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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
JOÃO EMILIO DE ASSIS REIS
O CRESCIMENTO DESORDENADO DAS CIDADES SOBRE ÁREAS
DE PROTEÇÃO AMBIENTAL: O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E A
PROTEÇÃO AO DIREITO DE MORADIA
DOUTORADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2015
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
JOÃO EMILIO DE ASSIS REIS
O CRESCIMENTO DESORDENADO DAS CIDADES SOBRE ÁREAS
DE PROTEÇÃO AMBIENTAL: O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E A
PROTEÇÃO AO DIREITO DE MORADIA
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Doutor em Direito sob a
orientação do Prof. Dr. Nelson Saule Junior.
SÃO PAULO
2015
Banca de Defesa:
_________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________
Todo dia o sol da manhã Vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo Quem já não o queria
Palafitas, trapiches, farrapos Filhos da mesma agonia
E a cidade que tem braços abertos Num cartão postal
Com os punhos fechados na vida real Lhe nega oportunidades
Mostra a face dura do mal
Alagados, Trenchtown, Favela da Maré A esperança não vem do mar
Nem das antenas de TV A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em quê.
Herbert Vianna
Às duas mulheres da minha vida, que abriram a minha mente e o meu coração.
AGRADECIMENTOS
À Deus, pelos dons, especialmente o da perseverança, com que me presenteou.
A meus pais, João Batista e Maria das Graças e meus irmãos Bruno e Felipe, pelo
apoio constante nessa caminhada.
À tia Nilma pelo carinho de sempre e pela ajuda valiosa com este trabalho.
Aos meus antigos e atuais colegas do Centro Universitário Adventista de São Paulo,
da Universidade Vale do Rio Verde e da pela compreensão e constante apoio,
fortalecendo o significado de companheirismo e confiança.
Aos amigos e companheiros de vida acadêmica, Hamilton da Cunha Júnior e
Américo Braga Júnior, além de minha prima Aline Pereira pela constante troca de
ideias, algumas das quais se materializaram neste trabalho.
Ao professor Auner Pereira Carneiro, um grande amigo e incentivador que me fez
perseguir o sonho do doutoramento.
Ao professor Doutor Nelson Saule Júnior pelo zelo, disponibilidade e paciência, que
viabilizaram a construção deste trabalho.
LISTA DE ABREVIAÇÕES
APP – Área de Preservação Permanente
BNH – Banco Nacional de Habitação
COHAB – Companhia de Habitação
IAP – Instituto de Aposentadoria e Pensões
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INFRAERO – Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária
IPTU – Imposto predial e territorial urbano
MS – Mandado de Segurança
MC – Medida Cautelar
REsp – Recurso Especial
Min. – Ministro
PNAD – Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios.
SBPE – Sistema brasileiro de poupança e empréstimo
SFH – Sistema Financeiro de Habitação
SISNAMA – Sistema Nacional de Meio Ambiente
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TCU – Tribunal de Contas da União
TJMG – Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais
TJSP – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
TRF – Tribunal Regional Federal
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
RESUMO
REIS, João Emilio de Assis. O crescimento desordenado das cidades sobre áreas de proteção ambiental: o princípio da boa-fé e a proteção do direito de moradia. São Paulo: 2015, 220 p., Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
O presente trabalho busca analisar o conflito entre o direito fundamental à moradia e o direito fundamental ao meio ambiente, no caso específico das ocupações irregulares de Áreas de Proteção Ambiental à luz do princípio da boa-fé aplicado nas relações entre Estado e cidadãos.
O intenso crescimento urbano ocorrido no mundo a partir do século XX tem provocado inúmeras mudanças socioeconômicas e territoriais no país e enormes problemas. A expansão das cidades, em especial em países em desenvolvimento como o Brasil é ainda pior, dada a circunstância de aliar urbanização intensiva, degradação ambiental, com uma formação histórica caracterizada por desigualdades econômicas e ineficiência do Poder Público.
Um dos efeitos do crescimento urbano nessa conjuntura é o déficit habitacional que obriga a população a buscar alternativas para moradia, que muito frequentemente terminam por infringir a lei, degradar o meio ambiente, e muitas vezes colocam em risco a própria vida das pessoas. Nesse contexto, é comum a invasão ou o parcelamento irregular do solo em áreas ambientalmente protegidas, que são de uso restrito, como as Áreas de Preservação Permanente, o que cria um problema social relevante a ser resolvido.
Analisa-se inicialmente a formação do cenário do problema habitacional, considerando a formação histórica das cidades brasileiras, da propriedade urbana e das política publicas de habitação. A seguir, partindo da análise da evolução da incorporação da tutela da moradia e do ambiente ao ordenamento jurídico como direitos, analisa a presença de ambas como direitos fundamentais na Constituição de 1988, busca apresentar o princípio da boa-fé, como norma jurídica constitucional idônea a proteger as populações ocupantes de Áreas Protegidas em situação consolidada, em razão da necessidade da proteção da confiança – aqui significando segurança jurídica e a previsibilidade na atuação do poder público – nas relações Estado versus cidadãos.
Estuda-se o princípio da boa-fé a partir de seu cerne no direito privado, analisando-se sua incorporação e evolução no direito público brasileiro, para a seguir aplica-lo especificamente no caso das Áreas de Preservação Permanente irregularmente ocupadas, buscando analisar tanto a possibilidade de remoção dessas populações como a de regularização dessas ocupações, tendo por base a técnica da ponderação entre direitos fundamentais.
Palavras-chave: Princípio da Boa-fé; Direito à Moradia; Direito ao Ambiente; Áreas de Preservação Permanente;
ABSTRACT
REIS, João Emilio de Assis. The overcrowded cities on environmental protection areas: the principle of good faith and the protection of housing rights. São Paulo: 2015, 220 p. Doctoral Thesis. Faculty of Law of Pontificia Universidade Católica de São Paulo.
This study analyzes the conflict between the fundamental right to housing and the fundamental right to the environment, in the case of illegal occupation of Environmental Protection Areas under the principle of good faith applied in relations between the state and citizens.
The intense urban growth occurred in the world from the twentieth century has provoked numerous socioeconomic and territorial changes in the country and huge problems. The expansion of cities, especially in developing countries like Brazil is even worse, given the fact that combine intensive urbanization, environmental degradation, with a historical formation characterized by economic inequality and inefficiency of the government.
One of the effects of urban growth at this juncture is the housing deficit that forces people to seek alternatives for housing, which too often end up breaking the law, degrade the environment, and often endanger their own lives. In this context, it is common to invasion or irregular land subdivision in environmentally protected areas, which are of limited use, such as Permanent Preservation Areas, which creates a relevant social problem to be solved.
It analyzes first the formation of the housing problem scenario, considering the historical formation of Brazilian cities, the urban property and public housing policy. The following is based on an analysis of the evolution of the incorporation of the housing and protection of the environment to the law as rights, analyzes the presence of both as fundamental rights in the Constitution of 1988, seeks to present the principle of good faith, as a constitutional rule of law reputable protect occupants populations of Protected Areas in consolidated situation, due to the confidence of the protection of the need - here meaning legal certainty and predictability in the government's performance - in state relations versus citizens.
Studies the principle of good faith from its core in private law, analyzing its development and evolution in the Brazilian public law, to then apply it specifically in the case of irregularly occupied Permanent Preservation Areas, trying to analyze both the possibility of removal of these populations as the regularization of these occupations, based on the technique of balance between fundamental rights. Key-words: The principle of good faith; Right to housing; Right to Environment; Permanent Preservation Areas;
SUMÁRIO.
INTRODUÇÃO...........................................................................................................13
1. – O CAOS URBANO E O PROBLEMA DA MORADIA COMO QUESTÕES HISTÓRICAS..............................................................................................................17
1.1. - A explosão demográfica das cidades, sub-habitação e problemas ambientais..................................................................................................................17
1.1.1. - O Déficit habitacional e Ocupação Irregular...................................................23
1.1.2. – Ambiente Urbano e Áreas de Preservação Permanente..............................31
1.2. - A evolução da propriedade urbana e do tratamento da moradia no Brasil.......35
1.2.1 – O período colonial..........................................................................................35
1.2.2. – Período Imperial............................................................................................41
1.2.3 – Os primeiros anos da República....................................................................46
1.2.4. – A industrialização na Era Vargas e a política de moradias nos anos subsequentes.............................................................................................................52
1.2.5 – O tratamento da moradia na Nova República e anos recentes.....................59
2. – A CENTRALIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO...................................................................................................................67
2.1. – Apontamentos sobre a teoria geral dos direitos fundamentais........................67
2.1.1. – Antecedentes dos Direitos Fundamentais....................................................70
2.1.2. – Os direitos Fundamentais e suas gerações..................................................73
2.2. – O direito à moradia no contexto constitucional brasileiro.................................77
2.2.1. - Direito à moradia: notas históricas.................................................................77
2.2.2. - O direito à moradia e o contexto dos Direitos Sociais na Constituição Federal de 1988.......................................................................................................................84
2.2.3. - A efetividade dos Direitos Sociais e as obrigações do Estado brasileiro e a obrigação do Estado Brasileiro concernentes ao Direito de Moradia........................87
2.3. - O meio ambiente como um direito fundamental...............................................94
2.3.1. – Áreas de Preservação Permanente e seu regime jurídico...........................99
2.4 –Interseções entre os Direitos à Moradia e ao Meio Ambiente equilibrado......107
3. A PROTEÇÃO DA CONFIANÇA DOS CIDADÃOS NO ESTADO: O PRINCÌPIO DA BOA-FÉ..............................................................................................................115
3.1. – O princípio da boa-fé: apontamentos iniciais e breve histórico......................119
3.2. - Diferenciação entre Boa-fé e Proteção da Confiança.....................................129
3.3. – Pressupostos da proteção da confiança através do princípio da Boa-fé......131
3.4. - O princípio da Boa-fé e sua aplicação à Administração Pública...................134
3.5 – Os efeitos da aplicação do princípio da Boa-fé...............................................143
3.6. – Boa-fé e confiança no Direito Administrativo Brasileiro..................................151
3.7 - A tutela da confiança e da Boa-fé em face do Exercício inadmissível de posições jurídicas: A limitação da atuação administrativa pelas Figuras típicas.....159
3.7.1. - Venire contra factum proprium.....................................................................160
3.7.2. - Tu Quoque...................................................................................................162
3.7.3. - Exceptio Doli................................................................................................164
3.7.4. - Supressio e Surrectio...................................................................................164
3.7.5. - Inalegabilidade de nulidades formais...........................................................165
3.7.6. - Desequilíbrio no exercício jurídico...............................................................166
3.8. - Boa-fé no Direito Público como Princípio geral do Direito, Princípio Constitucional e regra de equidade..........................................................................168
4. - A OCUPAÇÃO DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE E A TUTELA DA CONFIANÇA PELO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ....................................................171
4.1. – A conduta da Administração Pública e a violação da Boa-fé.........................175
4.2. – A Regularização da Ocupação das Áreas de APP com base na teoria da Boa-fé Administrativa e a ponderação de Direitos Fundamentais...................................187
4.2.1 – Licitude do propósito perseguido.................................................................192
4.2.2 – Licitude do meio utilizado.............................................................................193
4.2.3 – Adequação do Meio utilizado.......................................................................195
4.2.4 – Necessidade do Meio utilizado.....................................................................197
CONCLUSÃO...........................................................................................................213
REFERÊNCIAS........................................................................................................217
INTRODUÇÃO
O intenso crescimento urbano ocorrido no mundo a partir do século XX tem
provocado inúmeras mudanças socioeconômicas e territoriais. Esse crescimento
urbano também se reflete no Brasil, e os impactos ambientais dessas
transformações se equiparam a catástrofes de grandes proporções. Entre 1950 e
2000, a população urbana brasileira que vive em cidades com mais de 20 mil
habitantes, multiplicou-se quase onze vezes, crescendo de 11 milhões para 125
milhões. No último Censo do IBGE (2010) apurou-se que a população brasileira que
mora em cidades ultrapassa o percentual de 84,35%.
A ineficiência do Estado em promover o controle adequado do espaço
territorial, bem como resguardar bens de especial interesse ambiental, como as
Áreas de Preservação Permanente, transformam essas áreas, em razão da pobreza
e do déficit habitacional, em alternativas – ilegais – de moradia. Essa mesma
ineficiência do Estado, permite que essas ocupações se consolidem no tempo,
permanecendo por anos a fio sem qualquer ação do poder público, que em alguns
casos, estabelece até mesmo relações jurídicas com os ocupantes dessas áreas,
como por exemplo, com o fornecimento de serviços públicos essenciais e a
cobrança de tributos.
Isso posto, o presente trabalho discute especificamente a questão da
ocupação de Áreas de Proteção Ambiental por moradias, uma vez que a ocupação
normalmente se dá sem controle e com a supressão de vegetação, implicando
necessariamente na desnaturação da função dessas áreas por meio do
parcelamento irregular do solo. Pretende-se analisar se a continuidade dessas
ocupações em Áreas de Preservação Permanente, gera nenhum tipo de direito para
as pessoas ocupantes em razão do princípio da proteção da confiança e da boa-fé,
entendido como um princípio implícito na Constituição Federal, que busca preservar
a segurança jurídica das pessoas na elaboração de seus planos de vida e que
impede a sua fragilização enquanto pessoas, em direito e dignidade. Em
praticamente todas as cidades brasileiras é possível notar a ocupação de áreas
ribeirinhas ou lacustres.
Dados de levantamento recente sobre aglomerados subnormais do IBGE
(2010) demonstram que cerca de 12% dos domicílios brasileiros em aglomerados
irregulares se situam em margens de rios, córregos e lagos entre outras áreas de
preservação permanente. Tratando-se assim de um problema socialmente relevante,
o enfoque específico nessa questão envolvendo APP‟s pretende contribuir para uma
melhor compreensão dos efeitos da omissão ou da atuação contraditória do Estado
sobre essas áreas ambientais protegidas, considerando a necessidade de
segurança jurídica e confiança na atuação do poder público e o direito de moradia, já
que normalmente as soluções apresentadas para esse tipo de situação, sejam
judiciárias ou administrativas, não tem sido uniformes e muitas vezes se centram em
uma ideia restritiva de legalidade, simplesmente ignorando o direito à moradia e a
confiabilidade que deve ser inerente ao agir estatal. O princípio da boa-fé
especificamente, não vem sendo aplicado como critério de solução em tais
situações, quando muito ganhando posição secundária, ao lado do princípio da
função social da propriedade e de uma ponderação entre direitos fundamentais à
moradia e ao meio ambiente, necessitando por isso ser melhor analisado e
desenvolvido.
O objetivo do presente trabalho é apresentar o princípio da boa-fé –
instrumento de proteção da confiança nas relações entre Estado e cidadãos – como
um pressuposto do Estado Democrático de Direito idôneo a ser aplicado nessas
situações e que se apresenta como um meio eficaz de proteção do direito de
moradia das pessoas que ocupam áreas de proteção ambiental por falta de soluções
de habitação, ante o comportamento do próprio Estado que permite que essas
situações alcancem certa consolidação.
O trabalho se desenvolve basicamente a partir de uma construção histórica
acerca da formação da propriedade urbana no Brasil, passando pela teoria dos
direitos fundamentais e a análise específica dos direitos fundamentais envolvidos,
por meio da revisão bibliográfica, para a seguir introduzir o princípio da boa-fé, tendo
por base sua construção no direito privado buscando mostrar sua adaptação ao
direito público, para finalmente fazer a interseção entre o princípio em análise e a
situação de ocupação irregular de APP‟s, sem deixar de analisar a conformação
necessária que deve ser realizada entre os direitos fundamentais envolvidos.
O primeiro capítulo traça um quadro da situação do desenvolvimento urbano,
apontando a relação entre a pobreza, a desigualdade social como elementos
causadores da degradação ambiental, ante a inação do Estado tanto em políticas
sociais de moradia quanto em políticas ambientais. Essa análise é acompanhada
inclusive de uma releitura histórica da formação do espaço urbano brasileiro, e como
a atuação do Estado com relação a política urbana e a estruturação do modelo de
propriedade do país contribuíram para a criação de um modelo excludente que criou
um problema crônico de déficit habitacional que nunca foi confrontado de forma
eficiente. Tem o primeiro capítulo o objetivo de apresentar o cenário fático que
propicia a ocupação das áreas de proteção ambiental por parte da população sem
soluções de habitação e que buscam na ocupação dessas áreas meios de
garantirem moradia, e a ineficiência história do poder público em lidar com essas
situações.
No capítulo segundo é abordada a Teoria dos Direitos Fundamentais,
procurando apresentar a evolução desses direitos na história do constitucionalismo,
buscando enfatizar a sua posição de centralidade no ordenamento jurídico, para a
seguir focar especificamente no Direito Fundamental à Moradia, como direito social,
e o Direito Fundamental ao Meio Ambiente, como direito fundamental decorrente de
outros direitos fundamentais e dos princípios adotados pela Constituição Federal.
Busca-se aqui apresentar os elementos jurídicos relevantes ao problema
faticamente apresentado no capítulo primeiro, criando ao menos em aparência um
cenário de conflito e que terminam por desenhar o problema enfrentado.
O terceiro capítulo apresenta os conceitos básicos sobre a necessidade
proteção da confiança nas relações Estado e Cidadão e o princípio da boa-fé, seus
fundamentos constitucionais e sua aplicação no direito brasileiro, buscando-se
extrair, do direito privado – onde o princípio encontrou grande desenvolvimento - ao
contrário do direito público onde ainda é insipiente, especialmente em razão dos
paradigmas tradicionais sobre os quais este se desenvolveu – elementos para sua
sistematização e aplicação no Direito Público. Aqui pretende-se introduzir o tema do
princípio da boa-fé, buscando suas raízes históricas no direito privado e seus
fundamentos constitucionais afim de apresentar seus contornos e pressupostos e
demonstrar sua legitimidade constitucional e aplicabilidade no direito público e em
que medida se dá essa aplicabilidade no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro.
Finalmente, no capítulo quatro busca-se finalmente particularizar a análise do
princípio da boa-fé, para analisar especificamente a sua possível incidência sobre os
casos de ocupação de áreas de proteção ambiental por populações em busca de
alternativa de moradia e a conduta do Estado ante a concretização dessas
ocupações, analisando os seus pressupostos de aplicação especificamente nessas
situações e quais as suas consequências. Essa análise final busca fazer a
interseção da boa-fé com os direitos fundamentais envolvidos no problema dessas
ocupações, meio ambiente e moradia, buscando equacionar os três bens
constitucionalmente protegidos pela aplicação da proporcionalidade, e
demonstrando-se o principal objeto do presente estudo como importante ferramenta
a contribuir para a solução para o problema das ocupações irregulares de áreas de
proteção ambiental, ao despender proteção ao direito de moradia em razão da
legitima confiança criada pelo comportamento estatal.
1. O CAOS URBANO E O PROBLEMA DA MORADIA COMO QUESTÕES
HISTÓRICAS.
1.1. - A EXPLOSÃO DEMOGRÁFICA DAS CIDADES, SUB-HABITAÇÃO E
PROBLEMAS AMBIENTAIS.
O fenômeno do crescimento urbano ocorrido no mundo a partir do século XX
tem provocado inúmeras mudanças socioeconômicas e territoriais, afetando
especialmente as cidades. O crescimento das cidades que por si só já é
problemático, em razão da própria escala em que se dá, em especial em países em
desenvolvimento tem efeitos piores por juntar numa mesma equação a urbanização
intensiva, degradação ambiental, desigualdades socioeconômicas e deficiência de
políticas públicas.
O contexto dos países em desenvolvimento é especialmente problemático,
uma vez que o poder público nesses Estados ao mesmo tempo é omisso na
proteção de bens ambientais naturais e na implementação políticas públicas
adequadas à efetivação de direitos sociais, especialmente no que tange ao direito à
moradia. O processo de urbanização pelo qual passou Brasil a partir da
industrialização tardia cria um quadro caótico, em razão da explosão demográfica
das cidades, com a taxa de urbanização mais do que dobrando em cinquenta anos
(IBGE, 2010). Essa situação que por si só representa fenômeno de grandes
proporções, ocorre sem o devido acompanhamento de implementação de acesso a
serviços básicos e sem o acompanhamento de políticas públicas – aqui
consideradas como iniciativas governamentais no sentido de solucionar problemas
da comunidade - que garantam as funções sociais básicas da cidade, tornando-se
um problema maior.
Embora se busque tratar especificamente do problema da habitação informal
no Brasil, o processo de urbanização e de produção de sub-habitação pelo qual o
país passou e passa, forma uma espécie de clichê dos países em desenvolvimento.
Com pequenas nuances, os países terceiromundistas, repetem um mesmo roteiro
18
histórico que culmina com o déficit de moradias, assim considerado tanto a
inexistência de moradias disponíveis aos cidadãos, como a sub-habitação. Por sub-
habitação, - ou Habitação subnormal, conforme tipificação do IBGE - entende-se a
habitação em condições críticas, ou em condições subnormais, que FERREIRA
assim define:
No Brasil, entende-se por esse termo moradias em favelas, cortiços e loteamentos clandestinos. A informalidade urbana diz respeito à inadequação físico-construtiva da habitação e/ou geomorfológica/ambiental do entorno (construções precárias, terrenos em áreas de risco ou de preservação ambiental, área útil insuficiente para o número de moradores, etc.), à ausência de infraestrutura urbana (saneamento, água tratada, luz, acessibilidade viária, etc.), ou ainda à ilegalidade da posse da terra ou do contrato de uso (FERREIRA, 2000).
O IBGE considera habitações subnormais as unidades habitacionais, em
regime de ocupação ilegal da terra – inexistência de título de propriedade – e que
estejam caracterizadas pela ausência de padrões de urbanização ou por ausência
de serviços públicos essenciais (água, luz, esgoto, etc).
O mundo contemporâneo passa por um processo de urbanização jamais visto
anteriormente. Trata-se de um processo que se iniciou com a Revolução Industrial
nos países desenvolvidos e que se intensificou e atingiu escalas assustadoras a
partir da segunda metade do século XX e que perdura até os dias de hoje nos
países em desenvolvimento. DAVIS apresenta dados bastante significativos de
várias partes do mundo a respeito do tema e que permitem visualizar melhor o
fenômeno. Por exemplo, na África ocidental, a cidade de Lagos que tinha em torno
de 300 mil habitantes em 1950, através de um processo de crescimento que engoliu
dezenas de cidades menores passou a contar em 2006, 13,5 milhões de habitantes.
O Cairo, de 2,4 milhões de habitantes saltou para 15,1 milhões no mesmo período e
Kinshasa de 200 mil habitantes chegou a 8,9 milhões. Na Ásia, Mumbai foi de 2,9
milhões de habitantes para 19,1 milhões e Jacarta, de 1,5 milhões de habitantes
chegaram a 16 milhões. Na América do Sul, além do emblemático caso da cidade
do México, com seus 22,1 milhões de habitantes, Lima com 600 mil habitantes e
Bogotá com 700 mil saltaram respectivamente para 8,2 e 8 milhões de habitantes
19
(DAVIS, 2006, 15). E assim pode se observar inúmeros outros exemplos de várias
outras megacidades espalhadas pelo mundo que vêm se formando nas últimas
décadas.
De fato, se observado o processo de urbanização no mundo contemporâneo,
o que se constata é a formação de grandes aglomerados populacionais que vêm
surgindo especialmente em cidades de países pobres e em desenvolvimento. A
multiplicação populacional dessas megacidades vêm acontecendo desacompanhada
de qualquer planejamento ou melhoria de bem estar social. O que se observa na
verdade é que esse processo de explosão populacional implica na multiplicação de
favelas, com habitações de baixo padrão construídas na maior parte das vezes pelo
próprio morador, com pouco ou nenhum fornecimento de infraestrutura e serviços
públicos.
A questão da moradia é especialmente importante, se não o mais importante
aspecto a ser observado no esquema desses grandes aglomerados urbanos. É a
partir do lugar onde moram é que os indivíduos terminam por organizar suas vidas
dentro do feixe urbano, e as demais funcionalidades da cidade serão aproveitadas a
partir daí. Não que a escolha da moradia, ou do lugar onde morar se dá como
escolha prioritária e a partir daí que se definirá onde trabalhar, as questões de
segurança ou locomoção. Trata-se de uma equação muito mais complexa na qual
pessoas de baixo poder aquisitivo têm que equacionar a pouca capacidade
financeira que as impossibilitam ou no mínimo criam dificuldades de conseguirem
uma moradia com qualidade mínima, com outras questões do espectro urbano,
como segurança, acesso a serviços públicos, mobilidade, acesso ao trabalho e a
segurança da posse:
Em toda parte do Terceiro Mundo a escolha da moradia é um cálculo complicado de considerações ambíguas. Como a frase famosa do arquiteto anarquista John Turner, “Moradia é um verbo”. Os pobres urbanos têm de resolver uma equação complexa ao tentar otimizar o custo habitacional, a garantia da posse, a qualidade do abrigo, a distância do trabalho e, por vezes, a própria segurança. Para alguns, como muitos moradores de rua, a localização próxima do trabalho – digamos, em uma feira livre ou estação de trem – é ainda mais importante que um teto. Para outros, o terreno gratuito, ou quase isso, compensa viagens épicas da periferia para o trabalho no centro. E
20
para todos, a pior situação é um local ruim e caro sem serviços públicos nem garantia de posse (DAVIS, 2006, 39).
Enquanto a urbanização nos países desenvolvidos é considerada um
fenômeno já acabado e está intimamente ligada ao processo histórico de
consolidação da Revolução Industrial, a urbanização nos países em
desenvolvimento como o Brasil está relacionada ao processo de industrialização
tardia havido na segunda metade do século XX especialmente, quando a expulsão
de populações do campo aliada a atratividade exercida pelos polos industriais que
se formavam nas cidades, fizeram a população urbana se multiplicar rapidamente,
sem que, no entanto, recebessem provisões adequadas de infraestrutura e
habitação (FERREIRA, 2000).
É importante salientar que o processo de urbanização desordenada antes de
se dever a algum tipo de forte atração das cidades, se deve também a um processo
de expulsão de populações do campo. Se no campo o regime histórico concentrado
de propriedade da terra, sempre excluiu a grande massa camponesa, tem-se em um
segundo momento um processo de precarização das políticas agrícolas combinado
com a oferta de emprego nas cidades industriais, o que criou uma situação de
crescimento das cidades mesmo em situações em que as condições urbanas não
são muito atrativas. Isso se dá especialmente a partir do fim dos anos 1970 com a
política econômica neoliberal do FMI através dos Planos de Ajuste Estrutural (PAE‟s)
que obrigaram as nações endividadas à políticas de austeridade, tirando dos
agricultores pobres a rede de proteção social que tinham.
Um a um os governos nacionais, mergulhados em dívidas submeteram-se a planos de ajuste estrutural (PAEs) e à condicionalidade do FMI. Os pacotes de insumos agrícolas subsidiados e aprimorados e a construção de infraestrutura rural foram drasticamente reduzidos. Quando as iniciativas de “modernização” camponesa das nações latino-americanas e africanas foram abandonadas, os camponeses foram submetidos à estratégia do “pegar ou largar” das instituições financeiras internacionais. A desregulamentação do mercado nacional empurrou os produtores agrícolas para o mercado global de commodities, no qual os camponeses de porte médio e pobres acharam difícil competir. Os PAEs e as políticas de liberalização econômica representaram a convergência das forças mundiais de desruralização e das políticas nacionais que promoviam a descampesinação (BRYCESON apud DAVIS, 2006, 25).
21
Esse mesmo processo de ajuste imposto pela visão econômica do FMI aos
países pobres endividados e que contribuiu para a fuga do campo para as cidades,
por outro lado, terminou agravando o problema da moradia urbana, já que
influenciou também as políticas públicas de habitação nesses países, que foram
reduzidas ou eliminadas:
O papel minimalista dos governos nacionais na oferta de moradias foi reforçado pela atual ortodoxia econômica neoliberal definida pelo FMI e pelo Banco Mundial. Os Planos de Ajuste Estrutural (PAEs) impostos às nações endividadas no final dos anos 1970 e na década de 1980 exigiram a redução dos programas governamentais e muitas vezes, a privatização do mercado habitacional (DAVIS, 2006, 71).
Todo esse contexto conduz a trágica situação do déficit habitacional e da sub-
habitação nos países em desenvolvimento. Déficit habitacional, é um termo técnico
usado para se referir à quantidade de cidadãos que não tem moradia adequada em
um determinado lugar ou região. No Brasil, o conceito de Déficit habitacional vem
sendo construído por estudos da Fundação João Pinheiro, do Estado de Minas
Gerais, que retirando seus dados das PNAD‟s, se utiliza de quatro critérios para o
cálculo do déficit habitacional: a) domicílios precários, aí considerados os domicílios
rústicos (habitações sem paredes de alvenaria ou madeira aparelhada,
desconfortáveis e que favorecem a contaminação por doenças) e os domicílios
improvisados (aproveitamento de locais alternativos para fins residenciais (imóveis
comerciais, embaixo de pontes e viadutos, carcaças de automóveis, cavernas, etc);
b) A coabitação familiar, composta por dois subcomponentes: os cômodos (os
domicílios particulares compostos por um ou mais aposentos) situados em cortiços,
cabeças-de-porco, em casas-de-cômodo e a coabitação familiar propriamente dita,
considerando às famílias secundárias que dividem a moradia com a família principal
e desejam constituir novo domicílio; c) ônus excessivo com o aluguel urbano,
caracterizado se o peso do valor pago como prestação da locação no orçamento
domiciliar for superior ou igual a 30% da renda domiciliar; d) O quarto e último
componente é o adensamento excessivo em domicílios alugados que
22
correspondem aos domicílios alugados com um número médio superior a três
moradores por dormitório. Resultados dos estudos da Fundação João Pinheiro
(2014) apontam para um déficit habitacional, em 2011 de 5,889 milhões de
domicílios, o que representa 9,5% dos domicílios particulares permanentes e
improvisados. Em 2012 esse número experimentou ligeira queda, caindo para 5,792
milhões, o equivalente a 9,1% de déficit.
Se historicamente num primeiro momento as pessoas sem opções de
moradia optavam por bairros pobres do centro da cidade que as classes mais
abastadas abandonavam para se refugiar em áreas periféricas mais atraentes e
condomínios fechados, a partir da década de 1970, a pobreza urbana começa a
buscar também as áreas periféricas, menos visadas, onde há a possibilidade do
apossamento da terra que garantiria o acesso a terra sem custos. Sem custos,
supostamente: se com esse expediente, se consegue por um lado ter acesso à terra
ou fugir das regras de urbanização que elevam os custos da construção, por outro
lado é comum o pagamento de propina a agentes públicos corruptos para se ter
acesso a terra. Soma-se a isso o custo de se alocar-se em uma área sem serviços
públicos e longe do centro urbano (DAVIS, 2006, 47).
A taxa de urbanização brasileira, por exemplo, saltou de 31,2% em 1940 para
81,3% no ano de 2010 (IBGE, 2010). Como já dito, se a explosão da taxa de
urbanização por si só representa um problema, sem o devido acompanhamento de
implementação de acesso a infraestrutura, serviços básicos e outras políticas
públicas que garantam as funções sociais básicas da cidade - entre elas a moradia –
o problema termina por se agravar. O IBGE em pesquisa no ano de 2010 apurou a
existência de 3.224.529 (Três milhões duzentos e vinte e quatro mil quinhentos e
vinte e nove) domicílios ocupados em aglomerados subnormais. Aglomerados
subnormais, segundo definição do próprio IBGE é o conjunto de pelo menos 51
(cinquenta e uma) unidades habitacionais, em regime de ocupação ilegal da terra –
inexistência de título de propriedade – e que sejam caracterizados ou por ausência
de padrão de urbanização (refletido por construções não regularizadas perante os
órgãos públicos, arruamento estreito, falta de padrão na área e forma do lote) ou por
ausência de serviços públicos essenciais (água, luz, esgoto e recolhimento de lixo).
23
Além disso, esse quadro é historicamente dramático em razão do processo
pelo qual se consolidou o regime de ocupação da terra, desde os tempos coloniais
se concentrado nas mãos de uns poucos privilegiados. “Uma história de ocupação
que gerou e consolidou uma estrutura de propriedade das mais concentradas do
mundo e, o pior, uma imensidão de terras sem uso algum. Como consequência, uma
legião de agricultores sem trabalho e sem terras.” (GERMANI, 2006, 142). Além da
semelhança quanto a falta de democracia no acesso a terra, que tanto no campo
quanto na cidade sempre privilegiou alguns poucos, a concentração fundiária rural
tem interferência direta sobre o déficit habitacional urbano, não só porque a
expansão urbana se dá pelo parcelamento de áreas anteriormente qualificadas
como rurais, mas também em razão da reprodução da pobreza no campo provocada
por esse quadro de concentração de terras, que torna o principal estimulante do
êxodo rural, em razão da falta de opções de subsistência para o trabalhador não-
proprietário continuar no meio rural.
1.1.1. - O Deficit habitacional e Ocupação Irregular.
Todo esse cenário impulsionado especialmente pelo processo de
industrialização ocorrido a partir de meados do século XX, proporcionou um déficit
habitacional de grandes proporções, principalmente porque a urbanização não foi
acompanhada de um processo de planejamento racional e inclusivo das cidades,
proporcionando a situação de ocupação desordenada do território. Segundo BERÉ:
A invasão de terra urbana tem sido parte do processo de urbanização. Ela é estrutural e institucionalizada em razão do mercado imobiliário excludente e da ausência de política sociais. Invasão, termo muitas vezes rejeitado, é a ocupação de terra alheia, muitas vezes por falta de alternativas. Os loteamentos ilegais, por outro lado, não são terras invadidas, mas apresentam ilegalidades, quanto à titulação ou exigências urbanísticas. (BERÉ, 2005, 104)
24
Esse cenário de caos urbano e da falta de acesso à moradia termina por criar
processos de ocupação que compelem a população pobre para áreas pouco
atrativas, onde dificilmente aparecerão interessados em realizar o despejo e retomar
a área. Surge assim uma forma de apropriação silenciosa de rotina, na qual grupos
de pessoas sem opções de moradia buscam apoderar-se dessas áreas pouco
visadas ou controladas, onde por isso mesmo, suas ações basicamente encontrarão
pouca resistência. Conforme relata DAVIS:
Hoje, a ocupação stricto sensu continua primariamente em terra urbana de baixo valor, em geral lugares de risco ou extremamente marginais, como planícies sujeitas a cheias, encostas, pântanos ou antigas instalações industriais poluídas. Como observa a economista urbana Eileen Stillwaggon: “Em essência, os invasores ocupam terra não arrendada, terra que tem tão pouco valor que ninguém se dá ao trabalho de fazer cumprir seus direitos de propriedade sobre ela” (DAVIS, 2006, 49).
Essas áreas são normalmente terrenos pouco atrativos pelos mais diversos
motivos, seja pelos riscos que acarretam a segurança humana, como áreas sujeitas
a deslizamentos de terra e a inundações, ou áreas inóspitas em razão do
desconforto provocado pela proximidade com lixões, indústrias altamente poluidoras
ou outro tipo de situação nociva à saúde humana. Conforme DAVIS:
Os invasores trocam a segurança física e a saúde pública por alguns metros quadrados de terra e alguma garantia contra o despejo. São os povoadores pioneiros de pântanos, várzeas sujeitas a inundações, encostas de vulcões, morros instáveis, montanhas de lixo, depósitos de lixo químico, beira de estradas e orlas de desertos” (DAVIS, 2006, 127).
Trata-se de um fenômeno que atinge não só o Brasil, mas todos os países em
desenvolvimento em processo de urbanização. O crescimento desordenado das
cidades brasileiras compele boa parte da população urbana para áreas marginais
onde se constituem assentamentos informais, boa parte deles em áreas de especial
25
tutela ambiental, como áreas verdes e áreas de mananciais. Em Minas Gerais, são
conhecidos os casos da ocupação das margens do Rio Manhuaçu, em Manhuaçu,
nos bairros Ponte da Aldeia e Engenho da Serra, a ocupação da margem direita do
Rio Paraibuna em Juiz de Fora, e a ocupação da margem do Rio Doce nos bairros
São Tarcísio, São Raimundo e Santa Teresinha na cidade de Governador
Valadares, as duas primeiras na Zona da Mata mineira, e esta última na região leste
de Minas Gerais.
Essas áreas de proteção ambiental, nem sempre são inóspitas trazendo risco
a saúde e à segurança dos ocupantes. Embora margens de rios, mangues e
encostas propiciem riscos potenciais de desabamento e inundações, certas áreas de
especial interesse ambiental atraem pessoas pobres não porque são perigosas, mas
porque não oferecem, em tese, a possibilidade futura de regularização, seja da terra
ou da construção edificada, e por isso estão fora do mercado imobiliário, ou ainda se
tratam de terras públicas, que além de tudo estão sujeitas a pouca ou nenhuma
fiscalização.
Assim, tem-se início os processos de ocupação, que muito frequentemente se
darão em áreas em que se compromete o meio ambiente, como ocorre
frequentemente na ocupação de áreas verdes e áreas de proteção a mananciais.
Essas ocupações, ao longo da história da urbanização sempre foram ignoradas pelo
poder público e pela cidade oficial, até por estarem inseridas fora do mercado
imobiliário formal, que sempre teve com ela uma relação de conivência, promovendo
anistias periódicas permitindo a regularização e o fornecimento em certa medida de
infraestrutura urbana (MARICATO apud BERÉ, 2005, 104).
Como exposto, o problema do déficit de moradia e da sub-habitação gerado
pelo caos urbano, dessa forma, termina em muitos casos por convergir para
problemas ambientais, quando a opção de acesso à terra para fins de moradia
termina por se dar em áreas de especial interesse ambiental. A situação criada pela
omissão do Estado, seja em gerir e fiscalizar seu próprio patrimônio ou áreas de
interesse difuso e coletivo, seja em planejar e controlar a expansão urbana
facilitando o acesso à moradia, cria verdadeiros problemas do ponto vista social e
jurídico, posto que famílias as quais nunca se propiciou o direito fundamental à
26
moradia, acabam por ocupar áreas que deveriam ser protegidas com fundamento no
direito de todos ao ambiente equilibrado e de acesso aos recursos naturais.
Essas ocupações além de serem um problema social, normalmente
acarretam muitos problemas ambientais, entre os quais problemas específicos ao
próprio contexto urbano a que está vinculada. A título ilustrativo, pode-se citar
conhecidos os casos de ocupação irregular que invadem santuários ecológicos ou
áreas de mananciais, comprometendo o abastecimento de água potável, como o
emblemático caso da cidade de São Paulo onde o processo de ocupação irregular
no entorno das represas Billings e Guarapiranga comprometem gravemente o
abastecimento da cidade, que depende desses reservatórios em cerca de 1/5 do
total de que necessita. Segundo MARTINS,
A oposição entre a moradia pobre e a sustentabilidade ambiental é uma constante nas cidades brasileiras. O processo de urbanização tem apresentado diversas formas de impacto ambiental negativo: a poluição do ar decorrente da matriz rodoviarista, a poluição dos recursos hídricos devido ao lançamento de lixo e esgotos, a impermeabilização do solo devido ao seu padrão de ocupação, a devastação de mangues, dunas, matas, e nascentes devido à falta de controle sobre os usos do solo. Enfim, a lista não é pequena. O conflito envolve moradores de baixa renda que ocupam áreas de risco ou áreas ambientalmente frágeis traz a marca do duplo desastre. Um deles está na condição ilegalidade, segregação física, subcidadania (ausência de direitos com o direito à cidade e à moradia legal) e má qualidade de vida urbana que afeta toda a população que, sem alternativas, ocupa áreas inadequadas. O outro está na agressão ambiental a sistemas que são fundamentais para a reprodução da própria vida humana como são os mananciais de água... (MARTINS, 2006, 7).
Tais situações tratam-se de verdadeiros contrassensos especialmente no
contexto de urbanismo sustentável, no qual, como informa DAVIS, há muito tempo
os urbanistas teóricos reconhecem a necessidade de conservação de uma matriz
verde para a cidade por questões tanto de eficiência ambiental quanto de produção
de riquezas (DAVIS, 2006, 139). Assim, enquanto a cidade sustentável por exemplo
poderia oferecer eficiência no uso da terra por meio da densificação, sem perda de
qualidade de vida, a urbanização desordenada termina por gerar problemas diversos
que criarão e agravarão outros problemas urbanos e no caso do meio ambiente, a
27
convivência harmoniosa dará lugar a problemas próprios da degradação ambiental,
como a insalubridade e a falta de acesso a recursos naturais.
No caso dos mananciais da região metropolitana de São Paulo, uma
conjunção de fatores contribuíram para a ocupação irregular das áreas de
mananciais ao sul da região metropolitana de São Paulo: o aumento da pobreza
seguido de déficit habitacional e redução de oferta de habitação de interesse social,
bem como a discrepância entre as condições econômicas da população e os custos
econômicos da moradia regularm, que provocaram intensa ocupação dessa região a
partir da década de 1970. Em se tratando de áreas protegidas, a legislação
ambiental restringe o uso do solo, ocasionando uma desvalorização do terreno
protegido, o que aliado à fiscalização ineficiente permite o quadro de ocupação. A
lei ambiental termina nesse caso por criar um efeito reverso: criando restrições ao
aproveitamento do solo, torna a terra barata num contexto que não apresenta
opções de terra a preço acessível pela maioria da população. Aliada à falta de
fiscalização do poder público cria o contexto para o surgimento dos parcelamentos
irregulares.
No caso da Represa Billings, que teria a capacidade para fornecer água para
4,5 milhões de pessoas, segundo levantamentos do Instituto Sócio Ambiental
realizado entre 1999 e 2000, a bacia da represa perdeu 6% de sua cobertura
vegetal. Enquanto a ocupação urbana se expandiu na ordem de 48%, 37% dessa
ocupação se deu em áreas com severas restrições ambientais e apenas 12% em
regiões favoráveis (MARTINS, 2006, 58). Se o abastecimento de água ainda não
está comprometido é porque boa parte do território da bacia da Billings está
recoberto por vegetação nativa. No entanto, o ritmo de expansão urbana e a forma
com que vem se desenvolvendo é alarmante.
Outros casos de avanço desordenado da cidade, aliando o problema social da
falta de acesso à moradia a problemas ambientais se espalham pelo país. Para além
do caso de São Paulo, se multiplicam em metrópoles brasileiras situações de
ocupação irregular de áreas que de alguma forma multiplicam problemas
ambientais. Um caso recente que ganhou notoriedade nacional e internacional foi a
tragédia do Morro do Bumba na região metropolitana do Rio de Janeiro na cidade de
28
Niterói onde em abril de 2010, um deslizamento de terras provocou centenas de
mortos e milhares de feridos. Sobre o desenvolvimento urbano na cidade de Niterói,
segundo SOUZA,
A história de desenvolvimento e ocupação demográfica do município é marcada por ausência de planejamento socioambiental, o que traz como consequência o agrupamento desordenado e um alto risco em áreas de encosta, com a reprodução de um modelo de gestão que centraliza sua atuação nas áreas consideradas nobres, relegando a uma espécie de “estado de natureza” o crescimento urbano periférico.(SOUZA, 2012, 3)
Traçando um breve histórico da situação do Morro do Bumba, a pesquisadora
informa que a partir de 1970 o local passou a abrigar um lixão. Com a desativação
do lixão em 1982, foi proibida a ocupação do local pelo governo Waldernir Bragança.
No entanto, aos poucos, por total falta de fiscalização, foram construídas pequenas
casas de alvenaria na área considerada insalubre e insegura. A partir disso, ao invés
de reprimir a ocupação irregular da área do lixão desativado, o poder público acabou
por incentivar a invasão, implantando no local melhorias de infraestrutura urbana,
escola municipal, creche e até mesmo uma quadra poliesportiva, entre outros.
LOGUERCIO informa que a implantação do lixão, não foi precedida de
qualquer preparo do local e os resíduos foram depositados diretamente no solo.
Com a instalação do lixão iniciou-se um processo de migração na região, tanto dos
moradores que ali residiam, quanto de pessoas atraídas ao local. Estes,
principalmente, para o uso do mesmo (ferro velho, catadores etc.). Iniciou-se, assim,
a “favelização” da área (2013, 70).
Embora se reconheça que a localidade do Morro do Bumba foi castigada por
chuvas intensas no período do desastre, o município desde a desativação do lixão
foi omisso e acabou tolerando a ocupação da área por famílias, sendo que a região
tem histórico de ocorrências de deslizamento (LOGUERCIO, 2013, 90). Impressiona
o descaso do poder público em dar qualquer tratamento a área, sendo conhecido
que o problema da ocupação da área era agravo pelos anos de acúmulo de lixo no
local. Emberton & Parker tratam das consequências da deposição de lixo e afirmam:
29
Muitas destas substâncias podem ser corrosivas para alguns materiais de construção, sendo um risco para edificações erguidas na área. Além disso, o gás acumulado nestas áreas, conforme dito anteriormente, pode provocar explosões, incêndios e instabilidade do terreno, constituindo-se em um problema para a urbanização futura de áreas de despejo desativadas (EMBERTON & PARKERr, apud SISINNO, 2002, 34).
A ocupação de encostas são recorrentes nas grandes cidades brasileiras e os
problemas ambientais daí originados se multiplicam. FERNANDES, analisando a
ocupação do Maciço da Tijuca, onde se localizam algumas das maiores favelas do
Rio de Janeiro e os processos erosivos decorrentes informa:
(...) tornam-se cada vez mais freqüentes as ocorrências de desmoronamentos e/ou deslizamentos nas encostas, contribuindo para o aumento das descargas sólidas que promovem o assoreamento das redes de drenagem, naturais ou artificiais, especialmente nas zonas de baixadas. Tal fato se prende, em parte, à degradação desta paisagem, com a substituição da cobertura vegetal que caracteriza a Floresta da Tijuca, por feições urbanas e áreas desmatadas com invasão de capim colonião. Neste sentido estas transformações na cobertura do solo contribuem para a modificação do comportamento hidrológico, criando condições favoráveis a um maior desenvolvimento de processos erosivos por diferentes mecanismos e, conseqüentemente, contribuindo para um aumento das descargas líquidas e sólidas nos canais fluviais. Durante os eventos pluviométricos mais intensos, essas descargas tornam-se maiores e mais rápidas, induzindo mais freqüentemente as inundações nas porções inferiores dos vales e baixadas adjacentes, como nos casos registrados em março de 1966 e em fevereiro de 1988 e de 1996, os quais assumiram um caráter catastrófico. (FERNANDES, 1999, 46).
As situações do Morro do Bumba no Rio de Janeiro, e a invasão das margens
dos reservatórios que abastecem São Paulo são apenas dois sintomas de um
mesmo problema que atacam as grandes cidades brasileiras e de outros países
pobres no mundo. Com maior ou menor visibilidade, a ocupação irregular de áreas,
ou a ocupação de áreas protegidas em razão da falta de acesso à moradia se repete
na maioria das outras grandes cidades brasileiras. E o problema que é inicialmente a
falta de moradia, se multiplica exponencialmente em vários outros tipos de
problema: poluição, falta de saneamento básico, incêndios e desmoronamentos,
epidemias diversas e mortalidade infantil.
30
No caso dos bens objetos de tutela ambiental sobretudo, os efeitos dessa
ocupação desordenada são ainda mais notáveis e mais desastrosos. Algo que talvez
possa ser explicado pelo próprio conceito fundamental de meio ambiente. SILVA
conceitua meio ambiente como “a interação do conjunto de elementos naturais,
artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas
as suas formas” (SILVA, 2004, 20). Se a construção do conceito de Meio Ambiente e
os bens objetos de sua tutela evocam interação de elementos e pressupõem um
mundo interconectado, a alteração, a degradação ou falta de qualquer desses
elementos irá repercutir nos demais, ou mesmo no todo, conforme a magnitude
dessa alteração. É próprio dos interesses e conflitos ambientais, a
indeterminabilidade dos sujeitos. Não por outro motivo, os acidentes ambientais não
se restringem àqueles que o causaram: normalmente atingem populações inteiras
que muitas vezes sequer estão próximas geograficamente do local do
acontecimento. Veja o caso das represas que abastecem São Paulo: toda a
população da região metropolitana está sob o risco de desabastecimento futuro em
razão da ocupação irregular do entorno da represa, com o lançamento de esgoto
diretamente na represa ou em seus afluentes. Daí o reconhecimento do Direito ao
Ambiente como direito difuso.
Sendo próprio dos interesses difusos a “indeterminação de sujeitos”, visto não
haver um vínculo jurídico a agregar os indivíduos a que dizem respeito esses
interesses, os sujeitos de direito nessas situações se agregam ocasionalmente em
virtude de acontecimentos que identificam seu interesses em um mesmo grupo de
pessoas. Os sujeitos são agregados no caso por fato que é o denominador comum e
de relevância social. O fato de habitarem a mesma região, de terem adquirido um
mesmo produto, de fazerem uso de um mesmo serviço, de pertencerem a uma
mesma comunidade, de pertencerem a um mesmo agrupamento social, étnico, etc.
O problema ambiental e a falta de moradia terminam por ser problemas que
se retroalimentam. A falta de moradia faz com que as populações pobres avancem
em áreas protegidas. Esse avanço por sua vez termina por provocar diversos
problemas ambientais que terão suas consequências nocivas e custos, seja com
pacotes de ajuda a desabrigados, gastos com a despoluição das águas, ou grandes
obras públicas de contenção de desastres. Esses custos consumirão ainda mais
31
recursos públicos remetendo-nos a um dos elementos iniciais que criaram o
problema das ocupações sem controle: a falta de investimentos em políticas de
acesso a moradia.
1.1.2. – Ambiente Urbano e Áreas de Preservação Permanente.
As áreas de preservação permanente são espaços em que, por força de Lei,
a vegetação deve ser mantida intacta, com o objetivo de preservação dos recursos
hídricos, da biodiversidade da manutenção da estabilidade geológica e de assegurar
o bem estar das populações humanas.
Instituídas inicialmente pela Lei No. 4.771 de 1965, o antigo Código Florestal,
são atualmente regidas pela Lei No. 12.651 de 25 de maio de 2012, recebem um
tratamento claro e rígido de nossa legislação. Não estão sujeitas a interferências ou
supressão de vegetação, exceto em casos de utilidade pública e interesse social,
casos esses também enumerados em lei.
É muito comum que as cidades surjam e se desenvolvam às margens de
cursos de água. Isso se dá por diversas razões práticas, que vão desde o uso do
curso de água como via de locomoção e canal de comunicação, mas também em
razão de necessidades essenciais, como por exemplo, o abastecimento de água
potável e a eliminação de resíduos sanitários.
Essa questão traz ainda um traço histórico cultural da formação dos núcleos
urbanos brasileiros. Enquanto que na América Espanhola a colonização procurava
fugir de lugares marítimos, buscando os planaltos do interior, a colonização
portuguesa não teve a mesma preocupação. Ao contrário, buscava deliberadamente
forçar a permanência das populações no litoral e nas proximidades dos cursos de
água, como se nota, por exemplo, nas cartas de doação das capitanias hereditárias,
segundo as quais no litoral e junto aos rios navegáveis os donatários poderiam
32
edificar quantas vilas quisessem. Por outro lado, o regimento do primeiro
Governador Geral do Brasil, Tomé de Souza, era no sentido de que ninguém
adentrasse ao interior pela terra firme sem autorização do governador ou do
provedor-mor da fazenda real, sob pena de açoite aos “maus nascidos” ou multa aos
“homens de qualidade” (HOLANDA, 2008, 100). Assim historicamente a colonização
brasileira tem se dado às margens dos cursos de água.
Uma vez que as margens de nascentes, cursos, reservatórios e olhos-de-
água são considerados por lei Áreas de Preservação Permanente deveriam ser
observadas quanto a esses espaços todas as normas que as regulam.
No entanto, na maioria dos núcleos urbanos, a integridade da vegetação
dessas áreas vem sendo ignoradas, especialmente em razão do quadro narrado
retro, em que a segregação espacial é elemento chave no modelo de
desenvolvimento urbano do Brasil e em razão do déficit habitacional e da falta de
democracia no acesso à terra. Esse contexto de déficit habitacional provoca a
ocupação de Áreas de Preservação Permanente acaba revelando um
comportamento duplamente negligente do Estado. Se de um lado o poder púbico é
ineficiente em propiciar o acesso à moradia de forma ampla e acabar com o déficit
habitacional, de outro, é ineficiente no controle e fiscalização do patrimônio
ambiental, seja ele público ou privado.
O problema do acesso à Moradia frente ao Direito ao Ambiente começa aí.
Ante a deficiência de políticas públicas de acesso à moradia e o desinteresse do
mercado em investir em novas moradias, e um modelo fundiário historicamente
antidemocrático de acesso a terra, o que sempre a manteve em alto custo, restava à
parcela mais pobre da população, trabalhadores e migrantes recorrer à ocupação
ilegal de terras e a prover sua habitação por meio da autoconstrução.
O que caracteriza as Áreas de Preservação Permanente é essencialmente a
restrição à supressão de vegetação. Consideradas como áreas de preservação por
si só, podem estar num contexto de domínio público ou privado, sendo que no
contexto privado, não sendo considerados coisas fora do comércio (bens extra
commercium), podem ser apropriados livremente por quaisquer pessoas e podem
ser objetos de relações jurídicas negociais. Isso posto, observa-se que é comum
33
encontrar a negociação e a implementação de parcelamentos irregulares, uma vez
que a apropriação dessas áreas é licita e a edificação não é.
Mesmo quando essas áreas de proteção se encontram em domínio público,
não se tem comportamento diferente. Embora sejam insuscetíveis de uso ou
ocupação por particulares sem autorização administrativa, a ausência de controle do
Poder Público termina com o mesmo problema de ocupação dessas áreas e a
supressão de vegetação para dar lugar a edificações.
O crescimento desordenado da cidade de um lado e a tutela de bens
ambientais especialmente protegidos de outro evidenciam verdadeiro choque de
interesses que o presente trabalho pretende analisar. De um lado, o direito à
moradia – inclusive tratando-se de direito constitucionalmente protegido - o direito à
cidade, a dignidade humana, e de outro, a proteção de bens ambientais, cujo
objetivo também é a proteção do ser humano e de sua qualidade de vida. O status
constitucional que ambos os direitos têm - tanto na estrutura da Constituição como
na concretização de outros valores constitucionais na medida em que o texto
constitucional apresenta um projeto de nação - não permite uma simples escolha
apriorística ou discricionária do Estado em detrimento do direito à moradia. A
moradia como um Direito Fundamental Social, não pode simplesmente ser
sacrificada ou preterida em razão do direito ao ambiente e, em diversos casos, até
mesmo por uma questão de eficiência na atuação do poder público deverá
prevalecer.
A atuação do Estado deve ser eficiente, clara e objetiva, sob pena de criar
mais fragilização, seja para o meio ambiente seja para os cidadãos que necessitam
de moradia e confiam no Estado, seja por sua posição jurídica inata como guardião
dos interesses públicos e fornecedor de serviços públicos, seja pelas condutas
mantidas por seus agentes que criam relações jurídicas e expectativas nas pessoas.
Os exemplos emblemáticos citados anteriormente são apenas uma ilustração
da discussão, dentre os inúmeros que são possíveis enumerar.
Esses problemas, se compreendidos dentro de uma perspectiva realista e
inclusiva do urbanismo são graves e complexos,uma vez que se compreende que
34
não se pode simplesmente impedir a cidade de crescer. A cidade cresce dentro da
legalidade ou ilegalmente. O Estado precisa lidar com isso e atuar de forma
transparente e ética, dando centralidade aos direitos fundamentais e sua efetivação
sob pena de ser agravada a segregação social de pessoas que já não têm muitas
escolhas como vítimas das desigualdades socioeconômicas. Essa situação não se
sustenta diante da compreensão contemporânea dos direitos fundamentais, onde o
sujeito de direitos não é o modelo abstrato que se põe como elemento da relação
jurídica: é uma pessoa concreta, sujeito de necessidades (FACHIN, 2003, 101).
Para LIRA o uso do solo é sinônimo de expressão de liberdade. Liberdade em
seus vários sentidos; seja no sentido de se autodeterminar sem constrangimentos,
no sentido de fazer escolhas, de agir depois de refletir com conhecimento de causa,
ou se realizar em seus atos de acordo com sua natureza, considerada como
caracterizada em sua essência, pela razão e moralidade (1997, 108). Partindo
desse pensamento, o solo se mostra de incomensurável valor tanto para os
indivíduos em particular como para a coletividade, posto que está envolvido em
todos os processos de satisfação das necessidades vitais do ser humano. Dele o ser
humano se alimenta, sobre ele o ser humano habita, dele retira riquezas. Daí a
análise da indissociabilidade entre a ideia de liberdade e o Direito à terra. Com a
Emenda Constitucional número 26 a Moradia ganha status de Direito Constitucional
Fundamental, e por mais que tenha a característica de uma norma constitucional
programática, ou not self-executing, termina por vincular o poder público.
Da mesma forma, o meio ambiente equilibrado é considerado direito de todos,
posto que essencial à sadia qualidade de vida, sendo dever do Estado e da
coletividade protegê-lo e conservá-lo conforme prescreve a Constituição Federal em
seu art. 225. O mesmo texto constitucional prescreve em seu art. 6 o Direito
Fundamental de cunho social à moradia, bem como prescreve em seu art. 182 que a
Política de Desenvolvimento Urbano tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar aos seus
habitantes.
Assim, enfrenta-se aqui o problema da garantia do direito à moradia versus o
direito ambiental sobre o prisma da atuação do Estado, cujo comportamento omisso,
35
confuso e contraditório, está diretamente relacionado com a causação do choque, e
que, na maioria das vezes, não considera adequadamente magnitude dos interesses
(e direitos) em disputa, muito menos responsabilidade por sua conduta
(considerando as diferentes estruturas do poder político).
A seguir, passa a análise da análise histórica da propriedade no Brasil,
especialmente a propriedade urbana, e como ela interferiu na questão da habitação
no país, bem como das próprias políticas públicas relativas a habitação, para uma
melhor compreensão da magnitude do problema habitacional no país e como o
poder público se relaciona à sua causação, e consequentemente, permite a criação
das condições para a proliferação de habitações em áreas irregulares, entre as
quais as áreas de proteção ambiental, cuja ocupação cria a questão central em torno
da qual se desenvolve o presente trabalho.
1.2. - A EVOLUÇÃO DA PROPRIEDADE URBANA E DO TRATAMENTO DA
MORADIA NO BRASIL.
1.2.1 – O período colonial.
Embora os portugueses tenham aportado no Brasil em 1500, a colonização
do território brasileiro só começa alguns anos depois por volta de 1530. Até então, o
que se tem são excursões rápidas e o envio de expedições de patrulhas da costa.
Com a cobiça das riquezas naturais da terra pelas demais nações europeias, e com
a impossibilidade de se manter o controle do imenso litoral brasileiro com
expedições regulares, Portugal precisou lançar mão de medidas mais efetivas para
o controle da posse das terras no novo mundo. Com isso tem início a povoação do
território brasileiro.
36
Ocorre que o governo português não tinha recursos financeiros para investir
no processo de ocupação do território brasileiro e por isso resolveu recorrer à
iniciativa privada, dividindo o Brasil em quinze grandes lotes de terra e os entregou a
pessoas de razoáveis condições financeiras, os donatários. O donatário era a
autoridade máxima dentro de sua concessão, tendo a responsabilidade de
desenvolvê-la com seus próprios recursos. Com a morte do donatário, a
administração da capitania era passada aos seus descendentes e por esse motivo,
as possessões eram chamadas de Capitanias Hereditárias (COTRIM, 1994, 42).
Em 1548, é suprimido o regime de capitanias hereditárias, principalmente pelo
fato de que dos 15 lotes de terra distribuídos sob essa forma, apenas duas
prosperaram economicamente. Assim o governo português envia ao Brasil um
governador geral, que governará em nome do rei e será o distribuidor de sesmarias
aos que desejassem se estabelecer na colônia. A propriedade da terra na colônia
era exclusiva da coroa portuguesa, o que existia aos proprietários era a posse.
O regime de sesmarias, cuja distribuição incumbia inicialmente ao donatário e
posteriormente ao Governador-geral, remonta à tradição feudal. A Lei das
Sesmarias, baixada em 26 de junho de 1375, por D. Fernando, rei de Portugal,
pautou a distribuição e ocupação das terras no Brasil até a independência, já que
inclusive foi incorporada às ordenações (PAULA, 2012, 195). Derivada da palavra
latina seximum, que significa a sexta parte, era distribuída segundo um módulo
mínimo, de uma légua quadrada (6.6 mil metros quadrados). Basicamente,
objetivava viabilizar o cultivo das terras ociosas e assim aumentar a riqueza do
reino:
A motivação básica das Leis das Sesmarias era o cultivo da terra. Uma sesmaria improdutiva deveria ser repartida de tal forma que toda ela produzisse riquezas. Contudo, este princípio, ao que parece, nunca foi exatamente observado, resultando daí a consolidação do latifúndio. É explícito, nesse sentido, o regimento do governador-geral, Tomé de Souza, de 1548, que mandava distribuir as terras em sesmarias, mas condicionava essa distribuição aos que possuíssem cabedal suficiente para construir casas-fortes, o que está na base da constituição da estrutura fundiária concentrada, ponto de partida da conformação do poder oligárquico, fenômeno fundamental de nossa vida política e cultural, que é o coronelismo (PAULA, 2012, 196).
37
Outro elemento que é apresentado para a dispensa do rigor nas regras que
regiam as concessões era a abundância de terras desocupadas (MARICATO, 2010,
22). A mesma autora ainda apresenta outros elementos que contribuíram para a
formação do latifúndio: o regime escravagista e a concentração do poder local nas
mãos dos grandes proprietários de terras:
O latifúndio resultante da concessão de sesmarias foi fundamental para a economia da Coroa portuguesa e depois para o Império brasileiro, mas o que contava mais que a terra era a capacidade de ocupá-la e nela produzir: dada pelo trabalho escravo. Assim, a propriedade de escravos era tão importante quanto a terra, ou mais. A dependência dos pequenos proprietários em relação ao latifúndio era indiscutível, principalmente na comercialização da sua produção. Lembremos mais uma vez que o senhor rural era autoridade municipal e depois tornou-se também autoridade militar, com a Guarda Nacional (MARICATO, 2010, 22).
Dessa forma, a estrutura econômica de produção da colônia e o regime de
uso da terra favoreciam ao sistema de latifúndio restritivo, no qual apenas aqueles
que já tinham posses conseguiam o acesso a terra, sendo que de fato, a
administração colonial era extremamente leniente com o controle sobre as
sesmarias concedidas.
Os primeiros núcleos de povoamento surgidos na colônia surgiram para
atender o sistema produtivo que ali se instalava. Enquanto a atividade produtiva era
eminentemente rural e as unidades de produção eram praticamente
autossuficientes, os primeiros centros urbanos serviam para interligar o campo com
a metrópole e sediar as atividades administrativas da coroa:
Durante esse período não havia propriamente uma rede de cidades, mas alguns grandes polos que concentravam as atividades burocráticas ligadas à administração colonial e também as atividades administrativas, comerciais e financeiras relativas à produção agroexportadora (MARICATO, 2010, 9).
38
Essas primeiras cidades ficavam, com exceção de São Paulo, restritas ao
litoral, onde atendiam a função de ponte entre as unidades de produção colonial e a
metrópole e de garantir a proteção da costa contra invasores estrangeiros.
Os portugueses criavam todas as dificuldades para que se entrasse terra
adentro, receosos de que com isso se despovoassem as áreas litorâneas. Para
HOLANDA, a forma da ocupação do território brasileiro se deve a natureza da
colonização portuguesa, muito mais preocupados em erguer feitorias para extrair a
riqueza da terra do que planejar e construir (HOLANDA, 1995, 95). Assim, a
colonização brasileira seguiu caminho bastante diverso em comparação ao restante
da América, inclusive nas possessões espanholas. Afirma o autor que
Mesmo em seus melhores momentos, a obra realizada no Brasil pelos portugueses teve um caráter mais acentuado de feitorização do que de colonização. Não convinha que aqui se fizessem grandes obras, ao menos quando não produzissem imediatos benefícios. Nada que acarretasse maiores despesas ou resultasse em prejuízo para a metrópole (HOLANDA, 1995, 107).
Esse pensamento fez com que o colonizador português não se preocupasse
com o ordenamento dos centros urbanos. Enquanto na América Espanhola
procurava-se assegurar o predomínio econômico político e militar sobre a colônia
por meio da construção de núcleos de povoação estáveis e bem ordenados, o
mesmo não se pode dizer dos núcleos urbanos portugueses.
Comparados ao dos castelhanos em suas conquistas, o esforço dos
portugueses distingue-se principalmente pela predominância de seu caráter
comercial, repetindo assim o exemplo da colonização fenícia e da grega; os
castelhanos, ao contrário, queriam fazer do país ocupado um prolongamento
orgânico do seu (HOLANDA, 1995, 98).
Sobre a organização das cidades portuguesas na colônia, referindo-se a
forma negligente com que os portugueses tratavam suas cidades em razão da
mentalidade meramente exploratória, afirma-se ainda que:
39
A fantasia com que em nossas cidades, comparadas às da América espanhola, se dispunham muitas vezes as ruas ou habitações é, sem dúvida, um reflexo de tais circunstâncias. Na própria Bahia, o maior centro urbano da colônia, um viajante do princípio do século XVIII notava que as casas se achavam dispostas segundo o capricho dos moradores. Tudo ali era irregular, de modo que a praça principal, onde se erguia o Palácio dos Vice-Reis, parecia estar só por acaso no seu lugar (BARBINAIS apud HOLANDA, 1995, 109).
Assim são os núcleos urbanos portugueses na colônia durante os dois
primeiros séculos de ocupação. A povoação ficou restrita à costa, com núcleos
urbanos modestos e bastante precários. Somente com a exploração do ouro no
século XVIII as cidades concentradas no litoral passaram a avançar para o interior.
Além disso, a exploração aurífera permitirá o surgimento de uma sociedade mais
diversificada e ligada às atividades urbanas, como pequenos artesãos, prestadores
de serviço e comerciantes. No entanto, não havia nenhum tipo de política de
urbanização por parte dos portugueses e as cidades se mantinham precárias:
Durante todo o período colonial, apenas as cidades mais importantes tinham algum calçamento nas ruas. O saneamento básico nunca foi preocupação da Coroa portuguesa. Em geral, a água era recolhida por escravos e aguadeiros que abasteciam as moradias. As fezes eram transportadas por escravos e despejadas nos cursos de água (MARICATO, 2010, 13).
Apenas a partir da segunda metade do século XVIII é que foi instituída uma
política de urbanização, com incentivo à criação de vilas que deveriam seguir as
mesmas normas utilizadas na metrópole portuguesa.
A organização política das cidades tem origem nas Ordenações do Reino. Foi
por meio delas que transladou-se para o Brasil o sistema de organização municipal
portuguesa. A administração urbana era de competência do poder local, e assim,
como na tradição que foi legada, conviviam com normas de caráter geral emitidas
pela Coroa que atingiam a todo o reino oriundas das ordenações de um lado, e de
outro as normas regulamentares de âmbito local pelas câmaras de vereadores,
chamadas posturas (BERE, 2005, 18). Embora os municípios por força do disposto
nas próprias ordenações fossem meras circunscrições administrativas nessa época,
40
não dispondo de função legislativa, terminavam por regular e exercer poder de
polícia sobre diversas matérias:
Durante o processo de colonização, logo se percebeu que as Ordenações eram, por vezes, insuficientes e que, outras vezes, seu cumprimento seria inconveniente, até porque não se poderia aguardar por soluções que caberiam ao governo central. Assim, as Câmaras acabaram ganhando uma autonomia não prevista na legislação e suas decisões, ainda que contrariando os termos da lei, chegavam a ser acolhidas pela coroa (BERE, 2005, 19).
Assim, as ordenações traziam disposições gerais, por exemplo, impondo
restrições ao direito de construir, seja em razão do direito de vizinhança ou em razão
do interesse público, e as Câmaras Municipais impunham as restrições de cunho
local. “Um aspecto interessante da legislação portuguesa sobre a matéria é que as
Ordenações do Reino, como leis gerais, fixavam princípios básicos e genéricos,
ficando a cargo das autoridades locais impor restrições recomendadas pelas
condições peculiares da cidade” (DALLARI, 1970, 110). Assim, enquanto as
ordenações por exemplo editavam normas sobre a construção e janelas e eirados,
as câmaras editavam normas que proibiam a construção sem arruamento oficial, ou
fazer modificações em sua construção que modificassem o alinhamento da rua.
As posturas, no entanto eram frequentemente descumpridas. “A própria forma
de comunicação das posturas, por meio de pregões e a deficiência dos registros
contribuíam para o seu esquecimento. Os resultados eram extremamente modestos
e o pouco atendimento das posturas revelava-se na insistência com que eram
repetidas” (REIS apud BERÉ, 2005, 20).
41
1.2.2. – Período Imperial.
No período imperial três fatos são particularmente marcantes. Em primeiro
lugar, temos a edição da lei municipal que define as competências das Câmaras de
Vereadores. Conforme o art. 167 da Constituição Política do Império do Brasil, de
1824, atribuiu-se competência administrativa às câmaras municipais das cidades e
vilas, que no período colonial eram meras circunscrições, embora exercessem de
fato alguns poderes1.
Conforme estabelecido pelo art. 169, em 01 de outubro de 1828 foi publicada
lei regulamentar definindo as competências das câmaras municipais, entre as quais
se incluíam disposições referentes a posturas urbanas e direito de construir2.
1Art. 167. Em todas as Cidades, e Villas ora existentes, e nas mais, que para o futuro se criarem
haverá Câmaras, às quais compete o Governo econômico, e municipal das mesmas Cidades, e Villas. (...) Art. 169. O exercício de suas funções municipais, formação das suas Posturas policiais, aplicação das suas rendas, e todas as suas particulares, e uteis atribuições, serão decretadas por uma Lei regulamentar.
2 Dispõe a referida lei em seu art. 66. Terão a seu cargo tudo quanto diz respeito á policia, e
economia das povoações, e seus termos, pelo que tomarão deliberações, e proverão por suas posturas sobre os objectos seguintes:
§ 1º Alinhamento, limpeza, illuminação, e desempachamento das ruas, cães e praças, conservação e reparos de muralhas feitas para segurança dos edificios, e prisões publicas, calçadas, pontes, fontes, aqueductos, chafarizes, poços, tanques, e quaesquer outras construcções em beneficio commum dos habitantes, ou para decôro e ornamento das povoações.
§ 2º Sobre o estabelecimento de cemiterios fóra do recinto dos templos, conferindo a esse fim com a principal autoridade ecclesiastica do lugar; sobre o esgotamento de pantanos, e qualquer estagnação de aguas infectas; sobre a economia e asseio dos curraes, e matadouros publicos, sobre a collocação de cortumes, sobre os depositos de immundices, e quanto possa alterar, e corromper a salubridade da atmosphera.
§ 3º Sobre edificios ruinosos, escavações, e precipicios nas vizinhanças das povoações, mandando-lhes pôr divisas para advertir os que transitam; suspensão e lançamento de corpos, que possam prejudicar, ou enxovalhar aos viandantes; cautela contra o perigo proveniente da divagação dos loucos, embriagados, de animaes ferozes, ou damnados, e daquelles, que, correndo, podem incommodar os habitantes, providencias para acautelar, e atalhar os incendios.
(...)
42
Assim, a referida lei pela primeira vez atribuiu competências administrativas
aos municípios, antes exercidas apenas de fato, em razão do regime centralista do
período colonial, quando as câmaras municipais acabaram por assumir poderes de
fato, em razão da precariedade do controle colonial. Desde esse período tem-se
reconhecido aos municípios o poder de regulamentar e policiar as construções.
O segundo fato marcante é a extinção, pela Resolução No. 76, de 17 de julho
de 1822 da Mesa de Desembargo do Paço, do regime de sesmarias no Brasil. Em
razão do que ficam suspensas todas as concessões de sesmarias futuras, até a
convocação a Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa. A Assembleia embora
tenha sido convocada logo após, em 1823 para a elaboração da Constituição, e
malgrado hiatos em que foi dissolvida, funcionou a partir de então, mas a
regulamentação da terra no Brasil permaneceu em suspenso até 1850, com a
edição da Lei de Terras.
A edição da chamada Lei de Terras é sem dúvida o fato mais marcante a
respeito da questão da propriedade no Brasil do séc. XIX. Pois é com a Lei de
Terras que a terra se torna efetivamente mercadoria e que se separa o público e o
privado no que diz respeito à propriedade fundiária.
Até 1822, como já foi dito, a terra era distribuída no regime de sesmarias pela
coroa portuguesa, não em regime de propriedade, mas de posse, embora de fato, a
precariedade do controle pela coroa fazia transparecer que os beneficiários das
sesmarias verdadeiros proprietários fossem. Com a concessão da autonomia
municipal, às cidades e vilas também era concedida terra para o uso coletivo e
expansão da sede municipal. O “rócio” ou “rossio”, como era chamado esse
patrimônio municipal, eram as terras nas quais se implantavam as casas e pequenas
unidades de produção sem custo. Era composto por uma porção de terra contígua à
formação urbana existente, destinada a fornecer lenha para o fogo, madeira para as
§ 6º Sobre construcção, reparo, e conservação das estradas, caminhos, plantações de arvores para preservação de seus limites á commodidade dos viajantes, e das que forem uteis para a sustentação dos homens, e dos animaes, ou sirvam para fabricação de polvora, e outros objectos de defesa.
43
construções, pasto para os animais dos moradores do núcleo urbano (MARICATO,
2010, 22).
Assim a terra não tinha valor comercial, muito embora, as formas de
apropriação favorecessem uma classe social privilegiada. As câmaras municipais e
os administradores locais tinham a competência de doar terras – as datas – a quem
solicitasse, a fim de morar ou produzir. Essas datas eram gratuitas, com a condição
de ocupação, produção e pagamento do dízimo, mas de fato, a sua distribuição
estava condicionada aos interesses dos proprietários e burocratas que controlavam
as câmaras municipais.
A Lei de Terras, Lei No. 601 de 18 de setembro de 1850 pode ser resumida
em quatro pontos básicos:
a) A forma de acesso à terra passa a ser exclusivamente por
meio da compra (art. 1º);
b) A legitimação das sesmarias já distribuídas e das terras
ocupadas como propriedades privada, conquanto não
ultrapassassem a área da maior sesmaria concedida na comarca,
ou na comarca vizinha;
c) O produto da venda das terras arrecadados pela coroa
seria usado para financiar a colonização por meio de imigrante
(arts. 18 e 20);
d) A criação da Repartição Geral de Terras Públicas,
encarregadas do controle das terras públicas, sua venda e da
promoção da colonização estrangeira.
De fato, foi no vácuo regulatório criado entre a extinção do regime sesmarial e
a edição da Lei de Terras em 1850, mais de 28 anos, que se consolidou o regime
latifundiário brasileiro, dado o fato de que ante a indefinição do Estado em relação à
ocupação da terra, esta se dá de forma ampla e indiscriminada. “É nesse período
que se consolida de fato o latifúndio brasileiro – com a expulsão de pequenos
posseiros, que antes tinham o hábito de ocupar terras virgens – e sua substituição
44
por poderosos proprietários rurais” (MARICATO, 2010, 23). Ainda segundo a autora,
a demora na aprovação de uma lei que regulasse a ocupação e distribuição da terra
no país, se devia ao medo dos latifundiários em não ver a apropriação de “suas”
terras confirmadas. A Lei de Terras - embora ficasse proibida a distribuição de novas
sesmarias desde 1822 e a ocupação de terras não pudesse ser feita de outra forma
– termina por confirmar não só as sesmarias, mas todas as ocupações ocorridas no
período de indefinição legislativa.
Entre outras coisas, a legislação também previa em seus artigos 7, 8 e 21,
além da demarcação das terras públicas, a demarcação das sesmarias existentes
ou terras ocupadas por posse, além das sesmarias caídas em comisso (sesmarias
que perderam a validade, ou por descumprirem as regras da própria lei de terras ou
por descumprirem as obrigações do sesmeiro). Na prática, seja por precariedade
funcional da Repartição Geral de Terras, seja por pressão dos grandes proprietários,
esse cadastro jamais ocorreu:
A demarcação das terras devolutas encontrou resistências no poder local, dominado pelos “coronéis”, que responderam com imprecisões às solicitações do governo central sobre a situação das terras. Um vasto patrimônio do Estado, urbano e rural, passou então a esfera privada. A antiga forma corriqueira de acesso à terra – concessão arbitrária ou ocupação pura e simples – passaria a ser considerada crime a partir de então. Uma parte da população branca e livre ficaria sem terra, dependente dos latifundiários para sua sobrevivência. (MARICATO, 2010, 23).
Conforme informa FERREIRA, o processo político de aprovação da Lei de
Terras tem muito a ver com o fim do tráfico de escravos (2005, p. 2). Embora em 7
de novembro de 1831 houvesse sido aprovada lei que tornava livre todos os
escravos vindos de fora do império, tal lei jamais saiu do papel. Contudo, a partir de
1850 a Inglaterra, desejosa de mais mercado para o consumo dos produtos e
interessada em impedir qualquer restrição dos seus produtos aumentou a pressão
sobre o Brasil, que fez promulgar ainda em 1850, a Lei Eusébio de Queirós (lei N.
581 de 4 de setembro de 1850). A publicação da Lei de Terras e da Lei Eusébio de
Queirós distam apenas algumas semanas. Esta precedendo aquela, de forma que a
45
proibição do tráfico negreiro obrigou os grandes proprietários a busca de solução de
mão-de-obra para substituição do trabalho escravo:
A proibição do tráfico negreiro, em 1831, não impediu a continuidade do comércio de escravos, que entretanto, tornavam-se mais caros para os grandes produtores agrícolas, indicando a solução de mão-de-obra imigrante. Foi somente em 1850, após a ameaça concreta, feita um ano antes pelos ingleses, de fechamento dos portos brasileiros, que uma lei coibiu definitivamente o tráfico (FERREIRA, 2005, 2).
Assim, os grandes proprietários cafeeiros precisavam recorrer a outra fonte
de mão-de-obra para suprir a falta de mão de obra escrava. A Lei de Terras vem
dessa forma, a coibir a pequena produção de subsistência, dificultando o acesso a
terra pelos homens livres e pelos imigrantes, já que o fácil acesso a terra
inviabilizaria a disponibilidade de mão-de-obra para substituir os escravos,
especialmente nas fazendas de café.
A Lei de terras além de tudo, não se restringiu ao meio rural. É claro que o
desenvolvimento das cidades está articulado com a estrutura geral de produção
nacional, e que até então o Brasil era um país agrário. No entanto, mais do que isso,
a lei de terras também influenciou nas relações de apropriação da terra urbana.
Como ressalta MARICATO, é a Lei de terras que pela primeira vez distingue no
ordenamento jurídico nacional o que é solo público e o que é solo privado (2010,
23). Passa-se então a exigir uma demarcação mais precisa dos espaços privados e
dos espaços públicos. Por isso a demarcação de lotes é mais bem definida. Por isso
também o espaço urbano torna-se mais bem delimitado: o alinhamento de fachadas,
calçadas e ruas passa a obedecer traçado mais preciso.
46
1.2.3 – Os primeiros anos da República.
Embora no período colonial e imperial as atividades econômicas se dessem
basicamente no campo, em razão do sistema econômico agroexportador surgido
ainda no período colonial, é errôneo ignorar a importância das cidades até então.
Embora o seu surgimento e crescimento obedecesse a dinâmica da produção do
campo onde estavam as unidades de produção, o controle da comercialização dos
produtos se dava basicamente nas cidades. Assim, mesmo em uma economia rural
e com a maioria maciça da população vivendo no campo, algumas das principais
cidades do país já atingiam tamanho significativo. O Rio de Janeiro, então capital do
país, tinha cerca de meio milhão de habitantes (FERREIRA, 2005, 4). A cidade de
São Paulo, por outro lado, que se consolidava como o centro administrativo da
produção cafeeira salta de 64.934 habitantes em 1890, para 239.820 mil habitantes
em 1900 (IBGE), praticamente quadruplicando sua população, também em razão da
industrialização ainda nascente. A economia exportadora de café terminou também
por trazer também investimentos estrangeiros em infraestrutura para atender os
centros urbanos a que estava ligada, ferrovias, usinas elétricas, portos, transportes
marítimos, iluminação, água, entre outros (MARICATO, 2010, 25).
É nesse quadro do final do século XIX e início do século XX, e com a
industrialização nascente que surgem os primeiros problemas urbanos do país,
especialmente ligados à falta de infraestrutura urbana e déficit de moradia. Com a
industrialização, as cidades deixam de ser apenas os locais de administração e
controle da economia, centrada no campo, para se tornarem também o local de
produção. O crescimento urbano acarretou uma demanda por moradia, transporte e
demais serviços urbanos até então inédita. É emblemático o caso de São Paulo que
se tornaria a maior cidade do país ainda no início do século XX, que:
Ao receber milhares de novos moradores, a cidade passou a exigir transportes rápidos pois as distâncias passaram a ser medidas em quilômetros, os chafarizes deixaram de dar conta do consumo, aumento o risco da contaminação da água e o esgoto sem destino certo tornou-se o principal inimigo da saúde pública (BONDUKI, 2010, 18).
47
As redes de serviços públicos não acompanhavam a demanda crescente da
população, e nem todos tinham condições de pagar pelos serviços então fornecidos.
O déficit de moradia também crescia na medida em que a cidade se expandia, já
que as fábricas passam a demandar cada vez mais mão de obra. O resultado é o
aumento do preço de moradias, seja para aquisição seja por meio de aluguéis, muito
embora haja forte impulso na produção e moradia urbana.
O resultado disso são os primeiros sinais de segregação espacial na cidade.
O alto custo da moradia, aliado ao fato de que o principal público a demandar por
moradias eram operários que não tinham condições de pagar altos valores, criam a
situação de inserção no espectro urbano por meio de invasões, ocupação de áreas
perigosas ou insalubres e a construção de moradias precárias.
Nesse mesmo período, o processo de urbanização é marcado pelo rápido crescimento das camadas populares urbanas. Embora parte dessa população ocupe localizações por meio de invasões – e estas, por vezes, estejam localizadas no espaço privilegiado produzido para a alta renda – o fato é que a grande maioria dessa população irá ocupar as periferias afastadas e subequipadas como forma de inserção no espaço urbano (BERÉ, 2005, 25).
A busca de atendimento da demanda do operariado nascente fez produzir
outro tipo de soluções para a moradia, sempre com o intuito de maior redução de
custo possível, já que os trabalhadores tinham poucas condições financeiras para
pagar. Nesse contexto era comum o surgimento de todo tipo de moradia
improvisada, com a divisão de prédios de sobrado em convertidos em cortiço por
meio de divisões e subdivisões dos primitivos cômodos – chamados casas de
cômodo -, os cortiços-pátios, caracterizados pela construção de pequenas casas
enfileiradas no aproveitamento de fundos de terrenos já aproveitados por outras
construções. Essas soluções para moradia trazem em comum o aproveitamento de
todo e qualquer espaço, o tamanho diminuto dos cômodos, a má-qualidade das
construções, e a falta de condições de salubridade, higiene mínima e saneamento
(BONDUKI, 2010, 23-24)
48
Ocorre que as habitações produzidas nessas condições de expansão
descontrolada da malha urbana, de demanda de moradias por trabalhadores mal
remunerados e e de falta de moradias populares que os atendessem, passaram a
representar perigo para as condições sanitárias da cidade como um todo, o que
obrigou o poder público a intervir para tentar controlar a produção e o consumo de
moradias.
Deve-se compreender a ação do Poder Público sob a tradição do Estado
Liberal e a sua compreensão dos limites do poder público, definidos através de uma
compreensão negativa da liberdade e da compreensão do Estado com um mal
necessário. Assim, o Estado deve ser mínimo para que não intervenha
abusivamente na vida dos indivíduos. Compreendido sob a ótica do Liberalismo
clássico, o Estado tem três grandes funções: a) a defesa da sociedade contra os
inimigos externos; b) a proteção de todo indivíduo das ofensas que a ele possam
dirigir os outros indivíduos; c) o provimento das obras públicas que não poderiam ser
executadas se confiadas à iniciativa privada (BOBBIO, 2000, 23).
Isso posto, mas considerando que a situação chegou em um nível de
calamidade pública, tornou-se forçosa a atuação do Estado:
Na habitação, porém, o Estado foi obrigado a atuar de forma mais vigorosa. A (ir)racionalidade da produção capitalista dos edifícios, o loteamento indiscriminado e a precariedade dos serviços de água e esgoto, a cargo de empresas privadas, entre outros, passaram a constituir séria ameaça à saúde pública. Por isso, o controle estatal da produção do espaço urbano não só foi aceito como também reivindicado, ainda que predominassem as concepções liberais (BONDUKI, 2010, 27).
Mas a solução não passava por politicas públicas com o escopo de suprir ou
pelo menos reduzir as demandas por moradia em condições adequadas. No caso
paulistano, segundo BONDUKI, o poder público agiu em três frentes diferentes: a) o
controle sanitário das habitações; b) a da legislação e do código de posturas; e c) a
da participação direta em boras de saneamento das baixadas, urbanização da área
central e implantação de rede de água e esgoto. As cidades e moradias eram
49
identificadas como causas de doenças que só poderiam ser extirpadas por meio da
regulação do espaço urbano. A solução passa necessariamente pela imposição de
exigência sanitária e mesmo de demolição aos cortiços, especialmente aqueles
próximos a áreas ocupadas também por bairros de classe média e classe alta, e de
regiões centrais (BONDUKI, 2010, 33).
No Rio de Janeiro, motivado pelas mesmas circunstâncias e por outras, o
fenômeno se repetia. A transformação da cidade em capital da República, a
decadência da cafeicultura no Vale do Paraíba, a abolição da escravatura e o afluxo
de ex-escravos, bem o afluxo de imigrantes e a industrialização que despontava
provocam aumento significativo da população urbana e a demanda por moradias e
serviços públicos básicos que a cidade era incapaz de atender. As soluções para a
moradia encontradas eram as mesmas de São Paulo:
Durante a segunda metade desse século, o Rio sofre com o crescimento populacional, a crise habitacional, os surtos epidêmicos, o aumento da circulação de mercadorias no porto e em suas ruas estreitas e congestionadas. Além disso, no centro, encontravam-se cortiços, casas de cômodos, pequenas oficinas artesanais, escritórios de grandes companhias, casas de comércio, prédios públicos, bancos, entre outros. Benchimol chega à conclusão de que essa utilização do espaço já não atendia aos interesses dos capitalistas estrangeiros e brasileiros, nem aos do Estado republicano. Sendo assim, todos esses fatores em conjunto influenciaram, com maior ou menor intensidade, a realização das reformas (MIYASAKA, 2005, 2).
Esse período de reformas urbanas acontecidas no Rio de Janeiro também
conhecidas como período do “bota-abaixo” coincide com o aparecimento e
crescimento dos bairros suburbanos e o surgimento das primeiras favelas, com a
ocupação dos morros, como estratégia de sobrevivência daqueles que não tinham
condições econômicas para se mudarem para outras regiões, como as suburbanas
(MIYASAKA, 2005, 4).
As reformas urbanas, conforme MARICATO, vem num contexto de uma
mentalidade republicana, no sentido de legitimar o país e seu novo regime perante
os países capitalistas centrais construindo uma nova fachada urbana que buscasse
simbolizar valores como ordem, estabilidade e progresso e ao mesmo tempo atrair
50
capitais externos para a expansão do café (2010, 28). Para recuperar a cidade e
saneá-la das epidemias crescentes o então presidente da república Rodrigues Alves
nomeia como prefeito do distrito federal o engenheiro Francisco Pereira Passos, que
dá início as reformas urbanas, com a construção de novos edifícios, alargamento
das ruas, a abertura de novas avenidas e a modernização do porto do Rio.
O prefeito teve poderes ditatoriais (inconstitucionais à época) para
desapropriar, demolir, contratar, construir, sem a possibilidade de contestação por
parte de qualquer cidadão que se sentisse atingido. Foram construídos 120 novos
grandes edifícios no lugar de 590 prédios velhos em apenas 20 meses. As famílias
pobres eram despejadas sem complacência dos cortiços ou “cabeças-de-porcos”
(casas cujos cômodos eram repartidos por várias famílias) localizados em áreas
centrais (MARICATO, 2010, 28).
A população pobre foi sistematicamente expulsa das localidades centrais e
dos cortiços para áreas mais distantes e menos valorizadas, os morros. Justificando-
se nas preocupações higienistas e com a saúde pública, especialmente nos bairros
pobres onde se verificava uma relação direta entre as péssimas condições de
higiene e saneamento com as doenças que então se abatiam sobre a cidade, as
intervenções urbanas terminavam por expulsar as populações mais pobres das
áreas centrais da cidade que como alternativa procuravam áreas pouco atrativas,
como os subúrbios afastados e os morros. Estudiosos do episódio, como a arquiteta
LILIAN VAZ, afirmam que é até difícil estipular precisamente os efeitos das
demolições ocorridas no “bota-abaixo”. Embora se tenha notícia da quantidade de
prédios demolidos e das pessoas retiradas da área central, o efeito multiplicador
dessa ação dificilmente pode ser calculado. Muitas habitações populares que não
foram demolidas pelo Estado, provavelmente desapareceram em razão da
valorização das áreas ao redor trazida pela reforma urbana (SERAFIM, apud VAZ,
2012, 2).
As reformas urbanas implementadas no Rio de Janeiro, terminaram por se
repetir em diversas outras cidades do país, como Curitiba, Porto Alegre, Santos,
Manaus e Belém, sempre combinando saneamento e embelezamento com
segregação territorial da população (MARICATO, 2010, 29). Uma reforma urbana
51
voltada para a estética e embelezamento, para a higiene e saneamento, que
simplesmente ignorou as pessoas menos favorecidas que se encontravam em seu
caminho e para as quais a moradia já era um problema, criando mais segregação
territorial e agravando ainda mais o problema da moradia no pais.
É no final do século XIX e início do século XX que surgem as primeiras
preocupações com um planejamento urbano no Brasil. No entanto, um planejamento
voltado para o higienismo e o embelezamento, sem qualquer preocupação social e
que ao estabelecer regras, restringiam ainda mais a possibilidade das camadas mais
pobres de terem acesso ao solo urbano e à moradia:
A implantação de uma complexa legislação urbanística, que estabelecia normas extremamente rígidas para a construção de edifícios e para as possibilidades de uso e ocupação do solo. Com isso, saia privilegiado o mercado imobiliário, capaz de respeitar tais regras ou de dobrá-las graças a sua proximidade com o Poder Público e seu poder financeiro, e prejudicava-se definitivamente a população mais pobre, incapaz de responder às duras exigências legais. Para construir, seria necessário ter a documentação da posse da terra, dominar o aparato técnico-jurídico do desenho e da aprovação de plantar, e respeitar as diretrizes legais sanitárias e a ocupação e uso do solo, que muitas vezes impunham regras que só podiam ser aplicadas nos terrenos mais caros.
Os Códigos de Posturas de São Paulo e do Rio, ainda no final do século XIX, já proibiam, por exemplo, os cortiços nas áreas urbanas centrais, e determinavam recuos para as construções que só podiam ser aplicados em lotes de grande área restringindo assim por meio da lei a ocorrência de terrenos pequenos e mais baratos.(FERREIRA, 2005, 8)
Assim, as primeiras reformas urbanas não tinham qualquer preocupação
social. Destinavam-se a embelezar as cidades, preocupavam-se com as áreas de
domínio público, com higiene e saneamento criando segregação espacial e dividindo
a cidade em duas. A cidade visível e a cidade invisível, ao menos aos olhos do
poder público. Se a moradia já era uma questão social preocupante, permanecia
ignorada pelo poder público. Este, pelo contrário, não só abandonava as populações
urbanas à própria sorte, como também, ao realizar suas reformas urbanas que
interessavam às classes mais privilegiadas, criava obstáculos ainda maiores para os
mais pobres.
52
1.2.4. – A industrialização na Era Vargas e a política de moradias nos anos
subsequentes.
A partir de 1930 o processo de crescimento da população brasileira se
acelera e tem-se um processo de urbanização cada vez maior, especialmente
porque a indústria, incipiente no país até a República Velha, passa a ser incentivada
após o embate de forças ocorrido na Revolução de 30, do qual a burguesia
agroexportadora sai enfraquecida. Enfraquecida mas não derrotada, pois muito
embora perdesse a hegemonia, a base fundiária agrária não se alteraria e o trabalho
rural permaneceria sem ser regulamentado.
A era Vargas a partir de 1930, instituiu no país um novo clima político, e a
emergência na Europa do Estado de Bem-Estar Social dá ímpeto à tentativa, no
Brasil de construção de uma nação com um Estado forte e um mercado de consumo
interno mais significativo. O Estado passou então a intervir diretamente na promoção
da industrialização, através de subsídios à indústria de bens de capital, do aço, do
petróleo, à construção de rodovias, etc. A burguesia agroexportadora perdia sua
hegemonia, para dar lugar a um Estado populista que, entretanto, pouparia seus
interesses, evitando uma reforma agrária e mantendo intacta a base fundiária do
país (FERREIRA, 2005, 11).
O processo de industrialização combinou-se com um processo de
urbanização, através do deslocamento cada vez maior de população do campo para
as cidades do centro-sul, especialmente São Paulo. Até esse período, embora o
Brasil já experimentasse há algum tempo taxas de crescimento populacional, o país
tinha ainda poucas cidades de porte significativo e a grande maioria delas
concentradas ao longo do litoral. Essa situação se altera iniciando-se um processo
de interiorização populacional que concentra-se especialmente no centro-sul do
país, com as cidades que surgiam ou ganhavam importância crescendo em taxas
bastante altas.
53
Dessa forma, se em 1930, o Brasil ainda contava com 70% dos seus
habitantes vivendo em zonas rurais e o restante nas cidades, em 1980, 50 anos
depois, completava-se uma inversão, com 70% da população brasileira vivendo em
zonas urbanas (GOMES, 2013, 59). O crescimento urbano se opera principalmente
em razão das altas taxas de migração interna no país.
Além disso, no mesmo período, o Brasil experimenta um aumento nas taxas
de crescimento populacional inédito até então, crescendo inclusive em níveis
superiores ao dos países europeus. De 1930 até 1960, o país praticamente duplica o
seu contingente populacional (GOMES, 2013, 49). Essas taxas se manterão altas
durante o restante de todo o século XX, de forma que a população brasileira
multiplica-se por dez do início ao fim do século XX. Embora o país tenha um número
cada vez menos significativo de entrada de imigrantes, as taxas de natalidade
começam a se estabilizar, fato que se combina com quedas cada vez mais
significativas das taxas de mortalidade.
Essas duas situações, que vêm a impulsionar o crescimento dos centros
urbanos, fazem crescer ainda mais o déficit habitacional das cidades. Os problemas
sociais começam a surgir, por meio de protestos dos trabalhadores e influência do
próprio meio empresarial, em razão da pressão que os preços dos aluguéis
exerciam sobre os salários no sentido de forçar o seu aumento. Torna-se patente a
incapacidade da iniciativa privada em atender ao déficit habitacional. Além disso, a
visão do Estado de Bem-Estar Social na Europa bem como das ameaças do
fascismo e do socialismo, criam um clima amplamente favorável ao reconhecimento
de condições básicas de sobrevivência aos trabalhadores. Nesse contexto e
reconhecendo a incapacidade da iniciativa privada de atendimento ao mercado no
que se refere às demandas por moradia, o Estado, através do presidente Getúlio
Vargas, assume então essa função sem, no entanto, criar uma política capaz de
atender a demanda habitacional.
Foi nesse contexto que em 1942, o governo interferiu no mercado de locação
congelando todos os aluguéis por meio da Lei do Inquilinato (Decreto-Lei nº 4.565,
de 11 de Agosto de 1942). Segundo BONDUKI,
54
A medida fora adotada em vários países europeus e latino-americanos desde a Primeira Guerra (na França, por exemplo, os aluguéis permaneceram congelados por décadas), e era um duro golpe contra os proprietários de casas de aluguel. A justificativa do governo ao promulgar a lei era que o país vivia uma situação de emergência devido à Segunda Guerra. Com isso, ele conseguiu bloquear as reações negativas (BONDUKI, 2010, 81).
A Lei do inquilinato, a despeito dos debates apaixonados que despertava,
manteve os aluguéis congelados por mais de duas décadas (até 1964) e embora
tivesse algum efeito benéfico a curto prazo, a longo prazo contribuiu para agravar
ainda mais o problema do déficit de moradia.
A produção rentista foi totalmente desestimulada com o congelamento dos
aluguéis ficando basicamente a cargo do Estado e dos próprios trabalhadores o
encargo de produzir suas moradias.
Conforme BONDUKI,
Esse processo ocorreu na década de 40, em meio a uma das mais graves e dramáticas crises de moradia da história do país, provocando o surgimento de formas alternativas de produção de moradias, baseadas no auto-empreendimento em favelas, loteamentos periféricos e outros assentamentos informais. O período foi marcado pela carência de moradias produzidas pelos rentistas tradicionais, atraídos pelas novas oportunidades de investimentos geradas pelas transformações econômicas entra em curso e desestimulados pelo congelamento dos aluguéis instituído pela Lei do Inquilinato.
Assim, a lei do inquilinato é crucial para a consolidação da sub-habitação no
país. Com a iniciativa privada desinteressada pelo mercado de produção de
moradias, a produção de moradia de aluguel deixa de ser alternativa para solução
do déficit habitacional já dramático, contribuindo além de tudo para agravá-lo. Resta
ao Estado e à própria população o provimento de habitações. Com a ineficiência do
Estado em produção de moradias para atender a demanda a população recorre a
alternativas habitacionais precárias, ilegais ou excluídas do mercado imobiliário
formal, como a favela, os loteamentos clandestinos e sem infraestrutura e as
invasões, com o proprietário recorrendo à chamada Autoconstrução. O proprietário
55
“adquire” o terreno, sem nenhum apoio técnico gerencia a obra, e ao final, constrói
sua casa. Tal modelo de provisão de moradias para a população mais pobre se
consolidaria no Brasil nas décadas seguintes.
Também MARICATO, ao analisar que a forma com que o Estado conduziu a
questão entende o acontecido como um verdadeiro ardil, posto que se deu um lado
se desestimulou à moradia de aluguel com um discurso de exaltação das virtudes da
casa própria, esta, por sua vez, não era oferecida nem pelo Estado, nem pelo
mercado (2010, 37).
O Estado de seu lado, procurou promover uma política social de habitação,
cujos resultados sempre foram modestos. Primeiramente, por meio dos IAP‟s. Os
IAP‟s ou Institutos de Aposentadorias e Pensões eram gestores de fundos de
aposentadorias de diversas categorias profissionais custeados pelo Estado,
empregadores e empregados criados a partir da década de 30. Por força do Decreto
19.949 de 17 de dezembro de 1930, aos IAP‟s foi autorizados a utilização dos
recursos dos fundos de previdência para habitação social e a partir do Decreto
1.749, em 1937, estabeleceu se que metade dos recursos deveria ser destinada ao
financiamento de construções. Como todos os fundos de pensão, os IAP‟s foram
altamente superavitários nos primeiros anos de contribuição, quando os
desembolsos não eram relevantes e propiciaram vultosos recursos ao governo para
a produção de moradias. No entanto os resultados produzidos foram modestos.
Conforme BONDUKI
Embora tenham sido as primeiras instituições públicas de envergadura a tratar da questão habitacional, os Institutos de Aposentadoria e Pensões – criados nos anos 30 para cada categoria profissional – sempre relegaram essa atividade a um segundo plano em relação às suas finalidades precípuas, isto é, proporcionar benefícios previdenciários (aposentadorias e pensões) e assistência médica (2010, 101).
MARICATO informa que nos 27 anos de produção de moradias pelos IAP‟s
(de 1937 a 1964), os institutos conseguiriam financiar 140 mil moradias, a maior
parte destinada ao aluguel (MARICATO, 2010, 36). Sem dúvidas, resultados muito
56
modestos, especialmente se considerarmos o processo contínuo de crescimento
populacional e urbanização, bem como o desinteresse da iniciativa privada pela
produção de moradias em razão do congelamento de aluguéis.
Na década de 1960, o Estado institui dos grandes mecanismos financeiros
para captação de recursos para habitação social: O Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço – FGTS, criado pelo Decreto No. 5107 de 13 de dezembro de 1966 e o
Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos –SBPE, constituindo o Sistema
Financeiro de Habitação. No caso do SBPE, os recursos das cadernetas de
poupança e demais títulos imobiliários eram captados pelos agentes financeiros do
SFH e serviam para financiar investimentos habitacionais propostos por
empreendedores e construtoras. Recebido o financiamento, o empreendedor
responsabilizava-se pela venda das habitações aos consumidores e esses, por sua
vez, responsabilizavam-se pelo pagamento do empréstimos junto às instituições
financeiras, tornando-se mutuários do Sistema (SANTOS, 1999, 11).
Já os recursos do FGTS, geridos pelo BNH – Banco Nacional de Habitação,
eram destinados à produção de habitação social prioritariamente pelas Companhias
de Habitação (COHAB‟s), sociedades de economia mista sob controle acionário dos
governos estaduais ou municipais que obtinham os financiamentos do BNH
mediante a apresentação de projetos técnicos compatíveis com as orientações do
banco e supervisionavam a construção de moradias destinadas as camadas mais
pobres da população (SANTOS, 1999, 11).
É consensual que no período do regime militar, o Sistema Financeiro de
Habitação teve alcance bastante significativo, ao contrário do que ocorreu com os
IAP‟s. No entanto, tanto um quanto o outro não conseguiram atender as populações
mais pobres, de forma que os recursos do aportados no sistema acabaram por
financiar a produção e habitação para as classes médias emergentes e as classes
altas, que tinham condições de prestar garantias e pagar as prestações devolvendo
os recursos ao Sistema. Com efeito, somente 33,5% das unidades habitacionais
financiadas pelo SFH ao longo da existência do BNH foram destinadas à habitação
de interesse social (SANTOS, 1999, 17).
57
Outra crítica colocada por MARICATO refere-se ao desprezo pelo
desenvolvimento urbano:
Muitos conjuntos habitacionais constituídos em todo o país trouxeram mais problemas para o desenvolvimento urbano do que soluções. A má localização na periferia, distante das áreas já urbanizadas, isolando e exilando seus moradores, foi mais regra do que exceção (MARICATO, 2010, 51).
No final do regime militar na década de 1980, a política de habitação baseada
no Sistema Financeiro de Habitação entra em crise, em razão da falência do próprio
modelo econômico adotado pelo regime. Recessão, inflação, desemprego e queda
dos níveis salariais se tornaram constantes e vieram a refletir sobre o SFH. O rombo
provocado pela inadimplência e a baixa taxa de retorno dos investimentos
habitacionais, além da queda na arrecadação do FGTS, foram as consequências da
crise econômica sobre o Sistema. Notórios também ao longo dos anos, os
escândalos de corrupção envolvendo a gestão de recursos do FGTS.
Conforme MARICATO, “a queda pronunciada dos número de moradias de
aluguel se dá, concomitantemente ao aumento da população moradora de favelas.
Frequentemente, nem mesmo o salário da indústria moderna (automobilística) cobre
o custo da moradia no Brasil da atualidade” (2010, 50).
Da década de 1980 no final do século XX a meados da primeira década do
século XXI, o processo de crescimento populacional e urbanização se manteve,
muito embora desde a extinção do BNH o país não tivesse uma política duradoura
organizada e significativa de produção de habitação. Conforme BONDUKI:
Com o fim do BNH, perdeu-se uma estrutura de caráter nacional que, mal ou bem, tinha acumulado enorme experiência na área, formando técnicos e financiando a maior produção habitacional da história do país. A política habitacional do regime militar podia ser equivocada, como já ressaltamos, mas era articulada e coerente. Na redemocratização, ao invés de uma transformação, ocorreu um esvaziamento e pode-se dizer que deixou propriamente de existir uma política nacional de habitação. Entre a extinção do BNH (1986) e a criação do Ministério das Cidades (2003), o setor do governo federal responsável pela gestão da política habitacional esteve subordinado a
58
sete ministérios ou estruturas administrativas diferentes, caracterizando descontinuidade e ausência de estratégia para enfrentar o problema. (2014, 295)
A despeito das críticas que possam ser feitas ao BNH e ao sistema em que
ele se inseria, sua importância é indiscutível, pois foi somente neste período que de
fato o Brasil teve uma Política Nacional de Habitação. Pela primeira vez o país teve
uma estratégia institucional clara e articulada na questão da habitação e capaz de
gerar resultados significativos, como visto.
Embora o número de novas moradias tenha sido significativo no período de
existência do BNH, ele sempre esteve muito aquém das necessidades geradas pelo
processo de urbanização pelo qual o país passava. Isso porque o Sistema
Financeiro de Habitação voltou-se exclusivamente para a produção da casa própria,
construída pelo sistema forma de construção civil, e o fenômeno da urbanização
atingiu proporção de uma magnitude tal que seria irrazoável esperar que o Sistema
Financeiro de Habitação pudesse gerar a quantidade de unidades necessárias para
suprir a demanda.
Além disso, não permitindo processos alternativos de produção de moradias
capazes de reduzir o custo e por adotar critérios de financiamento bancários, o
Sistema terminou por excluir a maior parte da população de baixa renda da política
habitacional. O resultado é o descrito na primeira parte deste trabalho: a grande
maioria da população, sem apoio do poder público, termina por recorrer à
autoconstrução em assentamentos irregulares, com serviços públicos precários e em
geral distante das áreas urbanizadas.
59
1.2.5 – O tratamento da moradia na Nova República e anos recentes.
Com o fim do BNH, perdeu-se a estrutura de caráter nacional que até então
responsável por uma Política Nacional de Habitação. A política de habitação
desarticulou-se deixando de existir uma estrutura institucional para enfrentar a
questão da habitação.
A Caixa Econômica Federal torna-se o agente financeiro do Sistema
Financeiro de Habitação, absorvendo algumas atribuições do extinto BNH além de
seu pessoal e estruturas, contribuindo para consolidar ainda mais, uma visão
bancária do financiamento habitacional.
O rombo gerado pela política equivocada adotada nos últimos anos do regime
militar levou a uma redução das aplicações em habitação e o financiamento
habitacional se tornou escasso, ao mesmo tempo em que os problemas de moradia
da população urbana se mantinham ascendentes.
Não havendo mais uma articulação em nível nacional, Municípios, Estados,
além da própria união lançaram, de forma fragmentária, programas habitacionais
alternativos, financiados especialmente com recursos orçamentários, como forma de
suprir a demanda crescente e o vazio deixado pelo BNH e pelo SFH, já que
inclusive, de 1991 a 1995 no governo Collor, paralisou-se completamente o
financiamento habitacional com recursos do FGTS (BONDUKI, 2014, 296).
Essa fragmentação da política habitacional foi inclusive possibilitada pela
Constituição Federal de 1988, que tornou a produção de habitação competência
concorrente para União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23, IX).
BONDUKI relata que
Com a democratização e o crescimento da mobilização dos movimentos por moradias, ampliou-se a pressão por uma maior participação do poder local na questão da habitação, pois, ele se tornou o principal interlocutor das organizações populares e o responsável pelo equacionamento das demandas
60
sociais, estando em contado direito com os problemas da população carente (BONDUKI, 2014, 296).
Tudo isso veio a contribuir para a descentralização dos programas
habitacionais. Aliados a diversas experiências inovadoras, essas situações terminam
por contribuir para a criação de uma nova postura para o enfrentamento do
problema habitacional, afastando-se da concepção rígida adotada durante a
existência do BNH, centrada principalmente no financiamento direito da produção de
grandes conjuntos habitacionais e de gestão centralizada, para processos
alternativos, em que se faziam presentes as ideias de flexibilidade, diversidade e
reconhecimento da cidade real.
No entanto, isso não foi o suficiente para a impulsionar uma nova política
nacional de habitação.
Na segunda metade da década de 90, a política macroeconômica se centra
no combate a infração, e, por isso, passava necessariamente pela restrição ao
crédito e ao gasto público, o que impede o desenvolvimento de programas mais
amplos para a questão habitacional. O próprio crédito imobiliário sofre restrições, por
ser considerado inflacionário.
A partir da década de 2000 esse quadro parece se alterar. Em 2001, tem-se a
aprovação da lei 10.257, o Estatuto das Cidades, que tem entre seus principais
méritos além da instrumentalização de uma visão política urbana conforme a
Constituição Federal de 1988, a criação de novos instrumentos jurídicos capazes de
viabilizar a regularização fundiária, e permitir o controle e uso do solo urbano de
forma a combater a especulação imobiliária e fazer cumprir a função social da
propriedade. Deve-se salientar contudo que o alcance do Estatuto das Cidades é
limitado, uma vez que os instrumentos de política urbana que ele regulamenta, para
que possam ser utilizados, dependem de previsão nos Planos Diretores criados no
âmbito de cada município.
Em 2003, tem-se a criação do Ministério das Cidades, com o objetivo de
formular e gerir em nível nacional uma política integrada de desenvolvimento
61
urbano, que desde o fim do BNH recebia um tratamento fragmentado pelos diversos
entes federativos e era relegada a uma posição secundária. Nesse sentido relata
BONDUKI que
O ministério das cidades foi criado com o caráter de órgão coordenador, gestor e formulador da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, envolvendo, de forma integrada, as políticas ligadas à cidade, ocupando um vazio institucional e resgatando para si a coordenação política e técnica das questões urbanas. Coube-lhe, ainda, a incumbência de articular e qualificar os diferentes entes federativos na montagem de uma estratégia nacional para equacionar os problemas urbanos das cidades brasileiras, alavancando mudanças com o apoio dos instrumentos legais estabelecidos pelo Estatuto das Cidades (BONDUKI, 2008, 96).
A partir de 2005, tem-se mudanças na política habitacional, tanto no âmbito
do financiamento tradicional como no de habitação de interesse social. Houve uma
ampliação dos investimentos e do subsídio, e um enfoque maior na população de
baixa renda. De outro lado, o governo tomou várias medidas para estimular o setor
da construção civil e o crédito imobiliário, o que permitiu inclusive que o setor
prosperasse e fosse uma das alavancas da economia nacional na década. Merece
menção o programa Minha Casa Minha Vida do Governo Federal, criado pela Lei
No. 11.977 de julho de 2009, com o objetivo de promover a produção e a aquisição
de novas unidades habitacionais e promover a requalificação de imóveis urbanos de
famílias com renda mensal de até R$ 5.000,00 (cinco mil reais).
Mencione-se ainda o PAC, Programa de Aceleração do crescimento a partir
de 2007, um programa de investimentos em diferentes áreas, especialmente
infraestrutura para a produção (portos, rodovias, aeroportos, ect). Parte dos recursos
foram destinados ao setor de habitação e saneamento, contemplando-se inclusive
recursos para a urbanização de assentamentos precários.
São mudanças cujos efeitos ainda não podem ser exatamente medidos uma
vez que são recentes e boa parte das ações nos programas mencionados ainda
estão acontecendo. É cedo para dizer qual o alcance que as medidas tomadas nos
últimos anos como solução ao problema habitacional do país. No entanto, é clara a
62
mudança na política habitacional do país na última década, especialmente com a
busca da produção de habitações depois de mais de 20 anos de estagnação.
Algumas iniciativas vem acontecendo com o objetivo de resolver o problema
do acesso a terra urbana, como por exemplo o Programa Papel Passado, que tem
por objetivo apoiar estados, municípios, associações civis sem fins lucrativos e
defensorias públicas em projetos de regularização fundiária sustentável de
assentamentos informais em áreas urbanas, prevendo tanto o auxílio econômico
com o aporte de recursos, como iniciativas de capacitação para gestores públicos e
agentes sociais envolvidos.
Outra medida que merece menção é o financiamento de ações de
Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários (UAP), no
âmbito do FNHIS – Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, que busca
auxiliar os estados, distrito federal e municípios na consecução de ações integradas
de habitação, saneamento ambiental e inclusão social que resultem na regularização
fundiária de áreas precárias.
Como descrito anteriormente, um dos pilares do problema do acesso à
moradia no país e do qual a formação das favelas e loteamentos irregulares é um
sintoma, é o problema do acesso à terra urbana, devidamente provida de serviços e
infraestrutura. A forma com que a terra urbana vem sendo tratada no país ao longo
da história vem provocando cada vez mais a sua concentração e cada vez mais o
seu encarecimento, forçando as pessoas desprovidas de recursos à ocupação de
lugares cada vez mais precários, perigosos e ilegais.
Nesse sentido, é a Constituição de 1988 que representa um marco
importante, pois além de prever um capítulo exclusivo dedicado à política urbana, dá
novo tratamento à propriedade, inclusive à urbana.
A Constituição consagra a tese, que tem bases principalmente na doutrina
italiana, na qual se tem uma noção pluralista do instituto, de forma que a
propriedade não constitui uma instituição única, mas várias instituições
diferenciadas, em correspondência com os diversos tipos de bens e seus titulares.
Assim o direito de propriedade além de ser garantido de forma geral, como ocorre no
63
art. 5, o texto constitucional também se refere a vários estatutos proprietários, como
ocorre com a propriedade urbana (art. 182, § 2.º) e a propriedade rural (art. 5, XXVI
e arts. 184, 185, 186), de forma que se pode falar não em “propriedade” mas em
“propriedades”. Não é difícil de compreender tal situação, se levarmos em
consideração que a propriedade deixou de ser uma instituição do Direito Civil, dado
que há muito se entende que seus efeitos extrapolam as relações meramente
intersubjetivas e que, a determinação do conteúdo da propriedade, dependerá de
centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da
relação jurídica de propriedade (TEPEDINO, 2004, 317). Conforme assevera
RICARDO LIRA,
a propriedade assegurada em nossa Constituição como um direito individual (art. 153, § 22), cuja função social é declarada como um dos princípios da Justiça Social (art. 160, III), apresenta-se como instituição diferenciada, no sentido de poder variar de conteúdo, conforme o tipo de bem que lhe serve de objeto e a natureza do titular, exatamente por ser uma função social e um dos instrumentos da Justiça Social.(LIRA, 1997, 161)
Além disso, a Constituição Federal de 1988 prevê a função social da
propriedade ao lado da garantia da propriedade privada como direito fundamental
(art. 5, XXII e XXIII), o que permite dizer que a função social da propriedade passa a
ser concebida não como um elemento externo à propriedade, mas sim como um
elemento componente, na medida em que é intrínseco a propriedade, um elemento
qualificador, e que vai trazer transformações ao conteúdo e características da
propriedade, de forma que ela conforme enquanto direito subjetivo interesses
individuais e da coletividade, e mais ainda, funciona como elemento validante, uma
vez que o texto constitucional estabelece como circunstância sujeitadora do direito
de propriedade, o atendimento a essa função social. JOSÉ AFONSO DA SILVA
chega à mesma conclusão, na medida em que afirma que “...não há como escapar
ao sentido de que só se garante o direito de propriedade que atenda sua função
social”(SILVA, 2005, 270).
Além disso, tem-se a propriedade novamente referida nos princípios gerais da
atividade econômica (art. 170, II e III). A previsão da propriedade como princípio da
64
ordem econômica, vem a fortalecer a ideia há muito vigente de que a propriedade
deixou de ser apenas um direito individual e uma instituição do Direito Privado. Mais
do que isso, a propriedade privada e sua função social se transformam em uma
instituição do direito econômico, e sua inserção naquele conjunto de princípios, faz
com que ela constitua não só um alicerce basilar da ordem econômica, mas também
um fim a ser perseguido, por meio da implementação dos seus ditames econômicos.
Sobre a inserção da propriedade entre os princípios da ordem econômica, José
Afonso da Silva diz que:
Os conservadores da constituinte, contudo, insistiram para que a propriedade privada figurasse como um dos princípios da ordem econômica, sem perceber que, com isso, estavam relativizando o conceito de propriedade, porque, submetendo-o aos ditames da justiça social, de sorte que se pode dizer que ela só é legitima enquanto cumpra sua função dirigida à justiça social (2005, 812).
Assim, a Constituição Federal representou uma quebra de paradigmas e um
primeiro passo necessário para a alteração da visão tradicional da propriedade, que
permeia o direito e a cultura brasileira desde a colonização, para que se promova o
acesso à terra, à terra urbana e com isso se viabilize o acesso à habitação. Saliente-
se, no entanto, que, a Constituição Federal, no caso da propriedade urbana, delega
aos Planos Diretores Municipais a conformação final do que seja a função social da
propriedade, por força do art. 182, § 2º3.
Dessa forma, diferentemente do que acontece com a propriedade rural, a
concreção da função social da propriedade no âmbito urbano, não tem seus
requisitos estabelecidos de forma definitiva pela Constituição Federal. A função
social da propriedade urbana – conforme se depreende do próprio caput do art. 182
- vincula a propriedade urbana ao bem-estar dos habitantes da cidade e à realização
das funções sociais da cidade: habitação, condições adequadas de trabalho,
3 Dispõe o art. 182: A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. (...) § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
65
recreação e a circulação, mas é o plano diretor – cuja construção exige-se
participativa -, ao ordenar o espaço urbano local, que estabelecerá os requisitos
para o cumprimento da função social da propriedade.
Se por um lado isso permite construir um conceito de função social da
propriedade com participação social e que leve em conta a diversidade e as
realidades locais, por outro lado, a efetividade da função social da propriedade
urbana depende em grande parte da capacidade dos municípios de materializarem
seus planos diretores e que deem um tratamento adequado à questão.
Assim, como visto, o problema do déficit habitacional no Brasil tem raízes
históricas, fundadas na estrutura fundiária do país, estabelecida após a
independência, mas que encontra raízes coloniais. A forma de apropriação da terra
e os processos de produção econômica interferiram e interferem tanto na dinâmica
da formação das cidades brasileiras como nas formas de acesso ou na
impossibilidade de acesso à terra urbana.
Com o processo de expansão das cidades através da urbanização, surge o
déficit de moradia, que vai provocar problemas sociais graves já no início do século,
sem que o Estado tome medidas satisfatórias e eficientes para a solução do déficit
habitacional.
De fato, até então, nunca se tratou a habitação como objeto de políticas
públicas. A moradia apresentava-se como um problema acessório dentro de
problemas de higiene, saneamento, ou mesmo instabilidade social provocada pela
insatisfação social das camadas menos favorecidas da população. Se
considerarmos a moradia como função pública, seus contornos somente começam a
ser definidos a partir da década de 1940 do século XX, quando o Estado brasileiro
reconhecendo a incapacidade da iniciativa privada de sozinha resolver o déficit
habitacional assume primordialmente tal papel.
No entanto, mesmo reconhecendo a obrigação de prover moradias à
população como função pública, as políticas daí surgidas são por vezes insipientes,
ineficientes ou desorganizadas, enquanto que o processo de urbanização mantem-
se exponencialmente ao longo de todo o século XX, inflando as cidades brasileiras e
66
obrigando à população a buscar alternativas para moradia, que se darão à margem
da lei, pela própria falta de recursos ou opções de acesso à terra pelas camadas
menos favorecidas.
Somente no fim do século XX é que parecem se criar as condições
necessárias para a mudança desse quadro, com a promulgação da Constituição de
1988, que com sua ideologia solidarista e voltada para a justiça social permite a
reformulação das bases do instituto da propriedade e estabelecendo ampla gama de
direitos fundamentais ao cidadão.
Na primeira década do século XXI tem-se algumas medidas governamentais
que revelam uma tendência de maior empenho na solução da questão habitacional,
depois de anos de estagnação. No entanto ainda não é possível medir quais os
impactos reais essas medidas terão no quadro habitacional do país, considerando-
se o quadro histórico da formação da propriedade no Brasil e como a formação
dessa propriedade afetou a questão habitacional, além dos anos seguidos de
medidas governamentais equivocadas no trato da questão habitacional.
A seguir, passa-se a análise dos direitos fundamentais, com rápida remissão
à teoria dos direitos fundamentais e em especial do direito fundamental à moradia,
detalhando-se a construção e o seu significado enquanto direito fundamental,
especialmente diante do cenário da questão habitacional no Brasil. No mesmo
capítulo, também se analisará o direito fundamental ao meio ambiente e a proteção
de Áreas de Preservação Permanente, terminando assim a construção do cenário
de conflito que o presente trabalho se propõe à a analisar, quando da ocupação
dessas áreas por moradias.
67
2. - A CENTRALIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO.
2.1. - APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA GERAL DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS.
Para que se possa tratar apropriadamente dos temas da Moradia e do Meio
Ambiente e de eventual choque entre eles enquanto direitos fundamentais, mister
se faz a revisitação de alguns aspectos primordiais da Teoria Geral dos Direitos
Fundamentais.
A primeira grande questão se refere às imprecisões em torno dos conceitos
de Direitos Fundamentais e Direitos Humanos e na diferenciação entre eles.
Norberto BOBBIO já relata a dificuldade encontrada em torno da definição do que
sejam os “direitos do homem” (2004, 37). Muitos constitucionalistas também se
debruçam sobre a possibilidade de usar indistintamente os termos, Direitos
Fundamentais e Direitos do Homem.
BONAVIDES relata que os autores anglo-americanos e latinos utilizam com
maior frequência a expressão “direitos humanos” ou “direitos do homem”, enquanto
que o termo “direitos fundamentais” encontra destaque especificamente entre os
publicistas alemães (2004, 56). O termo “direitos fundamentais” seria assim usado
principalmente para designar as relações entre o indivíduo e o Estado, e os direitos
oponíveis que aquele tem em relação ao último.
Mas de fato, o que se pode perceber no constitucionalismo contemporâneo, é
que se tratam de expressões que expressam conceitos diferentes, muito embora em
alguns casos convergindo, quanto ao seu conteúdo. Conforme lição de
CANOTILHO:
As expressões direitos do homem e direitos fundamentais são frequentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para
68
todos os povos e em todos os tempos; direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intertemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta (1998, 259).
Partindo-se dessa definição dada pelo jurista português, observa-se que a
distinção entre direitos do homem ou direitos humanos só ganha importância com o
Constitucionalismo do final do século XVIII, com o processo de positivação de
direitos humanos nas constituições nacionais. Até então, a distinção não é
importante e provavelmente impossível.
Se ambas têm por objeto a proteção de direitos reconhecidos ao homem, é
somente com o Constitucionalismo moderno é que ganha importância a distinção,
posto que é a partir de então que ganham planos distintos.
Inegável, no entanto, a ligação de ambas as expressões e a importância
mútua que uma tem para com a outra. São na verdade as teorias desenvolvidas
acerca dos direitos de humanos que irão permitir o surgimento da teoria dos direitos
fundamentais. Um movimento que ainda hoje tem importância, dado inclusive a
influência da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 na maior parte
das Constituições do pós-guerra, como é o caso inclusive da Constituição da
República, de 1988.
Segundo o critério constitucional brasileiro, tratam-se os direitos humanos e
direitos fundamentais de normas jurídicas com as mesmas finalidades. A diferença
se situa no âmbito de proteção, se no plano internacional ou no plano interno. A
expressão “direitos humanos” se encontra consagrada no texto constitucional para
se referir aos tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil se fizer
signatário conforme seu uso (art. 4º, II; art. 5º, § 3º e art. 109, V-A e § 5º) enquanto
que os direitos fundamentais são os direitos humanos consagrados pelo texto
constitucional por encontrarem ali positivação de forma direta (Título II da
Constituição).
69
Essa distinção, em razão da própria sistemática adotada pela Constituição
Federal acaba também se confundindo em certa medida com a classificação de
direitos fundamentais em direitos formais e materiais.
Por um lado os Direitos fundamentais do ponto de vista formal, ou
formalmente materiais, são aqueles que estão previstos expressamente no texto
constitucional nessa condição. Por outro lado, têm-se os direitos fundamentais do
ponto de vista material, que são admitidos no ordenamento constitucional brasileiro,
por expressa autorização constitucional em razão do seu conteúdo. No direito
constitucional brasileiro, por força da permissão explícita que a própria constituição
faz, nos § 2º e § 3º do art. 5º, quanto aos tratados internacionais, especialmente aos
que versarem sobre direitos humanos, que conquanto sejam submetidos ao
processo formal previsto para alterações do texto constitucional, são considerados
Emendas Constitucionais, tem-se a justaposição entre os direitos fundamentais
materiais e os direitos humanos.
Mas não somente estes. A exemplo do que faz a IX Emenda à Constituição
Americana e a Constituição portuguesa, a Constituição também considera como
direitos fundamentais além dos expressamente previstos e dos recepcionados por
tratados internacionais outros, decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados. Isso implica dizer que além dos expressamente enumerados, dos tratados
internacionais incorporados ao ordenamento brasileiro nessa condição, serão
direitos fundamentais do ponto de vista material, aqueles que contenham decisões
fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade. Conforme a
posição de MIRANDA,
Com o conceito material de direitos fundamentais não se trata de direitos declarados, estabelecidos, atribuídos pelo legislador constituinte, pura e simplesmente; trata-se também dos resultantes da concepção de Constituição dominante, da ideia de Direito, do sentimento jurídico colectivo (conforme se entender, tendo em conta que estas expressões correspondem a correntes filosófico-jurídicas distintas. (2008, 12).
70
Assim, essa abertura do sistema constitucional torna indubitável a existência
ou, a possibilidade de existência, de outros direitos fundamentais que não aqueles
catalogados pela Constituição Federal, como direitos fundamentais implícitos no
texto constitucional, direitos fundamentais decorrentes e até mesmo direitos
constitucionais que se situem fora do texto constitucional.
Nesse sentido, o § 2º do art. 5 da Constituição Federal funciona como uma
espécie de norma geral inclusiva, que impõe a interpretação do conceito direitos
fundamentais e sua identificação, quando se trata de direitos materialmente
constitucionais, à Constituição como um todo, por ser esta, nas palavras de
BONAVIDES, uma expressão do “consenso social sobre os valores básicos” e os
seus princípios, cunhados naqueles valores, os critérios mediante o qual se
mensuram todos os conteúdos normativos do sistema (2004, 290).
2.1.1. – Antecedentes dos Direitos Fundamentais.
Embora os direitos fundamentais só surjam a partir do fim do século XVIII,
quando as teorias dos direitos humanos possibilitam o reconhecimento e positivação
de direitos inalienáveis do homem nos ordenamentos jurídicos nacionais, não se
pode negar que suas raízes estão plantadas em momentos anteriores da história.
Segundo MIRANDA,
somente há direitos fundamentais quando o Estado e a pessoa, a autoridade e a liberdade se distinguem e até, em maior ou menor medida, se contrapõem. Mas – por isso mesmo – não podem apreender-se senão como realidades que se postulam reciprocamente, se condicionam, interferem uma com a outra (2008, 16).
71
Assim, buscar as raízes dos direitos fundamentais remete à busca das raízes
do próprio constitucionalismo. Este começa a se delinear em 1215, quando os
barões ingleses, aproveitando-se da estrutura política frágil do rei João, conhecido
como João Sem Terra, o obrigaram a assinar a Magna Carta, jurando obedecê-la e
aceitando a limitação dos seus poderes em troca da sua lealdade. Antes desse
período, não há qualquer referência a direitos inalienáveis do homem, limitação do
poder do governante ou supremacia do indivíduo, algo que signifique de forma mais
sólida, raiz do que se trata por direito fundamental (VINCENT, 2012, 41 - 44). Ali
estão alguns marcos dos direitos e liberdades civis clássicos, como o devido
processo legal e a garantia de propriedade (SARLET, 2011, 41). Deve-se ressaltar,
contudo, que a limitação de poderes e o estabelecimento de direitos aos barões
ingleses, pouca relação guarda com os direitos fundamentais, posto que
estabelecidos como concessão a grupos determinados numa sociedade
extremamente desigual e estratificada.
Sendo a Magna Carta o primeiro movimento jurídico para o surgimento do
constitucionalismo moderno, no entanto, não pode-se deixar de considerar as
importantes contribuições que a Antiguidade legou através da filosofia grega e da
religião cristã, como justiça, liberdade e dignidade, que vieram a contribuir para a
formulação do conceito jusnaturalista de direitos inatos ao ser humano (MIRANDA,
2008, 20-22).
De suma importância também para o nascimento dos chamados Direitos
Fundamentais foi a Reforma Protestante e as guerras religiosas que se seguiram por
toda a Europa, que levaram à reivindicação e ao reconhecimento gradativo da
liberdade de opção religiosa e culto em diversos países da Europa, e contribuíram
para a laicização da teoria dos direitos naturais do homem. Como exemplo
emblemático desse movimento, pode-se citar a Inglaterra, cujos conflitos religiosos
contribuíram para o enfraquecimento do poder do monarca e o fortalecimento do
parlamento (SARLET, 2011, 42). Assim, a luta pela liberdade religiosa aparece como
pano de fundo para outras disputas que terminariam por permitir o surgimento de
outras liberdades, que não a religiosa.
72
A partir do século XVII, a concepção contratualista de sociedade ganha
importância e paulatinamente substitui a concepção teológica, bem como ganha
corpo a doutrina dos direitos naturais do indivíduo e limites ao poder do soberano,
como se depreende da obra de ROUSSEAU (2002, 42-43) e HOBBES (2004, 101-
102).
Como gênese do Constitucionalismo moderno e por consequência dos
direitos fundamentais, pois foi a partir daí que o estabelecimento de direitos e
liberdades passou a proliferar nos ordenamentos jurídicos nacionais, temos a
Declaração de Direitos do bom povo da Virgínia de (1776) que viria a influenciar a
elaboração da Constituição dos Estados Unidos da América (1787) e suas emendas
posteriores, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) havendo
divergência doutrinária acerca do verdadeiro marco inicial do estabelecimento de
direitos fundamentais. Embora a Constituição Americana venha primeiro, sendo
considerada a primeira constituição escrita da humanidade, não possuía
originalmente qualquer declaração de direitos, que lhe foram incorporados por
emendas, a partir de 1791, portanto, após a declaração francesa. Aponta-se também
em favor da declaração francesa o seu caráter universal. Enquanto o documento
americano estabelece direitos ao povo e do cidadão americano na condição de
nacional e, portanto, mais voltada para o plano interno, a declaração francesa trata
de direitos do homem nessa condição de ser humano, impingindo-lhe caráter
universal.
Sobre essa questão manifesta-se BONAVIDES:
Constatou-se então com irrecusável veracidade que as declarações antecedentes de ingleses e americanos podiam talvez ganhar em concretude, mas perdiam em espaço e abrangência, porquanto se dirigiam a uma camada social privilegiada (os barões feudais), quando muito a um povo ou a uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declaração francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano. Por isso mesmo, e pelas condições da época, foi a mais abstrata de todas as formulações solenes já feitas acerca da liberdade.
(...)O teor de universalidade da Declaração recebeu, alias, essa justificativa lapidar de Boutmy: “Foi para ensinar o mundo que os francês escreveram; foi para proveito e a comodidade de seus concidadãos que os americanos redigiram suas Declarações” (2004, 562).
73
A constituição francesa, talvez por isso, tenha sido decisiva para o processo
de constitucionalização e reconhecimento de direitos e liberdades fundamentais nas
Constituições surgidas a partir do século XIX, mesmo sendo precedida pela
Constituição Americana.
2.1.2. – Os direitos Fundamentais e suas gerações.
Assim como há todo um processo histórico que leva ao surgimento ou ao
reconhecimento de direitos fundamentais, o desenvolvimento e a consolidação do
que seja direitos fundamentais também se dá num processo histórico. Mesmo os
direitos considerados em si mesmos passaram por um processo de aceitação e
conformação nos diversos ordenamentos constitucionais, de forma que o próprio
conteúdo dos direitos fundamentais vai variar ao longo do tempo, com o paulatino e
sequencial reconhecimento de novos direitos, ou da compreensão da amplitude de
direitos já existentes.
Em razão dessa formulação sequencial e paulatina do conteúdo dos direitos
fundamentais nos textos constitucionais de acordo com as mais diversas condições
históricas, que vão desde demandas e interesses de cada povo, grupos no poder ou
até meios disponíveis para realização dos direitos, a doutrina constitucionalista
costuma falar em “gerações” de direitos fundamentais.
Sobre a classificação dos direitos fundamentais em gerações, ensina
BONAVIDES:
Em rigor, o lema revolucionário do século XVIII, esculpido pelo gênio político francês, exprimiu em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais, profetizando até mesmo a sequência histórica de sua gradativa institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade.
74
Com efeito, descoberta a fórmula da generalização e universalidade, restava doravante seguir os caminhos que consentissem inserir na ordem jurídica positiva de cada ordenamento político os direitos e conteúdos materiais referentes àqueles postulados. Os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestar-se em três gerações sucessivas, que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e qualitativo, o qual, segundo tudo faz prever, tem por bússola, uma nova universalidade: a universalidade material e concreta, em substituição da universalidade abstrata e, de certo modo, metafísica daqueles direitos, contida no jusnaturalismo do século XVIII. (2004, 563)
Os direitos de primeira geração são ligados principalmente ao valor liberdade,
preconizados pela revolução francesa, na qual a classe burguesa reivindicava o
respeito às liberdades individuais em oposição ao poder do Estado. São os que
inauguram o constitucionalismo no ocidente e refletem basicamente aquela primeira
aspiração da burguesia. Tem por titular o indivíduo e se traduzem em faculdades ou
atributos oponíveis ao Estado.
Os direitos de segunda geração são ligados especialmente ao valor igualdade
e surgem e se desenvolvem ao longo do século XX, após a revolução industrial,
como as chamadas liberdades se desenvolveram ao longo do século XIX. São os
direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de
coletividades, introduzidos no constitucionalismo do Estado Social, nas variadas
formas pelas quais esse se concretizou.
Refletem a mudança no entendimento do que seja o próprio papel do Estado
ante a sociedade civil e seus cidadãos. Num primeiro momento, refletindo até
mesmo a transição entre os paradigmas do Estado Liberal e o Estado Social,
passaram por um ciclo de juridicidade questionada para num momento posterior
passarem a exigir, em virtude da sua própria natureza, prestações materiais do
Estado, nem sempre concretizáveis, em razão da falta de mecanismos de concreção
ou mesmo recursos.
Numa segunda fase são remetidos à chamada esfera programática e, embora
lhes seja reconhecida certa juridicidade, não lhes é conferida a mesma eficácia dos
chamados direitos de primeira geração, seja por se negar-lhes instrumentos
adequados de tutela processual, seja por condicionar sua efetividade ao processo
75
legislativo ordinário. Em razão disso, passaram por grave crise de observância e
execução, por parte dos próprios Estados que os positivaram em suas constituições.
É preciso apontar aqui uma terceira fase, ainda em processo de construção
no constitucionalismo contemporâneo, de aplicação imediata de todos os direitos
fundamentais, e não apenas dos direitos de liberdade, de forma que é afastada cada
vez mais a possibilidade de negação de eficácia aos direitos prestacionais com base
no caráter programático da norma.
Ao longo do século XX, especialmente nos anos que se seguiram à Segunda
Guerra Mundial, surge uma terceira geração de direitos, ligados à ideia de
fraternidade. Diferentemente dos direitos de primeira e segunda geração, os direitos
aqui discutidos não se destinam propriamente à proteção de um indivíduo, de um
grupo social ou de um Estado. Faz isso indiretamente, tendo como destinatário o
próprio gênero humano. O surgimento desta geração de direitos, tem como causa
principal o reconhecimento das diferenças entre as nações desenvolvidas e
subdesenvolvidas e a necessidade de atenuá-las, por meio da colaboração entre
elas.
São direitos de natureza transindividual, que materializam poderes de
titularidade coletiva, atribuídos ao ser humano, e em razão disso, atinge todas as
formações sociais.
BONAVIDES sobre os direitos de terceira geração aponta:
A consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse um outra dimensão dos direitos fundamentais, até então desconhecida. Trata-se daquela que assenta sobre a fraternidade, conforme assinala Karel Vasak, e provida de uma latitude de sentido que não parece compreender unicamente a proteção específica de direitos individuais e coletivos. (2004, 569)
O marco emblemático do surgimento da terceira geração de Direitos
Fundamentais é a Convenção das nações unidas relativa à proteção do patrimônio
mundial, cultural e natural de 1972, que ao tratar do patrimônio ambiental e cultural,
76
direciona-se à humanidade enquanto coletividade referindo-se diretamente a um
“direito da humanidade” ao invés de “direitos do homem”. Ao fazer isso, como
assinala COMPARATO,
Trata-se do direito documento normativo internacional que reconhece e proclama a existência de um “direito da humanidade”, tendo por objeto, por conseguinte, bens que pertencem a todo gênero humano e não podem ser apropriados por ninguém em particular. Os Estados em que tais bens se encontram são considerados como meros administradores fiduciários, devendo informar e prestar contas, internacionalmente, sobre o estado em que se encontram esses bens e sobre as providências tomadas para protegê-los contra o risco de degradação natural ou social a que estão submetidos (2004, 379).
Dentre os direitos integrantes dessa geração, a doutrina tem sido francamente
majoritária em destacar os referentes ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à
autodeterminação dos povos, o direito à propriedade sobre o patrimônio comum da
humanidade e o direito à comunicação.
Os estudiosos de direito constitucional, além de já falarem em uma quarta e
até mesmo uma quinta geração de direitos, decorrentes de diversos fenômenos que
surgem desde o fim do século XX, como por exemplos a globalização econômica, a
manipulação genética ou a luta contra o terrorismo. O presente estudo se aterá às
três primeiras gerações de direitos que se relacionam mais diretamente com seu
objeto, mas é preciso ressaltar que o processo de surgimento e reconhecimento de
direitos fundamentais não é definitivo. É próprio o reconhecimento dos direitos
humanos como direitos históricos já que “emergem gradualmente das lutas que o
homem trava por sua própria emancipação e das transformações das condições de
vida que essas juntas produzem” (BÓBBIO, 2004, 51).
Trata-se, portanto, de um processo não definitivo em que o reconhecimento
de direitos acaba permitindo o Estudo e o reconhecimento de novos direitos. Assim,
além de direitos de quarta e quinta geração, pode-se no futuro tratarmos de direitos
de sexta geração, sétima e assim por diante.
Passa-se então a análise do direito fundamental à moradia.
77
2.2. - O DIREITO À MORADIA NO CONTEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO.
A moradia passa a ser entendida como direito humano em decorrência do
reconhecimento do suprimento de necessidades mínimas do ser humano e a partir
da transformação do modelo de Estado Liberal, vigente após a revolução francesa,
em um modelo de Estado Social, que positiva essas necessidades mínimas como
direito de seus cidadãos, para além das chamadas liberdades públicas ou deveres
negativos. Guardadas algumas peculiaridades, esse é o caminho percorrido pelo
Estado brasileiro.
O reconhecimento do direito à prestações de cunho socioeconômico perante
o Estado implica em discutir a efetividade desses direitos, especialmente em
situações como a do Brasil em que a desigualdade social acompanha a formação
histórica, e que o Direito Constitucional tem a dignidade humana como princípio e
tutela os Direitos Sociais. Por outro lado, tem-se a dificuldade dos Estados, hoje, em
implementar programas sociais, inclusive com relação ao Direito de Moradia, em
razão de problemas de natureza orçamentária. Assim, a importância de se verificar e
discutir a efetividade de direitos sociais nasce justamente da necessidade social
dessa efetivação, principalmente partindo-se do pressuposto de uma Constituição
como a brasileira que, mais do que garantias, trás em seu bojo um modelo de
sociedade a ser construído e alcançado (REIS, 2013, 217).
2.2.1. - Direito à moradia: notas históricas.
Situar um instituto ou categoria jurídica no tempo, percebendo seu
nascimento e evolução é premissa para sua compreensão. A norma jurídica não
pode ser completamente compreendida, se não compreendido o contexto histórico
no qual foi produzida e que esse processo criativo da norma fez-se em razão de um
contexto futuro, ainda que hipotético. Se o homem é um ser histórico, que
78
transforma a natureza e cria um mundo cultural para sobreviver, o direito
necessariamente também o é, como fruto da genialidade humana. Neste sentido a
historicidade de qualquer instituto ou categoria jurídica é fundamental para a sua
correta compreensão:
A determinação do sentido das normas, o correto entendimento do significado dos seus textos e intenções, tendo em vista a decidibilidade de conflitos constitui a tarefa da dogmática hermenêutica. Trata-se de uma finalidade prática, no que se distingue de objetivo semelhantes das demais ciências humanas. Na verdade, o propósito básico do jurista não é simplesmente compreender o texto, como faz, por exemplo, o historiador ao estabelecer-lhe o sentido e o movimento no seu contexto, mas também determinar-lhe a força e o alcance, pondo o texto normativo em presença dos dados atuais do problema. Ou seja, a intenção do jurista não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em vista as condições de decidibilidade de conflitos com base na norma enquanto diretivo de comportamento (FERRAZ JÚNIOR, 2008, 221).
De forma que para esse processo de busca de sentido para a norma jurídica,
tem entre os seus métodos, o histórico, em que se busca seu sentido na sua gênese
ou evolução, que fornecerão ao interprete da norma jurídica importante subsídio
para situar o jurista em conjunto com outras técnicas hermenêuticas para lhe permitir
encontrar as respostas corretas na aplicação da norma jurídica. Assim, não é
possível falar-se em norma jurídica, desprendida de um contexto qualquer (REIS,
2013, 217).
Além disso, compreendida a moradia no âmbito dos direitos humanos, deve
ser observada necessariamente na característica histórica desses direitos. “Por mais
fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas
circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra
velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma
vez por todas”. (BOBBIO, 2004, 25).
A questão da habitação é objeto de estudo nas mais variadas ciências, dada
a compreensão da essencialidade da mesma na vida do homem. Essa
essencialidade se dá por diversos motivos, desde os mais simples que se possa
imaginar como a necessidade do homem primitivo de um refúgio para se proteger
79
dos animais ferozes e das condições do tempo, até mais complexos como a ideia do
homem como um ser cultural, que transforma e recria o mundo à sua volta para
sobreviver. Enxergá-la como a necessidade de ter um espaço próprio, um “lugar pra
ficar”, é própria da essência humana, seja pela necessidade de um ponto de
referência que permite a localização e individualização de certa ou certas pessoas,
seja por questões de saúde, ou mesmo pela condição realizadora de outros direitos,
como o Direito ao Sossego, à proteção da intimidade, à segurança e mesmo à
liberdade, visto que a liberdade pressupõe um mínimo de espaço para a
individualidade. Daí a sua compreensão unânime como Direito Humano, não só por
representar em si uma condição essencial para uma vida humana digna, como em
razão da sua conexão com tantos outros direitos também considerados como
essenciais para o ser humano, e o seu reconhecimento e incorporação pelos
diversos ordenamentos jurídicos, passando o amplo acesso à moradia como objetivo
de sociedades politicamente organizadas e como direito dos cidadãos exercitáveis
contra os Estados (REIS, 2013, 218).
Embora se possa encontrar como exceções a Constituição do México (1917)
e a Constituição da República de Weimar (1919), nas origens do constitucionalismo
social, o direito à moradia passa por um movimento de reconhecimento histórico
paulatino, no plano internacional primeiramente. Ao ser reconhecido como um direito
humano básico e exigível dos Estados, é continuamente conformado e reafirmado
por diversos documentos que lhe dão densidade e contornos, para só então ser
reconhecido pelos diversos ordenamentos jurídicos internos. “Os organismos
internacionais elaboraram o conceito para o que se pode identificar como direito à
moradia, com base na defesa de um adequado padrão de vida humano que toda
pessoa tem direito para si e para seus familiares”. (MELO, 2010, 37)
Isso se dá em razão da própria gênese do constitucionalismo moderno se dar
sob o paradigma do Estado Liberal, fruto da luta das classes burguesas desprovidas
de poder político contra o Estado absolutista, e que por isso preocupou-se apenas
com os direitos políticos e com os direitos de liberdade.
A constituição, que não podia evitar o Estado, ladeava, contudo, a Sociedade, para conservá-la por esfera imune ou universo inviolável de
80
iniciativas privatistas: era uma Sociedade de indivíduos e não de grupos, embebida de toda uma consciência anticoletivista. À constituição cabia tão-somente estabelecer a estrutura básica do Estado, a espinha dorsal de seus poderes e respectivas competências, proclamando na relação indivíduo-Estado a essência dos direitos fundamentais relativos à capacidade civil e política dos governados, os chamados direitos de liberdade. (BONAVIDES, 2004, 229).
O primeiro documento de grande repercussão internacional a referir-se a
moradia, foram as cartas de Atenas, elaboradas no contexto do Congresso
Internacional de Arquitetura e Urbanismo em 1933. Muito embora não seja um
documento de repercussão jurídica, refere-se às funções sociais que uma cidade
deve proporcionar entre elas “habitar”. Se esse documento não tem repercussão
jurídica por si só, acaba por criar a noção de cidade como função social, passando-
se a compreensão do espaço urbano mais que simplesmente um aglomerado de
pessoas e edificações. O espaço urbano passa a ter funções a realizar. Conforme as
famosas Cartas de Atenas “o urbanismo é a ordenação dos lugares e dos locais
diversos que devem abrigar o desenvolvimento da vida material, sentimental e
espiritual em todas as suas manifestações, individuais e coletivas” (SILVA, 2006,
31). Essa noção de função social da cidade – incorporada posteriormente pela
Constituição Federal de 1988 entre as diretrizes da política urbana - guarda o mérito
inicial de compreender a essencialidade da moradia, como premissa para o
desenvolvimento do ser humano em suas potencialidades. Estabelece-se como uma
espécie de marco teórico inicial para a discussão da importância da moradia
participando do processo que terminará por reconhecê-la como objeto de proteção
dos direitos humanos (REIS, 2013, 221).
A primeira previsão jurídica específica sobre moradia que para nós tem
importância remonta à Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabelece
em seu art. XXV que “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de
assegurar a si e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis”.
Ao lado do referido dispositivo, o inciso XII da referida Declaração Universal
prevê a tutela do lar do indivíduo dispondo que “Ninguém será sujeito a
interferências em sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua
81
correspondência, nem a ataques à sua honra ou reputação. Toda pessoa tem direito
à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”.
Muito embora o dispositivo citado refira-se ao “lar” do indivíduo de forma
indireta, reconhece-o direito a ele de certa forma, como pressuposto para o direito à
vida privada sem interferência indesejadas ou abusivas.
Em 1966, foi aprovado, também no âmbito das Nações Unidas, o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que só entra em vigência
em 1976, em cujo art. 11 fica estabelecido que “Os Estados Partes no presente
pacto reconhecem o direito a toda pessoa a um nível de vida adequado para si
próprio e sua família, inclusive alimentação, vestimenta e moradia adequada, assim
como uma melhoria contínua de suas condições de vida”.
Em 1976, tem-se a realização de importante conferência internacional para
debate do tema em Vancouver, no Canadá, denominada Conferência das Nações
Unidas sobre Assentamentos Humanos – HABITAT I. Nesta conferência discutiu-se
a necessidade de adequada habitação para todos e o desenvolvimento de
assentamentos humanos sustentáveis em um mundo em urbanização
estabeleceram-se metas a serem atingidas pelos signatários. A seção III, Capítulo
II, estabelece que
Adequada habitação e serviços são um direito humano básico, pelo qual coloca como obrigação dos Governos assegurar a realização destes para todas as pessoas, começando com assistência direta para os menos avantajados através de programas de ajuda mútua de ações comunitárias, os Governos devem se empenhar para remover todos os obstáculos que impeçam a realização dessas metas.
Também no plano do Direito Internacional Particular Americano, destaque-se
a Convenção Americana de Direitos Humanos, que culmina com a elaboração do
Pacto de San José da Costa Rica. Esse documento, muito embora não enuncie de
forma específica qualquer direito social, cultural ou econômico, determina em seu
art. 26 que os Estados signatários alcancem, de forma progressiva, a plena
82
realização desses direitos por meio de medidas legislativas ou outras que se
mostrem apropriadas.
A declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, de 1986, embora não se
refira a direitos sociais específicos, tem como ponto de partida o reconhecimento de
que o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político
abrangente, que visa ao constante incremento do bem estar de toda a população e
de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa no
desenvolvimento e distribuição justa dos benefícios daí resultantes, afirmando o
direito ao desenvolvimento como um direito humano inalienável (REIS, 2013, 222).
Esse destaque ao Direito Internacional com respeito ao Direito à moradia é
aqui cabível, justamente pelo reconhecimento do Direito à moradia como um direito
Humano no plano do Direito Internacional, dado o reconhecimento da Organização
das Nações Unidas, e por estabelecer a vinculação jurídica dos Estados membros, a
quem cabe o dever de assegurá-lo. Muito embora seja possível perceber em
diversos momentos o estabelecimento ou a tentativa de estabelecer-se políticas de
acesso à moradia no plano internos dos Estados nesse momento, isso se dá de
forma muito incipiente, limitada e pontual, sem jamais se ter uma política de acesso
à moradia visto como algo exigível, de acesso amplo e democrático, muito mais
ligada a ideia de voluntarismo político do que como um direito exigível(REIS, 2013,
222).
Assim, esses tratados do qual a República Federativa do Brasil foi e é
signatário4 tem como mérito inicial vincular o Estado brasileiro à moradia como um
direito oponível e exigível por parte de seus cidadãos. Algo que no plano da
legislação interna só irá ocorrer com a Emenda Constitucional No. 26 de 14 de
fevereiro de 2000, que insere o Direito à Moradia como um direito fundamental
social, passando a constar do art. 6º do texto constitucional. Não se pode contudo
negar importância a esses tratados, principalmente por ser reconhecido
4 O Brasil é signatário da Carta das Nações Unidas desde a sua promulgação em 1948, da
Declaração sobre o Direito ao desenvolvimento desde 1986, e do Pacto de San José da Costa Rica e do Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais desde 1992.
83
expressamente status constitucional a direitos e garantias que o Brasil incorporar por
tratado internacional (Constituição Federal, art. 5º, §2º e § 3º).
A primeira carta política a tratar a moradia como um direito constitucional é a
Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos de 1917, que no Título I,
Capítulo I, trata dos Direitos Humanos e suas garantias. Menciona o Direito à
moradia no art. 4º ao dispor que toda família tem direito a desfrutar de uma moradia
digna e adequada e que a lei estabelecerá os instrumentos e apoios necessários a
fim de alcançar tal objetivo5. Assim, a Moradia passa a ter cunho constitucional,
tratando-se por disposição expressa de norma programática, já que sua eficácia
dependia de norma constitucional regulamentadora que viesse efetivar o Direito.
Cabe observar, contudo, que a mesma constituição estabelece como “base” da
Seguridade Social, a disponibilização aos trabalhadores habitações baratas para
aquisição ou locação e determina a criação de um fundo nacional de habitação que
proporcione acesso a crédito barato e suficiente para aquisição de moradias
adequadas6.
Da mesma forma a Constituição da República de Weimar (1919) também
reconhecia a importância da moradia em seu artigo 155, ao dispor que o
fracionamento e o uso do solo serão controlados pelo Estado de forma a impedir
abusos e a permitir a todo alemão uma morada saudável e a todas as famílias
alemãs, em especial as mais numerosas, uma morada e um patrimônio que atenda
suas necessidades.
As nossas seis constituições anteriores nada mencionam sobre o direito à
moradia. A Constituição Imperial de 1824 representa o modelo de constituição da
época, em feições liberais, preocupada com as liberdades públicas. A Constituição
5 Texto literal: “Toda familia tiene derecho a disfrutar de vivienda digna y decorosa. La Ley
establecerá los instrumentos y apoyos necesarios a fin de alcanzar tal objetivo”
6 Se proporcionarán a los trabajadores habitaciones baratas, en arrendamiento o venta, conforme a
los programas previamente aprobados. Además, el Estado mediante las aportaciones que haga, establecerá un fondo nacional de la vivienda a fin de constituir depósitos en favor de dichos trabajadores y establecer un sistema de financiamiento que permita otorgar a éstos crédito barato y suficiente para que adquieran en propiedad habitaciones cómodas e higiénicas, o bien para construirlas, repararlas, mejorarlas o pagar pasivos adquiridos por estos conceptos.
84
de 1891, mantém a mesma feição liberal, inspirada principalmente no
constitucionalismo americano, preocupando-se quanto a direitos fundamentais
também com as liberdades públicas. É a partir da Constituição de 1934, seguida
pela Constituição de 1946 e 1967 é que se percebe a mudança de feições no
constitucionalismo brasileiro apontando gradativamente feições sociais. Pode-se
perceber essa mudança através do instituto da propriedade que, a partir dessas
Constituições passa a ser condicionada a interesses sociais e coletivos (REIS, 2006,
82-83) ou no estabelecimento de direitos constitucionais sociais de caráter
trabalhista. No entanto, a garantia de acesso à Moradia não recebe qualquer
menção do direito brasileiro até o texto constitucional atualmente em vigência.
2.2.2. – O direito à moradia e o contexto dos Direitos Sociais na Constituição
Federal de 1988.
O direito à moradia foi inserido no texto Constitucional por força da Emenda
Constitucional No. 26 de 2000 no Titulo II, que trata dos direitos fundamentais. Este
título subdivide-se em cinco capítulos: dos direitos individuais e coletivos, dos
direitos sociais, dos direitos à nacionalidade e dos direitos políticos e partidos
políticos, de forma que a Moradia passou a constar do Capítulo II, que trata dos
Direitos Sociais.
São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância, a assistência
aos desamparados, na forma desta Constituição. (art. 6, Constituição Federal). José
Afonso da Silva assim define os direitos sociais:
Direitos Sociais, prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo de direitos
85
individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício de sua atividade. (SILVA, 2005, 286).
Os direitos Sociais surgem no contexto do constitucionalismo social. Aquele
Estado surgido das revoluções liberais do século XVIII preocupava-se basicamente
com as liberdades públicas, com o arbítrio do soberano e por isso, tinha como
função básica garantir a liberdade individual, mantendo a atuação do poder público
equidistante da esfera privada e garantir a igualdade formal, no sentido de que o
poder público tratasse todos como iguais. No entanto, essas conquistas pouco
fizeram pela grande massa de despossuídos, de forma que pouco mais de um
século depois de surgido, o modelo de Estado Liberal entrava em crise (REIS, 2013,
224).
Os Estados europeus se encontravam em profundas desigualdades sociais
nos séculos XVIII e XIX, desigualdades que só se acirraram na Revolução Industrial,
ao criar mais miséria de um lado, com pessoas que trabalhavam em condições sub-
humanas e de outro mais concentração de riqueza. A instabilidade social que se
seguiu termina por permitir o reconhecimento de direitos sociais. Esses, nascem de
concessões, diante do temor provocado pelas revoluções comunista e mexicana,
pelo sindicalismo nascente, pelos movimentos anarquistas, que criavam riscos
derrubada dos regimes liberais então vigentes (REIS, 2013, 224).
Desta forma, surgem os Direitos Sociais diante da compreensão de que o
Estado deve atuar minimamente para garantir condições mínimas para os seus
cidadãos, e que a mera garantia das liberdades públicas está aquém da função
estatal. O Estado, que no liberalismo se colocava numa posição relativamente
equidistante pelas declarações de Direitos das Constituições Liberais passa a ser
imprescindível para a realização dos Direitos Sociais e Econômicos. Os direitos
sociais são, sob essa perspectiva, fins da ação do Estado, e não limites desta ação,
como o caso das liberdade públicas. E assim, nos dizeres de COMPARATO:
obedecem, primordialmente, ao princípio da solidariedade (ou fraternidade, no tríptico da Revolução Francesa), a qual se impõe, segundo os ditames da
86
justiça distributiva ou proporcional, a repartição das vantagens ou encargos sociais em função das carências de cada grupo ou estrato da sociedade (COMPARATO, 2004, 335).
Muito embora todo esse processo histórico-conjuntural de consolidação dos
direitos sociais, é preciso cuidado para que se vincule esses direitos a demandas
sociais e econômicas de determinado contexto, atribuindo-lhes eventual função
reparadora de desigualdades históricas ou função assistencial. Hodiernamente, os
direitos sociais devem ser compreendidos na sua essência de direitos fundamentais,
como um conjunto de direitos essenciais e inafastáveis constitutivos da
personalidade e da dignidade humana, tanto quanto os direitos civis e políticos, e tão
inarredáveis quanto estes (REIS, 2013, 225).
Desnecessário enfrentar aqui suposta distinção entre Direitos Fundamentais e
Direitos Sociais. Essa distinção, que é um movimento típico de resistência do
liberalismo, renitente em reconhecer o mesmo status das velhas liberdades públicas
aos Direitos Sociais, torna-se claramente obsoleta e mesmo equivocada, quando
percebe-se o lugar reservado a esses direitos na Constituição como Direitos
Fundamentais. Da fundamentalidade desses direitos decorre especial status de
proteção, tanto em sentido material como em sentido formal. Da fundamentalidade
formal resulta da compreensão dos Direitos fundamentais como ápices de nosso
ordenamento jurídico e nesse sentido cuidam-se de direitos de natureza supralegal.
Além disso, encontram-se submetidos aos limites materiais e formais de reforma da
constituição e, por derradeiro, cabe salientar que são de aplicação imediata
(Constituição Federal art. 5º. § 1º.). Da fundamentalidade material, decorre serem os
direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição material, contendo
decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da Sociedade.
(SARLET, 2011, 75).
Essas decisões, ou opções políticas do Estado, no caso da proteção que a
Constituição brasileira concede aos direitos sociais são inequívocas, principalmente
se observado o contexto constitucional, do qual consta verdadeira sensibilidade
social, posto que o objetivo é uma sociedade mais justa e menos desigual, ao invés
da ideia tradicional e ineficaz de simplesmente se garantir as liberdades. Essa leitura
87
do texto constitucional é consistente, posto que conforma valores como os que
emanam do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República, e
ainda outros valores e objetivos a se alcançar estabelecidos na Constituição, como a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3, I); a erradicação da
pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais (art.
3, III); a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer formas de discriminação (art. 3, IV)
(REIS, 2013, 225).
Daí percebe-se a importância da construção teórica que precede a
positivação de Direitos Sociais e do caso específico do Direito à Moradia. Toda a
construção teórica e a evolução paulatina do reconhecimento dos direitos sociais e
do Direito à Moradia no plano internacional, permitem a própria conformação do
direito, a explicitação de sua essencialidade, e proporciona a sua fundamentação
quando da sua efetivação, sendo aliás é pressuposto da efetivação de qualquer
direito na tradição ocidental.
A positivação dos direitos sociais, por outro lado, é o que garante a sua
eficácia social. O reconhecimento de Direito como essencial depende do seu
reconhecimento jurídico, como tal. Num estado com princípios democráticos, a
proteção jurídica de algo que se entenda por direito resulta de um processo de
legitimação indispensável. Esse processo de legitimação em nível constitucional, é
que torna o direito exigível explicitando sua origem como escolha da vontade
coletiva, nos temos da Constituição, cabendo ao Estado Democrático, concretizador
dessa vontade, instrumentalizá-lo (REIS, 2013, 226).
88
2.2.3. - A efetividade dos Direitos Sociais e as obrigações do Estado brasileiro
e a obrigação do Estado Brasileiro concernentes ao Direito de Moradia.
Os direitos sociais, assim como os demais direitos fundamentais exigem
distintos níveis de obrigações. Obrigações de respeitar, de proteger e de satisfazer
direitos. O texto constitucional dispõe, conforme já afirmado retro, que as normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata. No
entanto, parte da doutrina, tem uma visão restritiva do disposto no art. 5, § 1º da
Constituição Federal, de forma que a aplicabilidade imediata caberia apenas aos
direitos e garantias dispostos no art. 5º da Constituição. Por essa concepção, os
direitos que exigem prestações positivas do Estado, através da execução de
políticas públicas, são concebidos tradicionalmente como normas de eficácia
limitada, cuja aplicabilidade é mediata e de eficácia reduzida. Não obstante a
localização topográfica do dispositivo, a literalidade do parágrafo aponta para todos
os direitos e garantias fundamentais, e não apenas para os direitos individuais e
coletivos do art. 5º. Além disso, a emergência cada vez maior de um significativo
número de normas de caráter programático e o próprio risco de esvaziamento de
sentido dos direitos sociais como direitos constitucionais, vem provocando uma
ruptura com a teoria clássica, no sentido de conferir, pelo menos em certa medida,
aplicabilidade direta e imediata aos direitos sociais. Não tem sentido, pelo próprio
significado histórico do Direito Constitucional, não atribuir um mínimo de eficácia
imediata a um direito positivado na Constituição, se esta surge justamente como um
remédio ao arbítrio. Submeter um direito positivado na Constituição ao voluntarismo
político significa privá-lo do seu caráter de direito constitucional fundamental.
Em razão disso, leciona Canotilho
“devido a essa ruptura à doutrina clássica, pode e deve-se dizer que hoje não há normas constitucionais programáticas. É claro que continuam a existir normas-fim, normas-tarefa, normas-programa que “ impõem uma actividade” e “dirigem” materialmente a concretização constitucional. Mas o sentido destas normas não é o que lhes assinalava tradicionalmente a doutrina: “simples programas, “exortações morais”, “declarações”, “sentenças políticas”, “aforismos políticos”, “promessas”, “apelos ao legislador”, “programas futuros”,
89
juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às “normas programáticas” é reconhecido hoje valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da Constituição. Mais do que isso: eventual mediação da instância legiferante na concretização das normas programáticas não significa a dependência deste tipo de normas de interposição do legislador; é a positividade das normas-fim e normas-tarefa (normas programáticas) que justifica a necessidade de intervenção dos órgãos legiferantes (CANOTILHO apud SAULE JÚNIOR, 1999, 93).
Daí decorre a posição hoje mais aceita pela doutrina, de que o disposto
contido no art. 5, § 1º se trata de uma norma de cunho inequivocamente
principiológico, um princípio impositivo contendo um comando de maximização dos
direitos fundamentais, estabelecendo o dever dos órgãos estatais de conceberem a
maior eficácia possível aos direitos fundamentais.
Isso significa, em última análise, que, no concernente aos direitos fundamentais, a aplicabilidade imediata e eficácia plena assumem a condição de regra geral, ressalvadas exceções que, para serem legítimas, dependem de convincente justificação à luz do caso concreto, no âmbito de uma exegese calcada em cada norma de direito fundamental e sempre afinada com os postulados de uma interpretação tópico-sistemática. (SARLET, 2011, 271)
Assim, o Estado brasileiro tem obrigação de garantir minimamente o direito à
moradia, de forma que ninguém possa ser privado de direito ou garantia sob o
argumento de estar ele previsto em norma programática. Aceitar simplesmente esse
argumento significa negar a própria função do direito fundamental e o processo
histórico por meio do qual ele se desenvolveu desde sua gênese. É claro que a
formulação e implementação de políticas públicas é, primariamente, uma atribuição
do Legislativo e do Executivo, cujos membros são escolhidos democraticamente nos
termos da própria constituição, mas negar-se eficácia aos direitos fundamentais
simplesmente por dependerem de norma infraconstitucional integradora é submeter
os direitos fundamentais ao voluntarismo político e dessa forma privá-los de sua
própria essência (REIS, 2013, 227).
A própria previsão constitucional dos direitos materialmente constitucionais,
enquanto abertura da constituição para outros direitos fundamentais que não os
enumerados no rol expressamente constante na Constituição aponta para uma visão
90
extensiva dos direitos fundamentais. Uma visão extensiva que, nos dizeres de
MIRANDA, adere a uma ordem de valores que ultrapassam as disposições
dependentes da capacidade ou da vontade do legislador constituinte, ao reconhecer
direitos que não ficam à mercê do poder político (2008, 14).
No caso do Direito à moradia, parecem não restar dúvidas, quanto ao seu caráter de
direito fundamental. É importante ressaltar inclusive que ele recebe proteção sobre
diversos aspectos diferentes na Constituição.
Como direito fundamental de caráter formal, encontra-se positivado, por força
da Emenda Constitucional No. 26 de 14 de fevereiro de 2000, que incluiu
expressamente a moradia no catálogo constitucional dos direitos fundamentais. Sob
o prisma dos direitos fundamentais materiais, é de se ressaltar a sua adoção no
Brasil pela incorporação de Tratados internacionais, já que o Brasil é signatário de
vários tratados internacionais que tratam o direito à moradia como um direito
humano.
Não se pode ignorar ainda que a Moradia é um direito fundamental também
em razão da cláusula de abertura dos direitos fundamentais constantes do art. 5º, §
1º, já que aquela aborda a figura dos direitos fundamentais decorrentes do regime e
dos princípios por ela abordados.
Assim considerando, e posto ser a Moradia elemento de salvaguarda da
própria vida humana e elemento de construção da dignidade que lhe deve ser
própria, é de se entender o direito à moradia como aceito pela Constituição Federal
como um direito fundamental material, muito antes de sua positivação expressa.
Além disso, o próprio artigo 182, ao enunciar os objetivos da política urbana,
traz o pleno desenvolvimento da função social da cidade, e dessa forma, informa a
moradia - uma das sub-funções básicas propiciadas pela cidade funcionalizada -
como um elemento caro ao texto constitucional.
O maior entrave que é colocado à efetivação de todos os direitos de cunho
prestacional por parte do Estado, é a questão do custo desses direitos. Sob os
argumentos de que os direitos sociais dependem de uma economia forte e de que o
91
custo dos direitos sociais superam os recursos orçamentários, cria-se a chamada
“reserva do possível”, que busca legitimar por meio de ilusória racionalidade a
efetivação dos direitos sociais prestacionais aos recursos orçamentários. Nesse
sentido, a moradia se colocaria como um dos direitos de maior custo, principalmente
em razão da forma historicamente excludente com que o acesso à terra se dá no
Brasil. Observe-se ainda que, acesso à terra, não significa necessariamente
moradia, mas apenas a superação de um provável obstáculo. O acesso à habitação
pressupõe o espaço, mas demanda ainda uma série de outras intervenções estatais
no sentido de garantir moradia em condições adequadas, e por isso, muito mais caro
(REIS, 2013, 227).
Mas não se pode estabelecer uma relação de dependência entre a escassez
de recursos orçamentários e a efetivação de direitos. Afinal, todo o aparato estatal
tem um custo, inclusive quando é colocado em funcionamento para garantir os
chamados direitos de defesa. Assim, “estabelecer uma relação de continuidade
entre a escassez de recursos públicos e a afirmação de direitos acaba resultando
em ameaça a existência de todos os direitos” (BARRETO, 2003, 121).
Aqui se coloca então a questão que parece fundamental. É possível a uma
pessoa compelir o poder público a alguma prestação material que venha a lhe
assegurar o direito a uma moradia digna?
A moradia é um direito social, e como tal se encontra enumerada
expressamente entre os direitos fundamentais. Por outro lado, é compreendida no
contexto de uma norma constitucional programática, exigindo integração por normal
infraconstitucional para que possa ser concretizada, o que não nega, e nem pode, a
fundamentalidade do direito estabelecido. De outro lado, tem-se a questão da
limitação orçamentária, que se não é capaz de gerar verdadeiro argumento jurídico,
apresenta-se como obstáculo fático para a eficácia dos direitos sociais (REIS, 2013,
229).
Ora, sobre este último ponto, deve-se colocar a questão financeira do Estatal
não deve se sobrepor aos direitos fundamentais. A sua condição de fundamentais o
coloca no centro do ordenamento jurídico, a submeter toda a organização sócio-
política da república por sua condição de essenciais à vida humana. Assim se os
92
recursos não são suficientes para atender os direitos fundamentais, devem ser
tirados de outras áreas onde não há essa relação essencialidade para a vida
humana:
Se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transporte, fomento econômico, serviço de dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua vida, integridade física e saúde. Um relativismo nessa área pode levar a “ponderações” perigosas e anti-humanistas do tipo “porque gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais? (KRELL, 2002, 53).
A dignidade humana, como princípio fundamental da república, deve
funcionar como vetor no sentido de se garantir um mínimo de efetivação dos direitos
sociais, inclusive o direito à moradia, como um meio de garantir o mínimo necessário
à própria existência humana, a sobrevivência do indivíduo com uma certa dignidade.
Se a limitação orçamentária do poder público se afigura como uma realidade com a
qual o direito tem que lidar, isso não quer dizer por outro lado que os direitos sociais
devem ser colocados como reféns do orçamento ou efetiváveis quando houver
sobras de caixa. A maximização dos direitos fundamentais exige no mínimo posturas
de todo o aparato estatal no sentido de garantir a máxima efetividade dos direitos
fundamentais e, garantir sua efetivação como prioridade dada a sua
fundamentalidade.
No que tange a questão da eficácia imediata dos direitos fundamentais, o fato
das normas constitucionais programáticas não regularem imediatamente um objeto,
mas pré-estabelecerem a si mesmo um programa de ação com respeito ao próprio
objeto e se obrigando a não se afastar dele sem um motivo, infere que o direito à
moradia impõe a poder público o dever de atuar positivamente em sua promoção e
proteção enquanto meta constitucionalmente estabelecida, no sentido de
proporcionar moradia digna a toda a população. O fato da norma ser estabelecida
como programática, não implica em perda de fundamentalidade pelos direitos
sociais. Se por um lado tem eficácia eventualmente limitada, por outro possibilitam
inúmeros caminhos de proteção, ou mesmo, a criatividade do poder público em
fomentar o direito ali assegurado.
93
Assim, a se considerar exigível no mínimo não o direito a moradia
propriamente, mas condutas estatais inequívocas, no sentido de promover o direito a
moradia.
No caso brasileiro, pode-se considerar nesse contexto, o próprio capítulo
destinado à Ordem Urbana, onde, entre outras coisas tem-se a flexibilização das
regras, e dessa forma facilitação, da aquisição de propriedade pela usucapião a
partir da Constituição Federal de 1988, permitindo a aquisição por posse ininterrupta
e justa, num prazo de 5 anos de aquisição de imóvel para moradia própria e da
família.
No âmbito da legislação ordinária, pode-se destacar a edição do Estatuto da
Cidade, Lei No. 10.257/2001, onde em mais um passo importante o legislador
admitiu a figura da Usucapião Coletiva Urbana, instrumento de grande importância
para regularização de assentamentos habitacionais urbanos informais.
Mais recentemente, houve a implementação do programa governamental
“Minha Casa, Minha vida”, instituído pela Lei 11.977 de 2009, através do qual o
governo federal criou alguns mecanismos facilitadores da aquisição da casa própria.
São importantes avanços em termos de concretização de direitos
fundamentais, podendo ser considerados inclusive sem parâmetros em nossa
história constitucional, no sentido de significarem certo empenho do Estado
brasileiro. Por outro lado, na medida em que se atribui a característica
universalidade aos direitos fundamentais, é necessário que o aparato estatal tome
medidas mais amplas, no sentido de permitir a todos o direito de desfrutar de
moradia condizente com a dignidade havida em todo ser humano, especialmente
quando trata-se da questão no âmbito do Brasil, um país marcado por
desigualdades sociais históricas.
Tratada a questão do Direito Social à Moradia, passa-se a abordar a questão
ambiental, sua proteção constitucional e o tratamento dado à áreas de proteção
ambiental no ordenamento constitucional brasileiro.
94
2.3. - O MEIO AMBIENTE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL.
Os diversos problemas globais de ordem natural como a extinção de espécies
animais e vegetais, as alterações climáticas, a redução vertiginosa das florestas e a
poluição que nos trazem problemas práticos imediatos, aliado a busca da satisfação
de novas necessidades da busca qualidade de vida, deixam claro que é necessária
uma mudança de postura do homem frente à natureza. A cada ano milhares de
dados levantados em pesquisas científicas tornam mais evidente que o
desenvolvimento econômico das sociedades humanas, a qualidade de vida dessas
comunidades e até mesmo a própria sobrevivência do ser humano como espécie
estarão seriamente comprometidos sem uma gestão eficiente dos recursos naturais
e sem medidas de saneamento do planeta.
O crescimento da consciência ecológica deve-se principalmente aos impactos
ambientais provocados pelo ser humano sobre a terra que tem se refletido sobre a
própria humanidade, e também da compreensão de que as transformações
provocadas ocorrem numa escala e velocidade muito maior do que o planeta é
capaz de recuperar.
Os efeitos da poluição industrial, o uso de combustíveis fósseis como matriz
energética básica, o processo de desertificação que ameaça a capacidade de
produzir alimentos, a destruição das florestas, são fatos que deixam claro a limitação
e a fragilidade dos recursos naturais, enquanto que por outro lado a população
mundial vem crescendo exponencialmente. Basta observar que a população mundial
simplesmente duplicou nos últimos quarenta anos. A população brasileira no mesmo
ritmo de crescimento, mais do que dobrou em quarenta anos e se considerado o
início e o fim do século XX, multiplicou-se por dez.
De fato, como é comumente apontado pelos estudiosos do Meio Ambiente, a
crescente degradação ambiental é a responsável pelo início da tutela estatal do
meio ambiente, através do que JOSÉ AFONSO DA SILVA chama de despertar da
“consciência ecológica” pela população, uma vez que chamou a atenção das
autoridades para o problema da degradação e destruição do meio ambiente, natural
95
e cultural, de forma sufocante (2004, 33). Da necessidade de proteção jurídica ao
meio ambiente, com o combate à degradação ambiental e objetivando o equilíbrio
ecológico, foram surgindo em todos os países as legislações ambientais, criando
organismos e estruturas jurídicas.
No entanto, essa legislação apresenta-se bastante variada, dispersa e
confusa. Se por um lado têm-se normas ambiciosas, de base ecológica, que tentam
relacionar os elementos envolvidos na situação para normatizar uniformemente as
regras relativas ao meio ambiente, por outro é possível observar normas que
constituem simples adequações da legislação sanitária e higienista do século XIX e
também da que em outras épocas, protegiam a paisagem, a fauna e a flora.
No âmbito do Direito Constitucional, somente as constituições do pós-guerra
passam a se referir ao meio ambiente. É assim com a Constituição da República
Federal da Alemanha de 1949 ao tomar como prerrogativa da união disciplinar
normas gerais sobre a caça, a proteção da natureza e a estética da paisagem (art.
75, 3º), e ao enunciar como prerrogativa concorrente da União e dos Estados o
combate à poluição (art. 74, 4º) (SILVA, 2004, 43).
Num sentido mais ambientalista temos as Constituições promulgadas no
antigo bloco socialista na década de 70, como a búlgara de 1971, a cubana de 1976
e a soviética de 1977, sendo que as duas primeiras estabelecem como dever do
Estado e da Sociedade a salvaguarda da natureza e dos recursos naturais e a última
assegura a proteção da natureza no interesse das gerações presentes e futuras
(SILVA, 2004, 45).
No entanto, é unanimidade que cabe ao ordenamento constitucional
português o vanguardismo quanto ao tema, já que foi a Constituição da República
Portuguesa de 1976 que deu a formulação contemporânea ao tema,
correlacionando-o com o direito à vida, quando institui em seu art. 66 o direito de
todos a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado e o dever
de todos de defender esse ambiente. Torna-se incumbência do Estado prevenir e
controlar a degradação ambiental e a promoção de políticas públicas no sentido de
proteger paisagens e sítios, conservar a Natureza, e preservar valores culturais de
interesse histórico ou artístico. Também trata como dever do Estado promover o
96
aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de
renovação e a estabilidade ecológica (SILVA, 2004, 45).
No plano normativo internacional, é importante lembrar a Conferência das
Nações Unidas de 1972 em Estocolmo, que institui a Convenção relativa à proteção
do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, que reconhece o interesse excepcional
sobre o patrimônio ambiental e cultural e o caráter incomparável e insubstituível
desses bens (COMPARATO, 2003, 382), bem como reconhece como direito
fundamental do homem à qualidade do meio ambiente:
O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada em meio cuja qualidade lhe permite levar uma vida digna e gozar de bem estar e tem a obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presentes e futuras. (SILVA, 2004, 59).
No plano da legislação ordinária, o marco inicial do Direito Ambiental é a Lei
Federal No. 6.938 de 31 de agosto de 1981, ainda vigente, que instituiu a Política
Nacional do Meio Ambiente, instituiu o SISNAMA – Sistema Nacional do Meio
Ambiente e estabeleceu as diretrizes gerais, dando início a implementação de uma
política ambiental no Brasil.
Antes dela, é possível apontar normas jurídicas de caráter ambiental em
vários dispositivos legais, como o Código de Águas (Decreto-lei No. 852 de 11 de
novembro de 1938), o Código Florestal (Lei 4.771 de 15 de janeiro de 1965), o
Código de Caça (Lei No. 5.197, de 3 de janeiro de 1967) e o Código Brasileiro do Ar
(Lei No. 6.833 de 20 de setembro de 1980), mas nenhuma delas tem uma
preocupação especificamente ambiental, tratando apenas lateralmente do tema. Um
exemplo emblemático desta situação é o Estatuto da Terra (Lei No. 4.504, de 30 de
novembro de 1964), que não tratando diretamente de Direito Ambiental, estabeleceu
como elemento caracterizador da função social da propriedade rural, a asseguração
da conservação dos recursos naturais (art. 2, § 1º, c); estabeleceu a possibilidade de
desapropriação por interesse social com o fim específico de efetuar obras de
renovação, melhoria e valorização dos recursos naturais (art. 18, f); e facultou a
97
criação de áreas de proteção à fauna, à flora ou a outros recursos naturais, a fim de
preservá-los de atividades predatórias (art. 18, h).
Todas essas normas demonstram o paulatino crescimento da preocupação do
Brasil com a questão ambiental, que começa insipiente, tratado incidentalmente por
normas esparsas, mas à medida que a preocupação social com o meio ambiente
aumenta a proteção Estatal ao meio ambiente também se aperfeiçoa. No entanto,
até a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, o tratamento ao meio ambiente era
indireto. Preocupava-se não com o meio ambiente em si, mas com os processos
econômicos, que dependiam – como ainda dependem - dos recursos naturais.
No âmbito constitucional brasileiro, a Constituição de 1988 foi a primeira a
tratar claramente da questão ambiental. O núcleo normativo do Direito Ambiental na
Constituição encontra-se no art. 225 de cujo caput é possível se extrair o status da
questão ambiental no texto constitucional:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
De fato, o Direito ao Ambiente sadio e ecologicamente equilibrado é há muito
considerado pela doutrina e pela jurisprudência com uma extensão do direito à vida.
Assim, quando se fala em tutela do meio ambiente, tem-se em jogo formas de
garantir a qualidade de vida humana, pois aquele lhe é essencial. O equilíbrio
ecológico nessa relação tão direta com o ser humano faz do direito ao ambiente um
direito fundamental da pessoa humana, em função dos elementos e valores que
congrega, como saúde, segurança, cultura, identidade. Preservar o patrimônio
ambiental é garantir vida sadia e com qualidade. Garantir vida com qualidade é
promover a dignidade da pessoa humana.
O estado de degradação ambiental chega a um ponto tal que, não apenas a
qualidade de vida que preocupa, mas a própria existência de vida. São muitos os
98
estudos que apontam que, em se mantendo o atual ritmo de degradação ambiental,
como o aquecimento global, extinção em massa de espécies de seres vivos, é
possível que o planeta no futuro em certo momento não seja mais capaz de suportar
a vida humana.
Sob esse ponto de vista, não restam dúvidas de que o direito ao ambiente
sadio é também um direito fundamental de todos no ordenamento jurídico brasileiro.
Se não se encontra previsto expressamente no Título II da Constituição, onde estão
enumerados formalmente alguns direitos fundamentais, o direito ao meio ambiente
equilibrado, por este abranger elementos essenciais à vida, há que ser considerado
direito fundamental, sendo mesmo uma nova forma de proteção ao direito à vida e,
portanto, direito materialmente fundamental, na forma de direito implícito, como
permite o art. 5, § 2º (REIS, 2011, 102).
Também não se pode esquecer que com baliza no mesmo dispositivo
constitucional, o direito ao ambiente é direito fundamental decorrente de tratado
internacional, já que a Convenção das Nações Unidas relativa à Proteção do
Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (elaborada em Estocolmo na Suécia em
1972), foi promulgada pelo Brasil pelo Decreto No. 80.978 de 12 de dezembro de
1977 e a Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica (elaborada
no Rio de Janeiro em 1992) que foi promulgada pelo Brasil em Decreto No. 2.519 de
16 de março de 1998.
A tutela do meio ambiente, dessa forma, se faz assim imperiosa porque
proteger a qualidade de meio ambiente é proteger as condições essenciais para a
própria existência de vida.
Além disso, considerando-se que a Constituição Federal de 1988 insere a
defesa do meio ambiente como princípio da ordem econômica, significa que toda a
atividade produção econômica do país está condicionada ao respeito ao meio
ambiente7.
7 Dispõe o art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (....)
99
Pelo texto constitucional, a ordem econômica não tem outro fim que não
assegurar a todos uma existência digna conforme os ditames da justiça social. Não
é possível se falar em justiça social sem se garantir a todas as pessoas meios
materiais para que possa viver com qualidade de vida, conforto conforme suas
necessidades físicas e psíquicas.
Ora, não é outro o fim da tutela do meio ambiente senão tomar medidas no
sentido de garantir, sob o ponto de vista de recursos naturais, a existência desses
meios. Se a tutela do direito ambiental em si não garante justiça social – e nem é
seu fim garantir -, por outro lado, seria impossível concreção de justiça social sem a
preservação dos recursos naturais e dos diversos fenômenos biológicos do planeta.
A função do direito ambiental é justamente garantir a preservação e a continuidade
desses recursos para que sejam de acesso universal, das presentes e futuras
gerações.
Inegável, portanto, a importância conferida pela Constituição da República a
questão ambiental e o status constitucional conferido a tutela do meio ambiente,
além da própria compreensão de que o direito ambiental – as normas jurídicas de
proteção ao meio ambiente equilibrado – não tem outra razão de ser que não o
direito ao ambiente, assim compreendido como o direito fundamental de cada
pessoa a um ambiente sadio e que lhe proporcione qualidade de vida.
2.3.1. – Áreas de Preservação Permanente e seu regime jurídico.
O Estabelecimento de Áreas de Preservação Permanente enquadra-se como
uma das medidas fixação de áreas ambientais especialmente protegidas. Essa
proteção de áreas específicas, nelas incluídas em regra todos os seus recursos
VI – Defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.
100
naturais, tem como objetivo a conservação de espaços que merecem atenção
especial do poder público.
Embora já estabelecidas no Código Florestal de 1965, devem ser compreendidas à
luz da legislação ambiental posterior, especialmente da Lei de Política Nacional do
Meio Ambiente e, logicamente da própria constituição.
Encontram-se identificadas pelo art. 4º da Lei No. 12.651 de 25 de maio de
2012, com alterações introduzidas pela Lei No. 12.727 de 17 de outubro 20128.
Conforme definição da própria lei in comento, as Áreas de Preservação
Permanente são áreas protegidas, cobertas ou não por vegetação nativa, com a
8 Art. 4o Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos
desta Lei: I - as faixas marginais de qualquer curso d‟água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: a) 30 (trinta) metros, para os cursos d‟água de menos de 10 (dez) metros de largura; b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d‟água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura; c) 100 (cem) metros, para os cursos d‟água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura; d) 200 (duzentos) metros, para os cursos d‟água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura; e) 500 (quinhentos) metros, para os cursos d‟água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros; II - as áreas no entorno dos lagos e lagoas naturais, em faixa com largura mínima de: a) 100 (cem) metros, em zonas rurais, exceto para o corpo d‟água com até 20 (vinte) hectares de superfície, cuja faixa marginal será de 50 (cinquenta) metros; b) 30 (trinta) metros, em zonas urbanas; III - as áreas no entorno dos reservatórios d‟água artificiais, decorrentes de barramento ou represamento de cursos d‟água naturais, na faixa definida na licença ambiental do empreendimento; IV - as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d‟água perenes, qualquer que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros; V - as encostas ou partes destas com declividade superior a 45°, equivalente a 100% (cem por cento) na linha de maior declive; VI - as restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; VII - os manguezais, em toda a sua extensão; VIII - as bordas dos tabuleiros ou chapadas, até a linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais; IX - no topo de morros, montes, montanhas e serras, com altura mínima de 100 (cem) metros e inclinação média maior que 25°, as áreas delimitadas a partir da curva de nível correspondente a 2/3 (dois terços) da altura mínima da elevação sempre em relação à base, sendo esta definida pelo plano horizontal determinado por planície ou espelho d‟água adjacente ou, nos relevos ondulados, pela cota do ponto de sela mais próximo da elevação; X - as áreas em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que seja a vegetação; XI - em veredas, a faixa marginal, em projeção horizontal, com largura mínima de 50 (cinquenta) metros, a partir do espaço permanentemente brejoso e encharcado.
101
função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade
geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo
e assegurar o bem-estar das populações humanas.
Trata-se a instituição dessas áreas de intervenção do Estado na propriedade
com escopo ambiental, se inserindo no âmbito do poder de polícia administrativa, já
que é pelo exercício poder de polícia que o Estado estabelece limitações, vedações
ou condições sobre o uso e gozo de bens, direitos e sobre o exercício de certas
atividades. Deve-se considerar aqui o poder de polícia no sentido amplo, conforme
BANDEIRA DE MELLO, segundo o qual
A expressão, tomada em sentido amplo, abrange tanto os atos do Legislativo quanto do Executivo. Refere-se ao complexo de medidas do Estado que delineia a esfera juridicamente tutelada da liberdade e da propriedade dos cidadãos. Por isso, nos Estados Unidos, a voz police power reporta-se sobretudo às normas legislativas através das quais o Estado regula os direitos privados, constitucionalmente atribuídos aos cidadão, em proveito dos interesses coletivos, como bem anota Caio Tácito. (2011, 829)
Trata-se pois de uma intervenção na propriedade atendendo inclusive à
exigência constitucional sua vinculação a uma função social, para atender preceito
de ordem pública, no caso referente ao direito fundamental ao ambiente.
O fundamento constitucional da instituição de APP‟s está no § 1º do art. 225
que estabelece a necessidade de medidas específicas para efetivação do direito ao
ambiente equilibrado9.
9 Art. 225.
(...) § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; (...) III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (...)
102
O direito ao ambiente surge assim como um direito fundamental e
metaindividual, inerente à própria pessoa humana e indispensável à vida, e que
congrega várias obrigações impositivas. Essas obrigações podem ser de ordem
negativa, dirigidas ao próprio Estado e às pessoas, no sentido de se abster de
comportamentos que lesionem o meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, e de ordem positiva para
o Estado, no sentido de promover políticas públicas no sentido de conservação
ambiental, como forma de garantir a efetividade do direito constitucional ao
ambiente.
O conceito de propriedade funcional atrelado a um fim ambiental implica
necessariamente na visão do direito proprietário, que além das faculdades
tradicionais do proprietário, traz o dever de fazer um uso racional e adequado do
bem no qual há interesses ambientais, de forma que ela seja preservada para
atender as necessidades das gerações futuras, para que essas possam desenvolver
também as suas potencialidades e tenham garantida a qualidade de vida, mas sem
negar às gerações presentes o desfrute dessa propriedade.
Nesse sentido, tem-se que a natureza da intervenção promovida pela
instituição de Áreas de Preservação Permanente pela legislação não cria uma
restrição completa à exploração do bem, caso que inclusive poderia resultar até
mesmo em desapropriação indireta, mas estabelecimento de limitações pontuais,
que atendam inclusive a parâmetros de razoabilidade (FURTADO, 2007, 790).
Assim, as APP são regidas pelo regime normal de propriedade, não lhe sendo
reconhecido um regime distinto em razão das limitações que lhe são impostas pelo
Poder Público. De fato as restrições ou condições serão aquelas exclusivamente
impostas por lei, caso em que a imposição de norma de ordem pública, derrogará o
regime de propriedade privada.
De fato, quanto às áreas de APP, pode-se visualizar o problema sobre dois
ângulos distintos: o problema da invasão, quando a ocupação se dá em terras
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
103
públicas ou particulares invadidas, onde se terá um problema também relativo à
propriedade, e o problema da construção irregular, onde o problema não será
necessariamente a propriedade, mas a edificação em si. O fato de uma área ser
considerada legalmente como APP não implica a sua definição como bem extra
commercium, podendo a mesma ser objeto de todos os negócios jurídicos lícitos
compatíveis. O problema é a construção em si, feita sem qualquer parâmetro
técnico, sem fiscalização de órgão público que ateste segurança ou estabilidade,
que muitas vezes coloca em risco a vida e a incolumidade física do próprio
construtor, e ainda ofende outros bens jurídicos tutelados, como o caso do meio
ambiente, onde o regime de APP entre outras coisas protege a vegetação
diretamente e, indiretamente, o solo e os recursos hídricos.
O que se observa em muitos casos, é a invasão consentida, a venda informal
de terrenos por meio de contratos-de-gaveta, o comércio dessas áreas – que em
princípio não é vedado pelo ordenamento jurídico, observadas as normas relativas a
parcelamento e registro de imóveis – como se lotes urbanos fossem, e o silêncio
conivente ou negligente do Poder Público, que termina por reconhecer tacitamente
essas ocupações.
A principal obrigação que decorre de lei sobre as APP é a obrigação de
conservação de vegetação (art. 7º da Lei No. 12.651 de 2012) que via de regra não
poderão ser suprimidas, exceto em situações específicas, enumeradas
taxativamente pela própria legislação.
O regime estabelecido por lei para as APP‟s, no caso de supressão da
vegetação transforma a obrigação de recomposição em obrigação propter rem, de
forma que ela estará vinculada ao bem, e mesmo em caso de transmissão da
propriedade, incumbirá ao sucessor, o dever de recomposição.
Admite a legislação a intervenção ou a supressão de vegetação nativa, em
caráter excepcional, em APP‟s nas hipóteses de implantação de obras, projetos ou
atividades relacionados à utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto
ambiental previstas na própria lei10.
10
Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por:
104
VIII - utilidade pública:
a) as atividades de segurança nacional e proteção sanitária; b) as obras de infraestrutura destinadas às concessões e aos serviços públicos de transporte, sistema viário, inclusive aquele necessário aos parcelamentos de solo urbano aprovados pelos Municípios, saneamento, gestão de resíduos, energia, telecomunicações, radiodifusão, instalações necessárias à realização de competições esportivas estaduais, nacionais ou internacionais, bem como mineração, exceto, neste último caso, a extração de areia, argila, saibro e cascalho; c) atividades e obras de defesa civil; d) atividades que comprovadamente proporcionem melhorias na proteção das funções ambientais referidas no inciso II deste artigo; e) outras atividades similares devidamente caracterizadas e motivadas em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto, definidas em ato do Chefe do Poder Executivo federal; IX - interesse social: a) as atividades imprescindíveis à proteção da integridade da vegetação nativa, tais como prevenção, combate e controle do fogo, controle da erosão, erradicação de invasoras e proteção de plantios com espécies nativas; b) a exploração agroflorestal sustentável praticada na pequena propriedade ou posse rural familiar ou por povos e comunidades tradicionais, desde que não descaracterize a cobertura vegetal existente e não prejudique a função ambiental da área; c) a implantação de infraestrutura pública destinada a esportes, lazer e atividades educacionais e culturais ao ar livre em áreas urbanas e rurais consolidadas, observadas as condições estabelecidas nesta Lei; d) a regularização fundiária de assentamentos humanos ocupados predominantemente por população de baixa renda em áreas urbanas consolidadas, observadas as condições estabelecidas na Lei n
o 11.977, de 7 de julho de 2009;
e) implantação de instalações necessárias à captação e condução de água e de efluentes tratados para projetos cujos recursos hídricos são partes integrantes e essenciais da atividade; f) as atividades de pesquisa e extração de areia, argila, saibro e cascalho, outorgadas pela autoridade competente; g) outras atividades similares devidamente caracterizadas e motivadas em procediment administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional à atividade proposta, definidas em ato do Chefe do Poder Executivo federal; X - atividades eventuais ou de baixo impacto ambiental: a) abertura de pequenas vias de acesso interno e suas pontes e pontilhões, quando necessárias à travessia de um curso d‟água, ao acesso de pessoas e animais para a obtenção de água ou à retirada de produtos oriundos das atividades de manejo agroflorestal sustentável; b) implantação de instalações necessárias à captação e condução de água e efluentes tratados, desde que comprovada a outorga do direito de uso da água, quando couber; c) implantação de trilhas para o desenvolvimento do ecoturismo; d) construção de rampa de lançamento de barcos e pequeno ancoradouro; e) construção de moradia de agricultores familiares, remanescentes de comunidades quilombolas e outras populações extrativistas e tradicionais em áreas rurais, onde o abastecimento de água se dê pelo esforço próprio dos moradores; f) construção e manutenção de cercas na propriedade; g) pesquisa científica relativa a recursos ambientais, respeitados outros requisitos previstos na legislação aplicável; h) coleta de produtos não madeireiros para fins de subsistência e produção de mudas, como sementes, castanhas e frutos, respeitada a legislação específica de acesso a recursos genéticos; i) plantio de espécies nativas produtoras de frutos, sementes, castanhas e outros produtos vegetais, desde que não implique supressão da vegetação existente nem prejudique a função ambiental da área; j) exploração agroflorestal e manejo florestal sustentável, comunitário e familiar, incluindo a extração de produtos florestais não madeireiros, desde que não descaracterizem a cobertura vegetal nativa existente nem prejudiquem a função ambiental da área;
105
Tratando especificamente da ocupação humana dessas áreas de proteção, a
legislação de proteção às APP‟s traz a possibilidade de autorização, em caráter
excepcional pelo Poder Público, de intervenção ou supressão de vegetação, para
fins de regularização fundiária de interesse social de área urbanas consolidadas
ocupadas por população de baixa renda, em caso de restingas e manguezais, nos
quais a função ecológica esteja comprometida (art. 8, § 2º).
Embora do ponto de vista do direito à moradia seja uma medida louvável, a
possibilidade de intervenção em APP‟s para fins de regularização fundiária de área
ocupada por população de baixa renda, se restringe às restingas e aos manguezais
deixando de fora as outras áreas de APP‟s que historicamente são ocupadas, e até
mesmo com muito mais frequência que restingas e manguezais, como as margens
de rios, por exemplo.
É de se observar ainda, sob esse mesmo aspecto da moradia, que o Código
Florestal inclui entre as hipóteses de utilidade pública planos ou atividades de
regularização fundiária de Áreas de Preservação Permanente ocupadas
predominantemente por população de baixa renda (art. 3, IX, d). No entanto,
submete essa regularização à Lei No. 11.977 de 7 de julho de 2009 (Institui o
Programa Minha Casa Minha Vida e dispõe sobre a regularização fundiária de
assentamentos localizados em áreas urbanas) e esta, ao tratar especificamente do
tema estabelece um limite temporal cabal à regularização fundiária, permitindo
apenas que as em áreas de APP ocupadas até 31 de dezembro de 2007, e inseridas
em contexto de área urbana consolidadas possam ser regularizadas, mediante
estudo técnico que comprove que a regularização implica em melhoria das
condições ambientais em relação a ocupação irregular até então existente.
Ao fixar o prazo de ocupação sujeitável a regularização como até 31 de
dezembro de 2007, pretendeu a Lei fixar um marco temporal de forma a permitir a
regularização das áreas de ocupação consolidadas tirando-as da ilegalidade e
k) outras ações ou atividades similares, reconhecidas como eventuais e de baixo impacto ambiental em ato do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA ou dos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente;
106
concedendo algum tipo de segurança à posse dos ocupantes, mas de forma a não
tornar a legislação ambiental letra morta, visto ser a ocupação com construções de
moradias uma das formas mais frequentes de supressão ou intervenção ilegal em
APP. Criava-se assim, um verdadeiro sistema de anistia para as ocupações
irregulares, desde que preenchessem os requisitos legais e fossem anteriores a 31
de dezembro de 2007, e dali por diante, ante a impossibilidade de regularização
novas ocupações não fossem feitas. Mas de fato, a própria evolução histórica do
desenvolvimento urbano no Brasil mostra o pouco ou nenhum controle que o Estado
teve e tem sobre o desenvolvimento urbano, e a incapacidade de planejamento de
políticas efetivas de desenvolvimento urbano e proteção ambiental.
Tudo estaria bem se a partir da vigência da Lei No. 11.297/2009 passasse a
haver um controle efetivo dessas áreas de forma que não fossem mais ocupadas
por construções de morada irregulares, mas de fato continuam sendo, como se nada
tivesse acontecido desde então, e o Poder Público, segue negligente e ineficiente no
controle desses espaços protegidos e ocupados por construções irregulares, que
continuam a se reproduzir.
107
2.4 – INTERSEÇÕES ENTRE O DIREITO À MORADIA E O DIREITO AO MEIO
AMBIENTE EQUILIBRADO.
Como relatado no primeiro capítulo deste trabalho, uma das consequências
da forma como se deu a urbanização no Brasil é a dificuldade no acesso à terra
urbana, em razão do seu alto custo, o que afasta da população de baixa renda a
possibilidade de conseguir habitações regulares, e a compele para áreas pouco
atrativas, seja por serem perigosas, inóspitas, por estarem legalmente fora do
comércio, ou ainda por não estarem sujeitas a parcelamento e edificação, como
ocorrem com as Áreas de Preservação Permanente ou outras áreas que de alguma
forma contemplem algum tipo de proteção ambiental.
Isso cria a uma situação de conflito entre o Direito à Moradia e o Direito ao
Meio Ambiente equilibrado. CANOTILHO afirma que o fato de a Constituição
constituir um sistema aberto de princípios, insinua já, que podem existir fenômenos
de tensão entre os vários princípios estruturantes ou entre os restantes princípios
constitucionais gerais e especiais (1998, 138). Este é o caso do sistema jurídico
brasileiro, cuja constituição traz em seu bojo extenso rol de direitos fundamentais,
como visto de aplicação imediata e que, além disso, dispõe de uma cláusula de
abertura, que permite o reconhecimento de direitos além dos previstos
expressamente no corpo do texto constitucional (art. 5, §2º) e que parte de uma
concepção pluralista de sociedade.
Como visto, se por um lado tem-se o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, um direito fundamental decorrente e de natureza
coletiva amplamente respaldado em diversos dispositivos constitucionais, de outro
lado tem-se o direito à moradia, arrolado entre os direitos fundamentais sociais, de
inegável importância, cuja realização coaduna com o conjunto de valores estatuídos
ao longo do texto constitucional.
Trata-se de um conflito que não se desenvolve naturalmente, não são direitos
por sua natureza conflitantes, mas o conflito se desenvolve principalmente em razão
da debilidade do poder público de por um lado promover políticas públicas
108
adequadas de acesso à terra urbana e habitação adequada, e, por outro lado,
controlar adequadamente bens de interesse ambiental, conforme inclusive dita a
própria Constituição.
Tem-se um conflito de dois direitos e valores constitucionais, igualmente
protegidos pelo texto constitucional, e que encontram fulcro no mesmo princípio
constitucional básico, a realização da dignidade da pessoa humana. Partindo-se
desse pressuposto e de uma compreensão contemporânea de princípios
constitucionais, que nos dizeres de SAULE JÚNIOR, exercem a função de “manter
vivos os valores fundamentais como mandamentos superiores para a compreensão,
interpretação e integração das normas que integram a ordem jurídica de modo a
atender às finalidades e aos objetivos fundamentais de um Estado Democrático de
Direito”(2004, 142). Estando ambos os direitos voltados a uma mesma gama de
valores a serem realizados, deve-se buscar uma conciliação entre eles, uma
aplicação de cada qual em graduações variadas, conforme sua relevância e as
possibilidades fáticas e jurídicas que se apresentem no caso concreto.
Assim sendo, não se deve compreender nenhum dos dois direitos de forma
estanque e absoluta, mas compreendidos dentro do contexto geral do sistema
jurídico constitucional. Deve-se pensar necessariamente num cenário de
coexistência desses direitos, entre si e com os demais princípios e direitos contidos
no sistema, buscando-se a aproximação de ambos os direitos como instrumentos de
realização da pessoa humana, equacionando-os, de forma que se não tenha uma
situação ideal, mas ao menos um cenário factível onde nenhum deles seja
considerado absoluto e indeclinável, ao mesmo tempo que também não se
sacrifique qualquer um.
O próprio Estatuto da Cidade, reflete a busca da compatibilização desses dois
direitos em seu art. 2º, I, quando constrói um conceito de cidades sustentáveis que
se baseia tanto na garantia de acesso à terra urbana e moradia, como pela busca do
saneamento ambiental entre outros direitos para as presentes e futuras gerações.
A própria Lei No. 11.977/09, que dispõe sobre o Programa Minha Casa Minha
Vida, ao dispor sobre a regularização fundiária de assentamentos localizados em
109
áreas urbanas, dentro desse mesmo espírito, busca conciliar o direito ao ambiente e
a moradia, conforme explicita claramente em seu art. 46:
A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Além disso, como visto anteriormente, dispositivos do Código Florestal e da
Lei do Programa Minha Casa Minha Vida buscam até certo ponto conciliar direito à
moradia e ao meio ambiente equilibrado, ao admitir a possibilidade de regularização
fundiária em APP. No caso do Estado de Minas Gerais, a Lei Estadual No. 20.922
de 16 de outubro de 2013, que dispõe sobre as Políticas florestal e de proteção a
biodiversidade no Estado, em seu art. 17, dispõe que será respeitada a ocupação
antrópica consolidada em área urbana, desde que atendidas as recomendações do
poder público. Considera a lei ocupação Antrópica consolidada em área urbana o
uso alternativo do solo em Área de Preservação Permanente - APP - definido no
plano diretor ou projeto de expansão aprovado pelo município e estabelecido até 22
de julho de 2008, por meio de ocupação da área com edificações, benfeitorias ou
parcelamento do solo.
Neste mesmo sentido a própria Medida Provisória No. 2.220 de 2001, que
dispõe sobre a Concessão de uso especial para fins de moradia de imóvel público
situado em área urbana11, determina que é facultado ao poder público assegurar a
concessão do uso para fins de moradia em outro local, entre outros motivos, no caso
11 Concessão especial para fins de moradia trata-se da garantia dada àquele que até 30 de julho de
2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, de concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. Tal direito também poderá ser concedido coletivamente no caso de área de mais de duzentos e cinquenta metros quadrados ocupada por população de baixa renda, quando não for possível individualizar o terreno ocupado por cada possuidor, desde que preencham os mesmos requisitos temporais e objetivos da concessão individual.
110
do imóvel ocupado ser de interesse da preservação ambiental e da proteção dos
ecossistemas naturais (art. 5º, III, parte final).
No âmbito do judiciário as decisões não são uniformes e bastante
controversas. Cabe-se ressaltar primeiramente que âmbito do Supremo Tribunal
Federal há uma única decisão colegiada que verse sobre a questão de eventual
conflito entre direito à moradia e direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado. Trata-se do Agravo Regimental em Recurso Ordinário No. 605.482-SC,
julgado em 10-09-2013, no qual não obstante a alegação do recorrente de seu
imóvel de morada encontrar-se o mesmo em área urbana consolidada e
antropizada, o STF manteve o entendimento pela demolição do mesmo, por estar
em Área de Preservação Permanente.
Quanto ao Superior Tribunal de Justiça, existem alguns poucos julgados que
envolvem o tema, merecendo destaque como emblemático o Recurso Especial No.
403.190, cujo relator foi o Min. João Otávio de Noronha, que tratou de Ação Civil
Pública ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo, visando a reparação de
danos ao meio ambiente decorrente de loteamento clandestino instalado nas
margens da represa Billings, cuja ementa se transcreve:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA – PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE – OBRIGAÇÃO DE FAZER – MATA ATLÂNTICA – RESERVATÓRIO BILLINGS – LOTEAMENTO CLANDESTINO – ASSOREAMENTO DA REPRESA – REPARAÇÃO AMBIENTAL
1. A destruição ambiental verificada nos limites do Reservatório Billings – que serve de água grande parte da cidade de São Paulo –, provocando assoreamentos, somados à destruição da ata Atlântica, impõe a condenação dos responsáveis, ainda que, para tanto, haja necessidade de se remover famílias instaladas no local de forma clandestina, em decorrência de loteamento irregular implementado na região.
2. Não se trata tão-somente de restauração de matas em prejuízo de famílias carentes de recursos financeiros, que, provavelmente deixaram-se enganar pelos idealizadores de loteamentos irregulares na ânsia de obterem moradias mais dignas, mas de preservação de reservatório de abastecimento urbano, que beneficia um número muito maior de pessoas do que as residentes na área de preservação. No conflito entre o interesse público e o particular há de prevalecer aquele em detrimento deste quando impossível a conciliação de ambos.
3. Não fere as disposições do art. 515 do Código de Processo Civil acórdão que, reformando a sentença, julga procedente a ação nos exatos termos do
111
pedido formulado na peça vestibular, desprezando pedido alternativo constante das razões da apelação.
4. Recursos especiais de Alberto Srur e do Município de São Bernardo do Campo parcialmente conhecidos e, nessa parte, improvidos.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial No. 403.190/SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, Julgado em 27 junho de 2006.
Observa-se, nesse caso, que o Acórdão do STJ confirmou a decisão da
instância inferior que determinou a desocupação da área e a reparação do dano
ambiental, preocupando-se especialmente com a questão do abastecimento hídrico
da cidade de São Paulo, mas também observa-se clara preocupação do com direito
fundamental à moradia, revelada na pela forma parcimoniosa com que tratou a
necessidade de demolições.
Outro julgado interessante, neste caso no âmbito penal, mas que traduz a
mesma questão de conflito entre direito à moradia e ao meio ambiente é o
julgamento do Habeas Corpus No. 124.820. Nesse caso, o tribunal entendeu pela
conduta atípica do paciente, que inicialmente havia sido enquadrado no art. 40 da
Lei 9.605/1998 por causar danos a unidade de conservação, ao construir uma casa
de 22 m2 para morar. O tribunal entendeu não configurar crime contra o meio
ambiente em razão da insignificância da lesão ante a relevância do direito de morar,
garantido na Constituição. Segue a ementa do julgado:
PENAL. DANO AO MEIO AMBIENTE (ART. 40 DA LEI N. 9.605/98). CONSTRUÇÃO DE CASA DE ADOBE. DELITO INSTANTÂNEO DE EFEITOS PERMANENTES. CONDUTA ANTERIOR À LEI INCRIMINADORA. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. CRIME. INEXISTÊNCIA. DOLO DE DANO. AUSÊNCIA. MORADIA. DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL. ÁREA CONSTRUÍDA. 22 (VINTE E DOIS) METROS QUADRADOS. INSIGNIFICÂNCIA. PROCESSO PENAL. JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA.
1. A construção de casa de adobe em área de preservação ambiental constitui dano direto instantâneo de efeitos permanentes. Precedentes.
2. Não há crime sem lei anterior que o defina (art. 1º do Código Penal.
3. Conduta anterior à vigência da Lei n. 9.605/1998.
4. A construção de casa para servir de moradia ao acusado e sua família não configura dolo de dano ao meio ambiente, pois traduz necessidade e direito fundamental ao chão e ao teto (art. 6º da Constituição Federal.
112
5. O direito penal não é a prima ratio; o dano causado ao meio ambiente decorrente da edificação de casa com 22 (vinte e dois) metros quadrados não ultrapassa os limites do crime de bagatela e pode ser resolvido por meio de instrumentos previstos em outros ramos do Direito Civil.
6. Ordem concedida para cassar o acórdão e restaurar a sentença absolutória.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus No. 124.820/DF Relator Min. Celso Limongi (desembargador convocado do TJSP), julgado em 05-05-2011.
Em sentido contrário, e desconsiderando a relevância do direito à moradia no
caso concreto frente a questão ambiental, tem-se julgado do Tribunal Regional
Federal da 4ª região proferido em 2010, promovida pelo Ministério Público de Santa
Catarina contra o Município de Florianópolis, na qual o ministério público visando à
desocupação e à recuperação de área de proteção permanente, bem como à
demolição de moradia irregularmente construída, com localização em terreno de
marinha no Parque Municipal da Lagoa do Peri. Partindo-se do pressuposto da
compatibilização do direito ao meio ambiente com o direito à moradia, condicionou-
se o cumprimento das ordens de desocupação, demolição e de recuperação
ambiental fica condicionado à designação pelo Poder Público de moradia alternativa
aos ocupantes da área. No entanto o referido acórdão foi objeto de embargos
infringentes, e foi reformado retirando-se a condicionante, por entender-se que no
caso representava a garantia de moradia alternativa “uma desapropriação indireta
atípica e estímulo para a ocupação de áreas de proteção ambiental como modo de
aquisição de moradia”. Segue a ementa do julgado:
EMBARGOS INFRINGENTES. DIREITO ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ÁREA DE PROTEÇÃO PERMANENTE. OCUPAÇÃO IRREGULAR. GARANTIA DE MORADIA. IMPOSSIBILIDADE.
1. Ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal visando à desocupação e à recuperação de área de proteção permanente, bem como à demolição de moradia irregularmente construída, com localização em terreno de marinha no Parque Municipal da Lagoa do Peri, situado na cidade de Florianópolis.
2. O cumprimento dos comandos da sentença deve ocorrer após o trânsito em julgado, já que a espécie versa sobre ocupação irregular diante da ausência de direito de propriedade legítimo, representando a garantia de moradia alternativa uma desapropriação indireta atípica e estímulo para a ocupação de áreas de proteção ambiental como modo de aquisição de moradia.
113
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Reigão. Embargos Infringentes No. 2005.04.01.020586-8, Segunda Seção, Relator Sérgio Renato Tejada Garcia, julgado em 09/09/2010.
No mesmo sentido, julgado recente do Tribunal de Justiça do Estado de
Minas Gerais, que, em sede de Apelação Cível, negou provimento a recurso
interposto por pessoa que edificava casa de 47 m2 na margem de um curso de água
e que serviria a si e sua família para morada nos seguintes termos:
Ainda que o réu ali pretendesse morar com sua família, e que se alegue necessitado, o interesse em jogo é bem maior, pois o meio ambiente saudável e equilibrado é de interesse de toda a coletividade nacional, das presentes e futuras gerações. Não pode haver exceção, nem abrandamento na aplicação das rígidas normas de prevenção e reparação, sob pena de se contribuir, ainda mais, para a degradação do tão sagrado meio ambiente.
12
Assim, observa-se que a jurisprudência não tem sido uníssona na questão da
compatibilização do direito à moradia e do direito ao ambiente equilibrado, se em
alguns casos demonstrando estar no mesmo compasso da compatibilização de
direitos fundamentais, em outras situações simplesmente ignora a posição de ao
menos um deles como direitos fundamentais e o que isso significa e a necessidade
de compatibilização e coexistência desses direitos fundamentais.
Por outro lado, o tratamento legislativo que vem sendo dado a questão, ainda
que insuficiente para solucionar os vários problemas existentes, tem se apresentado
12 CONSTITUCIONAL E AMBIENTAL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - ÁREA DE PRESERVAÇÃO
PERMANENTE - CONSTRUÇÃO - INADMISSIBILIDADE - REGRA OBJETIVA - SENTENÇA MANTIDA.
- A regra que estabelece a impossibilidade de se intervir - notadamente mediante construção de morada em alvenaria - em área de preservação permanente é objetiva e cogente. - Constatado o início de construção de uma casa em APP, confirma-se a sentença que determinou sua demolição, de acordo com as conclusões de laudo pericial.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível No. 1.0476.09.009562-3/001, Relator Des. Alberto Vilas Boas. Julgada em 10/01/2012.
114
mais sensível à necessidade de coexistência dos direitos fundamentais de moradia e
meio ambiente equilibrado.
No entanto, para além das medidas legislativas, ou quando estas se
apresentarem insuficientes para resguardar devidamente os direitos fundamentais
envolvidos, necessárias se fazem outros instrumentos jurídicos capazes de
resguardar as pessoas enquanto sujeitos de dignidade e direitos.
Nesse sentido, surgem os princípios jurídicos, dentro de um contexto em que
o ordenamento jurídico não se centra mais na lei e sim na própria Constituição e que
a lei também deixa de ser a fonte exclusiva de direitos e deveres, admitindo-se uma
multiplicação dessas fontes, sempre tendo como base a Constituição e a realização
dos seus valores básicos e dos direitos fundamentais. Dentre esses princípios
jurídicos, destaca-se o princípio da boa-fé, fundamental às relações entre Estado e
Cidadão no contexto do Estado democrático. A seguir passa-se a análise do
princípio da boa-fé como princípio idônea a tutela da segurança jurídica e da
confiança, para daí, tratar dele como instrumento de proteção ao direito de moradia.
115
3. A PROTEÇÃO DA CONFIANÇA DOS CIDADÃOS NO ESTADO: O PRINCÍPIO
DA BOA-FÉ.
A proteção da confiança legítima tem por base a tutela das legítimas
expectativas que as pessoas criam em sua teia de relações sociais. É a
confiabilidade nas pessoas que permite construir relações de interdependência com
os diversos atores sociais, com base na previsibilidade e calculabilidade do
comportamento de cada um. É a confiança que proporciona segurança.
Para LUHMANN, a confiança é uma forma de redução da complexidade
social na tomada de decisões baseando-se numa expectativa confiável levando em
conta que a decisão tomada no momento atual considera que elementos que a
embasaram também se mantenham no futuro. Para o citado autor “mostrar
confianza es antecipar el futuro. Es comportarse como si el futuro fiera certo. Uno
podría decir que a través de la confianza, el tiempo se invalida o ao menos se
invalidan las diferencias de tiempo” (1996, 15). O papel da confiança consiste pois
em reduzir o futuro, antecipando-o, conforme uma análise realizada do presente.
Explicita noutro ponto o autor:
El problema de la confianza consiste en el hecho de que el futuro continente muchas más possibilidades de las que podrían actualizarse en el presente, y de presente transferirse al pasado. La incertidumbre que tende a existir es simplesmente uma consecuencia de um hecho muy elemental, que no todos los futuros pueden convertirse en presente y de aqui convertirse em pasado. El futuro coloca uma carga excessiva em la habilidad del hombre para representarse las cosas para sí mismo. El hombre tiene que viver en el presente junto com este futuro, de sobremanera complejo, eternamente. Por lo tanto debe podar el futuro de mod que se iguale con el presente, esto es, reducir la complejidad (LUHMANN, 1996, 20-21).
A proteção da Confiança no Direito Público moderno funda-se no princípio
democrático constitucional, previsto no art. 1º, parágrafo único da Constituição
Federal, segundo o qual todo poder emana do povo e em seu nome é e exercido
nos termos da Constituição. Assim os indivíduos não são meros destinatários do
116
poder, mas, considerados em conjunto, são os próprios titulares deste poder. Nos
dizeres de SUNDFEELD, as relações de direito público se caracterizam por vínculos
entre um sujeito que exerce o poder político, mas não o titulariza, e um sujeito que o
titulariza, mas não o exerce, mas ao contrário, suporta (2010, 111).
Isso posto, deve ser reconhecido que o Estado tem uma função instrumental,
de realização dos anseios de seus cidadãos enquanto coletividade e de cada um
deles individualmente considerados, não comportando um fim em si mesmo. Se a
República é constituída, nos termos da Constituição, sob o signo da primazia da
dignidade da pessoa humana, significa que essa dignidade é um valor máximo da
nação enquanto sociedade política e todo o aparato estatal tem como fim o
reconhecimento da dignidade das pessoas e sua promoção, enquanto indivíduos e
enquanto coletividade.
Assim sendo, o Estado é mero custódio do interesse coletivo, única razão
pelo qual detém o poder político. Em razão disso tem o dever de atender as
expectativas dos seus cidadãos, correspondendo à confiança legítima em si
depositada pelo titular deste poder. A proteção da confiança nas relações Estado
versus cidadão é decorrência lógica do próprio exercício do poder político em nome
da coletividade.
A segurança jurídica é também um dos pilares centrais do Estado de Direito.
Isto porque, para que as pessoas possam viver em paz e buscar a felicidade, é
necessário que tenham estabilidade nas relações jurídicas das quais participam. É
isso inclusive que leva a criação de mecanismos jurídicos que confiram
previsibilidade à atuação do Estado e à aplicação do direito.
O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito. Estes dois princípios – segurança jurídica e proteção da confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada como elementos objetivos da ordem pública – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança,
117
designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos. (CANOTILHO, 1998, 256)
A necessidade de confiança dos indivíduos no Estado é um dos próprios
motivos do surgimento do Direito Público. A substituição do arbítrio e dos caprichos
dos soberanos do Estado Absolutista pela limitação do poder pela lei no Estado de
Direito, entre outros anseios reflete a necessidade de confiabilidade no
comportamento do poder político.
Daí inclusive a confusão que, ordinariamente, acontece entre segurança
jurídica e legalidade, já que aquela é por esta realizada, pois é o conhecimento
prévio da lei que permite aos particulares tomarem conhecimento do direito e
preverem as consequências de suas condutas e das dos demais membros da
coletividade e do Estado. É essa previsibilidade que delimita verdadeiramente a
liberdade dos cidadãos. Sem a possibilidade juridicamente garantida de prever e
calcular a atuação do Estado, o ser humano deixaria de ser o protagonista de sua
própria história, numa flagrante violação da dignidade que lhe é própria.
Não obstante a relação intrínseca entre segurança e confiança, enquanto
princípios jurídicos providos de normatividade comportam significados autônomos,
lição dada por um grande estudioso do tema no Brasil, ALMIRO DO COUTO E
SILVA,
Por vezes encontramos, em obras contemporâneas de Direito Público, referências a “boa-fé”, “segurança jurídica”, “proteção à confiança” como se fossem conceitos intercambiáveis ou expressões sinônimas. Não é assim ou não é mais assim. Por certo, boa-fé, segurança jurídica e proteção à confiança são ideias que pertencem à mesma constelação de valores. Contudo, no curso do tempo, foram se particularizando e ganhando nuances que de algum modo as diferenciam, sem que, no entanto, umas se afastem completamente das outras. (2005, 2)
O referido autor divide o princípio da segurança jurídica em duas partes, uma
de ordem objetiva e outra de ordem subjetiva. A primeira, de ordem subjetiva, é
aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até
118
mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos. No Brasil, diz respeito à
proteção direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, insculpida no art.
5, XXXVI, da Constituição Federal.
A outra, de ordem objetiva, refere-se à proteção da confiança dos cidadãos,
no que concerne aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais
diferentes aspectos, de sua atuação.
Enquanto a primeira se centra na garantia de estabilidade das relações
jurídicas, esta última impõe ao Estado limitações ou condições à liberdade de alterar
sua conduta e de modificar atos que produziram vantagens para os cidadãos,
mesmo quando ilegais em virtude da crença gerada naqueles que se beneficiam
com a situação anterior de que aqueles atos eram legítimos, o que fazia supor que
seriam mantidos. Ambas remetem a ideia de estabilidade nas relações jurídicas e
por isso à segurança jurídica, mas esta, em sua ordem objetiva, remete à ideia de
confiança: confiança em uma posição jurídica, confiança em uma conduta, confiança
que não pode ser quebrada sem ofensa à ordem jurídica.
O Estado deve pautar seus atos pela legalidade. Como visto anteriormente,
essa é uma das premissas sobre a qual a própria gênese do direito público foi
assentada. Um dos efeitos colaterais dessa vinculação positiva da conduta do
Estado à lei é justamente a aparência e também a presunção da legalidade do
direito administrativo, elaborado para permitir a operatividade da função
administrativa. Essa situação tem justificado a conservação da conduta
administrativa, mesmo quando viciado de forma a proteger os interesses dos
cidadãos.
COUTO E SILVA relata como exemplo mais antigo e conhecido de proteção
da confiança um fragmento de Ulpiano contido no digesto, sob o título de De ordo
praetorum (D.1.14.1), no qual o célebre jurista narra o caso do escravo Barbarius
Philippus, que foi nomeado pretor em Roma ocultando sua condição de escravo.
Indaga Ulpiano: “Que diremos ao escravo que, conquanto ocultando essa condição
exerceu a dignidade pretória? O que editou, o que decretou, terá sido talvez nulo?
Ou será válido por utilidade daqueles que demandaram perante ele, em virtude da
lei ou do direito?”
119
O que precisa ficar claro é que o direito nesses casos protege não é a
aparência de legitimidade dos atos praticados, mas a confiança gerada nas pessoas,
em virtude da presunção da legalidade e da aparência de legitimidade que tem os
atos Praticados pelo Poder Público.
3.1. – O Princípio da Boa-fé: Apontamentos iniciais e breve histórico.
Embora de amplo domínio da comunidade jurídica, o princípio da boa-fé
guarda em si algumas contradições. De uso frequente em julgados e na doutrina
jurídica, nunca foi objeto de um estudo global e sistemático. Como assevera
MENEZES CORDEIRO, um dos grandes estudiosos do tema nos últimos anos,
nunca houve sobre a boa-fé um estudo global que tratasse os diversos quadrantes
da sua História, a sua dogmática e os aspectos metodológicos daí decorrentes. O
estudos dedicados ao tema, que são inúmeros, são em geral parciais e a partir
desses vem surgindo investigações mais alargadas (2001, 41).
Etimologicamente, o termo boa-fé tem como origem a expressão bona fides
que quer dizer: fidelidade, crença, confiança, sinceridade, posicionando
antagonicamente a má-fé que quer dizer engano, malícia, dolo. O princípio da Boa-
Fé tem raízes no Direito Romano, uma vez que já na antiguidade se preocupavam
os romanos com o estabelecimento de princípios na aplicação do direito. Apesar de
nunca terem construído uma teoria geral do negócio jurídico, pode-se perceber que
entre a vontade declarada e a vontade interna, inclinaram-se para esta última em
detrimento da vontade externa, pois “na maioria de suas instituições buscaram
sempre o animus, affectus, ou consensus, ou seja, a verdadeira voluntas” (PETIT,
2003, 251).
Deve-se ao princípio da boa-fé a tutela da confiança ao longo do tempo.
Deveras, a boa-fé, ao longo do tempo assumiu uma presença constante nas
120
relações privadas, especialmente nas contratuais como elemento de proteção à
confiança entre os atores jurídicos ou sempre associada a ela.
MENEZES CORDEIRO relata a origem da boa-fé na fides romana. A fides
romana se concretizava nas relações entre a clientela e os patrícios (2001, 59). A
clientela era um tipo de estratificação social, um grupo de pessoas que se situavam
entre o cidadão livre e o escravo, que em troca da promessa de proteção e favores
(fides promessa), se submetiam a certos deveres de lealdade e obediência (fides
poder). Progressivamente desaparecem os elementos de sujeição e da ideia de
fides promessa evolui o elemento que vai importar para o Direito Civil, a ideia de
garantia, ligada à palavra dada (CORDEIRO, 2001, 62). No campo contratual,
MARTINS-COSTA noticia a existência de documento antigo ligando a expressão
fides aos contratos internacionais. Trata-se do tratado entre Roma e Cartago, que
cria regras, segundo a qual, cada uma das partes contraentes prometia sobre a
própria fé – publica fides, ou seja, sobre a fé que liga a coletividade ao respeito das
convenções livremente pactuadas – a assistência ao cidadão da outra cidade para a
proteção dos interesses advindos dos negócios privados (MARTINS-COSTA, 2000,
113)
Na cultura germânica, a fórmula do treu und glauben demarca o sentido de
boa-fé. Treu (lealdade) e glauben (crença), analisadas no contexto medieval dos
juramentos de honra e das tradições cavalheirescas, traduzem um significado
completamente diferente da boa-fé romana. A garantia de manutenção e
cumprimento da palavra dada não se vincula mais a uma ótica subjetiva (do garante
ou cliente), mas a uma perspectiva ética, objetiva, ligada à confiança geral
estabelecida em nível de comportamento coletivo. “ „Fiadores e defensores‟, como
Lancelot, os chevaliers não agem por interesse próprio, mas tendo em vista os
interesses do alter – da sua dama, do seu soberano, da sua coletividade”
(MARTINS-COSTA, 2000, 126).
Na idade média, a formação dos contratos passa a ter influência decisiva da
boa-fé por meio da concepção da autonomia da vontade e do Direito Canônico.
Como assevera Cláudia Lima Marques,
121
O Direito Canônico contribuiu decisivamente para a formação da doutrina da autonomia da vontade e, portanto, para a visão clássica do contrato, ao defender, a validade e a força obrigatória da promessa por ela mesma, libertando o direito do formalismo exagerado e da solenidade típicos da regra romana. O simples pacto faz nascer a obrigação jurídica, como fruto do ato do homem (MARQUES, 2002, 44).
Dessa forma, a palavra dada conscientemente pelo contratante, criava uma
obrigação que tinha como fundamento moral de que a promessa criava expectativas
de proceder, que por isso, deveriam ser cumpridas.
No Direito canônico, a concepção de boa-fé estava completamente atrelada à
ideia de pecado. À palavra dada e à promessa era atribuído valor moral, porque na
cultura cristã a mentira é considerada pecado. Assim, a boa-fé passa a ter um
significado unificado, cuja substância se encontra na “ausência de pecado”.
Enfraquece-se o seu significado ético do direito obrigacional e é fortalecida a
dimensão subjetivista. Esta última é fortalecida com a vinculação a ideia do pecado
porque não basta mais a mera ignorância do vício é necessária a consciência íntima
da ausência do pecado, de se estar agindo corretamente. (MARTINS-COSTA, 2000,
131)
O conceito moderno de boa-fé tem início na França, com a promulgação do
Código Civil dos Franceses em 1804, também conhecido como Código de Napoleão,
que o trazia como noção fundamental do direito dos contratos. A referida legislação
chegou a ter disposição expressa segundo a qual “as convenções devem ser
contratadas e executadas de boa-fé” (LOUREIRO, 2004, 66). No entanto, o Código
Civil dos Franceses sob uma ótica hodierna teve seu dispositivo negligenciado, em
razão das ideias liberalistas da autonomia da vontade, do medo da sua
transformação em um dogma absoluto, ou da aplicação arbitrária dos juízes, como
acontecia no antigo regime. A boa-fé volta a aparecer no Código Civil Alemão no fim
do século XIX, mas sempre com projeção muitíssimo limitada no restante do mundo
ante o positivismo jurídico dominante.
Para a grande maioria dos legisladores desse período os princípios, entre
eles o da boa-fé, eram vagos e imprecisos. A técnica legislativa nascente na
revolução francesa primava por utilizar termos precisos, que não deixassem dúvidas
122
quanto à obrigatoriedade das convenções, pois havia o medo da liberdade dada ao
arbítrio judicial. A burguesia, enquanto classe social ascendente que assumia cada
vez mais poder econômico, social e político desejava estruturas inclusive jurídicas
capazes de atender a seus interesses e concepções que incluía medo do ancien
régime. Nesse contexto, temia-se a liberdade dos juízes:
O temor de um “governement des juges” pairava como uma sombra sobre as reformas francesas pós-revolucionárias, lançando suas matizes sobre o processo de codificação. A ênfase na completa separação de poderes, com todo o processo legislativo alocado na legislatura eleita, foi uma forma de assegurar que ao judiciário seria negado o poder de elaborar o direito. A experiência com as cortes do período pré-revolucionário provocara aos franceses preocupações de que os juízes pudessem ditar o direito sob o disfarce de interpretação jurídica. Em razão disto, alguns autores argumentavam que se deveria negar aos juízes até mesmo o poder de interpretar a legislação (MERRYMAN e PÉREZ-PERDOMO, 2009, 56).
Na esteira desse pensamento e na ideologia liberal e individualista que
permeou todo o século XIX, o princípio da boa-fé, apesar de presente na
Codificação francesa em seu art. 1134, quando não é ignorado é empobrecido.
Deixa de constituir um instrumento flexibilizador dos negócios jurídicos com o qual o
interprete pode em certos casos limitar a autonomia privada e passa a ser sobretudo
um instrumento de consolidação da ideologia dominante, onde boa-fé passa a ser
acima de tudo um instrumento de consolidação da autonomia da vontade e
confirmador do pacta sunt servanda.
A boa-fé era apenas um princípio geral do direito que sempre foi usado
secundariamente, para sancionar ações desleais ou contrárias à equidade.
No entanto, os abusos cometidos pelos detentores do poder econômico que
provocaram reações e a evolução da sociedade para uma sociedade industrializada,
marcada pela produção e pelo consumo em massa, causaram transformações
nessa visão que até então predominara no liberalismo.
A sociedade industrial do século XX, que passou a ter como característica de
seus negócios a produção e o fornecimento de produtos e serviços em grandes
123
quantidades, tornou o comércio impessoal e fez com que as empresas se
colocassem num patamar de superioridade em relação aos indivíduos
consumidores, permitindo que fossem ditados unilateralmente os termos contratuais
por quem detinha o poder econômico.
Com a vigência da ampla liberdade para contratar, o direito do Estado
Liberalista simplesmente reconhecia a supremacia de quem detêm o poder
econômico, o que terminaria por desequilibrar a sociedade. Assim, a concepção
clássica de contrato entrou em crise, pois deixou de atender a realidade sócio-
econômica que despontou no século XX.
Cláudia Lima Marques informa que:
Em muitos casos o acordo de vontades era mais aparente do que real; os contratos pré-redigidos tornaram-se a regra, e deixavam claro o desnível entre os contratantes – um autor efetivo das cláusulas, outro, simples aderente – desmentindo a ideia de que assegurando-se a liberdade contratual, estaríamos assegurando a justiça contratual (MARQUES, 2002, 150).
Junte-se a esse quadro o fato de que a concepção do Estado Liberal ausente
entra em declínio, incapaz de atender as reivindicações da sociedade,
principalmente das parcelas menos privilegiadas, dando lugar ao Estado Social
atuante, que passa a intervir nas relações sociais e econômicas, mediante a
prestação de inúmeras atividades sociais, atuando inclusive nas contratações, com
sua vontade soberana, para evitar lesões e desequilíbrios.
Surge então nova concepção de contrato, a chamada Concepção Social do
contrato, que além de levar em conta a vontade das partes, também leva em conta
as condições sociais e econômicas dos contraentes e se interessa pelos efeitos que
o mesmo causará na sociedade. O direito passa então a exercer uma função
limitadora da autonomia da vontade, levando em conta outros aspectos, inclusive a
boa-fé dos contratantes.
Na esteira dessa nova concepção de contrato, na segunda metade do século
XX começa-se a transformar o conceito de boa-fé, diante das mudanças ocorridas
124
na sociedade, do desenvolvimento do comércio internacional e do crescimento cada
vez maior do consumo em massa e da preocupação com a proteção da parte mais
frágil no contrato. A boa-fé passa a ter um fundo solidarista e de consciência ética da
sociedade. Nos dizeres de LOUREIRO,
a boa-fé agrega uma exigência ético-social que é, ao mesmo tempo, de respeito à personalidade alheia e de colaboração com os demais. Ela se distingue de outras exigências da convivência, em seu aspecto positivo, pois impõe, não simplesmente uma conduta negativa a respeito, senão um ativa colaboração com os demais, encaminhada a promover seu interesse (LOUREIRO, 2004, 68).
Assim, por tratar-se de um conceito simples e amplo, pode ser aplicado
dentro de qualquer negócio jurídico, vinculado a regras que destinem a sancionar
um comportamento repreensível ou anormal. A contratação de boa-fé é a essência
do próprio entendimento entre os seres humanos, é a presença da ética nas
relações jurídicas negociais.
No âmbito do Direito Público, COUTO E SILVA (2005, 6) relaciona o
surgimento da Proteção à confiança ao Estado Social ou Estado-Providência, em
razão das situações de dependência que surgiram do cidadão para com o Estado,
especialmente em razão dos serviços e prestações por ele realizados,
diferentemente do que ocorria com o Estado Liberal burguês.
Relata o autor que o princípio da proteção da confiança é de origem
jurisprudencial e tem como ponto de partida uma série de decisões prolatadas que
visavam impor limites à retratabilidade de atos administrativos cuja ocorrência
poderia causar prejuízos aos administrados. Começa a se firmar a partir de uma
emblemática decisão do Superior Tribunal Administrativo de Berlim de 1956, que
posteriormente foi confirmada por acórdão do Tribunal Administrativo Federal em
1957.
Refere-se ao caso da anulação da concessão de pensão a uma viúva de um
funcionário público que vivia em Berlin Oriental (então parte da República
Democrática da Alemanha) e que obteve a promessa do pagamento do benefício
125
mediante a mudança para Berlin Ocidental (parte da República Federal Alemã).
Após ter mudado e tendo passado um ano recebendo o benefício, o mesmo foi
anulado sob o argumento de que sua concessão foi ilegal, o que de fato ocorreu, e
ainda lhe foi determinada a devolução dos valores recebidos ilegalmente. Levado à
apreciação do judiciário, os tribunais alemães ponderando o princípio da legalidade
com relação ao da proteção da confiança – ambos de estatura constitucional -
entenderam que, ainda que houvesse ilegalidade, a proteção à confiança tinha mais
peso, determinando que o ato não fosse desconstituído (BINENBORJM, 2008, 182).
A partir de tal decisão, o princípio da proteção da confiança se desenvolveu no
direito alemão, influenciou o direito inglês e foi reconhecido como princípio
fundamental do direito comunitário, com o nome de princípio da confiança legítima,
sendo reconhecido pela jurisprudência da Corte de Justiça das Comunidades
Europeias, como “regra superior de direito” e como “princípio fundamental do direito
comunitário”.
Tomando-se a boa-fé objetiva como um padrão de conduta ético e
responsável, em que se espera que os envolvidos em uma relação jurídica guardem
lealdade, é inegável a identidade do princípio da boa-fé em seu sentido objetivo com
a tutela da confiança, visto que essa, em última instância se destina a estabelecer
tutela jurídica das legítimas expectativas depositadas pelo cidadão em razão de
condutas, atos e procedimentos praticados pelo Estado no exercício da função
administrativa.
A exigência da aplicação do princípio da boa-fé nas relações Estado e
Cidadão decorre primeiramente da necessidade da proteção da confiança nas
relações jurídicas em geral. É uma necessidade do tráfego jurídico e de todos os
vínculos jurídicos que se criam. Destaque-se aqui a profunda relação do princípio
em referência com o valor Ética, bem como a reaproximação entre o Direito e esta
última, especialmente havida a partir do movimento pós-positivista surgido no
contexto pós segunda guerra mundial e de como esse movimento tem se dedicado à
construção de relações entre valores, princípios e regras, buscando justamente dar
normatividade a elementos da Ética.
126
A despeito da necessidade de boa-fé nas relações em geral, por outro lado,
destaque-se a necessidade específica de proteção da confiança nas relações entre
Estado e Cidadão, onde valores como lealdade, honestidade e moralidade se
tornam especialmente relevantes. Considerando o Estado como fiduciário do poder
político e como prestador de serviços públicos à comunidade, a colaboração da
Administração pública com os administrados e destes com aquela se torna essencial
para a melhor prestação dos serviços.
Ensina nesse sentido GONZÁLEZ PÉREZ:
Vivimos en uma sociedade en la que el hombre encuentra limitada su libertad real en proporciones jamás soñadas, en la que la satisfacción de las más elementares necessidades depende de las prestaciones de la Administración pública, en la que el Estado ha invadido las esferas más íntimas. La situación ha sido descrita hasta la saciedad en la literatura especializada y no especializada.(...) En este mundo, la humanización de las relaciones entre la Administración y el administrado constituye el único remédio para que la desesperación del administrado no le conduzca a un final trágico (2004, 55).
A boa-fé aparece primeiramente no Brasil no Código Comercial de 1850 em
seu art. 131 que previa que sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a
interpretação entre outras regras, deveria se basear na inteligência simples e
adequada, que fosse mais conforme a boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do
contrato, devendo prevalecer ante a rigorosa e restrita significação das palavras. No
entanto, tal dispositivo não teve grande apelo perante a doutrina e os tribunais. O
Código Civil de 1916, de inspiração no direito francês, não consagrou a boa-fé
expressamente como fazia o Código Comercial de 1850.
Apesar da aplaudida inovação do Código Civil de 2002, de consagrar
expressamente o princípio da Boa-fé em vários de seus dispositivos, o referido
princípio sempre teve - como ainda o tem - pouca utilização ou sendo esta limitada.
Os tribunais pátrios tem utilizado a boa-fé como fonte complementar dos negócios
jurídicos, um princípio de ordem principalmente limitativa, resistindo em que seja
usada para revisar ou ampliar nos negócios jurídicos, insistindo na preponderância
da obrigatoriedade do contrato.
127
MENEZES CORDEIRO em sua tese de doutoramento refuta qualquer
tentativa de definição lapidar da boa-fé, pois acredita que a mesma não opera como
um conceito comum e uma definição qualquer que seja, não expressaria o alcance e
a riqueza reais do instituto. Para ele, “a boa-fé traduz um estágio juscultural,
manifesta uma Ciência do Direito e exprime um modo de decidir próprio de certa
ordem jurídica” (CORDEIRO, 2001, 20).
Com efeito, a noção de boa-fé objetiva no contexto atual do Direito está
profundamente ligada ao valor ética, e nesse sentido, dá juridicidade a ideias como
lealdade, correção, veracidade e justa expectativa, que compõe o substrato dos
negócios jurídicos em geral.
De raízes profundas no Direito Privado, presente principalmente nos negócios
jurídicos de cunho obrigacional, com o tempo o princípio da boa-fé passou a ter
notória importância também nas relações envolvendo o Poder Público,
especialmente com a ampliação do papel Estado na vida dos indivíduos.
Boa-fé é um princípio caracterizado pela ampla generalidade e que não
comporta uma definição em termos rígidos. Embora tenha merecido um estudo mais
aprofundado no Direito Privado, especialmente no campo do direito obrigacional,
está de tal forma enraizado em nossa cultura jurídica que todo operador do direito
dele guarda alguma noção.
O desenvolvimento do instituto ao longo do tempo nos oferece duas
perspectivas de análise sobre o princípio. A primeira, de ordem subjetiva, no qual a
boa-fé se refere a um estado psicológico de alguém que ignora algum vício na sua
conduta, que julga estar procedendo licitamente sem causar lesão a outrem. É um
estado de consciência, uma crença de estar agindo conforme o direito. Age de boa-
fé aquele que tem ou não tem conhecimento da lesividade de sua própria conduta. A
boa-fé é medida pela intenção do agente ao manter determinada conduta.
Numa segunda perspectiva, de natureza objetiva, a boa-fé centra-se não no
fator psicológico, mas na própria conduta praticada. Vale dizer o que é analisado
não é com que intenção foi praticada a conduta mas na própria forma de proceder,
128
num comportamento reflexivo, preocupado com os efeitos das próprias ações sobre
a outra parte.
Como relata MARQUES,
fides significa o habito de firmeza e coerência de quem sabe honrar os compromissos assumidos, significa, mais além do compromisso expresso, a “fidelidade” e coerência no cumprimento da expectativa alheia independentemente da palavra que haja sido dada, ou do acordo que tenha sido concluído; representando, sob esse aspecto, a atitude de lealdade, de fidelidade, de cuidado que se costuma observar e que é legitimamente esperada nas relações entre homens honrados, no respeito cumprimento das expectativas reciprocamente confiadas (2002, 181).
Assim, Boa-fé em sentido objetivo, não depende da intenção do agente, mas
da própria forma com ele procedeu, considerando um padrão geral de conduta que
de uma forma geral se pode esperar de alguém, tomado como uma pessoa proba, e
que por isso é capaz de gerar legítimas expectativas naqueles que se relacionam
com essa pessoa. É o comportamento, que de uma forma geral, se espera do
homem médio, honesto e diligente.
Judith Martins-Costa sintetiza de forma clara os significados das duas
acepções de boa-fé de modo a diferenciá-los:
A expressão “boa-fé subjetiva” denota “estado de consciência”,ou convencimento individual a cobrar [a parte] em conformidade ao direito [sendo] aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se “subjetiva” justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antiética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.
Já por “boa-fé objetiva” se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao § 242 do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual “cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade”. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo (2000, 411).
129
A doutrina civilista normalmente informa as duas formas de boa-fé alcançando
mais influência em um ou em outro campo do direito, como por exemplo a boa-fé
objetiva, que encontra maior campo de aplicação no direito obrigacional e contratual
e a boa-fé subjetiva, que encontra maior campo de aplicação no direito das coisas.
Mas é de se ressaltar que essa partição quanto ao âmbito de aplicação não é
estanque, e se dá em razão da adequação da funcionalidade na própria relação que
pretende regular. De toda forma, é importante salientar que qualquer que seja a
dimensão da boa-fé a ser aplicada, se objetiva ou subjetiva, ambas expressam
unidade enquanto conteúdo de significado ético e enquanto norma jurídica.
3.2. - Diferenciação entre Boa-fé e Proteção da Confiança.
Se a diferenciação entre Confiança e Segurança Jurídica não apresenta
maiores celeumas, a diferenciação entre a Teoria da Confiança e da Boa-fé não se
apresenta sem certas dificuldades. Especialmente porque é comum a referência no
Direito Administrativo, inclusive na jurisprudência, à Segurança Jurídica, Proteção da
confiança e boa-fé como sinônimos.
É comum o surgimento de referências ao princípio da boa-fé como
instrumento de proteção à confiança, bem como também o é encontrar-se
referências a confiança no âmbito de um princípio autônomo, que parece em
princípio se diferenciar do princípio da boa-fé.
De fato, se não são expressões sinônimas, guardam íntima relação, já que
estão na mesma “constelação de valores”. A compreensão da relação que guardam
entre si é importante, não só para compreender qual a influência que uma lança
sobre a outra, e como cada uma atua no ordenamento jurídico.
130
SCHREIBER, não visualiza dos princípios distintos. Na esteira do direito
alemão, ele fundamenta o princípio da confiança como o principal conteúdo da boa-
fé objetiva e como forte expressão da solidariedade social (2007, 95). ASCENSÃO,
por seu turno compreende Boa-fé e Confiança como princípios independentes que
coexistem (2006, 87).
MARTINS-COSTA, por sua vez, entende a boa-fé como uma confiança
qualificada como boa, virtuosa, justa (2003, 29-30).
Para GONZÁLEZ PÉREZ, o princípio da boa-fé, incorpora a confiança.
Escreve o autor que:
La buena fe incorpora el valor ético de la confianza. Confianza en la forma de actuación que cabe esperar de la persona com que nos relacionamos. En el ámbito de las relaciones jurídico-administrativas la actuación que cabe esperar de uma Administración pública respecto de outra o respecto del administrado, o el administrado de la Administración pública (2004, 67).
A discussão se situa em verificar se os princípios se separam apenas por uma
questão semântica ou se existem diferenças funcionais entre eles, atingindo um
esferas que o outro não alcança.
Realmente, o que se percebe é que não há uma diferença entre confiança
enquanto referida como princípio autônomo e o princípio da boa-fé. Observa-se que
tanto na jurisprudência ou na doutrina, observam-se referências tanto a um quanto a
outro, com funcionalidade idêntica e no mesmo âmbito de aplicação.
O que se observa é que são conceitos construídos em grande parte pela
jurisprudência, e talvez a confusão se deva ao fato dos tribunais se referirem tanto à
boa-fé como a confiança como princípios, sem traçar uma delimitação clara
necessária de um e de outro e aplicando os dois em situações idênticas e buscando
os mesmos efeitos.
131
Talvez, depois de muito esforço, alguém extremamente apegado a conceitos
pudesse chegar a esferas de ação a que chega o princípio da confiança e não chega
o princípio da boa-fé ou que chega este último princípio e não chega aquele.
Mesmo que isso ocorra, não parece ser suficiente para tratar confiança e boa-
fé como princípios distintos. Boa-fé ou Confiança (aqui referidos como um único
princípio) é norma de caráter principiológico que por sua própria natureza
comportam uma vagueza de significado ou múltiplos significados a ser completada
por um juízo de valor na solução do caso concreto, e por isso fogem da forma
tradicional de construção da norma jurídica, as regras de direito descritivas. Assim,
mesmo que alguém encontrasse âmbitos de aplicações diferentes, não significaria
ainda assim tratarem-se de princípios distintos.
Isso posto, quando se refere a princípio da Boa-fé e da Legítima Confiança,
entende-se como referência a um mesmo princípio jurídico, sem forma estática, que
tem por objetivo a proteção de situações jurídicas criadas ou alcançadas em razão
de legítimas expectativas criadas por outrem, capazes de gerar danos ou riscos de
danos.
3.3. - Pressupostos para a proteção da confiança através do Princípio da Boa-
fé.
A grande dificuldade de proteção da confiança reside justamente em se definir
confiança em termos jurídicos. Definir ou pelo menos dar uma conformação, dada a
maleabilidade que é própria dos princípios e suas múltiplas aplicações, e o risco de
uma definição rígida lhe empobrecer o sentido. A confiança é um estado subjetivo o
que torna difícil a sua investigação e identificação. Por outro lado, para se tratar de
uma proteção jurídica à confiança, são necessários elementos que permitam sua
identificação em cada caso concreto, como também os efeitos jurídicos decorrentes
de sua quebra. Assim, tenta o direito “objetivar” a confiança, para que possa ser
protegida.
132
Vários são os doutrinadores que se debruçam sobre a tarefa. SCHREIBER
identifica como as situações que fazem incidir o princípio como os seguintes
elementos: a) A ocorrência de um fato próprio, entendida como uma conduta inicial;
b) A legítima confiança de outrem no sentido objetivo dessa conduta; c) Um
comportamento contraditório com este sentido objetivo (e por isso mesmo, violador
da confiança); d) um dano, ou um potencial de dano a partir da contradição (2007,
132).
O fato próprio é uma conduta inicial, que pode ou não ser um fato jurídico.
Sequer precisa ser vinculante de alguma conduta jurídica. De fato, se o for, é a
própria lei que o vincula (e atribui responsabilidade por sua quebra), haverá proteção
jurídica independentemente da existência de contradição irrelevante, dispensado por
isso a aplicação do princípio da confiança. O fato na verdade não precisa ter
relevância nenhuma para o direito, desde que do ponto de vista fático seja capaz de
repercutir na esfera de outrem lhe gerando legítima expectativa. O que tornará a
conduta vinculante é sua capacidade de repercussão na tomada de decisões alheias
com base em justa expectativa e sua contrariedade posterior.
Essa repercussão é justamente a confiança criada. É o elemento confiança
criada que torna o fato inicial relevante para o direito e elemento vinculador do
agente. Tal confiança que deve ser “legítima”. A atribuição da adjetivação “legítima”
à confiança retira desta o sentido de mero estado psicológico do sujeito. A confiança
deve ser consequência direta e razoável da conduta inicial, o chamado fato próprio.
Por exemplo, a ressalva expressa de possível contradição por quem pratica o fato
inicial, excluiria a legitimidade da confiança. Da mesma forma, não é legitima a
confiança daquele que aposta em elementos sabidamente arriscados. Por outro
lado, a conduta que não seja clara – diferenciando-se aqui conduta clara de conduta
manifesta -, não é capaz de incutir legitima confiança em ninguém, nem mesmo a
percepção errônea da realidade por parte daquele que confia.
A contradição ao fato inicial é o elemento que deflagrará a proteção da
confiança. É um simples comportamento, ato jurídico ou não, que se apresenta
como contraditório ao comportamento inicial, independentemente da existência ou
não da intensão de contrariar. Basta que seja um ato qualquer, mesmo que lícito,
133
capaz de frustrar as expectativas razoáveis criadas na esfera alheia. É importante
ressaltar o aspecto aparentemente lícito do comportamento contraditório, ou um
comportamento que se considerado isoladamente é lícito. Isso porque se a
contradição se dá por meio de um comportamento ilícito, existiram disposições
sancionatórias e corretivas, independentemente da vinculação a um elemento de
contradição.
E finalmente, o objetivo de proteção da confiança, que é a salvaguarda de
dano efetivo ou potencial, idôneo a atingir o patrimônio daquele que confiou em
alguém em razão de um comportamento, e que rompeu essa confiança através da
contradição. O dano de fato não é necessariamente efetivo. É preciso que seja
identificado como dano em potencial, capaz de gerar efeitos lesivos ao patrimônio
daquele que confiou se a conduta contraditória for mantida. Até porque, se a
contradição lesiva for identificada sem que tenha se efetivado ou produzido o
prejuízo, o efeito primordial e desejável da proteção da confiança será a prevenção,
desfazendo-se a conduta, ou evitando-a.
ASCENSÃO (2006, 87), por seu turno, identifica como pressupostos para a
proteção da confiança violada quatro elementos concomitantes: a) A confiança deve
se fundar na conduta de outrem; b) Deve ser uma confiança justificada; c) o agente
deve ter feito o chamado “investimento de confiança; d) O comportamento que
frustra a confiança criada e as providências nela fundadas.
Os elementos apontados coincidem com os elementos apontados por
SCHREIBER. Destaca-se que o elemento denominado por ASCENSÃO de
investimento de confiança, que guarda relação com o dano efetivo ou potencial, mas
que com este não se confunde. Refere-se aos investimentos em bens materiais que
aquele que confia faz, confiando na manutenção da conduta alheia. Enquanto o
dano apontado por SCHREIBER não é propriamente um elemento de formação da
quebra da confiança, mas uma consequência desta capaz de ensejar a proteção
jurídica, o investimento de confiança, na forma vista por ASCENSÃO é mesmo um
elemento identificador da conduta contraditória.
MARTINS-COSTA acrescenta que ao critério da conduta vinculante não
importa a pluralidade de sujeitos (2008, 13). O que importa é que a conduta inicial
134
esteja em uma mesma situação jurídica da conduta frustradora da confiança.
Faltaria por exemplo relação de causa e efeito, à situação da pessoa que comprasse
ou deixasse de comprar ações de uma determinada empresa, confiando no
movimento sobre o preço que outra pessoa fosse capaz de produzir no mercado de
ações, ou a confiança da pessoa em promessa feita á terceiro.
3.4. - O princípio da Boa-fé e sua aplicação à Administração Pública.
Como visto retro, o instituto da boa-fé tem origem no direito privado, tendo
recebido há muito atenção da doutrina e jurisprudência que lhe deram
desenvolvimento notável. O mesmo não se pode dizer sobre o campo do Direito
Público, onde muito pouco se produziu e ainda hoje se produz a respeito do tema.
Conforme MENEZES CORDEIRO, que realizou estudo exaustivo do instituto
no campo do Direito Civil, nas obras gerais de Direito Administrativo, encontram-se
apenas referências escassas e desalinhadas à boa-fé, embora faltem
aprofundamentos sobre o tema, sua natureza, as suas aplicações e suas formas de
concretização (2001, 391). Assim, embora a boa-fé não seja ignorada, não é
aprofundado. O autor ainda aponta a existência de vários institutos dependentes da
boa-fé – abuso de direito, supressio, alteração das circunstâncias, certos deveres de
comportamento, proteção da confiança – que são tratados sem conexão entre si.
Neste contexto, duas questões se colocam como fundamentais para o Estudo
da boa-fé no Direito Administrativo. A primeira é a compatibilidade do princípio com
o regime jurídico administrativo e a segunda é a possibilidade ou não de se
aproveitar os estudos desenvolvidos na área do Direito Privado para o seu
desenvolvimento no campo do Direito Público.
Quanto a possibilidade de aplicação da teoria da boa-fé no âmbito do direito
público, vários são as teses que assumem resistência à sua aplicação.
135
GIACOMUZZI, observa vários argumentos contrários apontados pela doutrina (260,
213). Em razão do estudo específico que aqui se pretende, sem pretensões de
exaustividade, limita-se a reunir em duas diretrizes gerais os argumentos contrários
a sua aplicação do Direito Administrativo que seriam:
a) A diferença qualitativa existente entre o particular e a
Administração nas relação jurídico-administrativas e a supremacia
do interesse público;
b) A circunstância de que toda a relação jurídico-
administrativa está submetida ao princípio da legalidade;
As raízes da supremacia do interesse público sobre o privado estão no
organicismo e no utilitarismo. O organicismo considera o Estado como um grande
corpo com partes individuais interdependentes que concorrem de acordo com suas
finalidades para a vida do todo e em razão disso não atribui nenhuma autonomia aos
indivíduos considerados em suas singularidades (BOBBIO, 2000, 45). Para a visão
utilitarista, a melhor solução para cada problema é aquela que, promova na maior
escalada, os interesses dos membros da sociedade política individualmente
considerados (BINEMBOJM, 2008, 84). Sob essa ótica, o interesse público se traduz
em uma fórmula de maximização dos interesses do maior número possível de
pessoas. Como os interesses individuais são por vezes conflitantes, a utilitarismo
opta pelo sacrifício do interesse de um membro ou de certos membros de uma
coletividade, e nome de um benefício superior em termos comparativos, que
atenderá a outros membros da comunidade. A noção utilitarista do interesse público
remete a uma solução de maioria, ou de maiores benefícios.
Essa regra, da supremacia do público sobre o privado, é incompatível com o
atual estágio do Estado Democrático de Direito, justamente porque este tem como
ponto de partida uma compatibilização entre Direitos Fundamentais e Democracia.
Ambos são elementos caros à ordem constitucional pelos valores que encerram,
como a dignidade humana e o autogoverno coletivo, e a Constituição Federal não
fez a opção por nenhum deles.
136
BINEMBOJM refuta a tese da Supremacia absoluta do coletivo sobre o
individual ao afirmar que:
A ideia de uma prioridade absoluta do coletivo sobre o individual (ou do público sobre o privado) é incompatível com o Estado democrático de direito. Tributária do segundo imperativo categórico kantiano, que considera cada pessoa como um fim em si mesmo, a noção de dignidade humana não se compadece com a instrumentalização das individualidades em proveito do suposto “organismo superior”. Como instrumento da proteção e promoção dos direitos do homem, o Estado é que deve ser instrumento da emancipação moral e material dos indivíduos, condição de sua autonomia nas esferas pública e privada (2008, 83).
Da mesma forma, a Constituição Federal se funda em uma concepção
pluralista de sociedade e que tem como postulado a igualdade perante os
indivíduos, de forma que não é possível uma escolha apriorística entre interesses
individuais e coletivos, sem uma regra clara de prevalência. A Constituição
reconhece a necessidade de se proteger tanto os interesses particulares dos
indivíduos como os interesses gerais da coletividade, de forma que a identificação
do interesse a prevalecer deverá ser feita através da ponderação proporcional entre
interesses conflitantes, conforme as circunstâncias do caso concreto, tendo como
norte os valores estabelecidos pela própria Constituição. A assunção da ideia de que
o interesse público prevalece sobre o interesse privado, sem uma análise das
circunstâncias em que se dá o conflito, não deixa espaço para ponderações. Há que
se compreender que a Constituição elege a pessoa humana como seu fim e o
Estado nada mais é do que um instrumento para a garantia e promoção dos direitos
fundamentais.
Por outro lado BINEMBOJM traz o argumento contraposto ao reconhecer que:
Em que pese o destaque que ostentam os direitos fundamentais no regime jurídico-constitucional, fato é que, como condição mesma à vida em sociedade e à própria proteção e promoção dos aludidos direitos, faz-se necessário, também, tutelar interesses de cunho nitidamente coletivo, voltados a atender demandas que ultrapassam a esfera individual dos cidadãos (2008, 103).
137
Partindo desses postulados, é necessário reconhecer que há tanto interesse
de natureza individual como de natureza coletiva reconhecidos pela tutela
constitucional. A Constituição como sistema normativo age como um sistema aberto
de princípios, não regidos por uma hierarquia estática, mas por uma lógica de
ponderação proporcional contextual, entre os fins que se pretende e os meios
necessários de se alcançar esse fim.
Há de se considerar ainda que interesse público é um conceito jurídico
indeterminado, e o reconhecimento da supremacia de um interesse público depende
da possibilidade de uma determinação conceitual objetiva e abstrata do que vem a
ser interesse público. Tal exigência, não é satisfeita pela constituição. Muito pelo
contrário, a própria doutrina administrativista se debate em torno do que seria
interesse público, às vezes significando o interesse da própria máquina estatal,
outras vezes da coletividade, e em muitos casos de difícil dissociação do conceito de
interesse privado. Nesse sentido BINEMBOJM alvitra:
Ato contínuo, partindo da premissa de que interesses privados e coletivos coexistem como objeto de tutela constitucional, conclui-se que a expressão interesse público consiste em uma referência de natureza genérica, a qual abarca ambos, interesses privados e coletivos, enquanto juridicamente qualificados como metas ou diretrizes da Administração Pública. Por conseguinte, o interesse público pode, num caso específico, residir na implementação de um interesse coletivo, mas também na de um interesse individual (BINEMBOJM, 2008, 104).
Essa indeterminabilidade do conceito por si só exige construção
argumentativa, à luz dos elementos do caso concreto, através do uso da ponderação
e do princípio da proporcionalidade, para verificação da prevalência ou não do
interesse público sobre o individual. A própria dificuldade em identificar quando o
interesse público reside na própria prevalência de um direito fundamental individual
ou quando reside na sua limitação em um interesse contraposto da coletividade
exige essa postura de ponderação pela Administração.
Além disso, é importante salientar que o conceito tradicionalmente veiculado
entre os publicistas e administrativistas e com o qual estes normalmente trabalham
remete necessariamente à figura do Estado. Como se o Estado atuasse como um
138
“filtro”, ou um árbitro da vontade coletiva quanto à realização dos seus anseios. É
como se coubesse ao Estado não só a consecução dos fins públicos, como também
a própria indicação do seu conteúdo, vale dizer, o que é e o que não é interesse
público, ou quando ele ocorre ou não. Nesse sentido VEDEL e DEVOLVÈ apud
MANCUSO:
E assim, sob essa acepção política, o interesse público se apresenta como “um arbitrage entre lês divers intérêts particuliers”. Ora essa arbitragem se prende a critério quantitativo (por exemplo, na construção de uma estrada, sacrifica-se o interesse dos proprietários lindeiros, privilegiando o interesse dos que a usarão, por que estes são a mais numerosos), ora o critério qualitativo (os doentes pobres, em certa comunidade, podendo ser pouco numerosos; mas o valor do interesse à saúde pública prevalece sobre os interesses pecuniários dos demais cidadãos saudáveis; logo, a estes cabe contribuir pra um fundo se assistência médica gratuita) (1997, 30).
O referido autor faz uma clara distinção entre o que seja interesse social e
interesse difuso, ao dispor que:
“Interesse social”, no sentido amplo que ora nos concerne é o interesse que consulta à maioria da sociedade civil: o interesse que reflete o que esta sociedade entende por “bem comum”; o anseio de proteção à res publica; a tutela daqueles valores e bens mais elevados, os quais essa sociedade, espontaneamente, escolheu como sendo os mais relevantes.
Assim interesse social corresponderia ao interesse real da sociedade civil e
interesse público é o interesse que social como a Administração Pública interpreta
ou o afirma.
Adotando uma distinção similar, BARROSO, fala em interesse público
primário e secundário, o primeiro significando realmente o interesse da sociedade,
sintetizando valores como bem-estar, justiça social e segurança, e o segundo
significando o interesse jurídico da pessoa de direito público (União, Estados,
Município), ou o Erário. No entanto, o referido autor, que não nega a supremacia do
interesse público, entende essa supremacia como restrita ao interesse público
primário, jamais se podendo falar em supremacia do interesse secundário com
relação ao particular. Entende que “se ambos entrarem em rota de colisão, caberá
139
ao interprete proceder a ponderação desses interesses, à vista dos elementos
normativos e fáticos relevantes ao caso concreto” (2013, 223).
De fato, é a própria ponderação que poderá permitir a identificação em cada
caso, o que é interesse primário ou secundário, quando esses interesses convergem
num mesmo sentido ou não. Para além dos desvios de finalidade, para os quais o
direito administrativo clássico também apresenta remédios, é preciso ainda se
reconhecer que o administrador também age motivado de certo pragmatismo político
ou administrativo, e nesse caso as razões da Administração Pública, aí significando
o interesse público secundário, poderão seguir movidas por maiorias de ocasião,
distanciando-se do interesse social, que poderá no caso coincidir com a posição de
minorias, ou até mesmo de indivíduos.
A supremacia da administração pública sobre o particular não decorre da sua
condição em si mesma, mas dos fins que tem como função realizar, que estarão
sujeitos a juízo de ponderação em cada caso, quando implicarem em restrição a
direitos de particular. Admitindo-se a pluralidade de noções de interesse público,
como interesses gerais da coletividade e interesses da Máquina estatal em si, essa
supremacia não é automática nem autônoma.
Se não existe paritariedade nas relações da Administração com o particular,
tal fato não constitui um óbice à aplicação da boa-fé, mas antes mais um argumento
em seu favor. Se a postura da Administração deve ser ponderada e proporcional aos
interesses que objetiva, e eventualmente levar em conta os interesses individuais,
mais fortes são as razões para a aplicação do princípio da confiança, inclusive como
limite ético a uma eventual posição de supremacia.
Conforme relata GIACOMUZZI, a boa-fé encontra aplicação inicialmente em
relações jurídicas marcadas por desigualdade e não em relações contratuais
paritárias:
De fato, na origem o Direito Romano a fides comportava a garantia de um sujeito em posição de inferioridade em relação a outro, o qual exercitava nos seus confrontos um poder de disposição. Ao indivíduo ou ao povo submetido ao poder de outro não restava senão apelar para a fé e para a boa vontade do
140
vencedor, a fim de que este, em nome de superiores princípios religiosos, não impusesse ao vencido obrigações muito gravosas de suportar (MANGANARO apud GIACOMUZZI, 2013, 262).
Do ponto de vista da legalidade como legitimação, é necessário se inferir que
há muito tempo não se tem admitido apenas a lei como fonte de legitimação da
conduta do administrador público. A lei é apenas mais uma das fontes legitimadoras
da conduta do administrador público, que deverá ter por base a própria Constituição.
Esse segundo óbice apontado a partir da legalidade como limite é voltado
para um conceito utilitarista. Se a legalidade é o limite de atuação da Administração,
a boa-fé não representaria nenhum papel, posto que os atos seriam válidos ou
inválidos conforme esse limite da lei.
Nesse caso, exclui-se a análise da conduta do campo da moralidade, o que
não é mais passível de aceitação, principalmente em face da própria prescrição de
moralidade à Administração Pública feita pela Constituição em seu art. 37. A
inserção constitucional tanto de um princípio de legalidade quanto de um princípio
de moralidade implica que ambos cobrem dois campos distintos e que para além do
cumprimento das exigências legais, a conduta administrativa também deve ser ética.
FERRAZ JÚNIOR, tratando da implicação do preceito moral sobre a validade
jurídica ensina que:
A justiça, enquanto doador de sentido ao direito é um princípio regulativo do direito, mas não constitutivo. Ou seja, embora o direito imoral seja destituído de sentido, isso quer dizer que não exista concretamente. A imoralidade faz com que a obrigação jurídica perca sentido, mas não torna a obrigação jurídica juridicamente inválida (2008, 334).
A instituição de um princípio de moralidade ao lado da legalidade implica que
o direito não é um fim em si mesmo, deve estar provido de um sentido. Em se
tratando da Administração Pública, o sentido se encontra no interesse público que
141
implicará em necessidade de trato ético, pois aquele que exerce a função pública o
faz em nome da coletividade e não por si mesmo.
Dizer que a legalidade em si mesma é bastante, significa ignorar a própria
finalidade social do direito e que de fato esses fins podem ser subvertidos na mera
aplicação da legalidade. Vide por exemplo as noções de abuso de direito e os
desvios de poder, também desenvolvidas no Direito Administrativo, onde se tem
formalmente o exercício de um direito reconhecido, para atingir fins diversos dos
seus propósitos.
Ainda sob o prisma da utilidade da boa-fé perante o princípio da legalidade, é
preciso pensar ainda nos desdobramentos deste princípio como o da presunção da
legalidade dos atos administrativos, do qual por vezes a Administração faz uso, em
detrimento de direitos subjetivos dos particulares ou mesmo em contraposição a
legitimas expectativas dos particulares que confiaram na legalidade desses mesmos
atos.
No que tange a migração dos estudos e conceitos da Boa-fé no Direito
Privado para o campo do Direito Público, os argumentos inicialmente que se
colocam são favoráveis. Em primeiro lugar, como já mencionado, é perceptível a
aplicação de vários institutos ligados à boa-fé pelo direito administrativo, institutos
esses que guardam aplicação similar no direito privado. A possibilidade de
aproveitamento dos estudos da boa-fé no Direito Privado para o Direito
Administrativo permitiria consideráveis avanços metodológicos e inclusive o
tratamento sistemático desses institutos.
Em segundo lugar, a inexistência de barreiras que configurem óbice a
aplicação da boa-fé ao regime de direito público. Como visto anteriormente,
tradicionais dogmas do Direito Administrativo estão sendo desconstruídos sob a
perspectiva da constitucionalização do direito, processo similar ao que ocorre no
direito privado, que vive um processo de releitura da autonomia privada pelo sistema
de direitos fundamentais, contribuindo assim para uma diluição da dicotomia direito
público versus direito privado. Vale dizer que esses dogmas do Direito
Administrativo, era o que tornava o regime de Direito Administrativo tão singular em
142
relação ao Direito Privado, centrado na autonomia da vontade e basicamente
analisado a partir de uma compreensão sinalagmática da relação jurídica.
A releitura de tais institutos num claro sentido de submissão do regime
jurídico administrativo ao sistema constitucional de direitos fundamentais termina por
tirar a importância dessas singularidades como elementos diferenciadores, de forma
que a aplicabilidade da boa-fé no direito administrativo deverá preencher um único
requisito: a compatibilidade com o regime do Estado Democrático de Direito, como
realizador de direitos fundamentais individuais e coletivos.
De fato, a Supremacia do Interesse Público sobre o interesse privado, não é
mais um princípio que se aplica sem reflexão e ponderação sobre quais são os
interesses reais existentes na relação jurídica sob análise. Pelos mesmos motivos a
diferença qualitativa existente entre a Administração Pública e o administrado não
pode configurar óbice em razão da própria função-finalidade da Administração. Não
há interesse público a ser perseguido pela Administração que não redunde em
interesse dos próprios administrados. Talvez por isso, tenha-se muito mais um
motivo para a aplicação da Boa-fé às relações Estado-cidadão. Se no Estado
Democrático de Direito o interesse a ser realizado é o primário, o da coletividade, é
de se entender que o Estado, ao invés de mais liberdade, tem limites ainda mais
rígidos para a sua atuação, e nesse sentido, o princípio da Boa-fé se apresenta
como ferramenta importante, como elemento de contornos éticos a exigir da atuação
pública, ponderação e responsabilidade em sua atuação.
Se a aplicação da teoria da confiança e da boa-fé é uma regra de fundo ético,
é ilógico aplicá-la às relações privadas, de qualquer natureza que sejam e deixar de
aplicá-las às relações entre cidadãos e o Estado. A Ética é uma exigência da própria
justiça material à qual o direito contemporâneo deve estar orientado. ROSENVALD e
FARIAS nesse sentido ressaltam que:
Ora, se a ética é a ciência do fim para o qual a conduta dos homens deve ser orientada, temos que, no Direito, o ideal para o qual uma sociedade orientará os seus fins e ações será justamente na afirmação livre e racional do valor justiça. O ordenamento jurídico é um elemento de luta e afirmação de justiça. Entre o direito-técnica e o direito-ética, deverá prevalecer a força do Direito
143
sobre o Direito força. O direito é uma técnica a serviço de uma ética (2006, 33-34).
Isso posto, não há razões para que se exclua o Estado dos deveres da Boa-fé
e da tutela da confiança. Se o Estado é o fiduciário do interesse público, hoje em
razão da multiplicação de direitos fundamentais a serem concretizados por esse
mesmo Estado, nada mais justo que esteja vinculado a regras éticas. O interesse
público, como interesse da coletividade, se realizará não só com o alcance dos
objetivos da coletividade, mas também como a forma com que o Estado procede
para o alcance desses fins.
3.5. - Os Efeitos da aplicação do princípio da Boa-fé.
Considerando-se ainda a dificuldade de atribuir um conceito bastante ao
princípio da boa-fé, e que ele expressa uma série de ideias que vão ter como centro
o valor ética, é difícil compreender o princípio em análise sem um estudo e
sistematização dos seus efeitos. A dificuldade em encontrar uma fórmula simples
para isso é de igual grandeza tanto no direito privado quanto no direito público, ante
a diversidade com que se pode quebrar a confiança legítima e assim contrariar o
princípio da boa-fé.
O presente estudo, parte da transmigração dos estudos acerca da boa-fé tal
qual concebida no Direito Privado para o Direito Administrativo, como mecanismo de
tutela da confiança, na relação entre Administração Pública e administrados,
guardadas as peculiaridades da situação jurídica em cada caso concreto. Este é o
caminho adotado por diversos estudiosos do tema no Direito Administrativo, como
GONZÁLEZ PÉREZ em sua obra El princípio de la buena fe en el derecho
administrativo (2004) e na doutrina pátria NOBRE JÚNIOR (2002) e GIACOMUZZI
(2013). O caminho comum adotado pelo direito civil é a divisão da operabilidade do
144
princípio da boa-fé em três funções que passa-se a analisar agora, buscando
verificar sua compatibilidade com o direito administrativo. Essas três funções são a
Função Hermenêutica-integrativa, a Função Extensiva de deveres jurídicos e a
Função Restritiva de Direitos Subjetivos, as quais se passa a analisar em separado.
A) A função Hermenêutico-Integrativa:
A boa-fé objetiva exerce importante função como elemento de interpretação
dos negócios jurídicos. Das chamadas funções da boa-fé objetiva, a função
hermenêutico-integrativa é a única que se encontra claramente expressa no Código
Civil, nos seus artigos 113 e 421, não obstante as demais se encontrarem implícitas.
Conhecendo a riqueza do instituto e sabendo que o mesmo comporta uma
gama de ideias que impedem até uma conceituação definitiva, fica fácil entender que
a boa-fé vai impregnar completamente as relações privadas, especialmente as
relações contratuais, desde os momentos pré-negociais até a fase pós-contratual
onde se tem efeitos reflexos dos contratos. Normal que em todos esses momentos
tenha-se o desenrolar de situações que nem sempre são previstas ou previsíveis
pelos contratantes e que também não encontram referências nas disposições legais.
A boa-fé atua, como cânone hermenêutico, integrativo frente à necessidade de qualificar esses comportamentos, não previstos, mas essenciais à própria salvaguarda da fattispecie contratual e à plena produção dos efeitos correspondentes ao programa contratual objetivamente posto” (MARTINS-COSTA, 2000, 429).
Nessa função específica, boa-fé significa um critério hermenêutico objetivo de
que o juiz deve se valer na busca da supressão das lacunas não apenas relações
negociais privadas, mas de todas as relações jurídicas inclusive as de direito público
como forma de preservar as justas expectativas das partes envolvidas em
determinada situação jurídica, sempre tendo como foco último as finalidades
econômicas e sociais do direito e no caso da relação entre Administração Pública e
Administrado, do interesse público que é sempre a finalidade última da atuação
145
administrativa. Tratando da aplicação do princípio da boa-fé nas relações contratuais
assevera JUDITH MARTINS COSTA que o princípio da boa-fé
deve ser compreendido, neste específico campo funcional, o mandamento imposto ao juiz de não permitir que o contrato, como regulação objetiva, dotada de um específico sentido, atinja finalidade oposta ou contrária àquela que, razoavelmente, à vista do seu escopo-econômico social, seria lícito esperar (MARTINS-COSTA, 2000, 432).
Essa função, embora não se possa dizer ser a mais importante, já que todas
vão ter papel essencial à concreção da ética nos negócios jurídicos é sem dúvidas
essencial, pois é a que permite que se evidenciem as demais funções que a boa-fé
irá exercer nas relações jurídicas em geral.
B) Função Restritiva de Direitos.
Sob a ótica dessa função, a boa-fé assume função semelhante à figura do
abuso de direito, não admitindo condutas que contrariem o mandamento de agir com
lealdade e probidade, pois somente assim o direito alcançará as funções sociais que
lhe são cometidas. Deve- se observar primeiramente que a Função Restritiva de
Direitos da boa-fé objetiva não se confunde com a figura do abuso de direto.
Construído inicialmente pela doutrina francesa (SERPA LOPES, 2000) o abuso de
direito acontece quando há o desvio ou a extrapolação da função ou finalidade social
do direito. Assim, o limite do direito subjetivo é o seu próprio escopo, de forma que
se configurará o abuso de direito todas as vezes que esse limite for ultrapassado.
Toda regra do ordenamento jurídico que cria um direito subjetivo, tem uma finalidade
social que também é o elemento que justifica a sua existência. A partir do momento
em que é extrapolada essa finalidade, tem-se configurada a figura do abuso de
direito.
A função restritiva da boa-fé objetiva, embora abarque também a restrição a
comportamentos abusivos, tende a ter um efeito muito mais amplo do que a mera
limitação daqueles. Ao exigir um padrão leal e honesto de conduta, termina alcançar
situações que estão além do abuso de direito. Exemplos cabais disso são os casos
146
de Adimplemento Substancial do Contrato no campo do direito privado e a Vedação
ao Comportamento Contraditório.
Não se pode dizer que aquele que exige a rescisão contratual de um contrato
que foi substancialmente adimplido, age com abuso de Direito. Assim, a teoria do
abuso de direito é insuficiente para alcançar e proteger contra determinado credor
aquele devedor que deixou de pagar duas, de trezentos e sessenta prestações
devidas. Por outro lado, tomando-se por base os deveres de lealdade e cooperação,
inerentes à boa-fé, é possível se inibir uma resolução contratual no exemplo.
Da mesma forma no caso da Vedação ao comportamento contraditório. O
venire contra factum proprium consubstancia-se na existência de dois
comportamentos mantidos por uma pessoa, de forma diferida no tempo que,
individualmente considerados são lícitos. Ocorre que o primeiro comportamento é
contrariado pelo segundo. Assim tem-se situações em que uma pessoa, por um
certo período de tempo, comporta-se de determinada maneira gerando expectativas
em outra de que seu comportamento permanecerá inalterado.
Em vista desse comportamento, existe um investimento, cria-se uma
confiança de que a conduta será a adotada anteriormente, mas depois de certo
tempo, a conduta é alterada por comportamento contrário ao inicial, quebrando
dessa forma a boa-fé objetiva (que tem como um dos fundamentos básicos a tutela
da confiança e da justa expectativa).
(...) o reconhecimento da necessidade da tutela da confiança desloca a atenção do direito, que deixa de se centrar exclusivamente sobre a fonte das condutas para observar também os efeitos fáticos de sua adoção. Passa-se da obsessão pelo sujeito e pela sua vontade individual, como fonte primordial das obrigações, para uma visão que, solidária, se faz atenta à repercussão externa dos atos individuais sobre os diversos centros de interesses, atribuindo-lhes eficácia obrigacional independentemente da vontade ou da intenção do sujeito que os praticou (SCHREIBER, 2007, 94)
Ensina ainda Menezes Cordeiro que, “a locução ‘venire contra factum
proprium’ traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o
comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Esse exercício é tido, sem
147
contestação por parte da doutrina que o conhece, como inadmissível” (CORDEIRO,
2001, 742).
Não existe uma relação necessária entre o comportamento contraditório e o
Abuso de Direito. É possível que um contratante adote diversas conduta lícitas e que
não exceda aos fins teleológicos do direito objetivo. No entanto, se observadas
essas condutas no contexto da confiança e da justa expectativas também
consubstanciadas no princípio da boa-fé, mesmo escapando à teoria do Abuso de
Direito é possível evitar-se que um contratante se valha de direito estabelecido em
lei ou em cláusula contratual de forma a frustrar a justa expectativa da outra parte.
Com o venire contra factum proprium, por exemplo, pode-se pensar nas
situações em que ato administrativo seja invalidado totalmente ou em parte, pelo
princípio da boa-fé em razão de frustrar a legítima expectativa do administrado
criada por atuação anterior da própria administração pública.
C) A Função Extensiva de Deveres Jurídicos:
MENEZES CORDEIRO, em seu trabalho sobre a boa-fé no direito civil alvitra
a complexidade das relações obrigacionais.
A complexidade intra-obrigacional traduz a ideia de que o vínculo contratual abriga, no seu seio, não um simples dever de prestar, simétrico a uma pretensão creditícia, mas antes vários elementos jurídicos dotados de autonomia bastante para, de um conteúdo unitário, fazerem uma realidade composta (CORDEIRO, 2001, 585).
Essa realidade composta, se observada do ponto de vista ético das relações
jurídicas, implica muitas vezes em extrapolar os deveres dispostos no texto
contratual de forma a buscar a proteção das partes contratantes e de suas razoáveis
expectativas. Não menos complexas serão as relações entre a Administração
Pública e Administrados, cuja relação não pode ser definida simplesmente no plano
da legalidade estrita, ante a multiplicidade de situações que podem surgir e que não
podem ser simplesmente antevistas.
148
No direito civil, a par dos deveres já explicitados no texto contratual, a boa-fé
tem o papel de ampliar as obrigações contratuais, integrando-as com obrigações
instrumentais de conservação e respeito ao direito alheio, chamados deveres
anexos. “Deveres de cooperação e proteção dos recíprocos interesses”, e se dirigem
a ambos os participantes do vínculo obrigacional, credor e devedor” (MARTINS-
COSTA, 2000, 439).
Assim, tem-se, por exemplo, o dever do sigilo, como nas situações em que as
partes devem guardar segredos sobre informações e situações que tomaram
conhecimento em razão do contrato ou das negociações pré-contratuais, quando a
difusão da informação possa ser prejudicial à parte contratante; O dever da
informação, para que as partes tenham pleno conhecimento das recíprocas
contraprestações oferecidas e das circunstâncias que as envolvem, dever que
ganha relevo numa sociedade de consumo de massa e em que os objetos
contratados muitas vezes envolvem conhecimento técnico além da capacidade do
cidadão comum; O dever da colaboração, como os da prestação de assistência
técnica na utilização de determinado produto que exija conhecimento técnico
especializado, ou o dever de não dificultar o pagamento da obrigação, como na
situação em que a empresa vendedora envia o boleto bancário para pagamento de
forma que chegue com antecedência razoável ao consumidor; O dever do cuidado e
proteção, como o do guardião de coisa que não se limita a guardar o bem, mas
também tomar todo o cuidado necessário para a conservação da coisa com o seu
adequado acondicionamento.
Esses deveres, recíprocos à ambas as partes, vale ressaltar não são
destinados a diretamente permitir o desenvolvimento da relação contratual principal,
como ocorreria com uma garantia real num contrato mútuo. Tratam-se de deveres
que tem o escopo de atender justa expectativa das partes, obrigando-as por esse
motivo a realizar todos os atos necessários para que seja alcançado o fim desejado,
ainda que tal comportamento não tenha sido explicitado como obrigação contratual,
tendo em vista as finalidades econômico-sociais específicas do contrato e que não
se onere excessivamente nenhuma das partes.
149
Da mesma forma, no Direito Administrativo pode-se falar na criação de
deveres anexos para a administração e administrado, ampliando o feixe de deveres
de ambos de um para com o outro, para além do instrumento que rege a relação
entre ambos que vem a ser a própria lei.
Neste caso, pode-se recordar o já o paradigmático caso da viúva da
República Democrática Alemã citado retro, em que a Administração Pública para
além da obrigação prevista em lei, se viu obrigada a arcar com o benefício para
aquela senhora em razão da legítima expectativa criada por sua conduta anterior. Se
o princípio da boa-fé pode determinar a invalidação de um ato administrativo que
quebrar uma expectativa legítima criada, da mesma forma, pode permitir justamente
o contrário: a manutenção dos efeitos do ato administrativo, que em regra deveriam
desaparecer do universo jurídico.
O fundamento constitucional do princípio da boa-fé se encontra no próprio
princípio da dignidade da pessoa humana (proclamado no inciso III do art. 1 da
Constituição) e na construção de uma sociedade justa e solidária como objetivo
constitucional (art. 3, I da Constituição Federal). A visão conjunta desses dois
dispositivos constitucionais nos remete necessariamente a visão do ser humano
como um indivíduo, mas um indivíduo inserto num núcleo maior, a comunidade,
onde a dignidade de cada indivíduo e a comunidade como um organismo justo e
solidário se constroem em todas as relações jurídicas com base em valores éticos.
A tutela da personalidade não é orientada apenas aos direitos individuais pertencentes ao sujeito no seu precípuo e exclusivo interesse, mas, sim, aos direitos individuais sociais, que têm uma forte carga de solidariedade, que constitui o seu pressuposto e também o seu fundamento. Eles não devem mais ser entendidos como pertencentes ao indivíduo fora da comunidade na qual vive, mas, antes, como instrumentos para construir uma comunidade que se torna, assim, o meio para a sua realização. (PERLINGIERI, 1999, 38)
Assim, a boa-fé como princípio contratual implica numa superação do
individualismo da mera autonomia da vontade concebida na perspectiva tradicional
dos negócios jurídicos e a reconstrução das relações contratuais sob uma ótica da
150
valorização do indivíduo enquanto ser humano, onde a sua inserção na comunidade
socialmente solidária é mecanismo de sua realização individual.
No âmbito da relação entre cidadão e Estado, a boa-fé invoca
necessariamente a raiz do Estado concebido sob a égide do direito público
contemporâneo, um Estado instrumental que não tem outra razão de ser que não a
realização dos interesses dos legítimos titulares do poder político, o povo.
Sendo forte regra de cunho ético, a boa-fé invoca necessariamente uma
atuação reflexiva também do Estado, que deverá se preocupar mais com os
impactos de suas ações sobre a pessoa humana em si mesmo considerada, e seus
projetos de vida e não sobre uma ideia abstrata de povo e de cidadão. A exigência
da boa-fé no modo de agir do Estado reforça a figura da moralidade como princípio
da atuação do administração pública, na medida em que essa “insere um elemento
finalístico na análise de legalidade de todas as ações estatais, de modo que o
cumprimento da norma jurídica pela autoridade pública somente pode ser válido
quando vinculado aos valores em que tal norma se funda” (MARRARA, 2012, 174).
A Boa-fé enquanto princípio seja no direito público ou no direito privado, em
razão do seu alto caráter solidarista, promove o respeito mútuo e garante
confiabilidade nas relações jurídicas intersubjetivas que se travam cotidianamente, o
que em última instância permite maior segurança e maior satisfação na construção
de projetos de vida.
A boa-fé no âmbito das relações Estado versus Cidadão cria condições para
substituir uma relação baseada em subordinação por uma relação baseada em
cooperação. Cooperação administrativa que se por um lado abre caminho para
permitir uma colaboração do cidadão com o Estado capaz de contribuir para a
realização do interesse público primário, o interesse coletivo propriamente, por outro
lado, pode permitir ao cidadão auxílio no exercício de seus direitos e cumprimento
dos seus deveres.
O que fica claro é que o princípio da boa-fé implica em uma atuação reflexiva,
preocupada com os efeitos que a conduta mantida terá sobre a esfera de direitos e
deveres do outro, de forma que, a atuação irrefletida, irrazoável, indigna ou incapaz
151
de gerar confiança, poderá ser corrigida, suprimida ou readequada de forma a
espelhar uma conduta razoável, preocupada com seus impactos na vida de outrem,
e no caso do Estado, nos impactos reais de sua atuação na vida do cidadão.
3.6. - Boa-fé e Confiança no Direito Administrativo brasileiro
Para vários autores princípio da boa-fé no direito administrativo encontra
receptividade no art. 37, caput da Constituição Federal ao informar expressamente a
Moralidade como princípio regente da Administração Pública, conforme informa boa
parte da doutrina administrativista. BANDEIRA DE MELLO, ao tratar da Moralidade
Administrativa, informa que
compreendem-se em seu âmbito, como é evidente, os chamados princípios da lealdade e da boa-fé, tão oportunamente encarecidos pelo mestre espanhol Jesus Gonzáles Péres em monografia preciosa. Segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos (2011, 119).
GIACOMUZZI, por seu turno defende o princípio da moralidade como
equivalente juspublicístico da boa-fé do direito privado, em razão da pouco
desenvolvimento desta no campo do direito público e por enxergar a necessidade de
um princípio que lhe faça às vezes, além de apontar similaridades na origem
histórica.
Nada mais natural que se vincule a origem da boa-fé à origem da moralidade, portanto, em atitude interpretativa que, com olhos atentos ao passado, aproveita os ensinamentos do direito privado e lança a proposta dogmática ao direito público. Assim, se o direito público não desenvolveu o instituto capaz de
152
abarcar as consequências jurídicas advindas do desenvolvimento da boa-fé jusprivatista, nada impede que com ela – e suas consequências – se preencha o conteúdo do princípio da moralidade, mormente se não há serio obstáculo metodológico ao seu progresso (2013, 241).
Como visto anteriormente, alguns autores, embora sem tratar expressamente
da boa-fé no direito administrativo, também se referem como fundamento da boa-fé
o princípio constitucional da solidariedade social, por considerarem a boa-fé uma
regra de conduta de alto teor solidarizante. Se assim o é, pelos mesmos motivos
também pode-se indicar o princípio da solidariedade como da boa-fé no direito
público. Como tratado anteriormente, conjugando a proteção da pessoa humana e a
construção de uma sociedade de base solidarista, onde todas as relações jurídicas
se constroem com base em valores éticos, certo é também que o Estado participe
desta construção e dessa interação comunitária.
Percorrendo o mesmo caminho do direito comparado, o princípio da Boa-fé no
Direito Administrativo brasileiro também tem seu impulso inicial por meio de
construções jurisprudenciais, por onde tem caminho mais firme, embora também
possa ser encontrado na legislação ordinária, de forma insipiente.
Passa-se agora a uma breve análise da abordagem do princípio da Proteção
da Confiança e da Boa-fé no judiciário brasileiro, especialmente no STF e no STJ,
salientando que o princípio da confiança e da boa-fé, vem sendo aplicado nos
julgamentos como fundamento de decisão e resta consolidado muito embora as
decisões judiciais nem sempre se referiram a ele de forma clara, por vezes deixando
de referir-se a ele de maneira expressa ou, por vezes, o fazendo referindo-se à
“segurança jurídica” e “boa-fé”, “boa-fé” e “confiança” de forma estanque ou como
um único princípio. Tratam-se de variações que não têm importância prática, visto
que a própria jurisprudência não faz diferenciações e atribui-lhes a mesma função.
Para o presente trabalho, que parte do princípio da identidade entre boa-fé e
confiança, e em certo sentido até da segurança jurídica, as expressões referem-se a
uma mesma figura, como dito retro. A ressalva é feita em razão das referências
serem feitas de forma desorganizada o que pode induzir a equívocos.
153
A partir da análise jurisprudencial será possível uma melhor identificação dos
contornos jurídicos do princípio de tutela da confiança e a compreensão da sua
aplicação – ou possibilidades de aplicação - no direito brasileiro.
No STF, merece menção os julgados referentes à Medida Cautelar No. 2.900-
3/RS e aos Mandados de Segurança No. 24.268/MG e 22.35/DF todos de relatoria
do Min. Gilmar Mendes, que tem como mérito o reconhecimento do princípio da
“segurança jurídica” com princípios constitucionais como subprincípios do Estado de
Direito.
No primeiro caso, a Medida Cautelar de No. 2.900-3/RS trata de medida
jurídica de aluna da Universidade Federal de Pelotas, que foi aprovada em concurso
público da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafo, sendo lotada em Porto
Alegre. Diante da necessidade de alteração de domicílio, pleiteou a transferência
administrativa para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com fulcro na Lei
No. 9.536/97, que foi negada, por considerarem inaplicável à aluna o conceito de
servidor público, já que ela concursou-se para ingresso em uma Empresa Pública.
Impetrando Mandado de Segurança contra a decisão, a aluna viu seu pleito atendido
no sentido de se garantir sua transferência para a UFRGS. Quando em segunda
instância o Tribunal Regional Federal da 4ª Região apreciou a questão, reformou a
decisão concedente da segurança, o que motivou Recurso Extraordinário ao STF e
a Medida Cautelar, como forma de assegurar efeito suspensivo ao recurso.
O Min. Gilmar Mendes ao relatar o caso tratou com precisão do princípio
proteção da confiança, valendo-se dele para conceder a liminar e preservar a
situação jurídica da aluna que já se encontrava em fase final de conclusão do curso
na UFRGS, salientando ainda que a “segurança jurídica” no Estado de Direito, tem
valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da
própria justiça material. A decisão foi referendada pela 2ª turma do STF por
unanimidade.
Trata-se de uma decisão judicial que aplicou o princípio da proteção da
confiança com fito de preservar os efeitos jurídicos de outra decisão judicial, que
havia criado expectativa legítima em favor da aluna transferida, que já estava na
154
iminência de concluir o curso perante a universidade e assim gozar plenamente os
efeitos da tutela pretendida.
O segundo caso é o Mandado de Segurança No. 24.268/MG. Nesse caso a
impetrante é pensionista na condição de beneficiária adotada por seu bisavô, uma
semana antes que esse viesse a falecer. O Tribunal de Contas da União cancelou a
pensão, recebida por dezoito anos, por entender que não havia sido realizada por
instrumento jurídico adequado. A relatora original, Min. Ellen Gracie, afastou os
argumentos iniciais por entender que as circunstâncias evidenciavam simulação de
ato jurídico com propósito de manutenção do benefício previdenciário. O Min. Gilmar
Mendes, abriu voto de divergência, fundamentando a invalidade do cancelamento
por inobservância dos princípios do contraditório e da ampla defesa. No entanto,
embora houvesse levantado divergência por questão formal, o Ministro fez
referência expressa ao princípio da “segurança jurídica”, por conta de ter a
impetrante permanecido recebendo o benefício por quase vinte anos.
O terceiro caso, referente ao MS No. 22.357, refere-se a admissão de
funcionários da INFRAERO que foram admitidos sem concurso público, contrariando
assim o disposto na Constituição no art. 37, I e II. Ocorre que no passado, em razão
da redação originária do art. 173, § 1º da Constituição, que prescrevia que “a
empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem
atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico das empresas privadas, inclusive
quanto às obrigações trabalhistas e tributárias” havia séria controvérsia sobre a
necessidade ou não de concurso público para o ingresso em empresa pública, como
o caso da INFRAERO. A controvérsia restou pacificada posteriormente, no Mandado
de Segurança No. 21.322 de relatoria do Min. Paulo Brossard, publicada no Diário
Oficial em 23-04-1993, que submeteu os empregados públicos também à exigência
constitucional de concurso público.
No entanto, o TCU já havia entendido em decisão de 06-06-1990 que só
deveriam ser anulados os atos de admissão posteriores àquela data, e não os
anteriores, mesmo que realizados após a vigência da Constituição de 1988. Tal
posicionamento se consolidou na jurisprudência daquela corte de contas. Com a
decisão do STF, o TCU terminou por rever sua posição, determinando a
155
regularização de admissões sem concurso público, o que implicaria na demissão
dos impetrantes do Mandado de Segurança. Nesse caso, o Min. Gilmar Mendes,
novamente na condição de relator votou pela estabilização da situação jurídica dos
impetrantes e fundamentou sua decisão na proteção da confiança (novamente sob a
designação de “segurança jurídica), ao verificar que passados mais de 10 anos das
admissões, aquelas se constituíram como situações jurídicas merecedoras de
amparo, mencionando expressamente “o longo tempo transcorrido das contratações
e a necessidade de garantir segurança jurídica a pessoas que agiram de boa-fé”.
Da mesma forma que o STF, o STJ vem aplicando o princípio da confiança,
inclusive com mais frequência e alcance que o pretório excelso. Para o STJ vale a
mesma ressalva feita anteriormente, a respeito da confusão da terminologia usada
para designar a proteção da confiança.
Um caso que merece destaque é Recurso Ordinário em Mandado de
Segurança No. 407, julgado em 07-08-1991. Tratando-se mais uma vez de
servidores públicos, tem-se a nomeação de servidores aprovados em concurso
público que foram nomeados e entraram em exercício de suas funções junto à
Secretaria de Fazenda do Estado do Maranhão. O governo estadual, sob o
argumento de invalidade do próprio concurso, anulou as investiduras por meio de
um Decreto de efeitos concretos. Os servidores ingressaram com Mandado de
Segurança junto ao Tribunal de Justiça do Maranhão que denegou a segurança.
Ingressando então com o recurso em comento, a 1ª turma do STJ entendeu que a
anulação não poderia ter se dado de forma unilateral, sem observância do
contraditório e da ampla defesa. No entanto, referiu-se também à necessidade de
que o princípio da legalidade fosse confrontado com outros princípios, tais como o
da segurança jurídica e o da boa-fé. O relator, Min. Gomes de Barros, consignou
ainda que o princípio da supremacia do interesse público deixou a muito de ser
considerado um princípio absoluto, tendo inclusive se prestado a deformações,
sendo necessário inclusive “temperá-lo com velhas regras de Direito Privado, que
homenageiam a boa-fé e a segurança jurídica”. Percebe-se aqui mais uma vez de
forma clara a ponderação dos tradicionais princípios do Direito Administrativo com a
segurança jurídica, como forma de proteção de legítimas expectativas daqueles que
confiaram nos atos estatais que lhes redundou em benefícios.
156
Outro julgado interessante do STJ a dar guarida expressa aos princípios da
boa-fé e da confiança no direito público foi o Recurso Especial No. 184.487-SP,
relatado pelo Min. Ruy Rosado de Aguiar. Nesse caso, o município de Limeira (SP)
celebrara com particulares contrato de promessa de compra e venda de lote situado
em loteamento inexistente, já que embora houvesse a divisão da gleba de terras, a
mesma não se encontrava registrada no Serviço Registral de Imóveis e nem sequer
chegou a ser urbanizada por estar próxima ao Aeroporto Municipal. Na gestão
municipal posterior, o Município promoveu a anulação dos contratos promissórios,
sob a alegação justamente da falta de regularização e registro. Chegando o caso ao
STJ, este entendeu pela impossibilidade da anulação dos contratos promissórios,
entendendo que na vigência da Lei No. 6.766 de 19 de dezembro 79 – Lei Federal
de Parcelamento do Solo Urbano – a qual incumbe ao município tratar de regularizar
loteamentos irregulares promovidos por terceiros para fins de defesa do direitos dos
adquirentes dos lotes, mais razão existia para a tomada de providências pelo
município quando a promessa foi feita por ele próprio.
O voto do relator menciona expressamente a boa-fé e a necessidade de
proteção da confiança dos cidadãos:
Sabe-se que o princípio da boa-fé deve ser atendido também pela Administração Pública, e até com mais razão por ela, e o seu comportamento nas relações com os cidadãos pode ser controlado pela teoria dos atos próprios, que não lhe permite voltar sobre os próprios passos, depois de estabelecer relações em cuja seriedade os cidadãos confiaram. “A salvaguarda da boa-fé e a manutenção da confiança formam a base de todo o tráfego jurídico e em particular de toda a vinculação jurídica individual. Por isso, não se pode limitá-lo às relações obrigacionais, mas ampliá-lo sempre que exista qualquer vinculação jurídica, ou seja, tanto no direito privado, como no direito público”. (Karl Larenz, Derecho de Obligaciones, vol. I, p. 144). Insistindo nesse ponto de vista, Jesús Gonzáles Pérez, no seu El principio General de la Buena Fe em el Derecho Administrativo, observa que todas as pessoas, inclusive as de direito público, devem pautar sua conduta de acordo com o princípio da lealdade, sendo improcedente a pretensão dirigida à anulação por efeitos formais do ato praticado por quem aceitar o cumprimento da outra parte.
Seguindo os passos do que ocorreu em vários outros países, como o caso já
citado da Alemanha, o desenvolvimento da teoria da proteção da confiança e da
boa-fé no Brasil primeiro se desenvolveu na jurisprudência, para a seguir abrir
157
caminho na legislação. É preciso salientar que, mesmo que se fale em um
desenvolvimento pioneiro na jurisprudência, as teorias a respeito da proteção da
confiança não foram tão estudadas no Direito Público como o foram e são no Direito
Privado. Mais do que isso, o estudo da proteção da confiança no Brasil tem como
marco significativo a jurisprudência construída a partir da promulgação da
Constituição de 1988. Mesmo no campo doutrinário, não existem muitos estudos
relativos à proteção da confiança no Direito Administrativo, como ocorre em outros
campos.
No âmbito do direito positivado, o pioneirismo cabe à Lei No. 8.666 de 21 de
junho 1993 (Lei de Licitações) que dispõe em seu art. 59, parágrafo único, que “a
nulidade (do contrato administrativo) não exonera a Administração do dever de
indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que for
declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que lhe seja
imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa”. O mérito do
dispositivo está justamente na quebra do velho paradigma da extirpação de todo e
qualquer efeito do ato nulo e nesse sentido promove, ao menos parcialmente a
proteção da expectativa daquele que contrata com a administração pública, em
razão da aparente validade do ato administrativo, que inclusive começou a executar
e que posteriormente é invalidado.
Merecem ainda referência as leis 9.868 de 10 de novembro de 1999, que
dispõe sobre o processo e julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da
Ação Declaratória de Constitucionalidade por omissão e 9.882 de 3 de dezembro de
1999 que dispõe sobre o processo e julgamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental. Embora seja da tradição constitucional brasileira a concessão
de efeitos retroativos à inconstitucionalidade da lei, eficácia ex tunc, as referidas leis,
a primeira em seu art. 27 e a segunda em seu art. 11 reconheceram a possibilidade
de modulação dos efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade de lei,
fixando como limite o trânsito em julgado da decisão ou outra data a ser fixada -
adotando efeitos ex nunc ou pro futuro -, levando em consideração razões de
segurança jurídica ou de excepcional interesse social mediante aprovação de dois
terços dos ministros.
158
E finalmente, merece menção a Lei Federal No. 9.784 de 29 de janeiro de
1999, que trata do Processo Administrativo no âmbito da Administração Federal. Tal
norma - cuja aplicação não vem se restringindo ao Processo Administrativo, mas a
toda e qualquer atividade administrativa de natureza decisória - estabelece em seu
art. 54 o prazo decadencial de cinco anos, contados da data em que foram
praticados os atos administrativos eivados de vícios de legalidade, quando
concederem efeitos favoráveis aos seus destinatários, para que a Administração
possa anulá-los, salvo se comprovada má-fé. Tal cláusula configura verdadeira
proteção à confiança na medida em que impõe uma limitação temporal ao poder de
anular os atos da administração pública que, mesmo acometidos pelo vício da
ilegalidade, poderão se preservados ocorrendo as circunstâncias previstas (efeitos
benéficos advindos ao administrado, boa-fé e lapso temporal considerável).
Além disso merece menção ainda o art. 2º, caput e parágrafo único, IV e XIII,
da Lei que remetem à proteção da boa-fé13.
O dispositivo legal, além de mencionar claramente o princípio da boa-fé,
pretende ainda a tutela da segurança jurídica na medida em que veda a aplicação
retroativa da norma administrativa. A aplicação da boa-fé, nos termos do dispositivo
citado inclusive figura como forma de proteger a legítima expectativa do
Administrado no Processo Administrativo, surgidas inclusive das práticas passadas e
precedentes abertos pela Administração Pública em casos similares anteriores, de
que a Máquina pública se comportará de forma coerente com os posicionamentos
passados, guardando inclusive coerência lógica com eles. O objetivo é resguardar a
confiança dos cidadãos na atuação da Administração Pública, evitando a quebra da
confiança por interpretações desencontradas no exercício da função administrativa.
13
Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: (...) IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; (...) XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.
159
3.7. - A tutela da confiança pelo princípio da Boa-fé em face do Exercício
inadmissível de posições jurídicas: A limitação da atuação administrativa pelas
Figuras típicas
Como visto, resta indubitável a tutela jurídica da confiança no ordenamento
jurídico. Contudo, é impossível prever todas as situações de incidência da tutela da
confiança e da aplicação da boa-fé, especialmente por se tratarem de normas de
cunho principiológico, normas jurídicas imediatamente finalísticas por estabelecerem
um Estado ideal de coisas a ser atingido ou um fim juridicamente relevante, atuando
sobre as condutas dos sujeitos de direitos de modo regressivo (ÁVILA, 2004, 63).
Por isso, contém um grau maior de abstração, aplicando-se a um conjunto amplo e
até mesmo indeterminado de situações.
Isso posto, é difícil identificar a aplicabilidade de um princípio sem que se
tenha ao menos um caso concreto, para se verificar o âmbito da sua incidência. No
entanto, a doutrina e jurisprudência com o tempo vão catalogando elementos em
casos concretos que vão se tornando característicos e determinantes para aplicação
do princípio jurídico. Tal também ocorre com o princípio da tutela da confiança e da
Boa-fé, onde doutrina e jurisprudência tem conseguido identificar nos julgados uma
série de elementos característicos, a exigir a incidência de princípios. Com isso
vem-se construindo um catálogo de exercícios de posições jurídicas cujo traço
comum é justamente a incidência dos princípios da Confiança e da Boa-fé como
elementos de limitação das condutas.
Em razão da pouco desenvolvimento dessa catalogação de condutas típicas
quanto ao princípio da tutela da confiança e da boa-fé no âmbito do direito público,
para efeito deste trabalho, recorre-se à proposta de MENEZES CORDEIRO, de
sistematização desses casos típicos, procurando associar sua aplicação às relações
jurídicas entre a Administração Pública e os cidadãos.
160
3.7.1. - Venire contra factum proprium.
Já mencionado anteriormente, venire contra factum proprium consubstancia-
se na existência de dois comportamentos mantidos por uma pessoa, de forma
diferida no tempo, que individualmente considerados são lícitos. Ocorre que no
entanto, o segundo comportamento contraria uma real expectativa criada pelo
primeiro que esperava-se se manteria inalterado.
O que se busca no venire contra factum proprium não é a proibição de
condutas contraditórias ou a preservação do primeiro ato praticado. Isso se dará de
forma reflexiva em razão da proteção da confiança gerada em alguém com quem o
agente em contradição se relaciona. Confiança esta gerada pelo primeiro
comportamento e que deverá ser protegido em face de um segundo comportamento
contraditório que, se praticado ou mantido, afetará os interesses e causará danos
àquele que confiou na primeira conduta.
Pode-se dar em diversas situações, desde a situação mais típica em que uma
pessoa pratica dois atos sendo que a prática do primeiro torna irrazoável ao olhar
alheio à prática do segundo, que é concretamente efetivado, bem como a situação
de uma pessoa que pratica certos atos usualmente dando a entender que
continuaria a praticá-los, mas não os pratica, ou de uma pessoa que não pratica
certos atos dando a entender a continuidade da inércia e assim não permanecendo.
Como já dito anteriormente, é necessária que a expectativa seja legítima ou
justa. Aquele que confia deve ter motivos relevantes, e vale dizer, razoáveis para
confiar.
Apontando uma situação típica de incidência do venire contra factum
proprium, apresenta-se um julgado do TJSP, de litígio entre uma administradora de
cartão de crédito e uma consumidora que havia contratado cartão. A consumidora
sempre pagava as faturas em atraso de forma que a consumidora, criou
expectativas de que assim permaneceria. No entanto, em determinada situação a
consumidora ao tentar usar o cartão de crédito o teve recusado em razão de
161
cancelamento pela administradora. A administradora alegou a existência de cláusula
contratual que lhe facultava o cancelamento em razão de inadimplemento. O tribunal
no entanto, afastou tal alegação, sob o argumento de que a administradora do
cartão da consumidora teria, com seu repetido comportamento anterior, criado
expectativa legítima na consumidora, de que continuaria a aceitar o pagamento em
atraso sem rescisão do contrato. Segue a ementa do julgamento:
DANO MORAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. NEGATIVAÇÃO NO SERASA E CONSTRANGIMENTO PELA RECUSA DO CARTÃO DE CRÉDITO, CANCELADO PELA RÉ. CARACTERIZAÇÃO. BOA-FÉ OBJETIVA. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. ADMINISTRADORA QUE ACEITAVA PAGAMENTO DAS FATURAS COM ATRASO. COBRANÇA DOS ENCARGOS DA MORA. OCORRÊNCIA. Repentinamente invoca cláusula contratual para considerar o contrato rescindido, a conta encerrada e o débito vencido antecipadamente. Simultaneamente providencia a inclusão do nome do titular no Serasa. Inadmissibilidade. Inversão do comportamento anteriormente adotado e exercício abusivo da posição jurídica. Recurso improvido (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 174.305-4/2-00, São Paulo, 3ª Câmara de Direito Privado A, Relator: Enéas Costa Garcia, J. 16.12.05, V. U., Voto n. 309)
No âmbito da administração pública, tem-se como caso típico de aplicação do
venire contra factum proprium à administração pública o caso já relatado do REsp.
141879/SP que impediu a pretensão do município de Limeira de anular contratos de
promessa de compra e venda com base na falta de regularidade do loteamento,
quando o próprio município era o promissário vendedor.
162
3.7.2. - Tu Quoque.
Tu quoque, Brutus, tu quoque, fili mili? É a frase atribuída a Júlio César,
momentos antes de ser assassinado no senado romano em 44 a.C. ao reconhecer
entre seus algozes, Marco Júnio Bruto, a quem considerava como um filho. Tu
quoque significa, literalmente, “até tu” e é expressão conhecida universalmente
como forma de expressar surpresa.
Juridicamente, o tu quoque serve para designar as situações de emprego
desleal de critérios valorativos diversos para situações substancialmente idênticas.
Trata-se da fórmula jurídica de repressão ao que, no vernáculo, se resume como
“dois pesos, duas medidas” (SCHREIBER, 2007, 183).
Tem-se aqui a contradição por uso de critérios valorativos diferentes, para
situações similares. Situação idêntica é o venire contra factum proprium. O venire
contra factum proprium como já dito, se caracteriza pela existência de dois
comportamentos mantidos por alguém, que individualmente considerados são lícitos
mas o segundo contraria o primeiro, contrariando legítimas expectativas surgidas do
primeiro.
A primeira diferença substancial entre estes dois institutos reside no objetivo
atribuído a cada um no desenvolver dos seus estudos. Embora ambos se
assemelhem pela ideia de incoerência e contradição de comportamento, no tu
quoque há historicamente um nítido direcionamento à sanção de quem o pratica e
repressão à má-fé, enquanto no venire contra factum proprium o que se tutela é a
legítima confiança. A segunda diferença é que, para a ocorrência do tu quoque
exige-se uma contradição mais específica. Trata-se da contradição referente ao
exercício de direito subjetivo, de forma que a pessoa que viola uma determinada
norma jurídica, exerce a prerrogativa conferida por essa mesma norma em face de
outrem. O tu quoque configura como abuso de direito a exigência de um direito
subjetivo baseado em uma norma jurídica quando o próprio sujeito de direitos viola
essa norma jurídica com relação à contraparte. A exceção do contrato não cumprido,
163
contida no art. 476 do Código Civil brasileiro, consiste num exemplo de positivação
da regra do tu quoque.
No que tange à Administração Publica, o tu quoque teria aplicabilidade no
campo dos contratos administrativos, muito embora seja regra a possibilidade das
chamadas cláusulas exorbitantes, como a que impede a invocação da exceção do
contrato não cumprido por aquele que contrata com a administração hoje a própria
legislação vem admitindo mudanças, inclusive quanto a regra do tu quoque, como
ocorre com a própria Lei de Licitações que contempla algumas hipóteses em que o
particular que contrata com a administração possa alegar a exceção do contrato não
cumprido (art. 78, incisos XIV, XV e XVI). Ademais, em face da administração
pública, pode-se pensar em outras situações, que não apenas a do cumprimento
estrito da obrigação para, aplicação do tu quoque, desde se tenha o
descumprimento de deveres jurídicos por parte da Administração, que por outro lado
exige a contrapartida, ou, o cumprimento dos deveres da contraparte pelos mesmos
fundamentos.
3.6.3. - Exceptio Doli.
A excepcio doli, ou exceção de dolo é uma das formas pela qual a parte pode
deixar de cumprir uma obrigação a que ordinariamente estaria obrigada sob
alegação de dolo da parte contrária.
Trata-se de um meio processual genérico de defesa criado pelos romanos
com fito de impedir ações fundadas no dolo do autor que aos poucos foi ampliada
para abranger qualquer forma de atuação iníqua e contrária à bona fides
(SCHREIBER, 2007, 177).
LOSSO entende como possível a aplicação da exceptio doli no âmbito do
direito administrativo nos contratos firmados entre a Administração e particulares,
quando a Administração exerce um direito que, apesar de reconhecido
contratualmente de forma genérica (por exemplo as cláusulas exorbitantes), mas
164
que no caso concreto se apresentem como conduta dolosa e contrária aos padrões
de lealdade que se deve esperar da Administração Pública (LOSSO, 2008, 148).
3.7.4. - Supressio e Surrectio.
Quanto a Suppressio, também conhecida como Caducidade ou Verwirkung no
direito alemão, tem-se a inadmissibilidade da invocação ou exercício de um direito
por seu retardamento desleal.
É a situação do direito que, não tendo sido em certas circunstâncias exercido
durante dado lapso de tempo, não possa mais sê-lo, sem contrariar a boa-fé
(MENEZES CORDEIRO, 2001, 797).
SCHREIBER remete a origem da suppressio ao direito alemão, relatando ter
se desenvolvido após a Primeira Grande Guerra em razão das perturbações
econômicas e pela inflação havidas com o conflito, com a superdesvalorização do
Marco alemão, que fez os tribunais alemães passarem a admitir a correção
monetária de débitos, até mesmo de contratos já cumpridos abandonando o
nominalismo.
Como a diferença de alguns dias no exercício do direito a correção monetária
provocava a multiplicação do valor dos débitos, passou-se a exigir que o credor
informasse o mais rapidamente possível ao devedor acerca de sua pretensão. Em
1923, pela primeira vez o Reichsgericht (Imperial Tribunal de Justiça Alemão com
vezes de corte suprema que funcionou até 1945) decretou a perda do direito de
correção monetária por parte de um empreiteiro que havia retardado por mais de
dois meses a comunicação ao seu cliente acerca da pretensão de correção no preço
(2007, 186). Com o tempo, a aplicação do instituto foi se expandindo para outros
ramos do direito civil e percebeu-se que a deslealdade que perquiria não estava no
retardamento em si do exercício do direito, mas na violação às normais expectativas
daquele que acreditava não ser mais exercitável o direito.
165
O referido instituto encontra obstáculos para aplicação no Brasil em razão do
sistema exaustivo de regulação de prazos de prescrição e decadência no
ordenamento jurídico. Não se confundem é claro, sendo que a suppressio pretende
proteger a confiança despertada em terceiros e seus prazos não são determinados,
mas variáveis, conforme o razoável no caso concreto. SCHREIBER vê a suppressio
mesmo como regra de temperança do rigor dos prazos prescricionais e
decadenciais, muitas vezes concebidos em outras épocas pelas codificações, não
acompanhando a celeridade e o dinamismo da sociedade moderna (2007, 191).
A Surrectio, por sua vez, é entendida justamente como um fenômeno inverso
à Supressio. Enquanto esta se caracteriza pela inércia no exercício de um direito,
naquela tem-se justamente o uso ou o exercício de práticas continuadas que fazem
surgir o direito, ampliando o conteúdo da obrigação original. Assim, tem-se uma
pratica extra jurídica que, continuada, faz surgir direitos para a contraparte. O art.
330 do Código Civil apresenta uma situação característica de surrectio: a presunção
de renúncia do credor quanto ao local do pagamento previsto contratualmente,
quando reiteradamente realizado em outro local.
A aplicação da supressio e da surrectio à administração pública parece
possível, desde que se atente adequadamente para o trato do interesse público,
muitas vezes indisponível.
3.7.5. - Inalegabilidade de nulidades formais
Outra figura que restringe o exercício de direitos em determinados casos é a
inalegabilidade de nulidades formais. As injustiças resultantes, em certos casos de
apego ao formalismo, tem levado o Direito a intervir para minorar o problema. Assim,
a alegação de nulidades formais por uma parte, de forma a desconstituir ou deixar
de cumprir uma obrigação assumida, poderão ser tidas como abusivas quando a
parte contrária estiver de boa-fé quanto à existência da nulidade, e por isso tenha
sua confiança violada e sofra prejuízos com isso.
166
No âmbito do Direito Administrativo, há que se levar em consideração quanto
a aplicação da inalegabilidade de nulidades formais a teoria dos atos
administrativos. Tais atos quando eivados de nulidades insanáveis não poderão ser
mantidos e à violação da boa-fé pela alegação de vício formal do qual se aproveitou
uma das partes como argumento para o não cumprimento das obrigações nesses
casos se restringirão a reparação de danos.
3.7.6. - Desequilíbrio no exercício jurídico.
Por fim, tem-se o desequilíbrio no exercício jurídico, que se verifica na
desproporcionalidade no exercício-benefício de um determinado direito subjetivo.
Tem-se o desequilíbrio no exercício inútil e danoso por alguém de um determinado
direito, e a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício
imposto pelo exercício a outrem.
O desequilíbrio no exercício de prerrogativa jurídica remete a um exercício
racional do direito subjetivo, algo que traga proveito ao titular do direito e não se
limite a causar prejuízo a outrem.
Toda regra do ordenamento jurídico que cria um direito subjetivo, tem uma
finalidade social que também é o elemento que justifica a existência dessa regra. A
partir do momento em que é ultrapassada essa barreira que a própria finalidade
daquele direito subjetivo cria, tem-se configurada a figura do abuso de direito.
Conforme HELOISA CARPENA,
A doutrina evoluiu para a concepção do ato abusivo como aquele pelo qual o sujeito excede os limites ao exercício do direito, sendo estes fixados por seu fundamento axiológico, ou seja, o abuso surge no interior do próprio direito, sempre que ocorra uma desconformidade com o sentido teleológico em que se fundamenta o direito subjetivo. O fim – social ou econômico - de um certo direito subjetivo não é estranho à sua estrutura, mas um elemento de sua própria natureza (2003, 381).
167
Assim, o exercício de qualquer direito está subordinado a uma finalidade
econômico-social contida na própria norma jurídica, que por exigência do
desequilíbrio no exercício jurídico passa a exigir também racionalidade, ou mesmo
utilidade no exercício de um direito considerando uma relação custo-benefício do
direito a ser exercido. Trata-se de uma exigência de razoabilidade e
proporcionalidade no exercício de direitos subjetivos.
No caso da administração pública o referido preceito é plenamente aplicável.
Já se tratou em outros pontos da relativização a legalidade como princípio do direito
administrativo e mesmo a supremacia do interesse público. Por outro lado,
proporcionalidade e razoabilidade são hoje amplamente admitidos como princípios
de atuação da Administração Pública.
Pode-se trazer como exemplos de desequilíbrio no exercício jurídico a
declaração de inidoneidade e a proibição de contratar por uma empresa em razão
de pequenas falhas, ou mesmo uma punição a um servidor público pela
administração no exercício do seu poder disciplinar que não guarda proporção com
a irregularidade cometida.
Essas figuras típicas são de grande valia para a conformação do princípio da
boa-fé, uma vez que por ser um princípio jurídico, tem um grau de generalidade
muito amplo e seus contornos precisam ser bem desenhados para que possam ser
aplicados pelo poder judiciário, ou mesmo, para que possam embasar a atividade da
Administração Pública de forma a evitar condutas reprováveis que causem prejuízos
aos cidadãos em razão da quebra da confiança.
168
3.8 – Boa-fé no Direito Público como Princípio geral do Direito, Princípio
Constitucional e regra de equidade.
A boa-fé se apresenta como um princípio geral do direito, sendo a sua
aplicação conhecida nos mais diversos ramos da ciência jurídica, tanto no campo
público quanto no campo privado, sendo que especialmente nesse último enraizou-
se profundamente. No direito civil entrelaça-se com institutos como contratos, posse,
casamento e responsabilidade civil. É fator determinante para a aquisição e restrição
de direitos e obrigações. No direito comercial também encontrou terreno profícuo,
especialmente em razão das raízes consuetudinárias e pragmáticas deste ramo do
direito, que necessitava de flexibilidade em contraposição ao formalismo jurídico
herdado pelo jus commune, do direito romano. Por outro lado, através da noção de
segurança jurídica, alcançou também o direito público especialmente sob o
paradigma do Estado Social, no qual a figura estatal se fortaleceu e se tornou mais
atuante, atingindo o direito tributário, administrativo e previdenciário, entre outros.
Como princípio do geral do direito, surge da chamada analogia juris, o
procedimento de integração do ordenamento jurídico por meio da extração de
normas jurídicas gerais do sistema. Nesse sentido BOBBIO diz que “os princípios
gerais, são apenas, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema,
as normas mais gerais” (1999, 158). No entanto, cabe aqui a afirmação de que a
aplicação de princípios gerais do direito, não são cabíveis apenas no processo de
integração das lacunas do ordenamento jurídico, como faz crer o texto da LINDB
(Decreto Lei 4.657 de 4 de setembro de 1942). Nos dizeres de REALE, princípios
gerais de direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e
orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e
integração, quer para a elaboração de novas normas. Cobrem, desse modo, tanto o
campo da pesquisa pura do Direito quanto o de sua atualização prática (2002, 306).
Isso parece inclusive ficar muito claro pelo próprio status conferidos pela dicção do
Código Civil (arts. 113 e 421) ao princípio da boa-fé, bem como pela Lei Federal de
Processo Administrativo (Lei No. 9.784 de 29 de janeiro de 1999, arts. 2, IV e art. 4,
II).
169
Cabe-se ressaltar no entanto, que a figura dos princípios gerais do direito não
se confundem com a figura dos princípios constitucionais. Embora não espelhem
categoria diversa, os princípios constitucionais são aqueles que estão atrelados à lei
maior, e como tal, diferem dos princípios gerais do direito, em razão da sua
superioridade hierárquica decorrente da supremacia da constituição, e em razão de
externarem os valores políticos fundamentais da nação. Claro que, em última
instância, como qualquer norma jurídica os princípios gerais do direito encontram a
Constituição como fundamento de sua validade.
Trata-se de um tema interessante mas ainda muito polêmico e que não foi
exaurido pela doutrina jurídica, sempre envolvendo discussões apaixonadas entre
jusnaturalista e positivas, e agora com o acréscimo de posições
neocontitucionalistas, mas que em razão da proposta do presente trabalho não cabe
aqui. Ademais a discussão se torna inócua no campo do princípio da boa-fé,
principalmente no caso da Boa-fé no Direito Público, posto que a doutrina
majoritariamente reconhece fundo constitucional ao princípio, vinculando-o como
princípio decorrente ao princípio da moralidade constitucional, ou, à segurança
jurídica, ao qual se reconhece valor constitucional, e em razão do caráter aberto de
nossa Constituição.
Como Princípio Geral do Direito e Princípio Constitucional, a Boa-fé pode ser
considerada como uma regra de equidade incorporada ao ordenamento jurídico.
Embora haja uma profusão de doutrinas que busquem conceituar a equidade e
analisar sua natureza, pode-se extrair de todos eles que se trata de uma fórmula
particular de atenuação da rigidez das normas. RAO conceitua equidade por
Uma particular aplicação do princípio da igualdade às funções do legislador e do juiz, a fim de que, na elaboração das normas jurídicas e em suas adaptações aos casos concretos, todos os casos iguais, explícitos ou implícitos, sem exclusão sejam tratados igualmente e com humanidade, ou benignidade, corrigindo-se, para este fim, a rigidez das fórmulas gerais usadas pelas normas jurídicas, ou seus erros, ou omissões (2004, 100).
Para ele, equidade não é direito, mas um atributo do direito. De fato,
considerando-se que o princípio da boa-fé opera entre outras situações para além
170
da lei, seja criando obrigações ultra legem, seja atenuando ou mesmo excluindo do
mundo jurídico certas imposições legais, é certo tratar-se a boa-fé como uma regra
de equidade, muito embora a equidade funcione no âmbito da interpretação e
aplicação da norma jurídica em razão das circunstâncias objetivas gerais do caso
concreto e a boa-fé especificamente em razão de atos jurídicos que são ou devem
ser praticadas por alguém. A boa-fé enquanto princípio jurídico pode ser
considerada uma regra de equidade positivada no âmbito do ordenamento jurídico,
uma vez que como visto, encontra base em diversos dispositivos constitucionais e o
próprio Supremo Tribunal Federal admite sua base constitucional.
Analisados o conceito do princípio da boa-fé, seu fundamento constitucional e
a forma como vem se projetando do ordenamento jurídico, passa-se agora a análise
do princípio da boa-fé como elemento de proteção do cidadão em face do Estado,
no contexto da ocupação de áreas de proteção ambiental por população de baixa
renda, em razão da falta de controle efetivo dessas áreas pelo poder público e do
histórico problema habitacional brasileiro, já analisado no capítulo primeiro.
Essa análise enfrenta ainda o cenário de suposto conflito entre o direito
fundamental à moradia e o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, analisados no capítulo segundo, analisando a aplicação do princípio da
boa-fé, sua função e seus efeitos.
171
4. - A OCUPAÇÃO DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE E A
TUTELA DA CONFIANÇA PELO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ.
Passa-se agora a análise da situação específica que se pretende analisar: a
ocupação das APP‟s por população de baixa em renda, por falta de opções de
moradia, em contrariedade à lei.
Tratam-se de áreas em que o direito de propriedade está sujeito a restrições,
por razões ambientais e por isso, a lei traz disposição legal ordenando a
conservação da vegetação.
Para além do mero problema da legalidade, tem-se aí dois fatores
importantes a se considerar: Em primeiro lugar que a ocupação da APP se dá como
forma de obtenção e moradia, e em segundo lugar que a obtenção de moradia se dá
em sacrifício da preservação ambiental, ambos alcançados a condição de direitos
fundamentais pela Constituição Federal. Assim, não se trata apenas de uma questão
de legalidade, mas também de conflito entre direitos fundamentais no plano
concreto.
Ocorre que essas áreas são ocupadas e ali são edificadas moradas, algumas
muito precárias e o poder público, por motivos diversos, permanece inerte. Dentro
da perspectiva do dever de legalidade, a postura administrativa esperada é a
imediata remoção, não permitindo sequer a supressão da vegetação.
Mas não é o que normalmente ocorre. O comum é que essas áreas sejam
ocupadas e assim permaneçam por anos, sem qualquer conduta do poder público. E
ali as pessoas consolidam suas vidas, planejam, vivem. Em alguns casos, tem-se
mesmo a atuação descoordenada e contraditória do Estado. Não reconhece
juridicamente o espaço habitado (o que não poderia fazer em razão da ilegalidade
ambiental), mas contraditoriamente fornece-se serviços públicos e cobra tributos,
como o caso do IPTU, cujo fato gerador tanto a propriedade, quanto a posse, ou o
domínio útil, de um bem imóvel (art. 32 do Código Tributário Nacional).
172
Não se questiona aqui a legalidade da cobrança do IPTU, que não é tema
deste trabalho. O fato é que a cobrança de tributos ou o fornecimento do serviço
público nessas áreas de irregularidade aponta para o conhecimento do Poder
Público, e em certa medida, o reconhecimento no plano fático, da situação do
cidadão.
Trata-se de uma conduta que termina por criar uma esfera de aparente
legalidade, ou de reconhecimento da situação, pois o conhecimento da situação pelo
Estado - aquele que tem como função precípua agir pautado na legalidade, e
presume-se, sempre o faça – exigiria a desocupação imediata, para não se dizer
que o Poder Público deveria ter mecanismos para controlar essas áreas
preventivamente, sequer permitindo que elas fossem inicialmente ocupadas. Assim
cria-se certa expectativa para os ocupantes dessas áreas de ali permanecerem.
Isso faz com que a atuação, ou a falta dela, pela Administração Pública, crie
expectativas nas pessoas – expectativas que legítimas se configurarão como
elemento de proteção da confiança – e isso se choque com a legalidade. Assim se
dá em muitos casos uma legalidade putativa na atuação da administração, ou
mesmo, há uma ilegalidade clara. Nesse último caso, o que ocorre é que, em geral,
os atos da administração pública são revestidos pelo princípio da legalidade. Ou
seja, até que se declare o contrário – autorreconhecimento pela administração ou o
reconhecimento pelo poder judiciário – mesmo os atos materialmente ilegais serão
considerados legais.
Como já dito, o conflito que se constrói no caso, não se trata apenas de uma
contraposição cidadão versus obrigação de legalidade. Mais do que isso, se tem o
conflito entre direitos fundamentais, de um lado o direito à moradia fundamental a
uma existência digna e de outro a proteção ambiental e o direito difuso ao meio
ambiente, fundamental para os processos biológicos ambientais e que redunda
também na existência digna do ser humano. Um conflito que surge e se desenvolve
como pano de fundo da debilidade do Estado de prover políticas sociais adequadas,
mormente no campo habitacional, e de outro lado, de conduzir adequadamente a
politica ambiental de controle de áreas que, por seus atributos, apresentam-se como
173
essenciais ou estratégicas para a manutenção dos processos biológicos essenciais
à preservação ambiental e em última instância, à conservação da vida humana.
A solução mais frequente – e também a mais simples – que tem se observado
como iniciativa do poder público, ora feita sob a baliza do princípio da
autoexecutoriedade do ato administrativo, ora devidamente balizada por decisões
judiciárias é a solução da demolição e da remoção, sob o argumento da ilegalidade
insanável e sobre o argumento da inescusabilidade do desconhecimento da lei.
A partir disso coloca-se em questão o comportamento do Poder Público,
encarregado tanto de políticas públicas de promoção de direitos sociais quanto de
políticas ambientais, além de sua atribuição natural de zelo pela ordem social, que
implica na obrigação de cumprir e fazer cumprir a lei.
Não se pretende trabalhar aqui diretamente o direito fundamental à moradia e
o direito fundamental difuso ao meio ambiente, como fundamento para a não
demolição e a não remoção. O que tratará é a questão da legítima expectativa de
segurança da posse, criada pela administração pública com suas condutas.
Inegável, no entanto, que as soluções que se avizinharem deverão guardar
necessário equilíbrio entre ambos os direitos, conforme exigências do próprio
ordenamento jurídico enquanto sistema, e em razão da posição de centralidade que
os direitos fundamentais ocupam no ordenamento. De forma que não só a atuação
do Estado se dê pautada na realização dos mesmos, mas toda a vida da sociedade
politicamente organizada sob sua égide.
Partindo-se das premissas estabelecidas, analisa-se os efeitos práticos da
boa-fé administrativa a partir das suas construções teóricas tradicionais da boa-fé no
direito privado, considerando-se as particularidades do direito público que se fizerem
pertinentes a partir da constitucionalização do direito.
Confiando o cidadão em situação digna de confiança gerada pelo Poder
Público (de quem se espera sempre uma atuação pautada na legalidade, em razão
do próprio múnus que carrega) não é justo, que a legítima expectativa do cidadão
seja frustrada por uma mudança de posição do Estado, que venha a interferir em
toda uma cadeia de eventos que dele decorreram, mesmo que a mudança da
174
postura decorra do reconhecimento de uma ilegalidade e se dê num movimento
corretivo.
Nesse sentido dispõe BINEMBOJM que:
Havendo a Administração (ou qualquer outro órgão público) concorrido comissiva ou omissivamente para a aparência da legalidade da situação, deverá honrar a legítima confiança depositada pelos particulares que orientaram sua conduta por atos praticados por esses agentes (BINEMBOJM, 2008, 184).
O que deve ficar claro ante todo o exposto é que a postura de solução da
demolição e remoção das populações pobres que ocupam APP‟s da administração
pura e simples do ato em situações em que a própria Administração Pública projeta
confiança legítima perante um cidadão e depois vem a frustrá-la não é uma medida
que se deve colocar como necessária, nem a priori. O reconhecimento de status
constitucional ao princípio da boa-fé e à proteção da confiança implica na
necessidade de ponderação entre este o princípio da legalidade, e qualquer que seja
a prevalência final no caso concreto, não se terá a fragilização do Estado
Democrático de Direito, mas a afirmação da supremacia material da Constituição.
Nessas situações o interprete-aplicador do direito deverá dentro juízo de
ponderação levar em consideração todos os elementos que confluíram para a
criação da legítima expectativa no cidadão em oposição à norma violada e de outro
lado o nível de consolidação de atos e fatos decorrentes do ato administrativo a ser
invalidado.
No antigo paradigma de Estado, o Estado Liberal, a segurança jurídica se
esgotava na contenção do arbítrio dos governantes pela Constituição, se valendo
essa de instrumentos como o princípio da legalidade, o princípio da irretroatividade
das leis, do devido processo legal entre outros. Mas, em um Estado Social que
contemple não somente de contenção do Estado, mas toda uma série de imposições
no sentido de resguardar a pessoa humana, inclusive com o estabelecimento de
prestações positivas, a noção de segurança jurídica deve ser ampliada no sentido
175
proteger essa pessoa humana em face de outras ameaças que pairam sobre ela. É
nesse sentido inclusive que surge a chamada seguridade social, buscando
resguardar condições de vida digna sob a doença, a velhice, o desemprego e outros
infortúnios.
Pois a proteção da confiança deve ser concebida sob esse mesmo prisma, no
sentido de que a percepção clara e a previsibilidade da atuação estatal se colocam
como condições essenciais, permitindo ao cidadão não só o planejamento de sua
vida garantindo-lhe certa estabilidade, como a salvaguarda contra situações de
fragilidade, que coloquem em risco a sua própria existência.
A proteção da confiança, não estaria assim fulcrada em um único dispositivo
constitucional e nem se encontra expressa, mas está fundamentada em diversas
disposições constitucionais e no próprio sentido da Constituição como um todo. Se
concretiza em uma dimensão de proteção da própria dignidade da pessoa humana,
sob pena de que a criação de instabilidade nos projetos e planos de vidas das
pessoas subverta sua própria dignidade, coisificando-as em benefício da atuação da
vontade Estatal.
4.1. – A conduta da Administração Pública e a violação da Boa-fé.
Compreendida a conformação do princípio da Boa-fé e sua atuação, cabe
agora a verificação dos pressupostos da proteção da Confiança pelo princípio da
Boa-fé no cenário descrito e ante a atuação do Estado, de ocupação de Áreas de
Preservação Ambiental por moradias.
O primeiro aspecto a se considerar é a conduta inicial do Estado e se essa
conduta é capaz de gerar a chamada legítima expectativa.
Conforme demonstrado no primeiro e segundo capítulo, a história da
urbanização brasileira é uma história construída em cima de improvisos, sobre um
176
modelo fundiário concentradíssimo, sem nenhuma preocupação social e com pouco
ou nenhum controle da administração do processo de urbanização.
Só muito recentemente, é que surgem as primeiras tentativas de mudança de
cenário, com a Constituição de 1988, a publicação do Estatuto das Cidades e a
criação do Ministério das Cidades. Aliás, a Constituição Federal de 1988 é pioneira
no sentido de dedicar um capítulo para a política urbana, algo que até então jamais
ocorreu em nossa história constitucional, sendo que a inserção do referido nicho na
Constituição Federal foi resultado de mobilizações que culminaram com a
elaboração de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular, subscrita por mais de
130.000 eleitores.
A história da preocupação ambiental do Brasil é bastante recente, mas o que
se percebe em matéria de bens objetos de proteção ambiental é a mesma
ineficiência na gestão e controle desses bens.
Sobre a tutela do meio ambiente, a obrigação estatal decorre do próprio
reconhecimento do meio ambiente como direito fundamental, pois em se tratando de
um direito dessa natureza, ao lado da definição da forma de Estado, do sistema de
governo e das organizações do poder, compõe a própria essência do Estado
Constitucional. Constituindo os direitos fundamentais em elemento de composição
seja da Constituição formal ou da Constituição Material, sua concretização passa a
ser tarefa contínua do Estado.
Além disso, inegável estar intimamente a própria vida humana, em razão da
dependência desta de qualidade ambiental. Por fim, basta apontar que o próprio art.
225 da Constituição Federal aponta uma séria de obrigações ao poder público para
garantir a efetividade do direito ao ambiente.
Veja-se rapidamente as competências administrativas constitucionais sobre a
questão ambiental:
O art. 21 da Constituição Federal traz a competência administrativa e
exclusiva da União em matéria ambiental para: (...) IX - elaborar e executar planos
nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e
177
social; XVIII - planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades
públicas, especialmente as secas e as inundações; XIX - instituir sistema nacional
de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de
seu uso; XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação,
saneamento básico e transportes urbanos e XXIII - explorar os serviços e
instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a
pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o
comércio de minérios nucleares e seus derivados (...).
Logo a seguir, o art. 23 estabelece os casos de competência ambiental
administrativa comum entre União, Estados, Distrito Federal e Município para: III -
proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e
cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas e
VII - preservar as florestas, a fauna e a flora.
No caso do Município, tem-se o art. 30 da Constituição que estabelece como
competência: VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial,
mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo
urbano. Embora não seja uma competência especificamente ambiental, refere-se
também ao Meio ambiente na medida em que o ordenamento territorial também se
refere a questões ambientais. Nesse caso, a competência do município acaba
tratando também das áreas de APP pelo simples fato de se tratar de solo urbano
ocupado, e que por isso também demanda ordenamento, mediante planejamento e
controle do uso.
Deve se observar ainda que as APP‟s no contexto analisado no presente
trabalho atingem não só a seara ambiental, mas também a atividade urbanística do
poder público. Se a preservação ambiental é dever que se impõe ao Estado, a
ordenação dos Espaços habitáveis também o é, decorrendo da própria Constituição
Federal as imposições ao poder público para a organização do desenvolvimento e a
garantia da qualidade de vida no meio ambiente urbano. A própria Constituição
Federal impõe ao poder público a execução da política de desenvolvimento urbano,
178
com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
garantir o bem-estar aos seus habitantes (art. 182).
Observe-se as competências administrativas em matéria de urbanismo
estabelecidas pela Constituição Federal, além do previsto no art. 182. Em primeiro
momento, têm-se as competências da união em matéria de urbanismo, na forma do
art. 21: IX - elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do
território e de desenvolvimento econômico e social; XX - instituir diretrizes para o
desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes
urbanos. A seguir, as competências comuns dos entes federativos que são: VI -
proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; IX -
promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições
habitacionais e de saneamento básico, X - combater as causas da pobreza e os
fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores
desfavorecidos. Finalmente as competências dos municípios que são: VIII -
promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento
e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
Aqui se tem então o fato inicial para a análise da violação da boa-fé. O
estabelecimento das competências para a atuação estatal tanto no âmbito do direito
ambiental como na seara urbanística, não apenas delimitam as esferas de atuação
do Estado, mas determinam a faculdade e o dever da Administração Pública tanto
em uma matéria quanto em outra e permitem pressupor um controle efetivo dos
bens jurídicos objeto da regulação da competência.
Sendo a legalidade o eixo norteador de conduta da atuação estatal,
pressupõe-se que toda a atuação da Administração Pública se pautará pela
observância da lei. Assim quando o administrador público age ou deixa de agir,
supostamente o está fazendo por determinação da lei. O princípio da legalidade
inclusive está insculpido entre os direitos e garantias fundamentais (art. 5, II), como
princípio da Administração Pública (art. 37), entre outros dispositivos.
Nos dizeres de BANDEIRA DE MELLO:
179
O princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis. Esta deve tão-somente obedecê-las, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no Direito brasileiro (2011, 101).
Isso posto, presume-se que toda e qualquer conduta dos agentes estatais, em
todas as esferas e em todas as funções se dá em observância a lei. De tal sorte que,
por presunção, a atuação estatal é sempre legal, mesmo que de fato não seja. É a
chamada presunção de legitimidade do ato administrativo, que decorre do interesse
público do qual é imbuída a atuação da Administração Pública. Assim, de toda
forma, haverá uma aparente legalidade na conduta Estatal: Se o Estado age,
entende-se que agiu no cumprimento da lei e se deixou de agir entende-se que
também o fez no cumprimento da lei. O próprio princípio da legalidade é portanto
fato inicial gerador de confiança.
Além disso, sendo a figura estatal a guardiã do interesse público num Estado
Democrático de Direito, o realizador do interesse público em nome do povo, tem-se
também fato gerador de confiança. Ou seja: a simples posição jurídica de custódio
do poder político exercido em nome do povo também pode ser considerada fator
inicial gerador de confiança, independentemente de qualquer conduta que tome.
Afinal, é função imanente do Estado em um regime constitucional a atuação em
persecução do interesse público.
A qualificação da confiança depositada no Estado como legítima, é a
confiança justificada, uma confiança que seja razoável diante da conduta do agente
criador da confiança e que guarde com ela uma relação direta de causa e efeito. A
presunção de legitimidade e a posição jurídica do Estado como guardião do
interesse público parecem ser suficientes para atribuir legitimidade e razoabilidade à
atuação estatal aos olhos do particular.
Se numa relação de direito privado o fato inicial gerador de confiança e a
qualificação desta como razoável ou legítima não estão necessariamente atreladas,
o mesmo não acontece com a relação de direito público, onde a simples presença
180
do Estado – e sua condição peculiar de primeiro cumpridor da lei e de perseguidor
do interesse público - propicia uma aura de legitimidade e razoabilidade que não se
tem nas relações entre particulares. No polo oposto, é de se considerar a presença
do homem comum, e não de uma pessoa excepcional dotada de vasto
conhecimento ou privilegiado por uma situação excepcional. Nos dizeres de
GONZÁLEZ PÉREZ, o princípio da boa-fé toma o cidadão perante o Estado como
aquele portador de uma conduta normal:
Esta conducta habrá de ser apreciada por la comúnmente seguida por un hombre corriente, un hombre médio, lo que tradicionalmente se ha llamando un buen padre de família, en función de la circunstancia de que se trate. Bien entendido que no se trata de buscar el patrón del hombre ideal (como debería ser), sino el patrón de un ombre corriente (como es) en el momento histórico determinado. Todo ello inducido del ambiente y las circunstancias dominantes (2004, 40).
Posto isso, no caso das ocupações de APP‟s pela construção de habitações,
o fato inicial, idôneo a gerar confiança é a atuação pouco eficiente do Estado, que
adota condutas confusas, contraditórias ou mesmo omissas, capazes de gerar nas
populações ocupantes dessas áreas, o sentimento de que sua situação é de alguma
forma reconhecida.
Ora, se o Estado, aquele cujos atos devem ser pautados – e por presunção o
são – em estrita legalidade, e a quem incumbe tanto a execução da política urbana
como a proteção do meio ambiente e o zelo pelos recursos naturais tem o
conhecimento da ocupação e com ela convive, é capa de gerar, por isso, confiança
nos ocupantes das referidas áreas de que sua situação não é ilegal, ou não será
alterada.
Basicamente, considerando o histórico da atuação do Estado quanto ao
controle das APP‟s e que terminam por permitir a sua ocupação se desdobra em
duas dimensões: uma dimensão de omissão e uma dimensão de contradição.
A primeira dimensão a ser analisada é a Dimensão da Omissão – Nesse caso
tem-se como situação típica a ocupação das áreas delimitadas como APP – sobre
181
as quais o Estado tem pouco ou nenhum controle - por populações pobres, sendo
que elas passam a deter ou possuir essas áreas por longo período de tempo sem
que o Poder Público tome qualquer iniciativa ante a ocupação contínua. É normal
que se passem anos, décadas sem que o Estado tome qualquer providência quanto
a essas situações, a não ser quando ocorram calamidades ou desastres.
A pergunta a se fazer aqui é: A omissão do Estado frente à contínua
ocupação dessas áreas por populações de baixa renda, que ali ficam anos e mesmo
décadas a fio, é idônea a gerar algum tipo de proteção contra a remoção forçada
com base na proteção da confiança?
Como visto, a confiança para ser legítima, deve ser razoável e decorrer em
relação de causa e efeito da conduta inicial mantida pelo Estado. Não é legítima a
confiança fundada em uma mera conjectura, em percepção errônea da realidade ou
a aposta em uma situação arriscada. O fato a gerar confiança deve ser algo razoável
do ponto de vista do homem médio e isso é que deve ser investigado no ato
Omissivo do Estado.
Tem-se aqui a presença do chamado silêncio administrativo, que é a omissão
da administração pública, quando lhe incumbe uma manifestação de caráter
comissivo. Resta saber quais consequências jurídicas podem ser atribuídas a esse
silêncio administrativo.
No direito privado, tem-se a muito solução definida. O silêncio, via de regra,
implica em aceitação tácita, considerando-se os usos e costumes normais e quando
a lei não exigir manifestação expressa (art. 111 do Código Civil).
O direito administrativo, por outro lado, não apresenta a mesma solução. O
silêncio no direito público não implica na prática de ato administrativo, pois inexiste
manifestação formal de vontade e nesse sentido sequer é um ato jurídico. Nesse
sentido, ensina BANDEIRA DE MELLO que:
Na verdade, o silêncio não é um ato jurídico. Por isto, evidentemente, não pode ser ato administrativo. Este é uma declaração jurídica. Quem se absteve de declarar, pois, silenciou, não declarou nada e por isto não praticou ato
182
administrativo algum. Tal omissão é um “fato jurídico” e, in casu, um “fato jurídico administrativo”. Nada importa que a lei haja atribuído determinado efeito ao silêncio: o de conceder ou negar. Este efeito resultará do fato da omissão, como imputação legal, e não de algum presumido ato, razão por que é de rejeitar a posição dos que consideram ter aí existido um “ato tácito” (2011, 414).
Assim como visto, o silêncio administrativo não implica em um ato. Trata-se
de uma imputação legal à omissão da administração que é feita ou não pela lei. Isso
posto, a omissão da administração pura e simples não é elemento idôneo a gerar
legítimas expectativas nos particulares, posto que não há ato administrativo
verdadeiramente. De concreto existe apenas a norma legal proibindo a supressão de
vegetação das APP‟s, servindo de vinculação positiva ao Poder Público que tem
entre suas obrigações controlá-las com fito de preservação e de vinculação negativa
ao particular que deve se ater de suprimi-las ou degradá-las.
Consigne-se que de plano, é possível excluir a simples omissão como
elemento de projeção de justas expectativas pela administração nos cidadãos. Isso
se dá por uma relação de causalidade. Não há qualquer conduta do Poder Público a
legitimar o surgimento da legítima expectativa de permanência e de uso das áreas
de APP, em uma relação de causa e efeito. Até então, tem-se a legalidade como
vínculo negativo para o particular e positivo para o Estado, e, a não ser em um caso
de uma ação da Administração Pública capaz de gerar a aparência da legalidade,
não será possível falar-se em tutela da confiança nesses casos.
A efetividade jurídica do ordenamento tem entre outros pressupostos a
presunção ampla do conhecimento da lei, de forma que ninguém se escusa de
cumprimento por desconhecimento (LINDB, art. 3º). Assim, a mera omissão do
Estado, sem que haja a prática por qualquer dos seus agentes de atos que possam
revestir de certa legalidade putativa a situação jurídica da ocupação irregular, não é
possível a tutela jurídica dessa ocupação por meio da teoria da confiança e da
legítima expectativa.
Passa-se a seguir ao caso da Contradição e da Obscuridade. Nesse caso,
tem-se uma situação um pouco mais complexa. Da mesma forma que é comum a
ocupação ignorada, é comum também a ocupação de áreas reconhecidas de APP
183
ignoradas parcialmente pelo Estado. Ignorada em uma esfera específica em outra
não. Ignorada no trato por um ente administrativo, mas não por outro. Irregulares em
nível de parcelamento do solo, com construções nunca submetidas ao controle do
poder público, mas com certos serviços públicos básicos: às vezes energia elétrica,
às vezes água encanada. É muito comum inclusive, com as novas tecnologias de
Geoprocessamento de dados e fotos via satélite, de um lado o reconhecimento da
ocupação de determinada área para fins tributários, sendo inclusive considerada a
posse direta para fins de tributação de IPTU, e de outro lado o não reconhecimento
da ocupação enquanto forma de parcelamento do solo, balizada na ilegalidade da
ocupação e consequentemente, impossibilitando-se o reconhecimento da posse.
Analisa-se então tal situação à luz da teoria da confiança, especialmente
acerca do chamado venire contra factum proprium.
Exige-se uma conduta inicial ou o chamado Fato Próprio. A conduta inicial do
Estado é a omissão ou tolerância do Estado que redunda na ocupação, ou,
conforme a situação ora estudada, ou a prática de certos atos administrativos que
impliquem em reconhecimento fático pelo Poder Público da situação.
Ora, existindo ao Estado o dever de agir conforme inclusive a própria
Constituição estabelece tem-se o fato inicial se dando em desconformidade com o
direito e caracterizando omissão do poder público, em razão das competências
ambientais.
Observa-se que havendo uma série de poderes-deveres estabelecidos pela
própria constituição em matéria ambiental, a simples tolerância em si de ocupação
de APP sem que haja a imediata remoção, já configura em si mesmo uma
contradição. O problema da omissão em si, como já discutido, é a obrigação de agir
conforme a lei, que atinge tanto a Administração como o Particular, de forma que a
omissão pura e simples, havendo um comando expresso em lei em sentido
contrário, não é suficiente para a criação de justa expectativa acerca da ocupação
de APP dando-lhe aparência de legalidade.
O que se opera diferente aqui é a interação do poder público com as
populações em área ocupada, que implicam no fato de que o poder público tem o
184
conhecimento da situação de irregularidade e o tolera, e faz parecer aos olhos dos
ocupantes que a ocupação é permitida ou existe uma perspectiva de permissão, já
que o poder público inclusive fornece serviços públicos e tributa a área ocupada.
Mesmo que os ocupantes da área de APP tenham o conhecimento da ilegalidade de
sua situação, e embora não dominem o conhecimento dos trâmites técnicos do
reconhecimento de suas posições jurídicas, sabem que o Estado tem como
regularizar sua situação, e pelo fato de que tem conhecimento de sua ocupação e
não os remove de imediato, é justo dizer que se não se cria a expectativa de estar
em situação lícita, cria-se a expectativa legítima de regularização futura.
Nesse caso, é a própria vinculação positiva à legalidade que depõe contra a
Administração Pública, na medida em que o Estado tem a obrigação de agir
conforme a legalidade e não age. Ao tolerar certas condutas e agir
contraditoriamente ante condutas ilegais, cria a atmosfera da legalidade, mesmo que
ela não exista no plano jurídico, e incute legítimas expectativas nos ocupantes
dessas áreas.
Imagine-se a situação de uma família ocupante de APP, que durante anos
vem sendo tributada pelo município e em um dado momento se confronta com a
situação de remoção forçada. Ora, é uma conduta claramente contraditória por parte
do Estado, ter uma situação jurídica reconhecida sob certos aspectos e não
reconhecida sob outros. O Estado, ao interagir com essas pessoas em situação
irregular – na medida em que tem o dever de agir conforme a legalidade – cria a
expectativa legítima, na medida em que seus atos são presumidamente legais.
Nesse caso, é de se entender em sentido inverso ao da Omissão. Aqui se tem
sim um ato capaz de gerar legítima expectativa nos particulares ocupantes de áreas
de APP e obstar a remoção forçada. Vale dizer, houve um ato claro do Estado no
sentido de criar legítima expectativa nos particulares envolvidos diretamente na
situação. Legítima expectativa não é qualquer expectativa. É a expectativa séria
provocada por ato capaz de, consideradas as circunstâncias, parecer legal, bem
intencionado, confiável, segundo padrões de razoabilidade de um homem médio.
Ao fator tempo transcorrido desde a conduta mantida pela administração deve
ser dada importância relativa, pois ele não é essencial por si só para qualificar ou
185
desqualificar a legítima expectativa criada. Servirá, contudo, como elemento
adicional a permitir reforço da expectativa ou até mesmo sua diluição. Deve se
observar também o fator tempo com relação ao grau de irreversibilidade da situação
em que se encontra o particular e os atos que foram efetivamente praticados após a
criação da legitima expectativa, e como circunstância de reparação civil, se
eventualmente o ato contraditório prevaleça, mas tenha como consequência a
reparação.
Quanto ao comportamento contraditório que frustra a confiança criada e as
providências nela fundadas, tem-se a remoção em si das populações ocupantes
dessas áreas com a respectiva demolição das moradias. Nesse caso, vale a pena
levantar aqui a questão da confiança em razão da necessidade de previsibilidade da
atuação estatal, associada ao respeito de direitos e expectativas legítimas. Se a
remoção em si é uma busca pela situação de legalidade, por outro lado é capaz de
gerar situações que colocam em risco a própria existência digna das pessoas
ocupantes dessas áreas, o que não seria admitido pelo ordenamento constitucional.
O dano decorrente da quebra da confiança se situa no plano da própria
alteração unilateral pelo Estado dos projetos de vida das pessoas que ocupam as
APP‟s depois de condutas do próprio poder público que criam expectativas de
legalidade ou de legalização. A dimensão protetiva da dignidade da pessoa humana
estabelecida como fundamento constitucional é fundamento jurídico para que as
remoções, não se realizem, ou quando se realizem, sejam feitas com um plano
alternativo de moradia, inserindo os ocupantes das APP‟s no contexto urbano, de
forma que tenham acesso às funções essenciais da cidade. A remoção pura e
simples significa o abandono pelo Estado da dignidade das pessoas envolvidas e de
seus projetos de vida, e assim, na sua própria instrumentalização – enquanto
pessoas – pela vontade estatal. Nesse caso, é de se entender que o “investimento
de confiança” não tem que ser necessariamente um investimento em bens materiais
apenas – o que de fato ocorre – mas o próprio plano de vida das pessoas que
ocupam essas áreas e, de forma abrupta, estarão privados do seu plano de vida, e,
pior, privados de uma condição fundamental para uma vida digna: um lugar para
habitar.
186
Embora a jurisprudência ainda não revele uma direção clara do
posicionamento dos tribunais, a respeito da aplicação do princípio da boa-fé como
tutela da confiança, é possível perceber em alguns julgados a situação de
contradição, como elemento de motivação da decisão judicial. Para ilustrar tal
afirmação, apresenta-se texto de julgado recente do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo, em que se confrontam em situação similar, Moradia e Meio Ambiente
(destaque nosso):
“...seria inadequado sacrificar totalmente o direito à moradia, como fez a r. sentença recorrida, ainda mais quando se tem em conta que a ocupação existe há muitos anos e o Estado, ao invés de debelá-la de pronto, não somente se omitiu, como ainda efetuou prestações positivas, fornecendo aos moradores do local os principais serviços de infraestrutura.”
EMENTA: Apelação – Ambiental – Ocupação irregular de APP – Sentença que condena o apelante a se abster de atividades danosas e reparar o dano, inclusive com a demolição de residência existente no local – Matéria fática incontroversa – Questão que se resolve, no entanto, parcialmente em prol do apelante – Diante do conflito entre os direitos fundamentais ao meio ambiente e à moradia, deve-se adotar a solução que promova a maior eficácia possível de ambos – Aplicação do princípio da concordância prática ou harmonização – Sentença parcialmente reformada, para excluir a ordem de demolição da residência, mantidas as demais providências de conservação e reparação ambiental – Apelo parcialmente provido.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Matéria Ambiental. Apelação No. 0004414-75.2011.8.26.0642. Relator Desembargador Souza Nery. São Paulo, SP, 24 de Outubro de 2013.
Assim sendo, por mais que a decisão judicial não mencione expressamente
os termos Boa-fé, Tutela da Confiança, Legítima Expectativa ou outra coisa, parece
indubitável que o comportamento contraditório do Poder Público no caso, foi fator de
motivação da decisão judicial, em obstar a demolição do imóvel construído em Área
de Preservação Permanente.
Isso posto, é de se entender que os pressupostos da aplicação da tutela da
confiança estão presentes no caso da atuação descoordenada do poder público, que
187
interage com os cidadãos ocupantes das áreas de preservação permanente – e daí
já se deve presumir o conhecimento pelo Estado da situação de ilegalidade – o que
lhe permitirá a tutela da confiança. No entanto, não estará presente na situação de
simples inação do Estado, que se omite em exercer o poder de polícia sobre as
áreas de preservação ambiental, por faltar elemento capaz de gerar a chamada
legítima expectativa na parte, incutindo-lhe uma perspectiva de legalidade, ou de
reconhecimento jurídico de sua situação.
4.2. – A Regularização da Ocupação das Áreas de APP com base na teoria da
Boa-fé Administrativa e a ponderação entre Direitos Fundamentais.
Discutiu-se a questão da tutela da confiança pelo princípio da boa-fé como
óbice a demolição e a remoção forçada. Já se verificou que a proteção da confiança
tem fulcro constitucional e é capaz de permitir a manutenção de certos status ainda
que contra a legalidade, baseado na legítima expectativa criada. Assim, verifica-se
que a não remoção, é uma medida jurídica legítima, mesmo quando contraria a
legalidade do ordenamento jurídico.
Tratando-se a boa-fé de princípio jurídico de proteção à confiança, ele
invocará sempre a justa expectativa criada no cidadão como eixo norteador de sua
conduta, seja com viés limitativo seja com viés de imposição de condutas
administrativas.
No entanto, a situação traz o conflito entre dois direitos fundamentais, de um
lado o direito à moradia e de outro o direito difuso ao meio ambiente.
É de se considerar ainda que a simples manutenção do status quo da
habitação irregular na APP, não resguarda nem o direito à moradia, nem o direito ao
meio ambiente, na medida em que a degradação ambiental é continuada e na
medida em que não fornece qualquer segurança jurídica da posse aos moradores
das referidas áreas, que poderão no futuro estar sujeitos a novas ameaças de
remoção e de despejos. Mesmo do ponto de vista da proteção da confiança: se a
188
proteção da confiança se dá em razão da proteção da previsibilidade e da
possibilidade de planejamento de vida, qual é a possibilidade de que a situação de
ocupação irregular da APP é capaz de gerar? Não custa lembrar que, como visto, é
a omissão do Estado que propicia em grande medida a situação problemática da
ocupação irregular em áreas de preservação. Como visto na primeira parte do
presente trabalho no âmbito da urbanização brasileira e no tratamento dado à
propriedade e às políticas de habitação, a história da atuação do poder público
brasileiro é repleta de idas e vindas, de decisões equivocadas, de atuação
incoerente e deficiente.
Conforme exposto retro, tanto o direito ao meio ambiente, como um direito
fundamental de toda a coletividade humana, quanto o direito à moradia, como um
direito fundamental social estão tutelados pela Constituição de 1988. Essa tutela na
condição de direitos fundamentais implica na sua centralidade no ordenamento
jurídico, como própria razão de ser do Estado Democrático de Direito, que é acima
de tudo um realizador de direitos fundamentais. Imprescindível então que o Estado,
através do poder judiciário, resolva a questão da colisão dos referidos direitos.
Na resolução desses casos não é possível que o Estado, através do poder
judiciário simplesmente opte por uma das normas, direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos em detrimento dos demais. Vige entre nós o princípio
da unidade da Constituição segundo o qual o texto constitucional é um todo, uma
estrutura sistemática, um conjunto de normas onde nenhuma delas não pode ser
analisada isoladamente, mas no contexto das demais normas integrantes do sistema
no qual está inserida, daí decorrendo uma interdependência dessas. Daí não ser
reconhecido em nosso direito constitucional a possibilidade de hierarquia entre as
normas constantes da constituição e por isso não é possível uma escolha arbitrária
da norma ou direito que prevalecerá.
De se destacar também que o conflito entre direitos fundamentais e bens
constitucionalmente protegidos se dá apenas no plano fático e jamais abstrato, em
razão a própria unidade da Constituição. As colisões nascem a partir da detecção da
necessidade de intervenção estatal em razão do direito fundamental de uma pessoa
estar limitando o exercício de direito fundamental de outra pessoa.
189
Dois são os instrumentos jurídicos para decidir sobre os casos de colisão. O
primeiro é a interpretação sistemática da Constituição, que partindo da consideração
da Constituição como um todo orgânico e partindo da análise de todas as
disposições constitucionais relacionadas ao caso concreto permitiria buscar uma
solução segundo os parâmetros do próprio legislador constituinte.
Pela interpretação sistemática, cada norma jurídica deve ser interpretada em
consideração de todas as demais, já que cada norma é parte de uma conexão com
o todo a luz do qual deve ser compreendida. Sobre a ideia da Constituição como um
sistema dispõe SARMENTO:
Os sistemas jurídicos contemporâneos, como o brasileiro, têm na Constituição não só o seu fundamento de validade, como também o seu centro de gravidade. São os valores constitucionais que, pela sua primazia, podem conferir unidade ao sistema jurídico, cimentando as suas diferentes partes. Naturalmente, a exigência de coerência e sistematicidade também se projeta sobre a Constituição. O interprete constitucional não pode, por exemplo, interpretar a garantia de propriedade privada ignorando a proteção constitucional conferida ao meio ambiente, nem vice-versa (2014, 419).
O reconhecimento da Constituição como um todo orgânico, ou mesmo do
ordenamento não é uma realidade, mas uma tarefa a se cumprir. Ele não nega a
existência de tensões entre valores constitucionais e colisões entre direitos
fundamentais, principalmente na contemporaneidade constitucional, marcada pela
inflação legislativa e pelo pluralismo de interesses juridicamente tutelados. De fato, o
resultado do reconhecimento da Constituição como um sistema é a imposição ao
seu interprete, qualquer que seja, que as colisões sejam equacionadas com base
em critérios que também encontrem fulcro no próprio texto constitucional. Assim
surge o princípio da concordância prática da constituição, que SARMENTO concebe
da seguinte forma: “desde que sejam compatíveis com as possibilidades textuais e
sistemáticas da Constituição, as soluções das tensões entre normas constitucionais
devem manter, na maior extensão possível, a proteção a cada um dos bens jurídicos
envolvidos” (2014, 440).
190
O segundo instrumento jurídico para resolver o problema da colisão é o
critério da proporcionalidade e está ligado ao crescimento da abrangência material
dos direitos fundamentais e a necessidade de conformá-los com a atuação Estatal
em razão de interesses coletivos, já que em certas situações aqueles poderão se
configurar como verdadeiros óbices.
Nesse sentido, DIMOULIS e MARTINS definem a proporcionalidade:
Entenderemos a proporcionalidade como mandamento constitucional que objetiva verificar a constitucionalidade das intervenções estatais a um direito fundamental, mediante a avaliação de sua licitude e da licitude dos fins pretendidos, assim como a adequação e necessidade da intervenção para fomentar determinada finalidade (2014, 177).
Os autores rejeitam a visão da proporcionalidade que se dilua em uma figura
retórica, que termine por encaminhar a discussão para o campo político e moral pelo
órgão judiciário, que não tem competência para tal, conforme o art. 2º da
Constituição Federal. Partem de uma visão em que a proporcionalidade tem origem
numa construção dogmática que visava a limitação da intervenção do legislador na
esfera de proteção dos direitos fundamentais de forma a impedir o excesso de
medidas legislativas interferissem na liberdade individual. A proporcionalidade surge
então como critério de controle da discricionariedade legislativa aberta pela própria
Constituição. Assim entende-se a proporcionalidade como um limite material imposto
ao poder do Estado de restringir a área de proteção de um direito fundamental, um
limite ao poder limitador dos órgãos estatais e partindo desse pressuposto, a
decisão política do órgão judicante só pode prevalecer na medida em que a sua
escolha pela tutela de um bem jurídico-constitucional preservar o máximo possível
do direito preterido. Por isso proporcionalidade não deve ser confundida com uma
regra de equidade, bom-senso, razoabilidade, ou como um instrumento de aplicação
da ideia de justiça.
Conforme se depreende do próprio art. 5, § 1º, a vinculação da atuação do
Estado se dá ao mesmo tempo com todos os direitos fundamentais. E inexistindo
hierarquia entre os referidos direitos, isso significa que no caso de colisão entre
191
direitos, o poder/dever de limitar os direitos fundamentais deve se dar na estrita
medida do necessário para, se possível, otimizar o seu exercício.
Isso posto, o exame das intervenções do órgão judiciário no âmbito dos
direitos fundamentais deve obedecer a dois critérios: A) A verificação do fundamento
legal da medida interventora e da sua constitucionalidade aí incluída a
proporcionalidade; e B) A ponderação concreta, procurando definir se a medida
judicial, embora baseada em normas não inconstitucionais, violam o direito
fundamental por não satisfazerem o critério da proporcionalidade (DIMOULIS e
MARTINS, 2014, 194).
A seguir, passa-se a análise da intervenção do órgão judiciário no âmbito dos
direitos fundamentais ora analisados – Direito à Moradia e Direito ao Ambiente e
proteção da confiança – considerando-se a situação da ocupação irregular das
Áreas de Preservação Permanente, considerando os argumentos colocados e a
obediência aos critérios colocados para o exame das intervenções.
Quatro são os estágios ou “passos” para a verificação a proporcionalidade no
caso concreto:
a) A licitude do propósito perseguido;
b) A licitude do meio utilizado;
c) A adequação do meio utilizado; e
d) A necessidade do meio utilizado.
Importante salientar que os dois primeiros estágios para a verificação de
proporcionalidade não dizem respeito propriamente a esse exame de
proporcionalidade onde se tem a relação e comparação entre objetos. Estão muito
mais ligados aos critérios clássicos do exame de constitucionalidade: a análise da
conduta estatal levando-se em conta os critérios de superioridade, posterioridade e
especificidade das normas jurídicas constitucionais e infraconstitucionais. Contudo,
são trazidos como elementos do exame de proporcionalidade, pois permitem uma
investigação profunda do legislador sobre licitude dos meios e propósitos. Propósitos
genéricos dificilmente permitiriam na prática um exame de adequação e
necessidade. Além disso, a verificação de proporcionalidade pressupõe a verificação
192
da licitude de maneira isolada de meio e propósito. Se meio e propósito são
considerados ilícitos em si mesmos, não há razão para se realizar o exame
proporcionalidade relacionando-os.
A seguir se fará a análise de cada um desses estágios de verificação de
proporcionalidade, buscando-se definir cada um deles para logo a seguir analisá-los
à luz do conflito entre o direito fundamental à moradia e o direito fundamental ao
meio ambiente, sempre na perspectiva do princípio da boa-fé, no caso da ocupação
irregular das Áreas de Preservação Permanente.
4.2.1 – Licitude do propósito perseguido.
O primeiro passo apontado para o exame de proporcionalidade é a licitude do
propósito perseguido. A questão aqui é a justificação constitucional do ato
interventivo estatal – no caso uma decisão judicial - que limita direito fundamental.
Quer-se saber se a intervenção no direito fundamental é constitucionalmente
admitida, ou seja, não se choque com nenhum dispositivo constitucional em sentido
formal.
Propósitos ilícitos em si mesmos não podem ser perseguidos pelo Estado,
configurando-se assim a inconstitucionalidade da medida já nesse primeiro passo.
No entanto, nem sempre a ilicitude do propósito é patente. Veja-se o próprio caso
em análise. A remoção ou demolição de habitações em áreas de APP em razão da
necessidade de proteção ao meio ambiente por meio do resguardo das margens de
fluxos e olhos d‟água. Da mesma forma em que se tem a possível ilicitude em razão
de contrariar o direito fundamental à moradia, tem-se por outro lado o fim perseguido
como lícito, em se observando o direito fundamental coletivo ao meio ambiente.
Mesmo quando se coloca a questão da desocupação das margens de cursos de
água também em face da proteção da confiança, o caso não parece mais simples.
De fato, parece que quanto ao primeiro passo, muito embora a licitude do propósito
193
seja problemática, não é possível afirmar a ilicitude do fim em si mesmo, em razão
inclusive da inexistência de hierarquia entre as normas constitucionais. A proteção
da confiança e do direito a moradia, por mais que se apresentem como objetos de
proteção constitucional, quando colocados frente a outro objeto da mesma natureza,
não são suficiente para invalidá-lo. O problema está na relação entre eles e não nos
elementos em si. Assim, o mais correto neste caso, seria afirmar a licitude e fazer a
verificação da proporcionalidade quanto aos elementos seguintes.
4.2.2 – Licitude do meio utilizado.
O segundo passo se refere a licitude do meio utilizado. Quanto a licitude do
meio, entende-se se o meio em si considerado (independentemente de sua relação
com a finalidade) não é reprovável pelo ordenamento jurídico.
A ilicitude aqui se dá no processo e não no produto conseguido. O Estado não
pode se valer de meios ilícitos para perseguir um fim lícito, muito embora aqui o
exame da licitude do meio seja deste em si mesmo e não relacionado ao propósito.
DIMOULIS e MARTINS exemplificam como situação de emprego de meio
ilícito para perseguir meio lícito, a chamada “entrega” de brasileiros natos e a
previsão de prisão perpétua, medidas expressamente vedadas pela Constituição
Federal no art. 5º, incisos LI e XLVII, mas que foram incorporadas ao ordenamento
jurídico nacional pela aprovação do Estatuto de Roma, do qual o Brasil é signatário.
Embora as medidas possam ser consideradas de propósito lícito, no sentido de que
pretendem punir aqueles que agridem direitos humanos por meio de crimes contra a
humanidade, genocídio, guerra entre outros, de fato os meios empregados são
ilícitos e encontram vedação na própria constituição (2014, 201).
Cumpre-se então analisar a intervenção em Área de Preservação
Permanente para demolição de habitações e remoção de pessoas como forma de
194
fazer cessar a degradação de margens de cursos e olhos d‟água. Parece, mais uma
vez que o meio em si não pode ser considerado ilícito, já que a constituição impõe
ao Poder Público quanto ao meio ambiente o dever de defendê-lo e preservá-lo para
a presente e futuras gerações (art. 225). Em princípio, a ilegalidade se dá pelos
moradores ocupantes das APP‟s e nesse caso, o Estado, seja agindo diretamente o
poder executivo por meio de um ato administrativo de remoção, seja por meio de
uma ordem judiciária, estaria em tese buscando a restauração da legalidade. Assim,
nesse caso, deve-se entender também que o meio empregado não é ilícito por si só.
Mesmo quando se verifica a medida a luz do princípio da boa-fé, não é possível uma
mudança de cenário. Ela sempre agirá como um elemento extrínseco e não tem o
condão de tornar a medida de remoção em si ilícita.
Como dito retro, o exame de proporcionalidade no seu sentido relacional não
ocorre nos dois primeiros passos, muito mais relacionados ao exame tradicional da
constitucionalidade. De fato, em se tratando de conduta estatal que se baseia em
norma constitucional em tese, ou que pretende concretizar uma norma
constitucional, se o que se pretende é a verificação dessa conduta em razão de
outra norma constitucional que ela ao mesmo tempo supostamente viola, esses dois
primeiros passos se prestam, como já dito, ao fornecimento de subsídios ao exame
da proporcionalidade por meio da relação entre fins e meios pela adequação e
necessidade, em razão inclusive da inexistência de hierarquia – seja pelo critério da
superioridade, posterioridade ou especificidade - entre as normas ou bens
constitucionalmente protegidos em análise: moradia, meio ambiente e confiança.
Assim se deve passar as fases seguintes.
195
4.2.3 – Adequação do Meio utilizado.
No terceiro passo, tem-se o exame da relação ente meio utilizado na
intervenção e o propósito por ele perseguido. “Todos os meios empregados pelo
Estado e que não implicarem essa conexão empiricamente comprovável são
considerados desproporcionais e, por via de consequência, inconstitucionais”
(DIMOULIS e MARTINS, 2014, 203). Não serão considerados adequados aqueles
meios sobre os quais não seja possível afirmar-se aptos a alcançar determinado fim.
A verificação da adequação funciona como espécie de justificação
constitucional para a intervenção estatal que se pretende e que nos permitirá realizar
o teste da necessidade. Se uma medida se mostra inadequada a obter um
determinado fim, não há que se passar ao estágio seguinte.
O exame da adequação exige não só que a medida não seja inadequada,
mas que a intervenção seja comprovadamente adequada. Assim, não se deve
pensar na medida como possível, mas como idônea a alcançar um determinado
resultado. Explica-se: se pairarem dúvidas sobre a idoneidade da intervenção, se
pode ou não pode alcançar um resultado, a medida será inadequada. Exige-se aqui
um grau de comprobabilidade, afinal tem-se a busca de justificativa de uma medida
que interferirá em um direito fundamental, restringindo-o.
Nesse sentido, não parece haver muitas dúvidas quanto às medidas de
demolição e remoção de populações das APP‟s. Tratando-se de medidas
específicas, em circunstâncias específicas, as referidas intervenções não parecem
ser inadequadas, já que é possível afirmar comprovadamente que as medidas são
eficazes para a proteção do meio ambiente. Ressalte-se que há necessidade de um
propósito específico e não genérico, já que dificilmente seria possível fazer a análise
de adequação ante um objetivo genérico.
DIMOULIS e MARTINS alertam que se deve tomar cuidados com propósitos
genéricos, sob pena de tornar-se inútil o exame de adequação e necessidade.
Nesse sentido, propósitos genéricos devem ser especificados pois, genericamente,
196
propósitos como “segurança pública”, "proteção do consumidor”, “proteção do meio
ambiente”, “defesa da infância e da juventude” mesmo lícitos, dificilmente ao serem
concretizados pelo Estado seriam considerados inadequados (2014, 202). Nesse
caso, é necessário que o propósito seja identificado de forma mais precisa, por
exemplo, ao invés de indicar-se o propósito simplesmente como “proteção ao meio
ambiente”, falar-se em despoluição de um rio, ou ao invés de apresentar-se como
motivo a “proteção do consumidor”, especificar como propósito o combate a
publicidade abusiva.
Nesse sentido, considerando-se os objetivos específicos da preservação das
APP‟s, como a preservação do solo e da vegetação das margens dos cursos e olhos
d‟água, e que a remoção e desocupação seriam medidas aptas a permitir a
recomposição do estado natural dessas áreas, é de se entender que as medidas são
adequadas como parte do exame da proporcionalidade.
Por outro lado, em se considerando uma situação específica na qual a Área
não possa ser por algum motivo recuperada, a medida não seria adequada, e
portanto, desproporcional. Imagine-se, por exemplo, uma área que, ocupada
massivamente por décadas, não possa se recuperar com a demolição e a remoção
da população que ali se encontra alocada. Sendo factível uma situação como essa,
não seria adequada a medida de desocupação da área. Outra hipótese possível
seria a que a medida de desocupação não bastasse. A ocupação massiva e
continua da área provocasse um problema no solo de forma que além da
desocupação, necessário também que houvesse um projeto de investimentos e
recuperação na área degradada para a recuperação da vegetação e do solo. Nesse
caso, também seria o caso de inadequação se a remoção não for proposta
acompanhada de um projeto de recuperação da área.
Em certas situações é possível que a área protegida seja desocupada, mas
fique abandonada, e sem um plano de recuperação jamais recupere sua vegetação
se transforme em uma zona de acúmulo de resíduos e proliferação de doenças. Por
essa razão, o exame da adequação depende das circunstâncias do caso concreto.
197
4.6.4 – Necessidade do meio utilizado.
A necessidade é a verificação não da idoneidade do meio utilizado para a
produção de um determinado objetivo, mas a verificação de sua imprescindibilidade.
Esse seria o critério fundamental para a aplicação da proporcionalidade, já que em
se tratando de colisão de direitos fundamentais, o meio necessário será aquele que
menos sacrificar outro direito fundamental.
A análise da mera adequação presta-se tão somente para saber se o meio é
apto a produzir certo resultado. Assim, se a análise restringir-se a ela, poderia se ter
um meio altamente eficaz para produção de um resultado, mas ao mesmo tempo
sacrificasse fortemente outro direito fundamental. Se existirem outros meios
adequados a produção de um determinado propósito, sendo eles menos gravosos a
direitos fundamentais eles serão considerados necessários, enquanto que os meios
mais gravosos serão considerados desnecessários e por isso desproporcionais. É
na necessidade que se tem o exame da proporcionalidade propriamente dito.
O critério da necessidade exige a identificação dos vários meios lícitos
considerados adequados a produzir um determinado resultado e uma análise
comparativa entre eles para que se mensuração e o desprezo dos meios
considerados desnecessários.
Mais gravosa é a opção que, para proteger determinado direito fundamental,
interfira mais em um direito fundamental do que outras, mais brandas, dentre
diversas alternativas eficazes possíveis.
De fato, o meio menos gravoso será considerado o necessário, mas embora a
necessidade seja o critério preponderante, ela não elimina a necessidade de
adequação, sendo que se deve escolher o meio menos gravoso capaz de produzir o
mesmo resultado do meio mais gravoso. Será inútil um meio menos mais gravoso
mais incapaz de produzir resultado de eficácia semelhante. É o binômio adequação-
necessidade que, em última instância, permite dar efetividade a um direito
fundamental sem extirpar do ordenamento jurídico outro direito fundamental.
198
No entanto, é necessário salientar, nem sempre essa comparação entre os
meios adequações se revela fácil. DIMOULIS e MARTINS apontam três problemas:
Primeiro saber qual entre os meios propostos é o menos gravoso para o titular do direito (grau de intensidade). Segundo, encontrar formas para medir a sua relação com o fim almejado (grau de adequação). Terceiro, relacionar o problema da intensidade com o problema do investimento estatal que pressupõe a tomada de certa medida (grau de custo estatal) (DIMOULIS e MARTINS, 2014, 215).
O primeiro problema está justamente na comparação em nível abstrato de
objetos diferentes para alcançar resultados diferentes. A heterogeneidade dos
objetos não permite o estabelecimento de uma classificação linear e até a
explicitação de um critério claro. Como comparar por exemplo, dizem os autores
citados, uma pena privativa de liberdade de curta duração com uma multa de valor
muito elevado? A comparação, nesses casos, tende a depender de posicionamentos
subjetivos do avaliador e comparações casuísticas.
O segundo problema se refere ao grau de relação entre o fim almejado e o
meio utilizado. Intervenções diferentes terão impactos diferentes. Se o estágio da
adequação pressupõe a escolha dos meios aptos a produzir um fim, a aplicação do
critério da necessidade é um pouco mais complexa, já que aqui é preciso verificar
dentre todos os propósitos idôneos qual é o mais adequado – assim considerando o
que interferir menos em outro direito fundamental ou bem constitucionalmente
protegido. Por vezes, tem-se um meio que interfere pouco na esfera de proteção de
um direito fundamental, por outro lado, o resultado da intervenção também não tem
um impacto tão eficiente no direito fundamental a ser protegido. Como compará-lo
com uma medida mais eficiente na proteção de um direito fundamental, mas ao
mesmo tempo mais repressora a um outro direito fundamental? Meios diferentes, ao
mesmo tempo em que protegem direitos fundamentais de forma diferente – mais ou
menos eficazes -, intervém de forma diferente em outros direitos fundamentais –
mais ou menos repressores. Assim a doutrina fala em meios menos repressores,
mas capazes de produzir idêntico resultado, ou melhor dizendo, resultando
igualmente eficiente.
199
O terceiro problema apontado diz respeito ao grau de investimento estatal
necessário para a realização das medidas interventivas. Além da questão de maior
ou menor eficiência de uma intervenção, maior ou menor restrição ao direito ou bem
colidente, tem-se aqui o custo para o Estado que cada alternativa terá, já que as
medidas mais onerosas podem repercutir direta ou indiretamente na capacidade de
custeio e investimento do Estado, podendo afetar outros direitos fundamentais, ou
até mesmo, atingir direitos fundamentais patrimoniais no campo da tributação.
DIMOULIS e MARTINS alvitram que a opinião dominante na doutrina alemã é que o
exame da necessidade deve ser feito entre meios igualmente onerosos – no sentido
de gravosidade a direitos fundamentais -, desprezando-se os meios que implicam
em maiores investimentos por parte do Estado (2014, 216).
Assim, é caso de investigar se no caso concreto, nas desocupações e
remoções a existência de meio menos gravoso de preservação da APP em questão
ou se, não é possível alcançar a referida proteção sem a desocupação das áreas
protegidas. Em certas situações além de a desocupação colidir com o direito
fundamental à moradia, uma ocupação controlada poderia ser mais eficiente, na
medida em que poderiam se impor medidas que mitigassem os danos ambientais da
área por meio de decisão judicial ou mesmo de celebração Termo de Ajustamento
de Conduta com o Ministério Público ou com a Administração Pública.
Para ilustrar as possibilidades de atuação dos tribunais nessas situações,
apresenta-se novamente parte do texto do Acórdão Proferido na Apelação No.
0004414-75.2011.8.26.0642 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
relatada pelo Desembargador Souza Nery, já referido anteriormente também
apontado justamente para uma solução híbrida. Na referida apelação reformou-se a
sentença de primeiro grau para excluir a demolição da moradia situada em APP no
município de Ubatuba, mas manteve-se a demolição das demais edificações feitas
pelo réu, que deveria se abster de novos ao meio ambiente e recompor a vegetação.
Ao contrário, penso ser possível realizar a mencionada harmonização, excluindo-se da sentença apenas a ordem de demolição da casa onde reside o apelante, mantida a demolição das demais edificações, com a qual o próprio apelante, em manifestação ofertada no bojo do inquérito civil que deu origem à ação, demonstrou concordância.
200
Com isso, o apelante tem resguardado seu direito à moradia, mas, ao mesmo tempo, permanece obrigado a se abster de causar novos danos ambientais e recompor a vegetação.
A forma com que se dará o cumprimento de tais obrigações deve ser estabelecida pelos órgãos ambientais competentes levando em consideração a necessidade de respeitar o direito à moradia, de forma que o reflorestamento não impeça, por exemplo, o acesso da residência à via pública.
Verifica-se aqui a preocupação do poder judiciário no julgado em análise em
manter o núcleo essencial de cada direito fundamental, buscando manter o direito à
moradia, ao rechaçar a demolição da construção que serve a esse propósito
efetivamente, mas não concedendo o mesmo efeito às demais construções
edificadas pelo réu e que guarneciam sua moradia, sendo que neste caso, além das
demolições, o acórdão determina ainda a proibição de novas edificações e o
reflorestamento. Buscou-se assim, ao que parece, a solução que menos sacrificasse
o direito ao meio ambiente equilibrado, conciliando-o com o direito à moradia, muito
embora o acórdão não deixe clara a construção dogmática usada para realizar a
harmonização ou a “concordância prática” dos direitos fundamentais em questão.
Outra solução possível para o caso seria a determinação da remoção da
população da APP estabelecendo-se a obrigação ao poder público para que
providencie alternativas de moradia aos habitantes do lugar.
Portanto, é perfeitamente possível a conciliação entre os direitos
fundamentais em questão, moradia e meio ambiente. Ressalte-se, é claro, que a
solução em tais casos não segue uma forma pronta e acabada. Como é da própria
natureza desses casos, a solução pela harmonização de direitos fundamentais em
conflito surgirá da análise do caso em concreto, quando só então se aplicando os
critérios de aferição proporcionalidade será possível encontrar-se alternativas de
soluções para o caso concreto.
Isso posto, é possível em se pensar tanto na remoção como na não remoção
da população ocupante de APP, como forma de solução do conflito entre direitos
fundamentais no caso concreto. Há que se considerar a extensão e o grau de
degradação provocado, seus impactos ambientais, perspectivas de recuperação a
201
área, além da forma com que a ocupação se dá, o uso que a população ocupante
faz da área e a extensão dessa ocupação, considerando tanto a área ocupada em si
como o número de ocupantes, e o tempo que ocupam, valendo-se inclusive de
instrumentos como o Estudo de Impacto Ambiental e o Estudo de Impacto de
Vizinhança, para uma correta avaliação do quadro existente. Importante ainda
verificar a existência de alternativas de moradia para a população ocupante da área.
Certo é que, a remoção, para que se afigure possível, deverá vir
acompanhada de alternativa de moradia para as pessoas que até então ocupavam a
área de preservação, sob pena de limitação desproporcional do direito fundamental
à moradia, e de fragilização das mesmas em afronta a própria condição da
dignidade da pessoa humana no ordenamento constitucional. No caso de uma
análise de proporcionalidade, e verificar-se que a remoção é meio adequado a
permitir a recomposição da área, mas poderá ou não ser necessário, conforme seja
possível conciliar no mesmo local a conciliação da ocupação por meio de um plano
ordenado sustentável ou não, caso em que uma alternativa de moradia deve ser
apresentada pelo Estado.
O julgado mencionado retro opta por uma solução intermediária, em que se
mantém a moradia, mas impõe certas obrigações, que incluem a demolição de
outras construções que não a de habitação propriamente dita e recomposição de
vegetação. Nesse caso, o direito de moradia e a preservação ambiental passam a
conviver no mesmo espaço, por meio da manutenção do status quo com a
imposição de certas restrições.
A análise feita no presente trabalho não se restringe a questão do direito de
moradia versus o direito ao meio ambiente. Em se tratando do princípio da boa-fé,
necessário que se verifique também a proteção da confiança, já que ela encontra
respaldo constitucional. Isso posto, na análise que se faz não basta encontrar uma
resposta que atenda o direito à moradia e o direito coletivo ao meio ambiente, mas
também a proteção da confiança dos moradores ocupantes da área irregular.
Como princípio de azo constitucional, a Boa-fé deve-se articular no jogo de
ponderações a ser necessariamente realizado pelo intérprete do ordenamento
202
jurídico à luz da constituição, articulando-a com os demais princípios, com os direitos
fundamentais e com a linguagem adotada pela Constituição Federal.
Isso posto, qualquer solução adotada, deverá articular-se também com a
necessidade de proteção das legitimas expectativas criadas em razão das condutas
criadas pela própria atuação estatal, deficiente, negligente e confusa.
Considerando-se a questão da menor gravosidade quando confrontada
também com o princípio da boa-fé, a proteção da confiança penderia por intervenção
estatal que privilegiasse a não remoção, pois, conforme já dito, além de ter seu
fundamento na previsibilidade da atuação estatal, esta previsibilidade vai mais longe,
devendo ser vista como necessidade de segurança para elaboração de projetos de
vida.
De fato, uma eventual remoção teria impacto muito maior quanto os projetos
de vida de uma pessoa, do que a não-remoção, mesmo que proporcionando-se
alternativa de moradia. Imagine-se, por exemplo, uma ocupação e APP por anos a
fio, e que repentinamente seja ordenada sua desocupação e recomposição. A
permanência nesse caso preserva de forma mais adequada os objetivos finais, da
própria tutela da confiança e da segurança jurídica.
A tese da remoção só poderá se afigurar possível ante ao caso concreto
quando existam elementos que tornem a medida de remoção como única adequada
a satisfazer o direito coletivo ao meio ambiente naquela situação específica, o que
pode acontecer em certas situações no caso concreto.
Assim, a não remoção é a medida juridicamente mais adequada e deve ser
tratada por regra, e a remoção por exceção. A remoção só deve ser considerada
quando não for de fato possível conciliar meio-ambiente e moradia, em hipóteses em
que a remoção se afigure como medida imprescindível à preservação do meio
ambiente no local em que se situe a ocupação. Isso somente será possível se
verificar no caso concreto, em razão do equilíbrio que deverá ser necessariamente
realizado entre os bens constitucionalmente protegidos em jogo.
203
Deve-se colocar inclusive que casos concretos poderão surgir em que outros
bens constitucionalmente protegidos deverão ser levados em consideração, e que
poderão eventualmente interferir nessa relação entre confiança-moradia-ambiente. É
o caso por exemplo, das ocupações em áreas insalubres ou que sujeitem moradores
e seus bens a desastres, colocando suas integridades físicas e mesmo vidas em
risco. Nesse caso, o resultado dessa equação poderia ser outro, mas sempre
considerando-se o caso concreto e a aplicação do método da proporcionalidade
para a resolução da questão. Na equação que ousa-se aqui chamar de simples,
entre confiança-moradia-ambiente, os ocupantes não devem ser removidos a não
ser em situações em que: a) a remoção permitirá efetivamente a recuperação do
local (adequação); b) a remoção seja a única medida possível a permitir a
recuperação ambiental da área ocupada, sendo que deverá ser acompanha de
alternativa para moradia, como forma de sacrificar o menos possível esse direito
fundamental (necessidade).
Quando colocado o problema da comparação entre os meios adequados,
nessa análise da intervenção estatal para solução do conflito entre direitos
fundamentais não só no âmbito do direito à moradia versus o direito coletivo ao meio
ambiente, mas também levando em consideração o princípio da boa-fé, algumas
questões precisam ser colocadas.
Quanto ao problema da heterogeneidade de meios adequados,
impossibilitando uma classificação linear entre eles, tendo que analisar o requisito da
necessidade em face de três bens constitucionalmente protegidos e não dois,
provavelmente implicará na redução do rol das possibilidades. Além disso, a
justificativa da intervenção precisa ser mais bem construída e explicitada. Intervindo
em favor de um direito fundamental escolhendo um meio adequado que ao mesmo
tempo menos afete restritivamente outros dois, torna a justificativa da intervenção
mais exigente e deixa menos espaço para o subjetivismo do avaliador.
Quanto ao problema do grau de adequação, cabe aqui o mesmo raciocínio de
que a analisa em face de três bens constitucionalmente protegidos e não dois,
provavelmente implicará na redução do rol das possibilidades, ou de indecisões
pontuais entre os meios adequados.
204
Quanto a questão do maior ou menor ônus Estatal, em primeiro lugar cabe a
crítica de que esse critério não pode ser preponderante para a escolha do meio
necessário a intervenção Estatal, sob pena de submeter-se a realização dos direitos
fundamentais a questões orçamentárias, já rechaçadas no capítulo dois. Por isso, é
de se observar que a questão do custeio só poderá ser analisada após a análise da
intervenção considerando o meio mais adequado à proteção do meio ambiente no
caso específico, considerando o meio menos gravoso ao direito à moradia e ao
princípio da boa-fé e nunca antes.
Além disso, é de considerar-se que a aplicação do princípio da boa-fé visando
preservar a legítima confiança criada nas populações ocupantes irregulares de APP,
nasce antes de tudo pela conduta Estatal, ausente, confusa, negligente, atrasada. O
princípio da boa-fé tem o condão tanto de invalidar o ato estatal abusivo quanto de
criar condições e obrigações para o Estado no sentido de preservar uma situação
jurídica que se projetou com base na confiança em sua conduta. A aplicação da
boa-fé mesmo neste caso é antes de tudo uma medida reparadora ou de
preservação, baseada num estado ideal de coisas, desenhada com base na
confiança. Assim, a parcimônia no custeio pelo Estado da satisfação de direitos não
pode ser colocada como elemento de escolha, a não ser quando satisfeita a
expectativa criada pela conduta estatal.
Prevalecendo a tese da não remoção, que parece a mais adequada tanto a
preservar a proteção da confiança, quanto direito à moradia e meio ambiente, é
preciso se pensar na regularização da posição jurídica dessas pessoas ocupantes
de área de preservação.
A simples manutenção do status fático da ocupação irregular não é capaz de
gerar nenhum tipo de segurança jurídica, que é valor fim, o motivo pelo qual se
tutela a confiança pelo princípio da Boa-fé. Por outro lado o Estado tem o dever de
legalidade, devendo não só praticar atos legais como também sanar os atos
considerados ilegais.
A Segurança da Posse, no caso da não remoção de populações ocupantes
de APP é um elemento imprescindível de realização de dignidade humana, na
medida em que, “a posse sem segurança jurídica implica o morador não ter proteção
205
legal para viver com dignidade, segurança e paz, as famílias vivem sob o temor do
despejo, o que impede o planejamento familiar e obras de habitação” (SAULE
JÚNIOR, 2005, 33). Além disso, a regularização da área com o reconhecimento
jurídico da posse passível de registro no SRI, permite o estabelecimento de políticas
públicas também de natureza ambiental visando recuperar a área degradada, bem
como o estabelecimento de ônus aos ocupantes no sentido de impedir a majoração
da degradação da área, ou mesmo, o estabelecimento de medidas de recuperação
ou compensação.
Nesse sentido parece óbvio que o dever da Administração é sanar a
ilegalidade promovendo a regularização da área ocupada.
Conforme visto quando tratadas as funções da boa-fé no direito privado, sua
atuação não se limita a atuação restritiva, no sentido de coibir atos considerados
abusivos, mas também age como indutora de deveres jurídicos, os chamados
deveres implícitos ou deveres anexos, de forma a atender, da melhor forma
possível, a expectativa de comportamento criada pelo próprio Estado. A boa-fé em
sua função extensiva legitima a exigência de comportamentos não pactuados,
baseada tão somente na confiança criada pelo comportamento até então mantido
pela contraparte. Se no direito contratual a promessa e a oferta contratual vinculam
a um fazer, pela função extensiva da boa-fé objetiva, aqui o comportamento indutor
de expectativas também vincula.
A regularização dessas áreas possibilitará a realização efetiva do valor
segurança jurídica, pois se o simples óbice a remoção e demolição resolve um
problema imediato, cria outros na medida em que relega a população ocupante a
uma espécie de limbo jurídico que lhe nega qualquer dignidade. A segurança da
Posse será o elemento de segurança jurídica reclamado pela tutela da confiança
cuja exigibilidade do Estado se dá com base na admissão de deveres anexos,
necessários para a conformação da situação fática à situação de confiança criada.
O princípio da boa- fé na tutela da confiança, compreendido em sua
conformação atual é dotado de eficácia negativa e de eficácia positiva. A eficácia
negativa consiste na vedação de que uma parte (no caso o Estado) se volte contra a
legítima confiança incutida em outrem por seus próprios atos. A eficácia positiva
206
significa justamente a adoção de medidas necessárias de forma a suprir as
expectativas criadas por essa confiança.
Certo é que qualquer regularização fundiária da área deverá ter a
sensibilidade de considerar todos os aspectos sociais e individuais envolvidos na
questão, inclusive os direitos fundamentais à moradia e ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, se por um lado flexibilizando as exigências que obstam
o direito de construir (e consequentemente a regularização da área) de outro
promovendo estudos técnicos que apurem os impactos ambientais até então
provocados, em razão da ocupação específica de determinada APP, e apontem
medidas mitigadoras de dano ambiental ou compensatórias, fazendo uso da
Ponderação razoável dos interesses e direitos fundamentais implicados na questão.
Por outro lado, há que se compreender necessariamente a tutela da confiança
em seus efeitos positivos, que implicam numa atuação positiva no Estado no sentido
de garantir aos particulares seus projetos de vida. Assim como a boa-fé no direito
privado, que garante os chamados deveres implícitos ou anexos.
Os chamados deveres anexos decorrem da própria complexidade contratual
contemporânea. MENEZES CORDEIRO diz que
A complexidade intra-obrigacional traduz a ideia de que o vínculo contratual abriga, no seu seio, não um simples dever de prestar, simétrico a uma pretensão creditícia, mas antes vários elementos jurídicos dotados de autonomia bastante para, de um conteúdo unitário, fazerem uma realidade composta (CORDEIRO, 2001, 585).
Essa realidade composta, se observada do ponto de vista ético nos contratos,
implica muitas vezes em extrapolar os deveres dispostos no texto contratual de
forma a buscar a proteção das partes contratantes e de suas razoáveis expectativas.
A par dos deveres já explicitados no texto contratual, a boa-fé tem o papel de
ampliar as obrigações contratuais, integrando-as com obrigações instrumentais de
conservação e respeito ao direito alheio, chamados deveres anexos. “„Deveres de
cooperação e proteção dos recíprocos interesses‟, e se dirigem a ambos os
207
participantes do vínculo obrigacional, credor e devedor” (MARTINS-COSTA, 2000,
439).
Esses deveres não guardam qualquer relação com a obrigação em si, não
são deveres implícitos na obrigação e nem guardam qualquer relação de
decorrência com as demais obrigações contratuais, mas decorrem do próprio
significado de boa-fé objetiva, como promotora de um Estado ideal de coisas, onde a
boa-fé atua como fonte de integração da relação jurídica, determinando sua
otimização, independentemente da regulação volitiva estabelecida. São
comportamentos que vão variam conforme a circunstância do caso concreto, e que
deverão ser adotados para a realização positiva do fim almejado pelo contrato, para
a proteção da pessoa humana e aos seus bens envolvidos na relação contratual,
guardando identidade na boa-fé, como elemento de proteção da confiança.
Assim, como se pode falar em ampliação dos direitos contratuais nas relações
privadas, é o caso de se falar na atuação positiva da tutela da confiança e da Boa-fé
no âmbito do direito público, no sentido de criar a obrigação de certos
comportamentos positivos para a administração. A eficácia positiva então preconiza
a obrigação da adoção de medidas pela Administração Pública no sentido de
garantir uma existência digna as pessoas e estabilidade nos seus planos de vida,
rechaçando que a atuação da Administração se dê de forma irrefletida. De fato aqui
se olha para o Estado de confiança não no sentido de preservá-lo mas de alcançá-lo
ou recompô-lo.
Nesse sentido MARTINS-COSTA sobre a eficácia positiva e negativa da
tutela da confiança:
Com efeito, a personalidade humana, considerada em seus aspectos existenciais, protegidos, em larga medida, no catálogo dos direitos fundamentais, mas também nas leis infraconstitucionais, é o bem jurídico fundamental por excelência. Proporcionar as condições para o seu desenvolvimento livre na vida comunitária é também dever de atuação do Poder Público. A confiança do cidadão na Administração Pública vem aí relacionada a um dever que se desdobra, que se bifurca, conferindo dois sentidos diversos a um mesmo sintagma: boa-fé – a Administração deve não apenas resguardar as situações de confiança traduzidas na boa-fé (crença) dos cidadãos na legitimidade dos atos administrativos ou na regularidade de certa conduta; deve também agir segundo impõe a boa-fé, considerada como norma
208
de conduta, produtora de comportamentos ativos e positivos de proteção (2004, 114).
De forma que a tutela da confiança não se limita a estabelecer vedações à
atuação da administração pública, mas antes a impor a obrigação de agir, no sentido
de preservar ou mesmo restaurar a confiança e as legítimas expectativas criadas.
Nesse sentido, MARTINS-COSTA, analisando a decisão proferida na Medida
Cautelar No. 2.900 pelo STF, destaca a re-significação do princípio da segurança
que a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem promovido para
compreender não só a segurança jurídica como um valor ligado a imutabilidade e a
permanência de certas situações jurídicas, mas também uma significação muito
mais expressiva, que é própria da proteção da confiança legítima.
Sem desmerecer a significação da segurança jurídica como estabilidade ou fixidez jurídica, a decisão do Supremo Tribunal Federal que motiva estas notas sinaliza, contudo, também uma outra significação para aquele antigo princípio. Faz o trânsito do peso mais significativo – no arco do princípio da segurança – da legalidade estrita para a proteção da confiança, permeando-se com viés de dinamismo. Traça inter-relações entre a confiança e outros princípios, notadamente com os princípios e direitos fundamentais da personalidade humana. Indica que, por vezes, a confiança carece de ação (e não de abstenção), sob pena de ser afrontado o valor “justiça”. (2004, 114)
Para HUMBERTO ÁVILA, a qualificação da norma como regra ou princípio
depende de conexões axiológicas que não estão incorporadas no texto legal, mas
que são construídas pelo interprete na realização de seu trabalho, estando ele
limitado aos valores e fins do ordenamento jurídico. Princípios, segundo a sua
conceituação, são normas imediatamente finalísticas, por estabelecerem um fim a
ser atingido. Eles instituem o dever de adotar comportamentos necessários à
realização de um estado de coisas ou, inversamente, instituem o dever de efetivação
de um estado de coisas pela adoção de comportamentos a ele necessários. Essa
perspectiva de análise evidencia que os princípios implicam comportamentos, ainda
que por via indireta e regressiva (2004, 72).
209
Assim, a adoção de comportamentos ativos pelo Estado em razão da
proteção da confiança parece apontar para uma solução de dimensão social, no
caso do problema da articulação entre direito de moradia e preservação ambiental,
no sentido de que, se por um lado, o bem ambiental é um interesse a ser
necessariamente preservado em razão da vida humana, essa mesma vida humana
se encontra como fundamento do próprio direito de moradia, pode ser fundamental
posto que a simples inação do Estado pode não oferecer proteção ou oferecê-la de
forma deficiente tanto a um quanto a outro direito fundamental.
A solução da remoção pode ser uma alternativa para atender ao direito
coletivo ao meio ambiente, se acompanhada de uma opção alternativa de moradia
digna que atenda também à proteção da confiança da relação entre Estado e
Cidadão. Da mesma forma, a eventual regularização moradia em Áreas de
Preservação Permanente devidamente acompanhada de Estudos de Impacto
Ambiental, em que esse proponha medidas mitigadoras da degradação ambiental, e
a solução da regularização – como medida de plena proteção à moradia – venha
necessariamente acompanhada dessas medidas mitigadoras e ou de medidas
compensatórias, estabelecidas como ônus da regularização. A imposição dessas
medidas mitigadoras ou compensatórias inclusive poderia propiciar de forma direta
ou indireta a descontinuidade da ocupação de áreas de proteção especificamente
contempladas com a regularização.
A confiança, dos cidadãos é um elemento de composição do próprio Estado
Democrático de Direito, como já visto. Um Estado de viés instrumental, que não tem
outro sentido na contemporaneidade que não a concreção de direitos fundamentais
e a valorização da pessoa humana como tarefa permanente. Por isso, é certo dizer
que o Estado Democrático de direito é um Estado de confiança, na medida em que a
confiança “é credito social, é a expectativa, legítima, da ativa proteção da
personalidade humana como escopo fundamental do ordenamento” (MARTINS-
COSTA, 2004, 116). Desta forma não subsiste um Estado de Direito cuja ordem
jurídica não proporcione ou que não viabilize esse Estado de confiança.
A proteção da confiança como exigência de concreção da Constituição, desta
forma, obriga a um comportamento do aparato estatal que não se limite a deveres
210
de abstenção, mas também a comportamentos positivos, como meios de realização
dos direitos fundamentais e da realização das legítimas expectativas dos cidadãos.
Assim a regularização fundiária da área ocupada é exigência do princípio da
boa-fé, uma vez que não seja caso de fazer a remoção das populações ocupantes
de APP, que só seria possível em situações de exceção, não de regra.
Uma vez que seja o caso da regularização fundiária, o princípio da boa-fé
também incidirá sobre o procedimento da regularização. Se boa-fé é confiança,
exigência de previsibilidade e respeito aos projetos de vida é importante que a
regularização fundiária busque dar legalidade e urbanificar a área ocupada tomando
as medidas estritamente necessárias para isso, buscando além de conciliar a
ocupação humana com o meio ambiente, prover serviços públicos básicos, acesso,
de forma a interferir o mínimo possível na vida das pessoas ocupantes da área, e
não trazer grandes ônus a elas.
Necessário então que, nas etapas de planejamento do projeto de
regularização fundiária leve-se em consideração não apenas o que precisa ser
levado à população ocupante da APP, mas tudo o que ali já se encontra e faz parte
da vida das pessoas que ali habitam, reconhecendo sua realidade. Assim, nada
mais indicado para a efetiva proteção da confiança, e assim proteção à boa-fé, do
que permitir que a população interessada – principalmente a que habita a área e
será afetada pelo projeto de regularização e as mudanças que ele acarretar - possa
trazer suas contribuições e críticas. Seja por meio de audiências públicas com a
população local ou outros processos. Além de serem os principais afetados, com
certeza ninguém conhece mais a realidade local do que eles. É nesse sentido que
se realiza a verdadeira boa-fé: a cooperação entre as pessoas, e no caso entre
Estado e cidadãos. Esse é também o espírito do Estatuto da Cidade (Lei No.
10.257/2001) que reconhece a gestão democrática e a participação popular não
apenas como regras, mas como verdadeiros princípios da política urbana (art. 2, II e
XIII) e que, por isso, deverão permear todas as etapas da atividade urbanística.
Atualmente, a legislação comporta algumas hipóteses de supressão de
vegetação para a regularização fundiária de áreas que se situem em APP, como já
dito. É o caso do art. 3, IX, d, da Lei 12.651 de 2012, que permite a supressão de
211
APP por interesse social, arrolando entre essas situações, “a regularização fundiária
de assentamentos humanos ocupados predominantemente por população de baixa
renda em áreas urbanas consolidadas, observadas as condições estabelecidas na
Lei No. 11.977 de 7 de julho de 2009”. Essa lei, sobre a questão, estabelece que o
Município poderá, com base em decisão motivada, admitir a regularização fundiária
em APPs ocupadas até 31 de dezembro de 2007.
Outra hipótese é a do art. 8º, § 2º, que admite a intervenção em ou supressão
da vegetação nativa em manguezais e restingas estabilizadoras de mangues, desde
que suas funções ecológicas estejam comprometidas, para a execução de obras
habitacionais de urbanização em áreas consolidadas ocupadas por população de
baixa renda, se estas estiverem inseridas em projetos de regularização fundiária de
interesse social.
Assim, nas últimas décadas houveram avanços quanto ao tratamento das
ocupações humanas em áreas de APP, demonstrando-se sensibilidade legislativa
com ocupações consolidadas, já que se inseriu na legislação possibilidades de
regularização fundiárias de áreas ocupadas nessas condições. O princípio da boa-fé
atuará para permitir a permanência da população em APP‟s e regularização
fundiária em hipóteses não previstas em lei, mas presentes os elementos objetivos
ensejadores da proteção da confiança legítima, ou em situações em que a lei não
contemplar suficientemente situações merecedoras da proteção dessa confiança.
Uma hipótese emblemática é a do limite temporal da lei No. 11.977 que fixado
como 31 de dezembro de 2007, para possível regularização pelos municípios de
ocupações por população de baixa renda consolidadas em APP‟s. Embora possa se
entender que a continuidade de ocupações dessas áreas comprometam o meio
ambiente, e que possam tornar o limite temporal contido expressamente em lei letra
morta, conquanto o Poder Público continue agindo descoordenadamente, se
omitindo, contradizendo-se, sem uma política de urbanização séria e sensível em
todas as esferas de poder, bem como uma política ambiental eficiente, e com isso
continue a permitir a ocupação de áreas de proteção, sem qualquer controle, criando
condições para que elas se consolidem, e travando relações jurídicas de natureza
administrativa com seus ocupantes dessas áreas, continuará criando legítimas
212
expectativas nos mesmos, e por isso, criando condições para a atuação do princípio
da boa fé. Nessas situações, quando concretamente identificadas, e presentes os
pressupostos para a proteção da confiança, será forçoso entender que o limite
temporal estabelecido na lei 11.977 de 2009, não subsistirá.
Embora se reconheça que o poder público esteja buscando solucionar o
imenso problema criado ao longo de décadas de urbanização desordenada e
construída sob um regime de propriedade extremamente excludente, e que o limite
temporal tenha sido criado em razão disso, pelo princípio da boa-fé, o limite temporal
só tem sentido se a forma de agir do Estado mudar ao ponto de não mais permitir a
projeção de situações de confiança legítima em ocupações de áreas ambientais.
Afinal, o princípio da boa-fé é um meio de proteção do cidadão contra o Estado,
hábil a protegê-lo não somente contra as arbitrariedades do poder público, mas
também da sua ineficiência e da debilidade.
213
CONCLUSÃO
Após analisar o princípio da Tutela da Confiança e da Boa-fé como corolários
do próprio Estado Democrático de Direito, verificou-se que o princípio, se
devidamente aplicado nas relações de Direito Público é capaz de proteger o cidadão
ante a postura do Estado, exigindo deste último tanto posturas negativas quanto
posturas positivas.
A Tutela da Confiança e da Boa-fé, tem fundamento na própria reformulação
do Estado Constitucional para Estado Democrático de Direito, em que a pessoa
humana em sua dignidade passa a condição de figura central do ordenamento
jurídico, e passa a exigir-se do Estado uma atuação reflexiva, preocupada com o
interesse público – não considerado interesse da Administração Pública, mas
sopesado em cada caso concreto, de acordo com os verdadeiros anseios sociais e
com as exigências de proteção dos direitos fundamentais – e com os impactos de
sua atuação sobre a vida e os projetos de vida dos cidadãos. Essa preocupação,
reflete a própria proteção da dignidade da pessoa humana, na medida em que
retirando-se do cidadão a segurança conferida pela confiança, corre-se o risco da
pessoa humana perder sua condição de centralidade do ordenamento jurídico,
convertendo-se num mero instrumento de atuação Estatal.
Ao analisar os direitos fundamentais à moradia e ao meio ambiente, verificada
a razão de sua incorporação ao texto constitucional por sua fundamentalidade e uma
vez verificado também o tratamento constitucional dado a ambos os direitos,
observa-se que a melhor solução para o caso de conflitos entre direitos de tamanha
importância deve necessariamente passar pela ponderação de interesses e valores,
de modo a se preservar o núcleo essencial de ambos os direitos constitucionalmente
protegidos.
Se por um lado à moradia como direito fundamental é uma conquista
paulatina advinda do surgimento do Estado Social, e construída através d e um
processo histórico em que se amplia a noção de direitos fundamentais para além
das liberdades públicas do estado liberal para atingir o atendimento de necessidades
214
matérias do ser humano, por outro lado o direito ao ambiente surge da compreensão
de que a própria vida humana, o primeiro direito fundamental a ser reconhecido, está
interligada aos demais fenômenos biológicos do planeta e deles depende para a
sua continuidade. Do ponto de vista da dignidade humana como princípio
fundamental da República, ambos os direitos são de igual importância e dirigem-se
para aquele mesmo fim.
Se por um lado acelera-se a degradação ambiental do planeta, pelo uso
inadequado dos recursos naturais e pela poluição, por outro lado, o fenômeno
urbano e a desigualdade social pressionam a população de baixa renda para as
áreas marginais das cidades, onde estas pessoas sem grandes alternativas
procurarão modos de se estabelecer e morar.
Ver a ocupação de certas áreas de especial interesse ambiental como ato de
vilania, significa deixar de enfrentar a fundo o verdadeiro problema, já que a
população de baixa renda que recorre a ocupação de áreas de preservação o fazem
por falta de opção, e normalmente com a omissão ou conivência do poder público, já
que a alternativa - propiciar a todos lugar e condições dignas de morar - é muito
mais onerosa. Por outro lado, tal visão ignora a participação fundamental do Estado
na falta de políticas sociais adequadas e na falta de controle dos bens ambientais,
objetos que deveriam ser de especial proteção. Sob esse aspecto, adquire
importância também o princípio da boa-fé, como elemento de proteção da confiança
– bem que encontra proteção no próprio texto constitucional – nas relações entre
cidadãos e Estado.
Considerando-se isso, e somada a fundamentalidade dos direitos
constitucionalmente protegidos em questão, qualquer solução jurídica para o conflito
de direitos, ou para o conflito de interesses balizados nesses direitos passará
necessariamente pela ponderação de valores, de forma a resolver o problema
preservando-se o núcleo essencial de cada direito em questão, posto que como
direito fundamentais emanam deles escolhas políticas do povo, enquanto
sociedade politicamente organizada. É importante salientar que não havendo
soluções prontas para esse tipo de problema, conforme a própria doutrina aponta,
buscar-se-á a ponderação da proporcionalidade, visando a concordância prática dos
215
direitos em conflito no caso concreto, de forma a não a se encontrar uma solução
que efetive um determinado direito impondo menor restrição aos direitos
fundamentais que com ele se confrontam, sem o quê não faria sentido chamá-los de
fundamentais, e acima de tudo, como postulado básico buscando manter a harmonia
e unidade da constituição.
O que deve ficar claro é que o comportamento do Estado, considerando-se
que basicamente o Estado Democrático de Direitos é fundamentalmente um Estado
de confiança, exige a racionalização da atuação do Poder Público, tendo em vista o
atendimento a interesses sociais e a preservação dos direitos fundamentais e da
pessoa humana, de forma que é inadmissível a mudança de comportamento do
Estado de forma brusca, após longo tempo, que vem fragilizar os cidadãos que nele
confiam.
Nesse sentido a própria legalidade deverá ser afastada em nome da
juridicidade, considerando-se a multiplicidade de fontes de Direito na relação do
Estado com o cidadão, tendo a Constituição como eixo norteador de ponderação em
cada caso concreto, de forma a manter a centralidade da pessoa humana e dos
direitos fundamentais no ordenamento jurídico.
Assim, a ocupação de APP‟s por populações como alternativa de moradia,
deve ser analisada não considerando a remoção ou não remoção a priori, mas
considerando que o próprio Estado teve papel fundamental na constituição do
problema e que, legítimas expectativas criadas exigirão um comportamento reflexivo
e que atenda a confiança que é justo que cidadão tenha no aparato estatal no
Estado de Direito. Não podem ser admitidas situações que subvertam os projetos de
vidas das pessoas, mesmo quando construídos sobre situações ilegais, se o próprio
Estado contribuiu com sua omissão ou descoordenação para essa ilegalidade. É
importante aqui a compreensão e que o próprio Estado, em seus atributos e
prerrogativas, pode com seus atos dar aparência de legalidade ou de
reconhecimento jurídico de certas situações, pelos próprios instrumentos que utiliza
na execução da função estatal – presunção de legalidade, autoexecutoriedade,
supremacia do interesse público – além do fato de ser fiduciário da confiança e
expectativa dos cidadãos.
216
O problema de ocupação das APP‟s por moradia exige solução, e a solução
do Estado não se limitará a inação, pois a inação, em muitas situações não é
suficiente para traduzir-se em proteção da confiança do cidadão. Nesse caso, além
de medidas negativas ou de abstenção, a proteção da confiança e da boa-fé
poderão exigir comportamentos positivos, na medida em que como princípios
jurídicos, se comprometem com a promoção de um estado ideal de coisas e com o
atendimento de finalístico do ordenamento constitucional.
217
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