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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNO
Programa de Estudos Ps-Graduados em Teologia
JEDEIAS DE ALMEIDA DUARTE
O pastoreio de Deus e o pastorado da Igreja: A Igreja, agncia de pastoreio
Mestrado em Teologia
So Paulo 2016
1
PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNO
Programa de Estudos Ps-Graduados em Teologia
JEDEIAS DE ALMEIDA DUARTE
O pastoreio de Deus e o pastorado da Igreja: A Igreja, agncia de pastoreio
Mestrado em Teologia
Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assuno, como exigncia parcial para obteno do titulo de MESTRE em Teologia Sistemtica, sob a orientao do Prof. Dr. Kuniharu Iwashita
So Paulo 2016
2
PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNO
Programa de Estudos Ps-Graduados em Teologia
Banca Examinadora
_____________________________
_____________________________
_____________________________
3
AGRADECIMENTOS
Ao Supremo Pastor, autor e consumador da minha f Jesus Cristo. O
sempre presente na busca das ovelhas perdidas, conduzindo o seu rebanho para
aguas tranquilas.
A minha esposa Dulcinia Duarte, que vive o Evangelho da graa,
incentivando-me a caminhar, mesmo em lugares sombrios, horas escuras, lindas
tardes de vero e belo entardecer nos invernos da existncia.
Aos meus filhos: Stefanie e Apolo, ovelhas do Supremo Pastor que
recebem os cuidados pastorais, motivos primeiros das minhas intercesses pelo
pastorado de Deus na humanidade.
Ao Prof. Dr. Kuniharu Iwashita, orientador de minha dissertao. Agradeo
sua dedicao, pacincia e encaminhamentos e vivencia do Evangelho de Jesus
Cristo.
Aos amigos do Grupo Caminhada, amigos certos, distantes e presentes.
4
RESUMO
O objetivo desta pesquisa analisar alguns fundamentos bblico teologicos
do pastorado de Deus na caminhada do seu povo, observando num primeiro
momento nos tempos bblicos, seguido da vivencia deste pastorado na vida igreja
atravs de alguns Conclios Gerais e em alguns expoentes da teologia crist tanto
Catlicos quanto Protestantes.
Justifica-se o presente estudo pela possibilidade de complementariedade
que a Teologia possui nas tradies Catlico Romana e Protestante Histrica em
alguns principios teologicos da Teologia da Vocao Pastoral, que pode gerar
benefcios mtuos a ramos do Cristianismo, especialmente a Religiosos dessas
tradies crists.
Parte da hiptese que possvel conhecer e identificar algumas conexes
nas tradies Catlico Romana e Protestante Histrica na Teologia da Vocao
Pastoral, atraves da pesquisa bibliogrfica que a metodologia utilizada para
aferir a possibilidade da hiptese.
Os resultados obtidos nesta fase da pesquisa apontam para a possibilidade
de conhecer a Teologia da Vocao Pastoral, de encontrar pontos de conexo e
dialogo entre religiosos dos grupos pesquisados e por fim se propor uma agenda
mnima para desenvolvimento de um projeto teolgico que visa o crescimento
ministerial de religiosos ligados por principios teologicos da Teologia da Vocao
Pastoral.
Palavras Chaves: Vocao pastoral; ministrio pastoral; Vaticano II; Igreja
Presbiteriana do Brasil; Pastores Dabo Vobis
5
ABSTRACT
The objective of this Research is to analyze some Biblical and Theological
foundations of the pastorate of God in the journey of his people. First having a
view at biblical times, following by experiences of his pastorate in Church life
through some General Councils and also some representatives of Christian
Theology Catholics as well as Protestants together.
This Study is justified by the possibility to happens a complementarity in
the Theology between the Roman Catholic and Protestant Historical traditions with
some theological principles of Vocation Pastoral Theology (Pastoral Calling). This
conections it can generate mutual benefits for the branches of Christianity,
especially the religious (Priests and Pastors) of these Christian traditions.
From the thesis of this Research suppose that is possible to know and to
identify some connections between the Roman Catholic and Historical Protestant
traditions in Theology of Vocation Ministry, through the bibliographic research in
that is the methodology used to assess the possibility of the thesis.
This research has two phases, the first is it this bibliographic research. This
phase of the Research can appointing some results to the possibility of knowing
the Theology of Vocation Ministry and to find points of connection and dialogue
between religious of the surveyed groups and finally propose a minimum agenda
to develop a theological project to the ministerial growth religious linked by
theological principles of Theology of Vocation Pastoral.
Keywords: The pastoral Calling; pastoral ministry ; Vatican II ; Presbyterian
Church of Brazil ; Pastores Dabo Vobis
6
SUMRIO
RESUMO. .......................................................................................................... 4
ABSTRACT. ...................................................................................................... 5
INTRODUCAO .................................................................................................. .8
CAPITULO 01 FUNDAMENTOS BBLICO TEOLGICOS DO PASTOREIO DE DEUS UMA PROPOSTA DE LEITURA POIMNICA DAS SAGRADAS ESCRITURAS. .................................................................... 13
1.1 Alguns fundamentos lingusticos de algumas expresses bblicas
para Pastor. ............................................................................................ 13
1.2 Uma leitura cultural do pastoreio na narrativa bblica . ..................... 16
1.3 Uma leitura panormica da dinmica do pastoreio de Deus em
alguns perodos bblicos. ........................................................................ 18
1.4 O pastoreio de Deus mediante o Bom Pastor: Jesus Cristo. ........... 25
1.5 O Bom Pastor e a Igreja no encontro com Mulher Samaritana. ....... 28
CAPITULO 2 - UMA TEOLOGIA DA VOCAO MINISTERIAL NA TEOLOGIA CATLICA: O PASTOREIO DA IGREJA ATRAVS DO MAGISTRIO (ANLISE DE ALGUNS DOCUMENTOS). .............................. 38
2.1 A importncia dos Concilios Ecumnicos da Igreja na sua misso
de pastoreio do povo de Deus. ............................................................... 38
2.2 Algumas contribuies conciliares para o pastoreio da Igreja. ......... 41
2.2.1 Concilio Vaticano I (1869-1870). ......................................... 42
2.2.2 Concilio Vaticano II (1962-1965). ........................................ 43
7
2.2.2.1 Lumen Gentium. .................................................... 44
2.2.2.2 Dei Verbum. ........................................................... 44
2.2.2.3 Gaudium Et Spes. ................................................. 45
2.2.2.4 Optatam totius. ...................................................... 46
2.2.2.5 Presbyterorum ordinis. .......................................... 47
2.3 O Sinodo Geral dos Bispos como instrumento de pastoreio da
Igreja luz do Concilio Vaticano II. ...................................................... 49
2.4 Pastores Dabo Vobis Uma teologia pastoral para pastoreio da
Igreja (uma leitura protestante). ............................................................ 52
CAPITULO 3 - UMA TEOLOGIA DA VOCAO MINISTERIAL NA TRADIO PROTESTANTE HISTRICA REFORMADA. .............................. 75
3.1 A tradio protestante histrica reformada e a Igreja Presbiteriana
do Brasil. ................................................................................................. 75
3.2 A vocao como um chamado de Deus existncia e misso. .... 76
3.3 Uma proposta de sistematizao da teologia da vocao
ministerial na tradio protestante histrica reformada. ......................... 83
3.3.1 A natureza da teologia da vocao: Igreja de sacerdotes. . 83
3.3.2 A extenso prtica da teologia vocao na tradio
protestante histrica reformada: Palavra e Sacramentos. ........... 86
3. 4 O reconhecimento da vocao na tradio protestante histrica
reformada: vocao interna e vocao externa. ..................................... 92
CONCLUSO. .................................................................................................. 99
BIBLIOGRAFIA. ................................................................................................ 103
8
INTRODUCAO
Este trabalho debrua-se sobre a pressuposio que a vocao pastoral ou
vocao sacerdotal pode ser estudada sob o prisma de algumas tradies crists.
Parte do pressuposto que possvel sob anlise das Escrituras e de algumas
tradies da Igreja em suas ramificaes, catlico e protestante-reformada
conhecer a teologia da vocao ministerial.
Olhando o contexto, parece que o cristianismo em sua expresso histrica
no terceiro milnio experimente uma estagnao ou encolhimento no crescimento
numrico e na prxis da espiritualidade dos fiis nas comunidades locais, no
sendo porem objeto deste estudo a analise deste fator. Contudo, parece tambem
que ocorre uma diminuio do numero de vocacionados para o pastorado,
perceptvel ao observar-se a densidade de cristos praticantes tanto catlicos
quanto protestantes histricos em face a populao brasileira, no grande numero
de brasileiros sem vnculos com o cristianismo e com a Igreja em suas mltiplas
expresses histricas e teolgicas.
Esta pesquisa se sustenta sob trs vertentes. A possibilidade de uma
leitura bblica buscando alguns fundamentos teologicos para se conhecer o
pastoreio de Deus nas Sagradas Escrituras e o desenvolvimento deste pastoreio
sobre o povo de Deus no Antigo e no Novo Testamentos. A possiblidade de
analisar o pastoreio da Igreja atravs da interpretao dos fundamentos bblicos
externada no Magistrio, fazendo uma analise da vocao pastoral no ultimo
Concilio Ecumnico e na prxis do espirito do Vaticano II neste assunto atravs
da Exortao Apostolica Ps-Sinodal Pastores Dabo Vobis de S. Joo Paulo II. E
tambm, na possibilidade de anlise do pensamento protestante reformado
atraves do estudo de alguns telogos de tradio protestante histrico reformada.
Busca-se em sua sustentao conhecer a teologia da vocao pastoral a
partir destes segmentos do cristianismo apontando algumas conexes ou
desconexes da teologia catolica romana e da teologia protestante reformada
com o ministrio pastoral da atualidade. Por fim, apresenta uma proposta de
agenda mnima para troca de informaes, discusses e aproximao entre
9
vocacionados catlicos e protestantes buscando desenvolver pontos de contato
na vivencia ministerial a partir de uma teologia da vocao.
No primeiro capitulo observa-se uma tentativa de apresentar alguns
fundamentos biblico-teologicos sobre o pastorado de Deus nas Sagradas
Escrituras. A observao parte do pressuposto que existiu um desenvolvimento
da Revelao de Deus, nas Sagradas Escrituras, se assim for, existe a
possibilidade de afirmar que o pastoreio de Deus uma figura bblica que aponta
para o pastoreio do Jesus Cristo em sua Igreja e no mundo. Procura ainda
conhecer algumas possibilidades do cuidado pastoral no seu significado bblico,
faz-se, mediante uma proposta de narrativa bblica que aponta para uma
manifestao messinica progressiva e assim, contribu para a construo da
figura de uma nova aliana onde o Cristo foi levantado como pastor supremo da
Igreja e por seu intermdio, pastor das naes.
De modo sistemtico o primeiro capitulo se detm na busca de uma
compreenso do termo pastor nas Sagradas Escrituras sob a tica de uma
narrativa bblico-histrica. Segue observando alguns aspectos culturais tanto da
nao hebreia quanto de outras naes que estavam prximas, conforme
registros no Antigo Testamento. Em seguida procura observar a manifestao
dinmica do pastoreio de Deus tentando fazer algumas aplicaes literrias e
teolgicas trata-se de uma tentativa de encontrar explicaes para algumas aes
do prprio Deus em relao ao seu povo e aos demais povos da terra, ao exercer
o papel e se apresentar como pastor.
Ainda no primeiro capitulo, a trilha de reviso bibliogrfica e reflexes
teolgicas escolhida possui como pano de fundo uma cosmoviso bblica que
pressupe uma revelao progressiva das Sagradas Escrituras. Neste sentido
procura-se uma narrativa que enxergue nos escritos do Antigo Testamento um
prenuncio do que aconteceria no Novo Testamento e depois na era da Igreja.
Utiliza-se como fato para transposio da historia bblica para a historia posterior
a Bblia, o encontro de Jesus e o dilogo com a Mulher Samaritana nos termos do
registro do captulo 04 do Evangelho de So Joo, parece que este o dialogo
continuo de Jesus com a Igreja que composta de pecadores alcanada pela
graa e torna-se instrumento de graa onde for plantada. A concluso deste
10
capitulo repousa em reflexes missiolgicas a partir da narrativa bblica escolhida,
especialmente do estudo de caso feito em So Joo 4, trata-se de uma tentativa
para auxiliar a Igreja na conduo do ministrio pastoral na sua atual conjuntura
histrica.
No segundo capitulo, uma teologia de pastoreio ou uma teologia da
vocao ministerial buscada na tradio catlica a partir da analise de alguns
documentos da Igreja, observando que o Magistrio da Igreja um elemento de
pastoreio da Igreja no presente e na histria. Busca-se assim, observar a
importncia dos Concilios Ecumnicos, fazendo aluso ao Concilio de Jerusalm
e alguns dos 21 Concilios Gerais da Igreja.
Os limites de algumas contribuies para o pastoreio da Igreja esto em
alguns documentos do Concilio do Vaticano I (1869-1870) e em alguns outros
documentos do Concilio Vaticano II (1962-1965). Prossegue para o Sinodo Geral
dos Bispos como mecanismo pastoral de aplicao do Concilio Vaticano II, desde
a sua criao at a sua ultima Assemblia de 2015, para buscar o principal
documento de analise que a Exortao Apostlica Ps-Sinodal Pastores Dabo
Vobis. Debrua-se teologicamente, de forma pastoral sobre esse documento,
conectando a sua natureza, extenso e essencia do pensamento cos
fundamentos bblicos e estes com o ensino do Magistrio.
No documento Pastores Dabo Vobis, feito uma leitura analtica a partir
numa viso teologica de lastro teolgico protestante histrico. A Exortao
Apostolica Ps-Sinodal de S. Joo Paulo II analisada em seu contedo,
observando que a mesma se torna um manual vivo da formao de um pastor no
contexto cristo. O detalhamento da formao de um pastor para o rebanho de
Deus a partir de Pastores Dabo Vobis faz deste documento um referencial para
formao, dialogo e esperana na soluo de crises na formao ministerial e no
deve ser ignorado por cristos em todo o mundo.
Pastores Dabo Vobis traz algumas conexes entre a teologia de tradio
catolica e a teologia de tradio protestante, sendo possvel questionar se em
outros assuntos da Teologia Crist no possvel encontrar tambem pontos de
conexo ou pelo menos de contato. Parece que o pice do documento, sob a
11
leitura de um telogo protestante acontece quando o autor discorre sobre a
formao do ministro, do pastor, do sacerdote em sua extenso desde os
primeiros indcios vocacionais at ao momento maduro de ministrio ou a idade
avanada so fortes elementos a se avaliar por religiosos cristos no mundo. As
disciplinas espirituais abordadas no documento e a forma de vivenciar os
problemas existncias como solido ou a sexualidade e ainda, o contato
constante com a paroquia tornam pontos motivadores a buscar-se uma troca de
experincias e vivencias com realidades diferentes, culturas diferentes a partir da
proposta inicial de cada religioso: o chamado de Deus.
No terceiro capitulo, busca-se conhecer uma teologia da vocao
ministerial na tradio protestante histrica reformada. Especifica a Igreja
Presbiteriana do Brasil como campo de analise inicial, contudo as observaes de
telogos remontam as origens do movimento reformado do Sculo XVI, desde
Martinho Lutero (1493-1546), Joo Calvino (1509-1564) e outros. Observa-se que
a vocao estudada a partir do conceito amplo cristo (no apenas protestante)
que toda vocao humana um chamado de Deus. Aponta que a influencia sobre
os Presbiterianos na teologia aconteceu de forma densa no a partir da teologia
de Martinho Lutero, mas de Joo Calvino.
Portanto, a partir da teologia calvinista, proposta uma anlise da vocao
ministerial na tradio reformada tendo a sua natureza numa Igreja de
sacerdotes, muito semelhante ao pensamento luterano da teologia do Sacerdocio
Universal dos crentes. Tambem a especificao da teologia da vocao
ministerial especializando o ministrio pastoral ao exerccio da Palavra e da
ministrao dos Sacramentos e os meios para o reconhecimento da vocao
ministerial de forma interna e externa, onde a conscincia do vocacionado e sua
experincia transcendente com o sagrado lhe aponta o ministrio como chamado
divino, sendo este de forma externa reconhecido pela Igreja que o chancela como
ministro.
Assim, este trabalho, busca fundamentos para vocao ministerial a partir
do pastorado de Deus nas Sagradas Escrituras, busca conhecer a trajetria do
assunto nas tratativas da Igreja atraves de documentos produzidos em pocas
diferentes, com vises e pressupostos diferentes, que apontaram direcionamentos
12
para a crise da vocao ministerial. E por fim, busca conhecer algumas
possibilidades do dialogo da teologia catolica com a teologia protestante
reformada e a busca de algumas conexes podem produzir uma agenda mnima
para maior clarificao e desenvolvimento de uma teologia da vocao ministerial.
Tambm, procura este trabalho oferecer possibilidades de dialogo com as
Cincias Sociais no campo teolgico-cientifico a partir do desenvolvimento de
uma agenda mnima de estudos sobre a teologia da vocao ministerial pode-se
chegar a um perfil de ministro que atenda as demandas brasileiras em seu
mltiplo universo cultural tendo o cristianismo como matriz religiosa a ser
apresentada e desenvolvida, sem deixar as Sagradas Escrituras como o ponto de
partida e de chegada neste processo de dilogo.
A hiptese levantada analisa a possibilidade de conhecer o pensamento
cristo sobre a vocao do ministrio pastoral a partir de fundamentos bblicos, de
uma analise literria e comparativa entre documentos catlicos e protestantes,
buscando estabelecer um dialogo e uma melhor compreenso de teologia da
vocao ministerial.
A metodologia da pesquisa utilizada o levantamento bibliogrfico. A
reviso bibliogrfica aconteceu a partir de autores catlicos e de autores com
tradio protestante histrica reformada, observando a relevncia, contribuies e
possibilidade de dialogo sobre o assunto geral da pesquisa. Buscou-se com esta
metodologia uma aplicao futura para fixao de um ponto de partida para uma
base de dados cientficos. Nesta base de dados, espera-se aferir de forma
objetiva os resultados de dilogos direcionados entre Ministros Catlicos e
Ministros Protestantes que possuam formao teologica em Seminrio Maior, no
contexto brasileiro, visando o conhecimento e o fortalecimento vocacional e de
forma subjetiva, o estreitamento de laos fraternos e relacionais. Esta fixao da
futura base de dados se estabelecer num pretenso programa de doutorado a ser
desenvolvido no futuro.
13
CAPITULO 01
FUNDAMENTOS BBLICO TEOLGICOS DO PASTOREIO DE DEUS UMA PROPOSTA DE LEITURA POIMNICA DAS SAGRADAS ESCRITURAS
1.1 Alguns fundamentos lingusticos das expresses bblicas para Pastor
De forma geral nas Escrituras Sagradas, o termo Pastor aparece por 77
vezes no Antigo Testamento, do hebraico - (raah). No Novo Testamento o
termo correlato aparece 18 vezes, 1 (Poimainei), este tambm o termo correlato na verso grega do Antigo Testamento conhecida por Septuaginta2. Em
Champlin (1991:104), estes termos e suas derivaes designam uma funo
comum na sociedade da antiga Palestina, que era o cuidado com ovelhas e gado
pequeno.
Champlin3, descreve que originalmente, tanto o termo hebraico: (reh ou ,
r; e depois o termo grego: poimn, estes termos podem referir-se a figura do
pastor como o proprietrio de rebanhos, como o cuidador de rebanhos de ovelhas
ou de outros animais pequenos, conhecidos na literatura como gado mido.
Tambm descreve, que era utilizado para uma pessoa que trabalhava como
empregado do proprietrio de terras ou gado; aponta que um pastor poderia
residir em uma cidade e deixar um servo encarregado das manadas em algum
outro local. E ainda designa uma ocupao comum no Mediterrneo antigo na
qual era o responsvel para liderar, alimentar, proteger e encontrar de descanso
para seu rebanho. Por fim assevera que dentre todos os usos dos termos
importante observar que na Bblia Sagrada tambm usado metaforicamente
para designar lderes e para o prprio Deus.
Numa sequncia histrica, o termo aparece nas Escrituras Sagradas
inicialmente trazendo significados que apontam para as relaes do homem com
a natureza, com a cultura, com outros homens e principalmente com Deus.
1 Conhecida como verso dos LXX. Traduo do Antigo Testamento para a lngua grega, feita em Alexandria por 70 judeus. 2 CHAMPLIN, R.N. Pastor in: Enciclopedia de Biblia, Teologia e Filosofia. So Paulo: Editora Candeia, 1991. 5 v. p. 104 3 CHAMPLIN, R. (Op. cit) p.104
14
assim no primeiro texto que aparece e nos demais sequencialmente indicando a
tarefa que alguns personagens, como Abel (Gn 4,2), filho de Ado; os
empregados de Abrao que cuidavam de seus rebanhos (Gn 13,7-8), os pastores
que trabalhavam para Isaque (Genesis 26,20) e os pastores que trabalhavam
para Labo (Gn 29,3). Posteriormente tambm empregado para os filhos de
Jac que desceram ao Egito e se denominaram como pastores (Gn 46,32,34).
Entre 1600 e 1500 a.C, perodo do xodo e, portanto, perodo em que as
Escrituras Sagradas apontam Moiss como o principal lder do povo hebreu, so
denominados pastores os homens que trabalhavam no deserto de Madi ou Midi
(Ex 2,17-19). Esta regio possua uma mesma ascendncia histrica com o povo
hebreu, pois tambm eram tambm descendentes de Abrao, os midianitas,
conforme o relato da descendncia de Abrao (Gn 25,4; 1 Cr 1,33). Um outro
sentido no Antigo Testamento para o termo pastor vincula o exerccio do pastoreio
s cidades onde moravam os pastores, aos objetos de uso do pastor e a pessoas
que cuidavam das ovelhas (Nm 14,33; 1 Sm 17,40; 21,7; 25,7; e 1 Rs 10,12).
Entretanto, o termo possui uma conotao mais ampla, completa desde os
momentos mais antigos do povo de Israel, quando Deus apresentado ou se
apresenta como o pastor do seu povo. A trajetria neste relacionamento pode ser
conhecida observando uma aliana do Deus Eterno () com Israel. Esta
aliana no tempo sob a perspectiva cronolgica foi iniciada nas promessas feitas
a Abrao (Gn 12,1-3) e desenvolvida a partir do impulso para uma caminhada
libertria para o povo, da fome para a saciedade, da escravido para a liberdade,
do pecado para a santidade. Assim, os filhos de Israel, foram retirados do Egito e
guiados pelo deserto por 40 anos, numa marcha de testemunho interna (para si
mesmos), para os demais povos que deixaram o Egito e seguiam paralelamente a
marcha e para todas as naes (x 15,11-18) que habitavam a terra e a rota
estabelecida por Deus. Este o principal registro do Pentateuco e parece
apontar, como uma sombra, a libertao que o Supremo Pastor traria ao seu povo
na plenitude dos tempos (Gl 4,4).
Neste sentido, o Antigo Testamento apresenta o verbo - (naalu)
traduzido por: liderar, guiar, ajudar a ir; acompanhar e pastorear, aplicando a
Deus como pastor de Israel e das demais naes. O cuidado de um pastor
15
apascentando o seu rebanho, cuidando gentilmente, inclusive daqueles que so
fracos, doentes ou esto amamentando, visualizado em Deus. Na expresso de
Vandermerem, os braos que criaram o universo e continua a sustenta-lo tambm
abrigam que no tem que os ajude4. Acrescenta a este mesmo conceito Douglas5
para quem os pastores viviam num estado de nmade social e assim, cada
homem, do prncipe at o escravo, era mais ou menos um pastor. Assim, os pais
da nao hebreia progenitores da poca patriarcal eram nmades, e sua histria
envolve muitas ilustraes bem de vida pastoral. Viviam em bandos e
deslocando-se sem lanar os fundamentos de cidades e grandes aglomeraes.
Certamente o deslocamento para o Egito por mais de 400 anos, vivendo numa
nao desenvolvida e com o maior desenvolvimento humano na antiguidade,
possibilitou que houvesse um o aperfeioamento de suas tcnicas de pastoreio
entre outras profisses.
Entretanto, na narrativa bblica a profisso de pastor honrada quando o
ttulo de Pastor da Israel atribudo a Deus. (Gn 49,24; Sl 23,1 e 80,1). Seu
destaque permanece claro diante de outras profisses quando dois pastores
mencionados com especial aprovao: Moises (Is 63,11) e de modo bastante
surpreendente, um executor pago dos Propsitos de Deus, Ciro (Is 44,28)6.
O significado do exerccio do pastoreio no povo de Israel no era apenas
alimentar as ovelhas, mas exercer o cuidado que trazia o encargo de vigilncia
contra os inimigos, mesmo em lugares inspitos e principalmente para guiar por
lugar planos e de boa pastagem. Para Dufour7 o oriente antigo principalmente a
Babilnia e Assria onde os reis se consideravam como pastores que receberam o
servio de reunir e cuidar do povo, trouxe a background para as relaes bblicas
4 VANGEMEREM, W.A. Novo Dicionrio Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. So Paulo, 2011. Segundo este autor: Isso metaforicamente comparado com o cuidado de Jav por seu povo, Israel, um conceito que colocado em termos no metafricos em todos os outros lugares com o mesmo verbo (2 Cr 32,22). Deus, por meio de seu gentil cuidado, ir prover para as naes e indivduos o sustento de que eles necessitam e a tranquilidade necessria para que eles possam usufruir desse sustento (Sl 23, 2; 31, 3-4). O objeto fsico de tal direo e liderana a santa morada de Deus (Ex 15,13). p. 46. 5 DOUGLAS, J.D. Pastor in: Dicionrio da Bblia. 19.ed. So Paulo: Vida Nova, 1990. 2 v. 6 DOUGLAS, J.D. (Op.cit.): p 1212. 7 LON-DUFOUR, X. Leitura do Evangelho segundo Joo. So Paulo: Loyola, 1996. p: 578-579.
16
que unem Israel com Deus atravs de Cristo e seus delegados ou subpastores,
isto a sua Igreja. Assim para Dufour, a sntese da definio de um pastor nos
tempos bblicos acontece quando um chefe ou companheiro forte, capaz de
defender o rebanho, recebe-o consigo, conhecendo o seu estado e levando em
seus braos8 somente Deus pode agir de forma plena em todo o tempo. Grenzer
corrobora e fortalece este conceito quando desvenda o sentido do pastoreio de
Deus tanto como cuidador, quanto como anfitrio (Sl 23)9
O conceito de pastor e pastoreio tem a sua expresso plena quando Deus
reconhecido como pastor do seu povo, como pastor ele utiliza subpastores e
numa dinmica de desvendamento teolgico toda perspectiva de pastoreio
depositada na pessoa, no ser e nos atributos de Deus. Ao contrrio das
divindades de outros povos antigos, principalmente egpcios, assrios e
babilnios, o Deus de Israel cuidador e se volta para o povo em sua lida diria
(Is 40,1-11). Sobre a ao de Deus como pastor do seu povo outras vertentes
sero discutidas neste capitulo nos tpicos que se seguem.
1.2 Uma leitura cultural do pastoreio na narrativa bblica
As ovelhas foram domesticadas no antigo Oriente prximo do ano 7.000
A.C., mas que qualquer outra espcie de gado, nos tempos bblicos tanto na
nao hebreia quanto em outras naes foi importante economicamente como
fonte de alimento, l e pele. Desde o incio, o povo de Deus percebeu nas
responsabilidades primrias de liderar e proteger o rebanho, como uma ocupao
emprestada da liderana de Deus sobre a humanidade. Um pastor cuidava de
rebanhos e manadas, sendo inicialmente um trabalho independente, porem
responsvel que envolvia perigo. Posteriormente, proprietrios de terras e seus
filhos faziam o trabalho, contudo, a figura do pastor contratado para trabalhar
numa fazenda, geralmente um beduno pastor, sempre existiu no Oriente mdio.
8 LON-DUFOUR (op.cit) p. 578. 9 GRENZER, M. Pastoreio e hospitalidade do Senhor Exegese do Salmo 23. Atualidade Teologica. Ano XVI, n. 41, 2012. p. 301-321.
17
Alguns resultados de pesquisas arqueolgicas e histricas publicados por
Eastons10 ainda no Sculo XIX, apontavam que vrios povos alm dos hebreus
faziam a correlao de determinadas divindades a figura de um pastor,
especialmente mesopotmios, babilnios, assrios, egpcios e posteriormente
greco-romanos. Eastons11 tambm afirma que na Mesopotmia12 divindades
foram ocasionalmente referidas como pastor-rei, especialmente, Enlil o deus da
agricultura, a tempestade e ventos, que referido como pastor. Outra divindade,
Enuma Elish, na histria babilnica da criao, concede-se o ttulo de Marduk ou
seja: deixe-o pastor de todos os deuses cuidar das ovelhas13.
Na Babilnia, o famoso rei Hammurabi (ca. 1792-1750 A.C) recebeu o ttulo
de pastor no prologo e epilogo do seu cdigo de leis14 sendo apontado que o
soberano fora nomeado pastor para o seu povo. Entre os egpcios, o ttulo de
pastor s divindades era mais raro, mesmo assim, segundo Easton, o ttulo foi
empregado para Amon-Re (o criador e deus Sol) e Osris (o deus da fertilidade),
sendo este representado como um opositor aos pastores, enquanto Amon-Re era
conhecido como o bom pastor.
No segundo perodo da civilizao egpcia (1551-1087 a.C) alguns outros
faras so colocados como pastores do povo: Amenotep II (1411-1374), Seti Eu
(1313-1292), Merenpthah (1225-1215)15. Corrobora com estes dados Kittel
apontando que o termo pastor foi empregado de forma comum para deuses e
governantes tanto na Babilnia, quanto Assria e Egito16. Segundo este segundo
autor, Amon (deus egpcio) tinha como uma de suas configuraes um forte
boiadeiro que guardava o seu rebanho17.
10 EASTON, M.G. Shepherd in : Eastons Bible Dictionary. New York: Harper & Brothers, 1893. 11 Ibidem 12 Idem p.131; 164; 177-178; 255-259; 337; 378-388; 576. 13 Ibidem p.131. 14 CDIGO DE HAMMURABI. Disponivel em: http://www.ataun.net/BIBLIOTECAGRATUITA/Cl%C3%A1sicos%20en%20Espa%C3%B1ol/An%C3%B3nimo/C%C3%B3digo%20de%20Hammurabi.pdf Acessado em 25/07/2015. 15 EASTON, M.G. (Op.cit) p. 365-366. 16 KITTEL, G. Pastor in: Dicionrio Teolgico do Novo Testamento. So Paulo: Cultura Crist. 2013. p 265. 17 Ibidem
18
Alem das culturas antigas, posteriormente os greco-romanos apontavam
alguns dos seus governantes como pastores. A partir de Homer (sec. VIII a.C),
aponta-se o governante como pastor do povo especialmente no caso de
Agamenon, lder do hospedeiro Achaian18. Para Plato (427-327 A.C) que
descreveu a justia a partir da figura do pastor e tratou especialmente desta figura
na sua descrio do governo perfeito na Republica, tambm salienta que
governantes deveria se preocupar exclusivamente com o bem-estar de
indivduos19. Em Aristteles, a principio, o rei descrito como benfeitor do seu
povo e dedica seu talento para o bem estar e atende-los como um pastor faz com
suas ovelhas20. Entretanto, num contraponto Jeffers21, escreve a partir da Politica
de Aristteles afirmando que os pastores literais no foram estimados na
literatura greco-romano. Em sua viso, os pastores para quem eram os mais
preguiosos dentre os homens, fazendo como que seus rebanhos obrigados
fossem a segui-los numa espcie de fazenda da vida. Alem dos Hebreus pode-se
observar que o tema pastor ou pastoreio tambm pulsou em outras culturas e
naes. Fazendo um corte temporal a partir dos hebreus e entre povos que
mantiveram contato com os hebreus possvel conhecer alguns significados dos
termos a partir da perspectiva cultural.
1.3 Uma leitura panormica da dinmica do pastoreio de Deus em alguns
perodos bblicos
Na narrativa da Historia atravs das Sagradas Escrituras, Deus se
apresenta como o Pastor do seu povo a partir da famlia de Jac, Israel (Gn
48,15). Deus : aquele que guia, alimenta, protege, dirige e exerce o cuidado
temporal e eterno. Assim, o pastoreio ou pastorado do povo de Israel deixa de ser
visualizado como uma funo essencialmente humana e natural, para o exerccio
de uma funo pelo Eterno, uma funo divina.
18 KEENER, C.S. The Gospel of John: A commentary. Peabody, Massachusetts, USA: Hendrickson Publishers. 2003. p 801. 19 PLATAO. A Republica. So Paulo: Martin Claret. 2000. p. 342, 343, 345. 20 ARISTOTELES. tica a Nicomaco. So Paulo: Nova Cultural. 199. p.: 186. 21 JEFFERS, J.S. The Greco-Roman World of the New Testament Era: Exploring the Background of Early Christianity. Downers Grove, IL, USA: InterVarsity Press. 1999. p. 21.
19
Parece que existem evidencias internas na narrativa bblica quanto a
origem do pastoreio de Deus anterior a linhagem de Jac. Por exemplo: Em
Genesis 14 encontra-se o registro de um personagem chamado de
Melquisedeque, definido como Sacerdote do Deus Altssimo, este homem
exerceu o cuidado com Abro (Abrao) e sua famlia num momento de lutas e
incertezas (Gn 14,18-24). Posteriormente no Novo Testamento (Hb 5, 6-10; 7,1) a
ordem sacerdotal de Melquisedeque apontada como a linhagem sacerdotal do
Messias (Cristo).
Tambm nos parece que na antiguidade e pre-xodo o pastoreio de Deus
j se manifestava a outros povos alm da semente especifica de Abrao, mesmo
que a linhagem do Messias seria a condutora da Redeno para todos os povos.
Encontramos Jetro (Ex 2,15-25; 3,1; 18,1-27), sacerdote em Midi, que tambm
exerceu o pastoreio em nome de Deus na vida de Moiss que seria o maior dos
profetas do Antigo Testamento.
A partir de evidencias internas das Escrituras Sagradas e consequncias
histricas na vida dos personagens descritos por elas, possvel afirmar que o
pastoreio de Deus no ficou restrito a linhagem sangunea de Israel ou
monocultural ou mesmo etnocntrica. Parece-nos que haviam outros povos com o
contedo revelativo de Deus que apontava para o povo de Israel e para o
surgimento do Messias. Se assim for, a promessa de Deus em levantar um povo
na descendncia de Abrao (Gn 12,3; 13,14-18; 15,5) foi superior em extenso a
existncia da nao judaica e sua ao no testemunho a respeito de Deus a
outras naes, como um tipo da Igreja no Antigo Testamento. Parece que este
fato foi posteriormente alicerado com a prpria Igreja a partir do Novo
Testamento que deveria chegar a todas etnias e lugares da terra.
Para Monloubou22 a descendncia dos hebreus vem dos arameus e trouxe
a herana e o sentimento da vida pastoril (Gn 4,2; Dt 26,5) que tambm apontava
Deus como pastor de Israel. Para este ttulo, o autor se baseia na ao de Deus
ao apascentar o seu povo, tanto no xodo quanto no Exilio, reunindo as ovelhas
dispersas. Pode-se ainda inferir sobre a possibilidade do direcionamento do 22 MONLOUBOU, L. Pastor in: Dicionrio Bblico Universal. Aparecida, SP: Santurio/Vozes. 2003 p. 598.
20
Antigo Testamento desde o xodo, a caminhada pelo deserto at Cana como
fatos histricos que apontam o pastoreio de Deus atravs do Messias, o Supremo
Pastor. Se assim proceder, todo o pastoreio de Deus no Antigo Testamento,
apontava como sombra para a realidade do pastoreio de Jesus, o Cristo, assim, a
partir do Novo Testamento, na Nova Aliana, com a Igreja de todos os tempos,
naes e etnias acontece o pastoreio de Deus. Olhando por este prisma
importante salientar que em Moiss temos o pice do pastoreio de Deus na
antiguidade.
Parece-nos que a tradio de Deus como Pastor de Israel solidificou a
partir da famlia de Jac e nos anos de escravido no Egito, cerca de 430 anos.
Desenvolveu-se na vida no deserto, a partir do reconhecimento do cuidado de
Deus que motivava uma experincia religiosa vivida e uma espiritualidade
renovada a cada manh com o man que caia do cu, com a libertao de
inimigos e com liberdade que usufrua. A priori, o Deus soberano que trovejava
nas montanhas, descia e se preocupava com a sede e fome do povo, com as
doenas e com o desespero de seu rebanho. Era possvel coexistir soberania
ilimitada de Deus com amor espontneo de Deus, mesmo que numa tenso
criativa, com a esmagadora conscincia do amor23. Mesmo como fugitivos do
Egito e peregrinos no deserto, eram postulantes terra de Cana, coexistindo
sofrimento e esperana enquanto a caminhada se desenrolava na histria.
Este relacionamento pastoral de Deus com Israel vivido a partir do retrato
do xodo (Ex 13, 15 e 17) e os 40 anos de deserto. Foi tambm solidificado por
narrativas de todo o perodo do Antigo Testamento. Ao narrar este perodo na
perspectiva dos escritores do Antigo Testamento, Deus foi o Pastor de Israel
levando o seu povo para aguas tranquilas; era o poderoso soberano de Israel que
afastava e aproximava outras naes. O xodo, mais que um smbolo histrico foi
a personificao de um ato salvfico no qual Deus mostrava o seu cuidado no
apenas com a famlia de Jac ou com a nao de Israel, mas com todos os
escravos que eram oprimidos no Egito naquele tempo: Subiu tambm com eles
um misto gente, ovelhas, gado, muitssimos animais (Ex 12,38). Este populacho
23 KITTEL, G. Pastor in: Dicionrio Teolgico do Novo Testamento. So Paulo: Cultura Crist. V 2, 2013 p. 46.
21
racial, caminhou com o povo de Israel e recebeu ddivas do povo, mesmo que em
outros momentos apresentou tropeos na caminhada do povo de Israel em
direo terra de Cana (Nm 11,4).
Dentro desta abordagem, ainda possvel observar que o reconhecimento
de Jav () como o Pastor de Israel desenvolveu-se numa viva experincia religiosa do povo, num estilo frio, mas corts do Oriente antigo. Caminhando
pelos livros poticos, especificamente nos Salmos percebe-se tanto na invocao,
no louvor, na orao por perdo quanto na tentao e desespero. Os adoradores
sabiam que estavam guardados pelo cuidado de Deus, o pastor fiel.24
Assim, o xodo como ato salvfico de Jav () para com Israel mostra de
fato um pastor levando o seu rebanho a pastos verdejantes, afastando outras
naes (Sl 78,52-55; 78,70-72) e sedimentando a nao de Israel como
testemunha para todos os povos. Mesmo nos perodos posteriores de cativeiro e
restaurao (Is 40,11; 49,9-13), o povo se apegava ao Pastor como genuno e
nico guia e protetor que traria descanso eterno.
Ainda possvel conhecer outras demonstraes do pastoreio de Deus
sobre Israel que so apontadas no desenrolar do Antigo Testamento como no Sl
23,1; tambm no Salmo 80,1; e ainda no livro de Ecl 12,11. Novamente
Monloubou25 destaca que Moiss, Josu, Davi, os juzes, prncipes, reis foram
pastores de Israel por encargo de Deus, este ministrio libertador de Deus
afirmado por Dufour:26
Jav, colocado como chefe e pai do rebanho. Mesmo assim, aparece neste sentido apenas em Gn, 49,24; 48,15 e nas invocaes do Saltrio 23,1 e 80,2. O ttulo reservado para aquele que deveria vir. Contudo no relacionamento de Jav com seu povo apontado: foi guiado pelo deserto como ovelhas (Sl 95,7; 78,52ss), povo apascentado e guiado por Jav (Os, 4,16; Jer, 13,17; Is.49,10; Zac, 10,8).
Para Dufour parece que houve uma trilha logica do pastoreio de Deus,
observando-o em Moiss, tendo no pastoreio de Deus o meio utilizado para que a
24 VANGEMEREM, W.A. (op. cit.) p. 1135. 25 MONLOUBOU, (Op. cit.). 26 DUFOUR(Op.cit) p. 578-579.
22
comunidade Javista no estivesse sem pasto. neste mesmo sentido apontado
por aquele autor que se percebe o levantamento de Deus, de seus descendentes
e de todos os prncipes e reis, mesmo aqueles que estiveram no controle de Israel
em perodos de cativeiro. E novamente Dufour afirma que o propsito de Jav ao
afirmar que o Novo Davi seria levantado era firmar uma experincia escatolgica
para o povo de Israel com a vinda do pastor das naes. Este seria o resumo das
mensagens de Ezequiel e Jeremias, todos os pastores colocados para cuidar do
povo falharam e somente atravs do pastoreio do Messias seria possvel
pastorear o povo novamente conforme o desgnio de Deus.
Esse conceito tambm esteve presente em Isaias ao aponta que Deus
alimentaria o seu povo (Is 40,15) coadunando com Ezequiel onde Deus buscaria
o seu povo (Ez 34,12). Este conceito de esperana futura do pastoreio de Deus
no subtraia ou enfraquece o dever dos pastores que receberam a delegao de
pastorear o povo de Deus conforme a vontade de Deus. De um lado, mostra a
fragilidade humana e o fracasso humano mesmo sob delegao divina, por outro
lado, mostra a expectativa pela ao de Deus em restaurar no Messias todas as
coisas.
Assim, os lderes do povo de Deus no Antigo Testamento foram pastores,
tanto reis, prncipes, sacerdotes, levitas, chefes de famlias, mas condenaram a
sorte de Israel ao fracasso de seus prprios pecados e desalinhamento com a
viso e com a vontade de Deus, falharam na delegao recebida e foram
deserdados destas funes, assim como todo governante que governa por moto
prprio e no conforme a delegao de Deus. Contudo, necessrio observar
que estes lideres tambm eram ovelhas e como ovelhas seriam restaurados no
Supremo Pastor. A falha da liderana de uma nao, como a nao judaica, no
era maior que a restaurao que o Messias faria nas naes da terra atravs do
seu Evangelho pregado por sua Igreja.
Este mesmo conceito, aparece nos profetas ps-exlio, principalmente em
Zacarias quando Dufour comenta ele assim expressa27:
27 DUFOUR, (Op. cit) p. 579.
23
Aps o exilio os pastores da comunidade no respondem as expectativas de Jav. Zacarias volta a polemica contra eles, anunciando a sorte do pastor vindouro. Jav vai visitar o seu povo em sua ira contra os maus pastores (Zc 10,3; 10, 4-17) ... o pastor o pastor ferido (Zc 13, 7), no o pastor insensato (Zc 11,15), mas o pastor transpassado (Zc 12,10), cuja morte tem sido salvadora (Zc 13,1-6). Este pastor se identifica concretamente com o servo que, como uma ovelha muda, deve por seu sacrifcio justificar as ovelhas dispersas (Is 53,6s, 11ss).
Pode-se ainda dentro de uma linha de tempo no Antigo Testamento
observar que existe uma teologia bblica apontando o pastoreio de Deus como
marca e demarcador da vinda do Supremo Pastor ou a plenitude do pastoreio
atravs do Messias. Desde Gnesis, primeiro livro do Pentateuco, dois textos
apontam a ao pastoral de Deus, ambos na Histria de um dos patriarcas de
Israel, Jac e sua famlia. O primeiro em Gn 48,15: E abenoou a Jos, dizendo:
O Deus em cuja presena andaram os meus pais Abrao e Isaque, o Deus que
tem sido o meu pastor durante toda a minha vida at este dia. A palavra
traduzida por pastor - companheiro, cuidador, amigo de jornada. Na
verso Septuaginta: Deus, o alimentador e na Bblia na verso conhecida como Vulgata28 a expresso que tem sido o meu pastor durante toda
a minha vida traduzida por pascit me ab adulescentia mea (meu pastor desde
a minha juventude, adolescncia, traduo livre). O segundo texto tem o seu
registro em Genesis 49,24: Mas o seu arco permaneceu firme, e os seus braos
foram fortalecidos pelas mos do Poderoso de Jac, o Pastor, o Rochedo de
Israel. A palavra hebraica pastor; a verso Vulgata traduz: inde pastor
egressus est lpis (o Pastor o rochedo, rocha, traduo livre).
A contexto histrico, literrio e teolgico destes textos aponta de um lado, a
caminhada humana atravs dos anos, com a histria de Jac (Gn 28 49), que
se tornou a principal referencia e a origem humana do povo judeu (Gn 32,28). Por
outro lado, aponta o direcionamento de Deus na trajetria humana e suas
intervenes. Neste aspecto, possvel visualizar que na trajetria humana de
Jac e sua famlia com conflitos, rupturas, fugas, traumas, prises, escravido,
reaproximao, experincias sobrenaturais, nascimentos, envelhecimento e 28 Verso da Bblia para o Latim, feita no final do Sculo IV e incio do Sculo V por So Jeronimo.
24
mortes, no foram meros sintomas da existncia, mas resultados da ao pastoral
de Deus dentro da histria.
O pastoreio de Moises por 40 anos no deserto, a instituio dos levitas e
sacerdotes no trabalho do tabernculo e do templo, a escolha de Juzes, Reis e o
chamamento de profetas, foram cones que apontavam para o pastoreio de Deus
e no eram por si mesmo a plenitude de Deus, mas trazia esperana aquelas
geraes que morreram pela f na concretizao do projeto de Deus. Assim, o
modo como Deus exerceu o pastoreio no povo de Israel no Antigo Testamento foi
principalmente atravs de homens escolhidos para que no limite de suas
atividades pessoais servisse a Deus cuidando do povo de Deus.
A especificidade da delegao de autoridade pastoral sobre o povo
aconteceu atraves de Sacerdotes, Profetas e Reis e naturalmente naqueles que
exerciam as funes de governo como prncipes. Todos deveriam apontar com
sua fidelidade para o Sumo-Sacerdote, Profeta e Rei, o prometido de Jac, a Raiz
de Davi. Todos possuam a funo de pastorear o rebanho de Deus, por
delegao do prprio Deus e todos pastoreavam o povo pela palavra que lhes era
confiada e pelos sacrifcios que executavam diante de Deus e diante do prprio
povo.
Para VANGEMEREM29, as falhas que aconteceram com o povo de Israel
foram por erros dos homens escolhidos para pastorear. Os pastores que
receberam o encargo se mostraram indignos e os profetas do Exilio mostram que
Deus assumir o encargo de pastorear o rebanho (Ez 34,1-10). Em Jeremias, o
termo aplicado a governantes polticos e militares, mas no como um ttulo. Os
pastores se mostraram infiis; por este motivo, o prprio Deus assumir o oficio e
apontar pastores melhores (Jr 3,15; 23,4). Ele estabelecer um pastor que
reunir o povo (Ez. 34,23-24; 37, 22,24). O termo assume um significado
messinico que experimenta um singular desenvolvimento em Zacarias. Aps o
exilio, maus pastores, provocam julgamento, porem um pastor sofre a morte
segundo a vontade de Deus e, ao faz-lo, introduz o tempo de salvao (Zc
12,10; 13,1ss).
29 VANGEMEREN (op.cit). p 265
25
Davi, o Rei, personificou na histria a realidade mais prxima que o povo
podia conceber a respeito do Messias-Pastor, tanto nas eras pr exilio quando
ps exilio. O Messias seria um chefe do povo, mas um servo de Deus, a conexo
do pacto com a nao, aquele que trazia uma nova realidade de pastoreio diante
das concepes e prticas da religio que haviam falhado, assim traria vida para
as ovelhas como o prometido das naes. KITTEL30 contudo, afirma que o
prometido seria compatvel com a relao do pacto entre Jav com seu povo,
acentuando o papel tico e social do chefe prometido, contrastando com as
perspectivas religiosas encontradas no lderes religiosos e pastores tanto no pr-
exilio, quanto no ps-exlio onde todo o sistema de pastoreio sem a presena do
Messias ruiu com o cativeiro.
1.4 O pastoreio de Deus mediante o Bom Pastor: Jesus Cristo
A metfora do pastor continua no Novo Testamento, Deus descrito como
um pastor que deixa seu rebanho e busca a sua ovelha perdida, at que encontra
(Mt 18,12-14). Jesus declara ser o bom Pastor (Jo 10,11-14), tambm o Novo
Testamento atribui na declarao de Jesus que ele o "bom pastor"; atribui-lhe
tambm os ttulos de "o grande pastor das ovelhas (Hb 13,20) , o "pastor e
onipresente"(1 Pd 2,25) e o "pastor chefe"(1Pd 5,4). As aes de Jesus Cristo em
direo as pessoas apontam o pastoreio integral. Ele se apresenta como a agua
viva, ele multiplica os pes e enxerga as multides como ovelhas que no tem
pastor, ele abraa as crianas e procura guiar os cegos e ajudar os doentes,
curando muitos deles. Talvez a imagem mais duradoura da Bblia e certamente o
maior exemplo de amor divino, Jesus Cristo como o "bom pastor", que d a vida
pelas ovelhas (Jo 10,11). Este ato altrusta, cumprindo a profecia de Isaas de um
levado ao matadouro como uma ovelha em silncio (Is 53) d origem a esse ttulo
glorioso Jesus carrega no livro da revelao, "o cordeiro" (Ap 5,6;8;12).
A manifestao de Jesus como Bom Pastor e como aquele que restaura o
pastoreio de Deus sobre o povo acontece na narrativa do Evangelho de So
Joo, os Evangelistas So Mateus e So Lucas fazem aluses ao contexto
histrico, mas em Joo que aferimos as declaraes do Senhor quanto a sua
30 KITTEL, (op. cit) p. 163.
26
misso de pastorear o povo de Deus. possvel que o contexto utilizado por So
Joo seja o Mateus 18, 18, 20 e 21 e Lucas 12, 13,14,15 e 16 aps as narrativas
das parbolas: do servo vigilante (que aponta a expectativa quanto a Parousia do
Senhor Jesus); da parbola da figueira estril (que aponta a incapacidade do
povo de Israel e cuidar das pessoas em sofrimento) e da parbola do Gro de
Mostarda que aponta o Reino de Deus como receptor de pessoas que no so
visveis aos olhos da religio, fato tambm apontado na parbola do fermento, na
parbola da Grande Ceia.
neste contexto histrico-literrio que o Senhor Jesus trata da situao
dos perdidos, aqueles que se extraviaram ou erraram o caminho, como a ovelha
perdida, aqueles que foram perdidos por aes de terceiros, como a dracma
perdida e aqueles que se perderam por rebeldia como os filhos prdigos, o
primeiro se perdeu ao deixar a casa paterna e o segundo ao permanecer na casa
paterna. Surge neste drama de incapacidade humana de tratar as dificuldades e
vicissitudes das relaes humanas e com o divino a figura do Bom Pastor.
Naturalmente, a parbola do Bom Pastor (Jo 10) melhor compreendida
se lida a partir do pano de fundo de Ezequiel 34. Naquele texto Deus fala como o
Pastor de Israel, que nomeou pastores subordinados para cuidar deles.
Entretanto, aqueles pastores, chamados por Zacarias (Zc 11,17) de pastores
inteis, so denunciados por estarem mais preocupados em se alimentar do que
em fornecer alimento para as ovelhas confiadas ao seu cuidado. Em vez de tomar
conta das ovelhas, eles se omitiram, e sacrificaram as mais gordas para se
deliciar da sua carne e se vestir com sua l. Por isso, estes pastores indignos
devem ser expulsos; o prprio Deus procurar suas ovelhas dispersas e as
reunir num s rebanho, trazendo-as dos lugares para os quais tinham se
desviado. quelas que precisarem ser dada a ateno especial, e ela entregar
todas a algum digno da confiana nele depositada Suscitarei para elas, um s
pastor, e ele as apascentar; o meu servo Davi que as apascentar; ele lhes
servir de pastor (Ez 34,23). O meu servo Davi, como em outros trechos desta
seo do livro de Ezequiel (37,24-25), claramente o Messias da linhagem de
Davi. Uma pessoa que fala como o Senhor Jesus nesta parbola do bom pastor
est dizendo, indiretamente, ser o Messias descendente de Davi.
27
Com base na profecia de Ezequiel e no ministrio de Deus-Pai
desenvolvido no Antigo Testamento o Senhor Jesus faz a afirmao: Eu sou o
bom Pastor. (Jo 10,11). A essncia do pastorado de Jesus sobre o seu povo est
no fato da doao livre que faz da sua prpria vida pelas ovelhas, diferente de
ladres (aqueles que furtavam) ou salteadores (aqueles que roubavam) ou ainda
diferente dos mercenrios (que cuidavam das ovelhas por salrio). O
cumprimento para reunir o Israel de Deus de todas as naes da terra aconteceria
com o sacrifcio vicrio do pastor em favor de suas ovelhas. A grande defesa das
ovelhas, pelo Supremo Pastor no aconteceria em favor de suas terras ou
propriedades, mas em favor da plenitude de sua existncia.
importante observar na definio do pastoreio de Jesus Cristo que seu
aprisco era maior que a concepo judaica de aprisco e seu pastoreio maior que
a pratica religiosa vigente na cultura dos judeus. Haviam ovelhas suas que
pertenciam ao aprisco judaico, eram de linhagem judaica, mas ele possua outras
ovelhas que deveriam ser buscadas, que nunca tinham pertencido a este rebanho
e no pertenceriam a este aprisco, na verdade elas no se encaixariam nele
(Joo 10:16). Ele como pastor, tambm a porta por onde as ovelhas entram.
No entrariam em razo do aprisco, mas em razo do pastor.
Esta definio da natureza e extenso do pastoreio do Senhor Jesus Cristo
aponta tambm seu carter missionrio que classifica suas ovelhas para alm das
convenes naturais da religio judaica e abre as portas da espiritualidade para
as ovelhas pelas quais ele morreria, judias e no judias, a base para esta ao
o seu carter de pastor-pleno e a sua misso plena, por isso ele derrama no
apenas de forma fsica mas derrama a alma na morte (Is 53,12) em outras
palavras derramou a sua Psique na morte e no apenas a sua Bios e o seu
sofrimento no foi apenas fsico, mas tambm emocional e espiritual.
Em vrias oportunidades histricas Jesus mostrou este avano do
pastoreio de Deus para as naes da terra. Ele ultrapassou a fronteira geogrfica
para chegar a Samaria (Jo 4); ultrapassou fronteiras culturais (Jo 12,20) e
tambm a barreira do gnero, conversando e dialogando com mulheres que
jamais seriam ensinadas pelos rabinos (Mt 9,20-22; 15,22; 26,7; Mc 7,26; Lc 7,44
e Jo 4 dentre muitos outros).
28
possvel fazer uma anlise de um fato histrico, comparando
analogicamente com a Igreja, para se observar esta conceituao panormica do
pastoreio de Deus atravs de Cristo. O encontro, dialogo e misso mulher
Samaritana claro e aponta um tipo para o pastoreio da Igreja como agencia do
Pastoreio de Deus na histria e nos dias atuais, um pastoreio inclusivista e no
exclusivista, mas ao mesmo tempo exclusivo e inclusivo para as ovelhas que
so buscadas pelo Supremo Pastor (Jo 10,1-5).
1.5 O Bom Pastor e a Igreja no encontro com mulher samaritana
O pastoreio de Jesus estende-se para uma perspectiva histrica onde a
discriminao da mulher acontecia no apenas como um desvio sociocultural e
religioso oriundo da natureza do ser humano debaixo do pecado, mas como uma
pratica religiosa de excluso. Tal pratica ainda persevera em muitos povos,
mesmo na ps-modernidade que propaga a liberdade plena, a dignidade ampla e
a igualdade de todos os seres humanos. A discriminao acontece quando um
ser humano tem parte da sua humanidade subtrada por outro ser humano com
base em critrios e leituras equivocadas de vis religioso, cultural ou mesmo
social.
O papel da mulher na religio, na cultura e na sociedade, se torna confuso
e objeto de discriminao, quando o gnero feminino apontado como inferior,
menos capacitado ou sofre qualquer espcie de restrio que tenta lhe subtrair ou
minimizar a imagem e semelhana de Deus mostrada na Bblia Sagrada que
estabelece o papel de homem e mulher na cultura, na sociedade e na religio.
A misso de Jesus aos Samaritanos mostra o poder do Evangelho na
restaurao da cultura e das relaes sociais. A dignidade humana resgatada
pelo representante humano perfeito, Jesus Cristo totalmente homem e totalmente
Deus. A misso de Cristo (missio Dei) rompeu limites do tempo e do espao
humano. Uma vez que a caminhada missionria do Verbo Eterno de Deus, no se
limitou sua caminhada terrena. Isso coaduna com o proposito divino apontado
nas Escrituras Sagradas apontam que em Cristo todas as cousas so restauradas
(Cl 1,20).
29
Na eternidade aprouve ao Pai escolher e separar o Filho como o mediador
entre Deus e os homens. Deu-lhe assim, desde a eternidade, um povo para ser
sua semente, e para, no tempo devido, ser por ele remido, chamado, justificado,
santificado e glorificado31. Pode-se entender pelas Escrituras Sagradas, que
Jesus Cristo tem o pice da sua misso em sua Encarnao, no seu ministrio de
pastoreio entre os homens, na sua morte vicria e na sua ressurreio.
Sequencialmente na histria humana, Ele mantm a sua misso atravs do
Parclito (Jo 14,16), o Esprito Santo, que foi enviado por Ele e pelo Pai, e que
dinamiza a sua Igreja em direo ao mundo. A partir de fatos histricos narrados
na Bblia Sagrada, possvel entender dentro da possibilidade humana, a ao
trinitria na eternidade, pr-encarnao (com a elaborao e criao do Universo
(Joo 1,1-3) de forma macro e micro), e toda caminhada entre a epifania a
parousia de Jesus Cristo.
Parece-nos que essa a compreenso apontada pelo Evangelho de So
Joo ao apresentar Jesus de Nazar como o Cristo, o Filho de Deus, eternamente
enviado ao mundo que tambm foi amado pelo Pai, com o mesmo amor eterno
(gape) que amou ao Filho. Em Joo, a misso de Deus (missio Dei)
externalizada para a compreenso humana de modo contextual atravs de
encontros histricos, relacionais realando um amplo dilogo teolgico buscando
a transformao da pessoa humana na plenitude da humanidade perfeita que tem
em Jesus o seu representante (Jo 1,14). A compreenso do Evangelho de So
Joo a respeito da missio dei no acontece a partir de dedues histricas
cadenciadas, ou anlises fenomenolgicas, como acontece nos evangelhos
sinticos. Joo tem uma concepo transcendental, mstica da missio dei, que o
desenvolvimento do pastoreio de Deus sobre as naes iniciando com o povo
judeu, mas estendendo aos no judeus de todas as etnias da terra. Joo expe
sobre o Verbo na eternidade fazendo conexes possveis com a filosofia grega, e
aponta a introduo e consumao na Histria da manifestao eterna, e sua
continuidade, atravs de ao do Esprito Santo, novamente perceptvel que a
manifestao da graa e sabedoria de Deus no ficaram restrita ou exclusiva ao
31 Confisso de F de Westminster (1643-1649). Smbolos de F: contendo a Confisso de F, Catecismo Maior e Breve / Assembleia de Westminster So Paulo, Cultura Crist, 2005, p. 43.
30
povo de Israel, mas a partir deste todo o proposito poderia se desenrolar com o
cuidado de cada nao da terra.
No Evangelho de So Joo, o pastoreio de Jesus fundamenta o seu
cumprimento de modo direto em todos os encontros acontecidos, e nos dilogos
estabelecidos com judeus, samaritanos e gentios, desde a manjedoura em Belm
ao tmulo vazio, e ao monte da ascenso. Tem por foco, fundamentar a
universalidade da misso, naturalmente; e milagres, sinais e prodgios so
indicadores da personalidade messinica e sua verdadeira divindade. Entretanto,
o cumprimento linear da misso do Verbo acontece na Cruz com o seu sofrimento
como Cordeiro de Deus, tirando o pecado do mundo (Jo 1,29). Parece-nos que
possvel entender a ausncia de uma grande comisso especfica no Evangelho
de So Joo, pois toda a caminhada do Verbo encarnado j constitui uma prtica
comissional para a Igreja, que Ele envia atravs dos discpulos da mesma forma
como o Pai lhe enviou (Jo 20,21).
O encontro com a mulher samaritana possui elementos interculturais que no so apresentados nos demais encontros com membros da comunidade
receptora da promessa messinica, que criam na integralidade da Tor e
guardavam as tradies e costumes do povo do Messias: a comunidade judaica
(Jo 1,29-42; 1,43-47; 2,1-12; 3,1-15; 4,46-53; 5,1-47; 8,1-11;12; 9,41; 11; 18,19;
20,11-19; 21,25). (Joo Batista, apstolos, convidados de Can da Galileia,
Nicodemus, oficial do rei, paraltico, mulher adltera, cego de nascena, Lzaro e
suas irms, Sindrio, Maria Madalena, e todos os demais discpulos e
seguidores).
Para Bruce32, o episdio de Jesus e a mulher samaritana (samaritanos)
inserido dentro do contexto dos rituais da purificao judaica. Esse contato entre
Jesus e a Mulher Samaritana no imergiu os samaritanos na religiosidade judaica
(ao proselitista), mas realou o dilogo de uma nova aliana com base nica na
pessoa do Messias, Jesus Cristo, que por sua vez o cumprimento das
promessas de Deus Pai para todos os povos da terra. Assim, sem as amarras
naturais do judasmo que prevaleceriam num dilogo religioso naquela poca, 32 BRUCE, F.F. Joo Introduo e Comentrio. So Paulo: Edies Vida Nova/Mundo Cristo, So Paulo, 1987.
31
percebe-se a riqueza de fatores missiolgicos transculturais que permitem
analisar o rompimento feito por Jesus Cristo com os limites da sua prpria cultura,
do seu prprio tempo, e do seu prprio espao religioso e geogrfico.
Para Schnelle33 isso pode ser visto nos demais Evangelhos, nos encontros
ocasionais de Cristo, onde contatos positivos com gentios como aconteceu com o
centurio de Cafarnaum e com a mulher sro-fenicia (Mt 8,5-10,13; Mc 7,24-30)
que atestam uma abertura pontual de Jesus Cristo em relao a essas pessoas e
as etnias da terra em todos os tempos, sempre partindo do dilogo claro, preciso,
olhando para o ser humano a partir de sua perspectiva individual, e atraindo-o,
pela graa, para uma caminhada com Deus.
Joo aponta que era necessrio atravessar a provncia de Samaria (Jo
4,4). O aspecto geogrfico discutido na literatura teolgica e existe um
consenso que a escolha da rota por Jesus aconteceu por uma deciso espiritual,
e no por uma questo geogrfica. Para Dufour34 era uma caminhada em busca
da reconciliao de dois povos: Fica evidente que, passando por Samaria para
chegar a Galileia, Jesus quer reconciliar simbolicamente os dois povos, os irmos
divididos desde os primrdios da realeza e essa reconduo ocorre depois de
uma perseguio de Jesus pelos fariseus35. Para Jesus foi a nova perspectiva
geogrfica que redundaria num redirecionamento dos samaritanos do tempo
(kronos) para a eternidade (kairos).
Uma parte perdida de Israel, que fora abandonada no tempo e no espao
da caminhada da Igreja no Antigo Testamento, como demonstrao histrica do
ajuntamento que Deus desejava fazer de todo o seu Israel espalhado entre as
etnias da terra em todos os tempos. Entretanto, a caminhada de Jesus em
direo aos samaritanos foi a expectativa histrica menos estimada pelos judeus
deste o retorno do cativeiro, e menos alimentada pelos samaritanos em sua
sedimentao com os males da terra do abandono.
33 SCHNELLE, Udo. Teologia do Novo Testamento. So Paulo: Editora Paulus, 2010, p. 179. 34 DUFOUR, X. Leitura do Evangelho segundo Joo. So Paulo: Loyola, 1996. p 262. 35 DUFOUR. (Op. cit.) p. 292.
32
Para Barclay36: A regio da Palestina tem uns 200 quilmetros do Norte ao
Sul. No tempo de Jesus haviam trs divises claras. No Norte estava a Galileia,
no Sul a Judeia e no meio Samaria37. E nesse ambiente inspito, numa
caminhada de trs dias, Jesus desce a Samaria para comunicar o Evangelho da
paz. possvel observar que o alcance de Samaria fazia parte da misso do
Cordeiro de Deus. Leon-Dufour afirma que o verbo era (lhe) preciso (edei) supe
um motivo de ordem teolgica, como em outros trechos de Joo. Se Jesus
atravessa a Samaria porque sua misso o exige segundo o desgnio de
Deus38.
Concordando com esse autor, Barreto39 diz que: podia ter ido para a
Galileia passando pela Transjordania; a necessidade que expressa Jo de outra
ordem: era necessrio para a misso messinica de Jesus e ainda Hendriksen40
corrobora: mais provvel que o sentido aqui seja (Jo 4,4): ele teve que ir
atravs de Samaria em concordncia com as ordens de seu pai celestial: fazer a
vontade daquele que o havia enviado e para executar sua tarefa (Jo 4,34).
Parece-nos, portanto, que existe um convencimento teolgico e literrio
que a passagem de Jesus por Samaria fez parte do resgate do proposito de Deus
em pastorear as naes da terra atravs de Cristo, foi assim, um cumprimento do
projeto missionrio de Deus. Jesus, o enviado de Deus, quem abriu o dilogo
com Samaria. Ele , em si mesmo, a Segunda Pessoa da Trindade enviado pelo
Pai para buscar o que se havia perdido e neste proposito, tinha que passar por
Samaria. Deus desejando o contato com os samaritanos para cham-los de seu
povo atravs de Jesus Cristo. A caminhada de Jesus at Samaria foi em
cumprimento da sua misso redentora apontando a universalidade etnogrfica do
Evangelho reconciliador, que rompe barreiras geogrficas e temporais para
alcance daquele que se extraviou. Assim conforme Schnelle41, a importncia do
36 BARCLAY, W. El Nuevo Testamento, Juan. Buenos Aires, Argentina: Ediciones la Aurora, 1984. 37 BARCLAY (op.cit) p.156. 38 BARCLAY (op.cit) p. 261. 39 MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de So Joo. So Paulo: Paulinas, 1989, p. 207. 40 HENDRIKSEN, William. O comentrio do Novo Testamento. Joo. So Paulo: Cultura Crist, 2004, p. 210. 41 SCHNELLE. (Op. cit). p. 972.
33
conceito de misso surge da convico fundamental da teologia joanina de que
Deus se fez ser humano em Jesus Cristo, para abrir aos seres humanos a
salvao. Se estabelece o conceito de rompimento da barreira do tempo, quando
o Verbo de Deus deixa os infindveis limites da eternidade e se limita ao tempo
terreno, com seus anos, meses, semanas, dias, horas, minutos e segundos.
Quando deixa a finitude daquilo que infinito e se lana, as barreiras
geogrficas so rompidas, quando Ele se limita a nascer humano, de um nico
povo e viver entre um povo pecador. Sendo humano, e de humanidade plena e
totalmente santa como nenhum outro homem jamais exerceu, expandiu a sua
humanidade mesmo com as limitaes humanas como cansao, sede, fome,
sono, para que a sua divindade plena e integral fosse reconhecida em sua pessoa
una Jesus Cristo (Filipenses 2:6-11), verdadeiramente homem e verdadeiramente
Deus42.
O estabelecimento da misso de pastoreio de Cristo rompeu com
paradigmas culturais e religiosos do judasmo e da cultura do seu tempo,
estabelecendo um novo paradigma cultural e religioso para a Igreja que se
mostraria a partir Dele como Igreja Catlica, e no sectria ou etnocntrica como
fora na nao judaica. possvel compreender o rompimento de paradigmas
religiosos e culturais no encontro de Jesus com a mulher samaritana a partir de
uma breve caminhada dentro da histria do povo Judeu e do prprio judasmo
como religio. Nos tempos de Jesus, a Judeia e a prpria capital Jerusalm,
tinham se tornado estreis o que possibilitou a fecundidade do Evangelho em
povos como os samaritanos43. Samaritano44 era o nome que recebeu o povo que
miscigenou da raa judaica com os restos (deixados para trs na destruio e
deportao do reino do Norte em 721 e do reino do Sul em 587) e ainda com
estrangeiros que foram introduzidos na terra ou que a ela vieram
espontaneamente.
42 Catecismo da Igreja Catlica. So Paulo, Loyola, 1999. 464. 43 MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. (op. cit) p. 224. 44 SENIOR, Donald; STUHLMUELLER, Carroll. Os Fundamentos Bblicos da Misso, 2010, p. 56.
34
Outros telogos, alm de afirmarem o aspecto dos casamentos mistos
como causa de surgimento do povo samaritano, fazem a conexo histrica de
uma raa que surgiu no meio do caos religioso e tnico, fruto da absoro de
povos da regio, estrangeiros nmades e as 10 tribos perdidas de Israel45,
perdendo o direito perante as demais tribos de serem chamados judeus. Numa
anlise cultural: [...] casaram-se com estrangeiros e perderam a pureza racial,
para uma famlia de judeus ortodoxos se um filho ou uma filha se casasse com
um estrangeiro se celebrava o seu funeral46. Acrescentando o fato que causa da
raa misturada e de seu passado religioso (2 Rs 17,24-41) eram receptivos
feitiaria47. As diferenas entre judeus e samaritanos eram srias e tinham razes
profundas e centenrias no tempo de Jesus. Para Bruce48:
A separao entre Samaria e Jud, no tempo da monarquia hebraica, poderia ter sido consertada depois do cativeiro babilnico, mas os judeus que retornaram do exlio rejeitaram uma oferta de cooperao da parte dos samaritanos, suspeitando da sua pureza racial e religiosa. A hostilidade resultante foi intensificada pela construo de um templo samaritano rival no monte Gerezim, por volta de 400 a.C., e a destruio deste templo pelo governador hasmoneu Joao Hircano, por volta de 108 a.C.
Alm disso todas as mulheres samaritanas deveriam ser consideradas em
estado perptuo de impureza cerimonial49. Nesse mesmo sentido escreve
Carson50, apontando um contedo cultural sobre a situao das samaritanas que
as colocavam num lugar e o papel social inferior s mulheres judias:
[...] os lderes judeus codificariam uma lei (Mishna Niddah 4.1) que refletia um sentimento popular existente havia muito tempo, no sentido de que as filhas dos samaritanos menstruam desde o bero e, portanto, esto perpetuamente em um estado de impureza cerimonial.
45 BARCLAY, (op. cit.) p. 158. 46 BARCLAY (op. cit) p. 158. 47 KISTEMAKER, Simon. Comentrio do Novo Testamento, Atos. So Paulo: Cultura Crist, 2006. Volume 1, p. 390. 48 BRUCE, F.F. Joo introduo e comentrio, So Paulo: Vida Nova/Mundo Cristo, 1987, p. 96. 49 BRUCE (op. cit) p. 98. 50 CARSON, D.A. O Comentrio de Joo. So Paulo: Vida Nova, 2007, p. 218.
35
Por um lado, a hibridez dos samaritanos causava o desprezo pelos judeus,
tanto quanto a raa, como pela religio. Por outro, o sincretismo religioso e
cultural, afastou os samaritanos de contedos e leituras profundas com a
totalidade da Lei e das promessas como povo de Deus.
Outra barreira rompida pelo Salvador ao passar por Samaria foi
desconstruir toda carga de ofensa que o judasmo havia estabelecido contra
outras etnias, inclusive, samaritanos. Essa barreira poderia ser intensificada
quando uma mulher samaritana estava no caminho de um homem judeu, um
rabino que possua as limitaes da lei cerimonial e possua a faculdade de no
ensinar a lei a quem no poderia receb-la. A maioria de judeus e samaritanos
no comiam no mesmo prato, nem bebiam no mesmo copo, alm da
contaminao ritualstica, o medo era potencializado na mnima hiptese de uma
mulher samaritana aprender a lei ou de forma inimaginvel uma mulher ensinando
a lei. Para a compreenso dessa barreira importante observar que a surpresa
no era apenas que o Mestre estaria em Samaria, dialogando com um nativo,
mas que estava em Samaria, dialogando com uma mulher samaritana com
agravantes em sua histria que a afastava para mui longe dos caminhos
inefveis da religio. Mateos e Barreto51 expressam que um rabi no deveria
falar com uma mulher pois era perda de tempo e um desvio do tempo de estudo
da Tor.
importante ainda observar que as barreiras surgem a partir da tica do
judasmo como expresso religiosa, mas no so observadas como barreiras a
partir do encontro de Jesus com a mulher de Samaria; do sentar-se ao poo de
Jac e dialogar sobre os traumas da existncia no com base nas limitaes
existenciais da mulher samaritana, mas no aprendizado com o Outro e com o
ensino atravs do dilogo.
O encontro de Jesus com a mulher samaritana no acontece sobre as
mazelas explcitas ou de modo ofensivo, mas olhando as dificuldades teolgicas e
morais, que apontam a esperana para a existncia e isso acontece, a partir do
dilogo mantido entre pessoas de confisses diferentes, sem trazer tona os
51 MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. (op. cit) p. 228.
36
pontos de vistas que diferem como pedras inamovveis. o cristianismo
nascendo como ramo novo, vindo de Jesus Cristo, a videira verdadeira (Jo 15,1).
Os paradigmas religiosos e culturais do judasmo naquele encontro ruram
no como fruto de uma pesquisa etnogrfica, mas com a plena recepo de
Jesus Cristo como Salvador e Senhor pela mulher samaritana. No houve uma
substituio de smbolos culturais ou transposio de costumes para uma nova
religio, mas uma transformao de vida, que foi legitimada quando o ser
transformado se lana vida missionria. O encontro entre Jesus e a mulher
samaritana consolidou-se em ao e resultados missionrios, onde o dilogo
intercultural e at mesmo inter-religioso possibilitou o alcance dos samaritanos
pela missionria convertida ao evangelho do Messias. O dilogo entre Jesus
Cristo e a mulher Samaritana perpetuou na ao missionaria que ela assumiu
perante seus patrcios. Diferente de outros momentos de igual relevncia, onde o
modo de proclamao do Evangelho foi um anncio com grande estrondo, nesse
episdio histrico, o Evangelho inserido, quase construdo a medida que a
mulher samaritana tem a sua f despertada.
Jesus didaticamente como didaskalos, por excelncia, parte de pontos de
contato desde os mais simples como a cidade de Sicar, o calor, fadiga, meio-dia,
o casamento, a famlia, a histria, as situaes existenciais profundas como
concepo da moralidade, conceitos teolgicos e viso de mundo. A mulher
samaritana, objeto de discriminao social, racial, cultural e religiosa tirada do
seu poo para vivenciar a f no Salvador, tornando-se a primeira missionria
intercultural da nova aliana.
Assim, toda misso genuna gera misso, o pastoreio de Cristo nos leva a
pensa missiologicamente como subpastores para as naes. A Igreja peregrina
por natureza missionria, pois ela se originou na misso do Filho e da misso do
Esprito Santo, segundo o desejo de Deus Pai52 (AG 2). O encontro de Jesus
com a mulher samaritana no estabeleceu um rito de proselitismo, mas uma rota
missionria. Programaticamente, Jesus como missionrio conduz o dilogo com
52 DOCUMENTOS DA IGREJA. Vaticano II. 2 ed. So Paulo: Paulinas, 2007. AD GENTES Atividade missionria da Igreja. p. 1087-1242.
37
base na sua Palavra, levando a Samaritana ao convencimento pelo Esprito
Santo: Este verdadeiramente o Salvador do Mundo (Jo 4,42).
38
CAPITULO 2
UMA TEOLOGIA DA VOCAO MINISTERIAL NA TEOLOGIA CATLICA: O PASTOREIO DA IGREJA ATRAVS DO MAGISTRIO (ANLISE DE ALGUNS DOCUMENTOS)
2.1 A Importncia dos Concilios Ecumnicos da Igreja na sua misso de pastoreio
do povo de Deus
A Igreja como formatadora de pessoas, culturas e naes em muitos
momentos da histria pode ser conhecida a partir de discusses internas que
levaram a decises baseadas no entendimento da Sagrada Escritura. Muitas
discusses internas foram encaminhadas a solues atraves de reunies
especificas e em ambientes especificos, conhecidos na histria como Concilios.
Nos Conclios, a Igreja refletiu sobre si mesma e sobre o mundo que a cercava,
somente o Concilio Vaticano II possui em carter de maior transcendncia que
todos os demais Concilios.
Nos Concilios, buscou-se solues para duvidas, discordncias ou tpicos
teolgicos, sempre visando uma aproximao da Sagrada Escritura, respondendo
a questionamentos e resolvendo problemas de uma determinada poca sempre
olhando para o futuro. Muitas barreiras envolvendo os contextos e os conflitos
foram vencidas e os dogmas basilares do Cristianismo foram erguidos dentro dos
Concilios Gerais a partir das Sagradas Escrituras desenvolvendo paulatinamente
a Tradio da Igreja originaria da tradio judaico, gerando a tradio judaico-
crist.
Parece que as diferenas e divergncias entre cristos no campo teolgico
aconteceram desde os primeiros momentos da Historia da Igreja. Existem
evidncias internas nas Sagradas Escrituras que apontam divergncias teolgicas
no prprio contexto do Colgio Apostlico e na Igreja Primitiva. Dois textos do
Novo Testamento apontam esses indcios o primeiro em Atos dos Apstolos 15,
36-41:
Depois de alguns dias, disse Paulo a Barnab: Voltemos agora a visitar os irmos por todas as cidades onde
39
anunciamos a palavra do Senhor, para ver como esto. Mas Barnab queria levar consigo tambem Joo cognominado Marcos, enquanto Paulo exigia que no se levasse aquele que os deixara desde a Panfilia e no os acompanhara no trabalho. A irritao tornou-se tal que eles se separaram um do outro. Barnab, pois, tomando Marcos consigo embarcou para Chipre. Quanto a Paulo, escolheu Silas e partiu, recomendado graa de Deus pelos irmos.
E o segundo em Glatas 2, 11-16:
Mas quando Cefas veio a Antioquia, eu o enfrentei abertamente, porque ele se tornara digno de censura. Com efeito, antes de chegarem alguns vindos da parte de Tiago, ele comia com os gentios, mas, quando chegaram, ele se subtraa e andava retrado, com medo dos circuncisos. Os outros judeus comearam tambem a fingir junto com ele, a tal ponto que at Barnab se deixou levar pela sua hipocrisia. Mas quando vi que no andavam retamente segundo a verdade do Evangelho, eu disse a Pedro diante de todos: se tu, sendo judeu, vives maneira dos gentios e no dos judeus, por que foras os gentios a viverem como judeus? Ns somos judeus de nascimento e no pecadores da gentilidade; sabendo, entretanto, que o homem no se justifica pelas obras da Lei, mas pela f em Jesus Cristo, ns tambem cremos em Cristo Jesus para sermos justificados pela f em Cristo e no pelas obras da Lei, porque pelas obras da Lei ningum ser justificado.
No contexto de Atos 15, se observa divergncias estratgicas entre o
Apostolo Paulo e Barnab quanto a pessoa de Joo Marcos. Este, havia deixado
a equipe missionria da Primeira Viagem Missionria do Apostolo Paulo e havia a
inteno da parte de Barnab em conduzi-lo na Segunda Viagem Missionria.
Esta inteno gerou uma crise quanto a estratgia a ser utilizada. No segundo
texto, a divergncia gira em torno do assunto central do Concilio de Jerusalm53
que envolvia a contextualizao da Igreja quanto a recepo de gentios que se
convertiam ao Evangelho. O Apostolo Paulo divergiu do Apostolo Pedro sobre o
modo de convivncia com os gentios. Mas no possvel afirmar dentro destes
53 Ver: Meier, John P. The Jerusalem Council: Gal 2:1-10; Atos 15:1-29 Mid-Stream 35 (1996). Pgs. 465-475
40
relatos histricos que houvera uma dissidncia ou rompimentos pessoais
causados por diferenas de opinies, vises ou estratgias54.
possvel, entretanto afirmar nestes episdios histricos, que a Igreja
tambm foi um ambiente propicio e acolhedor para pontos de vistas diferentes e
muitos deles ao longo do tempo foram traduzidos numa pratica teologica de
pastoreio benfica para a Igreja em sua catolicidade. Entretanto, o ambiente
acolhedor num campo de multiplicidade de ideias e diversidade de pensamentos
nem sempre trouxe crescimento e amadurecimento teolgico. Aconteceram
guerras, divises, conflitos que perduraram dcadas e alguns deles
irreconciliveis. Nesses momentos o pastoreio visvel da Igreja, tornou-se uma
tarefa secundaria ou negligenciada por todos os grupos envolvidos.
Em consequncia deste raciocnio, tambm possvel observar que nos
momentos histricos quando grupos que trouxeram controvrsias permaneceram
na essncia do Evangelho e com uma aplicao pratica (pastoral) da Teologia,
como ocorreu no sculo XI (Igreja Ortodoxa) e no sculo XVI (Igreja Anglicana e a
Igreja Reformada), o pastoreio permaneceu na Igreja de forma integral, mesmo
havendo fortes divergncias entre os pastores nas mais diferentes culturas e
contextos das primeiras geraes que vivenciaram os conflitos. possvel
perceber que a Igreja como organismo maior que a Igreja como organizao ou
organizaes. Aqui organismo refere-se a totalidade do corpo de Cristo que no
pode ser limitado pelas estruturas, tempo ou etnias; organizao ou organizaes
a Igreja de Cristo que pode ser vista e caminha sobre a terra sob o cuidado dos
seus lideres e composta de homens, limitada as estruturas, tempo e etnias. A
primeira possui a plena viso da perfeio de Cristo sob os olhos de Deus. A
segunda, caminha em aperfeioamento e ser vista em sua perfeio como Deus
a v na Segunda Vinda de Jesus Cristo.
Observando ainda numa linha de tempo, desde o inicio da Igreja como
instituio no Novo Testamento, foram realizados 21 Concilios Gerais. Destaca-se
54 No tem esta pesquisa o objetivo de analisar as motivaes teolgicas dos textos bblicos citados. A meno a estes e outros textos da Sagrada Escritura possui a motivao de pontuar histrica e de modo cronolgico os fatos ocorridos ou observar os argumentos levantados pelos autores bblicos.
41
que antes do movimento da Reforma Protestante do Sculo XVI55 todos os
Concilios possuram o proposito de resolver questes gerais de cunho teolgico,
tanto dogmtico quanto pastoral e aplicveis toda a cristandade. Aps o
movimento da Reforma Protestante, o Cristianismo ainda no conseguiu retomar
uma pauta mnima para a realizao de um Concilio Geral que busque solues
para a Igreja e suas mltiplas dimenses e diversidade e especialmente para o
homem cristo e no cristo, diante dos desafios, especialmente do terceiro
milnio, nos ltimos dias.
Os Conclios da Igreja aconteceram em momentos da Histria quando
pareceu bem ao Espirito Santo redirecionar, esclarecer e apontar a marcha do
povo de Deus, trazendo solues para diversos problemas que surgiram no
compasso dos sculos, naturalmente, ele usou homens, pocas e lugares
diferentes para situaes especificas, contudo, os efeitos, resolues e dogmas
destes conclios perpassaram os agentes humanos histricos.
2.2 Algumas contribuies conciliares para o pastoreio da Igreja
55 Sob o ponto de vista acadmico do autor a Reforma Protestante do sculo XVI trouxe inmeras contribuies para o Cristianismo e para a Histria das Naes tanto no sentido teolgico com uma farta produo acadmica quanto cientifico que corroborou para a pesquisa e impulsos as Universidades existentes e futuras. No se pode contudo, excluir a histria da Igreja Crist na expresso Catolica antes, durante e ps-reforma e naquele momento o forte movimento missionrio bem como a definio de dogmas no Concilio de Trento. Entretanto, no se pode negar que as causas da Reforma Protestante no foram apenas teolgicas. Possivelmente, aconteceram causas politicas, econmicas e sociais. Neste sentido entende o autor que a Reforma Protestante foi tambm uma Reforma sob o ponto de vista das Cincias Sociais (Antropologia, Sociologia e Politica) e Econmica e indiretamente trouxe benefcios ao Cristianismo como Religio. Contudo, no aceitvel sob os padres bblicos que causas teolgicas tenham levado a Guerras e mortes em nome da f e exista um grande muro de separao entre os Cristos no mundo. Parece mais denso e alto que o muro separador de judeus e samaritanos, mesmo que se tenha 500 anos de Histria ps-reforma (1517-2017). Portanto, no seria justo, apontar a Reforma como a soluo nica para os diversos problemas do Cristianismo tanto no sculo XVI quanto nos sculos que se seguiram e sc. XXI. Em alguns momentos tanto na expresso catlica quanto protestante parece que as decises teolgicas foram motivadas por decises politicas o que afastou uma reaproximao da totalidade do povo de Deus na Histria e sobre a terra.
42
Do Concilio de Jerusalm (48)56 ao Concilio Vaticano II (1962-1965) em 20
sculos, observa-se a Igreja como divisora dos tempos e principal elemento para
transformao de culturas. O fortalecimento da Igreja, tanto no ambiente Catlico
Romano quanto Protestante aps a Reforma Protestante do sculo XVI,
principalmente aps o Concilio de Trento (1545-1563) parece que direcionou o
Cristianismo para uma busca teologica com menores explicaes conceituais ou
axiolgicas tentando-se uma pratica do Evangelho. Os Concilios Gerais que
seguiram apontaram nesta direo e hoje os documentos elaborados refletem a
caminhada do movimento Cristo.
possvel afirmar neste trabalho que a existncia dos Concilios Gerais
possibilitou conhecer no apenas os Fundamentos da Igreja, o ser Igreja, mas
tambm a sua Misso de Igreja, andar como Igreja. Por este argumento, a
Teologia Pastoral, focando no Pastoreio que a Igreja exerce no mundo, possui
solido fundamento nos Concilios da Igreja e seu desenvolvimento, sua misso,
acontece a partir da pratica ou da aplicao dos resultados destes Concilios.
2.2.1 Concilio Vaticano I (1869-1870)
Na histria h uma vacatio teolgica quanto a dogmas ou resolues
conciliares gerais de 306 anos entre o Concilio de Trento (1563) e um novo
Concilio em 1869. O Concilio do Vaticano I (08 de dezembr