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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação POR UM REGIME ESTÉTICO DAS ARTES DO DOCUMENTÁRIO 1 Algumas considerações para inscrição do documentário numa perspectiva de um regime das maneiras de ser do sensível Beatriz Furtado 2 Resumo: Este artigo objetiva apresentar as noções de espaço do continuum (Lygia Clark) e de imagem que arde (Didi- Huberman) como duas formas de apreender as transformações que ocorrem nos modos de percepção do real e que instauram fissuras nas fronteiras que separam o sujeito e o objeto, o dentro e o fora, a vida e a arte. Trata-se de uma proposição que toma das artes contemporâneas as partilhas sensíveis, a partir da perspectiva teórica de Jacques Rancière sobre dois regimes da arte, um regime que é o da representação, cujo modelo é a Mimesis, que marcou a história das artes até há dois séculos, e o regime estético, este que é irredutível às regras da mimética e que pretende um pensamento ocupado com as novas formas de percepção e afeto que emergem das artes como maneiras de ser do sensível. Palavras-Chave: 1.Estética 2. Documentário 3.Artes. 1. O espaço do continuum Uma questão central das artes contemporâneas tem sido a relação entre o espaço da arte - da pintura, da imagem, da cena, etc.-, como espaço construído, e o espaço do mundo, do universo. Talvez por isso se possa afirmar que o principal legado da obra de Lygia Clark, acerca dessa discussão estética e filosófica, tenha sido o de travar com o seu trabalho o embate entre o sujeito e o objeto, o dentro e o fora, que é o cerne da relação entre a arte e 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “<Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual>”, do XXI Encontro da Compós, na Universidade Federal de Juíz de Fora, MG, em junho de 2012. 2 Universidade Federal do Ceará, [email protected]

Por um regime estético das artes do documentário

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Beatriz Furtado

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Page 1: Por um regime estético das artes do documentário

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

POR UM REGIME ESTÉTICO DAS ARTES DO DOCUMENTÁRIO1

Algumas considerações para inscrição do documentário numa perspectiva de um regime das maneiras de ser do sensível

Beatriz Furtado2

Resumo: Este artigo objetiva apresentar as noções de espaço do continuum (Lygia Clark) e de imagem que arde (Didi-Huberman) como duas formas de apreender as transformações que ocorrem nos modos de percepção do real e que instauram fissuras nas fronteiras que separam o sujeito e o objeto, o dentro e o fora, a vida e a arte. Trata-se de uma proposição que toma das artes contemporâneas as partilhas sensíveis, a partir da perspectiva teórica de Jacques Rancière sobre dois regimes da arte, um regime que é o da representação, cujo modelo é a Mimesis, que marcou a história das artes até há dois séculos, e o regime estético, este que é irredutível às regras da mimética e que pretende um pensamento ocupado com as novas formas de percepção e afeto que emergem das artes como maneiras de ser do sensível.

Palavras-Chave: 1.Estética 2. Documentário 3.Artes.

1. O espaço do continuum

Uma questão central das artes contemporâneas tem sido a relação entre o espaço da arte - da

pintura, da imagem, da cena, etc.-, como espaço construído, e o espaço do mundo, do universo.

Talvez por isso se possa afirmar que o principal legado da obra de Lygia Clark, acerca dessa

discussão estética e filosófica, tenha sido o de travar com o seu trabalho o embate entre o sujeito e o

objeto, o dentro e o fora, que é o cerne da relação entre a arte e a vida, o espaço e o tempo. Não por

acaso, Lygia Clark fala de sua proposição “Caminhando” (1963) como uma experiência com um

estado em que não se diferenciam os ritmos do mundo, percebendo-os todos como um ritmo global

que a faz dissolver-se no coletivo.

A fita de Moebius, com a qual Lygia Clark faz o percurso desse espaço dissolvido em um

só ritmo no mundo, em “Caminhando”, é uma experiência que contrasta com todas as referências

espaciais construídas, tais como direita e esquerda, dentro e fora, direito e avesso, frente e verso,

alto e baixo, criando o espaço como um continuum. É exatamente sobre essa mesma experiência de

espaço sem demarcações nem limites, que tem no continuum uma referência desse estado, que se

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “<Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual>”, do XXI Encontro da Compós, na Universidade Federal de Juíz de Fora, MG, em junho de 2012.2 Universidade Federal do Ceará, [email protected]

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situa a matéria e o problema dos mais instigantes do filme documentário, em especial em algumas

das experiências do documentário contemporâneo.

O continuum no filme documentário, no entanto, nem sempre foi a face de um estado das

imagens em que vida e obra fílmica se tornam indistintas. As continuidades e descontinuidades

espaço-temporais da obra cinematográfica, que tanto pautou o debate do cinema, andaram quase

sempre em busca de um estado verdadeiro da imagem. Não de um único e só ritmo no universo,

como foi a experiência de Lygia Clark, em que não era mais possível discernir os ritmos de Mozart

dos gestos jogador de futebol na beira da praia, mas ao contrário, buscou uma imagem justa. Não

um cinema de apenas imagens, justo imagens, como pretendia Godard, mas de uma imagem

verdadeira, fiel ao mundo porque uma boa cópia.

Assim sendo, coube ao documentário, desde muito cedo, o embate entre o espaço fílmico e o

espaço desse continuum, onde se inscreve o mundo- esse espaço sem limites, esse universo sem

fissuras temporais - pela porta dos entraves com uma suposta imagem verdadeira, reveladora desse

espaço-mundo. Como encontrar essa imagem capaz de perfurar essa teia invisível entre filme e

mundo foi e, em geral, continua sendo, o campo de batalha privilegiado do cinema documentário. A

busca por essa imagem acabou por constituir uma categorização, quase sempre forçada, entre o

documentário, sob o signo da imagem verdadeira (do tathata, isto existe/ser isso, do real em sua

expressão infatigável, da qual falou Barthes), e as demais produções fílmicas, que recebem o nome

de ficcionais.

Não é preciso dizer que esse embate entre dois modos de operação cinematográfica, embora

muitas vezes frágil, tem uma permanência nas teorias do documentário e contribuem, efetivamente,

para pensar o cinema na sua relação com a vida. E aqui não se trata de retornar ao debate sobre as

linhas que separam ou se entrelaçam entre ficção e documentário, mas de retomar, a partir da

experiência vivida por Lygia Clark, em “Caminhando”, um abrigo para pensarmos o documentário

na perspectiva das artes contemporâneas.

Não se trata de uma análise da obra de Lygia Clark, mas de partir de sua experiência,

especificamente com “Caminhando”, não com a interpretação, mas com a experiência estética

possibilitada pela obra, que nos parece indicar um processo de perfuração dessa teia que separa obra

e vida, objeto e sujeito, artista e produção, como uma qualidade, não de uma imagem verdadeira ou

com a perspectiva de atingir o real, na medida sugerida por algumas teorias do documentário, mas

de um modo de experimentar o continuum constituído pelo espaço estético.

Suely Rolnik (1999) afirma a obra de Lygia Clark como uma aposta na liberação do objeto

da arte de sua inércia formalista a partir da criação de objetos vivos, para os quais se colocava a

vontade de entrever as forças, a processualidade incessante, a potência vital que tudo agita. Embora

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essa discussão esteja situada mais precisamente na vontade de ruptura com um sistema de arte

instaurado, como explica Rolnik, por um elitismo mundano, nos parece fundamental apreender, em

toda a sua radicalidade, não apenas o projeto de levar a arte a torna-se uma dimensão da existência

de todos, se já não fosse suficiente, mas, sobretudo, o problema central do significado da proposição

estética que identifica as artes contemporâneas com a própria vida.

Para tanto, embora não tenhamos tempo de detalha-lo, saibamos ao menos que nos

encontramos próximos aos caminhos traçados por Gilles Deleuze em sua filosofia da imanência.

Isso porque entendemos que é preciso perguntar, afinal, onde a vida pode ser apreendida pelas artes

afim de que possamos assumir a problemática do documentário não mais pelo regime da verdade

das imagens (ou sua relação de Mimesis), mas pela intensidade de suas forças, para promover um

único e só movimento entre vida e imagens. Esse é um desafio que negocia com a imanência de um

espaço sensível, um possível de mundo na imagem, embora não implique, necessariamente, na

negação das conexões que vida e obra estabelecem com espaços de transcendência.

Nesse ponto, perguntamos não mais sobre como o documentário se abre à vida, não para

construir uma imagem fiel ao mundo, reproduzi-lo como identificável, mas, de outra forma, numa

reposição da questão, perguntando agora como o documentário consegue apreender o ritmo e o

movimento da vida se abrindo a uma imagem atravessada pelos ritmos do mundo, quer dizer, sobre

o espaço do continuum no documentário em suas experiências estéticas. Estamos falando,

portanto, do continuum como um estado da imagem, em que espaço e tempo, são modulados na

especificidade de sua duração.

O fio que nos conduz não nos leva a pergunta sobre um modelo de cinema que se quer

comprometido com o real pelos laços que os une à sua imagem e semelhança, para falar do isso

existe, esse é um lugar dos índices de representação, questão que não nos interessa aqui. Importa

criar um caminho para apreender o sentido de como uma imagem que dura pode produzir uma

experiência sensível, portanto, estética, do mundo - esse espaço-tempo continuum, que muitas

vezes experimentamos como espaço-tempo opaco e sem qualquer aderência. É essa a perda que

temos com as imagens fracas, banalizadas. Elas nos retiram do mundo, nos enfraquecem, nos

demobilizam. O que nos parece imprescindível afirmar é que a partilha do mundo não é uma

negociação com o real, este que é tomado com um dado que nos escapa. É uma partilha de um

regime estético (Rancière, 2001) da arte que permite que as imagens possam entrar em um e só

ritmo, em um único e só movimento, em uma e única duração. E, mais ainda, que essa é uma

relação entre um interioridade expressa na obra, como representação do artista, mas um processo de

criação, do embate com a obra.

Quando Lygia Clark diz que, pela primeira vez, com ‘Caminhando’, descobriu uma nova

realidade e que essa nova realidade não foi uma descoberta ‘em mim’, senão uma descoberta no

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mundo (1983), há, desde logo, um deslocamento do lugar que a obra estabelece. Esse deslocamento

ocorre como uma nova realidade. Essa realidade, diz Lygia Clark, é um ‘itinerário interior fora de

mim’. Um itinerário que já não se faz pelos embates de forças estéticas separadas -nem interiores,

nem exteriores-, mas da tensão de forças irredutíveis ao sujeito e ao objeto. “Os Bichos (1960)

emergiam de mim, emanavam de uma explosão obsessiva por todos os meus sentidos. Agora, pela

primeira vez, com ‘Caminhando’, ocorre o contrário (1983). Esse contrário, no entanto, não é a

imposição do objeto sobre o sujeito, mas uma relação em que objeto e sujeito se encontram numa

totalidade do mundo. “Percebo a totalidade do mundo como um ritmo único, global, que se estende

desde Mozart até os movimentos do jogador de futebol na praia” (CLARK). Trata-se de uma ordem

de totalidade que não significa uma compreensão nem um estado de apropriação de um todo, de um

absoluto, mas de partilha, de se sentir parte, de experimentar-se num espaço e num tempo único,

mas indivisível, irredutível à comum como igual.

Essas nos parecem ser, entre as questões da relação entre a arte e a vida, uma modulação da

imagem que talvez nos traga uma chave para compreensão da matéria do documentário como um

regime da arte do cinema. Talvez esse Outro (mundo, alteridade), objeto que ocupa lugar central no

documentário, possa se fazer pelos caminhos do regime da arte, da passagem do Eu e do Tu para

uma linguagem do Ele, que não é mais um ser determinado, mas um todo qualquer. Tal como

Deleuze afirma, a propósito da escrita: “decerto que escrever não é impor uma forma (de expressão)

a uma matéria, a do vivido. A literatura tem que ver, em contrapartida, com o informe, com o

inacabado (...). Escrever, para Deleuze (1993), é uma questão de devir, quer dizer, um sempre

inacabado, sempre a fazer-se, em processo, como uma matéria vivível ou vivida. “É um processo,

quer dizer, uma passagem para a vida que atravessa o vivível e o vivido. Não se trata de uma forma,

que é identificação, imitação, Mimésis, é encontrar zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou

indiferenciação. Essas zonas não são imprecisas nem gerais, mas imprevistas, não-preexistentes,

onde quando menos determinados mais singularizados.

2. A imagem que queima

A potência do real para se inscrever nas obras audiovisuais documentais sempre foi um

atributo por demais evocado e, sobretudo, forjado a se dar como uma experiências de diferentes

processos de aproximação, de abordagem e mesmo de uma metodologia aplicada pelas ciências do

homem. Como penetrar em um universo que nos parece exterior, como abrigar uma alteridade que

não se entrega e mesmo se recusa. Os métodos do cinema direto, a dramaturgia do homem comum,

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o rigor da montagem (como nos Straub) ou a utilização de planos-sequências, câmeras fixas, etc.,

são pensamentos-cinema, cuja investigação busca chegar a um lugar em que o cinema acontece.

Nesse sentido em que a obra se abre aos devires, jamais se constituindo numa forma, numa

determinação. Por caminhos os mais diversos, em determinado momento, esse cinema acontece,

esta é a nossa tese, porque há um momento de indistinção entre o movimento cinema e o

movimento do mundo. Ou ainda, corroborando com as afirmativas de Lygia Clark, quando o

cinema entra em um único e só movimento com o mundo.

Didi-Huberman (2004) afirma a tese de que ocorre que as imagens queimem o real. Sua

hipótese é que esse toque de real na imagem se dá quando a imagem queima 3. Afirma ainda que não

se pode falar do contato entre a imagem e o real sem falar de uma espécie de incêndio. Não nos

parece que essa hipótese se afaste da experiência que teve Lygia Clark em ‘Caminhando’, que

expressa o continuum da imagem e do mundo, o mesmo ritmo e o mesmo movimento. O que

arde na imagem que a faz confundir-se, torna-la única em relação ao mundo, segundo Rilke, a quem

Didi-Huberman recorre, é uma afirmação tautológica, mas ao um só tempo da experiência do artista

em seu processo de criação. Rilke (1915) diz que se arde, é verdadeira. Uma experiência da qual

também fala Benjamin (1985), se referindo a verdade como um incêndio da obra, onde sua forma

alcança seu maior grau de luz. O que para Didi-Huberman arde ao contato com o real, para Lygia

Clark é um atravessamento de universos sensíveis, uma força que permite conectar-se como um só

corpo, obra e mundo.

O que arde, o que toca o real, o que é da ordem do continuum ou que é da ordem de uma

exterioridade nas imagens, e, em especial, nas imagens do documentário, é uma problemática do

campo da estética, das mais fundamentais. As estratégias de um processo artístico, como no campo

cinematográfico, ou seja, os modos de acelerar, desacelerar uma imagem, de compactar ou adensar

uma ação, de exteriorizar uma cena ou incluir-se nela através de posicionamentos de câmeras, de

enclausurar os espaços ou de alongá-los ou ainda de dar centralidade a personagens ou apenas num

fora de campo, são procedimentos que atendem a uma perspectiva estética, política e mesmo

ontológica da imagem cinematográfica. São práticas que vão estabelecer modos de abordagem do

objeto, da temática, da personagem,etc., que a cada obra cinematográfica ganha uma dimensão

estética, uma perspectiva teórica e um modo de partilha sensível.

3 Elle brûle du réel dont elle s’est, à un moment, approchée (comme on dit, dans les jeux de devinette, «tu brûles» pour «tu touches presque l’objet caché»). Elle brûle du désir qui l’anime, de l’intentionnalité qui la structure, de l’énonciation, voire de l’urgence qu’elle manifeste (comme on dit «je brûle pour vous» ou «je brûle d’impatience»). Elle brûle de la destruction, de l’incendie qui faillit la pulvériser, dont elle réchappa et dont, par conséquent, elle est capable aujourd’hui d’offrir encore l’archive et la possible imagination. Elle brûle de la lueur, c’est-à-dire de la possibilité visuelle ouverte par sa consummation même: vérité précieuse mais passagère, puisque vouée à s’éteindre (comme une bougie nous éclaire mais, en brûlant, se détruit elle-même). Elle brûle de son intempestif mouvement, incapable qu’elle est de s’arrêter en chemin (comme on dit «brûler les étapes»), capable qu’elle est de toujours bifurquer, de brusquement partir ailleurs (comme on dit «brûler la politesse»).

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Nossa intuição, numa perspectiva da intuição como forma de conhecimento, é que os

procedimentos diferenciados de mise en scene, as linhas dramaturgias e arranjos narrativos, são

modos de operação do fazer fílmico, são formulações plásticas da imagem cinematográficaque

ocorrem de tocar o real, aquele momento em que a imagem a arde, segundo Didi-Huberman, ou/e o

momento, que segundo o relato da experiência de Lygia Clark, já não há separação entre obra e

mundo, esse momento onde queima a imagem, quando se estabelece uma quebra na relação sujeito-

objeto. Ou seja, cinema e mundo estão unidos numa única e só duração.

Mas, como podemos falar de uma única e só duração entre imagem/mundo, da ruptura entre

essa dicotomia que separa objeto e sujeito? O pensamento cinematográfico tem se pautado por

manter uma distinção entre ficção e documentário, tomando para este a tarefa de fazer transpor as

fronteiras entre o mundo filmado e o mundo da vida, criando no mais das vezes teorias a respeito

dos momentos em que esses diferentes mundos se tocam. Quando há uma continuidade entre eles, é

nesse momento que o real escapa, seja por força do risco (COMOLLI, 2008 ) ou ainda, numa outra

perspectiva, quando nas imagens se encontram formas de vida (BRASIL, 2010), neste caso, quando

há uma indeterminação entre o que vem da ficção e o que vem do real, o que, como explica Brasil,

torna improdutiva a distinção entre ficção e o documentário. Tanto a força do risco quanto as

formas de vida na imagem são teses que apontam para processos que implicam no acolhimento do

imprevisível, no encontro de linhas de fuga, na criação de situações-cinema que não se guiam por

formalizações, dando ao processo cinematográfico uma capacidade de absorção e uma porosidade

para a vida.

São nesses instantes precisos em que imagem e mundo se tornam indiscerníveis, em que a

obra filmica, ficcional ou documental, se inscrevem num regime da arte. Mais precisamente, é

quando o cinema passa as fronteiras da comunicação, dos enunciados, e entra num regime estético

que o cinema encontra, nos termos elaborados por Rancière, um regime estético das artes. Nesse

regime, a obra fílmica pertence a um sensório específico.“A propriedade da ser uma coisa da arte se

refere não a uma distinção entre os modos de fazer, mas uma distinção entre os modos de ser”

(RANCIÈRE, 2004, p. 44).

3. Regime estético

Em pelo menos dois de seus livros dedicados à estética, ‘Aistesis- scènes du régime

esthétique de l’art’ (2011) e ‘Malaisie dans l’esthétique’ (2004), Jacques Rancière trata

sobre dois regimes da arte, o regime representativo e o regime estético. Antes, porém, define o

lugar da estética como uma categoria, que desde dois séculos, designa no Ocidente o tecido sensível

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e a forma de inteligibilidade do que se chama arte. Foi preciso que houvesse uma série de mutações

nas formas de experiência sensível, na maneira de perceber e de ser afetado, diz Rancière (2011),

para que houvesse uma mudança no regime da arte.

São as condições materiais - dos lugares da performance e de exposição, das formas de circulação e de reprodução- , mas também os modos de percepção e os regimes da emoção, das categorias que lhes identificam, dos esquemas de pensamento que lhes classificam e lhes interpretam. Essas condições tornam possível que palavras, formas, movimentos, ritmos, sejam sentidas e percebidas como da arte.4 (nossa tradução) (RANCIÈRE, 2011, p. 10).

O regime da representação baseia-se em formas de pensamento que tomam as

diferentes artes como representativas da realidade, no caso, a realidade dos povos do Ocidente, que

é o pensamento da Mimesis e das Belas Artes. Esse paradigma definia uma legislação mimética

que pautava a arte. Rancière toma para análise diferentes cenas das artes contemporâneas - sejam as

artes plásticas, literárias, as artes da performances, das reproduções técnicas-, para mostrar, não

como se dão as transformações em cada uma delas, no novo regime estético, mas para assinalar

como a emergência dessas artes, sob esse novo regime, obriga a modificar os paradigmas da arte.

Nesse sentido, na proposição de Rancière, o regime estético da arte não é um nova ordem

legislativa, mas um outro paradigma para pensar a arte como uma constelação de movimentos onde

se formam os modos de percepção, os afetos e as formas de interpretação.

O que Lygia Clark experimenta com ‘Caminhando’ é um regime estético das artes, como

uma noção que designa uma experiência específica, cuja estética, como categoria, diz sobre o tecido

sensível e sobre as formas e maneiras de perceber e ser afetado. É também dessa experiência e,

sobretudo, é nesse regime da arte, que o filme documentário interrompe as conexões objeto-sujeito

e, ao contrário do que há muito se debate nas teorias do documentário, não se trata apenas do

encontro com a alteridade, como exterioridade da relação cineasta-objeto, mas de uma profunda

transformação das hierarquias e das coordenadas usuais das experiências sensoriais. É quando há

uma desorganização da nossa experiência com o mundo, da relação do cineasta com o seu cinema,

que vamos encontrar um campo para se instalar um regime estético, no cinema, capaz de romper

com as fronteiras entre imagem e mundo. É quando o cinema documentário se faz não pelo que se

sabe mas pelo que essa relação fílmica irrompe.

O que faz da imagem algo que arde, o que faz o cinema documentário deixar de ser um

objeto sobre o qual se enuncia (uma temática, uma personagem, um problema, etc.) e passar a ser

algo que se partilha é a sua transformação radical em um regime da estética, regime sensível e de

4 No original: Ce sont des conditions tout à fait matérielles - des lieux de performance et d’exposition, des formes de circulation et de reprodution -, mais aussi des modes de perception et des régimes d’émotion, des catégories qui les identifient, des schèmes de pensée qui les classent et les interprètent. Ces conditions rendent possible que des paroles, des formes, des mouviments, des rythmes soient ressentis et pensés comme de l’art.

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inteligibilidades, tal qual nos fazer Rancière. É quando o documentário sai do regime da Mimesis,

como regime de identificação das artes, que ele pode fissurar o tecido da norma que estabelece a

ordem do mundo. Não de um regime estético como uma disciplina que aponta as formas dignas de

constituir o campo das artes, mas como um regime capaz de dá inteligibilidade as formas

emergentes do documentário, que realizam pequenas revoluções nas formas de percepção, de afeto

e de inteligibilidades. O que é digno de ser do documentário, dentro desse regime, não são as boas

formas, as que correspondem a um regime representativo dado, que estão em conformidade com as

formas de percepção que confirmam a existência, comprovam e confirmam semelhanças instituídas.

Não que o documentário não nos faça estabelecer um vínculo com as formas do real, um

vínculo figurativo ou outro qualquer, mas é justo quando desloca e desorganiza modelos

perceptivos, regimes de visualidades, que o ele pode entra num regime estético das artes e

apreender os fluxos dos deslocamentos e movimentos da vida, abrindo-se ao real como espaço sem

começos e fins, sem direito nem esquerdo, nem baixos nem altos. Um mundo, que sem fins nem

começos e que comporta todos riscos, todas as incertezas retiradas pelos pensamentos cartesianos

que fundamentam uma dramaturgia da vida de ações e reações.

Uma perspectiva teórica do regime estético das artes do documentário não é aquele que

reconhece as formas, o movimento, o espaço, etc, como um gênero cinematográfico, mas o que

seria capaz de fazer a apreensão dessa lenta revolução que realizam muitos documentários

contemporâneos. Naomi Kawase (2011) afirma que seus filmes, documentários ou ficcionais, não

prescindem das incertezas do real e de suas imagens instáveis. Esse real instável apenas pode ser

apreendido, tocado, quando acolhido pelos movimentos contínuos do real - essa experiência sem

coordenadas. O que um pensamento sobre o regime estético das artes- um regime geral de

visibilidade e de inteligibilidade e um modo de discurso interpretativo partilhando ele mesmo as

formas desse regime5 (Nossa tradução) (RANCIÈRE, 2004, p. 21)- pode contribuir

efetivamente para pensar as produções emergentes do documentário, não porque é capaz de elaborar

um novo conjunto de regras que lhe definam, sejam como obras da natureza (pós-Kant), sejam

sobre critérios da perfeição artísticas (Hegel), sejam sobre as ruínas de critérios de hierarquizações

pragmáticos da arte.

A um regime estético das artes documentário apenas é dado um pensamento que seja uma

insistência da desordem, das formas de dominação dos modos de percepção e dos afetos, contra o

consenso das formas do olhar e de nomear. Um regime estético está mais interessado no

embaralhamento do que parece evidente, plausível, que propriamente no estabelecimento de regras.

5 No original: ‘Esthétique’ désgnara donc dans ce texte deux choses: un régime géneral de visibilité et d ‘intelligibilité de l ‘art et un mode de discours interprétatif appartenant lui-même aux formes de ce régime’.

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Ao regime estético, nos termos aqui apontados, não cabem as ilustrações do real, seja qual seja esse

real, mas as formas de apreensão que são potencializadas pelas artes e que ultrapassam a si mesma

na sua precariedade. A medida que qualquer regime escape às configurações conflituosas para

fazer-se sob o signo de um real constituído, está fadado a falar de consenso, das normas e das

regras. O que compete às artes, afirma Jean-Luc Godard, em seu documentário ‘Je vous salue

Sarajevo’, é a excessão, o desvio. Apreender de Rancière a força de seu pensamento sobre um

regime estético é colocar em funcionamento um regime da arte e uma matriz do discurso que

mobiliza as formas de experiência sensível. Quer dizer, como o documentário pode, num regime

estético das artes, deixar ver como os discursos sobre o real estão impregnados de forças que

pretendem legitimar um modo de visibilidade e de percepção do mundo.

Referências

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