes verbos (que representam ações), quetodo o artista reconhece em seu processo decriação, estão em jogo em qualquer performan-ce. Por vezes separados, por outras combinados,eles não se excluem jamais. Muito pelo contrá-rio, eles interagem com freqüência no processocênico. Performer, no seu sentido schechneriano,evoca a noção de performatividade (antes mes-mo da de teatralidade) utilizada por Schechnere por toda a escola americana12. Mais recenteque a de teatralidade, e de uso quase exclusiva-mente norte-americano (mesmo se Lyotard uti-

10 Em francês, bem como no inglês, o verbo “être” tem a ambivalência de “ser” e “estar” e, dentro docontexto, ambas definições parecem apropriadas (N. T.).

11 Quarks: subpartículas atômicas, formadoras das menores partes de um átomo.12 Schechner, com certeza, que esteve no centro desta mutação lingüística e epistemológica e na origem

da onda dos Performance studies nos Estados Unidos, que ele contribuiu fortemente para implementarnos estudos teóricos sobre as artes do espetáculo), mas também Philip Auslander, Michael Benamou,Judith Butler, Marvin Carlson, Dwight Conqueergood, Barbara Kirshenblatt-Gmblett, Bill Worthen evários outros que contribuíram igualmente na reflexão coletiva sobre o assunto.

R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:25200

Page 5: Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

PPPPPor uma poética da performatividade: o teatro performativo

201

liza o termo), sua origem poderia ser retraçadanas pesquisas lingüísticas de Austin e Searle, queforam os primeiros a impor o conceito pelo viésdos verbos performativos que “executam umaação”. Eis uma primeira consideração.

Essa noção valoriza a ação em si, mais queseu valor de representação, no sentido miméticodo termo. O teatro está inexoravelmente ligadoà representação de um sentido, passe ele pelapalavra ou pela imagem. O espetáculo nele se-gue uma narrativa [récit], uma ficção. Ele pro-jeta ali um sentido, um significado. Essa liga-ção com a representação que Artaud recolocouem questão na seqüência das grandes correntesartísticas do início do século XX, deixou igual-mente sua marca no teatro, ainda que mais tar-diamente. Não reconstituirei aqui toda a histó-ria da evolução da prática artística no decorrerdo século XX, mas é possível dizer que diversosautores e encenadores buscaram criar essa dis-sociação unívoca entre um discurso (verbal ouvisual) e um sentido dado. Logo, quandoSchechner menciona a importância da “execu-ção de uma ação” na noção de ‘performer’, ele,na realidade, não faz senão insistir neste pontonevrálgico de toda performance cênica, do ‘fa-zer’. É evidente que esse fazer está presente emtoda forma teatral que se dá em cena. A dife-rença aqui – no teatro performativo – vem dofato de que esse ‘fazer’ se torna primordial e umdos aspectos fundamentais pressupostos na per-formance. Para ilustrar essa importância, gosta-ria de tomar dois exemplos que exprimem bemessa argumentação, esse ‘enquadramento’ po-der-se-ia dizer, para retomar a expressão deTurner, do fazer. Trata-se de um excerto de LaChambre d’Isabella (O Quarto de Isabella), espe-táculo de Juan Lauwers apresentado, pela pri-meira vez, em Avignon em 2004 e que desde

então não parou de rodar pela Europa e pelaAmérica do Norte, mas também pela Ásia (Seul,2007) e pela América Latina (Bogotá, 2008),e um outro excerto de Dortoir (Dormitório) deum encenador do Quebéc, Gilles Maheu.

O quarto de IsabellaO quarto de IsabellaO quarto de IsabellaO quarto de IsabellaO quarto de Isabella

É a história de uma mulher velha e cega queconta a história de sua vida, de 1910 aos diasatuais. Mas ela não a conta sozinha. Todos aque-les que tiveram importância para ela contam ahistória consigo: os numerosos mortos de suavida: Anna e Arthur, seus amantes Alexander eFrank. E juntos, não apenas contam a históriade Isabella, como a cantam também. Não é aprimeira vez que a música é tocada ao vivo eque os atores cantam em cena em um espetácu-lo de Juan Lauwers, mas isso nunca havia sidofeito de uma maneira tão aberta e convidativaquanto aqui. Rapidamente, entretanto, perce-be-se que a vida de Isabella é dominada por umamentira. Seus pais adotivos, Arthur e Anna, quemoram juntos num farol, numa ilha, ondeArthur é o vigia, fizeram-lhe acreditar que éfilha de um príncipe do deserto que desapare-ceu na ocasião de uma expedição. Isabella parteem busca desse pai e essa viagem leva-a não àÁfrica, mas a um quarto em Paris, cheio de ob-jetos antropológicos e etnológicos13. Essa his-tória comporta alguns episódios diretamenteinspirados na vida do próprio Lauwers. De fato,ele conta que quando seu pai faleceu deixou-lhe de herança em torno de 5800 objetos etno-lógicos e arqueológicos. Seu pai era médico, masnas horas livres também era etnógrafo amador.Quando criança isso nunca despertou questio-namentos em sua casa e ele cresceu entre esses

13 Texto de Erwin Jans.14 Primeiro excerto: o quarto de Isabella, Juan Lauwers. O início da narração livremente adaptado a partir

do site da companhia.

R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:25201

Page 6: Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

sssss a l a ppppp r e t a

202

objetos... Tendo falecido seu pai, ele se viu “comessa coleção nos braços”. Foi-lhe necessário de-cidir o que fazer com aquilo. Era igualmenteuma questão ética, já que alguns daqueles ob-jetos tinham, sem dúvida, sido roubados da-queles que os haviam feito. Donde a históriaque Lauwers concebeu. Ela é contada por umamulher, Isabella Morandi que, na realidade, ja-mais existiu.14

Primeiro excerto: o quarto de Isabella,Juan Lauwers. O início da narração

PrimeirPrimeirPrimeirPrimeirPrimeiro excerto: o quarto de Isabelao excerto: o quarto de Isabelao excerto: o quarto de Isabelao excerto: o quarto de Isabelao excerto: o quarto de Isabela

Esse excerto sublinha de maneira muito clara acolocação em primeiro plano da execução dasações por parte dos performers, que cantam,dançam, contam, às vezes encarnam o persona-gem, mas que na seqüência saem dele comple-tamente. O ator aparece aí, antes de tudo, comoum performer. Seu corpo, seu jogo, suas compe-tências técnicas são colocadas na frente. O es-pectador entra e sai da narrativa, navegandosegundo as imagens oferecidas ao seu olhar.O sentido aí não é redutivo. A narrativa incita auma viagem no imaginário que o canto e a dan-ça amplificam. Os arabescos do ator, a elasti-cidade de seu corpo, a sinuosidade das formasque solicitam o olhar do espectador em primei-ro plano, estão no domínio do desempenho.O espectador, longe de buscar um sentido paraa imagem, deixa-se levar por esta performativi-dade em ação. Ele performa.

Segundo excerto: a coleçãoSegundo excerto: a coleçãoSegundo excerto: a coleçãoSegundo excerto: a coleçãoSegundo excerto: a coleção

O interesse deste excerto é que para além dadescrição exata dos objetos mencionados quefazem parte da coleção do pai de Isabella, a

performatividade dos atores toma o primeirolugar e termina por veicular como um excesso,um demais pleno, uma cólera, uma frustraçãoda qual podemos facilmente imaginar que foiaquela do próprio Lauwers, de quando confron-tado com essa coleção legada por seu pai comoherança. Estamos bem inseridos na performati-vidade do ator (e fora de um personagem),aquela da ação que se executa. O espectador éconfrontado com este fazer, com estas açõespostas [colocadas], das quais só lhe resta, a sipróprio, encontrar o sentido.

O segundo excerto vem do espetáculoLe Dortoir (O Dormitório), que já é um poucomais antigo, já que ele foi criado em meadosdos anos 80. Todavia, parece-me que ele ofere-ce um exemplo quase perfeito desse teatro queHans-Thies Lehmann chamou de teatro pós-dramático e que desejaria, de preferência, defi-nir como teatro performativo.

Le Dortoir, um pouco à imagem de LaChambre d’Isabella, é uma viagem pela me-mória (um quarto de memória diria Kantor),memória da vida de um dormitório nos anos60, na época da morte de Kennedy. Trata-se,portanto, da vida de um grupo, realizandoações rotineiras (todas estilizadas sob a formade coreografias) ligadas a uma vida numa es-cola dirigida por religiosas. Mas nesse casulo,aparentemente fechado, se apresentam todasa atualidade do momento, principalmente amorte de John Fitzgerald Kennedy. GillesMaheu é um encenador do Québéc, forma-do em mímica, que fundou em 1968 Lesenfants du paradis (As crianças do paraíso) –que em 1981 tornou-se Carbone 14 (Carbo-no 14) – e que evoluiu gradativamente na di-reção do teatro corporal, e na seqüência per-formativo e em direção à dança-teatro, semrealmente deixar o teatro.15

15 Segundo excerto: Dortoir, Maheu. L’Histoire de lês annés 60.

R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:26202

Page 7: Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

PPPPPor uma poética da performatividade: o teatro performativo

203

Este excerto me parece eloqüente na me-dida em que apresenta, de forma cristalina, nu-merosas características desse teatro performati-vo que ocupa as cenas teatrais.

De fato, no cerne da noção de performan-ce reside uma segunda consideração, a de queas obras performativas não são verdadeiras, nemfalsas. Elas simplesmente sobrevêm. “As playacts, performative are not ‘true’ or ‘false’, ‘right’or ‘wrong’, they happen” disse Schechner(2002, p. 127). Essa é uma segunda considera-ção. Insistiremos, portanto, nesse caráter de des-crição dos eventos16 que se torna, assim, umacaracterística fundamental da performance (“ithappens”, disse Schechner). A esse respeito, ostextos falam de “eventness”. Ela coloca em cena,com esse fim, o processo. Ela amplifica, portan-to, o aspecto lúdico dos eventos bem como o as-pecto lúdico daqueles que dele participam(performers, objetos ou máquinas). Existe umrisco real para o performer.

Derrida será o primeiro a prolongar estanoção introduzindo nela um fator importante,o de sucesso ou malogro. Mesmo se o essencialda reflexão deste último recaia sobre a escritaenquanto obra performativa por excelência, eleafirmará que a obra, para ser realmente perfor-mativa, pode ou não atingir os objetivos visados.A reflexão de Derrida marca um redirecio-namento na evolução do conceito de performa-

tividade na medida em que ele afirma que a açãocontida no enunciado performativo pode ounão ser efetiva. Portanto, na medida em que essaobservação se torna um real princípio inerenteà própria natureza dessa categoria de locução, o“valor do risco”, “o malogro” tornam-se consti-tutivos da performatividade e devem ser consi-derados como lei. Insistiremos, portanto, nessecaráter de descrição de eventos que se torna,dessa maneira, uma característica fundamentalda performatividade17.

Se seguirmos nosso primeiro impulso,duas fortes idéias estão no centro da obra per-formativa: De um lado, seu caráter de descriçãodos fatos. Por outro, as ações que o performerali realiza. A performance toma lugar no real eenfoca essa mesma realidade na qual se inscrevedesconstruindo-a, jogando com os códigos e ascapacidades do espectador (como pode fazerGuy Cassier, Jan Lauwers, Heiner Goebbels,Marianne Weems ou a Societas Raffaelo Sanzio,de maneiras diversas). Essa desconstrução passapor um jogo com os signos que se tornam instá-veis, fluidos forçando o olhar do espectador a seadaptar incessantemente, a migrar de uma refe-rência à outra, de um sistema de representaçãoa outro, inscrevendo sempre a cena no lúdico etentando por aí escapar da representação mimé-tica. O performer instala a ambigüidade de sig-nificações, o deslocamento dos códigos, os desli-

16 Evénementiel (vocábulo do qual provavelmente événementialité tenha derivado) é utilizado para desig-nar “aquilo que apenas descreve os acontecimentos”; dessa forma, histoire événementielle seria aquelaque apenas descreve os grandes fatos históricos (guerras conquistas, etc). Em seu estudo “Entre pointsd’entrées et points de ruptures épistémologique(s): l’événementialité architecturale...en question” (quepode ser acessado em http://www.afscet.asso.fr/resSystemica/Paris05/ismail.pdf ), Maldiney faz algu-mas reflexões sobre o sentido que a événementialité que nos parecem pertinentes: “[...] O evento[l’événement] é freqüentemente considerado como sinônimo de referência [repère] ou de desconti-nuidade, ou seja, de ruptura de continuidade (...). O ponto de partida epistemológico da questão daévénementialité cria um espaço de reflexão e de emergência de e sobre o conhecimento; ele se inscreve,no entanto, neste duplo movimento: como referência [repère] temporal e como significante (parâmetroagindo) de uma ruptura produtora de sentido [...].

17 É assim que Derrida consegue fazer a performatividade sair de sua aporia austiniana, permitindo-lhetornar-se uma verdadeira ferramenta teórica transferível a outros campos além do da lingüística.

R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:26203

Page 8: Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

sssss a l a ppppp r e t a

204

zes de sentido. Trata-se, portanto, de desconstruira realidade, os signos, os sentidos e a linguagem.

Tomemos um terceiro exemplo, empres-tado dessa vez de Robert Lepage. Em 1994,Lepage funda sua própria companhia, Ex Ma-china, após ter sido membro do Théatre Repèrede 80 a 86. Seu objetivo é o de favorecer a per-meabilidade das disciplinas e a multidiscipli-naridade em cena. Portanto, de renovar o tea-tro por meio das outras artes. Ele quer fazer umteatro em sintonia com nossa época. Ele vai de-senvolver uma “poética tecnológica” na qual astecnologias estão a serviço da arte do teatro.18

O interesse dessa passagem é o de ver na obra amaneira pela qual Lepage desenvolve a narrati-va, imbrica as narrações em jogo nos espaços(interior/exterior) encaixando-as, invertendo-as.Como ele escreveu, “o teatro é uma arte datransformação em todos os níveis”.19 Lepage vai,portanto, buscar novas maneiras de contar ecriar uma “expatriação”. Ele poetisa o banal.É a tecnologia que o leva a transformar em po-esia este cotidiano. Onde sentimos, com certe-za, a influência do cinema (cortes nítidos; fusõesencadeadas; mudanças de foco). É uma arte dametáfora que permite a estratificação do senti-do (dos sentidos) a partir de um mesmo ele-mento, de um mesmo objeto (uma escotilha).Para Lepage, com intuito de estar de acordocom sua época, o teatro deve dar conta da evo-

lução dos modos de narração, dos modos depercepção e compreensão do mundo. Não sepode mais fazer o mesmo teatro senão pelo pas-sado, mesmo se no fundo são sempre as mes-mas histórias que nele são contadas.

O performer confunde o sentido unívoco– de uma imagem ou de um texto – a unidadede uma visão única e institui a pluralidade, aambigüidade, o deslize do sentido – talvez dossentidos – na cena. Esse teatro procede por meioda fragmentação, paradoxo, sobreposição designificados (Hotel pro forma), por colagens-montagens (Big Art Group), intertextualidade(Wooster Group), citações, ready-mades(Weems, Lepage). Encontramos as noções dedesconstrução, disseminação e deslocamento,de Derrida20. A escrita cênica não é aí mais hie-rárquica e ordenada; ela é desconstruída e caó-tica, ela introduz o evento21 [événement], reco-nhece o risco. Mais que o teatro dramático, ecomo a arte da performance, é o processo, aindamais que produto, que o teatro performativocoloca em cena: Kantor praticava já esta anteci-pação da obra sendo feita. Lepage a coloca nocentro de sua conduta de criador.

Meu quarto exemplo é a partir de Eraritja-ritjakat-musée des phrases22 de Heiner Goebbels.

Heiner Goebbels, compositor e ence-nador, monta essa peça em 2004 no ThéâtreVidy de Lausanne. É baseada na obra de Elias

18 Excertos: Lepage, La face cahée de la lune (A face oculta da lua) (2000): la machime à laver devenuecosmonaute (A máquina de lavar tornada cosmonauta). (NOTA) – Extrait: Kentridge. Woyzech.

19 Perelli-Contos, Irene e Chantal Hébert, “La tempête Robert Lepage”, em Nuit Blanche, no. 55, Prima-vera de 1994, p. 64 – entrevista).

20 Quanto aos signos, necessariamente presentes – pois é impossível escapar a qualquer representação –estes permanecem decodificáveis, mais seu sentido é freqüentemente tributário da relação cênica bemmais que de um referente pré-existente. A ficção em si, assim que está presente, não constitui necessari-amente o coração da obra. Ela está ali como um dos componentes de uma forma em que a colagem dasformas e dos gêneros, a justaposição das ações domina. Performativa, no sentido de Derrida, ela preco-niza a “disseminação” escapando ao horizonte da unidade do sentido.

21 A etimologia da palavra événement [evento, acontecimento], segundo Henry Maldiney, remeteria àquiloque acontece e talvez daí venha a sua associação com a palavra avènement [advento].

22 O título da peça remete a uma palavra australiana que significa “esperar [espérer] algo perdido”.

R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:26204

Page 9: Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

PPPPPor uma poética da performatividade: o teatro performativo

205

Canetti, romancista alemão de origem búlgara(diário e anotações, aforismos) e foi interpreta-da por André Wilms e o Mondrian StringQuartett no Teatro Vidy de Lausanne. Canettinela explora as maneiras como um artista per-cebe e absorve o mundo. Sabemos pouco, ob-serva Goebbels, apenas que Canetti preencheu5 ou 6 cadernetas com observações feitas coti-dianamente durante seus passeios, olhando pelajanela, lendo os jornais e olhando as pessoas nometrô ou no trem [tramways]. É a partir destasanotações e aforismos que se constrói a peça,como uma longa meditação interior por partedo personagem principal que atravessa o mun-do. Essa entrada no espírito de um indivíduoagrada Goebbels particularmente, pois isto per-mite “tornar visível o invisível”23. Trata-se de umgênero não dramático na medida em que ne-nhuma narrativa linear mantém os elementosunidos. Fato importante, a música ocupa umlugar tão relevante quanto os do ator e do tex-to. Estabelece-se entre os três um diálogo que oespectador acompanha com fascínio e prazer. Amúsica de uma grande variedade é emprestadade diferentes compositores, de Bryars, Kurtag(Crumb’s Black Angel), e Scelsi, a Bach (L’artde la fugue), passando por Shostakovich eRavel. A peça começa pelo 8º. Quarteto de cor-das de Shostakovich.

Quarto excerto:Quarto excerto:Quarto excerto:Quarto excerto:Quarto excerto:Erarit jarit jakat-musée des phrases:Erarit jarit jakat-musée des phrases:Erarit jarit jakat-musée des phrases:Erarit jarit jakat-musée des phrases:Erarit jarit jakat-musée des phrases:

aforismos em músicaaforismos em músicaaforismos em músicaaforismos em músicaaforismos em música

Goebbels afirmava: “Como a música pode servisível? Isso é algo que experimento em Eraritja-ritjakat: não apenas como a mente pode ser vi-sível de maneira muito divertida, mas também

como a música pode ser visível”24. A segundaparte que escutaremos é tocada ao mesmo tem-po em que o ator descasca cebolas, bate umomelete no mesmo ritmo que o pizzicato doQuarteto de Ravel.

Excerto complementar de Goebbels.Excerto complementar de Goebbels.Excerto complementar de Goebbels.Excerto complementar de Goebbels.Excerto complementar de Goebbels.O banal do cotidianoO banal do cotidianoO banal do cotidianoO banal do cotidianoO banal do cotidiano

Trata-se precisamente de um jogo com os siste-mas de representação, um jogo de ilusão em queo real e a ficção se interpenetram. Ali onde oespectador crê estar no real, ele descobre que ti-nha sido enganado e que o que era dado comoreal, era apenas ilusão. Essa câmera ao vivo, quesurge no interior do teatro, é somente ilusão.Houve, ao mesmo tempo, precisamente umaderrota [mise en échec] do real e da representa-ção. Ao invés de perceber o real mediado pelatela, ele descobre um efeito de real, e o teatroretoma todos os seus direitos. Acrescento quenas ‘colocações em situação’ [mises en situation]que os espetáculos performativos instalam, é ainter-relação, conectando o performer, os obje-tos e os corpos, que é primordial. O objetivodo performer não é absolutamente o de cons-truir ali signos cujo sentido é definido de umavez por todas, mas de instalar a ambigüidade dassignificações, o deslocamento dos códigos, odeslizamento de sentido. Ele joga ali com os sig-nos, transforma-os, atribui-lhes um outro sig-nificado (Lepage criando o foguete a partir deum pacote de salgadinho em La face cachée dela lune, o Big Art Group em House of no morecriando os objetos cênicos por meio de umabricolagem de natureza cinematográfica a par-tir de simples truques de luz). O que o especta-dor olha, e aquilo pelo que ele se deixa seduzir,

23 What I love so much in this genre of non dramatic literature is that you can attend somebody’s thinking.I try to make it visible or audible”. Site de Gobbels na internet.

24 “How can be music be visible? That’s something I try in Eraritjaritjaka: not only how the mind can bevisible in a very entertaining way but also how music can be visible” Site de Goebbels.

R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:26205

Page 10: Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

sssss a l a ppppp r e t a

206

é precisamente esta arte da esquiva, da falsa apa-rência, do jogo em que ele está precisamentenum lugar onde não sabia que estava. Ele des-cobre assim a força da ilusão.

O último exemplo é proveniente deMarianne Weems que fundou em 1994 a com-panhia Builders Association, após ter sido dra-maturga e assistente de Elizabeth Lecompte doWooster Group. Trata-se de um teatro que aliatecnologia, performance e arquitetura. Seus tra-balhos gostam de colocar em paralelo as ima-gens do real com o real reproduzido pelo vídeo.Ela também deseja modificar as modalidadesatuais de narração, buscando criar na cena ummundo que reflita a cultura contemporânea.A obra de Weems questiona o uso da tecnolo-gia em sua relação com o homem. À sua ma-neira, ela procura aumentar as fronteiras do te-atro. Como ela mesma afirma, a tecnologia é opersonagem principal de suas peças e os per-formers devem aprender a compor com ela, nãoa sentindo como um perigo, mas como umacúmplice. Jet Lag foi criada em 1998, Alladeenem 2003.

Jet Lag relata dois excertos da vida extraí-dos de fatos vividos. Um, conta a história de umeletricista que empreende uma corrida ao redordo mundo num veleiro, patrocinado pela BBC.Vendo que não conseguirá, ele usa um estrata-gema que consiste em fazer crer, por meio deuma instalação tecnológica que está ganhandoa corrida. Ele transmite as imagens de sua corri-da por satélite, enviando dados falsos que o co-locam na dianteira. Ele desaparece antes que o

subterfúgio seja desvendado. Apenas seu barcoabandonado é encontrado25.

O que é comum a todos esses excertos, éum jogo com a representação. Uma forma de re-presentação que se nega a si mesma (ele agecomo se estivesse na dianteira e encena sua vi-tória). Escrevemos bastante sobre a fuga da re-presentação ou a desconstrução que colocavaem xeque o teatro atual, tentando por vezes ope-rar nos limites do simbólico, na descrição puradas ações (Annie Sprinkle, Laurie Anderson),ou na falta de referencialidade por trás dele.26

É precisamente esta falta de referencialidadeque Jet Lag encena. O personagem se contentaem nos fazer crer que ele está onde não está.E Weems nos mostra, graças à tecnologia, essejogo de ilusão. Mas, ao nos mostrar o procedi-mento, ela dissipa o jogo da ilusão, mantendoao mesmo tempo à vista do espectador a ilusão(ele está no mar) – e sua enganação (vemos suainstalação rudimentar). Estamos aqui diante deuma performatividade da tecnologia que des-monta habilmente a teatralidade do processopara trazer à luz sua performatividade.

O segundo trecho baseado em Alladeen,joga para ainda mais longe o sistema, centrando,dessa vez, toda a performatividade sobre os pro-cedimentos tecnológicos que não apenas permi-tem o jogo da ilusão mas que o desmontam doavesso, na medida em que assistimos à constru-ção do cenário (que é fortemente realista). Masao colocar em primeiro plano o processo,Weems coloca em xeque a teatralidade, colocan-do a performatividade – tanto a dos performers

25 Trechos, Weems, Jet Lag. A segunda narrativa de Jet Lag trata de uma viagem em “alta velocidade” deuma mulher que foge para salvar seu neto da internação. Os dois encontram-se como prisioneiros dosaeroportos fazendo 167 vezes a ida e volta Amsterdã-Nova Yorque. A avó não sobreviverá a esta experi-ência e morrerá de jet lag [cansaço extremo ocasionado pelo excesso de viagens].

26 [...] o performativo não tem seu referente [...] fora dele ou, em todo caso, antes dele e diante dele. Elenão descreve algo que existe fora da linguagem e antes dela. Ele produz ou transforma uma situação, eleopera; e si podemos dizer que um enunciado constativo efetua também algo e sempre transforma umasituação, não se pode dizer que isso constitui sua estrutura interna, sua função ou seu destino manifes-tos [...]. J. Derrida, Marges de la Philosophie, Minuit, 1972.

R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:26206

Page 11: Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

PPPPPor uma poética da performatividade: o teatro performativo

207

quanto a das máquinas – no centro da cena.É o que demonstra essa passagem de Alladeen.

Alladeen conta a história verídica de curan-deiros indianos engajados em atender aos te-lefonemas dos clientes, americanos, que seencontram nos Estados Unidos. As exigênci-as da profissão fazem com que eles tenhamque ter um sotaque americano, o que fará osclientes acreditarem que eles não estão longe,e que eles são mesmo americanos. Assistimos,portanto, a uma lição de cultura americanaque tende pouco a pouco a modificar seusreferentes culturais e os faz adentrar em umuniverso, do qual são, a priori, excluídos.27

O ato performativo se inscreveria assimcontra a teatralidade que cria sistemas, do sen-tido e que remete à memória. Lá onde a teatra-lidade está mais ligada ao drama, à estruturanarrativa, à ficção e à ilusão cênica que a distan-cia do real, a performatividade (e o teatro per-formativo) insiste mais no aspecto lúdico dodiscurso sob suas múltiplas formas – (visuais ouverbais: as do perfromer, do texto, das imagensou das coisas). Ela os faz dialogar em conjunto,completarem-se e se contradizerem ao mesmotempo, como nos espetáculos de A. Platel ounos de Gómez Pena e Coco Fusco. Mas é real-mente possível escapar de toda a referenciali-dade e, assim, à representação? A questão per-manece aberta.

Eu dizia que havia duas idéias principaisno cerne da obra performativa. A segunda con-siste no engajamento total do artista colocandoem cena o desgaste que caracteriza suas ações(Nadj, Fabre). Não se trata necessariamente deuma intensidade energética do corpo no mode-lo grotowskiano, mas de um investimento de si

mesmo pelo artista. Os textos evocam a “vivaci-dade” (liveness) dos performers, de uma presençafortemente afirmada que pode ir até uma situa-ção de risco real e implica em um gosto pelorisco (veja-se o excerto de Jan Lauwers que mos-tramos anteriormente).

Poderíamos tentar aqui uma análise maisaprofundada dessas duas características do tea-tro performativo, mostrando os grandes princí-pios e a diversidade das práticas que fazem par-te dele, do Théâtre de Reza Abdoh ao de RobertWilson, das encenações de Wajdi Mouawad àsde Ivo van Hove, dos espetáculos de KarenFinley aos de Anne Bogart, dos do Big ArtGroup às performances de Annie Sprinkle. Se-ria muito longo para fazê-lo nos limites dessacomunicação, mas é necessário insistir no pa-norama bastante diversificado das práticas quese inscrevem nele, com a performatividade pe-netrando em todas as formas de teatro, incluin-do as mais tradicionais, assim como o dramaimpregna todas as formas pós-dramáticas.

Quanto ao espectador, ele está, assimcomo o performer, situado na intimidade daação, absorvido por seu imediatismo ou pelosriscos implicados no jogo (Le Dortoir, de GillesMaheu). Mas ele pode também ficar no exteriorda ação, gravar com frieza as ações que se de-senrolam diante dele28, mantendo um direitode olhar que permanece exterior, como ele o fazdiante de certas performances. Sua maneira depercepção, portanto, nem sempre implica a ab-sorção na obra. Ele pode também sustentar umdireito de olhar que permanece exterior.

Vale ainda dizer que nas outras formas te-atrais (particularmente as dramáticas), o teatroperformativo toca na subjetividade do performer.Para além dos personagens evocados, ele impõeo diálogo dos corpos, dos gestos e toca na den-

27 Excerto Weems, Alladeen.28 Pode também tratar-se de uma alternância destas duas formas de recepção (adesão, distância),como em

Castorf ou Marianne Weems.

R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:26207

Page 12: Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

sssss a l a ppppp r e t a

208

sidade da matéria, sejam as do performer emcena ou das máquinas performativas: vídeos,instalações, cinema, arte virtual, simulação (Thebuilders Association, Big Art Group, Castrof ).

Quais as conclusões a tirar desse percur-so traçado?

1. Inicialmente, uma ressalva: apesar do quadroque tentamos esboçar de maneira ampla, qual-quer generalização no domínio da prática em sinão é bem vinda. O panorama teatral é bastan-te diversificado tanto na América do Nortequanto na França. As práticas atuais não sãonem uniformes nem unívocas e elas não podemser comparadas umas com as outras sem quais-quer falsos apontamentos. Todas elas empres-tam de diversas filiações – tanto a do texto,quanto a da imagem, do formalismo das artes

29 Termo que nos parece mais adequado que teatro pós-dramático, cuja definição dada par Lehmann é aseguinte: “O teatro pós-dramático é um teatro que exige um ‘evento [acontecimento] cênico que seria ,a tal ponto, pura representação, pura presentificação do teatro, que ele apagaria toda idéia de reprodu-ção, de repetição do real’ in Sarrazac, Critique du théâtre (2000, p. 63), citado pelo próprio Lehman(14). É evidente que não pode existir “pura representação do teatro”, não mais no teatro pós-dramáticoque no teatro performativo. A tese de Lehmann é de que “a profunda ruptura das vanguardas nosarredores de 1900 a [...] continuou a preservar o essencial do ‘teatro dramático’, em despeito de todasas inovações revolucionárias. As formas teatrais que surgiram então, continuaram a servir à representa-ção, a partir de então modernizada com universos textuais” (28). Estas mesmas vanguardas só coloca-vam em questão o modo transmitido da representação e da comunicação teatral de maneira limitada,permanecendo, finalmente, fiéis ao princípio de uma mímesis, de uma ação no palco (28). É “na estei-ra do desenvolvimento, seguido da onipresença das mídias na vida cotidiana desde os anos 1970, [que]surge uma prática do discurso teatral nova e diversificada”, aquela a que Lehmann qualifica de teatropós-dramático (28). O epíteto ‘pós-dramático’ aplica-se a um teatro levado a operar para além do dra-ma; isto é, que o drama nele subsiste como “estrutura do teatro normal, numa estrutura, enfraquecida eem perda de crédito: como espera de uma grande parte de seu público, como base de inúmeras de suasformas de representação, enquanto norma de dramaturgia funcionando automaticamente” (35). Serápreciso esperar os anos 80, fato ainda observado por Lehmann, para que “o teatro obrigue, para tomaros termos de Michael Kirby, a considerar que uma ação abstrata, um teatro formalista em que o proces-so real da ‘performance’ substitua o mimetic acting, um teatro com textos poéticos nos quais pratica-mente nenhuma ação seja ilustrada, não define mais somente um ‘extremo’, mas uma dimensão pri-mordial da nova realidade do teatro (49). O teatro pós-dramático tem certo parentesco com a idéiadesenvolvida por J. F. Lyotard de teatro energético que não será sobremaneira teatro da significação,mas “teatro das forças, das intensidades, das pulsões em sua presença [...]. Um teatro energético existi-ria para além da representação – o que, certamente, não quer simplesmente dizer sem representação,

visuais e da interpretação – e nem sempre é fá-cil distinguir as influências e as rupturas. Serianecessário, portanto, para aproximar a realida-de da prática, oferecer de preferência o quadrocaleidoscópico das formas e das estéticas.

2. Existe, apesar de tudo, uma linha fraturandoduas visões do teatro: uma que rompeu com atradição e se inspira na performance e outra quemantém uma visão mais clássica da cena teatral.A primeira é mais livre e inventa os parâmetrosque permitem pensá-la, a segunda permaneceem certa medida tributária do texto e da fala,mesmo que esse último não seja mais, necessa-riamente, o seu motor. Os encenadores de quefalamos (americanos, flamengos, e alemães par-ticularmente), em sua grande maioria, privile-giam a primeira destas opções, a qual chamare-mos de teatro performativo29. Já as referências

R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:26208

Page 13: Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

PPPPPor uma poética da performatividade: o teatro performativo

209

francesas e do Quebéc, por exemplo, permane-cem, uma e outra, claramente, mais teatrais.

3. Se a arte da performance se dispersou nas nu-merosas práticas performativas atuais, ela o fezem maior grau do lado americano, anglo-saxão,dever-se-ia dizer, mas, também, flamengo, bel-ga, britânico, italiano, suíço e alemão. Uma dasprincipais características desse teatro é que elecoloca em jogo o processo sendo feito, processoesse que tem maior importância do que a produ-ção final. Mesmo que essa seja meticulosamenteprogramada e ritmada, assim como na perfor-mance, o desenrolar da ação e a experiência queela traz por parte do espectador são bem maisimportantes do que o resultado final obtido.

4. A diferença entre as duas abordagens é igual-mente perceptível no nível dos discursos teóri-cos e das abordagens analíticas, os universitáriosamericanos tendo preferido desenvolver o con-ceito de “performance” em seu sentido antro-pológico, multicultural e multidisciplinar, abar-cando pelo fato em si toda a imensidade do reale perdendo, nesta empreitada, a especificidadeda obra artística em si. Do lado francês, a resis-tência ao conceito é grande (o conceito perma-

mas antes não sujeito à sua lógica (52)”. E de acrescentar, é somente quando os meios teatrais – além dalíngua – forem colocados no mesmo nível que o texto e pensáveis mesmo sem o texto, que poderá sefalar de teatro pós-dramático (81)”. A ação tende a desaparecer, assim como o começo de processosfictícios (105); desaparece também a descrição e narratividade fabuladora do mundo. Esta definição deLehmann deve, certamente, ser nuançada, como ele mesmo faz. Ela constitui um horizonte de esperamais que uma realidade, na medida em que é impossível para uma forma teatral, qualquer que ela seja,de escapar à narratividade e, de fato, à representação. In Hans-Thies Lehmann, O teatro pós-dramático.Paris, L’Arche, 2002.

nece ali desconhecido ou subestimado), comojá havia sido com a performance arte. A visãopermanece definitivamente estética.

5. No teatro performativo, o ator é chamado a“fazer” (doing), a “estar presente”, a assumir osriscos e a mostrar o fazer (showing the doing),em outras palavras, a afirmar a performatividadedo processo. A atenção do espectador se colocana execução do gesto, na criação da forma, nadissolução dos signos e em sua reconstrução per-manente. Uma estética da presença se instaura (semet en place).

6. Nesta forma artística, que dá lugar à perfor-mance em seu sentido antropológico, o teatro as-pira a produzir evento, acontecimento, reencon-trando o presente, mesmo que esse caráter dedescrição das ações não possa ser atingido. A peçanão existe senão por sua lógica interna que lhedá sentido, liberando-a, com freqüência, de todadependência, exterior a uma mímesis precisa, auma ficção narrativa construída de maneira li-near. O teatro se distanciou da representação.

Mas, ele se distanciou, de fato, da teatra-lidade? A questão merece ser colocada.

R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:26209

Page 14: Por uma poética da performatividade: o teatro performativo o

sssss a l a ppppp r e t a

210

RESUMO: o texto delimita os conceitos de performance e performatividade para empreender umaredefinição do teatro contemporâneo e uma análise de seu funcionamento. A partir da síntese dasprincipais características da performatividade são avaliados espetáculos de diversos encenadores, comênfase nos aspectos performativos das criações.PALAVRAS-CHAVE: performance, performatividade, teatro contemporâneo, teatro pós-dramático.

R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:26210