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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Regina Helena Terlizzi AS CAUSAS NATURAIS A PERSPECTIVA DA ARTE MÉDICA NO CORPUS HIPPOCRATICUM MESTRADO EM FILOSOFIA São Paulo 2016

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Helena... · cultura grega, a arte médica e a filosofia possuem um vínculo profundo. Os escritos, evidentemente, representam uma

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

PUC - SP

Regina Helena Terlizzi

AS CAUSAS NATURAIS

A PERSPECTIVA DA ARTE MDICA NO CORPUS

HIPPOCRATICUM

MESTRADO EM FILOSOFIA

So Paulo

2016

PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

PUC - SP

Regina Helena Terlizzi

AS CAUSAS NATURAIS

A PERSPECTIVA DA ARTE MDICA NO CORPUS

HIPPOCRATICUM

MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertao apresentada Banca

Examinadora da Pontifcia Universidade

Catlica de So Paulo, como exigncia

parcial para obteno do ttulo de Mestre em

Filosofia, sob a orientao do Prof. Dr.

Marcelo Perine.

.

So Paulo

2016

Autorizo exclusivamente para fins acadmicos e cientficos a reproduo total ou

parcial desta Dissertao de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrnicos.

Assinatura ____________________________________________________________

Data 22/01/2016

e-mail: [email protected]

T296

Terlizzi, Regina Helena

As causas naturais a perspectiva da arte mdica no Corpus Hippocraticum/

Regina Helena Terlizzi So Paulo: s.n., 2016.

162 p.; il. 30 cm.

Referncias 110-115

Orientador: Prof. Dr. Marcelo Perine

Dissertao (Mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de So

Paulo, Programa de Ps-Graduao em Filosofia, 2016.

1. Hipcrates 2. Medicina 3. Filosofia 4. Grcia

CDD 100

Banca Examinadora

_____________________________________________

Prof. Dr. Marcelo Perine

PUC-SP (orientador)

_____________________________________________

Prof Dr Maria Carolina Alves dos Santos

Faculdade So Bento

_____________________________________________

Prof. Dr. Fernando Rocha Sapaterro

PUC-SP

Porque desde as origens, assim como o riso,

a medicina prpria do homem.

TERLIZZI, Regina Helena. As causas naturais a perspectiva da arte mdica no

Corpus Hippocraticum. 162 p. Dissertao (Mestrado em Filosofia) Pontifcia

Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP). So Paulo, 2016.

RESUMO

O Corpus Hippocraticum ou Coleo Hipocrtica rene um conjunto de tratados

mdicos gregos dos scs. V e IV a.C., entre os quais encontramos o registro de

discursos fundamentais de autores hipocrticos em defesa da existncia da atividade

mdica como arte na cultura grega. A diversidade dos problemas e a intensidade das

polmicas de natureza epistemolgica devem ser compreendidas no contexto de uma

intensa atividade intelectual que alcana vrios domnios do conhecimento humano e

que caracteriza o chamado sculo de Pricles. Para estabelecer a medicina como arte, os

hipocrticos devem apresentar os fundamentos do mtodo que lhes permitiu o avano

do conhecimento das causas naturais das doenas humanas. Como tal conhecimento

pressupe uma srie de noes elaboradas pela filosofia, causa (aitia) e natureza

(physis), ocorre um entrelaamento de questes e teorias que aproxima positivamente os

dois campos de conhecimento, at o ponto no qual se instala uma divergncia mdica

categrica em relao ao mtodo filosfico. As polmicas, como atestam os tratados,

acabam opondo por um lado, aqueles que defendem a insero de pressupostos

filosficos na medicina, segundo os quais ela no poderia avanar sem um

conhecimento anterior sobre a natureza do homem e os elementos que o constituem, e

por outro, aqueles que afirmam a existncia de uma medicina antiga que h muito

tempo soube encontrar os seus prprios meios de investigao e que, portanto, deve ser

considerada autnoma em relao filosofia. Para conhecermos o teor dos argumentos

envolvidos nessas discusses, analisaremos quatro tratados hipocrticos onde as

questes de ordem epistemolgica so abordadas de forma mais especfica: Da doena

sagrada, Da arte, Da medicina antiga, Da natureza humana.

Palavras-chave: Hipcrates, medicina, filosofia, epistemologia, Grcia

TERLIZZI, Regina Helena. The natural causes the perspective of medical art in

Corpus Hippocraticum. 162 p. Dissertao (Mestrado em Filosofia) Pontifcia

Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP). So Paulo, 2016.

ABSTRACT

The Corpus Hippocraticum or Hippocratic Collection brings together a group of Greek

medical treatises from V and IV centuries BC, among which we find the register of

fundamental speeches from Hippocratic authors in defense of the existence of medical

activity as art in Greek culture. The diversity of problems and the intensity of polemics

from epistemological nature should be comprehended in the context of an intense

intellectual activity, which reaches several domains of human knowledge and which

characterizes the so-called Pericles century. In order to establish medicine as art,

Hippocraticals must present the basis of the method which enabled them the advance in

knowledge of natural causes for human diseases. As such knowledge supposes a series

of notions elaborated by philosophy, cause (aitia) and nature (physis), there is an

interweaving of matters and theories which positively brings both knowledge fields

closer, until the point in which a categorical medical divergence is installed related to

the philosophical method. The polemics, as the treatises certify, end up opposing, on

one hand, those who defend the insertion of philosophical assumptions in medicine,

according to which it could not go on without previous knowledge regarding human

nature and the elements which constitute it; on the other hand, those who affirm that the

existence of an old medicine which long ago could find its own means of investigation,

therefore, should be considered standalone related to philosophy. As to better know the

arguments level involved in these discussions, we will analyze four Hippocratic

treatises where epistemological matter are approached in a more specific way: On the

sacred disease, The art, On ancient medicine, On the nature of man.

Keywords: Hippocrates, medicine, philosophy, epistemology, Greece

\

SUMRIO

INTRODUO..................................................................................................... 11

CAPTULO I - A ARTE MDICA HIPOCRTICA.......................................

15

1. Hipcrates de Cs, o Asclepade e as escolas mdicas..................................

15

1.1. As prticas de cura mgica e religiosa no tempo de Hipcrates........

23

1.2. Os centros de formao mdica em Crotona, Agrigento, Cnide e Cs.

24

2. O Corpus Hipocraticum...................................................................................

26

2.1. A constituio do Corpus Hippocraticum e o trajeto da

transmisso.......................................................................................

26

2.2. A questo da autoria hipocrtica e a anlise do conjunto..................

32

2.3. O conhecimento mdico: o mtodo, o corpo e a noo de sade

e doena.............................................................................................

34

3. Noes de sade em teorias filosficas: o interesse pelos fenmenos

biolgicos........................................................................................................

45

3.1. Alcmeo de Crotona.............................................................................

47

3.2. Empdocles de Agrigento ...................................................................... 48

3.3. Digenes de Apolnia..........................................................................

50

CAPTULO II - AS CAUSAS NATURAIS NOS TRATADOS...........................

Da doena sagrada, Da arte, Da medicina antiga e Da natureza humana

53

1. As noes de natureza e causa: (physys) e (aitia).......................... 53

2. Da doena sagrada e as causas divinas...............................................................

2.1. As doenas so divinas e naturais...........................................................

59

59

2.2. A crtica magia e a defesa do divino.................................................... 63

2.3. A causa natural da epilepsia: a hereditariedade, o crebro e a

fleuma....................................................................................................

67

2.4. Uma teoria fsica do conhecimento: o ar e o crebro como o intrprete

da inteligncia .....................................................................................

73

3. Da arte e o acaso................................................................................................... 78

3.1. Os argumentos em defesa da existncia da arte......................................

78

3.2. A noo de acaso e a ordem dos porqus............................................

80

3.3. O doente como causa e os limites da arte...............................................

83

3.4. O visvel e o invisvel: o olho e a inteligncia........................................

85

4. Da medicina antiga e a recusa das hipteses filosficas...................................

88

4.1 Recusa de postulados filosficos e da concepo de causa nica............

88

4.2. Origens da medicina: a descoberta da alimentao como causa.............

90

4.3. Causas naturais: a mistura de qualidades nos alimentos e no homem..

93

4.4. A medicina: o verdadeiro conhecimento da natureza humana...............

97

5. Da natureza do homem e o pluralismo causal.....................................................

99

5.1. Ataque s teorias monistas: filosficas e mdicas................................

100

5.2. A reunio e a dissoluo dos elementos na formao dos seres............. 101

5.3. A relao dos humores com a natureza e a teoria dos contrrios........... 104

CONCLUSO .........................................................................................................

106

BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................

110

ANEXO 1. Da doena sagrada

2. Da arte

3. Da medicina antiga

4. Da natureza humana

116

11

Introduo

Os textos da antiga literatura mdica grega dos sculos V e IV a.C. constituem

um conjunto em torno de sessenta tratados conhecidos tradicionalmente como Corpus

Hippocraticum ou Coleo Hipocrtica. Se considerarmos um campo mais vasto de

estudos a respeito das primeiras formas de pesquisa sobre a natureza, as obras mdicas

se mantm como um dos monumentos mais notveis desse grande perodo e, na

histria do pensamento cientfico, o seu valor se encontra em primeiro plano1. Na

cultura grega, a arte mdica e a filosofia possuem um vnculo profundo.

Os escritos, evidentemente, representam uma fonte preciosa de estudos sobre a

histria da medicina, pois renem, por exemplo, descries minuciosas de patologias,

noes de anatomia e fisiologia, doutrinas mdicas, medicamentos e registros clnicos.

No entanto, devemos apenas lembrar que a medicina no tem aqui o seu incio absoluto:

grosso modo, o esquema usual das obras hipocrticas no difere muito dos papiros

mdicos egpcios (papiro Smith de 1600 a.C. e papiro Ebers de 1550 a.C.) e dos escritos

mdicos mesopotmicos que remontam ao sc. VII a.C.2. Tambm encontramos

registros de sintomas, tipos de pessoas atingidas, medicaes e at mesmo algumas

tentativas de generalizao terica inseridos em um forte contexto religioso, como a

enunciao de frmulas encantatrias com o uso de medicamentos.

No caso da arte mdica grega, originalmente vinculada antiga tradio dos

Asclepades e convivendo com os rituais de cura religiosos e as prticas mgicas, o

dilogo se estabeleceu com um outro tipo de discurso, aquele que florescia na regio da

Jnia e discutia sobre os princpios fundamentais da natureza na qual o homem est

inserido. Segundo Pigeaud3:

1 Cf. BOURGEY, L. Observation et Exprience chez les mdecins de la Collection Hippocratique. Paris:

Vrin, 1953, p. 7. 2 Cf. CASERTANO, G. Os pr-socrticos. So Paulo Ed. Loyola, 2011, p. 143. poca de Hipcrates o

Egito era conhecido como a terra dos remdios (HOMERO, Odissia, IV, 238-242 ou HERDOTO, II,

84). Deixamos indicados alguns estudos especficos: La Medicine egyptienne au temps des pharaons- A-P,

Leca, Paris, 1988 e, mais recentemente, T. BARDINET, Les papyrus mdicaux de lgypte pharaonique,

Paris, 1995 e BURGOS, J. O. Hipcrates y los egpcios - Influencias egpcias en la medicina hipocrtica

do sc. IV a.C. Mxico: Editorial Universidad Autnoma de Ciudad Juarez, 2009. Sobre a possvel

passagem de elementos da medicina antiga indiana, especialmente a noo de pneuma, afirmada no

Corpus, ver FILLIOZAT, J. La doctrine classique de la medicine indienne. Ses origines e ses parallles

grecs. Paris, 1945. 3 PIGEAUD, J. Potiques du Corps. Aux origines de la mdecine. Paris: Les Belles lettres, 2008.

12

A medicina ocidental nasceu de um discurso geral sobre o homem e

sobre o mundo. Ela no nasceu originariamente como arte, como

tcnica. assim que, a meu ver, necessrio compreender a

dificuldade de fazer coincidir o mito e a histria, na questo do

nascimento da medicina e a apario, se podemos falar assim, de

Hipcrates4.

Os hipocrticos conduziram a atividade mdica posio de arte5 na cultura

grega, ao inscrev-la nas discusses epistemolgicas com a filosofia. Jaeger6 afirma que

o apogeu da medicina naquele momento se explica pelo seu fecundo choque com a

filosofia, graas qual clarificou a conscincia metdica de si mesma e pde adquirir o

cunho clssico do seu peculiar conceito de saber.

Tais fatos devem ser inseridos no contexto grego do sculo V a.C., o sculo de

Pricles, um perodo de florescimento de inmeras artes nos domnios mais diversos,

como a oratria, a escultura, a arquitetura, a pintura, a msica, a ginstica e a diettica,

juntamente com o surgimento de manuais com definies e regras. No entanto, ao

mesmo tempo em que se estabeleciam, as artes eram questionadas sobre os seus

fundamentos, em meio a debates muitas vezes polmicos, como o caso da medicina7

como atestam os tratados. Alm disso, devemos ressaltar que a redao dos primeiros

textos da Coleo ocorreu na segunda metade do sc. V a.C., um perodo de grande

desenvolvimento da escrita8, repercutindo fortemente no ensinamento e na divulgao

do conhecimento mdico, como conferncias pblicas, discursos e discusses com

outros domnios do conhecimento.

O principal questionamento dirigido medicina se referia capacidade de seu

mtodo de pesquisa em produzir um conhecimento verdadeiro sobre o homem, sem as

elaboraes da investigao filosfica sobre a natureza, admitidas at mesmo por alguns

mdicos.

4 Ibid., p. 4.

5 O termo arte, que traduz o grego techn, um termo frequente nos textos hipocrticos para designar o

que se poderia chamar hoje de cincia mdica. Cf. BOURGEY, L., 1953, p. 34-35. Techn designa a arte e habilidade de se fazer algo conhecendo bem as regras. O termo cincia uma categoria moderna. Lloyd

esclarece que em grego no existe um termo nico que seja um equivalente exato de nossa palavra

cincia. Os termos filosofia (amor sabedoria), epistme (conhecimento), teoria (contemplao,

especulao) e peri physis historia (investigao sobre a natureza), so todos usados em contextos

particulares onde sua traduo por cincia natural, sem risco excessivo de cometermos erros. In

LLOYD, G. E. R.. Les dbuts de la science grecque. De Thals a Aristote. Paris: La Decouverte, 1990, p.

7. 6 JAEGER, W. Paidia. A Formao do Homem Grego. So Paulo: Ed. Martins Fontes, 1995, p. 1002-3.

7 Ao longo do trabalho usaremos indistintamente arte mdica e medicina, considerando o sentido grego

que ser examinado na segunda parte no tratado Da arte. 8 Sobre a questo da escrita e a medicina, ver VITRAC, B. Mdecine et philosophie au temps

dHippocrate. Paris: Presses Universitaires de Vincennes, 1989, p. 114.

13

No que concerne ao lugar da medicina em relao s outras technai, os

mdicos tm conscincia que a medicina pertence categoria das artes

que tem o homem como objeto; mas eles se dividem quando se trata de

saber se a cincia do homem anterior medicina ou se ela quem a

traz9.

As discusses sobre o mtodo da arte mdica e aquele da filosofia acabam

opondo, por um lado, aqueles que pretendem inserir postulados filosficos na atividade

mdica, e por outro, os partidrios de uma medicina antiga que soube encontrar os seus

prprios meios de investigao j h muito tempo, sem necessitar de nenhum outro

pressuposto vindo do exterior. Diz Jaeger que nesse momento, cheio de perigos para a

existncia autnoma da medicina, que se inicia a mais antiga literatura mdica dos gregos

que chegou at ns10

. E neste ponto que o nosso trabalho se insere: conhecer os

argumentos dessas discusses por meio da anlise de quatro tratados hipocrticos nos

quais se encontram os registros dessa polmica.

Para estabelecer a medicina como arte independente, os hipocrticos devem

apresentar os fundamentos do mtodo que lhes permitiu avanar o conhecimento das

causas naturais das doenas humanas. Como tal conhecimento, na verdade, pressupe

uma srie de noes elaboradas pela filosofia, ocorre um entrelaamento denso de

questes e teorias, aproximando-as de uma maneira frtil at um determinado ponto.

Alm disso, devemos lembrar um pressuposto comum na base da pesquisa mdica

e da especulao filosfica: ambas acreditam que a razo humana seja capaz de

identificar as causas naturais de diversos fenmenos sobre os quais refletem seja a

sade e a doena dos homens, seja a constituio da natureza e seus movimentos.

Considerando a amplido do tema, vamos estabelecer a noo de causa natural como um

fio condutor de nossa anlise dos tratados, seja por se tratar de uma noo fundamental

que presente nos dois campos de conhecimento, seja por reunir duas importantes

concepes gregas: natureza (physis) e causa (aitia).

Na primeira parte de nosso estudo procuraremos compor um quadro de

referncias com diversos elementos necessrios para nos aproximar do cenrio e da

atmosfera de ideias no quais se estabeleceram os debates. Com essa perspectiva, faremos

uma breve exposio a respeito do mito fundador da medicina, dos centros mdicos

antigos, sobre a prpria questo de Hipcrates, testemunhos e elementos histricos a

9 JOUANNA, J. La naissance de lart mdical occidental, p. 26. In: GRMEK,M.D. Histoire de

la pense mdicale em Ocident- Antiquit et Moyen Age. Vol.1. Paris: ditions du Seuil, 1995. 10

JAEGER, 1995, p. 1008.

14

respeito da constituio do Corpus. Devemos apresentar tambm algumas ideias

filosficas relacionadas com a questo da sade, anteriores a Hipcrates, e certas noes

fundamentais da prpria medicina hipocrtica, uma aproximao que julgamos necessria

para nos acompanhar no exame dos tratados.

Como as divergncias ocorrem a partir de posies a respeito de mtodo de

conhecimento, selecionamos quatro tratados hipocrticos que abordam de forma mais

especfica tais questes epistemolgicas. So eles: Da doena sagrada, Da arte, Da

medicina antiga, Da natureza humana. Ao longo da leitura indicaremos as passagens que

consideramos relevantes para a nossa reflexo, tanto para ressaltar os graus de

proximidade terica entre medicina e filosofia, quanto para identificar os pontos de

afastamento que definiram suas fronteiras. Vamos verificar que ao longo da apresentao

de seus argumentos de defesa, os autores hipocrticos acabam por constituir um discurso

prprio sobre a natureza humana, para alm das questes da cura.

15

CAPTULO I

A ARTE MDICA HIPOCRTICA

1. Hipcrates de Cs, o Asclepade e as escolas mdicas

Uma dimenso lendria envolve a realidade histrica de Hipcrates de Cs, que

nomeia o clebre conjunto de obras mdicas e que se tornou um dos paradigmas da

transmisso da medicina. Paradoxalmente, sabemos pouco sobre sua vida. Dada a

notoriedade adquirida desde a antiguidade, histrias inverossmeis a respeito de seus

prodgios contriburam para formar sua imagem mtica. Procuraremos reunir as principais

passagens e testemunhos fidedignos visando compor um quadro histrico em grandes

traos, e recolher algumas das lendas que atravessaram os sculos.

Os textos que nos chegaram sobre a vida de Hipcrates so tardios e marcados

por elementos incertos. O mais conhecido, intitulado Vida de Hipcrates segundo

Soranos, editado entre os scs. II e VI, seria parte de um livro de biografias mdicas

atribudo ao mdico que teria vivido entre os scs. I e II, Soranos de feso11

. O texto se

tornou referncia nos estudos por trazer compilaes de documentos antigos, chegando

mesmo a integrar algumas edies dos tratados hipocrticos como abertura do conjunto.

Outra biografia bem menos conhecida foi descoberta em um manuscrito no incio do sc.

XX, em Bruxelas, por H. Schne. Trata-se de um texto annimo e lacunar em latim do

sc. XII, denominado Vida de Bruxelas, com mais informaes sobre Soranos e uma lista

de discpulos de Hipcrates. Alm disso, possumos breves exposies nos verbetes

Hipcrates e Cs em uma famosa enciclopdia bizantina grega do final do sc. X, a

chamada Suda12

, atribuda a um autor de nome Suidas e traduzida para o latim em 1564.

E ainda por ltimo, na obra Chiliades, de um erudito do sc. XII, Jean Tzestzes,

Hipcrates citado em forma de versos13

.

11

Mdico formado em Alexandria com grande reputao na Antiguidade por suas obras. Pertencia

escola metdica de medicina, que enfatiza o mtodo clnico emprico, contrrio s doutrinas tradicionais,

como a teoria dos quatro humores e a noo de pneuma. Sua celebridade se deve em grande parte a um

tratado de ginecologia e obstetrcia adotado como referncia na Idade Mdia. Cf. BOURGEY, L., 1953.

Cap. III Le problme dHippocrate. Paris, Vrin, 1953, p. 79 e DACHEZ, R. Histoire de la mdecine. De

lAntiquit nos jours. Paris: Editions Tallandier, 2012, p. 188-190. 12

Ver Suda on line Byzantine - Lexicography, com numerao e traduo inglesa a partir da edio grega

realizada por Ada Adler entre 1928 e 1938, com uma reedio em 1971. O projeto online iniciou em 1998

e est disponvel para consulta desde 2014. Encontramos tambm duas entradas sobre Soranos de feso. 13

Para estudo ampliado das biografias de Hipcrates e testemunhos JOUANNA, J. Hippocrate. Premire

Partie. Paris: Fayard, 1992; PINAULT, J. R. Hippocratic Lives and Legends, Leyde, 1992 e a reedio

dos textos antigos em SMITH, W. D. Hippocrates Pseudepigraphic Writings. Leyde, 1990.

16

Hipcrates nasceu na ilha de Cs, em 460 a.C., em uma famlia de mdicos de

uma antiga tradio denominada Asclepades, linhagem que atribui sua origem ao prprio

deus Asclpio e seus filhos Macon e Podalrio. Na Ilada14

, Homero fala de Asclpio

no ainda como um deus, mas como o prncipe da cidade de Tricca, na Tesslia, que teria

aprendido as artes da cura com o centauro Quron e transmitido a seus filhos Macon e

Podalrio. Quando estes participam da guerra de Tria como mdicos e guerreiros,

realizam grandes feitos que so enaltecidos no poema pico. Ao se referir a Macon, que

morre na luta, atravs do personagem Nestor, Homero enuncia o elogio que se tornou

famoso: vale por muitos, um homem que mdico15

. Podalrio sobrevive guerra e em

sua navegao de retorno levado pelos ventos costa da sia Menor, at Syrna, onde se

estabelece e gera seus descendentes. Desse local, se deslocaram trs ramos da famlia

Asclepades para outros pontos que se tornaram renomados centros mdicos: um em

Rodes, que acabou desaparecendo, outro na pennsula de Cnido e outro bem prximo, na

pequena ilha de Cs. Cnido e Cs cresceram como os mais renomados locais de cura,

formao e escrita do conhecimento mdico. No templo de Epidauro, dados

arqueolgicos do sc. VII a.C. indicam que Asclpio j havia se tornado um deus curador

e seu culto se espalhado em muitos santurios pela Grcia. No transcorrer do tempo,

foram surgindo diversas verses do mito de acordo com as regies que disputavam sua

genealogia. Na verso mais conhecida, ele filho de Apolo com a mortal Coronis que, ao

cometer uma infidelidade com outro mortal, causa a ira do deus. Embora grvida, Apolo

decide mat-la. No ltimo momento, decide salvar seu filho Asclpio, deixando-o aos

cuidados do famoso centauro Quron16

. Com ele Asclpio se forma nas artes da cura,

adquirindo uma prodigiosa habilidade mdica a ponto mesmo de ressuscitar os mortos,

um excesso que confronta os poderes de Hades e ameaa a ordem do mundo. A

imortalidade no cabe aos humanos, e por isso Zeus envia-lhe um raio, punindo-o

justamente com a morte. Por ser filho de Apolo, no entanto, recebe um estatuto divino ao

ser colocado eternamente no cu como a constelao de Ofico, o portador das

serpentes, - imagem presente em suas representaes nos santurios. desse modo que

14

HOMERO. Ilada, II, v.729-732, IV, v.193-219 e XI, v.833-836. Paris: Belles Lettres, 2005. 15

HOMERO, XI, v.514-5. 16

Segundo o relato mtico, em torno do sc. XIII a.C., o centauro Quron, um ser parcialmente humano

com corpo de cavalo, viveu na Tesslia em comunho com a natureza e grande conhecimento dos poderes

curativos das plantas, alm de outras artes. Mestre de Asclpio e de Aquiles, alm de outros personagens

descritos na Ilada e Odisseia de Homero, ele seria o verdadeiro fundador da medicina, uma arte no

totalmente humana. Cf. DACHEZ, R., 2012, p. 70.

17

Asclpio segue em seu propsito de curar as doenas e preservar a sade dos homens,

impedido, contudo, de curar toda doena mortal17

.

Os conhecimentos de to nobre linhagem eram cuidadosamente protegidos no

interior das famlias por meio da transmisso oral de pai para filho e da prtica comum,

como fez Asclpio. Assim, Hipcrates recebe sua formao do av, tambm Hipcrates -

mdico que teria escrito uma obra sobre fraturas -, e de seu pai Herclides, - nome que

designa uma ascendncia tambm ilustre originada em Hracles18

. Os filhos de

Hipcrates, Tessalos e Dracon, recebem a formao do pai, assim como o genro e

discpulo Plibo. Provavelmente em torno de 430 a.C., de acordo com o costume,

Hipcrates deixa o seu grupo em Cs aos cuidados de Plibo e discpulos para viajar de

cidade em cidade com Tessalos e Dracon pelo norte da Grcia e Tesslia, bero de seus

ancestrais. Sua vida como mdico itinerante19

lhe conferiu um reconhecimento ainda

maior e muitos relatos de casos, autnticos ou lendrios. O grupo de mdicos passava

temporadas trabalhando em cada regio, registrando informaes sobre as variaes do

clima, a qualidade das guas, a direo dos ventos, a alimentao e as doenas mais

frequentes associadas a todas essas condies. Certamente com idade bem avanada, em

datas que variam de 375 a 351 a.C. segundo diversas fontes, Hipcrates morre em

Lrissa, cidade da Tesslia, sendo enterrado no caminho de Gyrton, uma cidade ao norte.

Na ilha de Cs, se instaurou um culto pblico anual comemorando o seu nascimento.

Segundo Soranos, uma antiga lenda conta que por muito tempo enxames de abelhas

viveram sobre o tmulo de Hipcrates, produzindo um mel com grandes virtudes

teraputicas20

.

Quanto questo de outras formaes de Hipcrates fora do crculo familiar, A

Vida de Hipcrates segundo Soranos e a enciclopdia Souda afirmam que ele teria sido

discpulo do mdico Herdicos de Selimbria, do sofista Grgias de Leontini e do filsofo

Demcrito de Abdera. No entanto, essas informaes no se sustentaram por outros

testemunhos e se mantm incertas. Jouanna analisa que essas indicaes possuem o

17

Sobre Asclpio, ver HART, G. D. Asclepius, the God of Medicine. Londres: The Royal Society of

Medicine, 2000; BRUIT ZAIDMAN, L. Les grecs et leurs dieux: pratiques et representations religieuses

dans la cite lpoque classique. Paris: Armand Colin, 2005. 18

Hipcrates teria uma dupla ascendncia mtica, o que amplia ainda mais o poder de sua figura:

Asclpio pela tradio mdica e Hracles, recebido de seu pai. Conforme Soranos, isso se explicaria por

Asclpio ter tido seus filhos Macon e Podalrio com Epiona, a filha de Hracles. Cf. JOUANNA, J.,

1992, p. 32. 19

O conjunto de tratados Epidemias, com datao estabelecida desde o final do sc. V a.C. metade do

sc. IV a.C., registram fichas individuais de doentes, origem geogrfica, descrio de regies etc.,

atestando a presena da medicina hipocrtica em vrias cidades. Ibid., p. 10. 20

Ibid., p. 59.

18

mrito de lembrar que a formao de um bom mdico na Antiguidade no devia se isolar

do conhecimento do homem. Ela englobava certamente a retrica e, plausivelmente, a

filosofia enquanto conhecimento do universo21

.

Dos autores da filosofia do perodo clssico, embora no muito frequentes, temos

algumas aluses diretas a Hipcrates. No dilogo platnico Protgoras22

, um jovem

ateniense de nome Hipcrates questionado por Scrates a respeito da natureza dos

ensinamentos que ele esperava ansiosamente receber do sofista Protgoras. Na passagem

311b, Scrates cita Hipcrates de Cs, o Asclepade, que receberia dinheiro em troca dos

ensinamentos que o tornariam um mdico, do mesmo modo que os escultores Policleto

de Argos e Fdias de Atenas receberiam dinheiro em troca dos ensinamentos que os

tornariam escultor. A cena apresenta Hipcrates como o modelo de excelncia na

transmisso da arte mdica no sculo de Pricles, enquanto que na arte da escultura,

Policleto e Fdias so os paradigmas.

Em uma famosa cena do dilogo Fedro23

, Hipcrates citado novamente por

Plato, agora se referindo questo do mtodo. Scrates procura a definio da

verdadeira arte, questionando a respeito dos conhecimentos envolvidos na retrica, para

alm da tcnica dos discursos. O conhecimento a ser procurado aquele sobre a natureza

da alma daqueles para os quais se dirigem os discursos. Assim, Scrates questiona Fedro

a respeito do mtodo que se deve seguir para conhecer a alma humana:

- Mas, a natureza da alma, acredita que podemos conhec-la

perfeitamente sem conhecer a natureza do todo?

- Se devemos ter alguma confiana em Hipcrates, da famlia dos

Asclepades, no possvel mesmo ter um conhecimento sobre o

corpo sem esse mtodo.

- a justo ttulo, meu amigo, que ele diz. necessrio, no entanto,

examinar por uma pesquisa se a razo est de acordo com

Hipcrates24

.

Do testemunho platnico, primeiramente, ressaltamos o valor atribudo ao

pensamento hipocrtico por vincular o conhecimento do corpo a um princpio de

totalidade, como o ideal a ser feito quando nos propomos a investigar a natureza da alma.

21

Alm disso, uma tradio antiga afirmava que ele teria se utilizado das inscries do santurio de

Asclpio em Cs, o que indicaria sua proximidade com a chamada medicina dos templos, totalmente

inverossmil se considerarmos os pressupostos racionais dos tratados. Cf. JOUANNA, J., 1992, p. 34. 22

PLATO, Protgoras, 311b. Traduo Carlos Alberto Nunes. Ed. Universitria UFPA, 2002. 23

PLATO, Fedro, 270 c. Traduo Carlos Alberto Nunes, Ed. Universitria UFPA, 2011. A passagem

foi muito discutida por especialistas, ao permitir algumas interpretaes a respeito da noo de todo

envolvida no mtodo hipocrtico e filosfico. 24

PLATO, 2011, 270 c.

19

A interpretao da passagem suscitou inmeras discusses25

que dividiram os

eruditos sobre a questo de qual seria a noo de todo implicada na afirmao de

Plato a respeito do mtodo hipocrtico. Se considerarmos que o sentido aponta para o

todo universal, analisa Jouanna26

, o mtodo hipocrtico se vincularia mais a uma

medicina cosmolgica ou meteorolgica, aproximando-o dos tratados que defendem tal

perspectiva e que seriam, portanto, propriamente de Hipcrates. Ou ento, se o todo se

referir mais totalidade dos elementos que constituem o corpo, o mtodo hipocrtico

estaria representado especialmente nos tratados Da natureza do homem e Da medicina

antiga, que analisaremos na segunda parte deste estudo, nos quais a noo de sade

segue justamente essa perspectiva, sugerindo a autoria de Hipcrates. No entanto, as

pesquisas no ofereceram uma posio conclusiva e Plato no acrescenta mais

indicaes a respeito.

O mtodo chamado hipocrtico, que fundamenta as atividades da medicina

racional, conforme veremos, de fato concebe as partes sem as abstrair da totalidade que

elas compem, seja da unidade do corpo, seja no universo no qual ele est inserido.

Entretanto, sublinhamos que a distino platnica entre o conhecimento do corpo e o

conhecimento da alma, enquanto domnios separados que devemos conhecer por meio de

um mtodo semelhante, no faz parte das consideraes dos escritos mdicos que

pertencem ao Corpus, que de fato no opera com tal distino.

No caso de Aristteles, temos uma breve meno direta a Hipcrates na Poltica

enaltecendo sua grandeza: Podemos dizer que Hipcrates grande no como homem,

mas como mdico, pois qualquer outro lhe seria superior em tamanho27

. Bourgey28

comenta que, nos escritos cientficos de Aristteles, encontramos uma srie de

referncias provveis aos textos hipocrticos, e o pensamento do filsofo parece em

grande parte ligado diretamente corrente de pesquisas e estudos que se exprime atravs

do Corpus.

25

A literatura a respeito imensa; citamos uma referncia recente que analisa as principais posies. Ver

JOLY, R. Platon, Phdre et Hippocrate: vingt annes aprs. In: LASSERTE, F. et MUDRY, P. Formes de

pense dans la Collection hippocratique. Genve, 1983, p. 407-422. 26

Ver discusso ampliada em JOUANNA, J. 1992, p. 88-89. 27

ARISTTELES. Poltica, VII, 1326a 15. Madri: Gredos, 1998. 28

Em Pesquisas sobre os animais (III 3, 512 b12 513 a7), Aristteles cita algumas opinies sobre a

distribuio das veias do corpo: uma atribuda a Polbio de Cs e outra a Synnesis de Chipre. As duas

passagens se encontram textualmente, respectivamente, nos tratados Da natureza do homem e Da natureza

dos ossos. Cf. BOURGEY, L., 1953, p. 28-9.

20

No sc. II, os estudos hipocrticos atingem grande altura e difuso com Galeno de

Prgamo29

, o grande admirador e comentador de Hipcrates. Com imensa obra mdica e

filosfica, redigiu um Glossrio dos termos da Coleo, alm de estudos importantes a

respeito de vrios tratados, cuja interpretao marcou fortemente a transmisso da

herana hipocrtica. Para ele, doenas do corpo e doenas da alma so categorias

distintas que possuem uma interao estreita O desequilbrio dos temperamentos do

corpo a causa dos sofrimentos da alma, que, por sua vez, tem poder de ao sobre ele.

No tratado O melhor mdico tambm um filsofo30

, Galeno ressalta algumas das

caractersticas fundamentais do mtodo de Hipcrates, assim como enaltece e faz de suas

condutas o modelo de todos os mdicos. Para melhor assistir aos pacientes, o princpio

fundamental de todo raciocnio em medicina o conhecimento mais exato possvel da

natureza do corpo para adquirir uma boa habilidade no prognstico: conhecer as doenas

que lhe aconteceram, ser capaz de penetrar com acuidade o estado presente e prever os

acidentes possveis. As informaes biogrficas de Hipcrates apresentadas no tratado se

referem especialmente s descries e elogios sobre seu longo perodo de viagens na

Tesslia para conhecer todas as circunstncias sobre as quais um bom mdico deve se

instruir, a fim de verificar por sua prpria experincia o que o raciocnio lhe ensina. Para

Galeno, o mdico que seguir Hipcrates, no somente desprezar as riquezas, mas

amar o seu trabalho com ardor31

.

Histrias fantsticas repercutiram os prodgios de Hipcrates, conferindo-lhe

uma dimenso lendria. Nas Cartas32

que integram a Coleo, encontramos dois

exemplos famosos. A primeira histria ocupa as primeiras nove cartas e se refere

reputao do mdico de Cs, na Prsia. Por meio de um de seus governadores,

Artaxerxes I, filho de Xerxes, envia uma carta a Hipcrates, da famlia dos Asclepades,

oferecendo-lhe dinheiro e ouro em profuso, alm das mesmas honras que o melhor dos

persas, para que fosse o mais breve possvel curar os persas atingidos por uma peste. A

resposta de Hipcrates est na carta cinco. Como um patriota helnico e sem abstrair a

questo poltica no exerccio da medicina, pede ao governador que transmita sua recusa

ao rei, alegando que no lhes faltam provises, roupas, alojamentos e tudo o que fosse

suficiente vida, e acrescenta que no lhe seria permitido usufruir da abundncia dos

29

Ver GALIEN. Que excellent mdecin est aussi philosophe. Tome I. Paris, Belles Lettres, 2007 e

SARTON, G. Galen of Pergamos. Lawrence, 1954. 30

GALIEN, 2007, p. 284-293. 31

Ibid., p. 287. 32

So vinte e quatro cartas apcrifas e tardias. Ver LITTR, E. Oeuvres compltes dHippocrate. Lettres.

Vol. IX. Paris: E. Baillire, 1839-1861, p. 308-429

21

persas nem livrar os Brbaros de suas doenas, uma vez que eles so inimigos dos

gregos33

. O episdio se tornou exemplar a ponto de ser mencionado por Galeno no

tratado citado acima sobre o mdico excelente e se tornar tema de um quadro de Girodet,

em 1792, Hipcrates recusando os presentes de Artaxerxes.

Outra histria de grande popularidade chegou a inspirar uma das fbulas de Jean

de La Fontaine, no sc. XVII, intitulada Demcrito e os Abderianos34

. O relato comea

na dcima carta e narra um episdio entre Hipcrates e o filsofo Demcrito, seu

contemporneo. Os habitantes de Abdera, preocupados com um riso desmesurado de

Demcrito, julgaram-no tomado pela loucura. Assim, enviam uma carta a Hipcrates

solicitando sua vinda cidade para cur-lo. Os dois se conheciam apenas por reputao e,

ao aceitar o convite, Hipcrates toma suas providncias para a viagem, solicitando a

amigos um navio para a travessia e as plantas necessrias para o tratamento. Em sua

chegada, Hipcrates encontra os abderianos entristecidos por seu filsofo e

imediatamente segue para v-lo. Na cena do encontro, Demcrito est sentado perto de

um ribeiro, rodeado de livros e animais dissecados por ele, e ocupado em escrever uma

obra justamente sobre a loucura. No dilogo, o mdico descobre que Demcrito ria da

loucura que vaidade humana, constantemente preocupada em perseguir riquezas e

glria. Essa seria a verdadeira doena e loucos seriam os habitantes da cidade que o

julgaram doente. O filsofo diz a Hipcrates que a medicina no cura a alma dos homens.

O mdico reconhece que seu prprio pensamento teria sido curado por Demcrito, o

mais sbio entre os sbios, pois seu riso sinal de extrema sabedoria. Em um relato de

sonho, Hipcrates v o deus da medicina Asclpio se retirar diante de Aletheia, a deusa

da verdade filosfica.

Na interpretao de Ayache35

, o interesse da histria no se limita apenas

questo moral da ambiguidade da loucura, mas aponta uma oposio entre medicina e

filosofia diante das doenas da alma. O Hipcrates das Cartas no foi capaz de julgar se

a loucura estaria em Demcrito ou nos habitantes da cidade, pois a medicina conhece

somente valores relativos. Para um mdico, nenhum elemento seria um bem ou um mal

em si, na medida em que a doena advm do isolamento de um elemento do todo e a

33

A lenda teria aparecido na poca da dominao da Grcia por Roma, em torno do sc. II a.C., motivada

pela inteno de tornar Hipcrates o grande defensor de seu povo. Cf. AYACHE, L. Hippocrate. Paris:

PUF, 1992, p. 7. 34

DE LA FONTAINE. J. Fabules de La Fontaine. Paris: Ed. Dayenne Selleiers, 2009, p. 414-16. 35

AYACHE, L., 1992, p. 8.

22

sade retorna com o reequilbrio da composio. No entanto, Ayache comenta que esse

relativismo encontra seus limites ao se tratar das chamadas doenas da alma, pois no

indiferente alterar o comportamento do filsofo conforme os critrios da cidade ou

transformar os habitantes a partir dos princpios de Demcrito. Nesse caso, estaramos

diante de uma questo de ordem moral que somente a filosofia seria capaz de avaliar.

Hipcrates e Demcrito das Cartas protagonizam uma histria que se eternizou, ecoando

aspectos do debate entre a medicina e a filosofia daquele tempo. Quando a loucura

compreendida como um desequilbrio moral da alma humana, a filosofia ganha a

primazia e Asclpio se retira. Para Ayache, essa perspectiva no insignificante quando

nos lembramos que Plato faz uma distino anloga entre os domnios da alma e do

corpo na aluso ao mtodo hipocrtico no Fedro, como citamos.

Em meio a lendas e documentos da tradio, tal nos parece ter sido o Hipcrates

histrico que nomeia uma obra da qual ele no o nico autor. A riqueza e a

profundidade de anlise de diversos mdicos que podemos ler no Corpus se tornaram

referncia de estudos por sculos. Quais seriam, afinal, os tratados redigidos por ele e as

concepes propriamente hipocrticas? Desde a Antiguidade, o problema se constituiu

como um campo de pesquisas que ficou conhecido como a questo hipocrtica. Na

verdade, os conhecimentos mdicos que ele representa se destacaram de quaisquer

autorias e se tornaram noes compartilhadas por muitos. No podemos esquecer que a

prpria forma de transmisso do saber no interior da tradio dos Asclepades no seria

mesmo propcia a protagonismos. No entanto, coube Hipcrates a paternidade da

medicina racional nascida na Grcia do sc. V a.C. Podemos supor que sua genialidade,

junto a seu grupo, que revolucionou a arte mdica, tenha incidido na definio de um

mtodo racional de investigao das causas naturais das doenas, o mtodo de

Hipcrates, o Asclepade, como denominou Plato. Ou ainda, no aprimoramento da

diettica como teraputica36

, um conhecimento sobre a potncia dos elementos da

natureza que compem as plantas e os alimentos, os verdadeiros remdios para os

desequilbrios do corpo, submetido s minuciosas observaes hipocrticas. A nova

forma de interveno sobre as doenas terminou por resgatar das mos dos deuses a

prpria noo de cura e posicion-la no mbito humano. O valor desses aspectos ganha

contornos ainda mais claros ao lembrarmos que na primeira metade do sc. V a.C.,

36

Para muitos estudiosos a questo metodolgica e a diettica so os dois elementos que representam a

revoluo hipocrtica. Ibid., p. 5-6.

23

contempornea dos primeiros tratados do Corpus, a literatura trgica37

ecoava

largamente a maldio sagrada sob a forma de doenas. As concepes hipocrticas,

sem qualquer recurso ao divino, se aproximam da ideia de leis naturais ao observar as

regularidades da natureza e dos corpos para obter conhecimento e decidir suas

intervenes.

No entanto, devemos lembrar que as razes de tal mtodo esto entrelaadas

profundamente s especulaes naturalistas dos primeiros filsofos, no tempo mesmo

em que se repetiam nos santurios os rituais de devoo a seu divino ancestral.

1.1. As prticas de cura mgica e religiosa no tempo de Hipcrates

No havia antagonismo entre a crescente medicina racional e os sacerdotes que

praticavam rituais de cura religiosa no interior dos templos de Asclpio38

, o mais

famoso, assim como de outras divindades como Apolo e rtemis, potncias

ambivalentes de cura e punio, alm dos heris curadores, protetores locais da

coletividade39

. Lloyd40

analisa que as mais variadas crenas religiosas e prticas

mgicas so atestadas desde Homero at o fim da Antiguidade e se prolongam na Idade

Mdia. H uma influncia ininterrupta do mito e da magia na cultura grega, simultnea

ao desenvolvimento das pesquisas nas quais podemos reconhecer a cincia (epistme) e

a filosofia. Para ele, a obra clssica de Doods41

o ponto de partida para analisar tais

relaes no mundo antigo. Especialmente no caso das doenas, os discursos do mito e

da magia detinham um enorme poder. Envolvidas em mistrio, culpa e temor, a causa e

a cura dos males se relacionavam profundamente com o domnio divino, o grande

agente das foras naturais, e mesmo com aqueles que pretendiam falar em seu nome.

Asclpio detinha uma competncia oracular e o rito de incubao era prtica

frequente em seus templos. Aps os rituais de sacrifcios, banhos de purificao e

cantos, os sacerdotes invocavam o poder curador do deus e os suplicantes dormiam uma

noite sob o prtico do santurio aguardando a visita em sonhos do prprio deus. Assim,

37

Ver exemplos em BYL, S. De la mdecine magique et religieuse la mdecine rationnelle. Hippocrate.

Cap. II - Letiologie divine dans lantiquit classique. Paris: LHarmattan, 2011. 38

O culto de Asclpio se expandiu rapidamente na Grcia. Desde o santurio mais antigo na Tesslia, em

Tricca, surgiram inmeros outros, como por exemplo, os mais ilustres, em Cs, Rhodes, Cnido, Tarente,

Atenas, Prgamo e, sobretudo, em Epidauro, um dos mais magnficos, ao norte do Peloponeso. Cf.

JOUANNA, J. Hippocrate LArt de la medicine. Paris: Flammariom, 1999, p. 33. 39

Cf. VITRAC, B., 1989, p. 42-43. 40

LLOYD, G., 1990, p. 17-18 41

DODDS, E. R. Os gregos e o irracional. So Paulo: Escuta, 2002.

24

ao longo da noite, recebiam as orientaes para o tratamento ou mesmo a cura direta por

meio do toque divino na rea enferma, exceto nos casos das doenas mortais interditadas

por Zeus, conforme explica o mito. As prescries recebidas por meio dos sonhos da

experincia ritual enunciadas pela prpria divindade operavam curas miraculosas que

eram registradas nos templos. Os sonhos incubados eram verdadeiros encontros com a

divindade que fortaleciam o convencimento dos enfermos42

.

Os prprios sacerdotes tambm indicavam um regime especial, plantas e

minerais, como complemento do processo curativo, o que os aproximaria de condutas

hipocrticas. O Corpus no faz crticas a essas prticas de cura religiosa, mas ataca

fortemente os rituais mgicos de purificao. A coexistncia pacfica poderia ser

explicada em grande medida pelo vnculo comum e profundo de sacerdotes e mdicos

com Asclpio. Alm disso, muitos daqueles que buscavam a cura nos templos ansiavam

por um tratamento sem dor, procurando evitar intervenes cirrgicas, assim como casos

muito graves com tratamento recusado pelos mdicos. Enfim, as diferenas entre a

medicina religiosa e a racional so muito profundas para que se pudesse supor uma

filiao qualquer entre medicina dos templos e medicina hipocrtica43

. Ao lado da

medicina dos templos, curadores, adivinhos e magos se diziam detentores de um poder

de intermediao do homem com o divino e as foras da natureza. Por meio desse dom

especial, consultavam a vontade divina e direcionavam as foras por meio de rituais

mgicos e amuletos de proteo para atrair benefcios44

. O tratado Da doena sagrada,

que ser examinado na segunda parte deste estudo, ataca radicalmente esses tipos de

praticantes, por pretenderem manipular enganosamente o divino, e afirma a existncia de

causas naturais para todas as doenas.

1.2. Os centros de formao mdica em Crotona, Agrigento, Cnido e Cs

Os dois ramos da famlia dos Asclepades herdeiros de Podalrio, conforme o

relato homrico, se estabeleceram na ilha de Cs e em uma pennsula prxima, Cnido,

situadas na costa jnica da sia Menor. Ambas dominaram o mundo mdico grego, no

42

No santurio de Asclpio, em Epidauro, foram encontrados vrios registros de testemunhos de cura,

com o nome da pessoa, a doena e o tratamento utilizado. Cf. JOUANNA, J., 1999, p. 33. 43

Ibid., p. 34. 44

Ver estudo de LANATA, G. Medicina magica e religione popolare in Grecia fino alleta de Ippocrate.

Roma, 1967; BYL, S., 2011.

25

sc. V a.C., como as duas grandes escolas mdicas45

marcadas pela presena de

Hipcrates.

No entanto, em um tempo bem anterior e ao longo de uma secularizao

progressiva da atividade mdica, existiram outros centros que atuavam por meio de

prticas fundamentadas em concepes de sade nascidas das especulaes de tipo

filosfico.

Ao final do sc. VI a.C., havia o centro mdico de Cirene, uma colnia grega

fundada em 630 a.C. na Lbia e local de um grande templo a Apolo. Mas, desde o sc.VII

a.C. em Crotona, ao sul da Itlia, na Magna Grcia, citado por Herdoto46

, existiu um

reputado centro mdico marcado pela influncia pitagrica e ao qual pertenceram

Demcedes, Alcmon, que teria sido seu discpulo, e Filolau. Outro centro que compe a

chamada escola mdica italiana se estabeleceu na Siclia, em Agrigento, cujos expoentes

foram Pausnias, Filiston e Empdocles47

. Aspectos importantes das teorias mdico-

filosficas de Crotona e Agrigento, especialmente aqueles de Alcmon e Empdocles,

podem ser encontrados nas discusses de alguns tratados hipocrticos, como veremos.

Em Cnido e Cs, a forma familiar de transmisso do saber se manteve ao longo

do tempo. No entanto, adquiriram caractersticas prprias e se definiram como as duas

grandes tendncias que dividiram a prtica mdica daquele perodo. Os praticantes de

Cnido, especialmente os mdicos Herdicos, Ctsias e Eurfon, privilegiaram uma

abordagem diagnstica fundada em um rigoroso detalhamento de descries clnicas e

uma preocupao menor em reunir as informaes em grandes categorias, acabando por

constituir uma grande base de observaes. O mtodo resultou em uma multiplicao das

entidades clnicas e dos tratamentos devido alta preciso diferencial dos sintomas, fato

citado sarcasticamente pelos mdicos de Cs, que privilegiavam o estabelecimento de

ligaes entre sinais semelhantes visando compor grandes categorias por meio do

raciocnio prognstico. Alm disso, Cnido codificou a auscultao do paciente como

forma de exame clnico e criou procedimentos novos e ousados em cirurgia, muitas vezes

considerados rudes, apesar de bem-sucedidos. As Sentenas cnidianas, uma obra coletiva

que se perdeu e que citada em um dos tratados do Corpus, como veremos mais adiante,

45

O termo escola mdica no deve ser entendido no sentido moderno de doutrinas e mtodos definidos

em um sistema fechado, mas sim no sentido amplo de um local que rene um grupo de praticantes que

exercem atividades de atendimento, estudos e transmisso, com tendncias tericas caractersticas. 46

HERDOTO. Histoires, (III, 131,3). Paris: Les Belles Lettres, 1970. 47

Ver exposio detalhada dos personagens em BATISTA, R. S. Deuses e Homens mito, filosofia e

medicina na Grcia antiga. So Paulo: Landy Editora, 2003, p. 207 e FRIAS, I. Doena do corpo,

doena da alma - Medicina e Filosofia na Grcia Clssica. Rio de Janeiro/So Paulo: Ed. PUC-

Rio/Edies Loyola, 2005, p. 35.

26

uma comprovao das diferenas tericas transmitidas por geraes em Cnido e Cs, o

que levou a suposies a respeito de uma rivalidade hierrquica entre elas, tese

relativizada recentemente48

.

2. O Corpus Hippocraticum

2.1. A constituio do Corpus Hippocraticum e o trajeto da transmisso

O Corpus Hippocraticum ou Coleo Hipocrtica49

rene sessenta tratados

redigidos no dialeto jnico, o mesmo dos primeiros filsofos, com dataes estabelecidas

em sua maior parte entre a segunda metade do sc. V a.C. e incio do sc. IV a.C., sendo

o ncleo principal, mais precisamente entre 420 e 350 a.C.50

. O conjunto se constituiu

pouco a pouco e a ele foram integrados dois discursos, um decreto e vinte e quatro cartas

consideradas apcrifas. Os textos so heterogneos, com diversidade de estilos, lxico e

doutrinas mdicas, a depender do perodo de sua composio, do autor e de sua

finalidade, como conferncias de divulgao ou compilaes e tratados mais

especificamente tcnicos dirigidos aos especialistas. Eles renem as grandes linhas do

pensamento mdico das escolas de Cs e Cnido, bem como os confrontos

epistemolgicos necessrios fundamentao de um conhecimento mdico constitudo,

resultando em um complexo e extraordinrio testemunho. A tradio no estabeleceu

nenhuma forma rigorosa de organizao das obras, propiciando variaes no nmero

final de textos, a depender de cada edio. Apresentamos a proposta de Jouanna51

que

classifica cinquenta e oito tratados em oito categorias temticas.

A. Deontologia e reflexo sobre a arte mdica:

(1) Juramento

(2) Lei

48

Para maior detalhamento da abordagem cnidiana, ver DACHEZ, R., 2012, p. 97-99. Sobre as

diferenas entre Cnido e Cs ver estudo especfico de JOUANNA, J. Hippocrate: por une archologie de

lcole de Cnide. Paris: Belles Lettres,1974. 49

CORPUS HIPPOCRATE. Oeuvres completes dHippocrate. Introduo, traduo e notas por mile

Littr. Paris: J. B. Baillire, 1839-1861. Reimpresso A. M. Hakkert. Amsterdam, 1973-1982. A edio

de 10 volumes, com texto grego e traduo francesa, se tornou a referncia do sc. XIX para os estudos

recentes, apesar de objees modernas a algumas propostas de interpretao. 50

Ver exposio sobre estudos de datao e testemunhos em BOURGEY, L., p.21, 1953, p.21 e

JOUANNA, J. Hippocrate,1992, p. 85. 51

No essencial, sua proposta deriva da classificao adotada por Erotiano. Cf. JOUANNA, J. e

MAGDELAINE, 1999, p. 14-5.

27

(3) Da Arte

(4) Da Medicina Antiga

(5) Do Mdico

(6) Da probidade

(7) Preceitos

(8) Testamento de Hipcrates

B. Semiologia:

(9) Prognstico

(10) Epidemias I e III

(11) Epidemias II, IV e VI

(12) Epidemias V e VII

(13) Aforismos

(14) Humores

(15) Crises

(16) Dias Crticos

(17) Profecias I

(18) Profecias II

(19) Prenoes coacas

C. Etiologia no sentido largo:

(20) Da Natureza do Homem

(21) Gerao / Natureza da criana

(22) Carnes

(23) Fetos de oito meses /Fetos de sete meses

(24) Semanas

(25) Dentio

(26) Corao

(27) Glndulas

(28) Natureza dos ossos

(29) Ares, guas, lugares

(30) Dos Ventos

(31) Da Doena sagrada

28

D. Diettica:

(32) Regime

(33) Regime nas doenas agudas

(34) Regime nas doenas agudas, apndice

(35) Alimento

E. Nosologia e teraputica:

(36) Doenas I

(37) Doenas II

(38) Doenas III

(39) Doenas IV

(40) Afeces

(41) Afeces internas

(42) Remdios

(43) Lugares no homem

(44) Uso dos lquidos

(45) Viso

F. Ginecologia:

(46) Doenas das mulheres I-II

(47) Doenas das jovens meninas

(48) Natureza da mulher

(49) Superfetao

(50) Exciso do feto

G. Cirurgia:

(51) Oficina do mdico

(52) Fraturas/Articulaes

(53) Mochlique

(54) Feridas

(55) Fstulas

(56) Hemorroidas

(57) Feridas da cabea

(58) Anatomia

29

H. Cartas e escritos biogrficos:

(59) Decreto dos atenienses

(60) Discurso ao altar

(61) Discurso embaixada

(62) Cartas (conjunto de 24 cartas)

Em que momento a coleo dos escritos se constituiu como um conjunto

autnomo? Indicaremos de modo sumrio os principais personagens conhecidos e os

perodos que acabaram definindo a transmisso dos textos. Por um longo perodo, desde

a morte de Hipcrates em torno de 375 a.C., os tratados preservados em Cs e Cnido

devem ser considerados parte, sem ainda formar um todo. Somente no incio do sc. III

a.C., na poca helenstica, os textos so reunidos na famosa biblioteca de Alexandria,

novo centro cultural hegemnico, quando acontece uma expanso dos estudos mdicos,

com as primeiras compilaes das obras e a abertura de uma longa srie de

comentadores. As discusses a respeito da questo hipocrtica se intensificaram nos

crculos mdicos alexandrinos, que viviam uma atmosfera intelectual de renovao das

pesquisas em fisiologia e anatomia com o incio da prtica sistemtica de dissecao de

cadveres, ampliando o conhecimento antes limitado pela opacidade dos corpos,

propiciando naturalmente uma reviso das doutrinas tradicionais.

Os primeiros estudos filolgicos significativos ocorreram no grupo de Herfilo de

Calcednia52

, mdico anatomista de grande renome e um dos fundadores da Escola de

Medicina de Alexandria. Seu discpulo Baccheio de Tanagra53

editou o terceiro livro das

Epidemias e organizou o primeiro Glossrio dos termos hipocrtico em trs livros,

representando assim a posio do grupo de Herfilo a respeito da questo hipocrtica. Da

obra, restaram fragmentos esparsos e referncias posteriores de Galeno e Erotiano que

nos permitem conhecer vinte e trs tratados54

analisados por Baccheio em Alexandria, a

comprovao mais antiga da transmisso.

52

Herfilo viveu entre 330 e 260 a.C. e foi discpulo de Praxgoras de Cs. Fez progressos importantes

sobre a morfologia do crebro ao descrever minuciosamente os dois hemisfrios e os nervos cranianos,

distinguir artrias, veias e suas funes, alm de nervos motores e nervos sensoriais. Cf. VON STADEN,

H. Herophilus. The arte of medicine in Early Alexandria. New Yorker: Cambridge, 1989 e DACHEZ, R.,

2012, p. 151-4. 53

Sobre testemunhos de Baccheio, que viveu entre 275 a 200 a.C., ver STADEN, H., op. cit., p. 484-500

e GALIEN, VII, 752K. 54

Ver a lista de Baccheio em JOUANNA, J. 1992, p. 593, nota 27.

30

A mais completa e antiga edio dos tratados atribudos a Hipcrates que nos

chegou da poca de Nero, no sc. I, organizada pelo mdico Erotiano55

. A partir da obra

de Baccheio, ele faz um Glossrio hipocrtico acrescentando textos redigidos em Cnido,

chegando a quarenta obras classificadas dentro de uma lgica temtica: aqueles

dedicados etiologia e fsica, os semiticos, os mais especficos de cirurgia e regime,

assuntos mistos e sobre a arte mdica56

. Erotiano o responsvel pela estrutura de

organizao do famoso documento que se tornou o Corpus, fonte sobre a qual se

debruou Galeno no sculo seguinte e qual, sem conhecermos os dados precisos, foram

inseridos ainda vinte tratados57

que completam o conjunto atual exposto acima. Alguns

tratados ausentes no Glossrio de Erotiano so reconhecidamente posteriores a

Hipcrates, como por exemplo, Corao, por apresentar uma descrio anatmica bem

mais complexa, Preceitos, Do mdico e Da probidade, que refletem sobre a tica mdica

em um perodo tardio, mas em total consonncia com as ideias hipocrticas. Jouanna

sintetiza:

Grosso modo, a situao se apresenta assim. Um conjunto de tratados

forma o ncleo primitivo da Coleo, vindo da escola de Hipcrates,

dita a escola de Cs. o estado da Coleo Hipocrtica poca

helenstica, do tempo de Baccheio. Outros tratados foram adicionados

em seguida e so provenientes nomeadamente do grupo dos

Asclepades de Cnido, ou escola de Cnido. A lista de Erotiano,

poca neroniana, corresponde a essa etapa intermediria da Coleo

Hipocrtica. Outros tratados so de provenincia desconhecida e se

reuniram mais tarde s obras hipocrticas. o estado da Coleo

Hipocrtica transmitida pelos manuscritos medievais. Devemos

entender que esse resumo esquemtico e no d conta dos

determinantes de uma coleo de escritos em perptuo movimento e

cuja histria de formao nos escapa em grande parte.58

A transmisso hipocrtica, a partir de Erotiano, seguiu por caminhos diversos.

Como j mencionado, no sc. II os estudos mdicos alcanaram um apogeu com Galeno

de Prgamo59

, que no conjunto de sua imponente obra mdica e filosfica redigiu um

Glossrio dos termos mdicos da Coleo. Seus estudos e comentrios so marcados

por uma leitura sistematizadora de conhecimentos diversos, mantendo Hipcrates em

55

EROTIEN. Catalogue et Glossaire des livres hippocratiques. Upsal: Ed. Ernst Nachmansan, 1918. 56

Essa organizao foi retomada em uma edio famosa do sc. XVI de Anutius Foesuius. Ver a lista de

Erotiano em JOUANNA, J., 1992, p. 95-96 . 57

Ver a lista de tratados reunidos posteriormente a Erotiano em JOUANNA, J.,1992, p. 593, nota 28. 58

JOUANNA, J. 1992, p. 97-8. 59

Ver BYL, S., 2011; GALIEN. La survie dHippocrate et autres mdecins de lAntiquit, Paris:

LHarmattan, 2011.

31

seus fundamentos. A obra de Galeno rene os conhecimentos mdicos da poca e

tomada como referncia em um movimento de tradues de obras gregas que aconteceu

na Sria do sc. VI. Serge de Reshaina60

seria o responsvel pelo trabalho de traduo

para o siraco de doze tratados hipocrticos e trinta e sete obras de Galeno. Esses textos

no chegaram a ns, mas as referncias que temos sobre eles so comentrios e revises

do siraco feitas somente no sc. IX por Hunain ibn Ishaq, em Bagd, na Casa da

Sabedoria fundada pelo califa al-Mamoun61

. Hunain e seus discpulos traduziram as

obras mdicas do siraco para o rabe, embora a maior parte dessas tradues, conforme

explica Jouanna, tenha sido realizada, de fato, a partir das citaes dos textos

hipocrticos e comentrios feitos por Galeno, e no a partir do prprio texto da Coleo,

de tal forma que o hipocratismo oriental antes de tudo um hipocratismo galnico62

.

Dois sculos depois, ao final do sc. XI, na Itlia, a Escola de Medicina de

Salerno, muito conhecida em toda a Europa por sua abertura ao pensamento de outras

culturas, recebe os textos mdicos rabes, que so traduzidos para o latim pelo monge

beneditino Constantino, o Africano63

. Os conhecimentos galnicos, hipocrticos e

filosficos ali sistematizados foram bem recebidos e assimilados como livros de

referncia para os estudos, e se integraram pouco a pouco na Articella, a famosa

coletnea de tratados que definia o programa de estudos das universidades da Europa

at o sc. XVI. Finalmente em 1525, em Roma, Fabio Calvo publica a primeira traduo

latina do Corpus diretamente do grego hipocrtico e no mais do galnico, enquanto em

Veneza, em 1526, publicada a primeira edio grega de todo o conjunto pela

conhecida edio Aldina, do tipgrafo Aldo Manuzio, com a organizao dos textos de

Jean Franois dAsola. Os estudos filolgicos modernos ocorreram a partir dessas

publicaes.

60

Mdico, filsofo e padre cristo da Sria, morto em 536. 61

Cf. JOUANNA, J., 1992, p. 63. 62

Ibid. 63

Mdico tradutor de obras rabes do sc. XI, nascido em Cartago. Viveu entre 1015 e 1087 e foi monge

beneditino na abadia de Monte Cassino, prximo Escola de Salerno. Ver BURNETT, C. S. F.,

JACQUART, D. Constantine the African and Al Ibn Al-Abbs Al-Mags: The Pantegni and Related

Texts. Leiden: Brill, 1995 e STROHMAIER, G. Reception et tradition: la mdecine dans le monde

byzantine et arabe. In: GRMECK, M.D. Histoire de la pense mdicale en Occident, vol.1, Paris, Seuil,

1995, p. 123.

32

2.2. A questo da autoria hipocrtica e a anlise do conjunto

Com a anlise crtica maior do sc. XIX, Littr considera que onze tratados

foram escritos diretamente por Hipcrates: Medicina Antiga, Prognstico, Epidemias I e

III, Regime das doenas agudas, Ares, guas, lugares, Articulaes, Fraturas,

Mochlique, Juramento e Lei. No entanto, suas posies no foram confirmadas e as

pesquisas mais recentes demonstram que no existe at o momento nenhuma

comprovao slida64

dessas afirmaes, estabelecendo a direo dos estudos para a

anlise de conjunto do Corpus e no mais sobre o problema da autoria.

Bourgey65

assume essa direo e afirma que so concebveis duas atitudes no

estudo da Coleo: a primeira analtica, onde os tratados so considerados um a um a

partir de seus problemas particulares, e a outra adota a viso sinttica, que admite o

documento como um todo e estuda os possveis dilogos internos entre as partes.

Reconhecendo o valor inestimvel dos estudos analticos desenvolvidos anteriormente,

Bourgey adota a segunda posio, ao considerar que, efetivamente, as obras no

constituem unidades separadas, ao contrrio, existem mltiplas relaes entre elas,

justamente por participarem da constituio de um conhecimento que visa um mesmo

fim, que define sua unidade profunda. E, por isso mesmo, a Coleo tambm um

campo de polmicas.

[...] pois aqui o interesse se torna apaixonante, somos colocados em

presena de grandes discusses que tocam a prpria orientao da

medicina; escutamos crticas incisivas, s vezes veementes, e essas

discusses no ocorrem sobre obras inacessveis ou estrangeiras, mas,

no interior mesmo da coleo, encontramos os tipos de obras e o

esprito que visam tais ou tais crticas claramente enunciadas. Eis

porque nos parece essencial primeiro considerar longamente a

Coleo em seu conjunto. Ela constitui um grande bloco que possui

uma unidade original, no certamente de inspirao de um s autor,

mas de uma posio em relao a uma dada poca, de um testemunho

notvel sobre a vida mdica e cientfica de um grande perodo da

histria66

.

Nessa perspectiva, a abordagem do conjunto se fundamenta primeiramente na

anlise de dois tratados que pertencem ao ncleo mais antigo da Coleo e que nos

64

Ver discusso ampliada com o exemplo de vrios estudos em BOURGEY, L., 1953, cap. III, Le

problme dHippocrate, p. 79. 65

Cf. BOURGEY, L., 1953, p. 24. 66

Ibid., p. 26-7.

33

oferecem critrios de articulao entre os textos apoiados em diferenas doutrinrias

entre as escolas de Cs e Cnido, e diferenas tericas com a chamada medicina

filosfica67

.

O primeiro tratado, escrito no final do sc. V a.C., pertence ao grupo de Cs: Do

Regime nas doenas agudas68

. A sua importncia para ns fundamental por ser o

nico lugar do Corpus onde podemos ler uma referncia explcita a uma obra de vrios

autores do centro de Cnido, as Sentenas Cnidianas, j mencionada acima. Na abertura

do tratado podemos ler uma crtica incisiva aos autores sobre a inconsistncia dos

tratamentos oferecidos pelos mdicos de Cnido nos casos de doenas agudas, as mais

perigosas na medicina e as que exigem maior preciso das prescries. O mdico de

Cs ironiza o excesso de subdivises descritivas dos sintomas, dificultando tanto a

interpretao do quadro quanto a interveno teraputica. Assim, todos os aspectos da

abordagem de Cnido descritos no texto e que sofrem as crticas de Cs, se constituem

como um critrio de distino importante no interior do Corpus: de um lado, os tratados

que se alinham com os procedimentos das Sentenas Cnidianas e de outro os que

seguem as premissas defendidas pelo autor. Desse modo, os textos so classificados em

dois grupos69

, conforme o pertencimento a uma ou outra escola, que ao menos naquele

momento possuam claras diferenas doutrinrias, especificamente na forma de produzir

conhecimentos. Tal distino propiciou um aprofundamento dos estudos identificando

relaes mais especficas e profundas no interior de cada conjunto70

.

O segundo texto no qual possvel identificar o segundo critrio de distino

entre os tratados Da medicina antiga71

. O ponto diferenciador aqui estabelecido com

a polmica direcionada a alguns mdicos e sbios chamados inovadores por

pretenderem inserir postulados filosficos na medicina, simplificando excessivamente a

explicao das causas das doenas. A riqueza do tratado est na exposio do teor

dessas discusses. Ayache analisa que no sc. V a.C., o pensamento mais antigo jnico

e as teorias filosficas vinculadas tradio desenvolvida nas cidades gregas do sul da

67

A perspectiva sinttica que organiza os textos da Coleo em trs grandes grupos, Cs, Cnido e

medicina filosfica, admitida por BOURGEY, L., 1953, p. 43; JOUANNA, J., 1992, p. 98-105 e

AYACHE, L., 1992, p. 18. 68

HIPPOCRATE. Paris, Les Belles Lettres, 1970, vol. I. 69

Ver a lista dos grupos de tratados classificados por escolas mdicas em AYACHE, L., 1992, op. cit., p.

20. 70

O estudo conjunto dos textos atribudos a autores cnidianos possibilitou a observao de uma mudana

ao longo do tempo na atitude excessiva de descries de sintomas. Ver JOUANNA, J., 1974. 71

HIPPOCRATE. Da medicina antiga. In: Hippocrate Lart de la Mdecine, JOUANNA, J., 1974, p.

74.

34

Itlia, o pitagorismo, o eleatismo e a teoria de Empdocles, alimentaram uma atmosfera

de debates e avanos do pensamento. As especulaes a respeito da gnese do mundo e

do homem, assim como a questo do movimento e das transformaes da matria,

ocupavam as discusses. Ora, tais questes incidem diretamente sobre a prtica mdica,

que toma posies a respeito de problemas semelhantes para compreender a gnese das

doenas e suas transformaes.

Em linhas gerais, segundo Ayache, pode-se admitir ou no a transformao dos

elementos a partir de um que seja primordial, por trazer em si o princpio da mudana,

ou seja, h uma passagem espontnea das qualidades em seu contrrio. Essa concepo

monista vincula-se ao pensamento jnico, e a medicina influenciada por essas ideias

orienta suas condutas de uma determinada forma. Ao contrrio, filosofias inovadoras,

vindas do sul da Itlia, no admitem a transformao dos elementos, pois eles no

trazem em si um princpio imanente de movimento, e devido a essa posio, concebem

um maior nmero de elementos que se mantm irredutveis entre si. Essas concepes

tambm marcam a medicina, direcionando-a para posies pluralistas, por exemplo, na

definio dos quatro humores que se mantm como tais do incio ao fim da vida.

Na interpretao de Thivel72

, o Corpus atravessado pelo debate do pensamento

jnico com as filosofias itlicas e distingue dois modos de pensar fundamentais: aquele

que admite a teoria dos contrrios, onde tudo resulta de um equilbrio dinmico entre

dois polos em tenso, e a posio a partir das semelhanas, onde os elementos se

harmonizam sem tenses. Esse critrio tambm possibilita uma classificao dos

tratados segundo as teorias sustentadas em cada um, aproximando-os de uma ou outra

das vertentes filosficas. Ao analisarmos os tratados atribudos escola de Cs,

segundo a distino do primeiro critrio fornecido em Do Regime nas doenas agudas,

Hipcrates se aproximaria do pensamento jnico73

, ao qual deveramos atribuir a maior

parte dos textos da Coleo, justamente pela admisso da teoria dos contrrios.

2.3. O conhecimento mdico: o mtodo, o corpo e a noo de sade e doena

Os laos conceituais entre os textos demonstram a pertinncia do conjunto a um

ncleo comum de conhecimentos. Embora existam muitas divergncias internas sobre

72

THIVEL, A. Cnide et Cs? Essai sur les doctrines mdicales dans la Collection hippocratique. Paris:

Les Belles Lettres, 1981. 73

Cf. AYACHE, L., 1992, p. 20.

35

determinados assuntos, todas as teorias sobre as doenas apontam causas exclusivamente

naturais, os registros individuais de observaes clnicas testemunham a presena de um

mtodo nas atividades e os tratamentos se justificam por princpios semelhantes.

Bourgey74

comenta que todos esses fatos indicam a presena de uma escola complexa e

viva, onde devia se encarnar uma forte tradio mdica, aquela que, segundo a histria e

a lenda, se manifesta da maneira mais eminente em Hipcrates de Cs. Nessa mesma

direo, e lembrando ainda as polmicas no interior da Coleo a respeito das relaes da

medicina com a filosofia, Jouanna75

afirma que isso tudo no impede que um fundo

comum de pensamento, uma certa unidade de atitude do mdico diante do doente e da

doena se mantenham. o que poderamos chamar de hipocratismo. Quais seriam ento

as principais concepes que caracterizam essa tradio? Que elementos compem o

clebre mtodo hipocrtico transmitido por geraes? Nos limites desse estudo, faremos

uma exposio geral do que julgamos essencial do conhecimento mdico para nos

acompanhar na leitura dos tratados.

O mtodo: observao e razo

O aprimoramento da observao clnica ocupa um lugar privilegiado na obra

hipocrtica e caracteriza o mtodo racional de pesquisa das causas naturais das doenas.

Todos os procedimentos se desdobram a partir de uma ateno rigorosa dos fatos sobre

os quais o pensamento deve operar. Um mdico deve ser um homem de observao e

um homem de reflexo, sem admitir oposio ou separao dessas atitudes. O mdico

de Cs tem somente uma maneira de ser, mas o faz por dois esforos constantemente

associados. a experincia que desde o incio chama a razo76

. As doutrinas

concebidas de forma puramente terica, segundo os mdicos, fatalmente induzem a

erros, pois so insatisfatrias e simplistas diante da complexidade do vivo e dos casos

individuais77

. Nesse sentido, a atividade da razo se apresenta como um tipo de

instrumento suplementar que permite ao trabalho dos sentidos alcanar plenamente sua

realizao. Um bom exame clnico se faz atravs da viso, do toque, da escuta, do olfato

e at mesmo do paladar, acompanhados sempre da inteligncia. Devemos lembrar, no

74

BOURGEY, L., 1953, p. 192. 75

Cf. JOUANNA, J. 1953, p. 407. 76

BOURGEY, L., 1953, op. cit., p. 193. 77

A discusso contra os pressupostos filosficos em medicina se encontra nos tratados Da medicina

antiga e Da natureza do homem que sero examinados na segunda parte desse estudo.

36

entanto, que no havia um quadro pronto com descries detalhadas e bem conhecidas

de doenas que facilitasse o discernimento dos sinais78

. Sobre esse fato Ayache assinala:

O mdico confrontado a cada vez com uma histria indita. No h,

propriamente falando, um diagnstico em Hipcrates. Ele poderia at

mesmo nomear uma afeco que tenha atingido um paciente, mas a

histria e a evoluo do mal se mantinham indeterminados, pois cada

doena conhecia mltiplas variaes e poderia se metamorfosear, por

metstases, em numerosas outras. O exame clnico visa menos

identificar a doena do que reconstituir uma histria singular e prever

seus acontecimentos futuros79

.

A reflexo nos permite distinguir as noes de diagnstico e prognstico. Se a

primeira indica de forma mais especfica um determinado estado de sade atual, a

segunda se refere ideia de doena como um processo que se desenvolve no tempo e

em vrios nveis: acontecimentos passados determinam as manifestaes presentes que,

se forem bem captadas e compreendidas, aportam sinais dos acontecimentos futuros.

Um bom prognstico depende da habilidade de raciocnio aplicado sobre a observao

clnica capaz de apreender relaes no evidentes entre os dados. Alm do aspecto

tcnico, uma dimenso tica acompanha a enunciao de um prognstico, pois deve

apontar as chances reais de cura ou sua impossibilidade, a durao da doena e o

tratamento adequado. Do acerto dependia a credibilidade tanto do mdico quanto do

conhecimento que ele representa.

Se forem muitos os aspectos que concorrem no aparecimento e na direo de

uma doena, a preciso das observaes e a perspiccia dos raciocnios so de fato

essenciais, pois os elementos observveis em um exame no se restringiam ao corpo

fsico. Em uma passagem exemplar a respeito, o autor do tratado Epidemias I enumera

um conjunto de sinais que deve orientar a ateno mdica:

Nas doenas, aprendemos a extrair os sinais diagnsticos das

seguintes consideraes: da natureza humana em geral e da natureza

de cada um em particular, da doena, do doente, das prescries

mdicas; daquilo mesmo que foi prescrito, pois o melhor e o pior

podem vir tambm disso; da constituio geral da atmosfera e das

78

A questo nos remete diferena metodolgica entre os centros mdicos quanto questo do excesso

de observaes que multiplicava o nmero de doenas em Cnido, contra a aplicao mais frequente do

raciocnio em Cs, que procurava reunir conjuntos de sinais em quadros mais definidos. O problema

representa bem a questo metodolgica enfrentada pela medicina daquele momento. Para um estudo

amplo e geral sobre a classificao das doenas, ver GRMEK, M. La Maladie allalba della civilt

occidentale. Bologna: Il Mulino, 1983. 79

AYACHE, L., 1992, p. 91.

37

particularidades do cu e de cada lugar; dos hbitos, do regime

alimentar, do gnero de vida, da idade de cada um; dos discursos e das

maneiras de falar; dos silncios, os pensamentos que ocupam o

doente; do sono e da ausncia de sono; dos sonhos, segundo o carter

que eles apresentam e o momento em que eles sobrevm; dos

movimentos das mos; das aflies e das lgrimas; da natureza das

pioras; das fezes e da urina; da expectorao; dos vmitos; de toda a

sucesso de doenas observando quais cessam e quais retornam; dos

depsitos que levam perda do doente ou soluo da doena; dos

suores; do resfriamento; dos arrepios; da tosse; dos espirros; dos

soluos; das dificuldades respiratrias; dos arrotos; das hemorragias;

das hemorroidas. a partir de todos esses sinais e de tudo o que

dado pela intermediao desses sinais que necessrio conduzir a

observao80

.

O programa surpreendente e por meio dele vislumbramos uma concepo

hipocrtica sobre o homem, que possuiria uma natureza que lhe particular, a dimenso

prpria da atividade mdica, e participaria de uma natureza humana universal81

.

Observamos que no h uma ordem rigorosa de exposio dos elementos nem mesmo a

indicao de qualquer hierarquia de valor: todas as manifestaes devem ser igualmente

consideradas. No entanto, a depender do domnio a que pertencem, identificamos

naturezas diversas: desde os fenmenos mais densos que se revelam no corpo fsico,

passando pelas mutveis disposies interiores82

, at alcanar as caractersticas da

natureza como um todo83

.

O mtodo preconizado pelo autor torna a tarefa extremamente complexa: um

sintoma isolado no possui uma significao nica. Ayache84

comenta que um sinal de

qualquer ordem somente adquire sentido ao estabelecer relaes com outros sinais que

se manifestem conjuntamente ou mesmo que tenham ocorrido anteriormente, definindo

as configuraes que oferecem contornos de um diagnstico e permitem formular um

prognstico. Dessa forma, os sintomas podem ser tanto determinantes quanto

80

CORPUS HIPPOCRATE. pidemies I. Traduo. Littr, II, p. 669. Os sete tratados denominados

Epidemias apresentam registros de casos bem detalhados, desde a identificao da pessoa e da doena, a

localizao e a causa, a descrio dos sintomas, as prescries e o prognstico. Esse conjunto de tratados

atribudo aos mdicos de Cnido. Apud VITRAC, B. 1989, p. 79 e JOUANNA, J. 1992, p. 425-6. 81

O autor no oferece mais elementos ao longo do tratado a respeito da relao entre as duas dimenses

humanas evocadas. Bourgey considera que o fato se deve possivelmente natureza filosfica e no

mdica da questo, apesar de cit-la nas consideraes de um exame. Alm disso, ele afirma que a

passagem esclarecedora para a questo do mtodo de Hipcrates evocado por Plato no dilogo Fedro,

j mencionado. A impossibilidade de se conhecer o corpo sem o conhecimento do todo adquire aqui uma

significao mais precisa. Cf. BOURGEY, L., 1953., p. 262 e p. 196, nota 1. 82

Para o discernimento das doenas deve-se se ultrapassar o plano orgnico. As disposies interiores so

mencionadas com frequncia nos tratados hipocrticos. Ibid., p. 262-3. 83

O tratado Ares, guas, lugares consagrado inteiramente a esse assunto. A preocupao com as

variaes da natureza como uma fonte de observao da arte de curar representa bem a concepo mdica a

respeito da insero do homem no cosmos. Ibid., p. 205. 84

Ver discusso ampliada em AYACHE, L., 1992, p. 91-95.

38

determinados, na medida em que representam manifestaes de partes de uma totalidade

ameaada em sua unidade, partes estas que podem convergir ou conflitar. O pensamento

hipocrtico se orienta por um princpio de totalidade na interpretao dos sinais: uma

doena sempre uma desarmonia global. Tal perspectiva claramente afirmada no

tratado Lugares no homem85

: A meu ver, nada no corpo origem, tudo igualmente

origem e fim; com efeito, um crculo sendo traado, a origem no pode ser encontrada.

De todo modo, a origem das doenas est no todo do corpo86

.

O corpo: anatomia e fisiologia

Os primeiros sinais corporais em um exame, em um primeiro momento, dizem

respeito a tudo o que se evidencia em sua superfcie. Dada a opacidade dos corpos,

todos os que se alojam mais internamente necessitam da investigao dos outros

sentidos, dos interrogatrios diretos com os doentes e de medicamentos especficos para

faz-los emergir87

. Como no havia disseco humana na poca clssica nem qualquer

prtica ritual de embalsamamento que propiciasse uma experincia direta com o interior

dos corpos, os mdicos se utilizavam da observao das disseces animais,

estabelecendo regras de correspondncia com as estruturas prximas88

. A anatomia

interna se encontrava em um estgio rudimentar, pois, como j mencionado, somente na

poca helenstica em Alexandria, com a permisso da disseco humana, ela ir se

impor fortemente gerando um enorme avano nos conhecimentos. Uma exceo, no

entanto, deve ser lembrada: nos tratados cirrgicos, os ossos, o crnio e as articulaes

so muito bem descritos89

, evidentemente, por meio dos tratamentos de fraturas e

ferimentos de guerra.

O mdico hipocrtico no conhece um modelo natural universal de

Homem: cada organismo tem qualquer coisa de singular. Da medicina

antiga evoca milhares de configuraes diferentes entre os homens;

Lugares no homem e Feridas da cabea admitem fortes variaes

individuais do esqueleto. Esse lugar e esse papel da anatomia

85

HIPPOCRATE. Des lieux dans lhomme. Paris: Les Belles Lettres, vol.13, 2000. 86

Apud DACHEZ, R., 2012, p. 119. 87

A passagem do que invisvel nos corpos para o visvel conquista da arte mdica como argumenta o

autor do tratado Da arte, examinado na segunda parte. 88

Uma passagem do tratado Da doena sagrada, tambm examinado na segunda parte, se tornou

referncia sobre esse aspecto, onde o autor se apoia no exemplo do crebro de cabras para demonstrar o

excesso de umidade cerebral nos casos de epilepsia. 89

Na famlia de Hipcrates existia uma slida tradio de conhecimento sobre os ossos, inclusive com um

texto atribudo a seu pai. Cf. DACHEZ. R., 2012, op. cit., p. 113.

39

explicam o desacordo dos tratados, notadamente quanto ao nmero e o

trajeto dos vasos90

.

Sem um modelo anatmico universal, a fisiologia no definida a partir das

estruturas nas quais se desenvolve, ao contrrio, as descries anatmicas que lhes

servem de suporte. Ayache explica que esse aspecto se evidencia nas diferentes

descries de trajetos dos vasos que decorrem uns dos outros, realizando a comunicao

de todas as partes do corpo, atividade essencial da fisiologia para dar conta de

fenmenos patolgicos e teraputicos que ocorrem em pontos distantes. No Corpus h

divergncias quanto ao ponto de partida e chegada dos vasos e os rgos que

atravessam, variando geralmente em torno de trs principais: a cabea, o fgado e o

corao. Do mesmo modo, a depender da tese fisiolgica que pretendem demonstrar, h

um desacordo sobre a local sede da inteligncia que oscila entre o crebro e o corao91

.

Naquele perodo, no havia ainda uma concepo de rgo associado a uma

funo especfica, mas sim a ideia de