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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP JOÃO EMILIO DE ASSIS REIS O CRESCIMENTO DESORDENADO DAS CIDADES SOBRE ÁREAS DE PROTEÇÃO AMBIENTAL: O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E A PROTEÇÃO AO DIREITO DE MORADIA DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2015

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - O ......O presente trabalho busca analisar o conflito entre o direito fundamental à moradia e o direito fundamental ao meio ambiente,

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Page 1: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - O ......O presente trabalho busca analisar o conflito entre o direito fundamental à moradia e o direito fundamental ao meio ambiente,

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

JOÃO EMILIO DE ASSIS REIS

O CRESCIMENTO DESORDENADO DAS CIDADES SOBRE ÁREAS

DE PROTEÇÃO AMBIENTAL: O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E A

PROTEÇÃO AO DIREITO DE MORADIA

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2015

Page 2: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - O ......O presente trabalho busca analisar o conflito entre o direito fundamental à moradia e o direito fundamental ao meio ambiente,

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

JOÃO EMILIO DE ASSIS REIS

O CRESCIMENTO DESORDENADO DAS CIDADES SOBRE ÁREAS

DE PROTEÇÃO AMBIENTAL: O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E A

PROTEÇÃO AO DIREITO DE MORADIA

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção

do título de Doutor em Direito sob a

orientação do Prof. Dr. Nelson Saule Junior.

SÃO PAULO

2015

Page 3: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - O ......O presente trabalho busca analisar o conflito entre o direito fundamental à moradia e o direito fundamental ao meio ambiente,

Banca de Defesa:

_________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________

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Todo dia o sol da manhã Vem e lhes desafia

Traz do sonho pro mundo Quem já não o queria

Palafitas, trapiches, farrapos Filhos da mesma agonia

E a cidade que tem braços abertos Num cartão postal

Com os punhos fechados na vida real Lhe nega oportunidades

Mostra a face dura do mal

Alagados, Trenchtown, Favela da Maré A esperança não vem do mar

Nem das antenas de TV A arte de viver da fé

Só não se sabe fé em quê.

Herbert Vianna

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Às duas mulheres da minha vida, que abriram a minha mente e o meu coração.

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AGRADECIMENTOS

À Deus, pelos dons, especialmente o da perseverança, com que me presenteou.

A meus pais, João Batista e Maria das Graças e meus irmãos Bruno e Felipe, pelo

apoio constante nessa caminhada.

À tia Nilma pelo carinho de sempre e pela ajuda valiosa com este trabalho.

Aos meus antigos e atuais colegas do Centro Universitário Adventista de São Paulo,

da Universidade Vale do Rio Verde e da pela compreensão e constante apoio,

fortalecendo o significado de companheirismo e confiança.

Aos amigos e companheiros de vida acadêmica, Hamilton da Cunha Júnior e

Américo Braga Júnior, além de minha prima Aline Pereira pela constante troca de

ideias, algumas das quais se materializaram neste trabalho.

Ao professor Auner Pereira Carneiro, um grande amigo e incentivador que me fez

perseguir o sonho do doutoramento.

Ao professor Doutor Nelson Saule Júnior pelo zelo, disponibilidade e paciência, que

viabilizaram a construção deste trabalho.

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LISTA DE ABREVIAÇÕES

APP – Área de Preservação Permanente

BNH – Banco Nacional de Habitação

COHAB – Companhia de Habitação

IAP – Instituto de Aposentadoria e Pensões

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INFRAERO – Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária

IPTU – Imposto predial e territorial urbano

MS – Mandado de Segurança

MC – Medida Cautelar

REsp – Recurso Especial

Min. – Ministro

PNAD – Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios.

SBPE – Sistema brasileiro de poupança e empréstimo

SFH – Sistema Financeiro de Habitação

SISNAMA – Sistema Nacional de Meio Ambiente

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

TCU – Tribunal de Contas da União

TJMG – Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

TJSP – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

TRF – Tribunal Regional Federal

UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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RESUMO

REIS, João Emilio de Assis. O crescimento desordenado das cidades sobre áreas de proteção ambiental: o princípio da boa-fé e a proteção do direito de moradia. São Paulo: 2015, 220 p., Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

O presente trabalho busca analisar o conflito entre o direito fundamental à moradia e o direito fundamental ao meio ambiente, no caso específico das ocupações irregulares de Áreas de Proteção Ambiental à luz do princípio da boa-fé aplicado nas relações entre Estado e cidadãos.

O intenso crescimento urbano ocorrido no mundo a partir do século XX tem provocado inúmeras mudanças socioeconômicas e territoriais no país e enormes problemas. A expansão das cidades, em especial em países em desenvolvimento como o Brasil é ainda pior, dada a circunstância de aliar urbanização intensiva, degradação ambiental, com uma formação histórica caracterizada por desigualdades econômicas e ineficiência do Poder Público.

Um dos efeitos do crescimento urbano nessa conjuntura é o déficit habitacional que obriga a população a buscar alternativas para moradia, que muito frequentemente terminam por infringir a lei, degradar o meio ambiente, e muitas vezes colocam em risco a própria vida das pessoas. Nesse contexto, é comum a invasão ou o parcelamento irregular do solo em áreas ambientalmente protegidas, que são de uso restrito, como as Áreas de Preservação Permanente, o que cria um problema social relevante a ser resolvido.

Analisa-se inicialmente a formação do cenário do problema habitacional, considerando a formação histórica das cidades brasileiras, da propriedade urbana e das política publicas de habitação. A seguir, partindo da análise da evolução da incorporação da tutela da moradia e do ambiente ao ordenamento jurídico como direitos, analisa a presença de ambas como direitos fundamentais na Constituição de 1988, busca apresentar o princípio da boa-fé, como norma jurídica constitucional idônea a proteger as populações ocupantes de Áreas Protegidas em situação consolidada, em razão da necessidade da proteção da confiança – aqui significando segurança jurídica e a previsibilidade na atuação do poder público – nas relações Estado versus cidadãos.

Estuda-se o princípio da boa-fé a partir de seu cerne no direito privado, analisando-se sua incorporação e evolução no direito público brasileiro, para a seguir aplica-lo especificamente no caso das Áreas de Preservação Permanente irregularmente ocupadas, buscando analisar tanto a possibilidade de remoção dessas populações como a de regularização dessas ocupações, tendo por base a técnica da ponderação entre direitos fundamentais.

Palavras-chave: Princípio da Boa-fé; Direito à Moradia; Direito ao Ambiente; Áreas de Preservação Permanente;

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ABSTRACT

REIS, João Emilio de Assis. The overcrowded cities on environmental protection areas: the principle of good faith and the protection of housing rights. São Paulo: 2015, 220 p. Doctoral Thesis. Faculty of Law of Pontificia Universidade Católica de São Paulo.

This study analyzes the conflict between the fundamental right to housing and the fundamental right to the environment, in the case of illegal occupation of Environmental Protection Areas under the principle of good faith applied in relations between the state and citizens.

The intense urban growth occurred in the world from the twentieth century has provoked numerous socioeconomic and territorial changes in the country and huge problems. The expansion of cities, especially in developing countries like Brazil is even worse, given the fact that combine intensive urbanization, environmental degradation, with a historical formation characterized by economic inequality and inefficiency of the government.

One of the effects of urban growth at this juncture is the housing deficit that forces people to seek alternatives for housing, which too often end up breaking the law, degrade the environment, and often endanger their own lives. In this context, it is common to invasion or irregular land subdivision in environmentally protected areas, which are of limited use, such as Permanent Preservation Areas, which creates a relevant social problem to be solved.

It analyzes first the formation of the housing problem scenario, considering the historical formation of Brazilian cities, the urban property and public housing policy. The following is based on an analysis of the evolution of the incorporation of the housing and protection of the environment to the law as rights, analyzes the presence of both as fundamental rights in the Constitution of 1988, seeks to present the principle of good faith, as a constitutional rule of law reputable protect occupants populations of Protected Areas in consolidated situation, due to the confidence of the protection of the need - here meaning legal certainty and predictability in the government's performance - in state relations versus citizens.

Studies the principle of good faith from its core in private law, analyzing its development and evolution in the Brazilian public law, to then apply it specifically in the case of irregularly occupied Permanent Preservation Areas, trying to analyze both the possibility of removal of these populations as the regularization of these occupations, based on the technique of balance between fundamental rights. Key-words: The principle of good faith; Right to housing; Right to Environment; Permanent Preservation Areas;

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SUMÁRIO.

INTRODUÇÃO...........................................................................................................13

1. – O CAOS URBANO E O PROBLEMA DA MORADIA COMO QUESTÕES HISTÓRICAS..............................................................................................................17

1.1. - A explosão demográfica das cidades, sub-habitação e problemas ambientais..................................................................................................................17

1.1.1. - O Déficit habitacional e Ocupação Irregular...................................................23

1.1.2. – Ambiente Urbano e Áreas de Preservação Permanente..............................31

1.2. - A evolução da propriedade urbana e do tratamento da moradia no Brasil.......35

1.2.1 – O período colonial..........................................................................................35

1.2.2. – Período Imperial............................................................................................41

1.2.3 – Os primeiros anos da República....................................................................46

1.2.4. – A industrialização na Era Vargas e a política de moradias nos anos subsequentes.............................................................................................................52

1.2.5 – O tratamento da moradia na Nova República e anos recentes.....................59

2. – A CENTRALIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO...................................................................................................................67

2.1. – Apontamentos sobre a teoria geral dos direitos fundamentais........................67

2.1.1. – Antecedentes dos Direitos Fundamentais....................................................70

2.1.2. – Os direitos Fundamentais e suas gerações..................................................73

2.2. – O direito à moradia no contexto constitucional brasileiro.................................77

2.2.1. - Direito à moradia: notas históricas.................................................................77

2.2.2. - O direito à moradia e o contexto dos Direitos Sociais na Constituição Federal de 1988.......................................................................................................................84

2.2.3. - A efetividade dos Direitos Sociais e as obrigações do Estado brasileiro e a obrigação do Estado Brasileiro concernentes ao Direito de Moradia........................87

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2.3. - O meio ambiente como um direito fundamental...............................................94

2.3.1. – Áreas de Preservação Permanente e seu regime jurídico...........................99

2.4 –Interseções entre os Direitos à Moradia e ao Meio Ambiente equilibrado......107

3. A PROTEÇÃO DA CONFIANÇA DOS CIDADÃOS NO ESTADO: O PRINCÌPIO DA BOA-FÉ..............................................................................................................115

3.1. – O princípio da boa-fé: apontamentos iniciais e breve histórico......................119

3.2. - Diferenciação entre Boa-fé e Proteção da Confiança.....................................129

3.3. – Pressupostos da proteção da confiança através do princípio da Boa-fé......131

3.4. - O princípio da Boa-fé e sua aplicação à Administração Pública...................134

3.5 – Os efeitos da aplicação do princípio da Boa-fé...............................................143

3.6. – Boa-fé e confiança no Direito Administrativo Brasileiro..................................151

3.7 - A tutela da confiança e da Boa-fé em face do Exercício inadmissível de posições jurídicas: A limitação da atuação administrativa pelas Figuras típicas.....159

3.7.1. - Venire contra factum proprium.....................................................................160

3.7.2. - Tu Quoque...................................................................................................162

3.7.3. - Exceptio Doli................................................................................................164

3.7.4. - Supressio e Surrectio...................................................................................164

3.7.5. - Inalegabilidade de nulidades formais...........................................................165

3.7.6. - Desequilíbrio no exercício jurídico...............................................................166

3.8. - Boa-fé no Direito Público como Princípio geral do Direito, Princípio Constitucional e regra de equidade..........................................................................168

4. - A OCUPAÇÃO DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE E A TUTELA DA CONFIANÇA PELO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ....................................................171

4.1. – A conduta da Administração Pública e a violação da Boa-fé.........................175

4.2. – A Regularização da Ocupação das Áreas de APP com base na teoria da Boa-fé Administrativa e a ponderação de Direitos Fundamentais...................................187

4.2.1 – Licitude do propósito perseguido.................................................................192

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4.2.2 – Licitude do meio utilizado.............................................................................193

4.2.3 – Adequação do Meio utilizado.......................................................................195

4.2.4 – Necessidade do Meio utilizado.....................................................................197

CONCLUSÃO...........................................................................................................213

REFERÊNCIAS........................................................................................................217

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INTRODUÇÃO

O intenso crescimento urbano ocorrido no mundo a partir do século XX tem

provocado inúmeras mudanças socioeconômicas e territoriais. Esse crescimento

urbano também se reflete no Brasil, e os impactos ambientais dessas

transformações se equiparam a catástrofes de grandes proporções. Entre 1950 e

2000, a população urbana brasileira que vive em cidades com mais de 20 mil

habitantes, multiplicou-se quase onze vezes, crescendo de 11 milhões para 125

milhões. No último Censo do IBGE (2010) apurou-se que a população brasileira que

mora em cidades ultrapassa o percentual de 84,35%.

A ineficiência do Estado em promover o controle adequado do espaço

territorial, bem como resguardar bens de especial interesse ambiental, como as

Áreas de Preservação Permanente, transformam essas áreas, em razão da pobreza

e do déficit habitacional, em alternativas – ilegais – de moradia. Essa mesma

ineficiência do Estado, permite que essas ocupações se consolidem no tempo,

permanecendo por anos a fio sem qualquer ação do poder público, que em alguns

casos, estabelece até mesmo relações jurídicas com os ocupantes dessas áreas,

como por exemplo, com o fornecimento de serviços públicos essenciais e a

cobrança de tributos.

Isso posto, o presente trabalho discute especificamente a questão da

ocupação de Áreas de Proteção Ambiental por moradias, uma vez que a ocupação

normalmente se dá sem controle e com a supressão de vegetação, implicando

necessariamente na desnaturação da função dessas áreas por meio do

parcelamento irregular do solo. Pretende-se analisar se a continuidade dessas

ocupações em Áreas de Preservação Permanente, gera nenhum tipo de direito para

as pessoas ocupantes em razão do princípio da proteção da confiança e da boa-fé,

entendido como um princípio implícito na Constituição Federal, que busca preservar

a segurança jurídica das pessoas na elaboração de seus planos de vida e que

impede a sua fragilização enquanto pessoas, em direito e dignidade. Em

praticamente todas as cidades brasileiras é possível notar a ocupação de áreas

ribeirinhas ou lacustres.

Page 14: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - O ......O presente trabalho busca analisar o conflito entre o direito fundamental à moradia e o direito fundamental ao meio ambiente,

Dados de levantamento recente sobre aglomerados subnormais do IBGE

(2010) demonstram que cerca de 12% dos domicílios brasileiros em aglomerados

irregulares se situam em margens de rios, córregos e lagos entre outras áreas de

preservação permanente. Tratando-se assim de um problema socialmente relevante,

o enfoque específico nessa questão envolvendo APP‟s pretende contribuir para uma

melhor compreensão dos efeitos da omissão ou da atuação contraditória do Estado

sobre essas áreas ambientais protegidas, considerando a necessidade de

segurança jurídica e confiança na atuação do poder público e o direito de moradia, já

que normalmente as soluções apresentadas para esse tipo de situação, sejam

judiciárias ou administrativas, não tem sido uniformes e muitas vezes se centram em

uma ideia restritiva de legalidade, simplesmente ignorando o direito à moradia e a

confiabilidade que deve ser inerente ao agir estatal. O princípio da boa-fé

especificamente, não vem sendo aplicado como critério de solução em tais

situações, quando muito ganhando posição secundária, ao lado do princípio da

função social da propriedade e de uma ponderação entre direitos fundamentais à

moradia e ao meio ambiente, necessitando por isso ser melhor analisado e

desenvolvido.

O objetivo do presente trabalho é apresentar o princípio da boa-fé –

instrumento de proteção da confiança nas relações entre Estado e cidadãos – como

um pressuposto do Estado Democrático de Direito idôneo a ser aplicado nessas

situações e que se apresenta como um meio eficaz de proteção do direito de

moradia das pessoas que ocupam áreas de proteção ambiental por falta de soluções

de habitação, ante o comportamento do próprio Estado que permite que essas

situações alcancem certa consolidação.

O trabalho se desenvolve basicamente a partir de uma construção histórica

acerca da formação da propriedade urbana no Brasil, passando pela teoria dos

direitos fundamentais e a análise específica dos direitos fundamentais envolvidos,

por meio da revisão bibliográfica, para a seguir introduzir o princípio da boa-fé, tendo

por base sua construção no direito privado buscando mostrar sua adaptação ao

direito público, para finalmente fazer a interseção entre o princípio em análise e a

situação de ocupação irregular de APP‟s, sem deixar de analisar a conformação

necessária que deve ser realizada entre os direitos fundamentais envolvidos.

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O primeiro capítulo traça um quadro da situação do desenvolvimento urbano,

apontando a relação entre a pobreza, a desigualdade social como elementos

causadores da degradação ambiental, ante a inação do Estado tanto em políticas

sociais de moradia quanto em políticas ambientais. Essa análise é acompanhada

inclusive de uma releitura histórica da formação do espaço urbano brasileiro, e como

a atuação do Estado com relação a política urbana e a estruturação do modelo de

propriedade do país contribuíram para a criação de um modelo excludente que criou

um problema crônico de déficit habitacional que nunca foi confrontado de forma

eficiente. Tem o primeiro capítulo o objetivo de apresentar o cenário fático que

propicia a ocupação das áreas de proteção ambiental por parte da população sem

soluções de habitação e que buscam na ocupação dessas áreas meios de

garantirem moradia, e a ineficiência história do poder público em lidar com essas

situações.

No capítulo segundo é abordada a Teoria dos Direitos Fundamentais,

procurando apresentar a evolução desses direitos na história do constitucionalismo,

buscando enfatizar a sua posição de centralidade no ordenamento jurídico, para a

seguir focar especificamente no Direito Fundamental à Moradia, como direito social,

e o Direito Fundamental ao Meio Ambiente, como direito fundamental decorrente de

outros direitos fundamentais e dos princípios adotados pela Constituição Federal.

Busca-se aqui apresentar os elementos jurídicos relevantes ao problema

faticamente apresentado no capítulo primeiro, criando ao menos em aparência um

cenário de conflito e que terminam por desenhar o problema enfrentado.

O terceiro capítulo apresenta os conceitos básicos sobre a necessidade

proteção da confiança nas relações Estado e Cidadão e o princípio da boa-fé, seus

fundamentos constitucionais e sua aplicação no direito brasileiro, buscando-se

extrair, do direito privado – onde o princípio encontrou grande desenvolvimento - ao

contrário do direito público onde ainda é insipiente, especialmente em razão dos

paradigmas tradicionais sobre os quais este se desenvolveu – elementos para sua

sistematização e aplicação no Direito Público. Aqui pretende-se introduzir o tema do

princípio da boa-fé, buscando suas raízes históricas no direito privado e seus

fundamentos constitucionais afim de apresentar seus contornos e pressupostos e

Page 16: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - O ......O presente trabalho busca analisar o conflito entre o direito fundamental à moradia e o direito fundamental ao meio ambiente,

demonstrar sua legitimidade constitucional e aplicabilidade no direito público e em

que medida se dá essa aplicabilidade no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro.

Finalmente, no capítulo quatro busca-se finalmente particularizar a análise do

princípio da boa-fé, para analisar especificamente a sua possível incidência sobre os

casos de ocupação de áreas de proteção ambiental por populações em busca de

alternativa de moradia e a conduta do Estado ante a concretização dessas

ocupações, analisando os seus pressupostos de aplicação especificamente nessas

situações e quais as suas consequências. Essa análise final busca fazer a

interseção da boa-fé com os direitos fundamentais envolvidos no problema dessas

ocupações, meio ambiente e moradia, buscando equacionar os três bens

constitucionalmente protegidos pela aplicação da proporcionalidade, e

demonstrando-se o principal objeto do presente estudo como importante ferramenta

a contribuir para a solução para o problema das ocupações irregulares de áreas de

proteção ambiental, ao despender proteção ao direito de moradia em razão da

legitima confiança criada pelo comportamento estatal.

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1. O CAOS URBANO E O PROBLEMA DA MORADIA COMO QUESTÕES

HISTÓRICAS.

1.1. - A EXPLOSÃO DEMOGRÁFICA DAS CIDADES, SUB-HABITAÇÃO E

PROBLEMAS AMBIENTAIS.

O fenômeno do crescimento urbano ocorrido no mundo a partir do século XX

tem provocado inúmeras mudanças socioeconômicas e territoriais, afetando

especialmente as cidades. O crescimento das cidades que por si só já é

problemático, em razão da própria escala em que se dá, em especial em países em

desenvolvimento tem efeitos piores por juntar numa mesma equação a urbanização

intensiva, degradação ambiental, desigualdades socioeconômicas e deficiência de

políticas públicas.

O contexto dos países em desenvolvimento é especialmente problemático,

uma vez que o poder público nesses Estados ao mesmo tempo é omisso na

proteção de bens ambientais naturais e na implementação políticas públicas

adequadas à efetivação de direitos sociais, especialmente no que tange ao direito à

moradia. O processo de urbanização pelo qual passou Brasil a partir da

industrialização tardia cria um quadro caótico, em razão da explosão demográfica

das cidades, com a taxa de urbanização mais do que dobrando em cinquenta anos

(IBGE, 2010). Essa situação que por si só representa fenômeno de grandes

proporções, ocorre sem o devido acompanhamento de implementação de acesso a

serviços básicos e sem o acompanhamento de políticas públicas – aqui

consideradas como iniciativas governamentais no sentido de solucionar problemas

da comunidade - que garantam as funções sociais básicas da cidade, tornando-se

um problema maior.

Embora se busque tratar especificamente do problema da habitação informal

no Brasil, o processo de urbanização e de produção de sub-habitação pelo qual o

país passou e passa, forma uma espécie de clichê dos países em desenvolvimento.

Com pequenas nuances, os países terceiromundistas, repetem um mesmo roteiro

Page 18: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - O ......O presente trabalho busca analisar o conflito entre o direito fundamental à moradia e o direito fundamental ao meio ambiente,

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histórico que culmina com o déficit de moradias, assim considerado tanto a

inexistência de moradias disponíveis aos cidadãos, como a sub-habitação. Por sub-

habitação, - ou Habitação subnormal, conforme tipificação do IBGE - entende-se a

habitação em condições críticas, ou em condições subnormais, que FERREIRA

assim define:

No Brasil, entende-se por esse termo moradias em favelas, cortiços e loteamentos clandestinos. A informalidade urbana diz respeito à inadequação físico-construtiva da habitação e/ou geomorfológica/ambiental do entorno (construções precárias, terrenos em áreas de risco ou de preservação ambiental, área útil insuficiente para o número de moradores, etc.), à ausência de infraestrutura urbana (saneamento, água tratada, luz, acessibilidade viária, etc.), ou ainda à ilegalidade da posse da terra ou do contrato de uso (FERREIRA, 2000).

O IBGE considera habitações subnormais as unidades habitacionais, em

regime de ocupação ilegal da terra – inexistência de título de propriedade – e que

estejam caracterizadas pela ausência de padrões de urbanização ou por ausência

de serviços públicos essenciais (água, luz, esgoto, etc).

O mundo contemporâneo passa por um processo de urbanização jamais visto

anteriormente. Trata-se de um processo que se iniciou com a Revolução Industrial

nos países desenvolvidos e que se intensificou e atingiu escalas assustadoras a

partir da segunda metade do século XX e que perdura até os dias de hoje nos

países em desenvolvimento. DAVIS apresenta dados bastante significativos de

várias partes do mundo a respeito do tema e que permitem visualizar melhor o

fenômeno. Por exemplo, na África ocidental, a cidade de Lagos que tinha em torno

de 300 mil habitantes em 1950, através de um processo de crescimento que engoliu

dezenas de cidades menores passou a contar em 2006, 13,5 milhões de habitantes.

O Cairo, de 2,4 milhões de habitantes saltou para 15,1 milhões no mesmo período e

Kinshasa de 200 mil habitantes chegou a 8,9 milhões. Na Ásia, Mumbai foi de 2,9

milhões de habitantes para 19,1 milhões e Jacarta, de 1,5 milhões de habitantes

chegaram a 16 milhões. Na América do Sul, além do emblemático caso da cidade

do México, com seus 22,1 milhões de habitantes, Lima com 600 mil habitantes e

Bogotá com 700 mil saltaram respectivamente para 8,2 e 8 milhões de habitantes

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(DAVIS, 2006, 15). E assim pode se observar inúmeros outros exemplos de várias

outras megacidades espalhadas pelo mundo que vêm se formando nas últimas

décadas.

De fato, se observado o processo de urbanização no mundo contemporâneo,

o que se constata é a formação de grandes aglomerados populacionais que vêm

surgindo especialmente em cidades de países pobres e em desenvolvimento. A

multiplicação populacional dessas megacidades vêm acontecendo desacompanhada

de qualquer planejamento ou melhoria de bem estar social. O que se observa na

verdade é que esse processo de explosão populacional implica na multiplicação de

favelas, com habitações de baixo padrão construídas na maior parte das vezes pelo

próprio morador, com pouco ou nenhum fornecimento de infraestrutura e serviços

públicos.

A questão da moradia é especialmente importante, se não o mais importante

aspecto a ser observado no esquema desses grandes aglomerados urbanos. É a

partir do lugar onde moram é que os indivíduos terminam por organizar suas vidas

dentro do feixe urbano, e as demais funcionalidades da cidade serão aproveitadas a

partir daí. Não que a escolha da moradia, ou do lugar onde morar se dá como

escolha prioritária e a partir daí que se definirá onde trabalhar, as questões de

segurança ou locomoção. Trata-se de uma equação muito mais complexa na qual

pessoas de baixo poder aquisitivo têm que equacionar a pouca capacidade

financeira que as impossibilitam ou no mínimo criam dificuldades de conseguirem

uma moradia com qualidade mínima, com outras questões do espectro urbano,

como segurança, acesso a serviços públicos, mobilidade, acesso ao trabalho e a

segurança da posse:

Em toda parte do Terceiro Mundo a escolha da moradia é um cálculo complicado de considerações ambíguas. Como a frase famosa do arquiteto anarquista John Turner, “Moradia é um verbo”. Os pobres urbanos têm de resolver uma equação complexa ao tentar otimizar o custo habitacional, a garantia da posse, a qualidade do abrigo, a distância do trabalho e, por vezes, a própria segurança. Para alguns, como muitos moradores de rua, a localização próxima do trabalho – digamos, em uma feira livre ou estação de trem – é ainda mais importante que um teto. Para outros, o terreno gratuito, ou quase isso, compensa viagens épicas da periferia para o trabalho no centro. E

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para todos, a pior situação é um local ruim e caro sem serviços públicos nem garantia de posse (DAVIS, 2006, 39).

Enquanto a urbanização nos países desenvolvidos é considerada um

fenômeno já acabado e está intimamente ligada ao processo histórico de

consolidação da Revolução Industrial, a urbanização nos países em

desenvolvimento como o Brasil está relacionada ao processo de industrialização

tardia havido na segunda metade do século XX especialmente, quando a expulsão

de populações do campo aliada a atratividade exercida pelos polos industriais que

se formavam nas cidades, fizeram a população urbana se multiplicar rapidamente,

sem que, no entanto, recebessem provisões adequadas de infraestrutura e

habitação (FERREIRA, 2000).

É importante salientar que o processo de urbanização desordenada antes de

se dever a algum tipo de forte atração das cidades, se deve também a um processo

de expulsão de populações do campo. Se no campo o regime histórico concentrado

de propriedade da terra, sempre excluiu a grande massa camponesa, tem-se em um

segundo momento um processo de precarização das políticas agrícolas combinado

com a oferta de emprego nas cidades industriais, o que criou uma situação de

crescimento das cidades mesmo em situações em que as condições urbanas não

são muito atrativas. Isso se dá especialmente a partir do fim dos anos 1970 com a

política econômica neoliberal do FMI através dos Planos de Ajuste Estrutural (PAE‟s)

que obrigaram as nações endividadas à políticas de austeridade, tirando dos

agricultores pobres a rede de proteção social que tinham.

Um a um os governos nacionais, mergulhados em dívidas submeteram-se a planos de ajuste estrutural (PAEs) e à condicionalidade do FMI. Os pacotes de insumos agrícolas subsidiados e aprimorados e a construção de infraestrutura rural foram drasticamente reduzidos. Quando as iniciativas de “modernização” camponesa das nações latino-americanas e africanas foram abandonadas, os camponeses foram submetidos à estratégia do “pegar ou largar” das instituições financeiras internacionais. A desregulamentação do mercado nacional empurrou os produtores agrícolas para o mercado global de commodities, no qual os camponeses de porte médio e pobres acharam difícil competir. Os PAEs e as políticas de liberalização econômica representaram a convergência das forças mundiais de desruralização e das políticas nacionais que promoviam a descampesinação (BRYCESON apud DAVIS, 2006, 25).

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Esse mesmo processo de ajuste imposto pela visão econômica do FMI aos

países pobres endividados e que contribuiu para a fuga do campo para as cidades,

por outro lado, terminou agravando o problema da moradia urbana, já que

influenciou também as políticas públicas de habitação nesses países, que foram

reduzidas ou eliminadas:

O papel minimalista dos governos nacionais na oferta de moradias foi reforçado pela atual ortodoxia econômica neoliberal definida pelo FMI e pelo Banco Mundial. Os Planos de Ajuste Estrutural (PAEs) impostos às nações endividadas no final dos anos 1970 e na década de 1980 exigiram a redução dos programas governamentais e muitas vezes, a privatização do mercado habitacional (DAVIS, 2006, 71).

Todo esse contexto conduz a trágica situação do déficit habitacional e da sub-

habitação nos países em desenvolvimento. Déficit habitacional, é um termo técnico

usado para se referir à quantidade de cidadãos que não tem moradia adequada em

um determinado lugar ou região. No Brasil, o conceito de Déficit habitacional vem

sendo construído por estudos da Fundação João Pinheiro, do Estado de Minas

Gerais, que retirando seus dados das PNAD‟s, se utiliza de quatro critérios para o

cálculo do déficit habitacional: a) domicílios precários, aí considerados os domicílios

rústicos (habitações sem paredes de alvenaria ou madeira aparelhada,

desconfortáveis e que favorecem a contaminação por doenças) e os domicílios

improvisados (aproveitamento de locais alternativos para fins residenciais (imóveis

comerciais, embaixo de pontes e viadutos, carcaças de automóveis, cavernas, etc);

b) A coabitação familiar, composta por dois subcomponentes: os cômodos (os

domicílios particulares compostos por um ou mais aposentos) situados em cortiços,

cabeças-de-porco, em casas-de-cômodo e a coabitação familiar propriamente dita,

considerando às famílias secundárias que dividem a moradia com a família principal

e desejam constituir novo domicílio; c) ônus excessivo com o aluguel urbano,

caracterizado se o peso do valor pago como prestação da locação no orçamento

domiciliar for superior ou igual a 30% da renda domiciliar; d) O quarto e último

componente é o adensamento excessivo em domicílios alugados que

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correspondem aos domicílios alugados com um número médio superior a três

moradores por dormitório. Resultados dos estudos da Fundação João Pinheiro

(2014) apontam para um déficit habitacional, em 2011 de 5,889 milhões de

domicílios, o que representa 9,5% dos domicílios particulares permanentes e

improvisados. Em 2012 esse número experimentou ligeira queda, caindo para 5,792

milhões, o equivalente a 9,1% de déficit.

Se historicamente num primeiro momento as pessoas sem opções de

moradia optavam por bairros pobres do centro da cidade que as classes mais

abastadas abandonavam para se refugiar em áreas periféricas mais atraentes e

condomínios fechados, a partir da década de 1970, a pobreza urbana começa a

buscar também as áreas periféricas, menos visadas, onde há a possibilidade do

apossamento da terra que garantiria o acesso a terra sem custos. Sem custos,

supostamente: se com esse expediente, se consegue por um lado ter acesso à terra

ou fugir das regras de urbanização que elevam os custos da construção, por outro

lado é comum o pagamento de propina a agentes públicos corruptos para se ter

acesso a terra. Soma-se a isso o custo de se alocar-se em uma área sem serviços

públicos e longe do centro urbano (DAVIS, 2006, 47).

A taxa de urbanização brasileira, por exemplo, saltou de 31,2% em 1940 para

81,3% no ano de 2010 (IBGE, 2010). Como já dito, se a explosão da taxa de

urbanização por si só representa um problema, sem o devido acompanhamento de

implementação de acesso a infraestrutura, serviços básicos e outras políticas

públicas que garantam as funções sociais básicas da cidade - entre elas a moradia –

o problema termina por se agravar. O IBGE em pesquisa no ano de 2010 apurou a

existência de 3.224.529 (Três milhões duzentos e vinte e quatro mil quinhentos e

vinte e nove) domicílios ocupados em aglomerados subnormais. Aglomerados

subnormais, segundo definição do próprio IBGE é o conjunto de pelo menos 51

(cinquenta e uma) unidades habitacionais, em regime de ocupação ilegal da terra –

inexistência de título de propriedade – e que sejam caracterizados ou por ausência

de padrão de urbanização (refletido por construções não regularizadas perante os

órgãos públicos, arruamento estreito, falta de padrão na área e forma do lote) ou por

ausência de serviços públicos essenciais (água, luz, esgoto e recolhimento de lixo).

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Além disso, esse quadro é historicamente dramático em razão do processo

pelo qual se consolidou o regime de ocupação da terra, desde os tempos coloniais

se concentrado nas mãos de uns poucos privilegiados. “Uma história de ocupação

que gerou e consolidou uma estrutura de propriedade das mais concentradas do

mundo e, o pior, uma imensidão de terras sem uso algum. Como consequência, uma

legião de agricultores sem trabalho e sem terras.” (GERMANI, 2006, 142). Além da

semelhança quanto a falta de democracia no acesso a terra, que tanto no campo

quanto na cidade sempre privilegiou alguns poucos, a concentração fundiária rural

tem interferência direta sobre o déficit habitacional urbano, não só porque a

expansão urbana se dá pelo parcelamento de áreas anteriormente qualificadas

como rurais, mas também em razão da reprodução da pobreza no campo provocada

por esse quadro de concentração de terras, que torna o principal estimulante do

êxodo rural, em razão da falta de opções de subsistência para o trabalhador não-

proprietário continuar no meio rural.

1.1.1. - O Deficit habitacional e Ocupação Irregular.

Todo esse cenário impulsionado especialmente pelo processo de

industrialização ocorrido a partir de meados do século XX, proporcionou um déficit

habitacional de grandes proporções, principalmente porque a urbanização não foi

acompanhada de um processo de planejamento racional e inclusivo das cidades,

proporcionando a situação de ocupação desordenada do território. Segundo BERÉ:

A invasão de terra urbana tem sido parte do processo de urbanização. Ela é estrutural e institucionalizada em razão do mercado imobiliário excludente e da ausência de política sociais. Invasão, termo muitas vezes rejeitado, é a ocupação de terra alheia, muitas vezes por falta de alternativas. Os loteamentos ilegais, por outro lado, não são terras invadidas, mas apresentam ilegalidades, quanto à titulação ou exigências urbanísticas. (BERÉ, 2005, 104)

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Esse cenário de caos urbano e da falta de acesso à moradia termina por criar

processos de ocupação que compelem a população pobre para áreas pouco

atrativas, onde dificilmente aparecerão interessados em realizar o despejo e retomar

a área. Surge assim uma forma de apropriação silenciosa de rotina, na qual grupos

de pessoas sem opções de moradia buscam apoderar-se dessas áreas pouco

visadas ou controladas, onde por isso mesmo, suas ações basicamente encontrarão

pouca resistência. Conforme relata DAVIS:

Hoje, a ocupação stricto sensu continua primariamente em terra urbana de baixo valor, em geral lugares de risco ou extremamente marginais, como planícies sujeitas a cheias, encostas, pântanos ou antigas instalações industriais poluídas. Como observa a economista urbana Eileen Stillwaggon: “Em essência, os invasores ocupam terra não arrendada, terra que tem tão pouco valor que ninguém se dá ao trabalho de fazer cumprir seus direitos de propriedade sobre ela” (DAVIS, 2006, 49).

Essas áreas são normalmente terrenos pouco atrativos pelos mais diversos

motivos, seja pelos riscos que acarretam a segurança humana, como áreas sujeitas

a deslizamentos de terra e a inundações, ou áreas inóspitas em razão do

desconforto provocado pela proximidade com lixões, indústrias altamente poluidoras

ou outro tipo de situação nociva à saúde humana. Conforme DAVIS:

Os invasores trocam a segurança física e a saúde pública por alguns metros quadrados de terra e alguma garantia contra o despejo. São os povoadores pioneiros de pântanos, várzeas sujeitas a inundações, encostas de vulcões, morros instáveis, montanhas de lixo, depósitos de lixo químico, beira de estradas e orlas de desertos” (DAVIS, 2006, 127).

Trata-se de um fenômeno que atinge não só o Brasil, mas todos os países em

desenvolvimento em processo de urbanização. O crescimento desordenado das

cidades brasileiras compele boa parte da população urbana para áreas marginais

onde se constituem assentamentos informais, boa parte deles em áreas de especial

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tutela ambiental, como áreas verdes e áreas de mananciais. Em Minas Gerais, são

conhecidos os casos da ocupação das margens do Rio Manhuaçu, em Manhuaçu,

nos bairros Ponte da Aldeia e Engenho da Serra, a ocupação da margem direita do

Rio Paraibuna em Juiz de Fora, e a ocupação da margem do Rio Doce nos bairros

São Tarcísio, São Raimundo e Santa Teresinha na cidade de Governador

Valadares, as duas primeiras na Zona da Mata mineira, e esta última na região leste

de Minas Gerais.

Essas áreas de proteção ambiental, nem sempre são inóspitas trazendo risco

a saúde e à segurança dos ocupantes. Embora margens de rios, mangues e

encostas propiciem riscos potenciais de desabamento e inundações, certas áreas de

especial interesse ambiental atraem pessoas pobres não porque são perigosas, mas

porque não oferecem, em tese, a possibilidade futura de regularização, seja da terra

ou da construção edificada, e por isso estão fora do mercado imobiliário, ou ainda se

tratam de terras públicas, que além de tudo estão sujeitas a pouca ou nenhuma

fiscalização.

Assim, tem-se início os processos de ocupação, que muito frequentemente se

darão em áreas em que se compromete o meio ambiente, como ocorre

frequentemente na ocupação de áreas verdes e áreas de proteção a mananciais.

Essas ocupações, ao longo da história da urbanização sempre foram ignoradas pelo

poder público e pela cidade oficial, até por estarem inseridas fora do mercado

imobiliário formal, que sempre teve com ela uma relação de conivência, promovendo

anistias periódicas permitindo a regularização e o fornecimento em certa medida de

infraestrutura urbana (MARICATO apud BERÉ, 2005, 104).

Como exposto, o problema do déficit de moradia e da sub-habitação gerado

pelo caos urbano, dessa forma, termina em muitos casos por convergir para

problemas ambientais, quando a opção de acesso à terra para fins de moradia

termina por se dar em áreas de especial interesse ambiental. A situação criada pela

omissão do Estado, seja em gerir e fiscalizar seu próprio patrimônio ou áreas de

interesse difuso e coletivo, seja em planejar e controlar a expansão urbana

facilitando o acesso à moradia, cria verdadeiros problemas do ponto vista social e

jurídico, posto que famílias as quais nunca se propiciou o direito fundamental à

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moradia, acabam por ocupar áreas que deveriam ser protegidas com fundamento no

direito de todos ao ambiente equilibrado e de acesso aos recursos naturais.

Essas ocupações além de serem um problema social, normalmente

acarretam muitos problemas ambientais, entre os quais problemas específicos ao

próprio contexto urbano a que está vinculada. A título ilustrativo, pode-se citar

conhecidos os casos de ocupação irregular que invadem santuários ecológicos ou

áreas de mananciais, comprometendo o abastecimento de água potável, como o

emblemático caso da cidade de São Paulo onde o processo de ocupação irregular

no entorno das represas Billings e Guarapiranga comprometem gravemente o

abastecimento da cidade, que depende desses reservatórios em cerca de 1/5 do

total de que necessita. Segundo MARTINS,

A oposição entre a moradia pobre e a sustentabilidade ambiental é uma constante nas cidades brasileiras. O processo de urbanização tem apresentado diversas formas de impacto ambiental negativo: a poluição do ar decorrente da matriz rodoviarista, a poluição dos recursos hídricos devido ao lançamento de lixo e esgotos, a impermeabilização do solo devido ao seu padrão de ocupação, a devastação de mangues, dunas, matas, e nascentes devido à falta de controle sobre os usos do solo. Enfim, a lista não é pequena. O conflito envolve moradores de baixa renda que ocupam áreas de risco ou áreas ambientalmente frágeis traz a marca do duplo desastre. Um deles está na condição ilegalidade, segregação física, subcidadania (ausência de direitos com o direito à cidade e à moradia legal) e má qualidade de vida urbana que afeta toda a população que, sem alternativas, ocupa áreas inadequadas. O outro está na agressão ambiental a sistemas que são fundamentais para a reprodução da própria vida humana como são os mananciais de água... (MARTINS, 2006, 7).

Tais situações tratam-se de verdadeiros contrassensos especialmente no

contexto de urbanismo sustentável, no qual, como informa DAVIS, há muito tempo

os urbanistas teóricos reconhecem a necessidade de conservação de uma matriz

verde para a cidade por questões tanto de eficiência ambiental quanto de produção

de riquezas (DAVIS, 2006, 139). Assim, enquanto a cidade sustentável por exemplo

poderia oferecer eficiência no uso da terra por meio da densificação, sem perda de

qualidade de vida, a urbanização desordenada termina por gerar problemas diversos

que criarão e agravarão outros problemas urbanos e no caso do meio ambiente, a

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convivência harmoniosa dará lugar a problemas próprios da degradação ambiental,

como a insalubridade e a falta de acesso a recursos naturais.

No caso dos mananciais da região metropolitana de São Paulo, uma

conjunção de fatores contribuíram para a ocupação irregular das áreas de

mananciais ao sul da região metropolitana de São Paulo: o aumento da pobreza

seguido de déficit habitacional e redução de oferta de habitação de interesse social,

bem como a discrepância entre as condições econômicas da população e os custos

econômicos da moradia regularm, que provocaram intensa ocupação dessa região a

partir da década de 1970. Em se tratando de áreas protegidas, a legislação

ambiental restringe o uso do solo, ocasionando uma desvalorização do terreno

protegido, o que aliado à fiscalização ineficiente permite o quadro de ocupação. A

lei ambiental termina nesse caso por criar um efeito reverso: criando restrições ao

aproveitamento do solo, torna a terra barata num contexto que não apresenta

opções de terra a preço acessível pela maioria da população. Aliada à falta de

fiscalização do poder público cria o contexto para o surgimento dos parcelamentos

irregulares.

No caso da Represa Billings, que teria a capacidade para fornecer água para

4,5 milhões de pessoas, segundo levantamentos do Instituto Sócio Ambiental

realizado entre 1999 e 2000, a bacia da represa perdeu 6% de sua cobertura

vegetal. Enquanto a ocupação urbana se expandiu na ordem de 48%, 37% dessa

ocupação se deu em áreas com severas restrições ambientais e apenas 12% em

regiões favoráveis (MARTINS, 2006, 58). Se o abastecimento de água ainda não

está comprometido é porque boa parte do território da bacia da Billings está

recoberto por vegetação nativa. No entanto, o ritmo de expansão urbana e a forma

com que vem se desenvolvendo é alarmante.

Outros casos de avanço desordenado da cidade, aliando o problema social da

falta de acesso à moradia a problemas ambientais se espalham pelo país. Para além

do caso de São Paulo, se multiplicam em metrópoles brasileiras situações de

ocupação irregular de áreas que de alguma forma multiplicam problemas

ambientais. Um caso recente que ganhou notoriedade nacional e internacional foi a

tragédia do Morro do Bumba na região metropolitana do Rio de Janeiro na cidade de

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Niterói onde em abril de 2010, um deslizamento de terras provocou centenas de

mortos e milhares de feridos. Sobre o desenvolvimento urbano na cidade de Niterói,

segundo SOUZA,

A história de desenvolvimento e ocupação demográfica do município é marcada por ausência de planejamento socioambiental, o que traz como consequência o agrupamento desordenado e um alto risco em áreas de encosta, com a reprodução de um modelo de gestão que centraliza sua atuação nas áreas consideradas nobres, relegando a uma espécie de “estado de natureza” o crescimento urbano periférico.(SOUZA, 2012, 3)

Traçando um breve histórico da situação do Morro do Bumba, a pesquisadora

informa que a partir de 1970 o local passou a abrigar um lixão. Com a desativação

do lixão em 1982, foi proibida a ocupação do local pelo governo Waldernir Bragança.

No entanto, aos poucos, por total falta de fiscalização, foram construídas pequenas

casas de alvenaria na área considerada insalubre e insegura. A partir disso, ao invés

de reprimir a ocupação irregular da área do lixão desativado, o poder público acabou

por incentivar a invasão, implantando no local melhorias de infraestrutura urbana,

escola municipal, creche e até mesmo uma quadra poliesportiva, entre outros.

LOGUERCIO informa que a implantação do lixão, não foi precedida de

qualquer preparo do local e os resíduos foram depositados diretamente no solo.

Com a instalação do lixão iniciou-se um processo de migração na região, tanto dos

moradores que ali residiam, quanto de pessoas atraídas ao local. Estes,

principalmente, para o uso do mesmo (ferro velho, catadores etc.). Iniciou-se, assim,

a “favelização” da área (2013, 70).

Embora se reconheça que a localidade do Morro do Bumba foi castigada por

chuvas intensas no período do desastre, o município desde a desativação do lixão

foi omisso e acabou tolerando a ocupação da área por famílias, sendo que a região

tem histórico de ocorrências de deslizamento (LOGUERCIO, 2013, 90). Impressiona

o descaso do poder público em dar qualquer tratamento a área, sendo conhecido

que o problema da ocupação da área era agravo pelos anos de acúmulo de lixo no

local. Emberton & Parker tratam das consequências da deposição de lixo e afirmam:

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Muitas destas substâncias podem ser corrosivas para alguns materiais de construção, sendo um risco para edificações erguidas na área. Além disso, o gás acumulado nestas áreas, conforme dito anteriormente, pode provocar explosões, incêndios e instabilidade do terreno, constituindo-se em um problema para a urbanização futura de áreas de despejo desativadas (EMBERTON & PARKERr, apud SISINNO, 2002, 34).

A ocupação de encostas são recorrentes nas grandes cidades brasileiras e os

problemas ambientais daí originados se multiplicam. FERNANDES, analisando a

ocupação do Maciço da Tijuca, onde se localizam algumas das maiores favelas do

Rio de Janeiro e os processos erosivos decorrentes informa:

(...) tornam-se cada vez mais freqüentes as ocorrências de desmoronamentos e/ou deslizamentos nas encostas, contribuindo para o aumento das descargas sólidas que promovem o assoreamento das redes de drenagem, naturais ou artificiais, especialmente nas zonas de baixadas. Tal fato se prende, em parte, à degradação desta paisagem, com a substituição da cobertura vegetal que caracteriza a Floresta da Tijuca, por feições urbanas e áreas desmatadas com invasão de capim colonião. Neste sentido estas transformações na cobertura do solo contribuem para a modificação do comportamento hidrológico, criando condições favoráveis a um maior desenvolvimento de processos erosivos por diferentes mecanismos e, conseqüentemente, contribuindo para um aumento das descargas líquidas e sólidas nos canais fluviais. Durante os eventos pluviométricos mais intensos, essas descargas tornam-se maiores e mais rápidas, induzindo mais freqüentemente as inundações nas porções inferiores dos vales e baixadas adjacentes, como nos casos registrados em março de 1966 e em fevereiro de 1988 e de 1996, os quais assumiram um caráter catastrófico. (FERNANDES, 1999, 46).

As situações do Morro do Bumba no Rio de Janeiro, e a invasão das margens

dos reservatórios que abastecem São Paulo são apenas dois sintomas de um

mesmo problema que atacam as grandes cidades brasileiras e de outros países

pobres no mundo. Com maior ou menor visibilidade, a ocupação irregular de áreas,

ou a ocupação de áreas protegidas em razão da falta de acesso à moradia se repete

na maioria das outras grandes cidades brasileiras. E o problema que é inicialmente a

falta de moradia, se multiplica exponencialmente em vários outros tipos de

problema: poluição, falta de saneamento básico, incêndios e desmoronamentos,

epidemias diversas e mortalidade infantil.

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No caso dos bens objetos de tutela ambiental sobretudo, os efeitos dessa

ocupação desordenada são ainda mais notáveis e mais desastrosos. Algo que talvez

possa ser explicado pelo próprio conceito fundamental de meio ambiente. SILVA

conceitua meio ambiente como “a interação do conjunto de elementos naturais,

artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas

as suas formas” (SILVA, 2004, 20). Se a construção do conceito de Meio Ambiente e

os bens objetos de sua tutela evocam interação de elementos e pressupõem um

mundo interconectado, a alteração, a degradação ou falta de qualquer desses

elementos irá repercutir nos demais, ou mesmo no todo, conforme a magnitude

dessa alteração. É próprio dos interesses e conflitos ambientais, a

indeterminabilidade dos sujeitos. Não por outro motivo, os acidentes ambientais não

se restringem àqueles que o causaram: normalmente atingem populações inteiras

que muitas vezes sequer estão próximas geograficamente do local do

acontecimento. Veja o caso das represas que abastecem São Paulo: toda a

população da região metropolitana está sob o risco de desabastecimento futuro em

razão da ocupação irregular do entorno da represa, com o lançamento de esgoto

diretamente na represa ou em seus afluentes. Daí o reconhecimento do Direito ao

Ambiente como direito difuso.

Sendo próprio dos interesses difusos a “indeterminação de sujeitos”, visto não

haver um vínculo jurídico a agregar os indivíduos a que dizem respeito esses

interesses, os sujeitos de direito nessas situações se agregam ocasionalmente em

virtude de acontecimentos que identificam seu interesses em um mesmo grupo de

pessoas. Os sujeitos são agregados no caso por fato que é o denominador comum e

de relevância social. O fato de habitarem a mesma região, de terem adquirido um

mesmo produto, de fazerem uso de um mesmo serviço, de pertencerem a uma

mesma comunidade, de pertencerem a um mesmo agrupamento social, étnico, etc.

O problema ambiental e a falta de moradia terminam por ser problemas que

se retroalimentam. A falta de moradia faz com que as populações pobres avancem

em áreas protegidas. Esse avanço por sua vez termina por provocar diversos

problemas ambientais que terão suas consequências nocivas e custos, seja com

pacotes de ajuda a desabrigados, gastos com a despoluição das águas, ou grandes

obras públicas de contenção de desastres. Esses custos consumirão ainda mais

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recursos públicos remetendo-nos a um dos elementos iniciais que criaram o

problema das ocupações sem controle: a falta de investimentos em políticas de

acesso a moradia.

1.1.2. – Ambiente Urbano e Áreas de Preservação Permanente.

As áreas de preservação permanente são espaços em que, por força de Lei,

a vegetação deve ser mantida intacta, com o objetivo de preservação dos recursos

hídricos, da biodiversidade da manutenção da estabilidade geológica e de assegurar

o bem estar das populações humanas.

Instituídas inicialmente pela Lei No. 4.771 de 1965, o antigo Código Florestal,

são atualmente regidas pela Lei No. 12.651 de 25 de maio de 2012, recebem um

tratamento claro e rígido de nossa legislação. Não estão sujeitas a interferências ou

supressão de vegetação, exceto em casos de utilidade pública e interesse social,

casos esses também enumerados em lei.

É muito comum que as cidades surjam e se desenvolvam às margens de

cursos de água. Isso se dá por diversas razões práticas, que vão desde o uso do

curso de água como via de locomoção e canal de comunicação, mas também em

razão de necessidades essenciais, como por exemplo, o abastecimento de água

potável e a eliminação de resíduos sanitários.

Essa questão traz ainda um traço histórico cultural da formação dos núcleos

urbanos brasileiros. Enquanto que na América Espanhola a colonização procurava

fugir de lugares marítimos, buscando os planaltos do interior, a colonização

portuguesa não teve a mesma preocupação. Ao contrário, buscava deliberadamente

forçar a permanência das populações no litoral e nas proximidades dos cursos de

água, como se nota, por exemplo, nas cartas de doação das capitanias hereditárias,

segundo as quais no litoral e junto aos rios navegáveis os donatários poderiam

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edificar quantas vilas quisessem. Por outro lado, o regimento do primeiro

Governador Geral do Brasil, Tomé de Souza, era no sentido de que ninguém

adentrasse ao interior pela terra firme sem autorização do governador ou do

provedor-mor da fazenda real, sob pena de açoite aos “maus nascidos” ou multa aos

“homens de qualidade” (HOLANDA, 2008, 100). Assim historicamente a colonização

brasileira tem se dado às margens dos cursos de água.

Uma vez que as margens de nascentes, cursos, reservatórios e olhos-de-

água são considerados por lei Áreas de Preservação Permanente deveriam ser

observadas quanto a esses espaços todas as normas que as regulam.

No entanto, na maioria dos núcleos urbanos, a integridade da vegetação

dessas áreas vem sendo ignoradas, especialmente em razão do quadro narrado

retro, em que a segregação espacial é elemento chave no modelo de

desenvolvimento urbano do Brasil e em razão do déficit habitacional e da falta de

democracia no acesso à terra. Esse contexto de déficit habitacional provoca a

ocupação de Áreas de Preservação Permanente acaba revelando um

comportamento duplamente negligente do Estado. Se de um lado o poder púbico é

ineficiente em propiciar o acesso à moradia de forma ampla e acabar com o déficit

habitacional, de outro, é ineficiente no controle e fiscalização do patrimônio

ambiental, seja ele público ou privado.

O problema do acesso à Moradia frente ao Direito ao Ambiente começa aí.

Ante a deficiência de políticas públicas de acesso à moradia e o desinteresse do

mercado em investir em novas moradias, e um modelo fundiário historicamente

antidemocrático de acesso a terra, o que sempre a manteve em alto custo, restava à

parcela mais pobre da população, trabalhadores e migrantes recorrer à ocupação

ilegal de terras e a prover sua habitação por meio da autoconstrução.

O que caracteriza as Áreas de Preservação Permanente é essencialmente a

restrição à supressão de vegetação. Consideradas como áreas de preservação por

si só, podem estar num contexto de domínio público ou privado, sendo que no

contexto privado, não sendo considerados coisas fora do comércio (bens extra

commercium), podem ser apropriados livremente por quaisquer pessoas e podem

ser objetos de relações jurídicas negociais. Isso posto, observa-se que é comum

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encontrar a negociação e a implementação de parcelamentos irregulares, uma vez

que a apropriação dessas áreas é licita e a edificação não é.

Mesmo quando essas áreas de proteção se encontram em domínio público,

não se tem comportamento diferente. Embora sejam insuscetíveis de uso ou

ocupação por particulares sem autorização administrativa, a ausência de controle do

Poder Público termina com o mesmo problema de ocupação dessas áreas e a

supressão de vegetação para dar lugar a edificações.

O crescimento desordenado da cidade de um lado e a tutela de bens

ambientais especialmente protegidos de outro evidenciam verdadeiro choque de

interesses que o presente trabalho pretende analisar. De um lado, o direito à

moradia – inclusive tratando-se de direito constitucionalmente protegido - o direito à

cidade, a dignidade humana, e de outro, a proteção de bens ambientais, cujo

objetivo também é a proteção do ser humano e de sua qualidade de vida. O status

constitucional que ambos os direitos têm - tanto na estrutura da Constituição como

na concretização de outros valores constitucionais na medida em que o texto

constitucional apresenta um projeto de nação - não permite uma simples escolha

apriorística ou discricionária do Estado em detrimento do direito à moradia. A

moradia como um Direito Fundamental Social, não pode simplesmente ser

sacrificada ou preterida em razão do direito ao ambiente e, em diversos casos, até

mesmo por uma questão de eficiência na atuação do poder público deverá

prevalecer.

A atuação do Estado deve ser eficiente, clara e objetiva, sob pena de criar

mais fragilização, seja para o meio ambiente seja para os cidadãos que necessitam

de moradia e confiam no Estado, seja por sua posição jurídica inata como guardião

dos interesses públicos e fornecedor de serviços públicos, seja pelas condutas

mantidas por seus agentes que criam relações jurídicas e expectativas nas pessoas.

Os exemplos emblemáticos citados anteriormente são apenas uma ilustração

da discussão, dentre os inúmeros que são possíveis enumerar.

Esses problemas, se compreendidos dentro de uma perspectiva realista e

inclusiva do urbanismo são graves e complexos,uma vez que se compreende que

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não se pode simplesmente impedir a cidade de crescer. A cidade cresce dentro da

legalidade ou ilegalmente. O Estado precisa lidar com isso e atuar de forma

transparente e ética, dando centralidade aos direitos fundamentais e sua efetivação

sob pena de ser agravada a segregação social de pessoas que já não têm muitas

escolhas como vítimas das desigualdades socioeconômicas. Essa situação não se

sustenta diante da compreensão contemporânea dos direitos fundamentais, onde o

sujeito de direitos não é o modelo abstrato que se põe como elemento da relação

jurídica: é uma pessoa concreta, sujeito de necessidades (FACHIN, 2003, 101).

Para LIRA o uso do solo é sinônimo de expressão de liberdade. Liberdade em

seus vários sentidos; seja no sentido de se autodeterminar sem constrangimentos,

no sentido de fazer escolhas, de agir depois de refletir com conhecimento de causa,

ou se realizar em seus atos de acordo com sua natureza, considerada como

caracterizada em sua essência, pela razão e moralidade (1997, 108). Partindo

desse pensamento, o solo se mostra de incomensurável valor tanto para os

indivíduos em particular como para a coletividade, posto que está envolvido em

todos os processos de satisfação das necessidades vitais do ser humano. Dele o ser

humano se alimenta, sobre ele o ser humano habita, dele retira riquezas. Daí a

análise da indissociabilidade entre a ideia de liberdade e o Direito à terra. Com a

Emenda Constitucional número 26 a Moradia ganha status de Direito Constitucional

Fundamental, e por mais que tenha a característica de uma norma constitucional

programática, ou not self-executing, termina por vincular o poder público.

Da mesma forma, o meio ambiente equilibrado é considerado direito de todos,

posto que essencial à sadia qualidade de vida, sendo dever do Estado e da

coletividade protegê-lo e conservá-lo conforme prescreve a Constituição Federal em

seu art. 225. O mesmo texto constitucional prescreve em seu art. 6 o Direito

Fundamental de cunho social à moradia, bem como prescreve em seu art. 182 que a

Política de Desenvolvimento Urbano tem por objetivo ordenar o pleno

desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar aos seus

habitantes.

Assim, enfrenta-se aqui o problema da garantia do direito à moradia versus o

direito ambiental sobre o prisma da atuação do Estado, cujo comportamento omisso,

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confuso e contraditório, está diretamente relacionado com a causação do choque, e

que, na maioria das vezes, não considera adequadamente magnitude dos interesses

(e direitos) em disputa, muito menos responsabilidade por sua conduta

(considerando as diferentes estruturas do poder político).

A seguir, passa a análise da análise histórica da propriedade no Brasil,

especialmente a propriedade urbana, e como ela interferiu na questão da habitação

no país, bem como das próprias políticas públicas relativas a habitação, para uma

melhor compreensão da magnitude do problema habitacional no país e como o

poder público se relaciona à sua causação, e consequentemente, permite a criação

das condições para a proliferação de habitações em áreas irregulares, entre as

quais as áreas de proteção ambiental, cuja ocupação cria a questão central em torno

da qual se desenvolve o presente trabalho.

1.2. - A EVOLUÇÃO DA PROPRIEDADE URBANA E DO TRATAMENTO DA

MORADIA NO BRASIL.

1.2.1 – O período colonial.

Embora os portugueses tenham aportado no Brasil em 1500, a colonização

do território brasileiro só começa alguns anos depois por volta de 1530. Até então, o

que se tem são excursões rápidas e o envio de expedições de patrulhas da costa.

Com a cobiça das riquezas naturais da terra pelas demais nações europeias, e com

a impossibilidade de se manter o controle do imenso litoral brasileiro com

expedições regulares, Portugal precisou lançar mão de medidas mais efetivas para

o controle da posse das terras no novo mundo. Com isso tem início a povoação do

território brasileiro.

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Ocorre que o governo português não tinha recursos financeiros para investir

no processo de ocupação do território brasileiro e por isso resolveu recorrer à

iniciativa privada, dividindo o Brasil em quinze grandes lotes de terra e os entregou a

pessoas de razoáveis condições financeiras, os donatários. O donatário era a

autoridade máxima dentro de sua concessão, tendo a responsabilidade de

desenvolvê-la com seus próprios recursos. Com a morte do donatário, a

administração da capitania era passada aos seus descendentes e por esse motivo,

as possessões eram chamadas de Capitanias Hereditárias (COTRIM, 1994, 42).

Em 1548, é suprimido o regime de capitanias hereditárias, principalmente pelo

fato de que dos 15 lotes de terra distribuídos sob essa forma, apenas duas

prosperaram economicamente. Assim o governo português envia ao Brasil um

governador geral, que governará em nome do rei e será o distribuidor de sesmarias

aos que desejassem se estabelecer na colônia. A propriedade da terra na colônia

era exclusiva da coroa portuguesa, o que existia aos proprietários era a posse.

O regime de sesmarias, cuja distribuição incumbia inicialmente ao donatário e

posteriormente ao Governador-geral, remonta à tradição feudal. A Lei das

Sesmarias, baixada em 26 de junho de 1375, por D. Fernando, rei de Portugal,

pautou a distribuição e ocupação das terras no Brasil até a independência, já que

inclusive foi incorporada às ordenações (PAULA, 2012, 195). Derivada da palavra

latina seximum, que significa a sexta parte, era distribuída segundo um módulo

mínimo, de uma légua quadrada (6.6 mil metros quadrados). Basicamente,

objetivava viabilizar o cultivo das terras ociosas e assim aumentar a riqueza do

reino:

A motivação básica das Leis das Sesmarias era o cultivo da terra. Uma sesmaria improdutiva deveria ser repartida de tal forma que toda ela produzisse riquezas. Contudo, este princípio, ao que parece, nunca foi exatamente observado, resultando daí a consolidação do latifúndio. É explícito, nesse sentido, o regimento do governador-geral, Tomé de Souza, de 1548, que mandava distribuir as terras em sesmarias, mas condicionava essa distribuição aos que possuíssem cabedal suficiente para construir casas-fortes, o que está na base da constituição da estrutura fundiária concentrada, ponto de partida da conformação do poder oligárquico, fenômeno fundamental de nossa vida política e cultural, que é o coronelismo (PAULA, 2012, 196).

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Outro elemento que é apresentado para a dispensa do rigor nas regras que

regiam as concessões era a abundância de terras desocupadas (MARICATO, 2010,

22). A mesma autora ainda apresenta outros elementos que contribuíram para a

formação do latifúndio: o regime escravagista e a concentração do poder local nas

mãos dos grandes proprietários de terras:

O latifúndio resultante da concessão de sesmarias foi fundamental para a economia da Coroa portuguesa e depois para o Império brasileiro, mas o que contava mais que a terra era a capacidade de ocupá-la e nela produzir: dada pelo trabalho escravo. Assim, a propriedade de escravos era tão importante quanto a terra, ou mais. A dependência dos pequenos proprietários em relação ao latifúndio era indiscutível, principalmente na comercialização da sua produção. Lembremos mais uma vez que o senhor rural era autoridade municipal e depois tornou-se também autoridade militar, com a Guarda Nacional (MARICATO, 2010, 22).

Dessa forma, a estrutura econômica de produção da colônia e o regime de

uso da terra favoreciam ao sistema de latifúndio restritivo, no qual apenas aqueles

que já tinham posses conseguiam o acesso a terra, sendo que de fato, a

administração colonial era extremamente leniente com o controle sobre as

sesmarias concedidas.

Os primeiros núcleos de povoamento surgidos na colônia surgiram para

atender o sistema produtivo que ali se instalava. Enquanto a atividade produtiva era

eminentemente rural e as unidades de produção eram praticamente

autossuficientes, os primeiros centros urbanos serviam para interligar o campo com

a metrópole e sediar as atividades administrativas da coroa:

Durante esse período não havia propriamente uma rede de cidades, mas alguns grandes polos que concentravam as atividades burocráticas ligadas à administração colonial e também as atividades administrativas, comerciais e financeiras relativas à produção agroexportadora (MARICATO, 2010, 9).

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Essas primeiras cidades ficavam, com exceção de São Paulo, restritas ao

litoral, onde atendiam a função de ponte entre as unidades de produção colonial e a

metrópole e de garantir a proteção da costa contra invasores estrangeiros.

Os portugueses criavam todas as dificuldades para que se entrasse terra

adentro, receosos de que com isso se despovoassem as áreas litorâneas. Para

HOLANDA, a forma da ocupação do território brasileiro se deve a natureza da

colonização portuguesa, muito mais preocupados em erguer feitorias para extrair a

riqueza da terra do que planejar e construir (HOLANDA, 1995, 95). Assim, a

colonização brasileira seguiu caminho bastante diverso em comparação ao restante

da América, inclusive nas possessões espanholas. Afirma o autor que

Mesmo em seus melhores momentos, a obra realizada no Brasil pelos portugueses teve um caráter mais acentuado de feitorização do que de colonização. Não convinha que aqui se fizessem grandes obras, ao menos quando não produzissem imediatos benefícios. Nada que acarretasse maiores despesas ou resultasse em prejuízo para a metrópole (HOLANDA, 1995, 107).

Esse pensamento fez com que o colonizador português não se preocupasse

com o ordenamento dos centros urbanos. Enquanto na América Espanhola

procurava-se assegurar o predomínio econômico político e militar sobre a colônia

por meio da construção de núcleos de povoação estáveis e bem ordenados, o

mesmo não se pode dizer dos núcleos urbanos portugueses.

Comparados ao dos castelhanos em suas conquistas, o esforço dos

portugueses distingue-se principalmente pela predominância de seu caráter

comercial, repetindo assim o exemplo da colonização fenícia e da grega; os

castelhanos, ao contrário, queriam fazer do país ocupado um prolongamento

orgânico do seu (HOLANDA, 1995, 98).

Sobre a organização das cidades portuguesas na colônia, referindo-se a

forma negligente com que os portugueses tratavam suas cidades em razão da

mentalidade meramente exploratória, afirma-se ainda que:

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A fantasia com que em nossas cidades, comparadas às da América espanhola, se dispunham muitas vezes as ruas ou habitações é, sem dúvida, um reflexo de tais circunstâncias. Na própria Bahia, o maior centro urbano da colônia, um viajante do princípio do século XVIII notava que as casas se achavam dispostas segundo o capricho dos moradores. Tudo ali era irregular, de modo que a praça principal, onde se erguia o Palácio dos Vice-Reis, parecia estar só por acaso no seu lugar (BARBINAIS apud HOLANDA, 1995, 109).

Assim são os núcleos urbanos portugueses na colônia durante os dois

primeiros séculos de ocupação. A povoação ficou restrita à costa, com núcleos

urbanos modestos e bastante precários. Somente com a exploração do ouro no

século XVIII as cidades concentradas no litoral passaram a avançar para o interior.

Além disso, a exploração aurífera permitirá o surgimento de uma sociedade mais

diversificada e ligada às atividades urbanas, como pequenos artesãos, prestadores

de serviço e comerciantes. No entanto, não havia nenhum tipo de política de

urbanização por parte dos portugueses e as cidades se mantinham precárias:

Durante todo o período colonial, apenas as cidades mais importantes tinham algum calçamento nas ruas. O saneamento básico nunca foi preocupação da Coroa portuguesa. Em geral, a água era recolhida por escravos e aguadeiros que abasteciam as moradias. As fezes eram transportadas por escravos e despejadas nos cursos de água (MARICATO, 2010, 13).

Apenas a partir da segunda metade do século XVIII é que foi instituída uma

política de urbanização, com incentivo à criação de vilas que deveriam seguir as

mesmas normas utilizadas na metrópole portuguesa.

A organização política das cidades tem origem nas Ordenações do Reino. Foi

por meio delas que transladou-se para o Brasil o sistema de organização municipal

portuguesa. A administração urbana era de competência do poder local, e assim,

como na tradição que foi legada, conviviam com normas de caráter geral emitidas

pela Coroa que atingiam a todo o reino oriundas das ordenações de um lado, e de

outro as normas regulamentares de âmbito local pelas câmaras de vereadores,

chamadas posturas (BERE, 2005, 18). Embora os municípios por força do disposto

nas próprias ordenações fossem meras circunscrições administrativas nessa época,

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não dispondo de função legislativa, terminavam por regular e exercer poder de

polícia sobre diversas matérias:

Durante o processo de colonização, logo se percebeu que as Ordenações eram, por vezes, insuficientes e que, outras vezes, seu cumprimento seria inconveniente, até porque não se poderia aguardar por soluções que caberiam ao governo central. Assim, as Câmaras acabaram ganhando uma autonomia não prevista na legislação e suas decisões, ainda que contrariando os termos da lei, chegavam a ser acolhidas pela coroa (BERE, 2005, 19).

Assim, as ordenações traziam disposições gerais, por exemplo, impondo

restrições ao direito de construir, seja em razão do direito de vizinhança ou em razão

do interesse público, e as Câmaras Municipais impunham as restrições de cunho

local. “Um aspecto interessante da legislação portuguesa sobre a matéria é que as

Ordenações do Reino, como leis gerais, fixavam princípios básicos e genéricos,

ficando a cargo das autoridades locais impor restrições recomendadas pelas

condições peculiares da cidade” (DALLARI, 1970, 110). Assim, enquanto as

ordenações por exemplo editavam normas sobre a construção e janelas e eirados,

as câmaras editavam normas que proibiam a construção sem arruamento oficial, ou

fazer modificações em sua construção que modificassem o alinhamento da rua.

As posturas, no entanto eram frequentemente descumpridas. “A própria forma

de comunicação das posturas, por meio de pregões e a deficiência dos registros

contribuíam para o seu esquecimento. Os resultados eram extremamente modestos

e o pouco atendimento das posturas revelava-se na insistência com que eram

repetidas” (REIS apud BERÉ, 2005, 20).

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1.2.2. – Período Imperial.

No período imperial três fatos são particularmente marcantes. Em primeiro

lugar, temos a edição da lei municipal que define as competências das Câmaras de

Vereadores. Conforme o art. 167 da Constituição Política do Império do Brasil, de

1824, atribuiu-se competência administrativa às câmaras municipais das cidades e

vilas, que no período colonial eram meras circunscrições, embora exercessem de

fato alguns poderes1.

Conforme estabelecido pelo art. 169, em 01 de outubro de 1828 foi publicada

lei regulamentar definindo as competências das câmaras municipais, entre as quais

se incluíam disposições referentes a posturas urbanas e direito de construir2.

1Art. 167. Em todas as Cidades, e Villas ora existentes, e nas mais, que para o futuro se criarem

haverá Câmaras, às quais compete o Governo econômico, e municipal das mesmas Cidades, e Villas. (...) Art. 169. O exercício de suas funções municipais, formação das suas Posturas policiais, aplicação das suas rendas, e todas as suas particulares, e uteis atribuições, serão decretadas por uma Lei regulamentar.

2 Dispõe a referida lei em seu art. 66. Terão a seu cargo tudo quanto diz respeito á policia, e

economia das povoações, e seus termos, pelo que tomarão deliberações, e proverão por suas posturas sobre os objectos seguintes:

§ 1º Alinhamento, limpeza, illuminação, e desempachamento das ruas, cães e praças, conservação e reparos de muralhas feitas para segurança dos edificios, e prisões publicas, calçadas, pontes, fontes, aqueductos, chafarizes, poços, tanques, e quaesquer outras construcções em beneficio commum dos habitantes, ou para decôro e ornamento das povoações.

§ 2º Sobre o estabelecimento de cemiterios fóra do recinto dos templos, conferindo a esse fim com a principal autoridade ecclesiastica do lugar; sobre o esgotamento de pantanos, e qualquer estagnação de aguas infectas; sobre a economia e asseio dos curraes, e matadouros publicos, sobre a collocação de cortumes, sobre os depositos de immundices, e quanto possa alterar, e corromper a salubridade da atmosphera.

§ 3º Sobre edificios ruinosos, escavações, e precipicios nas vizinhanças das povoações, mandando-lhes pôr divisas para advertir os que transitam; suspensão e lançamento de corpos, que possam prejudicar, ou enxovalhar aos viandantes; cautela contra o perigo proveniente da divagação dos loucos, embriagados, de animaes ferozes, ou damnados, e daquelles, que, correndo, podem incommodar os habitantes, providencias para acautelar, e atalhar os incendios.

(...)

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Assim, a referida lei pela primeira vez atribuiu competências administrativas

aos municípios, antes exercidas apenas de fato, em razão do regime centralista do

período colonial, quando as câmaras municipais acabaram por assumir poderes de

fato, em razão da precariedade do controle colonial. Desde esse período tem-se

reconhecido aos municípios o poder de regulamentar e policiar as construções.

O segundo fato marcante é a extinção, pela Resolução No. 76, de 17 de julho

de 1822 da Mesa de Desembargo do Paço, do regime de sesmarias no Brasil. Em

razão do que ficam suspensas todas as concessões de sesmarias futuras, até a

convocação a Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa. A Assembleia embora

tenha sido convocada logo após, em 1823 para a elaboração da Constituição, e

malgrado hiatos em que foi dissolvida, funcionou a partir de então, mas a

regulamentação da terra no Brasil permaneceu em suspenso até 1850, com a

edição da Lei de Terras.

A edição da chamada Lei de Terras é sem dúvida o fato mais marcante a

respeito da questão da propriedade no Brasil do séc. XIX. Pois é com a Lei de

Terras que a terra se torna efetivamente mercadoria e que se separa o público e o

privado no que diz respeito à propriedade fundiária.

Até 1822, como já foi dito, a terra era distribuída no regime de sesmarias pela

coroa portuguesa, não em regime de propriedade, mas de posse, embora de fato, a

precariedade do controle pela coroa fazia transparecer que os beneficiários das

sesmarias verdadeiros proprietários fossem. Com a concessão da autonomia

municipal, às cidades e vilas também era concedida terra para o uso coletivo e

expansão da sede municipal. O “rócio” ou “rossio”, como era chamado esse

patrimônio municipal, eram as terras nas quais se implantavam as casas e pequenas

unidades de produção sem custo. Era composto por uma porção de terra contígua à

formação urbana existente, destinada a fornecer lenha para o fogo, madeira para as

§ 6º Sobre construcção, reparo, e conservação das estradas, caminhos, plantações de arvores para preservação de seus limites á commodidade dos viajantes, e das que forem uteis para a sustentação dos homens, e dos animaes, ou sirvam para fabricação de polvora, e outros objectos de defesa.

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construções, pasto para os animais dos moradores do núcleo urbano (MARICATO,

2010, 22).

Assim a terra não tinha valor comercial, muito embora, as formas de

apropriação favorecessem uma classe social privilegiada. As câmaras municipais e

os administradores locais tinham a competência de doar terras – as datas – a quem

solicitasse, a fim de morar ou produzir. Essas datas eram gratuitas, com a condição

de ocupação, produção e pagamento do dízimo, mas de fato, a sua distribuição

estava condicionada aos interesses dos proprietários e burocratas que controlavam

as câmaras municipais.

A Lei de Terras, Lei No. 601 de 18 de setembro de 1850 pode ser resumida

em quatro pontos básicos:

a) A forma de acesso à terra passa a ser exclusivamente por

meio da compra (art. 1º);

b) A legitimação das sesmarias já distribuídas e das terras

ocupadas como propriedades privada, conquanto não

ultrapassassem a área da maior sesmaria concedida na comarca,

ou na comarca vizinha;

c) O produto da venda das terras arrecadados pela coroa

seria usado para financiar a colonização por meio de imigrante

(arts. 18 e 20);

d) A criação da Repartição Geral de Terras Públicas,

encarregadas do controle das terras públicas, sua venda e da

promoção da colonização estrangeira.

De fato, foi no vácuo regulatório criado entre a extinção do regime sesmarial e

a edição da Lei de Terras em 1850, mais de 28 anos, que se consolidou o regime

latifundiário brasileiro, dado o fato de que ante a indefinição do Estado em relação à

ocupação da terra, esta se dá de forma ampla e indiscriminada. “É nesse período

que se consolida de fato o latifúndio brasileiro – com a expulsão de pequenos

posseiros, que antes tinham o hábito de ocupar terras virgens – e sua substituição

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por poderosos proprietários rurais” (MARICATO, 2010, 23). Ainda segundo a autora,

a demora na aprovação de uma lei que regulasse a ocupação e distribuição da terra

no país, se devia ao medo dos latifundiários em não ver a apropriação de “suas”

terras confirmadas. A Lei de Terras - embora ficasse proibida a distribuição de novas

sesmarias desde 1822 e a ocupação de terras não pudesse ser feita de outra forma

– termina por confirmar não só as sesmarias, mas todas as ocupações ocorridas no

período de indefinição legislativa.

Entre outras coisas, a legislação também previa em seus artigos 7, 8 e 21,

além da demarcação das terras públicas, a demarcação das sesmarias existentes

ou terras ocupadas por posse, além das sesmarias caídas em comisso (sesmarias

que perderam a validade, ou por descumprirem as regras da própria lei de terras ou

por descumprirem as obrigações do sesmeiro). Na prática, seja por precariedade

funcional da Repartição Geral de Terras, seja por pressão dos grandes proprietários,

esse cadastro jamais ocorreu:

A demarcação das terras devolutas encontrou resistências no poder local, dominado pelos “coronéis”, que responderam com imprecisões às solicitações do governo central sobre a situação das terras. Um vasto patrimônio do Estado, urbano e rural, passou então a esfera privada. A antiga forma corriqueira de acesso à terra – concessão arbitrária ou ocupação pura e simples – passaria a ser considerada crime a partir de então. Uma parte da população branca e livre ficaria sem terra, dependente dos latifundiários para sua sobrevivência. (MARICATO, 2010, 23).

Conforme informa FERREIRA, o processo político de aprovação da Lei de

Terras tem muito a ver com o fim do tráfico de escravos (2005, p. 2). Embora em 7

de novembro de 1831 houvesse sido aprovada lei que tornava livre todos os

escravos vindos de fora do império, tal lei jamais saiu do papel. Contudo, a partir de

1850 a Inglaterra, desejosa de mais mercado para o consumo dos produtos e

interessada em impedir qualquer restrição dos seus produtos aumentou a pressão

sobre o Brasil, que fez promulgar ainda em 1850, a Lei Eusébio de Queirós (lei N.

581 de 4 de setembro de 1850). A publicação da Lei de Terras e da Lei Eusébio de

Queirós distam apenas algumas semanas. Esta precedendo aquela, de forma que a

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proibição do tráfico negreiro obrigou os grandes proprietários a busca de solução de

mão-de-obra para substituição do trabalho escravo:

A proibição do tráfico negreiro, em 1831, não impediu a continuidade do comércio de escravos, que entretanto, tornavam-se mais caros para os grandes produtores agrícolas, indicando a solução de mão-de-obra imigrante. Foi somente em 1850, após a ameaça concreta, feita um ano antes pelos ingleses, de fechamento dos portos brasileiros, que uma lei coibiu definitivamente o tráfico (FERREIRA, 2005, 2).

Assim, os grandes proprietários cafeeiros precisavam recorrer a outra fonte

de mão-de-obra para suprir a falta de mão de obra escrava. A Lei de Terras vem

dessa forma, a coibir a pequena produção de subsistência, dificultando o acesso a

terra pelos homens livres e pelos imigrantes, já que o fácil acesso a terra

inviabilizaria a disponibilidade de mão-de-obra para substituir os escravos,

especialmente nas fazendas de café.

A Lei de terras além de tudo, não se restringiu ao meio rural. É claro que o

desenvolvimento das cidades está articulado com a estrutura geral de produção

nacional, e que até então o Brasil era um país agrário. No entanto, mais do que isso,

a lei de terras também influenciou nas relações de apropriação da terra urbana.

Como ressalta MARICATO, é a Lei de terras que pela primeira vez distingue no

ordenamento jurídico nacional o que é solo público e o que é solo privado (2010,

23). Passa-se então a exigir uma demarcação mais precisa dos espaços privados e

dos espaços públicos. Por isso a demarcação de lotes é mais bem definida. Por isso

também o espaço urbano torna-se mais bem delimitado: o alinhamento de fachadas,

calçadas e ruas passa a obedecer traçado mais preciso.

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1.2.3 – Os primeiros anos da República.

Embora no período colonial e imperial as atividades econômicas se dessem

basicamente no campo, em razão do sistema econômico agroexportador surgido

ainda no período colonial, é errôneo ignorar a importância das cidades até então.

Embora o seu surgimento e crescimento obedecesse a dinâmica da produção do

campo onde estavam as unidades de produção, o controle da comercialização dos

produtos se dava basicamente nas cidades. Assim, mesmo em uma economia rural

e com a maioria maciça da população vivendo no campo, algumas das principais

cidades do país já atingiam tamanho significativo. O Rio de Janeiro, então capital do

país, tinha cerca de meio milhão de habitantes (FERREIRA, 2005, 4). A cidade de

São Paulo, por outro lado, que se consolidava como o centro administrativo da

produção cafeeira salta de 64.934 habitantes em 1890, para 239.820 mil habitantes

em 1900 (IBGE), praticamente quadruplicando sua população, também em razão da

industrialização ainda nascente. A economia exportadora de café terminou também

por trazer também investimentos estrangeiros em infraestrutura para atender os

centros urbanos a que estava ligada, ferrovias, usinas elétricas, portos, transportes

marítimos, iluminação, água, entre outros (MARICATO, 2010, 25).

É nesse quadro do final do século XIX e início do século XX, e com a

industrialização nascente que surgem os primeiros problemas urbanos do país,

especialmente ligados à falta de infraestrutura urbana e déficit de moradia. Com a

industrialização, as cidades deixam de ser apenas os locais de administração e

controle da economia, centrada no campo, para se tornarem também o local de

produção. O crescimento urbano acarretou uma demanda por moradia, transporte e

demais serviços urbanos até então inédita. É emblemático o caso de São Paulo que

se tornaria a maior cidade do país ainda no início do século XX, que:

Ao receber milhares de novos moradores, a cidade passou a exigir transportes rápidos pois as distâncias passaram a ser medidas em quilômetros, os chafarizes deixaram de dar conta do consumo, aumento o risco da contaminação da água e o esgoto sem destino certo tornou-se o principal inimigo da saúde pública (BONDUKI, 2010, 18).

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As redes de serviços públicos não acompanhavam a demanda crescente da

população, e nem todos tinham condições de pagar pelos serviços então fornecidos.

O déficit de moradia também crescia na medida em que a cidade se expandia, já

que as fábricas passam a demandar cada vez mais mão de obra. O resultado é o

aumento do preço de moradias, seja para aquisição seja por meio de aluguéis, muito

embora haja forte impulso na produção e moradia urbana.

O resultado disso são os primeiros sinais de segregação espacial na cidade.

O alto custo da moradia, aliado ao fato de que o principal público a demandar por

moradias eram operários que não tinham condições de pagar altos valores, criam a

situação de inserção no espectro urbano por meio de invasões, ocupação de áreas

perigosas ou insalubres e a construção de moradias precárias.

Nesse mesmo período, o processo de urbanização é marcado pelo rápido crescimento das camadas populares urbanas. Embora parte dessa população ocupe localizações por meio de invasões – e estas, por vezes, estejam localizadas no espaço privilegiado produzido para a alta renda – o fato é que a grande maioria dessa população irá ocupar as periferias afastadas e subequipadas como forma de inserção no espaço urbano (BERÉ, 2005, 25).

A busca de atendimento da demanda do operariado nascente fez produzir

outro tipo de soluções para a moradia, sempre com o intuito de maior redução de

custo possível, já que os trabalhadores tinham poucas condições financeiras para

pagar. Nesse contexto era comum o surgimento de todo tipo de moradia

improvisada, com a divisão de prédios de sobrado em convertidos em cortiço por

meio de divisões e subdivisões dos primitivos cômodos – chamados casas de

cômodo -, os cortiços-pátios, caracterizados pela construção de pequenas casas

enfileiradas no aproveitamento de fundos de terrenos já aproveitados por outras

construções. Essas soluções para moradia trazem em comum o aproveitamento de

todo e qualquer espaço, o tamanho diminuto dos cômodos, a má-qualidade das

construções, e a falta de condições de salubridade, higiene mínima e saneamento

(BONDUKI, 2010, 23-24)

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Ocorre que as habitações produzidas nessas condições de expansão

descontrolada da malha urbana, de demanda de moradias por trabalhadores mal

remunerados e e de falta de moradias populares que os atendessem, passaram a

representar perigo para as condições sanitárias da cidade como um todo, o que

obrigou o poder público a intervir para tentar controlar a produção e o consumo de

moradias.

Deve-se compreender a ação do Poder Público sob a tradição do Estado

Liberal e a sua compreensão dos limites do poder público, definidos através de uma

compreensão negativa da liberdade e da compreensão do Estado com um mal

necessário. Assim, o Estado deve ser mínimo para que não intervenha

abusivamente na vida dos indivíduos. Compreendido sob a ótica do Liberalismo

clássico, o Estado tem três grandes funções: a) a defesa da sociedade contra os

inimigos externos; b) a proteção de todo indivíduo das ofensas que a ele possam

dirigir os outros indivíduos; c) o provimento das obras públicas que não poderiam ser

executadas se confiadas à iniciativa privada (BOBBIO, 2000, 23).

Isso posto, mas considerando que a situação chegou em um nível de

calamidade pública, tornou-se forçosa a atuação do Estado:

Na habitação, porém, o Estado foi obrigado a atuar de forma mais vigorosa. A (ir)racionalidade da produção capitalista dos edifícios, o loteamento indiscriminado e a precariedade dos serviços de água e esgoto, a cargo de empresas privadas, entre outros, passaram a constituir séria ameaça à saúde pública. Por isso, o controle estatal da produção do espaço urbano não só foi aceito como também reivindicado, ainda que predominassem as concepções liberais (BONDUKI, 2010, 27).

Mas a solução não passava por politicas públicas com o escopo de suprir ou

pelo menos reduzir as demandas por moradia em condições adequadas. No caso

paulistano, segundo BONDUKI, o poder público agiu em três frentes diferentes: a) o

controle sanitário das habitações; b) a da legislação e do código de posturas; e c) a

da participação direta em boras de saneamento das baixadas, urbanização da área

central e implantação de rede de água e esgoto. As cidades e moradias eram

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identificadas como causas de doenças que só poderiam ser extirpadas por meio da

regulação do espaço urbano. A solução passa necessariamente pela imposição de

exigência sanitária e mesmo de demolição aos cortiços, especialmente aqueles

próximos a áreas ocupadas também por bairros de classe média e classe alta, e de

regiões centrais (BONDUKI, 2010, 33).

No Rio de Janeiro, motivado pelas mesmas circunstâncias e por outras, o

fenômeno se repetia. A transformação da cidade em capital da República, a

decadência da cafeicultura no Vale do Paraíba, a abolição da escravatura e o afluxo

de ex-escravos, bem o afluxo de imigrantes e a industrialização que despontava

provocam aumento significativo da população urbana e a demanda por moradias e

serviços públicos básicos que a cidade era incapaz de atender. As soluções para a

moradia encontradas eram as mesmas de São Paulo:

Durante a segunda metade desse século, o Rio sofre com o crescimento populacional, a crise habitacional, os surtos epidêmicos, o aumento da circulação de mercadorias no porto e em suas ruas estreitas e congestionadas. Além disso, no centro, encontravam-se cortiços, casas de cômodos, pequenas oficinas artesanais, escritórios de grandes companhias, casas de comércio, prédios públicos, bancos, entre outros. Benchimol chega à conclusão de que essa utilização do espaço já não atendia aos interesses dos capitalistas estrangeiros e brasileiros, nem aos do Estado republicano. Sendo assim, todos esses fatores em conjunto influenciaram, com maior ou menor intensidade, a realização das reformas (MIYASAKA, 2005, 2).

Esse período de reformas urbanas acontecidas no Rio de Janeiro também

conhecidas como período do “bota-abaixo” coincide com o aparecimento e

crescimento dos bairros suburbanos e o surgimento das primeiras favelas, com a

ocupação dos morros, como estratégia de sobrevivência daqueles que não tinham

condições econômicas para se mudarem para outras regiões, como as suburbanas

(MIYASAKA, 2005, 4).

As reformas urbanas, conforme MARICATO, vem num contexto de uma

mentalidade republicana, no sentido de legitimar o país e seu novo regime perante

os países capitalistas centrais construindo uma nova fachada urbana que buscasse

simbolizar valores como ordem, estabilidade e progresso e ao mesmo tempo atrair

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capitais externos para a expansão do café (2010, 28). Para recuperar a cidade e

saneá-la das epidemias crescentes o então presidente da república Rodrigues Alves

nomeia como prefeito do distrito federal o engenheiro Francisco Pereira Passos, que

dá início as reformas urbanas, com a construção de novos edifícios, alargamento

das ruas, a abertura de novas avenidas e a modernização do porto do Rio.

O prefeito teve poderes ditatoriais (inconstitucionais à época) para

desapropriar, demolir, contratar, construir, sem a possibilidade de contestação por

parte de qualquer cidadão que se sentisse atingido. Foram construídos 120 novos

grandes edifícios no lugar de 590 prédios velhos em apenas 20 meses. As famílias

pobres eram despejadas sem complacência dos cortiços ou “cabeças-de-porcos”

(casas cujos cômodos eram repartidos por várias famílias) localizados em áreas

centrais (MARICATO, 2010, 28).

A população pobre foi sistematicamente expulsa das localidades centrais e

dos cortiços para áreas mais distantes e menos valorizadas, os morros. Justificando-

se nas preocupações higienistas e com a saúde pública, especialmente nos bairros

pobres onde se verificava uma relação direta entre as péssimas condições de

higiene e saneamento com as doenças que então se abatiam sobre a cidade, as

intervenções urbanas terminavam por expulsar as populações mais pobres das

áreas centrais da cidade que como alternativa procuravam áreas pouco atrativas,

como os subúrbios afastados e os morros. Estudiosos do episódio, como a arquiteta

LILIAN VAZ, afirmam que é até difícil estipular precisamente os efeitos das

demolições ocorridas no “bota-abaixo”. Embora se tenha notícia da quantidade de

prédios demolidos e das pessoas retiradas da área central, o efeito multiplicador

dessa ação dificilmente pode ser calculado. Muitas habitações populares que não

foram demolidas pelo Estado, provavelmente desapareceram em razão da

valorização das áreas ao redor trazida pela reforma urbana (SERAFIM, apud VAZ,

2012, 2).

As reformas urbanas implementadas no Rio de Janeiro, terminaram por se

repetir em diversas outras cidades do país, como Curitiba, Porto Alegre, Santos,

Manaus e Belém, sempre combinando saneamento e embelezamento com

segregação territorial da população (MARICATO, 2010, 29). Uma reforma urbana

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voltada para a estética e embelezamento, para a higiene e saneamento, que

simplesmente ignorou as pessoas menos favorecidas que se encontravam em seu

caminho e para as quais a moradia já era um problema, criando mais segregação

territorial e agravando ainda mais o problema da moradia no pais.

É no final do século XIX e início do século XX que surgem as primeiras

preocupações com um planejamento urbano no Brasil. No entanto, um planejamento

voltado para o higienismo e o embelezamento, sem qualquer preocupação social e

que ao estabelecer regras, restringiam ainda mais a possibilidade das camadas mais

pobres de terem acesso ao solo urbano e à moradia:

A implantação de uma complexa legislação urbanística, que estabelecia normas extremamente rígidas para a construção de edifícios e para as possibilidades de uso e ocupação do solo. Com isso, saia privilegiado o mercado imobiliário, capaz de respeitar tais regras ou de dobrá-las graças a sua proximidade com o Poder Público e seu poder financeiro, e prejudicava-se definitivamente a população mais pobre, incapaz de responder às duras exigências legais. Para construir, seria necessário ter a documentação da posse da terra, dominar o aparato técnico-jurídico do desenho e da aprovação de plantar, e respeitar as diretrizes legais sanitárias e a ocupação e uso do solo, que muitas vezes impunham regras que só podiam ser aplicadas nos terrenos mais caros.

Os Códigos de Posturas de São Paulo e do Rio, ainda no final do século XIX, já proibiam, por exemplo, os cortiços nas áreas urbanas centrais, e determinavam recuos para as construções que só podiam ser aplicados em lotes de grande área restringindo assim por meio da lei a ocorrência de terrenos pequenos e mais baratos.(FERREIRA, 2005, 8)

Assim, as primeiras reformas urbanas não tinham qualquer preocupação

social. Destinavam-se a embelezar as cidades, preocupavam-se com as áreas de

domínio público, com higiene e saneamento criando segregação espacial e dividindo

a cidade em duas. A cidade visível e a cidade invisível, ao menos aos olhos do

poder público. Se a moradia já era uma questão social preocupante, permanecia

ignorada pelo poder público. Este, pelo contrário, não só abandonava as populações

urbanas à própria sorte, como também, ao realizar suas reformas urbanas que

interessavam às classes mais privilegiadas, criava obstáculos ainda maiores para os

mais pobres.

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1.2.4. – A industrialização na Era Vargas e a política de moradias nos anos

subsequentes.

A partir de 1930 o processo de crescimento da população brasileira se

acelera e tem-se um processo de urbanização cada vez maior, especialmente

porque a indústria, incipiente no país até a República Velha, passa a ser incentivada

após o embate de forças ocorrido na Revolução de 30, do qual a burguesia

agroexportadora sai enfraquecida. Enfraquecida mas não derrotada, pois muito

embora perdesse a hegemonia, a base fundiária agrária não se alteraria e o trabalho

rural permaneceria sem ser regulamentado.

A era Vargas a partir de 1930, instituiu no país um novo clima político, e a

emergência na Europa do Estado de Bem-Estar Social dá ímpeto à tentativa, no

Brasil de construção de uma nação com um Estado forte e um mercado de consumo

interno mais significativo. O Estado passou então a intervir diretamente na promoção

da industrialização, através de subsídios à indústria de bens de capital, do aço, do

petróleo, à construção de rodovias, etc. A burguesia agroexportadora perdia sua

hegemonia, para dar lugar a um Estado populista que, entretanto, pouparia seus

interesses, evitando uma reforma agrária e mantendo intacta a base fundiária do

país (FERREIRA, 2005, 11).

O processo de industrialização combinou-se com um processo de

urbanização, através do deslocamento cada vez maior de população do campo para

as cidades do centro-sul, especialmente São Paulo. Até esse período, embora o

Brasil já experimentasse há algum tempo taxas de crescimento populacional, o país

tinha ainda poucas cidades de porte significativo e a grande maioria delas

concentradas ao longo do litoral. Essa situação se altera iniciando-se um processo

de interiorização populacional que concentra-se especialmente no centro-sul do

país, com as cidades que surgiam ou ganhavam importância crescendo em taxas

bastante altas.

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Dessa forma, se em 1930, o Brasil ainda contava com 70% dos seus

habitantes vivendo em zonas rurais e o restante nas cidades, em 1980, 50 anos

depois, completava-se uma inversão, com 70% da população brasileira vivendo em

zonas urbanas (GOMES, 2013, 59). O crescimento urbano se opera principalmente

em razão das altas taxas de migração interna no país.

Além disso, no mesmo período, o Brasil experimenta um aumento nas taxas

de crescimento populacional inédito até então, crescendo inclusive em níveis

superiores ao dos países europeus. De 1930 até 1960, o país praticamente duplica o

seu contingente populacional (GOMES, 2013, 49). Essas taxas se manterão altas

durante o restante de todo o século XX, de forma que a população brasileira

multiplica-se por dez do início ao fim do século XX. Embora o país tenha um número

cada vez menos significativo de entrada de imigrantes, as taxas de natalidade

começam a se estabilizar, fato que se combina com quedas cada vez mais

significativas das taxas de mortalidade.

Essas duas situações, que vêm a impulsionar o crescimento dos centros

urbanos, fazem crescer ainda mais o déficit habitacional das cidades. Os problemas

sociais começam a surgir, por meio de protestos dos trabalhadores e influência do

próprio meio empresarial, em razão da pressão que os preços dos aluguéis

exerciam sobre os salários no sentido de forçar o seu aumento. Torna-se patente a

incapacidade da iniciativa privada em atender ao déficit habitacional. Além disso, a

visão do Estado de Bem-Estar Social na Europa bem como das ameaças do

fascismo e do socialismo, criam um clima amplamente favorável ao reconhecimento

de condições básicas de sobrevivência aos trabalhadores. Nesse contexto e

reconhecendo a incapacidade da iniciativa privada de atendimento ao mercado no

que se refere às demandas por moradia, o Estado, através do presidente Getúlio

Vargas, assume então essa função sem, no entanto, criar uma política capaz de

atender a demanda habitacional.

Foi nesse contexto que em 1942, o governo interferiu no mercado de locação

congelando todos os aluguéis por meio da Lei do Inquilinato (Decreto-Lei nº 4.565,

de 11 de Agosto de 1942). Segundo BONDUKI,

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A medida fora adotada em vários países europeus e latino-americanos desde a Primeira Guerra (na França, por exemplo, os aluguéis permaneceram congelados por décadas), e era um duro golpe contra os proprietários de casas de aluguel. A justificativa do governo ao promulgar a lei era que o país vivia uma situação de emergência devido à Segunda Guerra. Com isso, ele conseguiu bloquear as reações negativas (BONDUKI, 2010, 81).

A Lei do inquilinato, a despeito dos debates apaixonados que despertava,

manteve os aluguéis congelados por mais de duas décadas (até 1964) e embora

tivesse algum efeito benéfico a curto prazo, a longo prazo contribuiu para agravar

ainda mais o problema do déficit de moradia.

A produção rentista foi totalmente desestimulada com o congelamento dos

aluguéis ficando basicamente a cargo do Estado e dos próprios trabalhadores o

encargo de produzir suas moradias.

Conforme BONDUKI,

Esse processo ocorreu na década de 40, em meio a uma das mais graves e dramáticas crises de moradia da história do país, provocando o surgimento de formas alternativas de produção de moradias, baseadas no auto-empreendimento em favelas, loteamentos periféricos e outros assentamentos informais. O período foi marcado pela carência de moradias produzidas pelos rentistas tradicionais, atraídos pelas novas oportunidades de investimentos geradas pelas transformações econômicas entra em curso e desestimulados pelo congelamento dos aluguéis instituído pela Lei do Inquilinato.

Assim, a lei do inquilinato é crucial para a consolidação da sub-habitação no

país. Com a iniciativa privada desinteressada pelo mercado de produção de

moradias, a produção de moradia de aluguel deixa de ser alternativa para solução

do déficit habitacional já dramático, contribuindo além de tudo para agravá-lo. Resta

ao Estado e à própria população o provimento de habitações. Com a ineficiência do

Estado em produção de moradias para atender a demanda a população recorre a

alternativas habitacionais precárias, ilegais ou excluídas do mercado imobiliário

formal, como a favela, os loteamentos clandestinos e sem infraestrutura e as

invasões, com o proprietário recorrendo à chamada Autoconstrução. O proprietário

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“adquire” o terreno, sem nenhum apoio técnico gerencia a obra, e ao final, constrói

sua casa. Tal modelo de provisão de moradias para a população mais pobre se

consolidaria no Brasil nas décadas seguintes.

Também MARICATO, ao analisar que a forma com que o Estado conduziu a

questão entende o acontecido como um verdadeiro ardil, posto que se deu um lado

se desestimulou à moradia de aluguel com um discurso de exaltação das virtudes da

casa própria, esta, por sua vez, não era oferecida nem pelo Estado, nem pelo

mercado (2010, 37).

O Estado de seu lado, procurou promover uma política social de habitação,

cujos resultados sempre foram modestos. Primeiramente, por meio dos IAP‟s. Os

IAP‟s ou Institutos de Aposentadorias e Pensões eram gestores de fundos de

aposentadorias de diversas categorias profissionais custeados pelo Estado,

empregadores e empregados criados a partir da década de 30. Por força do Decreto

19.949 de 17 de dezembro de 1930, aos IAP‟s foi autorizados a utilização dos

recursos dos fundos de previdência para habitação social e a partir do Decreto

1.749, em 1937, estabeleceu se que metade dos recursos deveria ser destinada ao

financiamento de construções. Como todos os fundos de pensão, os IAP‟s foram

altamente superavitários nos primeiros anos de contribuição, quando os

desembolsos não eram relevantes e propiciaram vultosos recursos ao governo para

a produção de moradias. No entanto os resultados produzidos foram modestos.

Conforme BONDUKI

Embora tenham sido as primeiras instituições públicas de envergadura a tratar da questão habitacional, os Institutos de Aposentadoria e Pensões – criados nos anos 30 para cada categoria profissional – sempre relegaram essa atividade a um segundo plano em relação às suas finalidades precípuas, isto é, proporcionar benefícios previdenciários (aposentadorias e pensões) e assistência médica (2010, 101).

MARICATO informa que nos 27 anos de produção de moradias pelos IAP‟s

(de 1937 a 1964), os institutos conseguiriam financiar 140 mil moradias, a maior

parte destinada ao aluguel (MARICATO, 2010, 36). Sem dúvidas, resultados muito

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modestos, especialmente se considerarmos o processo contínuo de crescimento

populacional e urbanização, bem como o desinteresse da iniciativa privada pela

produção de moradias em razão do congelamento de aluguéis.

Na década de 1960, o Estado institui dos grandes mecanismos financeiros

para captação de recursos para habitação social: O Fundo de Garantia por Tempo

de Serviço – FGTS, criado pelo Decreto No. 5107 de 13 de dezembro de 1966 e o

Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos –SBPE, constituindo o Sistema

Financeiro de Habitação. No caso do SBPE, os recursos das cadernetas de

poupança e demais títulos imobiliários eram captados pelos agentes financeiros do

SFH e serviam para financiar investimentos habitacionais propostos por

empreendedores e construtoras. Recebido o financiamento, o empreendedor

responsabilizava-se pela venda das habitações aos consumidores e esses, por sua

vez, responsabilizavam-se pelo pagamento do empréstimos junto às instituições

financeiras, tornando-se mutuários do Sistema (SANTOS, 1999, 11).

Já os recursos do FGTS, geridos pelo BNH – Banco Nacional de Habitação,

eram destinados à produção de habitação social prioritariamente pelas Companhias

de Habitação (COHAB‟s), sociedades de economia mista sob controle acionário dos

governos estaduais ou municipais que obtinham os financiamentos do BNH

mediante a apresentação de projetos técnicos compatíveis com as orientações do

banco e supervisionavam a construção de moradias destinadas as camadas mais

pobres da população (SANTOS, 1999, 11).

É consensual que no período do regime militar, o Sistema Financeiro de

Habitação teve alcance bastante significativo, ao contrário do que ocorreu com os

IAP‟s. No entanto, tanto um quanto o outro não conseguiram atender as populações

mais pobres, de forma que os recursos do aportados no sistema acabaram por

financiar a produção e habitação para as classes médias emergentes e as classes

altas, que tinham condições de prestar garantias e pagar as prestações devolvendo

os recursos ao Sistema. Com efeito, somente 33,5% das unidades habitacionais

financiadas pelo SFH ao longo da existência do BNH foram destinadas à habitação

de interesse social (SANTOS, 1999, 17).

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Outra crítica colocada por MARICATO refere-se ao desprezo pelo

desenvolvimento urbano:

Muitos conjuntos habitacionais constituídos em todo o país trouxeram mais problemas para o desenvolvimento urbano do que soluções. A má localização na periferia, distante das áreas já urbanizadas, isolando e exilando seus moradores, foi mais regra do que exceção (MARICATO, 2010, 51).

No final do regime militar na década de 1980, a política de habitação baseada

no Sistema Financeiro de Habitação entra em crise, em razão da falência do próprio

modelo econômico adotado pelo regime. Recessão, inflação, desemprego e queda

dos níveis salariais se tornaram constantes e vieram a refletir sobre o SFH. O rombo

provocado pela inadimplência e a baixa taxa de retorno dos investimentos

habitacionais, além da queda na arrecadação do FGTS, foram as consequências da

crise econômica sobre o Sistema. Notórios também ao longo dos anos, os

escândalos de corrupção envolvendo a gestão de recursos do FGTS.

Conforme MARICATO, “a queda pronunciada dos número de moradias de

aluguel se dá, concomitantemente ao aumento da população moradora de favelas.

Frequentemente, nem mesmo o salário da indústria moderna (automobilística) cobre

o custo da moradia no Brasil da atualidade” (2010, 50).

Da década de 1980 no final do século XX a meados da primeira década do

século XXI, o processo de crescimento populacional e urbanização se manteve,

muito embora desde a extinção do BNH o país não tivesse uma política duradoura

organizada e significativa de produção de habitação. Conforme BONDUKI:

Com o fim do BNH, perdeu-se uma estrutura de caráter nacional que, mal ou bem, tinha acumulado enorme experiência na área, formando técnicos e financiando a maior produção habitacional da história do país. A política habitacional do regime militar podia ser equivocada, como já ressaltamos, mas era articulada e coerente. Na redemocratização, ao invés de uma transformação, ocorreu um esvaziamento e pode-se dizer que deixou propriamente de existir uma política nacional de habitação. Entre a extinção do BNH (1986) e a criação do Ministério das Cidades (2003), o setor do governo federal responsável pela gestão da política habitacional esteve subordinado a

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sete ministérios ou estruturas administrativas diferentes, caracterizando descontinuidade e ausência de estratégia para enfrentar o problema. (2014, 295)

A despeito das críticas que possam ser feitas ao BNH e ao sistema em que

ele se inseria, sua importância é indiscutível, pois foi somente neste período que de

fato o Brasil teve uma Política Nacional de Habitação. Pela primeira vez o país teve

uma estratégia institucional clara e articulada na questão da habitação e capaz de

gerar resultados significativos, como visto.

Embora o número de novas moradias tenha sido significativo no período de

existência do BNH, ele sempre esteve muito aquém das necessidades geradas pelo

processo de urbanização pelo qual o país passava. Isso porque o Sistema

Financeiro de Habitação voltou-se exclusivamente para a produção da casa própria,

construída pelo sistema forma de construção civil, e o fenômeno da urbanização

atingiu proporção de uma magnitude tal que seria irrazoável esperar que o Sistema

Financeiro de Habitação pudesse gerar a quantidade de unidades necessárias para

suprir a demanda.

Além disso, não permitindo processos alternativos de produção de moradias

capazes de reduzir o custo e por adotar critérios de financiamento bancários, o

Sistema terminou por excluir a maior parte da população de baixa renda da política

habitacional. O resultado é o descrito na primeira parte deste trabalho: a grande

maioria da população, sem apoio do poder público, termina por recorrer à

autoconstrução em assentamentos irregulares, com serviços públicos precários e em

geral distante das áreas urbanizadas.

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1.2.5 – O tratamento da moradia na Nova República e anos recentes.

Com o fim do BNH, perdeu-se a estrutura de caráter nacional que até então

responsável por uma Política Nacional de Habitação. A política de habitação

desarticulou-se deixando de existir uma estrutura institucional para enfrentar a

questão da habitação.

A Caixa Econômica Federal torna-se o agente financeiro do Sistema

Financeiro de Habitação, absorvendo algumas atribuições do extinto BNH além de

seu pessoal e estruturas, contribuindo para consolidar ainda mais, uma visão

bancária do financiamento habitacional.

O rombo gerado pela política equivocada adotada nos últimos anos do regime

militar levou a uma redução das aplicações em habitação e o financiamento

habitacional se tornou escasso, ao mesmo tempo em que os problemas de moradia

da população urbana se mantinham ascendentes.

Não havendo mais uma articulação em nível nacional, Municípios, Estados,

além da própria união lançaram, de forma fragmentária, programas habitacionais

alternativos, financiados especialmente com recursos orçamentários, como forma de

suprir a demanda crescente e o vazio deixado pelo BNH e pelo SFH, já que

inclusive, de 1991 a 1995 no governo Collor, paralisou-se completamente o

financiamento habitacional com recursos do FGTS (BONDUKI, 2014, 296).

Essa fragmentação da política habitacional foi inclusive possibilitada pela

Constituição Federal de 1988, que tornou a produção de habitação competência

concorrente para União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23, IX).

BONDUKI relata que

Com a democratização e o crescimento da mobilização dos movimentos por moradias, ampliou-se a pressão por uma maior participação do poder local na questão da habitação, pois, ele se tornou o principal interlocutor das organizações populares e o responsável pelo equacionamento das demandas

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sociais, estando em contado direito com os problemas da população carente (BONDUKI, 2014, 296).

Tudo isso veio a contribuir para a descentralização dos programas

habitacionais. Aliados a diversas experiências inovadoras, essas situações terminam

por contribuir para a criação de uma nova postura para o enfrentamento do

problema habitacional, afastando-se da concepção rígida adotada durante a

existência do BNH, centrada principalmente no financiamento direito da produção de

grandes conjuntos habitacionais e de gestão centralizada, para processos

alternativos, em que se faziam presentes as ideias de flexibilidade, diversidade e

reconhecimento da cidade real.

No entanto, isso não foi o suficiente para a impulsionar uma nova política

nacional de habitação.

Na segunda metade da década de 90, a política macroeconômica se centra

no combate a infração, e, por isso, passava necessariamente pela restrição ao

crédito e ao gasto público, o que impede o desenvolvimento de programas mais

amplos para a questão habitacional. O próprio crédito imobiliário sofre restrições, por

ser considerado inflacionário.

A partir da década de 2000 esse quadro parece se alterar. Em 2001, tem-se a

aprovação da lei 10.257, o Estatuto das Cidades, que tem entre seus principais

méritos além da instrumentalização de uma visão política urbana conforme a

Constituição Federal de 1988, a criação de novos instrumentos jurídicos capazes de

viabilizar a regularização fundiária, e permitir o controle e uso do solo urbano de

forma a combater a especulação imobiliária e fazer cumprir a função social da

propriedade. Deve-se salientar contudo que o alcance do Estatuto das Cidades é

limitado, uma vez que os instrumentos de política urbana que ele regulamenta, para

que possam ser utilizados, dependem de previsão nos Planos Diretores criados no

âmbito de cada município.

Em 2003, tem-se a criação do Ministério das Cidades, com o objetivo de

formular e gerir em nível nacional uma política integrada de desenvolvimento

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urbano, que desde o fim do BNH recebia um tratamento fragmentado pelos diversos

entes federativos e era relegada a uma posição secundária. Nesse sentido relata

BONDUKI que

O ministério das cidades foi criado com o caráter de órgão coordenador, gestor e formulador da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, envolvendo, de forma integrada, as políticas ligadas à cidade, ocupando um vazio institucional e resgatando para si a coordenação política e técnica das questões urbanas. Coube-lhe, ainda, a incumbência de articular e qualificar os diferentes entes federativos na montagem de uma estratégia nacional para equacionar os problemas urbanos das cidades brasileiras, alavancando mudanças com o apoio dos instrumentos legais estabelecidos pelo Estatuto das Cidades (BONDUKI, 2008, 96).

A partir de 2005, tem-se mudanças na política habitacional, tanto no âmbito

do financiamento tradicional como no de habitação de interesse social. Houve uma

ampliação dos investimentos e do subsídio, e um enfoque maior na população de

baixa renda. De outro lado, o governo tomou várias medidas para estimular o setor

da construção civil e o crédito imobiliário, o que permitiu inclusive que o setor

prosperasse e fosse uma das alavancas da economia nacional na década. Merece

menção o programa Minha Casa Minha Vida do Governo Federal, criado pela Lei

No. 11.977 de julho de 2009, com o objetivo de promover a produção e a aquisição

de novas unidades habitacionais e promover a requalificação de imóveis urbanos de

famílias com renda mensal de até R$ 5.000,00 (cinco mil reais).

Mencione-se ainda o PAC, Programa de Aceleração do crescimento a partir

de 2007, um programa de investimentos em diferentes áreas, especialmente

infraestrutura para a produção (portos, rodovias, aeroportos, ect). Parte dos recursos

foram destinados ao setor de habitação e saneamento, contemplando-se inclusive

recursos para a urbanização de assentamentos precários.

São mudanças cujos efeitos ainda não podem ser exatamente medidos uma

vez que são recentes e boa parte das ações nos programas mencionados ainda

estão acontecendo. É cedo para dizer qual o alcance que as medidas tomadas nos

últimos anos como solução ao problema habitacional do país. No entanto, é clara a

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mudança na política habitacional do país na última década, especialmente com a

busca da produção de habitações depois de mais de 20 anos de estagnação.

Algumas iniciativas vem acontecendo com o objetivo de resolver o problema

do acesso a terra urbana, como por exemplo o Programa Papel Passado, que tem

por objetivo apoiar estados, municípios, associações civis sem fins lucrativos e

defensorias públicas em projetos de regularização fundiária sustentável de

assentamentos informais em áreas urbanas, prevendo tanto o auxílio econômico

com o aporte de recursos, como iniciativas de capacitação para gestores públicos e

agentes sociais envolvidos.

Outra medida que merece menção é o financiamento de ações de

Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários (UAP), no

âmbito do FNHIS – Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, que busca

auxiliar os estados, distrito federal e municípios na consecução de ações integradas

de habitação, saneamento ambiental e inclusão social que resultem na regularização

fundiária de áreas precárias.

Como descrito anteriormente, um dos pilares do problema do acesso à

moradia no país e do qual a formação das favelas e loteamentos irregulares é um

sintoma, é o problema do acesso à terra urbana, devidamente provida de serviços e

infraestrutura. A forma com que a terra urbana vem sendo tratada no país ao longo

da história vem provocando cada vez mais a sua concentração e cada vez mais o

seu encarecimento, forçando as pessoas desprovidas de recursos à ocupação de

lugares cada vez mais precários, perigosos e ilegais.

Nesse sentido, é a Constituição de 1988 que representa um marco

importante, pois além de prever um capítulo exclusivo dedicado à política urbana, dá

novo tratamento à propriedade, inclusive à urbana.

A Constituição consagra a tese, que tem bases principalmente na doutrina

italiana, na qual se tem uma noção pluralista do instituto, de forma que a

propriedade não constitui uma instituição única, mas várias instituições

diferenciadas, em correspondência com os diversos tipos de bens e seus titulares.

Assim o direito de propriedade além de ser garantido de forma geral, como ocorre no

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art. 5, o texto constitucional também se refere a vários estatutos proprietários, como

ocorre com a propriedade urbana (art. 182, § 2.º) e a propriedade rural (art. 5, XXVI

e arts. 184, 185, 186), de forma que se pode falar não em “propriedade” mas em

“propriedades”. Não é difícil de compreender tal situação, se levarmos em

consideração que a propriedade deixou de ser uma instituição do Direito Civil, dado

que há muito se entende que seus efeitos extrapolam as relações meramente

intersubjetivas e que, a determinação do conteúdo da propriedade, dependerá de

centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da

relação jurídica de propriedade (TEPEDINO, 2004, 317). Conforme assevera

RICARDO LIRA,

a propriedade assegurada em nossa Constituição como um direito individual (art. 153, § 22), cuja função social é declarada como um dos princípios da Justiça Social (art. 160, III), apresenta-se como instituição diferenciada, no sentido de poder variar de conteúdo, conforme o tipo de bem que lhe serve de objeto e a natureza do titular, exatamente por ser uma função social e um dos instrumentos da Justiça Social.(LIRA, 1997, 161)

Além disso, a Constituição Federal de 1988 prevê a função social da

propriedade ao lado da garantia da propriedade privada como direito fundamental

(art. 5, XXII e XXIII), o que permite dizer que a função social da propriedade passa a

ser concebida não como um elemento externo à propriedade, mas sim como um

elemento componente, na medida em que é intrínseco a propriedade, um elemento

qualificador, e que vai trazer transformações ao conteúdo e características da

propriedade, de forma que ela conforme enquanto direito subjetivo interesses

individuais e da coletividade, e mais ainda, funciona como elemento validante, uma

vez que o texto constitucional estabelece como circunstância sujeitadora do direito

de propriedade, o atendimento a essa função social. JOSÉ AFONSO DA SILVA

chega à mesma conclusão, na medida em que afirma que “...não há como escapar

ao sentido de que só se garante o direito de propriedade que atenda sua função

social”(SILVA, 2005, 270).

Além disso, tem-se a propriedade novamente referida nos princípios gerais da

atividade econômica (art. 170, II e III). A previsão da propriedade como princípio da

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ordem econômica, vem a fortalecer a ideia há muito vigente de que a propriedade

deixou de ser apenas um direito individual e uma instituição do Direito Privado. Mais

do que isso, a propriedade privada e sua função social se transformam em uma

instituição do direito econômico, e sua inserção naquele conjunto de princípios, faz

com que ela constitua não só um alicerce basilar da ordem econômica, mas também

um fim a ser perseguido, por meio da implementação dos seus ditames econômicos.

Sobre a inserção da propriedade entre os princípios da ordem econômica, José

Afonso da Silva diz que:

Os conservadores da constituinte, contudo, insistiram para que a propriedade privada figurasse como um dos princípios da ordem econômica, sem perceber que, com isso, estavam relativizando o conceito de propriedade, porque, submetendo-o aos ditames da justiça social, de sorte que se pode dizer que ela só é legitima enquanto cumpra sua função dirigida à justiça social (2005, 812).

Assim, a Constituição Federal representou uma quebra de paradigmas e um

primeiro passo necessário para a alteração da visão tradicional da propriedade, que

permeia o direito e a cultura brasileira desde a colonização, para que se promova o

acesso à terra, à terra urbana e com isso se viabilize o acesso à habitação. Saliente-

se, no entanto, que, a Constituição Federal, no caso da propriedade urbana, delega

aos Planos Diretores Municipais a conformação final do que seja a função social da

propriedade, por força do art. 182, § 2º3.

Dessa forma, diferentemente do que acontece com a propriedade rural, a

concreção da função social da propriedade no âmbito urbano, não tem seus

requisitos estabelecidos de forma definitiva pela Constituição Federal. A função

social da propriedade urbana – conforme se depreende do próprio caput do art. 182

- vincula a propriedade urbana ao bem-estar dos habitantes da cidade e à realização

das funções sociais da cidade: habitação, condições adequadas de trabalho,

3 Dispõe o art. 182: A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal,

conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. (...) § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

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recreação e a circulação, mas é o plano diretor – cuja construção exige-se

participativa -, ao ordenar o espaço urbano local, que estabelecerá os requisitos

para o cumprimento da função social da propriedade.

Se por um lado isso permite construir um conceito de função social da

propriedade com participação social e que leve em conta a diversidade e as

realidades locais, por outro lado, a efetividade da função social da propriedade

urbana depende em grande parte da capacidade dos municípios de materializarem

seus planos diretores e que deem um tratamento adequado à questão.

Assim, como visto, o problema do déficit habitacional no Brasil tem raízes

históricas, fundadas na estrutura fundiária do país, estabelecida após a

independência, mas que encontra raízes coloniais. A forma de apropriação da terra

e os processos de produção econômica interferiram e interferem tanto na dinâmica

da formação das cidades brasileiras como nas formas de acesso ou na

impossibilidade de acesso à terra urbana.

Com o processo de expansão das cidades através da urbanização, surge o

déficit de moradia, que vai provocar problemas sociais graves já no início do século,

sem que o Estado tome medidas satisfatórias e eficientes para a solução do déficit

habitacional.

De fato, até então, nunca se tratou a habitação como objeto de políticas

públicas. A moradia apresentava-se como um problema acessório dentro de

problemas de higiene, saneamento, ou mesmo instabilidade social provocada pela

insatisfação social das camadas menos favorecidas da população. Se

considerarmos a moradia como função pública, seus contornos somente começam a

ser definidos a partir da década de 1940 do século XX, quando o Estado brasileiro

reconhecendo a incapacidade da iniciativa privada de sozinha resolver o déficit

habitacional assume primordialmente tal papel.

No entanto, mesmo reconhecendo a obrigação de prover moradias à

população como função pública, as políticas daí surgidas são por vezes insipientes,

ineficientes ou desorganizadas, enquanto que o processo de urbanização mantem-

se exponencialmente ao longo de todo o século XX, inflando as cidades brasileiras e

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obrigando à população a buscar alternativas para moradia, que se darão à margem

da lei, pela própria falta de recursos ou opções de acesso à terra pelas camadas

menos favorecidas.

Somente no fim do século XX é que parecem se criar as condições

necessárias para a mudança desse quadro, com a promulgação da Constituição de

1988, que com sua ideologia solidarista e voltada para a justiça social permite a

reformulação das bases do instituto da propriedade e estabelecendo ampla gama de

direitos fundamentais ao cidadão.

Na primeira década do século XXI tem-se algumas medidas governamentais

que revelam uma tendência de maior empenho na solução da questão habitacional,

depois de anos de estagnação. No entanto ainda não é possível medir quais os

impactos reais essas medidas terão no quadro habitacional do país, considerando-

se o quadro histórico da formação da propriedade no Brasil e como a formação

dessa propriedade afetou a questão habitacional, além dos anos seguidos de

medidas governamentais equivocadas no trato da questão habitacional.

A seguir, passa-se a análise dos direitos fundamentais, com rápida remissão

à teoria dos direitos fundamentais e em especial do direito fundamental à moradia,

detalhando-se a construção e o seu significado enquanto direito fundamental,

especialmente diante do cenário da questão habitacional no Brasil. No mesmo

capítulo, também se analisará o direito fundamental ao meio ambiente e a proteção

de Áreas de Preservação Permanente, terminando assim a construção do cenário

de conflito que o presente trabalho se propõe à a analisar, quando da ocupação

dessas áreas por moradias.

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2. - A CENTRALIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO.

2.1. - APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA GERAL DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS.

Para que se possa tratar apropriadamente dos temas da Moradia e do Meio

Ambiente e de eventual choque entre eles enquanto direitos fundamentais, mister

se faz a revisitação de alguns aspectos primordiais da Teoria Geral dos Direitos

Fundamentais.

A primeira grande questão se refere às imprecisões em torno dos conceitos

de Direitos Fundamentais e Direitos Humanos e na diferenciação entre eles.

Norberto BOBBIO já relata a dificuldade encontrada em torno da definição do que

sejam os “direitos do homem” (2004, 37). Muitos constitucionalistas também se

debruçam sobre a possibilidade de usar indistintamente os termos, Direitos

Fundamentais e Direitos do Homem.

BONAVIDES relata que os autores anglo-americanos e latinos utilizam com

maior frequência a expressão “direitos humanos” ou “direitos do homem”, enquanto

que o termo “direitos fundamentais” encontra destaque especificamente entre os

publicistas alemães (2004, 56). O termo “direitos fundamentais” seria assim usado

principalmente para designar as relações entre o indivíduo e o Estado, e os direitos

oponíveis que aquele tem em relação ao último.

Mas de fato, o que se pode perceber no constitucionalismo contemporâneo, é

que se tratam de expressões que expressam conceitos diferentes, muito embora em

alguns casos convergindo, quanto ao seu conteúdo. Conforme lição de

CANOTILHO:

As expressões direitos do homem e direitos fundamentais são frequentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para

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todos os povos e em todos os tempos; direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intertemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta (1998, 259).

Partindo-se dessa definição dada pelo jurista português, observa-se que a

distinção entre direitos do homem ou direitos humanos só ganha importância com o

Constitucionalismo do final do século XVIII, com o processo de positivação de

direitos humanos nas constituições nacionais. Até então, a distinção não é

importante e provavelmente impossível.

Se ambas têm por objeto a proteção de direitos reconhecidos ao homem, é

somente com o Constitucionalismo moderno é que ganha importância a distinção,

posto que é a partir de então que ganham planos distintos.

Inegável, no entanto, a ligação de ambas as expressões e a importância

mútua que uma tem para com a outra. São na verdade as teorias desenvolvidas

acerca dos direitos de humanos que irão permitir o surgimento da teoria dos direitos

fundamentais. Um movimento que ainda hoje tem importância, dado inclusive a

influência da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 na maior parte

das Constituições do pós-guerra, como é o caso inclusive da Constituição da

República, de 1988.

Segundo o critério constitucional brasileiro, tratam-se os direitos humanos e

direitos fundamentais de normas jurídicas com as mesmas finalidades. A diferença

se situa no âmbito de proteção, se no plano internacional ou no plano interno. A

expressão “direitos humanos” se encontra consagrada no texto constitucional para

se referir aos tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil se fizer

signatário conforme seu uso (art. 4º, II; art. 5º, § 3º e art. 109, V-A e § 5º) enquanto

que os direitos fundamentais são os direitos humanos consagrados pelo texto

constitucional por encontrarem ali positivação de forma direta (Título II da

Constituição).

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Essa distinção, em razão da própria sistemática adotada pela Constituição

Federal acaba também se confundindo em certa medida com a classificação de

direitos fundamentais em direitos formais e materiais.

Por um lado os Direitos fundamentais do ponto de vista formal, ou

formalmente materiais, são aqueles que estão previstos expressamente no texto

constitucional nessa condição. Por outro lado, têm-se os direitos fundamentais do

ponto de vista material, que são admitidos no ordenamento constitucional brasileiro,

por expressa autorização constitucional em razão do seu conteúdo. No direito

constitucional brasileiro, por força da permissão explícita que a própria constituição

faz, nos § 2º e § 3º do art. 5º, quanto aos tratados internacionais, especialmente aos

que versarem sobre direitos humanos, que conquanto sejam submetidos ao

processo formal previsto para alterações do texto constitucional, são considerados

Emendas Constitucionais, tem-se a justaposição entre os direitos fundamentais

materiais e os direitos humanos.

Mas não somente estes. A exemplo do que faz a IX Emenda à Constituição

Americana e a Constituição portuguesa, a Constituição também considera como

direitos fundamentais além dos expressamente previstos e dos recepcionados por

tratados internacionais outros, decorrentes do regime e dos princípios por ela

adotados. Isso implica dizer que além dos expressamente enumerados, dos tratados

internacionais incorporados ao ordenamento brasileiro nessa condição, serão

direitos fundamentais do ponto de vista material, aqueles que contenham decisões

fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade. Conforme a

posição de MIRANDA,

Com o conceito material de direitos fundamentais não se trata de direitos declarados, estabelecidos, atribuídos pelo legislador constituinte, pura e simplesmente; trata-se também dos resultantes da concepção de Constituição dominante, da ideia de Direito, do sentimento jurídico colectivo (conforme se entender, tendo em conta que estas expressões correspondem a correntes filosófico-jurídicas distintas. (2008, 12).

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Assim, essa abertura do sistema constitucional torna indubitável a existência

ou, a possibilidade de existência, de outros direitos fundamentais que não aqueles

catalogados pela Constituição Federal, como direitos fundamentais implícitos no

texto constitucional, direitos fundamentais decorrentes e até mesmo direitos

constitucionais que se situem fora do texto constitucional.

Nesse sentido, o § 2º do art. 5 da Constituição Federal funciona como uma

espécie de norma geral inclusiva, que impõe a interpretação do conceito direitos

fundamentais e sua identificação, quando se trata de direitos materialmente

constitucionais, à Constituição como um todo, por ser esta, nas palavras de

BONAVIDES, uma expressão do “consenso social sobre os valores básicos” e os

seus princípios, cunhados naqueles valores, os critérios mediante o qual se

mensuram todos os conteúdos normativos do sistema (2004, 290).

2.1.1. – Antecedentes dos Direitos Fundamentais.

Embora os direitos fundamentais só surjam a partir do fim do século XVIII,

quando as teorias dos direitos humanos possibilitam o reconhecimento e positivação

de direitos inalienáveis do homem nos ordenamentos jurídicos nacionais, não se

pode negar que suas raízes estão plantadas em momentos anteriores da história.

Segundo MIRANDA,

somente há direitos fundamentais quando o Estado e a pessoa, a autoridade e a liberdade se distinguem e até, em maior ou menor medida, se contrapõem. Mas – por isso mesmo – não podem apreender-se senão como realidades que se postulam reciprocamente, se condicionam, interferem uma com a outra (2008, 16).

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Assim, buscar as raízes dos direitos fundamentais remete à busca das raízes

do próprio constitucionalismo. Este começa a se delinear em 1215, quando os

barões ingleses, aproveitando-se da estrutura política frágil do rei João, conhecido

como João Sem Terra, o obrigaram a assinar a Magna Carta, jurando obedecê-la e

aceitando a limitação dos seus poderes em troca da sua lealdade. Antes desse

período, não há qualquer referência a direitos inalienáveis do homem, limitação do

poder do governante ou supremacia do indivíduo, algo que signifique de forma mais

sólida, raiz do que se trata por direito fundamental (VINCENT, 2012, 41 - 44). Ali

estão alguns marcos dos direitos e liberdades civis clássicos, como o devido

processo legal e a garantia de propriedade (SARLET, 2011, 41). Deve-se ressaltar,

contudo, que a limitação de poderes e o estabelecimento de direitos aos barões

ingleses, pouca relação guarda com os direitos fundamentais, posto que

estabelecidos como concessão a grupos determinados numa sociedade

extremamente desigual e estratificada.

Sendo a Magna Carta o primeiro movimento jurídico para o surgimento do

constitucionalismo moderno, no entanto, não pode-se deixar de considerar as

importantes contribuições que a Antiguidade legou através da filosofia grega e da

religião cristã, como justiça, liberdade e dignidade, que vieram a contribuir para a

formulação do conceito jusnaturalista de direitos inatos ao ser humano (MIRANDA,

2008, 20-22).

De suma importância também para o nascimento dos chamados Direitos

Fundamentais foi a Reforma Protestante e as guerras religiosas que se seguiram por

toda a Europa, que levaram à reivindicação e ao reconhecimento gradativo da

liberdade de opção religiosa e culto em diversos países da Europa, e contribuíram

para a laicização da teoria dos direitos naturais do homem. Como exemplo

emblemático desse movimento, pode-se citar a Inglaterra, cujos conflitos religiosos

contribuíram para o enfraquecimento do poder do monarca e o fortalecimento do

parlamento (SARLET, 2011, 42). Assim, a luta pela liberdade religiosa aparece como

pano de fundo para outras disputas que terminariam por permitir o surgimento de

outras liberdades, que não a religiosa.

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A partir do século XVII, a concepção contratualista de sociedade ganha

importância e paulatinamente substitui a concepção teológica, bem como ganha

corpo a doutrina dos direitos naturais do indivíduo e limites ao poder do soberano,

como se depreende da obra de ROUSSEAU (2002, 42-43) e HOBBES (2004, 101-

102).

Como gênese do Constitucionalismo moderno e por consequência dos

direitos fundamentais, pois foi a partir daí que o estabelecimento de direitos e

liberdades passou a proliferar nos ordenamentos jurídicos nacionais, temos a

Declaração de Direitos do bom povo da Virgínia de (1776) que viria a influenciar a

elaboração da Constituição dos Estados Unidos da América (1787) e suas emendas

posteriores, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) havendo

divergência doutrinária acerca do verdadeiro marco inicial do estabelecimento de

direitos fundamentais. Embora a Constituição Americana venha primeiro, sendo

considerada a primeira constituição escrita da humanidade, não possuía

originalmente qualquer declaração de direitos, que lhe foram incorporados por

emendas, a partir de 1791, portanto, após a declaração francesa. Aponta-se também

em favor da declaração francesa o seu caráter universal. Enquanto o documento

americano estabelece direitos ao povo e do cidadão americano na condição de

nacional e, portanto, mais voltada para o plano interno, a declaração francesa trata

de direitos do homem nessa condição de ser humano, impingindo-lhe caráter

universal.

Sobre essa questão manifesta-se BONAVIDES:

Constatou-se então com irrecusável veracidade que as declarações antecedentes de ingleses e americanos podiam talvez ganhar em concretude, mas perdiam em espaço e abrangência, porquanto se dirigiam a uma camada social privilegiada (os barões feudais), quando muito a um povo ou a uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declaração francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano. Por isso mesmo, e pelas condições da época, foi a mais abstrata de todas as formulações solenes já feitas acerca da liberdade.

(...)O teor de universalidade da Declaração recebeu, alias, essa justificativa lapidar de Boutmy: “Foi para ensinar o mundo que os francês escreveram; foi para proveito e a comodidade de seus concidadãos que os americanos redigiram suas Declarações” (2004, 562).

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A constituição francesa, talvez por isso, tenha sido decisiva para o processo

de constitucionalização e reconhecimento de direitos e liberdades fundamentais nas

Constituições surgidas a partir do século XIX, mesmo sendo precedida pela

Constituição Americana.

2.1.2. – Os direitos Fundamentais e suas gerações.

Assim como há todo um processo histórico que leva ao surgimento ou ao

reconhecimento de direitos fundamentais, o desenvolvimento e a consolidação do

que seja direitos fundamentais também se dá num processo histórico. Mesmo os

direitos considerados em si mesmos passaram por um processo de aceitação e

conformação nos diversos ordenamentos constitucionais, de forma que o próprio

conteúdo dos direitos fundamentais vai variar ao longo do tempo, com o paulatino e

sequencial reconhecimento de novos direitos, ou da compreensão da amplitude de

direitos já existentes.

Em razão dessa formulação sequencial e paulatina do conteúdo dos direitos

fundamentais nos textos constitucionais de acordo com as mais diversas condições

históricas, que vão desde demandas e interesses de cada povo, grupos no poder ou

até meios disponíveis para realização dos direitos, a doutrina constitucionalista

costuma falar em “gerações” de direitos fundamentais.

Sobre a classificação dos direitos fundamentais em gerações, ensina

BONAVIDES:

Em rigor, o lema revolucionário do século XVIII, esculpido pelo gênio político francês, exprimiu em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais, profetizando até mesmo a sequência histórica de sua gradativa institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade.

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Com efeito, descoberta a fórmula da generalização e universalidade, restava doravante seguir os caminhos que consentissem inserir na ordem jurídica positiva de cada ordenamento político os direitos e conteúdos materiais referentes àqueles postulados. Os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestar-se em três gerações sucessivas, que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e qualitativo, o qual, segundo tudo faz prever, tem por bússola, uma nova universalidade: a universalidade material e concreta, em substituição da universalidade abstrata e, de certo modo, metafísica daqueles direitos, contida no jusnaturalismo do século XVIII. (2004, 563)

Os direitos de primeira geração são ligados principalmente ao valor liberdade,

preconizados pela revolução francesa, na qual a classe burguesa reivindicava o

respeito às liberdades individuais em oposição ao poder do Estado. São os que

inauguram o constitucionalismo no ocidente e refletem basicamente aquela primeira

aspiração da burguesia. Tem por titular o indivíduo e se traduzem em faculdades ou

atributos oponíveis ao Estado.

Os direitos de segunda geração são ligados especialmente ao valor igualdade

e surgem e se desenvolvem ao longo do século XX, após a revolução industrial,

como as chamadas liberdades se desenvolveram ao longo do século XIX. São os

direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de

coletividades, introduzidos no constitucionalismo do Estado Social, nas variadas

formas pelas quais esse se concretizou.

Refletem a mudança no entendimento do que seja o próprio papel do Estado

ante a sociedade civil e seus cidadãos. Num primeiro momento, refletindo até

mesmo a transição entre os paradigmas do Estado Liberal e o Estado Social,

passaram por um ciclo de juridicidade questionada para num momento posterior

passarem a exigir, em virtude da sua própria natureza, prestações materiais do

Estado, nem sempre concretizáveis, em razão da falta de mecanismos de concreção

ou mesmo recursos.

Numa segunda fase são remetidos à chamada esfera programática e, embora

lhes seja reconhecida certa juridicidade, não lhes é conferida a mesma eficácia dos

chamados direitos de primeira geração, seja por se negar-lhes instrumentos

adequados de tutela processual, seja por condicionar sua efetividade ao processo

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legislativo ordinário. Em razão disso, passaram por grave crise de observância e

execução, por parte dos próprios Estados que os positivaram em suas constituições.

É preciso apontar aqui uma terceira fase, ainda em processo de construção

no constitucionalismo contemporâneo, de aplicação imediata de todos os direitos

fundamentais, e não apenas dos direitos de liberdade, de forma que é afastada cada

vez mais a possibilidade de negação de eficácia aos direitos prestacionais com base

no caráter programático da norma.

Ao longo do século XX, especialmente nos anos que se seguiram à Segunda

Guerra Mundial, surge uma terceira geração de direitos, ligados à ideia de

fraternidade. Diferentemente dos direitos de primeira e segunda geração, os direitos

aqui discutidos não se destinam propriamente à proteção de um indivíduo, de um

grupo social ou de um Estado. Faz isso indiretamente, tendo como destinatário o

próprio gênero humano. O surgimento desta geração de direitos, tem como causa

principal o reconhecimento das diferenças entre as nações desenvolvidas e

subdesenvolvidas e a necessidade de atenuá-las, por meio da colaboração entre

elas.

São direitos de natureza transindividual, que materializam poderes de

titularidade coletiva, atribuídos ao ser humano, e em razão disso, atinge todas as

formações sociais.

BONAVIDES sobre os direitos de terceira geração aponta:

A consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse um outra dimensão dos direitos fundamentais, até então desconhecida. Trata-se daquela que assenta sobre a fraternidade, conforme assinala Karel Vasak, e provida de uma latitude de sentido que não parece compreender unicamente a proteção específica de direitos individuais e coletivos. (2004, 569)

O marco emblemático do surgimento da terceira geração de Direitos

Fundamentais é a Convenção das nações unidas relativa à proteção do patrimônio

mundial, cultural e natural de 1972, que ao tratar do patrimônio ambiental e cultural,

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direciona-se à humanidade enquanto coletividade referindo-se diretamente a um

“direito da humanidade” ao invés de “direitos do homem”. Ao fazer isso, como

assinala COMPARATO,

Trata-se do direito documento normativo internacional que reconhece e proclama a existência de um “direito da humanidade”, tendo por objeto, por conseguinte, bens que pertencem a todo gênero humano e não podem ser apropriados por ninguém em particular. Os Estados em que tais bens se encontram são considerados como meros administradores fiduciários, devendo informar e prestar contas, internacionalmente, sobre o estado em que se encontram esses bens e sobre as providências tomadas para protegê-los contra o risco de degradação natural ou social a que estão submetidos (2004, 379).

Dentre os direitos integrantes dessa geração, a doutrina tem sido francamente

majoritária em destacar os referentes ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à

autodeterminação dos povos, o direito à propriedade sobre o patrimônio comum da

humanidade e o direito à comunicação.

Os estudiosos de direito constitucional, além de já falarem em uma quarta e

até mesmo uma quinta geração de direitos, decorrentes de diversos fenômenos que

surgem desde o fim do século XX, como por exemplos a globalização econômica, a

manipulação genética ou a luta contra o terrorismo. O presente estudo se aterá às

três primeiras gerações de direitos que se relacionam mais diretamente com seu

objeto, mas é preciso ressaltar que o processo de surgimento e reconhecimento de

direitos fundamentais não é definitivo. É próprio o reconhecimento dos direitos

humanos como direitos históricos já que “emergem gradualmente das lutas que o

homem trava por sua própria emancipação e das transformações das condições de

vida que essas juntas produzem” (BÓBBIO, 2004, 51).

Trata-se, portanto, de um processo não definitivo em que o reconhecimento

de direitos acaba permitindo o Estudo e o reconhecimento de novos direitos. Assim,

além de direitos de quarta e quinta geração, pode-se no futuro tratarmos de direitos

de sexta geração, sétima e assim por diante.

Passa-se então a análise do direito fundamental à moradia.

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2.2. - O DIREITO À MORADIA NO CONTEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO.

A moradia passa a ser entendida como direito humano em decorrência do

reconhecimento do suprimento de necessidades mínimas do ser humano e a partir

da transformação do modelo de Estado Liberal, vigente após a revolução francesa,

em um modelo de Estado Social, que positiva essas necessidades mínimas como

direito de seus cidadãos, para além das chamadas liberdades públicas ou deveres

negativos. Guardadas algumas peculiaridades, esse é o caminho percorrido pelo

Estado brasileiro.

O reconhecimento do direito à prestações de cunho socioeconômico perante

o Estado implica em discutir a efetividade desses direitos, especialmente em

situações como a do Brasil em que a desigualdade social acompanha a formação

histórica, e que o Direito Constitucional tem a dignidade humana como princípio e

tutela os Direitos Sociais. Por outro lado, tem-se a dificuldade dos Estados, hoje, em

implementar programas sociais, inclusive com relação ao Direito de Moradia, em

razão de problemas de natureza orçamentária. Assim, a importância de se verificar e

discutir a efetividade de direitos sociais nasce justamente da necessidade social

dessa efetivação, principalmente partindo-se do pressuposto de uma Constituição

como a brasileira que, mais do que garantias, trás em seu bojo um modelo de

sociedade a ser construído e alcançado (REIS, 2013, 217).

2.2.1. - Direito à moradia: notas históricas.

Situar um instituto ou categoria jurídica no tempo, percebendo seu

nascimento e evolução é premissa para sua compreensão. A norma jurídica não

pode ser completamente compreendida, se não compreendido o contexto histórico

no qual foi produzida e que esse processo criativo da norma fez-se em razão de um

contexto futuro, ainda que hipotético. Se o homem é um ser histórico, que

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transforma a natureza e cria um mundo cultural para sobreviver, o direito

necessariamente também o é, como fruto da genialidade humana. Neste sentido a

historicidade de qualquer instituto ou categoria jurídica é fundamental para a sua

correta compreensão:

A determinação do sentido das normas, o correto entendimento do significado dos seus textos e intenções, tendo em vista a decidibilidade de conflitos constitui a tarefa da dogmática hermenêutica. Trata-se de uma finalidade prática, no que se distingue de objetivo semelhantes das demais ciências humanas. Na verdade, o propósito básico do jurista não é simplesmente compreender o texto, como faz, por exemplo, o historiador ao estabelecer-lhe o sentido e o movimento no seu contexto, mas também determinar-lhe a força e o alcance, pondo o texto normativo em presença dos dados atuais do problema. Ou seja, a intenção do jurista não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em vista as condições de decidibilidade de conflitos com base na norma enquanto diretivo de comportamento (FERRAZ JÚNIOR, 2008, 221).

De forma que para esse processo de busca de sentido para a norma jurídica,

tem entre os seus métodos, o histórico, em que se busca seu sentido na sua gênese

ou evolução, que fornecerão ao interprete da norma jurídica importante subsídio

para situar o jurista em conjunto com outras técnicas hermenêuticas para lhe permitir

encontrar as respostas corretas na aplicação da norma jurídica. Assim, não é

possível falar-se em norma jurídica, desprendida de um contexto qualquer (REIS,

2013, 217).

Além disso, compreendida a moradia no âmbito dos direitos humanos, deve

ser observada necessariamente na característica histórica desses direitos. “Por mais

fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas

circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra

velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma

vez por todas”. (BOBBIO, 2004, 25).

A questão da habitação é objeto de estudo nas mais variadas ciências, dada

a compreensão da essencialidade da mesma na vida do homem. Essa

essencialidade se dá por diversos motivos, desde os mais simples que se possa

imaginar como a necessidade do homem primitivo de um refúgio para se proteger

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dos animais ferozes e das condições do tempo, até mais complexos como a ideia do

homem como um ser cultural, que transforma e recria o mundo à sua volta para

sobreviver. Enxergá-la como a necessidade de ter um espaço próprio, um “lugar pra

ficar”, é própria da essência humana, seja pela necessidade de um ponto de

referência que permite a localização e individualização de certa ou certas pessoas,

seja por questões de saúde, ou mesmo pela condição realizadora de outros direitos,

como o Direito ao Sossego, à proteção da intimidade, à segurança e mesmo à

liberdade, visto que a liberdade pressupõe um mínimo de espaço para a

individualidade. Daí a sua compreensão unânime como Direito Humano, não só por

representar em si uma condição essencial para uma vida humana digna, como em

razão da sua conexão com tantos outros direitos também considerados como

essenciais para o ser humano, e o seu reconhecimento e incorporação pelos

diversos ordenamentos jurídicos, passando o amplo acesso à moradia como objetivo

de sociedades politicamente organizadas e como direito dos cidadãos exercitáveis

contra os Estados (REIS, 2013, 218).

Embora se possa encontrar como exceções a Constituição do México (1917)

e a Constituição da República de Weimar (1919), nas origens do constitucionalismo

social, o direito à moradia passa por um movimento de reconhecimento histórico

paulatino, no plano internacional primeiramente. Ao ser reconhecido como um direito

humano básico e exigível dos Estados, é continuamente conformado e reafirmado

por diversos documentos que lhe dão densidade e contornos, para só então ser

reconhecido pelos diversos ordenamentos jurídicos internos. “Os organismos

internacionais elaboraram o conceito para o que se pode identificar como direito à

moradia, com base na defesa de um adequado padrão de vida humano que toda

pessoa tem direito para si e para seus familiares”. (MELO, 2010, 37)

Isso se dá em razão da própria gênese do constitucionalismo moderno se dar

sob o paradigma do Estado Liberal, fruto da luta das classes burguesas desprovidas

de poder político contra o Estado absolutista, e que por isso preocupou-se apenas

com os direitos políticos e com os direitos de liberdade.

A constituição, que não podia evitar o Estado, ladeava, contudo, a Sociedade, para conservá-la por esfera imune ou universo inviolável de

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iniciativas privatistas: era uma Sociedade de indivíduos e não de grupos, embebida de toda uma consciência anticoletivista. À constituição cabia tão-somente estabelecer a estrutura básica do Estado, a espinha dorsal de seus poderes e respectivas competências, proclamando na relação indivíduo-Estado a essência dos direitos fundamentais relativos à capacidade civil e política dos governados, os chamados direitos de liberdade. (BONAVIDES, 2004, 229).

O primeiro documento de grande repercussão internacional a referir-se a

moradia, foram as cartas de Atenas, elaboradas no contexto do Congresso

Internacional de Arquitetura e Urbanismo em 1933. Muito embora não seja um

documento de repercussão jurídica, refere-se às funções sociais que uma cidade

deve proporcionar entre elas “habitar”. Se esse documento não tem repercussão

jurídica por si só, acaba por criar a noção de cidade como função social, passando-

se a compreensão do espaço urbano mais que simplesmente um aglomerado de

pessoas e edificações. O espaço urbano passa a ter funções a realizar. Conforme as

famosas Cartas de Atenas “o urbanismo é a ordenação dos lugares e dos locais

diversos que devem abrigar o desenvolvimento da vida material, sentimental e

espiritual em todas as suas manifestações, individuais e coletivas” (SILVA, 2006,

31). Essa noção de função social da cidade – incorporada posteriormente pela

Constituição Federal de 1988 entre as diretrizes da política urbana - guarda o mérito

inicial de compreender a essencialidade da moradia, como premissa para o

desenvolvimento do ser humano em suas potencialidades. Estabelece-se como uma

espécie de marco teórico inicial para a discussão da importância da moradia

participando do processo que terminará por reconhecê-la como objeto de proteção

dos direitos humanos (REIS, 2013, 221).

A primeira previsão jurídica específica sobre moradia que para nós tem

importância remonta à Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabelece

em seu art. XXV que “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de

assegurar a si e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,

habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis”.

Ao lado do referido dispositivo, o inciso XII da referida Declaração Universal

prevê a tutela do lar do indivíduo dispondo que “Ninguém será sujeito a

interferências em sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua

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correspondência, nem a ataques à sua honra ou reputação. Toda pessoa tem direito

à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”.

Muito embora o dispositivo citado refira-se ao “lar” do indivíduo de forma

indireta, reconhece-o direito a ele de certa forma, como pressuposto para o direito à

vida privada sem interferência indesejadas ou abusivas.

Em 1966, foi aprovado, também no âmbito das Nações Unidas, o Pacto

Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que só entra em vigência

em 1976, em cujo art. 11 fica estabelecido que “Os Estados Partes no presente

pacto reconhecem o direito a toda pessoa a um nível de vida adequado para si

próprio e sua família, inclusive alimentação, vestimenta e moradia adequada, assim

como uma melhoria contínua de suas condições de vida”.

Em 1976, tem-se a realização de importante conferência internacional para

debate do tema em Vancouver, no Canadá, denominada Conferência das Nações

Unidas sobre Assentamentos Humanos – HABITAT I. Nesta conferência discutiu-se

a necessidade de adequada habitação para todos e o desenvolvimento de

assentamentos humanos sustentáveis em um mundo em urbanização

estabeleceram-se metas a serem atingidas pelos signatários. A seção III, Capítulo

II, estabelece que

Adequada habitação e serviços são um direito humano básico, pelo qual coloca como obrigação dos Governos assegurar a realização destes para todas as pessoas, começando com assistência direta para os menos avantajados através de programas de ajuda mútua de ações comunitárias, os Governos devem se empenhar para remover todos os obstáculos que impeçam a realização dessas metas.

Também no plano do Direito Internacional Particular Americano, destaque-se

a Convenção Americana de Direitos Humanos, que culmina com a elaboração do

Pacto de San José da Costa Rica. Esse documento, muito embora não enuncie de

forma específica qualquer direito social, cultural ou econômico, determina em seu

art. 26 que os Estados signatários alcancem, de forma progressiva, a plena

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realização desses direitos por meio de medidas legislativas ou outras que se

mostrem apropriadas.

A declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, de 1986, embora não se

refira a direitos sociais específicos, tem como ponto de partida o reconhecimento de

que o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político

abrangente, que visa ao constante incremento do bem estar de toda a população e

de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa no

desenvolvimento e distribuição justa dos benefícios daí resultantes, afirmando o

direito ao desenvolvimento como um direito humano inalienável (REIS, 2013, 222).

Esse destaque ao Direito Internacional com respeito ao Direito à moradia é

aqui cabível, justamente pelo reconhecimento do Direito à moradia como um direito

Humano no plano do Direito Internacional, dado o reconhecimento da Organização

das Nações Unidas, e por estabelecer a vinculação jurídica dos Estados membros, a

quem cabe o dever de assegurá-lo. Muito embora seja possível perceber em

diversos momentos o estabelecimento ou a tentativa de estabelecer-se políticas de

acesso à moradia no plano internos dos Estados nesse momento, isso se dá de

forma muito incipiente, limitada e pontual, sem jamais se ter uma política de acesso

à moradia visto como algo exigível, de acesso amplo e democrático, muito mais

ligada a ideia de voluntarismo político do que como um direito exigível(REIS, 2013,

222).

Assim, esses tratados do qual a República Federativa do Brasil foi e é

signatário4 tem como mérito inicial vincular o Estado brasileiro à moradia como um

direito oponível e exigível por parte de seus cidadãos. Algo que no plano da

legislação interna só irá ocorrer com a Emenda Constitucional No. 26 de 14 de

fevereiro de 2000, que insere o Direito à Moradia como um direito fundamental

social, passando a constar do art. 6º do texto constitucional. Não se pode contudo

negar importância a esses tratados, principalmente por ser reconhecido

4 O Brasil é signatário da Carta das Nações Unidas desde a sua promulgação em 1948, da

Declaração sobre o Direito ao desenvolvimento desde 1986, e do Pacto de San José da Costa Rica e do Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais desde 1992.

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expressamente status constitucional a direitos e garantias que o Brasil incorporar por

tratado internacional (Constituição Federal, art. 5º, §2º e § 3º).

A primeira carta política a tratar a moradia como um direito constitucional é a

Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos de 1917, que no Título I,

Capítulo I, trata dos Direitos Humanos e suas garantias. Menciona o Direito à

moradia no art. 4º ao dispor que toda família tem direito a desfrutar de uma moradia

digna e adequada e que a lei estabelecerá os instrumentos e apoios necessários a

fim de alcançar tal objetivo5. Assim, a Moradia passa a ter cunho constitucional,

tratando-se por disposição expressa de norma programática, já que sua eficácia

dependia de norma constitucional regulamentadora que viesse efetivar o Direito.

Cabe observar, contudo, que a mesma constituição estabelece como “base” da

Seguridade Social, a disponibilização aos trabalhadores habitações baratas para

aquisição ou locação e determina a criação de um fundo nacional de habitação que

proporcione acesso a crédito barato e suficiente para aquisição de moradias

adequadas6.

Da mesma forma a Constituição da República de Weimar (1919) também

reconhecia a importância da moradia em seu artigo 155, ao dispor que o

fracionamento e o uso do solo serão controlados pelo Estado de forma a impedir

abusos e a permitir a todo alemão uma morada saudável e a todas as famílias

alemãs, em especial as mais numerosas, uma morada e um patrimônio que atenda

suas necessidades.

As nossas seis constituições anteriores nada mencionam sobre o direito à

moradia. A Constituição Imperial de 1824 representa o modelo de constituição da

época, em feições liberais, preocupada com as liberdades públicas. A Constituição

5 Texto literal: “Toda familia tiene derecho a disfrutar de vivienda digna y decorosa. La Ley

establecerá los instrumentos y apoyos necesarios a fin de alcanzar tal objetivo”

6 Se proporcionarán a los trabajadores habitaciones baratas, en arrendamiento o venta, conforme a

los programas previamente aprobados. Además, el Estado mediante las aportaciones que haga, establecerá un fondo nacional de la vivienda a fin de constituir depósitos en favor de dichos trabajadores y establecer un sistema de financiamiento que permita otorgar a éstos crédito barato y suficiente para que adquieran en propiedad habitaciones cómodas e higiénicas, o bien para construirlas, repararlas, mejorarlas o pagar pasivos adquiridos por estos conceptos.

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de 1891, mantém a mesma feição liberal, inspirada principalmente no

constitucionalismo americano, preocupando-se quanto a direitos fundamentais

também com as liberdades públicas. É a partir da Constituição de 1934, seguida

pela Constituição de 1946 e 1967 é que se percebe a mudança de feições no

constitucionalismo brasileiro apontando gradativamente feições sociais. Pode-se

perceber essa mudança através do instituto da propriedade que, a partir dessas

Constituições passa a ser condicionada a interesses sociais e coletivos (REIS, 2006,

82-83) ou no estabelecimento de direitos constitucionais sociais de caráter

trabalhista. No entanto, a garantia de acesso à Moradia não recebe qualquer

menção do direito brasileiro até o texto constitucional atualmente em vigência.

2.2.2. – O direito à moradia e o contexto dos Direitos Sociais na Constituição

Federal de 1988.

O direito à moradia foi inserido no texto Constitucional por força da Emenda

Constitucional No. 26 de 2000 no Titulo II, que trata dos direitos fundamentais. Este

título subdivide-se em cinco capítulos: dos direitos individuais e coletivos, dos

direitos sociais, dos direitos à nacionalidade e dos direitos políticos e partidos

políticos, de forma que a Moradia passou a constar do Capítulo II, que trata dos

Direitos Sociais.

São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a

segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância, a assistência

aos desamparados, na forma desta Constituição. (art. 6, Constituição Federal). José

Afonso da Silva assim define os direitos sociais:

Direitos Sociais, prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo de direitos

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individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício de sua atividade. (SILVA, 2005, 286).

Os direitos Sociais surgem no contexto do constitucionalismo social. Aquele

Estado surgido das revoluções liberais do século XVIII preocupava-se basicamente

com as liberdades públicas, com o arbítrio do soberano e por isso, tinha como

função básica garantir a liberdade individual, mantendo a atuação do poder público

equidistante da esfera privada e garantir a igualdade formal, no sentido de que o

poder público tratasse todos como iguais. No entanto, essas conquistas pouco

fizeram pela grande massa de despossuídos, de forma que pouco mais de um

século depois de surgido, o modelo de Estado Liberal entrava em crise (REIS, 2013,

224).

Os Estados europeus se encontravam em profundas desigualdades sociais

nos séculos XVIII e XIX, desigualdades que só se acirraram na Revolução Industrial,

ao criar mais miséria de um lado, com pessoas que trabalhavam em condições sub-

humanas e de outro mais concentração de riqueza. A instabilidade social que se

seguiu termina por permitir o reconhecimento de direitos sociais. Esses, nascem de

concessões, diante do temor provocado pelas revoluções comunista e mexicana,

pelo sindicalismo nascente, pelos movimentos anarquistas, que criavam riscos

derrubada dos regimes liberais então vigentes (REIS, 2013, 224).

Desta forma, surgem os Direitos Sociais diante da compreensão de que o

Estado deve atuar minimamente para garantir condições mínimas para os seus

cidadãos, e que a mera garantia das liberdades públicas está aquém da função

estatal. O Estado, que no liberalismo se colocava numa posição relativamente

equidistante pelas declarações de Direitos das Constituições Liberais passa a ser

imprescindível para a realização dos Direitos Sociais e Econômicos. Os direitos

sociais são, sob essa perspectiva, fins da ação do Estado, e não limites desta ação,

como o caso das liberdade públicas. E assim, nos dizeres de COMPARATO:

obedecem, primordialmente, ao princípio da solidariedade (ou fraternidade, no tríptico da Revolução Francesa), a qual se impõe, segundo os ditames da

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justiça distributiva ou proporcional, a repartição das vantagens ou encargos sociais em função das carências de cada grupo ou estrato da sociedade (COMPARATO, 2004, 335).

Muito embora todo esse processo histórico-conjuntural de consolidação dos

direitos sociais, é preciso cuidado para que se vincule esses direitos a demandas

sociais e econômicas de determinado contexto, atribuindo-lhes eventual função

reparadora de desigualdades históricas ou função assistencial. Hodiernamente, os

direitos sociais devem ser compreendidos na sua essência de direitos fundamentais,

como um conjunto de direitos essenciais e inafastáveis constitutivos da

personalidade e da dignidade humana, tanto quanto os direitos civis e políticos, e tão

inarredáveis quanto estes (REIS, 2013, 225).

Desnecessário enfrentar aqui suposta distinção entre Direitos Fundamentais e

Direitos Sociais. Essa distinção, que é um movimento típico de resistência do

liberalismo, renitente em reconhecer o mesmo status das velhas liberdades públicas

aos Direitos Sociais, torna-se claramente obsoleta e mesmo equivocada, quando

percebe-se o lugar reservado a esses direitos na Constituição como Direitos

Fundamentais. Da fundamentalidade desses direitos decorre especial status de

proteção, tanto em sentido material como em sentido formal. Da fundamentalidade

formal resulta da compreensão dos Direitos fundamentais como ápices de nosso

ordenamento jurídico e nesse sentido cuidam-se de direitos de natureza supralegal.

Além disso, encontram-se submetidos aos limites materiais e formais de reforma da

constituição e, por derradeiro, cabe salientar que são de aplicação imediata

(Constituição Federal art. 5º. § 1º.). Da fundamentalidade material, decorre serem os

direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição material, contendo

decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da Sociedade.

(SARLET, 2011, 75).

Essas decisões, ou opções políticas do Estado, no caso da proteção que a

Constituição brasileira concede aos direitos sociais são inequívocas, principalmente

se observado o contexto constitucional, do qual consta verdadeira sensibilidade

social, posto que o objetivo é uma sociedade mais justa e menos desigual, ao invés

da ideia tradicional e ineficaz de simplesmente se garantir as liberdades. Essa leitura

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do texto constitucional é consistente, posto que conforma valores como os que

emanam do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República, e

ainda outros valores e objetivos a se alcançar estabelecidos na Constituição, como a

construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3, I); a erradicação da

pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais (art.

3, III); a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, sem preconceitos

de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer formas de discriminação (art. 3, IV)

(REIS, 2013, 225).

Daí percebe-se a importância da construção teórica que precede a

positivação de Direitos Sociais e do caso específico do Direito à Moradia. Toda a

construção teórica e a evolução paulatina do reconhecimento dos direitos sociais e

do Direito à Moradia no plano internacional, permitem a própria conformação do

direito, a explicitação de sua essencialidade, e proporciona a sua fundamentação

quando da sua efetivação, sendo aliás é pressuposto da efetivação de qualquer

direito na tradição ocidental.

A positivação dos direitos sociais, por outro lado, é o que garante a sua

eficácia social. O reconhecimento de Direito como essencial depende do seu

reconhecimento jurídico, como tal. Num estado com princípios democráticos, a

proteção jurídica de algo que se entenda por direito resulta de um processo de

legitimação indispensável. Esse processo de legitimação em nível constitucional, é

que torna o direito exigível explicitando sua origem como escolha da vontade

coletiva, nos temos da Constituição, cabendo ao Estado Democrático, concretizador

dessa vontade, instrumentalizá-lo (REIS, 2013, 226).

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2.2.3. - A efetividade dos Direitos Sociais e as obrigações do Estado brasileiro

e a obrigação do Estado Brasileiro concernentes ao Direito de Moradia.

Os direitos sociais, assim como os demais direitos fundamentais exigem

distintos níveis de obrigações. Obrigações de respeitar, de proteger e de satisfazer

direitos. O texto constitucional dispõe, conforme já afirmado retro, que as normas

definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata. No

entanto, parte da doutrina, tem uma visão restritiva do disposto no art. 5, § 1º da

Constituição Federal, de forma que a aplicabilidade imediata caberia apenas aos

direitos e garantias dispostos no art. 5º da Constituição. Por essa concepção, os

direitos que exigem prestações positivas do Estado, através da execução de

políticas públicas, são concebidos tradicionalmente como normas de eficácia

limitada, cuja aplicabilidade é mediata e de eficácia reduzida. Não obstante a

localização topográfica do dispositivo, a literalidade do parágrafo aponta para todos

os direitos e garantias fundamentais, e não apenas para os direitos individuais e

coletivos do art. 5º. Além disso, a emergência cada vez maior de um significativo

número de normas de caráter programático e o próprio risco de esvaziamento de

sentido dos direitos sociais como direitos constitucionais, vem provocando uma

ruptura com a teoria clássica, no sentido de conferir, pelo menos em certa medida,

aplicabilidade direta e imediata aos direitos sociais. Não tem sentido, pelo próprio

significado histórico do Direito Constitucional, não atribuir um mínimo de eficácia

imediata a um direito positivado na Constituição, se esta surge justamente como um

remédio ao arbítrio. Submeter um direito positivado na Constituição ao voluntarismo

político significa privá-lo do seu caráter de direito constitucional fundamental.

Em razão disso, leciona Canotilho

“devido a essa ruptura à doutrina clássica, pode e deve-se dizer que hoje não há normas constitucionais programáticas. É claro que continuam a existir normas-fim, normas-tarefa, normas-programa que “ impõem uma actividade” e “dirigem” materialmente a concretização constitucional. Mas o sentido destas normas não é o que lhes assinalava tradicionalmente a doutrina: “simples programas, “exortações morais”, “declarações”, “sentenças políticas”, “aforismos políticos”, “promessas”, “apelos ao legislador”, “programas futuros”,

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juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às “normas programáticas” é reconhecido hoje valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da Constituição. Mais do que isso: eventual mediação da instância legiferante na concretização das normas programáticas não significa a dependência deste tipo de normas de interposição do legislador; é a positividade das normas-fim e normas-tarefa (normas programáticas) que justifica a necessidade de intervenção dos órgãos legiferantes (CANOTILHO apud SAULE JÚNIOR, 1999, 93).

Daí decorre a posição hoje mais aceita pela doutrina, de que o disposto

contido no art. 5, § 1º se trata de uma norma de cunho inequivocamente

principiológico, um princípio impositivo contendo um comando de maximização dos

direitos fundamentais, estabelecendo o dever dos órgãos estatais de conceberem a

maior eficácia possível aos direitos fundamentais.

Isso significa, em última análise, que, no concernente aos direitos fundamentais, a aplicabilidade imediata e eficácia plena assumem a condição de regra geral, ressalvadas exceções que, para serem legítimas, dependem de convincente justificação à luz do caso concreto, no âmbito de uma exegese calcada em cada norma de direito fundamental e sempre afinada com os postulados de uma interpretação tópico-sistemática. (SARLET, 2011, 271)

Assim, o Estado brasileiro tem obrigação de garantir minimamente o direito à

moradia, de forma que ninguém possa ser privado de direito ou garantia sob o

argumento de estar ele previsto em norma programática. Aceitar simplesmente esse

argumento significa negar a própria função do direito fundamental e o processo

histórico por meio do qual ele se desenvolveu desde sua gênese. É claro que a

formulação e implementação de políticas públicas é, primariamente, uma atribuição

do Legislativo e do Executivo, cujos membros são escolhidos democraticamente nos

termos da própria constituição, mas negar-se eficácia aos direitos fundamentais

simplesmente por dependerem de norma infraconstitucional integradora é submeter

os direitos fundamentais ao voluntarismo político e dessa forma privá-los de sua

própria essência (REIS, 2013, 227).

A própria previsão constitucional dos direitos materialmente constitucionais,

enquanto abertura da constituição para outros direitos fundamentais que não os

enumerados no rol expressamente constante na Constituição aponta para uma visão

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extensiva dos direitos fundamentais. Uma visão extensiva que, nos dizeres de

MIRANDA, adere a uma ordem de valores que ultrapassam as disposições

dependentes da capacidade ou da vontade do legislador constituinte, ao reconhecer

direitos que não ficam à mercê do poder político (2008, 14).

No caso do Direito à moradia, parecem não restar dúvidas, quanto ao seu caráter de

direito fundamental. É importante ressaltar inclusive que ele recebe proteção sobre

diversos aspectos diferentes na Constituição.

Como direito fundamental de caráter formal, encontra-se positivado, por força

da Emenda Constitucional No. 26 de 14 de fevereiro de 2000, que incluiu

expressamente a moradia no catálogo constitucional dos direitos fundamentais. Sob

o prisma dos direitos fundamentais materiais, é de se ressaltar a sua adoção no

Brasil pela incorporação de Tratados internacionais, já que o Brasil é signatário de

vários tratados internacionais que tratam o direito à moradia como um direito

humano.

Não se pode ignorar ainda que a Moradia é um direito fundamental também

em razão da cláusula de abertura dos direitos fundamentais constantes do art. 5º, §

1º, já que aquela aborda a figura dos direitos fundamentais decorrentes do regime e

dos princípios por ela abordados.

Assim considerando, e posto ser a Moradia elemento de salvaguarda da

própria vida humana e elemento de construção da dignidade que lhe deve ser

própria, é de se entender o direito à moradia como aceito pela Constituição Federal

como um direito fundamental material, muito antes de sua positivação expressa.

Além disso, o próprio artigo 182, ao enunciar os objetivos da política urbana,

traz o pleno desenvolvimento da função social da cidade, e dessa forma, informa a

moradia - uma das sub-funções básicas propiciadas pela cidade funcionalizada -

como um elemento caro ao texto constitucional.

O maior entrave que é colocado à efetivação de todos os direitos de cunho

prestacional por parte do Estado, é a questão do custo desses direitos. Sob os

argumentos de que os direitos sociais dependem de uma economia forte e de que o

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custo dos direitos sociais superam os recursos orçamentários, cria-se a chamada

“reserva do possível”, que busca legitimar por meio de ilusória racionalidade a

efetivação dos direitos sociais prestacionais aos recursos orçamentários. Nesse

sentido, a moradia se colocaria como um dos direitos de maior custo, principalmente

em razão da forma historicamente excludente com que o acesso à terra se dá no

Brasil. Observe-se ainda que, acesso à terra, não significa necessariamente

moradia, mas apenas a superação de um provável obstáculo. O acesso à habitação

pressupõe o espaço, mas demanda ainda uma série de outras intervenções estatais

no sentido de garantir moradia em condições adequadas, e por isso, muito mais caro

(REIS, 2013, 227).

Mas não se pode estabelecer uma relação de dependência entre a escassez

de recursos orçamentários e a efetivação de direitos. Afinal, todo o aparato estatal

tem um custo, inclusive quando é colocado em funcionamento para garantir os

chamados direitos de defesa. Assim, “estabelecer uma relação de continuidade

entre a escassez de recursos públicos e a afirmação de direitos acaba resultando

em ameaça a existência de todos os direitos” (BARRETO, 2003, 121).

Aqui se coloca então a questão que parece fundamental. É possível a uma

pessoa compelir o poder público a alguma prestação material que venha a lhe

assegurar o direito a uma moradia digna?

A moradia é um direito social, e como tal se encontra enumerada

expressamente entre os direitos fundamentais. Por outro lado, é compreendida no

contexto de uma norma constitucional programática, exigindo integração por normal

infraconstitucional para que possa ser concretizada, o que não nega, e nem pode, a

fundamentalidade do direito estabelecido. De outro lado, tem-se a questão da

limitação orçamentária, que se não é capaz de gerar verdadeiro argumento jurídico,

apresenta-se como obstáculo fático para a eficácia dos direitos sociais (REIS, 2013,

229).

Ora, sobre este último ponto, deve-se colocar a questão financeira do Estatal

não deve se sobrepor aos direitos fundamentais. A sua condição de fundamentais o

coloca no centro do ordenamento jurídico, a submeter toda a organização sócio-

política da república por sua condição de essenciais à vida humana. Assim se os

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recursos não são suficientes para atender os direitos fundamentais, devem ser

tirados de outras áreas onde não há essa relação essencialidade para a vida

humana:

Se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transporte, fomento econômico, serviço de dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua vida, integridade física e saúde. Um relativismo nessa área pode levar a “ponderações” perigosas e anti-humanistas do tipo “porque gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais? (KRELL, 2002, 53).

A dignidade humana, como princípio fundamental da república, deve

funcionar como vetor no sentido de se garantir um mínimo de efetivação dos direitos

sociais, inclusive o direito à moradia, como um meio de garantir o mínimo necessário

à própria existência humana, a sobrevivência do indivíduo com uma certa dignidade.

Se a limitação orçamentária do poder público se afigura como uma realidade com a

qual o direito tem que lidar, isso não quer dizer por outro lado que os direitos sociais

devem ser colocados como reféns do orçamento ou efetiváveis quando houver

sobras de caixa. A maximização dos direitos fundamentais exige no mínimo posturas

de todo o aparato estatal no sentido de garantir a máxima efetividade dos direitos

fundamentais e, garantir sua efetivação como prioridade dada a sua

fundamentalidade.

No que tange a questão da eficácia imediata dos direitos fundamentais, o fato

das normas constitucionais programáticas não regularem imediatamente um objeto,

mas pré-estabelecerem a si mesmo um programa de ação com respeito ao próprio

objeto e se obrigando a não se afastar dele sem um motivo, infere que o direito à

moradia impõe a poder público o dever de atuar positivamente em sua promoção e

proteção enquanto meta constitucionalmente estabelecida, no sentido de

proporcionar moradia digna a toda a população. O fato da norma ser estabelecida

como programática, não implica em perda de fundamentalidade pelos direitos

sociais. Se por um lado tem eficácia eventualmente limitada, por outro possibilitam

inúmeros caminhos de proteção, ou mesmo, a criatividade do poder público em

fomentar o direito ali assegurado.

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Assim, a se considerar exigível no mínimo não o direito a moradia

propriamente, mas condutas estatais inequívocas, no sentido de promover o direito a

moradia.

No caso brasileiro, pode-se considerar nesse contexto, o próprio capítulo

destinado à Ordem Urbana, onde, entre outras coisas tem-se a flexibilização das

regras, e dessa forma facilitação, da aquisição de propriedade pela usucapião a

partir da Constituição Federal de 1988, permitindo a aquisição por posse ininterrupta

e justa, num prazo de 5 anos de aquisição de imóvel para moradia própria e da

família.

No âmbito da legislação ordinária, pode-se destacar a edição do Estatuto da

Cidade, Lei No. 10.257/2001, onde em mais um passo importante o legislador

admitiu a figura da Usucapião Coletiva Urbana, instrumento de grande importância

para regularização de assentamentos habitacionais urbanos informais.

Mais recentemente, houve a implementação do programa governamental

“Minha Casa, Minha vida”, instituído pela Lei 11.977 de 2009, através do qual o

governo federal criou alguns mecanismos facilitadores da aquisição da casa própria.

São importantes avanços em termos de concretização de direitos

fundamentais, podendo ser considerados inclusive sem parâmetros em nossa

história constitucional, no sentido de significarem certo empenho do Estado

brasileiro. Por outro lado, na medida em que se atribui a característica

universalidade aos direitos fundamentais, é necessário que o aparato estatal tome

medidas mais amplas, no sentido de permitir a todos o direito de desfrutar de

moradia condizente com a dignidade havida em todo ser humano, especialmente

quando trata-se da questão no âmbito do Brasil, um país marcado por

desigualdades sociais históricas.

Tratada a questão do Direito Social à Moradia, passa-se a abordar a questão

ambiental, sua proteção constitucional e o tratamento dado à áreas de proteção

ambiental no ordenamento constitucional brasileiro.

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2.3. - O MEIO AMBIENTE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL.

Os diversos problemas globais de ordem natural como a extinção de espécies

animais e vegetais, as alterações climáticas, a redução vertiginosa das florestas e a

poluição que nos trazem problemas práticos imediatos, aliado a busca da satisfação

de novas necessidades da busca qualidade de vida, deixam claro que é necessária

uma mudança de postura do homem frente à natureza. A cada ano milhares de

dados levantados em pesquisas científicas tornam mais evidente que o

desenvolvimento econômico das sociedades humanas, a qualidade de vida dessas

comunidades e até mesmo a própria sobrevivência do ser humano como espécie

estarão seriamente comprometidos sem uma gestão eficiente dos recursos naturais

e sem medidas de saneamento do planeta.

O crescimento da consciência ecológica deve-se principalmente aos impactos

ambientais provocados pelo ser humano sobre a terra que tem se refletido sobre a

própria humanidade, e também da compreensão de que as transformações

provocadas ocorrem numa escala e velocidade muito maior do que o planeta é

capaz de recuperar.

Os efeitos da poluição industrial, o uso de combustíveis fósseis como matriz

energética básica, o processo de desertificação que ameaça a capacidade de

produzir alimentos, a destruição das florestas, são fatos que deixam claro a limitação

e a fragilidade dos recursos naturais, enquanto que por outro lado a população

mundial vem crescendo exponencialmente. Basta observar que a população mundial

simplesmente duplicou nos últimos quarenta anos. A população brasileira no mesmo

ritmo de crescimento, mais do que dobrou em quarenta anos e se considerado o

início e o fim do século XX, multiplicou-se por dez.

De fato, como é comumente apontado pelos estudiosos do Meio Ambiente, a

crescente degradação ambiental é a responsável pelo início da tutela estatal do

meio ambiente, através do que JOSÉ AFONSO DA SILVA chama de despertar da

“consciência ecológica” pela população, uma vez que chamou a atenção das

autoridades para o problema da degradação e destruição do meio ambiente, natural

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e cultural, de forma sufocante (2004, 33). Da necessidade de proteção jurídica ao

meio ambiente, com o combate à degradação ambiental e objetivando o equilíbrio

ecológico, foram surgindo em todos os países as legislações ambientais, criando

organismos e estruturas jurídicas.

No entanto, essa legislação apresenta-se bastante variada, dispersa e

confusa. Se por um lado têm-se normas ambiciosas, de base ecológica, que tentam

relacionar os elementos envolvidos na situação para normatizar uniformemente as

regras relativas ao meio ambiente, por outro é possível observar normas que

constituem simples adequações da legislação sanitária e higienista do século XIX e

também da que em outras épocas, protegiam a paisagem, a fauna e a flora.

No âmbito do Direito Constitucional, somente as constituições do pós-guerra

passam a se referir ao meio ambiente. É assim com a Constituição da República

Federal da Alemanha de 1949 ao tomar como prerrogativa da união disciplinar

normas gerais sobre a caça, a proteção da natureza e a estética da paisagem (art.

75, 3º), e ao enunciar como prerrogativa concorrente da União e dos Estados o

combate à poluição (art. 74, 4º) (SILVA, 2004, 43).

Num sentido mais ambientalista temos as Constituições promulgadas no

antigo bloco socialista na década de 70, como a búlgara de 1971, a cubana de 1976

e a soviética de 1977, sendo que as duas primeiras estabelecem como dever do

Estado e da Sociedade a salvaguarda da natureza e dos recursos naturais e a última

assegura a proteção da natureza no interesse das gerações presentes e futuras

(SILVA, 2004, 45).

No entanto, é unanimidade que cabe ao ordenamento constitucional

português o vanguardismo quanto ao tema, já que foi a Constituição da República

Portuguesa de 1976 que deu a formulação contemporânea ao tema,

correlacionando-o com o direito à vida, quando institui em seu art. 66 o direito de

todos a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado e o dever

de todos de defender esse ambiente. Torna-se incumbência do Estado prevenir e

controlar a degradação ambiental e a promoção de políticas públicas no sentido de

proteger paisagens e sítios, conservar a Natureza, e preservar valores culturais de

interesse histórico ou artístico. Também trata como dever do Estado promover o

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aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de

renovação e a estabilidade ecológica (SILVA, 2004, 45).

No plano normativo internacional, é importante lembrar a Conferência das

Nações Unidas de 1972 em Estocolmo, que institui a Convenção relativa à proteção

do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, que reconhece o interesse excepcional

sobre o patrimônio ambiental e cultural e o caráter incomparável e insubstituível

desses bens (COMPARATO, 2003, 382), bem como reconhece como direito

fundamental do homem à qualidade do meio ambiente:

O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada em meio cuja qualidade lhe permite levar uma vida digna e gozar de bem estar e tem a obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presentes e futuras. (SILVA, 2004, 59).

No plano da legislação ordinária, o marco inicial do Direito Ambiental é a Lei

Federal No. 6.938 de 31 de agosto de 1981, ainda vigente, que instituiu a Política

Nacional do Meio Ambiente, instituiu o SISNAMA – Sistema Nacional do Meio

Ambiente e estabeleceu as diretrizes gerais, dando início a implementação de uma

política ambiental no Brasil.

Antes dela, é possível apontar normas jurídicas de caráter ambiental em

vários dispositivos legais, como o Código de Águas (Decreto-lei No. 852 de 11 de

novembro de 1938), o Código Florestal (Lei 4.771 de 15 de janeiro de 1965), o

Código de Caça (Lei No. 5.197, de 3 de janeiro de 1967) e o Código Brasileiro do Ar

(Lei No. 6.833 de 20 de setembro de 1980), mas nenhuma delas tem uma

preocupação especificamente ambiental, tratando apenas lateralmente do tema. Um

exemplo emblemático desta situação é o Estatuto da Terra (Lei No. 4.504, de 30 de

novembro de 1964), que não tratando diretamente de Direito Ambiental, estabeleceu

como elemento caracterizador da função social da propriedade rural, a asseguração

da conservação dos recursos naturais (art. 2, § 1º, c); estabeleceu a possibilidade de

desapropriação por interesse social com o fim específico de efetuar obras de

renovação, melhoria e valorização dos recursos naturais (art. 18, f); e facultou a

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criação de áreas de proteção à fauna, à flora ou a outros recursos naturais, a fim de

preservá-los de atividades predatórias (art. 18, h).

Todas essas normas demonstram o paulatino crescimento da preocupação do

Brasil com a questão ambiental, que começa insipiente, tratado incidentalmente por

normas esparsas, mas à medida que a preocupação social com o meio ambiente

aumenta a proteção Estatal ao meio ambiente também se aperfeiçoa. No entanto,

até a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, o tratamento ao meio ambiente era

indireto. Preocupava-se não com o meio ambiente em si, mas com os processos

econômicos, que dependiam – como ainda dependem - dos recursos naturais.

No âmbito constitucional brasileiro, a Constituição de 1988 foi a primeira a

tratar claramente da questão ambiental. O núcleo normativo do Direito Ambiental na

Constituição encontra-se no art. 225 de cujo caput é possível se extrair o status da

questão ambiental no texto constitucional:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

De fato, o Direito ao Ambiente sadio e ecologicamente equilibrado é há muito

considerado pela doutrina e pela jurisprudência com uma extensão do direito à vida.

Assim, quando se fala em tutela do meio ambiente, tem-se em jogo formas de

garantir a qualidade de vida humana, pois aquele lhe é essencial. O equilíbrio

ecológico nessa relação tão direta com o ser humano faz do direito ao ambiente um

direito fundamental da pessoa humana, em função dos elementos e valores que

congrega, como saúde, segurança, cultura, identidade. Preservar o patrimônio

ambiental é garantir vida sadia e com qualidade. Garantir vida com qualidade é

promover a dignidade da pessoa humana.

O estado de degradação ambiental chega a um ponto tal que, não apenas a

qualidade de vida que preocupa, mas a própria existência de vida. São muitos os

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estudos que apontam que, em se mantendo o atual ritmo de degradação ambiental,

como o aquecimento global, extinção em massa de espécies de seres vivos, é

possível que o planeta no futuro em certo momento não seja mais capaz de suportar

a vida humana.

Sob esse ponto de vista, não restam dúvidas de que o direito ao ambiente

sadio é também um direito fundamental de todos no ordenamento jurídico brasileiro.

Se não se encontra previsto expressamente no Título II da Constituição, onde estão

enumerados formalmente alguns direitos fundamentais, o direito ao meio ambiente

equilibrado, por este abranger elementos essenciais à vida, há que ser considerado

direito fundamental, sendo mesmo uma nova forma de proteção ao direito à vida e,

portanto, direito materialmente fundamental, na forma de direito implícito, como

permite o art. 5, § 2º (REIS, 2011, 102).

Também não se pode esquecer que com baliza no mesmo dispositivo

constitucional, o direito ao ambiente é direito fundamental decorrente de tratado

internacional, já que a Convenção das Nações Unidas relativa à Proteção do

Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (elaborada em Estocolmo na Suécia em

1972), foi promulgada pelo Brasil pelo Decreto No. 80.978 de 12 de dezembro de

1977 e a Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica (elaborada

no Rio de Janeiro em 1992) que foi promulgada pelo Brasil em Decreto No. 2.519 de

16 de março de 1998.

A tutela do meio ambiente, dessa forma, se faz assim imperiosa porque

proteger a qualidade de meio ambiente é proteger as condições essenciais para a

própria existência de vida.

Além disso, considerando-se que a Constituição Federal de 1988 insere a

defesa do meio ambiente como princípio da ordem econômica, significa que toda a

atividade produção econômica do país está condicionada ao respeito ao meio

ambiente7.

7 Dispõe o art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre

iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (....)

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Pelo texto constitucional, a ordem econômica não tem outro fim que não

assegurar a todos uma existência digna conforme os ditames da justiça social. Não

é possível se falar em justiça social sem se garantir a todas as pessoas meios

materiais para que possa viver com qualidade de vida, conforto conforme suas

necessidades físicas e psíquicas.

Ora, não é outro o fim da tutela do meio ambiente senão tomar medidas no

sentido de garantir, sob o ponto de vista de recursos naturais, a existência desses

meios. Se a tutela do direito ambiental em si não garante justiça social – e nem é

seu fim garantir -, por outro lado, seria impossível concreção de justiça social sem a

preservação dos recursos naturais e dos diversos fenômenos biológicos do planeta.

A função do direito ambiental é justamente garantir a preservação e a continuidade

desses recursos para que sejam de acesso universal, das presentes e futuras

gerações.

Inegável, portanto, a importância conferida pela Constituição da República a

questão ambiental e o status constitucional conferido a tutela do meio ambiente,

além da própria compreensão de que o direito ambiental – as normas jurídicas de

proteção ao meio ambiente equilibrado – não tem outra razão de ser que não o

direito ao ambiente, assim compreendido como o direito fundamental de cada

pessoa a um ambiente sadio e que lhe proporcione qualidade de vida.

2.3.1. – Áreas de Preservação Permanente e seu regime jurídico.

O Estabelecimento de Áreas de Preservação Permanente enquadra-se como

uma das medidas fixação de áreas ambientais especialmente protegidas. Essa

proteção de áreas específicas, nelas incluídas em regra todos os seus recursos

VI – Defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.

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naturais, tem como objetivo a conservação de espaços que merecem atenção

especial do poder público.

Embora já estabelecidas no Código Florestal de 1965, devem ser compreendidas à

luz da legislação ambiental posterior, especialmente da Lei de Política Nacional do

Meio Ambiente e, logicamente da própria constituição.

Encontram-se identificadas pelo art. 4º da Lei No. 12.651 de 25 de maio de

2012, com alterações introduzidas pela Lei No. 12.727 de 17 de outubro 20128.

Conforme definição da própria lei in comento, as Áreas de Preservação

Permanente são áreas protegidas, cobertas ou não por vegetação nativa, com a

8 Art. 4o Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos

desta Lei: I - as faixas marginais de qualquer curso d‟água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: a) 30 (trinta) metros, para os cursos d‟água de menos de 10 (dez) metros de largura; b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d‟água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura; c) 100 (cem) metros, para os cursos d‟água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura; d) 200 (duzentos) metros, para os cursos d‟água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura; e) 500 (quinhentos) metros, para os cursos d‟água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros; II - as áreas no entorno dos lagos e lagoas naturais, em faixa com largura mínima de: a) 100 (cem) metros, em zonas rurais, exceto para o corpo d‟água com até 20 (vinte) hectares de superfície, cuja faixa marginal será de 50 (cinquenta) metros; b) 30 (trinta) metros, em zonas urbanas; III - as áreas no entorno dos reservatórios d‟água artificiais, decorrentes de barramento ou represamento de cursos d‟água naturais, na faixa definida na licença ambiental do empreendimento; IV - as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d‟água perenes, qualquer que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros; V - as encostas ou partes destas com declividade superior a 45°, equivalente a 100% (cem por cento) na linha de maior declive; VI - as restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; VII - os manguezais, em toda a sua extensão; VIII - as bordas dos tabuleiros ou chapadas, até a linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais; IX - no topo de morros, montes, montanhas e serras, com altura mínima de 100 (cem) metros e inclinação média maior que 25°, as áreas delimitadas a partir da curva de nível correspondente a 2/3 (dois terços) da altura mínima da elevação sempre em relação à base, sendo esta definida pelo plano horizontal determinado por planície ou espelho d‟água adjacente ou, nos relevos ondulados, pela cota do ponto de sela mais próximo da elevação; X - as áreas em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que seja a vegetação; XI - em veredas, a faixa marginal, em projeção horizontal, com largura mínima de 50 (cinquenta) metros, a partir do espaço permanentemente brejoso e encharcado.

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função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade

geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo

e assegurar o bem-estar das populações humanas.

Trata-se a instituição dessas áreas de intervenção do Estado na propriedade

com escopo ambiental, se inserindo no âmbito do poder de polícia administrativa, já

que é pelo exercício poder de polícia que o Estado estabelece limitações, vedações

ou condições sobre o uso e gozo de bens, direitos e sobre o exercício de certas

atividades. Deve-se considerar aqui o poder de polícia no sentido amplo, conforme

BANDEIRA DE MELLO, segundo o qual

A expressão, tomada em sentido amplo, abrange tanto os atos do Legislativo quanto do Executivo. Refere-se ao complexo de medidas do Estado que delineia a esfera juridicamente tutelada da liberdade e da propriedade dos cidadãos. Por isso, nos Estados Unidos, a voz police power reporta-se sobretudo às normas legislativas através das quais o Estado regula os direitos privados, constitucionalmente atribuídos aos cidadão, em proveito dos interesses coletivos, como bem anota Caio Tácito. (2011, 829)

Trata-se pois de uma intervenção na propriedade atendendo inclusive à

exigência constitucional sua vinculação a uma função social, para atender preceito

de ordem pública, no caso referente ao direito fundamental ao ambiente.

O fundamento constitucional da instituição de APP‟s está no § 1º do art. 225

que estabelece a necessidade de medidas específicas para efetivação do direito ao

ambiente equilibrado9.

9 Art. 225.

(...) § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; (...) III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (...)

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O direito ao ambiente surge assim como um direito fundamental e

metaindividual, inerente à própria pessoa humana e indispensável à vida, e que

congrega várias obrigações impositivas. Essas obrigações podem ser de ordem

negativa, dirigidas ao próprio Estado e às pessoas, no sentido de se abster de

comportamentos que lesionem o meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de

uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, e de ordem positiva para

o Estado, no sentido de promover políticas públicas no sentido de conservação

ambiental, como forma de garantir a efetividade do direito constitucional ao

ambiente.

O conceito de propriedade funcional atrelado a um fim ambiental implica

necessariamente na visão do direito proprietário, que além das faculdades

tradicionais do proprietário, traz o dever de fazer um uso racional e adequado do

bem no qual há interesses ambientais, de forma que ela seja preservada para

atender as necessidades das gerações futuras, para que essas possam desenvolver

também as suas potencialidades e tenham garantida a qualidade de vida, mas sem

negar às gerações presentes o desfrute dessa propriedade.

Nesse sentido, tem-se que a natureza da intervenção promovida pela

instituição de Áreas de Preservação Permanente pela legislação não cria uma

restrição completa à exploração do bem, caso que inclusive poderia resultar até

mesmo em desapropriação indireta, mas estabelecimento de limitações pontuais,

que atendam inclusive a parâmetros de razoabilidade (FURTADO, 2007, 790).

Assim, as APP são regidas pelo regime normal de propriedade, não lhe sendo

reconhecido um regime distinto em razão das limitações que lhe são impostas pelo

Poder Público. De fato as restrições ou condições serão aquelas exclusivamente

impostas por lei, caso em que a imposição de norma de ordem pública, derrogará o

regime de propriedade privada.

De fato, quanto às áreas de APP, pode-se visualizar o problema sobre dois

ângulos distintos: o problema da invasão, quando a ocupação se dá em terras

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

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públicas ou particulares invadidas, onde se terá um problema também relativo à

propriedade, e o problema da construção irregular, onde o problema não será

necessariamente a propriedade, mas a edificação em si. O fato de uma área ser

considerada legalmente como APP não implica a sua definição como bem extra

commercium, podendo a mesma ser objeto de todos os negócios jurídicos lícitos

compatíveis. O problema é a construção em si, feita sem qualquer parâmetro

técnico, sem fiscalização de órgão público que ateste segurança ou estabilidade,

que muitas vezes coloca em risco a vida e a incolumidade física do próprio

construtor, e ainda ofende outros bens jurídicos tutelados, como o caso do meio

ambiente, onde o regime de APP entre outras coisas protege a vegetação

diretamente e, indiretamente, o solo e os recursos hídricos.

O que se observa em muitos casos, é a invasão consentida, a venda informal

de terrenos por meio de contratos-de-gaveta, o comércio dessas áreas – que em

princípio não é vedado pelo ordenamento jurídico, observadas as normas relativas a

parcelamento e registro de imóveis – como se lotes urbanos fossem, e o silêncio

conivente ou negligente do Poder Público, que termina por reconhecer tacitamente

essas ocupações.

A principal obrigação que decorre de lei sobre as APP é a obrigação de

conservação de vegetação (art. 7º da Lei No. 12.651 de 2012) que via de regra não

poderão ser suprimidas, exceto em situações específicas, enumeradas

taxativamente pela própria legislação.

O regime estabelecido por lei para as APP‟s, no caso de supressão da

vegetação transforma a obrigação de recomposição em obrigação propter rem, de

forma que ela estará vinculada ao bem, e mesmo em caso de transmissão da

propriedade, incumbirá ao sucessor, o dever de recomposição.

Admite a legislação a intervenção ou a supressão de vegetação nativa, em

caráter excepcional, em APP‟s nas hipóteses de implantação de obras, projetos ou

atividades relacionados à utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto

ambiental previstas na própria lei10.

10

Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por:

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104

VIII - utilidade pública:

a) as atividades de segurança nacional e proteção sanitária; b) as obras de infraestrutura destinadas às concessões e aos serviços públicos de transporte, sistema viário, inclusive aquele necessário aos parcelamentos de solo urbano aprovados pelos Municípios, saneamento, gestão de resíduos, energia, telecomunicações, radiodifusão, instalações necessárias à realização de competições esportivas estaduais, nacionais ou internacionais, bem como mineração, exceto, neste último caso, a extração de areia, argila, saibro e cascalho; c) atividades e obras de defesa civil; d) atividades que comprovadamente proporcionem melhorias na proteção das funções ambientais referidas no inciso II deste artigo; e) outras atividades similares devidamente caracterizadas e motivadas em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto, definidas em ato do Chefe do Poder Executivo federal; IX - interesse social: a) as atividades imprescindíveis à proteção da integridade da vegetação nativa, tais como prevenção, combate e controle do fogo, controle da erosão, erradicação de invasoras e proteção de plantios com espécies nativas; b) a exploração agroflorestal sustentável praticada na pequena propriedade ou posse rural familiar ou por povos e comunidades tradicionais, desde que não descaracterize a cobertura vegetal existente e não prejudique a função ambiental da área; c) a implantação de infraestrutura pública destinada a esportes, lazer e atividades educacionais e culturais ao ar livre em áreas urbanas e rurais consolidadas, observadas as condições estabelecidas nesta Lei; d) a regularização fundiária de assentamentos humanos ocupados predominantemente por população de baixa renda em áreas urbanas consolidadas, observadas as condições estabelecidas na Lei n

o 11.977, de 7 de julho de 2009;

e) implantação de instalações necessárias à captação e condução de água e de efluentes tratados para projetos cujos recursos hídricos são partes integrantes e essenciais da atividade; f) as atividades de pesquisa e extração de areia, argila, saibro e cascalho, outorgadas pela autoridade competente; g) outras atividades similares devidamente caracterizadas e motivadas em procediment administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional à atividade proposta, definidas em ato do Chefe do Poder Executivo federal; X - atividades eventuais ou de baixo impacto ambiental: a) abertura de pequenas vias de acesso interno e suas pontes e pontilhões, quando necessárias à travessia de um curso d‟água, ao acesso de pessoas e animais para a obtenção de água ou à retirada de produtos oriundos das atividades de manejo agroflorestal sustentável; b) implantação de instalações necessárias à captação e condução de água e efluentes tratados, desde que comprovada a outorga do direito de uso da água, quando couber; c) implantação de trilhas para o desenvolvimento do ecoturismo; d) construção de rampa de lançamento de barcos e pequeno ancoradouro; e) construção de moradia de agricultores familiares, remanescentes de comunidades quilombolas e outras populações extrativistas e tradicionais em áreas rurais, onde o abastecimento de água se dê pelo esforço próprio dos moradores; f) construção e manutenção de cercas na propriedade; g) pesquisa científica relativa a recursos ambientais, respeitados outros requisitos previstos na legislação aplicável; h) coleta de produtos não madeireiros para fins de subsistência e produção de mudas, como sementes, castanhas e frutos, respeitada a legislação específica de acesso a recursos genéticos; i) plantio de espécies nativas produtoras de frutos, sementes, castanhas e outros produtos vegetais, desde que não implique supressão da vegetação existente nem prejudique a função ambiental da área; j) exploração agroflorestal e manejo florestal sustentável, comunitário e familiar, incluindo a extração de produtos florestais não madeireiros, desde que não descaracterizem a cobertura vegetal nativa existente nem prejudiquem a função ambiental da área;

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Tratando especificamente da ocupação humana dessas áreas de proteção, a

legislação de proteção às APP‟s traz a possibilidade de autorização, em caráter

excepcional pelo Poder Público, de intervenção ou supressão de vegetação, para

fins de regularização fundiária de interesse social de área urbanas consolidadas

ocupadas por população de baixa renda, em caso de restingas e manguezais, nos

quais a função ecológica esteja comprometida (art. 8, § 2º).

Embora do ponto de vista do direito à moradia seja uma medida louvável, a

possibilidade de intervenção em APP‟s para fins de regularização fundiária de área

ocupada por população de baixa renda, se restringe às restingas e aos manguezais

deixando de fora as outras áreas de APP‟s que historicamente são ocupadas, e até

mesmo com muito mais frequência que restingas e manguezais, como as margens

de rios, por exemplo.

É de se observar ainda, sob esse mesmo aspecto da moradia, que o Código

Florestal inclui entre as hipóteses de utilidade pública planos ou atividades de

regularização fundiária de Áreas de Preservação Permanente ocupadas

predominantemente por população de baixa renda (art. 3, IX, d). No entanto,

submete essa regularização à Lei No. 11.977 de 7 de julho de 2009 (Institui o

Programa Minha Casa Minha Vida e dispõe sobre a regularização fundiária de

assentamentos localizados em áreas urbanas) e esta, ao tratar especificamente do

tema estabelece um limite temporal cabal à regularização fundiária, permitindo

apenas que as em áreas de APP ocupadas até 31 de dezembro de 2007, e inseridas

em contexto de área urbana consolidadas possam ser regularizadas, mediante

estudo técnico que comprove que a regularização implica em melhoria das

condições ambientais em relação a ocupação irregular até então existente.

Ao fixar o prazo de ocupação sujeitável a regularização como até 31 de

dezembro de 2007, pretendeu a Lei fixar um marco temporal de forma a permitir a

regularização das áreas de ocupação consolidadas tirando-as da ilegalidade e

k) outras ações ou atividades similares, reconhecidas como eventuais e de baixo impacto ambiental em ato do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA ou dos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente;

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concedendo algum tipo de segurança à posse dos ocupantes, mas de forma a não

tornar a legislação ambiental letra morta, visto ser a ocupação com construções de

moradias uma das formas mais frequentes de supressão ou intervenção ilegal em

APP. Criava-se assim, um verdadeiro sistema de anistia para as ocupações

irregulares, desde que preenchessem os requisitos legais e fossem anteriores a 31

de dezembro de 2007, e dali por diante, ante a impossibilidade de regularização

novas ocupações não fossem feitas. Mas de fato, a própria evolução histórica do

desenvolvimento urbano no Brasil mostra o pouco ou nenhum controle que o Estado

teve e tem sobre o desenvolvimento urbano, e a incapacidade de planejamento de

políticas efetivas de desenvolvimento urbano e proteção ambiental.

Tudo estaria bem se a partir da vigência da Lei No. 11.297/2009 passasse a

haver um controle efetivo dessas áreas de forma que não fossem mais ocupadas

por construções de morada irregulares, mas de fato continuam sendo, como se nada

tivesse acontecido desde então, e o Poder Público, segue negligente e ineficiente no

controle desses espaços protegidos e ocupados por construções irregulares, que

continuam a se reproduzir.

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2.4 – INTERSEÇÕES ENTRE O DIREITO À MORADIA E O DIREITO AO MEIO

AMBIENTE EQUILIBRADO.

Como relatado no primeiro capítulo deste trabalho, uma das consequências

da forma como se deu a urbanização no Brasil é a dificuldade no acesso à terra

urbana, em razão do seu alto custo, o que afasta da população de baixa renda a

possibilidade de conseguir habitações regulares, e a compele para áreas pouco

atrativas, seja por serem perigosas, inóspitas, por estarem legalmente fora do

comércio, ou ainda por não estarem sujeitas a parcelamento e edificação, como

ocorrem com as Áreas de Preservação Permanente ou outras áreas que de alguma

forma contemplem algum tipo de proteção ambiental.

Isso cria a uma situação de conflito entre o Direito à Moradia e o Direito ao

Meio Ambiente equilibrado. CANOTILHO afirma que o fato de a Constituição

constituir um sistema aberto de princípios, insinua já, que podem existir fenômenos

de tensão entre os vários princípios estruturantes ou entre os restantes princípios

constitucionais gerais e especiais (1998, 138). Este é o caso do sistema jurídico

brasileiro, cuja constituição traz em seu bojo extenso rol de direitos fundamentais,

como visto de aplicação imediata e que, além disso, dispõe de uma cláusula de

abertura, que permite o reconhecimento de direitos além dos previstos

expressamente no corpo do texto constitucional (art. 5, §2º) e que parte de uma

concepção pluralista de sociedade.

Como visto, se por um lado tem-se o direito ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado, um direito fundamental decorrente e de natureza

coletiva amplamente respaldado em diversos dispositivos constitucionais, de outro

lado tem-se o direito à moradia, arrolado entre os direitos fundamentais sociais, de

inegável importância, cuja realização coaduna com o conjunto de valores estatuídos

ao longo do texto constitucional.

Trata-se de um conflito que não se desenvolve naturalmente, não são direitos

por sua natureza conflitantes, mas o conflito se desenvolve principalmente em razão

da debilidade do poder público de por um lado promover políticas públicas

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adequadas de acesso à terra urbana e habitação adequada, e, por outro lado,

controlar adequadamente bens de interesse ambiental, conforme inclusive dita a

própria Constituição.

Tem-se um conflito de dois direitos e valores constitucionais, igualmente

protegidos pelo texto constitucional, e que encontram fulcro no mesmo princípio

constitucional básico, a realização da dignidade da pessoa humana. Partindo-se

desse pressuposto e de uma compreensão contemporânea de princípios

constitucionais, que nos dizeres de SAULE JÚNIOR, exercem a função de “manter

vivos os valores fundamentais como mandamentos superiores para a compreensão,

interpretação e integração das normas que integram a ordem jurídica de modo a

atender às finalidades e aos objetivos fundamentais de um Estado Democrático de

Direito”(2004, 142). Estando ambos os direitos voltados a uma mesma gama de

valores a serem realizados, deve-se buscar uma conciliação entre eles, uma

aplicação de cada qual em graduações variadas, conforme sua relevância e as

possibilidades fáticas e jurídicas que se apresentem no caso concreto.

Assim sendo, não se deve compreender nenhum dos dois direitos de forma

estanque e absoluta, mas compreendidos dentro do contexto geral do sistema

jurídico constitucional. Deve-se pensar necessariamente num cenário de

coexistência desses direitos, entre si e com os demais princípios e direitos contidos

no sistema, buscando-se a aproximação de ambos os direitos como instrumentos de

realização da pessoa humana, equacionando-os, de forma que se não tenha uma

situação ideal, mas ao menos um cenário factível onde nenhum deles seja

considerado absoluto e indeclinável, ao mesmo tempo que também não se

sacrifique qualquer um.

O próprio Estatuto da Cidade, reflete a busca da compatibilização desses dois

direitos em seu art. 2º, I, quando constrói um conceito de cidades sustentáveis que

se baseia tanto na garantia de acesso à terra urbana e moradia, como pela busca do

saneamento ambiental entre outros direitos para as presentes e futuras gerações.

A própria Lei No. 11.977/09, que dispõe sobre o Programa Minha Casa Minha

Vida, ao dispor sobre a regularização fundiária de assentamentos localizados em

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áreas urbanas, dentro desse mesmo espírito, busca conciliar o direito ao ambiente e

a moradia, conforme explicita claramente em seu art. 46:

A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Além disso, como visto anteriormente, dispositivos do Código Florestal e da

Lei do Programa Minha Casa Minha Vida buscam até certo ponto conciliar direito à

moradia e ao meio ambiente equilibrado, ao admitir a possibilidade de regularização

fundiária em APP. No caso do Estado de Minas Gerais, a Lei Estadual No. 20.922

de 16 de outubro de 2013, que dispõe sobre as Políticas florestal e de proteção a

biodiversidade no Estado, em seu art. 17, dispõe que será respeitada a ocupação

antrópica consolidada em área urbana, desde que atendidas as recomendações do

poder público. Considera a lei ocupação Antrópica consolidada em área urbana o

uso alternativo do solo em Área de Preservação Permanente - APP - definido no

plano diretor ou projeto de expansão aprovado pelo município e estabelecido até 22

de julho de 2008, por meio de ocupação da área com edificações, benfeitorias ou

parcelamento do solo.

Neste mesmo sentido a própria Medida Provisória No. 2.220 de 2001, que

dispõe sobre a Concessão de uso especial para fins de moradia de imóvel público

situado em área urbana11, determina que é facultado ao poder público assegurar a

concessão do uso para fins de moradia em outro local, entre outros motivos, no caso

11 Concessão especial para fins de moradia trata-se da garantia dada àquele que até 30 de julho de

2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, de concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. Tal direito também poderá ser concedido coletivamente no caso de área de mais de duzentos e cinquenta metros quadrados ocupada por população de baixa renda, quando não for possível individualizar o terreno ocupado por cada possuidor, desde que preencham os mesmos requisitos temporais e objetivos da concessão individual.

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do imóvel ocupado ser de interesse da preservação ambiental e da proteção dos

ecossistemas naturais (art. 5º, III, parte final).

No âmbito do judiciário as decisões não são uniformes e bastante

controversas. Cabe-se ressaltar primeiramente que âmbito do Supremo Tribunal

Federal há uma única decisão colegiada que verse sobre a questão de eventual

conflito entre direito à moradia e direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado. Trata-se do Agravo Regimental em Recurso Ordinário No. 605.482-SC,

julgado em 10-09-2013, no qual não obstante a alegação do recorrente de seu

imóvel de morada encontrar-se o mesmo em área urbana consolidada e

antropizada, o STF manteve o entendimento pela demolição do mesmo, por estar

em Área de Preservação Permanente.

Quanto ao Superior Tribunal de Justiça, existem alguns poucos julgados que

envolvem o tema, merecendo destaque como emblemático o Recurso Especial No.

403.190, cujo relator foi o Min. João Otávio de Noronha, que tratou de Ação Civil

Pública ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo, visando a reparação de

danos ao meio ambiente decorrente de loteamento clandestino instalado nas

margens da represa Billings, cuja ementa se transcreve:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE – OBRIGAÇÃO DE FAZER – MATA ATLÂNTICA – RESERVATÓRIO BILLINGS – LOTEAMENTO CLANDESTINO – ASSOREAMENTO DA REPRESA – REPARAÇÃO AMBIENTAL

1. A destruição ambiental verificada nos limites do Reservatório Billings – que serve de água grande parte da cidade de São Paulo –, provocando assoreamentos, somados à destruição da ata Atlântica, impõe a condenação dos responsáveis, ainda que, para tanto, haja necessidade de se remover famílias instaladas no local de forma clandestina, em decorrência de loteamento irregular implementado na região.

2. Não se trata tão-somente de restauração de matas em prejuízo de famílias carentes de recursos financeiros, que, provavelmente deixaram-se enganar pelos idealizadores de loteamentos irregulares na ânsia de obterem moradias mais dignas, mas de preservação de reservatório de abastecimento urbano, que beneficia um número muito maior de pessoas do que as residentes na área de preservação. No conflito entre o interesse público e o particular há de prevalecer aquele em detrimento deste quando impossível a conciliação de ambos.

3. Não fere as disposições do art. 515 do Código de Processo Civil acórdão que, reformando a sentença, julga procedente a ação nos exatos termos do

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pedido formulado na peça vestibular, desprezando pedido alternativo constante das razões da apelação.

4. Recursos especiais de Alberto Srur e do Município de São Bernardo do Campo parcialmente conhecidos e, nessa parte, improvidos.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial No. 403.190/SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, Julgado em 27 junho de 2006.

Observa-se, nesse caso, que o Acórdão do STJ confirmou a decisão da

instância inferior que determinou a desocupação da área e a reparação do dano

ambiental, preocupando-se especialmente com a questão do abastecimento hídrico

da cidade de São Paulo, mas também observa-se clara preocupação do com direito

fundamental à moradia, revelada na pela forma parcimoniosa com que tratou a

necessidade de demolições.

Outro julgado interessante, neste caso no âmbito penal, mas que traduz a

mesma questão de conflito entre direito à moradia e ao meio ambiente é o

julgamento do Habeas Corpus No. 124.820. Nesse caso, o tribunal entendeu pela

conduta atípica do paciente, que inicialmente havia sido enquadrado no art. 40 da

Lei 9.605/1998 por causar danos a unidade de conservação, ao construir uma casa

de 22 m2 para morar. O tribunal entendeu não configurar crime contra o meio

ambiente em razão da insignificância da lesão ante a relevância do direito de morar,

garantido na Constituição. Segue a ementa do julgado:

PENAL. DANO AO MEIO AMBIENTE (ART. 40 DA LEI N. 9.605/98). CONSTRUÇÃO DE CASA DE ADOBE. DELITO INSTANTÂNEO DE EFEITOS PERMANENTES. CONDUTA ANTERIOR À LEI INCRIMINADORA. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. CRIME. INEXISTÊNCIA. DOLO DE DANO. AUSÊNCIA. MORADIA. DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL. ÁREA CONSTRUÍDA. 22 (VINTE E DOIS) METROS QUADRADOS. INSIGNIFICÂNCIA. PROCESSO PENAL. JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA.

1. A construção de casa de adobe em área de preservação ambiental constitui dano direto instantâneo de efeitos permanentes. Precedentes.

2. Não há crime sem lei anterior que o defina (art. 1º do Código Penal.

3. Conduta anterior à vigência da Lei n. 9.605/1998.

4. A construção de casa para servir de moradia ao acusado e sua família não configura dolo de dano ao meio ambiente, pois traduz necessidade e direito fundamental ao chão e ao teto (art. 6º da Constituição Federal.

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5. O direito penal não é a prima ratio; o dano causado ao meio ambiente decorrente da edificação de casa com 22 (vinte e dois) metros quadrados não ultrapassa os limites do crime de bagatela e pode ser resolvido por meio de instrumentos previstos em outros ramos do Direito Civil.

6. Ordem concedida para cassar o acórdão e restaurar a sentença absolutória.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus No. 124.820/DF Relator Min. Celso Limongi (desembargador convocado do TJSP), julgado em 05-05-2011.

Em sentido contrário, e desconsiderando a relevância do direito à moradia no

caso concreto frente a questão ambiental, tem-se julgado do Tribunal Regional

Federal da 4ª região proferido em 2010, promovida pelo Ministério Público de Santa

Catarina contra o Município de Florianópolis, na qual o ministério público visando à

desocupação e à recuperação de área de proteção permanente, bem como à

demolição de moradia irregularmente construída, com localização em terreno de

marinha no Parque Municipal da Lagoa do Peri. Partindo-se do pressuposto da

compatibilização do direito ao meio ambiente com o direito à moradia, condicionou-

se o cumprimento das ordens de desocupação, demolição e de recuperação

ambiental fica condicionado à designação pelo Poder Público de moradia alternativa

aos ocupantes da área. No entanto o referido acórdão foi objeto de embargos

infringentes, e foi reformado retirando-se a condicionante, por entender-se que no

caso representava a garantia de moradia alternativa “uma desapropriação indireta

atípica e estímulo para a ocupação de áreas de proteção ambiental como modo de

aquisição de moradia”. Segue a ementa do julgado:

EMBARGOS INFRINGENTES. DIREITO ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ÁREA DE PROTEÇÃO PERMANENTE. OCUPAÇÃO IRREGULAR. GARANTIA DE MORADIA. IMPOSSIBILIDADE.

1. Ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal visando à desocupação e à recuperação de área de proteção permanente, bem como à demolição de moradia irregularmente construída, com localização em terreno de marinha no Parque Municipal da Lagoa do Peri, situado na cidade de Florianópolis.

2. O cumprimento dos comandos da sentença deve ocorrer após o trânsito em julgado, já que a espécie versa sobre ocupação irregular diante da ausência de direito de propriedade legítimo, representando a garantia de moradia alternativa uma desapropriação indireta atípica e estímulo para a ocupação de áreas de proteção ambiental como modo de aquisição de moradia.

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BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Reigão. Embargos Infringentes No. 2005.04.01.020586-8, Segunda Seção, Relator Sérgio Renato Tejada Garcia, julgado em 09/09/2010.

No mesmo sentido, julgado recente do Tribunal de Justiça do Estado de

Minas Gerais, que, em sede de Apelação Cível, negou provimento a recurso

interposto por pessoa que edificava casa de 47 m2 na margem de um curso de água

e que serviria a si e sua família para morada nos seguintes termos:

Ainda que o réu ali pretendesse morar com sua família, e que se alegue necessitado, o interesse em jogo é bem maior, pois o meio ambiente saudável e equilibrado é de interesse de toda a coletividade nacional, das presentes e futuras gerações. Não pode haver exceção, nem abrandamento na aplicação das rígidas normas de prevenção e reparação, sob pena de se contribuir, ainda mais, para a degradação do tão sagrado meio ambiente.

12

Assim, observa-se que a jurisprudência não tem sido uníssona na questão da

compatibilização do direito à moradia e do direito ao ambiente equilibrado, se em

alguns casos demonstrando estar no mesmo compasso da compatibilização de

direitos fundamentais, em outras situações simplesmente ignora a posição de ao

menos um deles como direitos fundamentais e o que isso significa e a necessidade

de compatibilização e coexistência desses direitos fundamentais.

Por outro lado, o tratamento legislativo que vem sendo dado a questão, ainda

que insuficiente para solucionar os vários problemas existentes, tem se apresentado

12 CONSTITUCIONAL E AMBIENTAL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - ÁREA DE PRESERVAÇÃO

PERMANENTE - CONSTRUÇÃO - INADMISSIBILIDADE - REGRA OBJETIVA - SENTENÇA MANTIDA.

- A regra que estabelece a impossibilidade de se intervir - notadamente mediante construção de morada em alvenaria - em área de preservação permanente é objetiva e cogente. - Constatado o início de construção de uma casa em APP, confirma-se a sentença que determinou sua demolição, de acordo com as conclusões de laudo pericial.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível No. 1.0476.09.009562-3/001, Relator Des. Alberto Vilas Boas. Julgada em 10/01/2012.

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mais sensível à necessidade de coexistência dos direitos fundamentais de moradia e

meio ambiente equilibrado.

No entanto, para além das medidas legislativas, ou quando estas se

apresentarem insuficientes para resguardar devidamente os direitos fundamentais

envolvidos, necessárias se fazem outros instrumentos jurídicos capazes de

resguardar as pessoas enquanto sujeitos de dignidade e direitos.

Nesse sentido, surgem os princípios jurídicos, dentro de um contexto em que

o ordenamento jurídico não se centra mais na lei e sim na própria Constituição e que

a lei também deixa de ser a fonte exclusiva de direitos e deveres, admitindo-se uma

multiplicação dessas fontes, sempre tendo como base a Constituição e a realização

dos seus valores básicos e dos direitos fundamentais. Dentre esses princípios

jurídicos, destaca-se o princípio da boa-fé, fundamental às relações entre Estado e

Cidadão no contexto do Estado democrático. A seguir passa-se a análise do

princípio da boa-fé como princípio idônea a tutela da segurança jurídica e da

confiança, para daí, tratar dele como instrumento de proteção ao direito de moradia.

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3. A PROTEÇÃO DA CONFIANÇA DOS CIDADÃOS NO ESTADO: O PRINCÍPIO

DA BOA-FÉ.

A proteção da confiança legítima tem por base a tutela das legítimas

expectativas que as pessoas criam em sua teia de relações sociais. É a

confiabilidade nas pessoas que permite construir relações de interdependência com

os diversos atores sociais, com base na previsibilidade e calculabilidade do

comportamento de cada um. É a confiança que proporciona segurança.

Para LUHMANN, a confiança é uma forma de redução da complexidade

social na tomada de decisões baseando-se numa expectativa confiável levando em

conta que a decisão tomada no momento atual considera que elementos que a

embasaram também se mantenham no futuro. Para o citado autor “mostrar

confianza es antecipar el futuro. Es comportarse como si el futuro fiera certo. Uno

podría decir que a través de la confianza, el tiempo se invalida o ao menos se

invalidan las diferencias de tiempo” (1996, 15). O papel da confiança consiste pois

em reduzir o futuro, antecipando-o, conforme uma análise realizada do presente.

Explicita noutro ponto o autor:

El problema de la confianza consiste en el hecho de que el futuro continente muchas más possibilidades de las que podrían actualizarse en el presente, y de presente transferirse al pasado. La incertidumbre que tende a existir es simplesmente uma consecuencia de um hecho muy elemental, que no todos los futuros pueden convertirse en presente y de aqui convertirse em pasado. El futuro coloca uma carga excessiva em la habilidad del hombre para representarse las cosas para sí mismo. El hombre tiene que viver en el presente junto com este futuro, de sobremanera complejo, eternamente. Por lo tanto debe podar el futuro de mod que se iguale con el presente, esto es, reducir la complejidad (LUHMANN, 1996, 20-21).

A proteção da Confiança no Direito Público moderno funda-se no princípio

democrático constitucional, previsto no art. 1º, parágrafo único da Constituição

Federal, segundo o qual todo poder emana do povo e em seu nome é e exercido

nos termos da Constituição. Assim os indivíduos não são meros destinatários do

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poder, mas, considerados em conjunto, são os próprios titulares deste poder. Nos

dizeres de SUNDFEELD, as relações de direito público se caracterizam por vínculos

entre um sujeito que exerce o poder político, mas não o titulariza, e um sujeito que o

titulariza, mas não o exerce, mas ao contrário, suporta (2010, 111).

Isso posto, deve ser reconhecido que o Estado tem uma função instrumental,

de realização dos anseios de seus cidadãos enquanto coletividade e de cada um

deles individualmente considerados, não comportando um fim em si mesmo. Se a

República é constituída, nos termos da Constituição, sob o signo da primazia da

dignidade da pessoa humana, significa que essa dignidade é um valor máximo da

nação enquanto sociedade política e todo o aparato estatal tem como fim o

reconhecimento da dignidade das pessoas e sua promoção, enquanto indivíduos e

enquanto coletividade.

Assim sendo, o Estado é mero custódio do interesse coletivo, única razão

pelo qual detém o poder político. Em razão disso tem o dever de atender as

expectativas dos seus cidadãos, correspondendo à confiança legítima em si

depositada pelo titular deste poder. A proteção da confiança nas relações Estado

versus cidadão é decorrência lógica do próprio exercício do poder político em nome

da coletividade.

A segurança jurídica é também um dos pilares centrais do Estado de Direito.

Isto porque, para que as pessoas possam viver em paz e buscar a felicidade, é

necessário que tenham estabilidade nas relações jurídicas das quais participam. É

isso inclusive que leva a criação de mecanismos jurídicos que confiram

previsibilidade à atuação do Estado e à aplicação do direito.

O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito. Estes dois princípios – segurança jurídica e proteção da confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada como elementos objetivos da ordem pública – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança,

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designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos. (CANOTILHO, 1998, 256)

A necessidade de confiança dos indivíduos no Estado é um dos próprios

motivos do surgimento do Direito Público. A substituição do arbítrio e dos caprichos

dos soberanos do Estado Absolutista pela limitação do poder pela lei no Estado de

Direito, entre outros anseios reflete a necessidade de confiabilidade no

comportamento do poder político.

Daí inclusive a confusão que, ordinariamente, acontece entre segurança

jurídica e legalidade, já que aquela é por esta realizada, pois é o conhecimento

prévio da lei que permite aos particulares tomarem conhecimento do direito e

preverem as consequências de suas condutas e das dos demais membros da

coletividade e do Estado. É essa previsibilidade que delimita verdadeiramente a

liberdade dos cidadãos. Sem a possibilidade juridicamente garantida de prever e

calcular a atuação do Estado, o ser humano deixaria de ser o protagonista de sua

própria história, numa flagrante violação da dignidade que lhe é própria.

Não obstante a relação intrínseca entre segurança e confiança, enquanto

princípios jurídicos providos de normatividade comportam significados autônomos,

lição dada por um grande estudioso do tema no Brasil, ALMIRO DO COUTO E

SILVA,

Por vezes encontramos, em obras contemporâneas de Direito Público, referências a “boa-fé”, “segurança jurídica”, “proteção à confiança” como se fossem conceitos intercambiáveis ou expressões sinônimas. Não é assim ou não é mais assim. Por certo, boa-fé, segurança jurídica e proteção à confiança são ideias que pertencem à mesma constelação de valores. Contudo, no curso do tempo, foram se particularizando e ganhando nuances que de algum modo as diferenciam, sem que, no entanto, umas se afastem completamente das outras. (2005, 2)

O referido autor divide o princípio da segurança jurídica em duas partes, uma

de ordem objetiva e outra de ordem subjetiva. A primeira, de ordem subjetiva, é

aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até

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mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos. No Brasil, diz respeito à

proteção direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, insculpida no art.

5, XXXVI, da Constituição Federal.

A outra, de ordem objetiva, refere-se à proteção da confiança dos cidadãos,

no que concerne aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais

diferentes aspectos, de sua atuação.

Enquanto a primeira se centra na garantia de estabilidade das relações

jurídicas, esta última impõe ao Estado limitações ou condições à liberdade de alterar

sua conduta e de modificar atos que produziram vantagens para os cidadãos,

mesmo quando ilegais em virtude da crença gerada naqueles que se beneficiam

com a situação anterior de que aqueles atos eram legítimos, o que fazia supor que

seriam mantidos. Ambas remetem a ideia de estabilidade nas relações jurídicas e

por isso à segurança jurídica, mas esta, em sua ordem objetiva, remete à ideia de

confiança: confiança em uma posição jurídica, confiança em uma conduta, confiança

que não pode ser quebrada sem ofensa à ordem jurídica.

O Estado deve pautar seus atos pela legalidade. Como visto anteriormente,

essa é uma das premissas sobre a qual a própria gênese do direito público foi

assentada. Um dos efeitos colaterais dessa vinculação positiva da conduta do

Estado à lei é justamente a aparência e também a presunção da legalidade do

direito administrativo, elaborado para permitir a operatividade da função

administrativa. Essa situação tem justificado a conservação da conduta

administrativa, mesmo quando viciado de forma a proteger os interesses dos

cidadãos.

COUTO E SILVA relata como exemplo mais antigo e conhecido de proteção

da confiança um fragmento de Ulpiano contido no digesto, sob o título de De ordo

praetorum (D.1.14.1), no qual o célebre jurista narra o caso do escravo Barbarius

Philippus, que foi nomeado pretor em Roma ocultando sua condição de escravo.

Indaga Ulpiano: “Que diremos ao escravo que, conquanto ocultando essa condição

exerceu a dignidade pretória? O que editou, o que decretou, terá sido talvez nulo?

Ou será válido por utilidade daqueles que demandaram perante ele, em virtude da

lei ou do direito?”

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O que precisa ficar claro é que o direito nesses casos protege não é a

aparência de legitimidade dos atos praticados, mas a confiança gerada nas pessoas,

em virtude da presunção da legalidade e da aparência de legitimidade que tem os

atos Praticados pelo Poder Público.

3.1. – O Princípio da Boa-fé: Apontamentos iniciais e breve histórico.

Embora de amplo domínio da comunidade jurídica, o princípio da boa-fé

guarda em si algumas contradições. De uso frequente em julgados e na doutrina

jurídica, nunca foi objeto de um estudo global e sistemático. Como assevera

MENEZES CORDEIRO, um dos grandes estudiosos do tema nos últimos anos,

nunca houve sobre a boa-fé um estudo global que tratasse os diversos quadrantes

da sua História, a sua dogmática e os aspectos metodológicos daí decorrentes. O

estudos dedicados ao tema, que são inúmeros, são em geral parciais e a partir

desses vem surgindo investigações mais alargadas (2001, 41).

Etimologicamente, o termo boa-fé tem como origem a expressão bona fides

que quer dizer: fidelidade, crença, confiança, sinceridade, posicionando

antagonicamente a má-fé que quer dizer engano, malícia, dolo. O princípio da Boa-

Fé tem raízes no Direito Romano, uma vez que já na antiguidade se preocupavam

os romanos com o estabelecimento de princípios na aplicação do direito. Apesar de

nunca terem construído uma teoria geral do negócio jurídico, pode-se perceber que

entre a vontade declarada e a vontade interna, inclinaram-se para esta última em

detrimento da vontade externa, pois “na maioria de suas instituições buscaram

sempre o animus, affectus, ou consensus, ou seja, a verdadeira voluntas” (PETIT,

2003, 251).

Deve-se ao princípio da boa-fé a tutela da confiança ao longo do tempo.

Deveras, a boa-fé, ao longo do tempo assumiu uma presença constante nas

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relações privadas, especialmente nas contratuais como elemento de proteção à

confiança entre os atores jurídicos ou sempre associada a ela.

MENEZES CORDEIRO relata a origem da boa-fé na fides romana. A fides

romana se concretizava nas relações entre a clientela e os patrícios (2001, 59). A

clientela era um tipo de estratificação social, um grupo de pessoas que se situavam

entre o cidadão livre e o escravo, que em troca da promessa de proteção e favores

(fides promessa), se submetiam a certos deveres de lealdade e obediência (fides

poder). Progressivamente desaparecem os elementos de sujeição e da ideia de

fides promessa evolui o elemento que vai importar para o Direito Civil, a ideia de

garantia, ligada à palavra dada (CORDEIRO, 2001, 62). No campo contratual,

MARTINS-COSTA noticia a existência de documento antigo ligando a expressão

fides aos contratos internacionais. Trata-se do tratado entre Roma e Cartago, que

cria regras, segundo a qual, cada uma das partes contraentes prometia sobre a

própria fé – publica fides, ou seja, sobre a fé que liga a coletividade ao respeito das

convenções livremente pactuadas – a assistência ao cidadão da outra cidade para a

proteção dos interesses advindos dos negócios privados (MARTINS-COSTA, 2000,

113)

Na cultura germânica, a fórmula do treu und glauben demarca o sentido de

boa-fé. Treu (lealdade) e glauben (crença), analisadas no contexto medieval dos

juramentos de honra e das tradições cavalheirescas, traduzem um significado

completamente diferente da boa-fé romana. A garantia de manutenção e

cumprimento da palavra dada não se vincula mais a uma ótica subjetiva (do garante

ou cliente), mas a uma perspectiva ética, objetiva, ligada à confiança geral

estabelecida em nível de comportamento coletivo. “ „Fiadores e defensores‟, como

Lancelot, os chevaliers não agem por interesse próprio, mas tendo em vista os

interesses do alter – da sua dama, do seu soberano, da sua coletividade”

(MARTINS-COSTA, 2000, 126).

Na idade média, a formação dos contratos passa a ter influência decisiva da

boa-fé por meio da concepção da autonomia da vontade e do Direito Canônico.

Como assevera Cláudia Lima Marques,

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O Direito Canônico contribuiu decisivamente para a formação da doutrina da autonomia da vontade e, portanto, para a visão clássica do contrato, ao defender, a validade e a força obrigatória da promessa por ela mesma, libertando o direito do formalismo exagerado e da solenidade típicos da regra romana. O simples pacto faz nascer a obrigação jurídica, como fruto do ato do homem (MARQUES, 2002, 44).

Dessa forma, a palavra dada conscientemente pelo contratante, criava uma

obrigação que tinha como fundamento moral de que a promessa criava expectativas

de proceder, que por isso, deveriam ser cumpridas.

No Direito canônico, a concepção de boa-fé estava completamente atrelada à

ideia de pecado. À palavra dada e à promessa era atribuído valor moral, porque na

cultura cristã a mentira é considerada pecado. Assim, a boa-fé passa a ter um

significado unificado, cuja substância se encontra na “ausência de pecado”.

Enfraquece-se o seu significado ético do direito obrigacional e é fortalecida a

dimensão subjetivista. Esta última é fortalecida com a vinculação a ideia do pecado

porque não basta mais a mera ignorância do vício é necessária a consciência íntima

da ausência do pecado, de se estar agindo corretamente. (MARTINS-COSTA, 2000,

131)

O conceito moderno de boa-fé tem início na França, com a promulgação do

Código Civil dos Franceses em 1804, também conhecido como Código de Napoleão,

que o trazia como noção fundamental do direito dos contratos. A referida legislação

chegou a ter disposição expressa segundo a qual “as convenções devem ser

contratadas e executadas de boa-fé” (LOUREIRO, 2004, 66). No entanto, o Código

Civil dos Franceses sob uma ótica hodierna teve seu dispositivo negligenciado, em

razão das ideias liberalistas da autonomia da vontade, do medo da sua

transformação em um dogma absoluto, ou da aplicação arbitrária dos juízes, como

acontecia no antigo regime. A boa-fé volta a aparecer no Código Civil Alemão no fim

do século XIX, mas sempre com projeção muitíssimo limitada no restante do mundo

ante o positivismo jurídico dominante.

Para a grande maioria dos legisladores desse período os princípios, entre

eles o da boa-fé, eram vagos e imprecisos. A técnica legislativa nascente na

revolução francesa primava por utilizar termos precisos, que não deixassem dúvidas

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quanto à obrigatoriedade das convenções, pois havia o medo da liberdade dada ao

arbítrio judicial. A burguesia, enquanto classe social ascendente que assumia cada

vez mais poder econômico, social e político desejava estruturas inclusive jurídicas

capazes de atender a seus interesses e concepções que incluía medo do ancien

régime. Nesse contexto, temia-se a liberdade dos juízes:

O temor de um “governement des juges” pairava como uma sombra sobre as reformas francesas pós-revolucionárias, lançando suas matizes sobre o processo de codificação. A ênfase na completa separação de poderes, com todo o processo legislativo alocado na legislatura eleita, foi uma forma de assegurar que ao judiciário seria negado o poder de elaborar o direito. A experiência com as cortes do período pré-revolucionário provocara aos franceses preocupações de que os juízes pudessem ditar o direito sob o disfarce de interpretação jurídica. Em razão disto, alguns autores argumentavam que se deveria negar aos juízes até mesmo o poder de interpretar a legislação (MERRYMAN e PÉREZ-PERDOMO, 2009, 56).

Na esteira desse pensamento e na ideologia liberal e individualista que

permeou todo o século XIX, o princípio da boa-fé, apesar de presente na

Codificação francesa em seu art. 1134, quando não é ignorado é empobrecido.

Deixa de constituir um instrumento flexibilizador dos negócios jurídicos com o qual o

interprete pode em certos casos limitar a autonomia privada e passa a ser sobretudo

um instrumento de consolidação da ideologia dominante, onde boa-fé passa a ser

acima de tudo um instrumento de consolidação da autonomia da vontade e

confirmador do pacta sunt servanda.

A boa-fé era apenas um princípio geral do direito que sempre foi usado

secundariamente, para sancionar ações desleais ou contrárias à equidade.

No entanto, os abusos cometidos pelos detentores do poder econômico que

provocaram reações e a evolução da sociedade para uma sociedade industrializada,

marcada pela produção e pelo consumo em massa, causaram transformações

nessa visão que até então predominara no liberalismo.

A sociedade industrial do século XX, que passou a ter como característica de

seus negócios a produção e o fornecimento de produtos e serviços em grandes

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quantidades, tornou o comércio impessoal e fez com que as empresas se

colocassem num patamar de superioridade em relação aos indivíduos

consumidores, permitindo que fossem ditados unilateralmente os termos contratuais

por quem detinha o poder econômico.

Com a vigência da ampla liberdade para contratar, o direito do Estado

Liberalista simplesmente reconhecia a supremacia de quem detêm o poder

econômico, o que terminaria por desequilibrar a sociedade. Assim, a concepção

clássica de contrato entrou em crise, pois deixou de atender a realidade sócio-

econômica que despontou no século XX.

Cláudia Lima Marques informa que:

Em muitos casos o acordo de vontades era mais aparente do que real; os contratos pré-redigidos tornaram-se a regra, e deixavam claro o desnível entre os contratantes – um autor efetivo das cláusulas, outro, simples aderente – desmentindo a ideia de que assegurando-se a liberdade contratual, estaríamos assegurando a justiça contratual (MARQUES, 2002, 150).

Junte-se a esse quadro o fato de que a concepção do Estado Liberal ausente

entra em declínio, incapaz de atender as reivindicações da sociedade,

principalmente das parcelas menos privilegiadas, dando lugar ao Estado Social

atuante, que passa a intervir nas relações sociais e econômicas, mediante a

prestação de inúmeras atividades sociais, atuando inclusive nas contratações, com

sua vontade soberana, para evitar lesões e desequilíbrios.

Surge então nova concepção de contrato, a chamada Concepção Social do

contrato, que além de levar em conta a vontade das partes, também leva em conta

as condições sociais e econômicas dos contraentes e se interessa pelos efeitos que

o mesmo causará na sociedade. O direito passa então a exercer uma função

limitadora da autonomia da vontade, levando em conta outros aspectos, inclusive a

boa-fé dos contratantes.

Na esteira dessa nova concepção de contrato, na segunda metade do século

XX começa-se a transformar o conceito de boa-fé, diante das mudanças ocorridas

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na sociedade, do desenvolvimento do comércio internacional e do crescimento cada

vez maior do consumo em massa e da preocupação com a proteção da parte mais

frágil no contrato. A boa-fé passa a ter um fundo solidarista e de consciência ética da

sociedade. Nos dizeres de LOUREIRO,

a boa-fé agrega uma exigência ético-social que é, ao mesmo tempo, de respeito à personalidade alheia e de colaboração com os demais. Ela se distingue de outras exigências da convivência, em seu aspecto positivo, pois impõe, não simplesmente uma conduta negativa a respeito, senão um ativa colaboração com os demais, encaminhada a promover seu interesse (LOUREIRO, 2004, 68).

Assim, por tratar-se de um conceito simples e amplo, pode ser aplicado

dentro de qualquer negócio jurídico, vinculado a regras que destinem a sancionar

um comportamento repreensível ou anormal. A contratação de boa-fé é a essência

do próprio entendimento entre os seres humanos, é a presença da ética nas

relações jurídicas negociais.

No âmbito do Direito Público, COUTO E SILVA (2005, 6) relaciona o

surgimento da Proteção à confiança ao Estado Social ou Estado-Providência, em

razão das situações de dependência que surgiram do cidadão para com o Estado,

especialmente em razão dos serviços e prestações por ele realizados,

diferentemente do que ocorria com o Estado Liberal burguês.

Relata o autor que o princípio da proteção da confiança é de origem

jurisprudencial e tem como ponto de partida uma série de decisões prolatadas que

visavam impor limites à retratabilidade de atos administrativos cuja ocorrência

poderia causar prejuízos aos administrados. Começa a se firmar a partir de uma

emblemática decisão do Superior Tribunal Administrativo de Berlim de 1956, que

posteriormente foi confirmada por acórdão do Tribunal Administrativo Federal em

1957.

Refere-se ao caso da anulação da concessão de pensão a uma viúva de um

funcionário público que vivia em Berlin Oriental (então parte da República

Democrática da Alemanha) e que obteve a promessa do pagamento do benefício

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mediante a mudança para Berlin Ocidental (parte da República Federal Alemã).

Após ter mudado e tendo passado um ano recebendo o benefício, o mesmo foi

anulado sob o argumento de que sua concessão foi ilegal, o que de fato ocorreu, e

ainda lhe foi determinada a devolução dos valores recebidos ilegalmente. Levado à

apreciação do judiciário, os tribunais alemães ponderando o princípio da legalidade

com relação ao da proteção da confiança – ambos de estatura constitucional -

entenderam que, ainda que houvesse ilegalidade, a proteção à confiança tinha mais

peso, determinando que o ato não fosse desconstituído (BINENBORJM, 2008, 182).

A partir de tal decisão, o princípio da proteção da confiança se desenvolveu no

direito alemão, influenciou o direito inglês e foi reconhecido como princípio

fundamental do direito comunitário, com o nome de princípio da confiança legítima,

sendo reconhecido pela jurisprudência da Corte de Justiça das Comunidades

Europeias, como “regra superior de direito” e como “princípio fundamental do direito

comunitário”.

Tomando-se a boa-fé objetiva como um padrão de conduta ético e

responsável, em que se espera que os envolvidos em uma relação jurídica guardem

lealdade, é inegável a identidade do princípio da boa-fé em seu sentido objetivo com

a tutela da confiança, visto que essa, em última instância se destina a estabelecer

tutela jurídica das legítimas expectativas depositadas pelo cidadão em razão de

condutas, atos e procedimentos praticados pelo Estado no exercício da função

administrativa.

A exigência da aplicação do princípio da boa-fé nas relações Estado e

Cidadão decorre primeiramente da necessidade da proteção da confiança nas

relações jurídicas em geral. É uma necessidade do tráfego jurídico e de todos os

vínculos jurídicos que se criam. Destaque-se aqui a profunda relação do princípio

em referência com o valor Ética, bem como a reaproximação entre o Direito e esta

última, especialmente havida a partir do movimento pós-positivista surgido no

contexto pós segunda guerra mundial e de como esse movimento tem se dedicado à

construção de relações entre valores, princípios e regras, buscando justamente dar

normatividade a elementos da Ética.

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A despeito da necessidade de boa-fé nas relações em geral, por outro lado,

destaque-se a necessidade específica de proteção da confiança nas relações entre

Estado e Cidadão, onde valores como lealdade, honestidade e moralidade se

tornam especialmente relevantes. Considerando o Estado como fiduciário do poder

político e como prestador de serviços públicos à comunidade, a colaboração da

Administração pública com os administrados e destes com aquela se torna essencial

para a melhor prestação dos serviços.

Ensina nesse sentido GONZÁLEZ PÉREZ:

Vivimos en uma sociedade en la que el hombre encuentra limitada su libertad real en proporciones jamás soñadas, en la que la satisfacción de las más elementares necessidades depende de las prestaciones de la Administración pública, en la que el Estado ha invadido las esferas más íntimas. La situación ha sido descrita hasta la saciedad en la literatura especializada y no especializada.(...) En este mundo, la humanización de las relaciones entre la Administración y el administrado constituye el único remédio para que la desesperación del administrado no le conduzca a un final trágico (2004, 55).

A boa-fé aparece primeiramente no Brasil no Código Comercial de 1850 em

seu art. 131 que previa que sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a

interpretação entre outras regras, deveria se basear na inteligência simples e

adequada, que fosse mais conforme a boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do

contrato, devendo prevalecer ante a rigorosa e restrita significação das palavras. No

entanto, tal dispositivo não teve grande apelo perante a doutrina e os tribunais. O

Código Civil de 1916, de inspiração no direito francês, não consagrou a boa-fé

expressamente como fazia o Código Comercial de 1850.

Apesar da aplaudida inovação do Código Civil de 2002, de consagrar

expressamente o princípio da Boa-fé em vários de seus dispositivos, o referido

princípio sempre teve - como ainda o tem - pouca utilização ou sendo esta limitada.

Os tribunais pátrios tem utilizado a boa-fé como fonte complementar dos negócios

jurídicos, um princípio de ordem principalmente limitativa, resistindo em que seja

usada para revisar ou ampliar nos negócios jurídicos, insistindo na preponderância

da obrigatoriedade do contrato.

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MENEZES CORDEIRO em sua tese de doutoramento refuta qualquer

tentativa de definição lapidar da boa-fé, pois acredita que a mesma não opera como

um conceito comum e uma definição qualquer que seja, não expressaria o alcance e

a riqueza reais do instituto. Para ele, “a boa-fé traduz um estágio juscultural,

manifesta uma Ciência do Direito e exprime um modo de decidir próprio de certa

ordem jurídica” (CORDEIRO, 2001, 20).

Com efeito, a noção de boa-fé objetiva no contexto atual do Direito está

profundamente ligada ao valor ética, e nesse sentido, dá juridicidade a ideias como

lealdade, correção, veracidade e justa expectativa, que compõe o substrato dos

negócios jurídicos em geral.

De raízes profundas no Direito Privado, presente principalmente nos negócios

jurídicos de cunho obrigacional, com o tempo o princípio da boa-fé passou a ter

notória importância também nas relações envolvendo o Poder Público,

especialmente com a ampliação do papel Estado na vida dos indivíduos.

Boa-fé é um princípio caracterizado pela ampla generalidade e que não

comporta uma definição em termos rígidos. Embora tenha merecido um estudo mais

aprofundado no Direito Privado, especialmente no campo do direito obrigacional,

está de tal forma enraizado em nossa cultura jurídica que todo operador do direito

dele guarda alguma noção.

O desenvolvimento do instituto ao longo do tempo nos oferece duas

perspectivas de análise sobre o princípio. A primeira, de ordem subjetiva, no qual a

boa-fé se refere a um estado psicológico de alguém que ignora algum vício na sua

conduta, que julga estar procedendo licitamente sem causar lesão a outrem. É um

estado de consciência, uma crença de estar agindo conforme o direito. Age de boa-

fé aquele que tem ou não tem conhecimento da lesividade de sua própria conduta. A

boa-fé é medida pela intenção do agente ao manter determinada conduta.

Numa segunda perspectiva, de natureza objetiva, a boa-fé centra-se não no

fator psicológico, mas na própria conduta praticada. Vale dizer o que é analisado

não é com que intenção foi praticada a conduta mas na própria forma de proceder,

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num comportamento reflexivo, preocupado com os efeitos das próprias ações sobre

a outra parte.

Como relata MARQUES,

fides significa o habito de firmeza e coerência de quem sabe honrar os compromissos assumidos, significa, mais além do compromisso expresso, a “fidelidade” e coerência no cumprimento da expectativa alheia independentemente da palavra que haja sido dada, ou do acordo que tenha sido concluído; representando, sob esse aspecto, a atitude de lealdade, de fidelidade, de cuidado que se costuma observar e que é legitimamente esperada nas relações entre homens honrados, no respeito cumprimento das expectativas reciprocamente confiadas (2002, 181).

Assim, Boa-fé em sentido objetivo, não depende da intenção do agente, mas

da própria forma com ele procedeu, considerando um padrão geral de conduta que

de uma forma geral se pode esperar de alguém, tomado como uma pessoa proba, e

que por isso é capaz de gerar legítimas expectativas naqueles que se relacionam

com essa pessoa. É o comportamento, que de uma forma geral, se espera do

homem médio, honesto e diligente.

Judith Martins-Costa sintetiza de forma clara os significados das duas

acepções de boa-fé de modo a diferenciá-los:

A expressão “boa-fé subjetiva” denota “estado de consciência”,ou convencimento individual a cobrar [a parte] em conformidade ao direito [sendo] aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se “subjetiva” justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antiética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.

Já por “boa-fé objetiva” se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao § 242 do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual “cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade”. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo (2000, 411).

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A doutrina civilista normalmente informa as duas formas de boa-fé alcançando

mais influência em um ou em outro campo do direito, como por exemplo a boa-fé

objetiva, que encontra maior campo de aplicação no direito obrigacional e contratual

e a boa-fé subjetiva, que encontra maior campo de aplicação no direito das coisas.

Mas é de se ressaltar que essa partição quanto ao âmbito de aplicação não é

estanque, e se dá em razão da adequação da funcionalidade na própria relação que

pretende regular. De toda forma, é importante salientar que qualquer que seja a

dimensão da boa-fé a ser aplicada, se objetiva ou subjetiva, ambas expressam

unidade enquanto conteúdo de significado ético e enquanto norma jurídica.

3.2. - Diferenciação entre Boa-fé e Proteção da Confiança.

Se a diferenciação entre Confiança e Segurança Jurídica não apresenta

maiores celeumas, a diferenciação entre a Teoria da Confiança e da Boa-fé não se

apresenta sem certas dificuldades. Especialmente porque é comum a referência no

Direito Administrativo, inclusive na jurisprudência, à Segurança Jurídica, Proteção da

confiança e boa-fé como sinônimos.

É comum o surgimento de referências ao princípio da boa-fé como

instrumento de proteção à confiança, bem como também o é encontrar-se

referências a confiança no âmbito de um princípio autônomo, que parece em

princípio se diferenciar do princípio da boa-fé.

De fato, se não são expressões sinônimas, guardam íntima relação, já que

estão na mesma “constelação de valores”. A compreensão da relação que guardam

entre si é importante, não só para compreender qual a influência que uma lança

sobre a outra, e como cada uma atua no ordenamento jurídico.

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SCHREIBER, não visualiza dos princípios distintos. Na esteira do direito

alemão, ele fundamenta o princípio da confiança como o principal conteúdo da boa-

fé objetiva e como forte expressão da solidariedade social (2007, 95). ASCENSÃO,

por seu turno compreende Boa-fé e Confiança como princípios independentes que

coexistem (2006, 87).

MARTINS-COSTA, por sua vez, entende a boa-fé como uma confiança

qualificada como boa, virtuosa, justa (2003, 29-30).

Para GONZÁLEZ PÉREZ, o princípio da boa-fé, incorpora a confiança.

Escreve o autor que:

La buena fe incorpora el valor ético de la confianza. Confianza en la forma de actuación que cabe esperar de la persona com que nos relacionamos. En el ámbito de las relaciones jurídico-administrativas la actuación que cabe esperar de uma Administración pública respecto de outra o respecto del administrado, o el administrado de la Administración pública (2004, 67).

A discussão se situa em verificar se os princípios se separam apenas por uma

questão semântica ou se existem diferenças funcionais entre eles, atingindo um

esferas que o outro não alcança.

Realmente, o que se percebe é que não há uma diferença entre confiança

enquanto referida como princípio autônomo e o princípio da boa-fé. Observa-se que

tanto na jurisprudência ou na doutrina, observam-se referências tanto a um quanto a

outro, com funcionalidade idêntica e no mesmo âmbito de aplicação.

O que se observa é que são conceitos construídos em grande parte pela

jurisprudência, e talvez a confusão se deva ao fato dos tribunais se referirem tanto à

boa-fé como a confiança como princípios, sem traçar uma delimitação clara

necessária de um e de outro e aplicando os dois em situações idênticas e buscando

os mesmos efeitos.

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Talvez, depois de muito esforço, alguém extremamente apegado a conceitos

pudesse chegar a esferas de ação a que chega o princípio da confiança e não chega

o princípio da boa-fé ou que chega este último princípio e não chega aquele.

Mesmo que isso ocorra, não parece ser suficiente para tratar confiança e boa-

fé como princípios distintos. Boa-fé ou Confiança (aqui referidos como um único

princípio) é norma de caráter principiológico que por sua própria natureza

comportam uma vagueza de significado ou múltiplos significados a ser completada

por um juízo de valor na solução do caso concreto, e por isso fogem da forma

tradicional de construção da norma jurídica, as regras de direito descritivas. Assim,

mesmo que alguém encontrasse âmbitos de aplicações diferentes, não significaria

ainda assim tratarem-se de princípios distintos.

Isso posto, quando se refere a princípio da Boa-fé e da Legítima Confiança,

entende-se como referência a um mesmo princípio jurídico, sem forma estática, que

tem por objetivo a proteção de situações jurídicas criadas ou alcançadas em razão

de legítimas expectativas criadas por outrem, capazes de gerar danos ou riscos de

danos.

3.3. - Pressupostos para a proteção da confiança através do Princípio da Boa-

fé.

A grande dificuldade de proteção da confiança reside justamente em se definir

confiança em termos jurídicos. Definir ou pelo menos dar uma conformação, dada a

maleabilidade que é própria dos princípios e suas múltiplas aplicações, e o risco de

uma definição rígida lhe empobrecer o sentido. A confiança é um estado subjetivo o

que torna difícil a sua investigação e identificação. Por outro lado, para se tratar de

uma proteção jurídica à confiança, são necessários elementos que permitam sua

identificação em cada caso concreto, como também os efeitos jurídicos decorrentes

de sua quebra. Assim, tenta o direito “objetivar” a confiança, para que possa ser

protegida.

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132

Vários são os doutrinadores que se debruçam sobre a tarefa. SCHREIBER

identifica como as situações que fazem incidir o princípio como os seguintes

elementos: a) A ocorrência de um fato próprio, entendida como uma conduta inicial;

b) A legítima confiança de outrem no sentido objetivo dessa conduta; c) Um

comportamento contraditório com este sentido objetivo (e por isso mesmo, violador

da confiança); d) um dano, ou um potencial de dano a partir da contradição (2007,

132).

O fato próprio é uma conduta inicial, que pode ou não ser um fato jurídico.

Sequer precisa ser vinculante de alguma conduta jurídica. De fato, se o for, é a

própria lei que o vincula (e atribui responsabilidade por sua quebra), haverá proteção

jurídica independentemente da existência de contradição irrelevante, dispensado por

isso a aplicação do princípio da confiança. O fato na verdade não precisa ter

relevância nenhuma para o direito, desde que do ponto de vista fático seja capaz de

repercutir na esfera de outrem lhe gerando legítima expectativa. O que tornará a

conduta vinculante é sua capacidade de repercussão na tomada de decisões alheias

com base em justa expectativa e sua contrariedade posterior.

Essa repercussão é justamente a confiança criada. É o elemento confiança

criada que torna o fato inicial relevante para o direito e elemento vinculador do

agente. Tal confiança que deve ser “legítima”. A atribuição da adjetivação “legítima”

à confiança retira desta o sentido de mero estado psicológico do sujeito. A confiança

deve ser consequência direta e razoável da conduta inicial, o chamado fato próprio.

Por exemplo, a ressalva expressa de possível contradição por quem pratica o fato

inicial, excluiria a legitimidade da confiança. Da mesma forma, não é legitima a

confiança daquele que aposta em elementos sabidamente arriscados. Por outro

lado, a conduta que não seja clara – diferenciando-se aqui conduta clara de conduta

manifesta -, não é capaz de incutir legitima confiança em ninguém, nem mesmo a

percepção errônea da realidade por parte daquele que confia.

A contradição ao fato inicial é o elemento que deflagrará a proteção da

confiança. É um simples comportamento, ato jurídico ou não, que se apresenta

como contraditório ao comportamento inicial, independentemente da existência ou

não da intensão de contrariar. Basta que seja um ato qualquer, mesmo que lícito,

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capaz de frustrar as expectativas razoáveis criadas na esfera alheia. É importante

ressaltar o aspecto aparentemente lícito do comportamento contraditório, ou um

comportamento que se considerado isoladamente é lícito. Isso porque se a

contradição se dá por meio de um comportamento ilícito, existiram disposições

sancionatórias e corretivas, independentemente da vinculação a um elemento de

contradição.

E finalmente, o objetivo de proteção da confiança, que é a salvaguarda de

dano efetivo ou potencial, idôneo a atingir o patrimônio daquele que confiou em

alguém em razão de um comportamento, e que rompeu essa confiança através da

contradição. O dano de fato não é necessariamente efetivo. É preciso que seja

identificado como dano em potencial, capaz de gerar efeitos lesivos ao patrimônio

daquele que confiou se a conduta contraditória for mantida. Até porque, se a

contradição lesiva for identificada sem que tenha se efetivado ou produzido o

prejuízo, o efeito primordial e desejável da proteção da confiança será a prevenção,

desfazendo-se a conduta, ou evitando-a.

ASCENSÃO (2006, 87), por seu turno, identifica como pressupostos para a

proteção da confiança violada quatro elementos concomitantes: a) A confiança deve

se fundar na conduta de outrem; b) Deve ser uma confiança justificada; c) o agente

deve ter feito o chamado “investimento de confiança; d) O comportamento que

frustra a confiança criada e as providências nela fundadas.

Os elementos apontados coincidem com os elementos apontados por

SCHREIBER. Destaca-se que o elemento denominado por ASCENSÃO de

investimento de confiança, que guarda relação com o dano efetivo ou potencial, mas

que com este não se confunde. Refere-se aos investimentos em bens materiais que

aquele que confia faz, confiando na manutenção da conduta alheia. Enquanto o

dano apontado por SCHREIBER não é propriamente um elemento de formação da

quebra da confiança, mas uma consequência desta capaz de ensejar a proteção

jurídica, o investimento de confiança, na forma vista por ASCENSÃO é mesmo um

elemento identificador da conduta contraditória.

MARTINS-COSTA acrescenta que ao critério da conduta vinculante não

importa a pluralidade de sujeitos (2008, 13). O que importa é que a conduta inicial

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esteja em uma mesma situação jurídica da conduta frustradora da confiança.

Faltaria por exemplo relação de causa e efeito, à situação da pessoa que comprasse

ou deixasse de comprar ações de uma determinada empresa, confiando no

movimento sobre o preço que outra pessoa fosse capaz de produzir no mercado de

ações, ou a confiança da pessoa em promessa feita á terceiro.

3.4. - O princípio da Boa-fé e sua aplicação à Administração Pública.

Como visto retro, o instituto da boa-fé tem origem no direito privado, tendo

recebido há muito atenção da doutrina e jurisprudência que lhe deram

desenvolvimento notável. O mesmo não se pode dizer sobre o campo do Direito

Público, onde muito pouco se produziu e ainda hoje se produz a respeito do tema.

Conforme MENEZES CORDEIRO, que realizou estudo exaustivo do instituto

no campo do Direito Civil, nas obras gerais de Direito Administrativo, encontram-se

apenas referências escassas e desalinhadas à boa-fé, embora faltem

aprofundamentos sobre o tema, sua natureza, as suas aplicações e suas formas de

concretização (2001, 391). Assim, embora a boa-fé não seja ignorada, não é

aprofundado. O autor ainda aponta a existência de vários institutos dependentes da

boa-fé – abuso de direito, supressio, alteração das circunstâncias, certos deveres de

comportamento, proteção da confiança – que são tratados sem conexão entre si.

Neste contexto, duas questões se colocam como fundamentais para o Estudo

da boa-fé no Direito Administrativo. A primeira é a compatibilidade do princípio com

o regime jurídico administrativo e a segunda é a possibilidade ou não de se

aproveitar os estudos desenvolvidos na área do Direito Privado para o seu

desenvolvimento no campo do Direito Público.

Quanto a possibilidade de aplicação da teoria da boa-fé no âmbito do direito

público, vários são as teses que assumem resistência à sua aplicação.

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GIACOMUZZI, observa vários argumentos contrários apontados pela doutrina (260,

213). Em razão do estudo específico que aqui se pretende, sem pretensões de

exaustividade, limita-se a reunir em duas diretrizes gerais os argumentos contrários

a sua aplicação do Direito Administrativo que seriam:

a) A diferença qualitativa existente entre o particular e a

Administração nas relação jurídico-administrativas e a supremacia

do interesse público;

b) A circunstância de que toda a relação jurídico-

administrativa está submetida ao princípio da legalidade;

As raízes da supremacia do interesse público sobre o privado estão no

organicismo e no utilitarismo. O organicismo considera o Estado como um grande

corpo com partes individuais interdependentes que concorrem de acordo com suas

finalidades para a vida do todo e em razão disso não atribui nenhuma autonomia aos

indivíduos considerados em suas singularidades (BOBBIO, 2000, 45). Para a visão

utilitarista, a melhor solução para cada problema é aquela que, promova na maior

escalada, os interesses dos membros da sociedade política individualmente

considerados (BINEMBOJM, 2008, 84). Sob essa ótica, o interesse público se traduz

em uma fórmula de maximização dos interesses do maior número possível de

pessoas. Como os interesses individuais são por vezes conflitantes, a utilitarismo

opta pelo sacrifício do interesse de um membro ou de certos membros de uma

coletividade, e nome de um benefício superior em termos comparativos, que

atenderá a outros membros da comunidade. A noção utilitarista do interesse público

remete a uma solução de maioria, ou de maiores benefícios.

Essa regra, da supremacia do público sobre o privado, é incompatível com o

atual estágio do Estado Democrático de Direito, justamente porque este tem como

ponto de partida uma compatibilização entre Direitos Fundamentais e Democracia.

Ambos são elementos caros à ordem constitucional pelos valores que encerram,

como a dignidade humana e o autogoverno coletivo, e a Constituição Federal não

fez a opção por nenhum deles.

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BINEMBOJM refuta a tese da Supremacia absoluta do coletivo sobre o

individual ao afirmar que:

A ideia de uma prioridade absoluta do coletivo sobre o individual (ou do público sobre o privado) é incompatível com o Estado democrático de direito. Tributária do segundo imperativo categórico kantiano, que considera cada pessoa como um fim em si mesmo, a noção de dignidade humana não se compadece com a instrumentalização das individualidades em proveito do suposto “organismo superior”. Como instrumento da proteção e promoção dos direitos do homem, o Estado é que deve ser instrumento da emancipação moral e material dos indivíduos, condição de sua autonomia nas esferas pública e privada (2008, 83).

Da mesma forma, a Constituição Federal se funda em uma concepção

pluralista de sociedade e que tem como postulado a igualdade perante os

indivíduos, de forma que não é possível uma escolha apriorística entre interesses

individuais e coletivos, sem uma regra clara de prevalência. A Constituição

reconhece a necessidade de se proteger tanto os interesses particulares dos

indivíduos como os interesses gerais da coletividade, de forma que a identificação

do interesse a prevalecer deverá ser feita através da ponderação proporcional entre

interesses conflitantes, conforme as circunstâncias do caso concreto, tendo como

norte os valores estabelecidos pela própria Constituição. A assunção da ideia de que

o interesse público prevalece sobre o interesse privado, sem uma análise das

circunstâncias em que se dá o conflito, não deixa espaço para ponderações. Há que

se compreender que a Constituição elege a pessoa humana como seu fim e o

Estado nada mais é do que um instrumento para a garantia e promoção dos direitos

fundamentais.

Por outro lado BINEMBOJM traz o argumento contraposto ao reconhecer que:

Em que pese o destaque que ostentam os direitos fundamentais no regime jurídico-constitucional, fato é que, como condição mesma à vida em sociedade e à própria proteção e promoção dos aludidos direitos, faz-se necessário, também, tutelar interesses de cunho nitidamente coletivo, voltados a atender demandas que ultrapassam a esfera individual dos cidadãos (2008, 103).

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Partindo desses postulados, é necessário reconhecer que há tanto interesse

de natureza individual como de natureza coletiva reconhecidos pela tutela

constitucional. A Constituição como sistema normativo age como um sistema aberto

de princípios, não regidos por uma hierarquia estática, mas por uma lógica de

ponderação proporcional contextual, entre os fins que se pretende e os meios

necessários de se alcançar esse fim.

Há de se considerar ainda que interesse público é um conceito jurídico

indeterminado, e o reconhecimento da supremacia de um interesse público depende

da possibilidade de uma determinação conceitual objetiva e abstrata do que vem a

ser interesse público. Tal exigência, não é satisfeita pela constituição. Muito pelo

contrário, a própria doutrina administrativista se debate em torno do que seria

interesse público, às vezes significando o interesse da própria máquina estatal,

outras vezes da coletividade, e em muitos casos de difícil dissociação do conceito de

interesse privado. Nesse sentido BINEMBOJM alvitra:

Ato contínuo, partindo da premissa de que interesses privados e coletivos coexistem como objeto de tutela constitucional, conclui-se que a expressão interesse público consiste em uma referência de natureza genérica, a qual abarca ambos, interesses privados e coletivos, enquanto juridicamente qualificados como metas ou diretrizes da Administração Pública. Por conseguinte, o interesse público pode, num caso específico, residir na implementação de um interesse coletivo, mas também na de um interesse individual (BINEMBOJM, 2008, 104).

Essa indeterminabilidade do conceito por si só exige construção

argumentativa, à luz dos elementos do caso concreto, através do uso da ponderação

e do princípio da proporcionalidade, para verificação da prevalência ou não do

interesse público sobre o individual. A própria dificuldade em identificar quando o

interesse público reside na própria prevalência de um direito fundamental individual

ou quando reside na sua limitação em um interesse contraposto da coletividade

exige essa postura de ponderação pela Administração.

Além disso, é importante salientar que o conceito tradicionalmente veiculado

entre os publicistas e administrativistas e com o qual estes normalmente trabalham

remete necessariamente à figura do Estado. Como se o Estado atuasse como um

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“filtro”, ou um árbitro da vontade coletiva quanto à realização dos seus anseios. É

como se coubesse ao Estado não só a consecução dos fins públicos, como também

a própria indicação do seu conteúdo, vale dizer, o que é e o que não é interesse

público, ou quando ele ocorre ou não. Nesse sentido VEDEL e DEVOLVÈ apud

MANCUSO:

E assim, sob essa acepção política, o interesse público se apresenta como “um arbitrage entre lês divers intérêts particuliers”. Ora essa arbitragem se prende a critério quantitativo (por exemplo, na construção de uma estrada, sacrifica-se o interesse dos proprietários lindeiros, privilegiando o interesse dos que a usarão, por que estes são a mais numerosos), ora o critério qualitativo (os doentes pobres, em certa comunidade, podendo ser pouco numerosos; mas o valor do interesse à saúde pública prevalece sobre os interesses pecuniários dos demais cidadãos saudáveis; logo, a estes cabe contribuir pra um fundo se assistência médica gratuita) (1997, 30).

O referido autor faz uma clara distinção entre o que seja interesse social e

interesse difuso, ao dispor que:

“Interesse social”, no sentido amplo que ora nos concerne é o interesse que consulta à maioria da sociedade civil: o interesse que reflete o que esta sociedade entende por “bem comum”; o anseio de proteção à res publica; a tutela daqueles valores e bens mais elevados, os quais essa sociedade, espontaneamente, escolheu como sendo os mais relevantes.

Assim interesse social corresponderia ao interesse real da sociedade civil e

interesse público é o interesse que social como a Administração Pública interpreta

ou o afirma.

Adotando uma distinção similar, BARROSO, fala em interesse público

primário e secundário, o primeiro significando realmente o interesse da sociedade,

sintetizando valores como bem-estar, justiça social e segurança, e o segundo

significando o interesse jurídico da pessoa de direito público (União, Estados,

Município), ou o Erário. No entanto, o referido autor, que não nega a supremacia do

interesse público, entende essa supremacia como restrita ao interesse público

primário, jamais se podendo falar em supremacia do interesse secundário com

relação ao particular. Entende que “se ambos entrarem em rota de colisão, caberá

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ao interprete proceder a ponderação desses interesses, à vista dos elementos

normativos e fáticos relevantes ao caso concreto” (2013, 223).

De fato, é a própria ponderação que poderá permitir a identificação em cada

caso, o que é interesse primário ou secundário, quando esses interesses convergem

num mesmo sentido ou não. Para além dos desvios de finalidade, para os quais o

direito administrativo clássico também apresenta remédios, é preciso ainda se

reconhecer que o administrador também age motivado de certo pragmatismo político

ou administrativo, e nesse caso as razões da Administração Pública, aí significando

o interesse público secundário, poderão seguir movidas por maiorias de ocasião,

distanciando-se do interesse social, que poderá no caso coincidir com a posição de

minorias, ou até mesmo de indivíduos.

A supremacia da administração pública sobre o particular não decorre da sua

condição em si mesma, mas dos fins que tem como função realizar, que estarão

sujeitos a juízo de ponderação em cada caso, quando implicarem em restrição a

direitos de particular. Admitindo-se a pluralidade de noções de interesse público,

como interesses gerais da coletividade e interesses da Máquina estatal em si, essa

supremacia não é automática nem autônoma.

Se não existe paritariedade nas relações da Administração com o particular,

tal fato não constitui um óbice à aplicação da boa-fé, mas antes mais um argumento

em seu favor. Se a postura da Administração deve ser ponderada e proporcional aos

interesses que objetiva, e eventualmente levar em conta os interesses individuais,

mais fortes são as razões para a aplicação do princípio da confiança, inclusive como

limite ético a uma eventual posição de supremacia.

Conforme relata GIACOMUZZI, a boa-fé encontra aplicação inicialmente em

relações jurídicas marcadas por desigualdade e não em relações contratuais

paritárias:

De fato, na origem o Direito Romano a fides comportava a garantia de um sujeito em posição de inferioridade em relação a outro, o qual exercitava nos seus confrontos um poder de disposição. Ao indivíduo ou ao povo submetido ao poder de outro não restava senão apelar para a fé e para a boa vontade do

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vencedor, a fim de que este, em nome de superiores princípios religiosos, não impusesse ao vencido obrigações muito gravosas de suportar (MANGANARO apud GIACOMUZZI, 2013, 262).

Do ponto de vista da legalidade como legitimação, é necessário se inferir que

há muito tempo não se tem admitido apenas a lei como fonte de legitimação da

conduta do administrador público. A lei é apenas mais uma das fontes legitimadoras

da conduta do administrador público, que deverá ter por base a própria Constituição.

Esse segundo óbice apontado a partir da legalidade como limite é voltado

para um conceito utilitarista. Se a legalidade é o limite de atuação da Administração,

a boa-fé não representaria nenhum papel, posto que os atos seriam válidos ou

inválidos conforme esse limite da lei.

Nesse caso, exclui-se a análise da conduta do campo da moralidade, o que

não é mais passível de aceitação, principalmente em face da própria prescrição de

moralidade à Administração Pública feita pela Constituição em seu art. 37. A

inserção constitucional tanto de um princípio de legalidade quanto de um princípio

de moralidade implica que ambos cobrem dois campos distintos e que para além do

cumprimento das exigências legais, a conduta administrativa também deve ser ética.

FERRAZ JÚNIOR, tratando da implicação do preceito moral sobre a validade

jurídica ensina que:

A justiça, enquanto doador de sentido ao direito é um princípio regulativo do direito, mas não constitutivo. Ou seja, embora o direito imoral seja destituído de sentido, isso quer dizer que não exista concretamente. A imoralidade faz com que a obrigação jurídica perca sentido, mas não torna a obrigação jurídica juridicamente inválida (2008, 334).

A instituição de um princípio de moralidade ao lado da legalidade implica que

o direito não é um fim em si mesmo, deve estar provido de um sentido. Em se

tratando da Administração Pública, o sentido se encontra no interesse público que

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implicará em necessidade de trato ético, pois aquele que exerce a função pública o

faz em nome da coletividade e não por si mesmo.

Dizer que a legalidade em si mesma é bastante, significa ignorar a própria

finalidade social do direito e que de fato esses fins podem ser subvertidos na mera

aplicação da legalidade. Vide por exemplo as noções de abuso de direito e os

desvios de poder, também desenvolvidas no Direito Administrativo, onde se tem

formalmente o exercício de um direito reconhecido, para atingir fins diversos dos

seus propósitos.

Ainda sob o prisma da utilidade da boa-fé perante o princípio da legalidade, é

preciso pensar ainda nos desdobramentos deste princípio como o da presunção da

legalidade dos atos administrativos, do qual por vezes a Administração faz uso, em

detrimento de direitos subjetivos dos particulares ou mesmo em contraposição a

legitimas expectativas dos particulares que confiaram na legalidade desses mesmos

atos.

No que tange a migração dos estudos e conceitos da Boa-fé no Direito

Privado para o campo do Direito Público, os argumentos inicialmente que se

colocam são favoráveis. Em primeiro lugar, como já mencionado, é perceptível a

aplicação de vários institutos ligados à boa-fé pelo direito administrativo, institutos

esses que guardam aplicação similar no direito privado. A possibilidade de

aproveitamento dos estudos da boa-fé no Direito Privado para o Direito

Administrativo permitiria consideráveis avanços metodológicos e inclusive o

tratamento sistemático desses institutos.

Em segundo lugar, a inexistência de barreiras que configurem óbice a

aplicação da boa-fé ao regime de direito público. Como visto anteriormente,

tradicionais dogmas do Direito Administrativo estão sendo desconstruídos sob a

perspectiva da constitucionalização do direito, processo similar ao que ocorre no

direito privado, que vive um processo de releitura da autonomia privada pelo sistema

de direitos fundamentais, contribuindo assim para uma diluição da dicotomia direito

público versus direito privado. Vale dizer que esses dogmas do Direito

Administrativo, era o que tornava o regime de Direito Administrativo tão singular em

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relação ao Direito Privado, centrado na autonomia da vontade e basicamente

analisado a partir de uma compreensão sinalagmática da relação jurídica.

A releitura de tais institutos num claro sentido de submissão do regime

jurídico administrativo ao sistema constitucional de direitos fundamentais termina por

tirar a importância dessas singularidades como elementos diferenciadores, de forma

que a aplicabilidade da boa-fé no direito administrativo deverá preencher um único

requisito: a compatibilidade com o regime do Estado Democrático de Direito, como

realizador de direitos fundamentais individuais e coletivos.

De fato, a Supremacia do Interesse Público sobre o interesse privado, não é

mais um princípio que se aplica sem reflexão e ponderação sobre quais são os

interesses reais existentes na relação jurídica sob análise. Pelos mesmos motivos a

diferença qualitativa existente entre a Administração Pública e o administrado não

pode configurar óbice em razão da própria função-finalidade da Administração. Não

há interesse público a ser perseguido pela Administração que não redunde em

interesse dos próprios administrados. Talvez por isso, tenha-se muito mais um

motivo para a aplicação da Boa-fé às relações Estado-cidadão. Se no Estado

Democrático de Direito o interesse a ser realizado é o primário, o da coletividade, é

de se entender que o Estado, ao invés de mais liberdade, tem limites ainda mais

rígidos para a sua atuação, e nesse sentido, o princípio da Boa-fé se apresenta

como ferramenta importante, como elemento de contornos éticos a exigir da atuação

pública, ponderação e responsabilidade em sua atuação.

Se a aplicação da teoria da confiança e da boa-fé é uma regra de fundo ético,

é ilógico aplicá-la às relações privadas, de qualquer natureza que sejam e deixar de

aplicá-las às relações entre cidadãos e o Estado. A Ética é uma exigência da própria

justiça material à qual o direito contemporâneo deve estar orientado. ROSENVALD e

FARIAS nesse sentido ressaltam que:

Ora, se a ética é a ciência do fim para o qual a conduta dos homens deve ser orientada, temos que, no Direito, o ideal para o qual uma sociedade orientará os seus fins e ações será justamente na afirmação livre e racional do valor justiça. O ordenamento jurídico é um elemento de luta e afirmação de justiça. Entre o direito-técnica e o direito-ética, deverá prevalecer a força do Direito

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sobre o Direito força. O direito é uma técnica a serviço de uma ética (2006, 33-34).

Isso posto, não há razões para que se exclua o Estado dos deveres da Boa-fé

e da tutela da confiança. Se o Estado é o fiduciário do interesse público, hoje em

razão da multiplicação de direitos fundamentais a serem concretizados por esse

mesmo Estado, nada mais justo que esteja vinculado a regras éticas. O interesse

público, como interesse da coletividade, se realizará não só com o alcance dos

objetivos da coletividade, mas também como a forma com que o Estado procede

para o alcance desses fins.

3.5. - Os Efeitos da aplicação do princípio da Boa-fé.

Considerando-se ainda a dificuldade de atribuir um conceito bastante ao

princípio da boa-fé, e que ele expressa uma série de ideias que vão ter como centro

o valor ética, é difícil compreender o princípio em análise sem um estudo e

sistematização dos seus efeitos. A dificuldade em encontrar uma fórmula simples

para isso é de igual grandeza tanto no direito privado quanto no direito público, ante

a diversidade com que se pode quebrar a confiança legítima e assim contrariar o

princípio da boa-fé.

O presente estudo, parte da transmigração dos estudos acerca da boa-fé tal

qual concebida no Direito Privado para o Direito Administrativo, como mecanismo de

tutela da confiança, na relação entre Administração Pública e administrados,

guardadas as peculiaridades da situação jurídica em cada caso concreto. Este é o

caminho adotado por diversos estudiosos do tema no Direito Administrativo, como

GONZÁLEZ PÉREZ em sua obra El princípio de la buena fe en el derecho

administrativo (2004) e na doutrina pátria NOBRE JÚNIOR (2002) e GIACOMUZZI

(2013). O caminho comum adotado pelo direito civil é a divisão da operabilidade do

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princípio da boa-fé em três funções que passa-se a analisar agora, buscando

verificar sua compatibilidade com o direito administrativo. Essas três funções são a

Função Hermenêutica-integrativa, a Função Extensiva de deveres jurídicos e a

Função Restritiva de Direitos Subjetivos, as quais se passa a analisar em separado.

A) A função Hermenêutico-Integrativa:

A boa-fé objetiva exerce importante função como elemento de interpretação

dos negócios jurídicos. Das chamadas funções da boa-fé objetiva, a função

hermenêutico-integrativa é a única que se encontra claramente expressa no Código

Civil, nos seus artigos 113 e 421, não obstante as demais se encontrarem implícitas.

Conhecendo a riqueza do instituto e sabendo que o mesmo comporta uma

gama de ideias que impedem até uma conceituação definitiva, fica fácil entender que

a boa-fé vai impregnar completamente as relações privadas, especialmente as

relações contratuais, desde os momentos pré-negociais até a fase pós-contratual

onde se tem efeitos reflexos dos contratos. Normal que em todos esses momentos

tenha-se o desenrolar de situações que nem sempre são previstas ou previsíveis

pelos contratantes e que também não encontram referências nas disposições legais.

A boa-fé atua, como cânone hermenêutico, integrativo frente à necessidade de qualificar esses comportamentos, não previstos, mas essenciais à própria salvaguarda da fattispecie contratual e à plena produção dos efeitos correspondentes ao programa contratual objetivamente posto” (MARTINS-COSTA, 2000, 429).

Nessa função específica, boa-fé significa um critério hermenêutico objetivo de

que o juiz deve se valer na busca da supressão das lacunas não apenas relações

negociais privadas, mas de todas as relações jurídicas inclusive as de direito público

como forma de preservar as justas expectativas das partes envolvidas em

determinada situação jurídica, sempre tendo como foco último as finalidades

econômicas e sociais do direito e no caso da relação entre Administração Pública e

Administrado, do interesse público que é sempre a finalidade última da atuação

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administrativa. Tratando da aplicação do princípio da boa-fé nas relações contratuais

assevera JUDITH MARTINS COSTA que o princípio da boa-fé

deve ser compreendido, neste específico campo funcional, o mandamento imposto ao juiz de não permitir que o contrato, como regulação objetiva, dotada de um específico sentido, atinja finalidade oposta ou contrária àquela que, razoavelmente, à vista do seu escopo-econômico social, seria lícito esperar (MARTINS-COSTA, 2000, 432).

Essa função, embora não se possa dizer ser a mais importante, já que todas

vão ter papel essencial à concreção da ética nos negócios jurídicos é sem dúvidas

essencial, pois é a que permite que se evidenciem as demais funções que a boa-fé

irá exercer nas relações jurídicas em geral.

B) Função Restritiva de Direitos.

Sob a ótica dessa função, a boa-fé assume função semelhante à figura do

abuso de direito, não admitindo condutas que contrariem o mandamento de agir com

lealdade e probidade, pois somente assim o direito alcançará as funções sociais que

lhe são cometidas. Deve- se observar primeiramente que a Função Restritiva de

Direitos da boa-fé objetiva não se confunde com a figura do abuso de direto.

Construído inicialmente pela doutrina francesa (SERPA LOPES, 2000) o abuso de

direito acontece quando há o desvio ou a extrapolação da função ou finalidade social

do direito. Assim, o limite do direito subjetivo é o seu próprio escopo, de forma que

se configurará o abuso de direito todas as vezes que esse limite for ultrapassado.

Toda regra do ordenamento jurídico que cria um direito subjetivo, tem uma finalidade

social que também é o elemento que justifica a sua existência. A partir do momento

em que é extrapolada essa finalidade, tem-se configurada a figura do abuso de

direito.

A função restritiva da boa-fé objetiva, embora abarque também a restrição a

comportamentos abusivos, tende a ter um efeito muito mais amplo do que a mera

limitação daqueles. Ao exigir um padrão leal e honesto de conduta, termina alcançar

situações que estão além do abuso de direito. Exemplos cabais disso são os casos

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de Adimplemento Substancial do Contrato no campo do direito privado e a Vedação

ao Comportamento Contraditório.

Não se pode dizer que aquele que exige a rescisão contratual de um contrato

que foi substancialmente adimplido, age com abuso de Direito. Assim, a teoria do

abuso de direito é insuficiente para alcançar e proteger contra determinado credor

aquele devedor que deixou de pagar duas, de trezentos e sessenta prestações

devidas. Por outro lado, tomando-se por base os deveres de lealdade e cooperação,

inerentes à boa-fé, é possível se inibir uma resolução contratual no exemplo.

Da mesma forma no caso da Vedação ao comportamento contraditório. O

venire contra factum proprium consubstancia-se na existência de dois

comportamentos mantidos por uma pessoa, de forma diferida no tempo que,

individualmente considerados são lícitos. Ocorre que o primeiro comportamento é

contrariado pelo segundo. Assim tem-se situações em que uma pessoa, por um

certo período de tempo, comporta-se de determinada maneira gerando expectativas

em outra de que seu comportamento permanecerá inalterado.

Em vista desse comportamento, existe um investimento, cria-se uma

confiança de que a conduta será a adotada anteriormente, mas depois de certo

tempo, a conduta é alterada por comportamento contrário ao inicial, quebrando

dessa forma a boa-fé objetiva (que tem como um dos fundamentos básicos a tutela

da confiança e da justa expectativa).

(...) o reconhecimento da necessidade da tutela da confiança desloca a atenção do direito, que deixa de se centrar exclusivamente sobre a fonte das condutas para observar também os efeitos fáticos de sua adoção. Passa-se da obsessão pelo sujeito e pela sua vontade individual, como fonte primordial das obrigações, para uma visão que, solidária, se faz atenta à repercussão externa dos atos individuais sobre os diversos centros de interesses, atribuindo-lhes eficácia obrigacional independentemente da vontade ou da intenção do sujeito que os praticou (SCHREIBER, 2007, 94)

Ensina ainda Menezes Cordeiro que, “a locução ‘venire contra factum

proprium’ traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o

comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Esse exercício é tido, sem

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147

contestação por parte da doutrina que o conhece, como inadmissível” (CORDEIRO,

2001, 742).

Não existe uma relação necessária entre o comportamento contraditório e o

Abuso de Direito. É possível que um contratante adote diversas conduta lícitas e que

não exceda aos fins teleológicos do direito objetivo. No entanto, se observadas

essas condutas no contexto da confiança e da justa expectativas também

consubstanciadas no princípio da boa-fé, mesmo escapando à teoria do Abuso de

Direito é possível evitar-se que um contratante se valha de direito estabelecido em

lei ou em cláusula contratual de forma a frustrar a justa expectativa da outra parte.

Com o venire contra factum proprium, por exemplo, pode-se pensar nas

situações em que ato administrativo seja invalidado totalmente ou em parte, pelo

princípio da boa-fé em razão de frustrar a legítima expectativa do administrado

criada por atuação anterior da própria administração pública.

C) A Função Extensiva de Deveres Jurídicos:

MENEZES CORDEIRO, em seu trabalho sobre a boa-fé no direito civil alvitra

a complexidade das relações obrigacionais.

A complexidade intra-obrigacional traduz a ideia de que o vínculo contratual abriga, no seu seio, não um simples dever de prestar, simétrico a uma pretensão creditícia, mas antes vários elementos jurídicos dotados de autonomia bastante para, de um conteúdo unitário, fazerem uma realidade composta (CORDEIRO, 2001, 585).

Essa realidade composta, se observada do ponto de vista ético das relações

jurídicas, implica muitas vezes em extrapolar os deveres dispostos no texto

contratual de forma a buscar a proteção das partes contratantes e de suas razoáveis

expectativas. Não menos complexas serão as relações entre a Administração

Pública e Administrados, cuja relação não pode ser definida simplesmente no plano

da legalidade estrita, ante a multiplicidade de situações que podem surgir e que não

podem ser simplesmente antevistas.

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No direito civil, a par dos deveres já explicitados no texto contratual, a boa-fé

tem o papel de ampliar as obrigações contratuais, integrando-as com obrigações

instrumentais de conservação e respeito ao direito alheio, chamados deveres

anexos. “Deveres de cooperação e proteção dos recíprocos interesses”, e se dirigem

a ambos os participantes do vínculo obrigacional, credor e devedor” (MARTINS-

COSTA, 2000, 439).

Assim, tem-se, por exemplo, o dever do sigilo, como nas situações em que as

partes devem guardar segredos sobre informações e situações que tomaram

conhecimento em razão do contrato ou das negociações pré-contratuais, quando a

difusão da informação possa ser prejudicial à parte contratante; O dever da

informação, para que as partes tenham pleno conhecimento das recíprocas

contraprestações oferecidas e das circunstâncias que as envolvem, dever que

ganha relevo numa sociedade de consumo de massa e em que os objetos

contratados muitas vezes envolvem conhecimento técnico além da capacidade do

cidadão comum; O dever da colaboração, como os da prestação de assistência

técnica na utilização de determinado produto que exija conhecimento técnico

especializado, ou o dever de não dificultar o pagamento da obrigação, como na

situação em que a empresa vendedora envia o boleto bancário para pagamento de

forma que chegue com antecedência razoável ao consumidor; O dever do cuidado e

proteção, como o do guardião de coisa que não se limita a guardar o bem, mas

também tomar todo o cuidado necessário para a conservação da coisa com o seu

adequado acondicionamento.

Esses deveres, recíprocos à ambas as partes, vale ressaltar não são

destinados a diretamente permitir o desenvolvimento da relação contratual principal,

como ocorreria com uma garantia real num contrato mútuo. Tratam-se de deveres

que tem o escopo de atender justa expectativa das partes, obrigando-as por esse

motivo a realizar todos os atos necessários para que seja alcançado o fim desejado,

ainda que tal comportamento não tenha sido explicitado como obrigação contratual,

tendo em vista as finalidades econômico-sociais específicas do contrato e que não

se onere excessivamente nenhuma das partes.

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149

Da mesma forma, no Direito Administrativo pode-se falar na criação de

deveres anexos para a administração e administrado, ampliando o feixe de deveres

de ambos de um para com o outro, para além do instrumento que rege a relação

entre ambos que vem a ser a própria lei.

Neste caso, pode-se recordar o já o paradigmático caso da viúva da

República Democrática Alemã citado retro, em que a Administração Pública para

além da obrigação prevista em lei, se viu obrigada a arcar com o benefício para

aquela senhora em razão da legítima expectativa criada por sua conduta anterior. Se

o princípio da boa-fé pode determinar a invalidação de um ato administrativo que

quebrar uma expectativa legítima criada, da mesma forma, pode permitir justamente

o contrário: a manutenção dos efeitos do ato administrativo, que em regra deveriam

desaparecer do universo jurídico.

O fundamento constitucional do princípio da boa-fé se encontra no próprio

princípio da dignidade da pessoa humana (proclamado no inciso III do art. 1 da

Constituição) e na construção de uma sociedade justa e solidária como objetivo

constitucional (art. 3, I da Constituição Federal). A visão conjunta desses dois

dispositivos constitucionais nos remete necessariamente a visão do ser humano

como um indivíduo, mas um indivíduo inserto num núcleo maior, a comunidade,

onde a dignidade de cada indivíduo e a comunidade como um organismo justo e

solidário se constroem em todas as relações jurídicas com base em valores éticos.

A tutela da personalidade não é orientada apenas aos direitos individuais pertencentes ao sujeito no seu precípuo e exclusivo interesse, mas, sim, aos direitos individuais sociais, que têm uma forte carga de solidariedade, que constitui o seu pressuposto e também o seu fundamento. Eles não devem mais ser entendidos como pertencentes ao indivíduo fora da comunidade na qual vive, mas, antes, como instrumentos para construir uma comunidade que se torna, assim, o meio para a sua realização. (PERLINGIERI, 1999, 38)

Assim, a boa-fé como princípio contratual implica numa superação do

individualismo da mera autonomia da vontade concebida na perspectiva tradicional

dos negócios jurídicos e a reconstrução das relações contratuais sob uma ótica da

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valorização do indivíduo enquanto ser humano, onde a sua inserção na comunidade

socialmente solidária é mecanismo de sua realização individual.

No âmbito da relação entre cidadão e Estado, a boa-fé invoca

necessariamente a raiz do Estado concebido sob a égide do direito público

contemporâneo, um Estado instrumental que não tem outra razão de ser que não a

realização dos interesses dos legítimos titulares do poder político, o povo.

Sendo forte regra de cunho ético, a boa-fé invoca necessariamente uma

atuação reflexiva também do Estado, que deverá se preocupar mais com os

impactos de suas ações sobre a pessoa humana em si mesmo considerada, e seus

projetos de vida e não sobre uma ideia abstrata de povo e de cidadão. A exigência

da boa-fé no modo de agir do Estado reforça a figura da moralidade como princípio

da atuação do administração pública, na medida em que essa “insere um elemento

finalístico na análise de legalidade de todas as ações estatais, de modo que o

cumprimento da norma jurídica pela autoridade pública somente pode ser válido

quando vinculado aos valores em que tal norma se funda” (MARRARA, 2012, 174).

A Boa-fé enquanto princípio seja no direito público ou no direito privado, em

razão do seu alto caráter solidarista, promove o respeito mútuo e garante

confiabilidade nas relações jurídicas intersubjetivas que se travam cotidianamente, o

que em última instância permite maior segurança e maior satisfação na construção

de projetos de vida.

A boa-fé no âmbito das relações Estado versus Cidadão cria condições para

substituir uma relação baseada em subordinação por uma relação baseada em

cooperação. Cooperação administrativa que se por um lado abre caminho para

permitir uma colaboração do cidadão com o Estado capaz de contribuir para a

realização do interesse público primário, o interesse coletivo propriamente, por outro

lado, pode permitir ao cidadão auxílio no exercício de seus direitos e cumprimento

dos seus deveres.

O que fica claro é que o princípio da boa-fé implica em uma atuação reflexiva,

preocupada com os efeitos que a conduta mantida terá sobre a esfera de direitos e

deveres do outro, de forma que, a atuação irrefletida, irrazoável, indigna ou incapaz

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de gerar confiança, poderá ser corrigida, suprimida ou readequada de forma a

espelhar uma conduta razoável, preocupada com seus impactos na vida de outrem,

e no caso do Estado, nos impactos reais de sua atuação na vida do cidadão.

3.6. - Boa-fé e Confiança no Direito Administrativo brasileiro

Para vários autores princípio da boa-fé no direito administrativo encontra

receptividade no art. 37, caput da Constituição Federal ao informar expressamente a

Moralidade como princípio regente da Administração Pública, conforme informa boa

parte da doutrina administrativista. BANDEIRA DE MELLO, ao tratar da Moralidade

Administrativa, informa que

compreendem-se em seu âmbito, como é evidente, os chamados princípios da lealdade e da boa-fé, tão oportunamente encarecidos pelo mestre espanhol Jesus Gonzáles Péres em monografia preciosa. Segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos (2011, 119).

GIACOMUZZI, por seu turno defende o princípio da moralidade como

equivalente juspublicístico da boa-fé do direito privado, em razão da pouco

desenvolvimento desta no campo do direito público e por enxergar a necessidade de

um princípio que lhe faça às vezes, além de apontar similaridades na origem

histórica.

Nada mais natural que se vincule a origem da boa-fé à origem da moralidade, portanto, em atitude interpretativa que, com olhos atentos ao passado, aproveita os ensinamentos do direito privado e lança a proposta dogmática ao direito público. Assim, se o direito público não desenvolveu o instituto capaz de

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abarcar as consequências jurídicas advindas do desenvolvimento da boa-fé jusprivatista, nada impede que com ela – e suas consequências – se preencha o conteúdo do princípio da moralidade, mormente se não há serio obstáculo metodológico ao seu progresso (2013, 241).

Como visto anteriormente, alguns autores, embora sem tratar expressamente

da boa-fé no direito administrativo, também se referem como fundamento da boa-fé

o princípio constitucional da solidariedade social, por considerarem a boa-fé uma

regra de conduta de alto teor solidarizante. Se assim o é, pelos mesmos motivos

também pode-se indicar o princípio da solidariedade como da boa-fé no direito

público. Como tratado anteriormente, conjugando a proteção da pessoa humana e a

construção de uma sociedade de base solidarista, onde todas as relações jurídicas

se constroem com base em valores éticos, certo é também que o Estado participe

desta construção e dessa interação comunitária.

Percorrendo o mesmo caminho do direito comparado, o princípio da Boa-fé no

Direito Administrativo brasileiro também tem seu impulso inicial por meio de

construções jurisprudenciais, por onde tem caminho mais firme, embora também

possa ser encontrado na legislação ordinária, de forma insipiente.

Passa-se agora a uma breve análise da abordagem do princípio da Proteção

da Confiança e da Boa-fé no judiciário brasileiro, especialmente no STF e no STJ,

salientando que o princípio da confiança e da boa-fé, vem sendo aplicado nos

julgamentos como fundamento de decisão e resta consolidado muito embora as

decisões judiciais nem sempre se referiram a ele de forma clara, por vezes deixando

de referir-se a ele de maneira expressa ou, por vezes, o fazendo referindo-se à

“segurança jurídica” e “boa-fé”, “boa-fé” e “confiança” de forma estanque ou como

um único princípio. Tratam-se de variações que não têm importância prática, visto

que a própria jurisprudência não faz diferenciações e atribui-lhes a mesma função.

Para o presente trabalho, que parte do princípio da identidade entre boa-fé e

confiança, e em certo sentido até da segurança jurídica, as expressões referem-se a

uma mesma figura, como dito retro. A ressalva é feita em razão das referências

serem feitas de forma desorganizada o que pode induzir a equívocos.

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153

A partir da análise jurisprudencial será possível uma melhor identificação dos

contornos jurídicos do princípio de tutela da confiança e a compreensão da sua

aplicação – ou possibilidades de aplicação - no direito brasileiro.

No STF, merece menção os julgados referentes à Medida Cautelar No. 2.900-

3/RS e aos Mandados de Segurança No. 24.268/MG e 22.35/DF todos de relatoria

do Min. Gilmar Mendes, que tem como mérito o reconhecimento do princípio da

“segurança jurídica” com princípios constitucionais como subprincípios do Estado de

Direito.

No primeiro caso, a Medida Cautelar de No. 2.900-3/RS trata de medida

jurídica de aluna da Universidade Federal de Pelotas, que foi aprovada em concurso

público da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafo, sendo lotada em Porto

Alegre. Diante da necessidade de alteração de domicílio, pleiteou a transferência

administrativa para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com fulcro na Lei

No. 9.536/97, que foi negada, por considerarem inaplicável à aluna o conceito de

servidor público, já que ela concursou-se para ingresso em uma Empresa Pública.

Impetrando Mandado de Segurança contra a decisão, a aluna viu seu pleito atendido

no sentido de se garantir sua transferência para a UFRGS. Quando em segunda

instância o Tribunal Regional Federal da 4ª Região apreciou a questão, reformou a

decisão concedente da segurança, o que motivou Recurso Extraordinário ao STF e

a Medida Cautelar, como forma de assegurar efeito suspensivo ao recurso.

O Min. Gilmar Mendes ao relatar o caso tratou com precisão do princípio

proteção da confiança, valendo-se dele para conceder a liminar e preservar a

situação jurídica da aluna que já se encontrava em fase final de conclusão do curso

na UFRGS, salientando ainda que a “segurança jurídica” no Estado de Direito, tem

valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da

própria justiça material. A decisão foi referendada pela 2ª turma do STF por

unanimidade.

Trata-se de uma decisão judicial que aplicou o princípio da proteção da

confiança com fito de preservar os efeitos jurídicos de outra decisão judicial, que

havia criado expectativa legítima em favor da aluna transferida, que já estava na

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iminência de concluir o curso perante a universidade e assim gozar plenamente os

efeitos da tutela pretendida.

O segundo caso é o Mandado de Segurança No. 24.268/MG. Nesse caso a

impetrante é pensionista na condição de beneficiária adotada por seu bisavô, uma

semana antes que esse viesse a falecer. O Tribunal de Contas da União cancelou a

pensão, recebida por dezoito anos, por entender que não havia sido realizada por

instrumento jurídico adequado. A relatora original, Min. Ellen Gracie, afastou os

argumentos iniciais por entender que as circunstâncias evidenciavam simulação de

ato jurídico com propósito de manutenção do benefício previdenciário. O Min. Gilmar

Mendes, abriu voto de divergência, fundamentando a invalidade do cancelamento

por inobservância dos princípios do contraditório e da ampla defesa. No entanto,

embora houvesse levantado divergência por questão formal, o Ministro fez

referência expressa ao princípio da “segurança jurídica”, por conta de ter a

impetrante permanecido recebendo o benefício por quase vinte anos.

O terceiro caso, referente ao MS No. 22.357, refere-se a admissão de

funcionários da INFRAERO que foram admitidos sem concurso público, contrariando

assim o disposto na Constituição no art. 37, I e II. Ocorre que no passado, em razão

da redação originária do art. 173, § 1º da Constituição, que prescrevia que “a

empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem

atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico das empresas privadas, inclusive

quanto às obrigações trabalhistas e tributárias” havia séria controvérsia sobre a

necessidade ou não de concurso público para o ingresso em empresa pública, como

o caso da INFRAERO. A controvérsia restou pacificada posteriormente, no Mandado

de Segurança No. 21.322 de relatoria do Min. Paulo Brossard, publicada no Diário

Oficial em 23-04-1993, que submeteu os empregados públicos também à exigência

constitucional de concurso público.

No entanto, o TCU já havia entendido em decisão de 06-06-1990 que só

deveriam ser anulados os atos de admissão posteriores àquela data, e não os

anteriores, mesmo que realizados após a vigência da Constituição de 1988. Tal

posicionamento se consolidou na jurisprudência daquela corte de contas. Com a

decisão do STF, o TCU terminou por rever sua posição, determinando a

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155

regularização de admissões sem concurso público, o que implicaria na demissão

dos impetrantes do Mandado de Segurança. Nesse caso, o Min. Gilmar Mendes,

novamente na condição de relator votou pela estabilização da situação jurídica dos

impetrantes e fundamentou sua decisão na proteção da confiança (novamente sob a

designação de “segurança jurídica), ao verificar que passados mais de 10 anos das

admissões, aquelas se constituíram como situações jurídicas merecedoras de

amparo, mencionando expressamente “o longo tempo transcorrido das contratações

e a necessidade de garantir segurança jurídica a pessoas que agiram de boa-fé”.

Da mesma forma que o STF, o STJ vem aplicando o princípio da confiança,

inclusive com mais frequência e alcance que o pretório excelso. Para o STJ vale a

mesma ressalva feita anteriormente, a respeito da confusão da terminologia usada

para designar a proteção da confiança.

Um caso que merece destaque é Recurso Ordinário em Mandado de

Segurança No. 407, julgado em 07-08-1991. Tratando-se mais uma vez de

servidores públicos, tem-se a nomeação de servidores aprovados em concurso

público que foram nomeados e entraram em exercício de suas funções junto à

Secretaria de Fazenda do Estado do Maranhão. O governo estadual, sob o

argumento de invalidade do próprio concurso, anulou as investiduras por meio de

um Decreto de efeitos concretos. Os servidores ingressaram com Mandado de

Segurança junto ao Tribunal de Justiça do Maranhão que denegou a segurança.

Ingressando então com o recurso em comento, a 1ª turma do STJ entendeu que a

anulação não poderia ter se dado de forma unilateral, sem observância do

contraditório e da ampla defesa. No entanto, referiu-se também à necessidade de

que o princípio da legalidade fosse confrontado com outros princípios, tais como o

da segurança jurídica e o da boa-fé. O relator, Min. Gomes de Barros, consignou

ainda que o princípio da supremacia do interesse público deixou a muito de ser

considerado um princípio absoluto, tendo inclusive se prestado a deformações,

sendo necessário inclusive “temperá-lo com velhas regras de Direito Privado, que

homenageiam a boa-fé e a segurança jurídica”. Percebe-se aqui mais uma vez de

forma clara a ponderação dos tradicionais princípios do Direito Administrativo com a

segurança jurídica, como forma de proteção de legítimas expectativas daqueles que

confiaram nos atos estatais que lhes redundou em benefícios.

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Outro julgado interessante do STJ a dar guarida expressa aos princípios da

boa-fé e da confiança no direito público foi o Recurso Especial No. 184.487-SP,

relatado pelo Min. Ruy Rosado de Aguiar. Nesse caso, o município de Limeira (SP)

celebrara com particulares contrato de promessa de compra e venda de lote situado

em loteamento inexistente, já que embora houvesse a divisão da gleba de terras, a

mesma não se encontrava registrada no Serviço Registral de Imóveis e nem sequer

chegou a ser urbanizada por estar próxima ao Aeroporto Municipal. Na gestão

municipal posterior, o Município promoveu a anulação dos contratos promissórios,

sob a alegação justamente da falta de regularização e registro. Chegando o caso ao

STJ, este entendeu pela impossibilidade da anulação dos contratos promissórios,

entendendo que na vigência da Lei No. 6.766 de 19 de dezembro 79 – Lei Federal

de Parcelamento do Solo Urbano – a qual incumbe ao município tratar de regularizar

loteamentos irregulares promovidos por terceiros para fins de defesa do direitos dos

adquirentes dos lotes, mais razão existia para a tomada de providências pelo

município quando a promessa foi feita por ele próprio.

O voto do relator menciona expressamente a boa-fé e a necessidade de

proteção da confiança dos cidadãos:

Sabe-se que o princípio da boa-fé deve ser atendido também pela Administração Pública, e até com mais razão por ela, e o seu comportamento nas relações com os cidadãos pode ser controlado pela teoria dos atos próprios, que não lhe permite voltar sobre os próprios passos, depois de estabelecer relações em cuja seriedade os cidadãos confiaram. “A salvaguarda da boa-fé e a manutenção da confiança formam a base de todo o tráfego jurídico e em particular de toda a vinculação jurídica individual. Por isso, não se pode limitá-lo às relações obrigacionais, mas ampliá-lo sempre que exista qualquer vinculação jurídica, ou seja, tanto no direito privado, como no direito público”. (Karl Larenz, Derecho de Obligaciones, vol. I, p. 144). Insistindo nesse ponto de vista, Jesús Gonzáles Pérez, no seu El principio General de la Buena Fe em el Derecho Administrativo, observa que todas as pessoas, inclusive as de direito público, devem pautar sua conduta de acordo com o princípio da lealdade, sendo improcedente a pretensão dirigida à anulação por efeitos formais do ato praticado por quem aceitar o cumprimento da outra parte.

Seguindo os passos do que ocorreu em vários outros países, como o caso já

citado da Alemanha, o desenvolvimento da teoria da proteção da confiança e da

boa-fé no Brasil primeiro se desenvolveu na jurisprudência, para a seguir abrir

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caminho na legislação. É preciso salientar que, mesmo que se fale em um

desenvolvimento pioneiro na jurisprudência, as teorias a respeito da proteção da

confiança não foram tão estudadas no Direito Público como o foram e são no Direito

Privado. Mais do que isso, o estudo da proteção da confiança no Brasil tem como

marco significativo a jurisprudência construída a partir da promulgação da

Constituição de 1988. Mesmo no campo doutrinário, não existem muitos estudos

relativos à proteção da confiança no Direito Administrativo, como ocorre em outros

campos.

No âmbito do direito positivado, o pioneirismo cabe à Lei No. 8.666 de 21 de

junho 1993 (Lei de Licitações) que dispõe em seu art. 59, parágrafo único, que “a

nulidade (do contrato administrativo) não exonera a Administração do dever de

indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que for

declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que lhe seja

imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa”. O mérito do

dispositivo está justamente na quebra do velho paradigma da extirpação de todo e

qualquer efeito do ato nulo e nesse sentido promove, ao menos parcialmente a

proteção da expectativa daquele que contrata com a administração pública, em

razão da aparente validade do ato administrativo, que inclusive começou a executar

e que posteriormente é invalidado.

Merecem ainda referência as leis 9.868 de 10 de novembro de 1999, que

dispõe sobre o processo e julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da

Ação Declaratória de Constitucionalidade por omissão e 9.882 de 3 de dezembro de

1999 que dispõe sobre o processo e julgamento da Arguição de Descumprimento de

Preceito Fundamental. Embora seja da tradição constitucional brasileira a concessão

de efeitos retroativos à inconstitucionalidade da lei, eficácia ex tunc, as referidas leis,

a primeira em seu art. 27 e a segunda em seu art. 11 reconheceram a possibilidade

de modulação dos efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade de lei,

fixando como limite o trânsito em julgado da decisão ou outra data a ser fixada -

adotando efeitos ex nunc ou pro futuro -, levando em consideração razões de

segurança jurídica ou de excepcional interesse social mediante aprovação de dois

terços dos ministros.

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E finalmente, merece menção a Lei Federal No. 9.784 de 29 de janeiro de

1999, que trata do Processo Administrativo no âmbito da Administração Federal. Tal

norma - cuja aplicação não vem se restringindo ao Processo Administrativo, mas a

toda e qualquer atividade administrativa de natureza decisória - estabelece em seu

art. 54 o prazo decadencial de cinco anos, contados da data em que foram

praticados os atos administrativos eivados de vícios de legalidade, quando

concederem efeitos favoráveis aos seus destinatários, para que a Administração

possa anulá-los, salvo se comprovada má-fé. Tal cláusula configura verdadeira

proteção à confiança na medida em que impõe uma limitação temporal ao poder de

anular os atos da administração pública que, mesmo acometidos pelo vício da

ilegalidade, poderão se preservados ocorrendo as circunstâncias previstas (efeitos

benéficos advindos ao administrado, boa-fé e lapso temporal considerável).

Além disso merece menção ainda o art. 2º, caput e parágrafo único, IV e XIII,

da Lei que remetem à proteção da boa-fé13.

O dispositivo legal, além de mencionar claramente o princípio da boa-fé,

pretende ainda a tutela da segurança jurídica na medida em que veda a aplicação

retroativa da norma administrativa. A aplicação da boa-fé, nos termos do dispositivo

citado inclusive figura como forma de proteger a legítima expectativa do

Administrado no Processo Administrativo, surgidas inclusive das práticas passadas e

precedentes abertos pela Administração Pública em casos similares anteriores, de

que a Máquina pública se comportará de forma coerente com os posicionamentos

passados, guardando inclusive coerência lógica com eles. O objetivo é resguardar a

confiança dos cidadãos na atuação da Administração Pública, evitando a quebra da

confiança por interpretações desencontradas no exercício da função administrativa.

13

Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: (...) IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; (...) XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.

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3.7. - A tutela da confiança pelo princípio da Boa-fé em face do Exercício

inadmissível de posições jurídicas: A limitação da atuação administrativa pelas

Figuras típicas

Como visto, resta indubitável a tutela jurídica da confiança no ordenamento

jurídico. Contudo, é impossível prever todas as situações de incidência da tutela da

confiança e da aplicação da boa-fé, especialmente por se tratarem de normas de

cunho principiológico, normas jurídicas imediatamente finalísticas por estabelecerem

um Estado ideal de coisas a ser atingido ou um fim juridicamente relevante, atuando

sobre as condutas dos sujeitos de direitos de modo regressivo (ÁVILA, 2004, 63).

Por isso, contém um grau maior de abstração, aplicando-se a um conjunto amplo e

até mesmo indeterminado de situações.

Isso posto, é difícil identificar a aplicabilidade de um princípio sem que se

tenha ao menos um caso concreto, para se verificar o âmbito da sua incidência. No

entanto, a doutrina e jurisprudência com o tempo vão catalogando elementos em

casos concretos que vão se tornando característicos e determinantes para aplicação

do princípio jurídico. Tal também ocorre com o princípio da tutela da confiança e da

Boa-fé, onde doutrina e jurisprudência tem conseguido identificar nos julgados uma

série de elementos característicos, a exigir a incidência de princípios. Com isso

vem-se construindo um catálogo de exercícios de posições jurídicas cujo traço

comum é justamente a incidência dos princípios da Confiança e da Boa-fé como

elementos de limitação das condutas.

Em razão da pouco desenvolvimento dessa catalogação de condutas típicas

quanto ao princípio da tutela da confiança e da boa-fé no âmbito do direito público,

para efeito deste trabalho, recorre-se à proposta de MENEZES CORDEIRO, de

sistematização desses casos típicos, procurando associar sua aplicação às relações

jurídicas entre a Administração Pública e os cidadãos.

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160

3.7.1. - Venire contra factum proprium.

Já mencionado anteriormente, venire contra factum proprium consubstancia-

se na existência de dois comportamentos mantidos por uma pessoa, de forma

diferida no tempo, que individualmente considerados são lícitos. Ocorre que no

entanto, o segundo comportamento contraria uma real expectativa criada pelo

primeiro que esperava-se se manteria inalterado.

O que se busca no venire contra factum proprium não é a proibição de

condutas contraditórias ou a preservação do primeiro ato praticado. Isso se dará de

forma reflexiva em razão da proteção da confiança gerada em alguém com quem o

agente em contradição se relaciona. Confiança esta gerada pelo primeiro

comportamento e que deverá ser protegido em face de um segundo comportamento

contraditório que, se praticado ou mantido, afetará os interesses e causará danos

àquele que confiou na primeira conduta.

Pode-se dar em diversas situações, desde a situação mais típica em que uma

pessoa pratica dois atos sendo que a prática do primeiro torna irrazoável ao olhar

alheio à prática do segundo, que é concretamente efetivado, bem como a situação

de uma pessoa que pratica certos atos usualmente dando a entender que

continuaria a praticá-los, mas não os pratica, ou de uma pessoa que não pratica

certos atos dando a entender a continuidade da inércia e assim não permanecendo.

Como já dito anteriormente, é necessária que a expectativa seja legítima ou

justa. Aquele que confia deve ter motivos relevantes, e vale dizer, razoáveis para

confiar.

Apontando uma situação típica de incidência do venire contra factum

proprium, apresenta-se um julgado do TJSP, de litígio entre uma administradora de

cartão de crédito e uma consumidora que havia contratado cartão. A consumidora

sempre pagava as faturas em atraso de forma que a consumidora, criou

expectativas de que assim permaneceria. No entanto, em determinada situação a

consumidora ao tentar usar o cartão de crédito o teve recusado em razão de

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cancelamento pela administradora. A administradora alegou a existência de cláusula

contratual que lhe facultava o cancelamento em razão de inadimplemento. O tribunal

no entanto, afastou tal alegação, sob o argumento de que a administradora do

cartão da consumidora teria, com seu repetido comportamento anterior, criado

expectativa legítima na consumidora, de que continuaria a aceitar o pagamento em

atraso sem rescisão do contrato. Segue a ementa do julgamento:

DANO MORAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. NEGATIVAÇÃO NO SERASA E CONSTRANGIMENTO PELA RECUSA DO CARTÃO DE CRÉDITO, CANCELADO PELA RÉ. CARACTERIZAÇÃO. BOA-FÉ OBJETIVA. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. ADMINISTRADORA QUE ACEITAVA PAGAMENTO DAS FATURAS COM ATRASO. COBRANÇA DOS ENCARGOS DA MORA. OCORRÊNCIA. Repentinamente invoca cláusula contratual para considerar o contrato rescindido, a conta encerrada e o débito vencido antecipadamente. Simultaneamente providencia a inclusão do nome do titular no Serasa. Inadmissibilidade. Inversão do comportamento anteriormente adotado e exercício abusivo da posição jurídica. Recurso improvido (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 174.305-4/2-00, São Paulo, 3ª Câmara de Direito Privado A, Relator: Enéas Costa Garcia, J. 16.12.05, V. U., Voto n. 309)

No âmbito da administração pública, tem-se como caso típico de aplicação do

venire contra factum proprium à administração pública o caso já relatado do REsp.

141879/SP que impediu a pretensão do município de Limeira de anular contratos de

promessa de compra e venda com base na falta de regularidade do loteamento,

quando o próprio município era o promissário vendedor.

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3.7.2. - Tu Quoque.

Tu quoque, Brutus, tu quoque, fili mili? É a frase atribuída a Júlio César,

momentos antes de ser assassinado no senado romano em 44 a.C. ao reconhecer

entre seus algozes, Marco Júnio Bruto, a quem considerava como um filho. Tu

quoque significa, literalmente, “até tu” e é expressão conhecida universalmente

como forma de expressar surpresa.

Juridicamente, o tu quoque serve para designar as situações de emprego

desleal de critérios valorativos diversos para situações substancialmente idênticas.

Trata-se da fórmula jurídica de repressão ao que, no vernáculo, se resume como

“dois pesos, duas medidas” (SCHREIBER, 2007, 183).

Tem-se aqui a contradição por uso de critérios valorativos diferentes, para

situações similares. Situação idêntica é o venire contra factum proprium. O venire

contra factum proprium como já dito, se caracteriza pela existência de dois

comportamentos mantidos por alguém, que individualmente considerados são lícitos

mas o segundo contraria o primeiro, contrariando legítimas expectativas surgidas do

primeiro.

A primeira diferença substancial entre estes dois institutos reside no objetivo

atribuído a cada um no desenvolver dos seus estudos. Embora ambos se

assemelhem pela ideia de incoerência e contradição de comportamento, no tu

quoque há historicamente um nítido direcionamento à sanção de quem o pratica e

repressão à má-fé, enquanto no venire contra factum proprium o que se tutela é a

legítima confiança. A segunda diferença é que, para a ocorrência do tu quoque

exige-se uma contradição mais específica. Trata-se da contradição referente ao

exercício de direito subjetivo, de forma que a pessoa que viola uma determinada

norma jurídica, exerce a prerrogativa conferida por essa mesma norma em face de

outrem. O tu quoque configura como abuso de direito a exigência de um direito

subjetivo baseado em uma norma jurídica quando o próprio sujeito de direitos viola

essa norma jurídica com relação à contraparte. A exceção do contrato não cumprido,

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contida no art. 476 do Código Civil brasileiro, consiste num exemplo de positivação

da regra do tu quoque.

No que tange à Administração Publica, o tu quoque teria aplicabilidade no

campo dos contratos administrativos, muito embora seja regra a possibilidade das

chamadas cláusulas exorbitantes, como a que impede a invocação da exceção do

contrato não cumprido por aquele que contrata com a administração hoje a própria

legislação vem admitindo mudanças, inclusive quanto a regra do tu quoque, como

ocorre com a própria Lei de Licitações que contempla algumas hipóteses em que o

particular que contrata com a administração possa alegar a exceção do contrato não

cumprido (art. 78, incisos XIV, XV e XVI). Ademais, em face da administração

pública, pode-se pensar em outras situações, que não apenas a do cumprimento

estrito da obrigação para, aplicação do tu quoque, desde se tenha o

descumprimento de deveres jurídicos por parte da Administração, que por outro lado

exige a contrapartida, ou, o cumprimento dos deveres da contraparte pelos mesmos

fundamentos.

3.6.3. - Exceptio Doli.

A excepcio doli, ou exceção de dolo é uma das formas pela qual a parte pode

deixar de cumprir uma obrigação a que ordinariamente estaria obrigada sob

alegação de dolo da parte contrária.

Trata-se de um meio processual genérico de defesa criado pelos romanos

com fito de impedir ações fundadas no dolo do autor que aos poucos foi ampliada

para abranger qualquer forma de atuação iníqua e contrária à bona fides

(SCHREIBER, 2007, 177).

LOSSO entende como possível a aplicação da exceptio doli no âmbito do

direito administrativo nos contratos firmados entre a Administração e particulares,

quando a Administração exerce um direito que, apesar de reconhecido

contratualmente de forma genérica (por exemplo as cláusulas exorbitantes), mas

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que no caso concreto se apresentem como conduta dolosa e contrária aos padrões

de lealdade que se deve esperar da Administração Pública (LOSSO, 2008, 148).

3.7.4. - Supressio e Surrectio.

Quanto a Suppressio, também conhecida como Caducidade ou Verwirkung no

direito alemão, tem-se a inadmissibilidade da invocação ou exercício de um direito

por seu retardamento desleal.

É a situação do direito que, não tendo sido em certas circunstâncias exercido

durante dado lapso de tempo, não possa mais sê-lo, sem contrariar a boa-fé

(MENEZES CORDEIRO, 2001, 797).

SCHREIBER remete a origem da suppressio ao direito alemão, relatando ter

se desenvolvido após a Primeira Grande Guerra em razão das perturbações

econômicas e pela inflação havidas com o conflito, com a superdesvalorização do

Marco alemão, que fez os tribunais alemães passarem a admitir a correção

monetária de débitos, até mesmo de contratos já cumpridos abandonando o

nominalismo.

Como a diferença de alguns dias no exercício do direito a correção monetária

provocava a multiplicação do valor dos débitos, passou-se a exigir que o credor

informasse o mais rapidamente possível ao devedor acerca de sua pretensão. Em

1923, pela primeira vez o Reichsgericht (Imperial Tribunal de Justiça Alemão com

vezes de corte suprema que funcionou até 1945) decretou a perda do direito de

correção monetária por parte de um empreiteiro que havia retardado por mais de

dois meses a comunicação ao seu cliente acerca da pretensão de correção no preço

(2007, 186). Com o tempo, a aplicação do instituto foi se expandindo para outros

ramos do direito civil e percebeu-se que a deslealdade que perquiria não estava no

retardamento em si do exercício do direito, mas na violação às normais expectativas

daquele que acreditava não ser mais exercitável o direito.

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O referido instituto encontra obstáculos para aplicação no Brasil em razão do

sistema exaustivo de regulação de prazos de prescrição e decadência no

ordenamento jurídico. Não se confundem é claro, sendo que a suppressio pretende

proteger a confiança despertada em terceiros e seus prazos não são determinados,

mas variáveis, conforme o razoável no caso concreto. SCHREIBER vê a suppressio

mesmo como regra de temperança do rigor dos prazos prescricionais e

decadenciais, muitas vezes concebidos em outras épocas pelas codificações, não

acompanhando a celeridade e o dinamismo da sociedade moderna (2007, 191).

A Surrectio, por sua vez, é entendida justamente como um fenômeno inverso

à Supressio. Enquanto esta se caracteriza pela inércia no exercício de um direito,

naquela tem-se justamente o uso ou o exercício de práticas continuadas que fazem

surgir o direito, ampliando o conteúdo da obrigação original. Assim, tem-se uma

pratica extra jurídica que, continuada, faz surgir direitos para a contraparte. O art.

330 do Código Civil apresenta uma situação característica de surrectio: a presunção

de renúncia do credor quanto ao local do pagamento previsto contratualmente,

quando reiteradamente realizado em outro local.

A aplicação da supressio e da surrectio à administração pública parece

possível, desde que se atente adequadamente para o trato do interesse público,

muitas vezes indisponível.

3.7.5. - Inalegabilidade de nulidades formais

Outra figura que restringe o exercício de direitos em determinados casos é a

inalegabilidade de nulidades formais. As injustiças resultantes, em certos casos de

apego ao formalismo, tem levado o Direito a intervir para minorar o problema. Assim,

a alegação de nulidades formais por uma parte, de forma a desconstituir ou deixar

de cumprir uma obrigação assumida, poderão ser tidas como abusivas quando a

parte contrária estiver de boa-fé quanto à existência da nulidade, e por isso tenha

sua confiança violada e sofra prejuízos com isso.

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No âmbito do Direito Administrativo, há que se levar em consideração quanto

a aplicação da inalegabilidade de nulidades formais a teoria dos atos

administrativos. Tais atos quando eivados de nulidades insanáveis não poderão ser

mantidos e à violação da boa-fé pela alegação de vício formal do qual se aproveitou

uma das partes como argumento para o não cumprimento das obrigações nesses

casos se restringirão a reparação de danos.

3.7.6. - Desequilíbrio no exercício jurídico.

Por fim, tem-se o desequilíbrio no exercício jurídico, que se verifica na

desproporcionalidade no exercício-benefício de um determinado direito subjetivo.

Tem-se o desequilíbrio no exercício inútil e danoso por alguém de um determinado

direito, e a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício

imposto pelo exercício a outrem.

O desequilíbrio no exercício de prerrogativa jurídica remete a um exercício

racional do direito subjetivo, algo que traga proveito ao titular do direito e não se

limite a causar prejuízo a outrem.

Toda regra do ordenamento jurídico que cria um direito subjetivo, tem uma

finalidade social que também é o elemento que justifica a existência dessa regra. A

partir do momento em que é ultrapassada essa barreira que a própria finalidade

daquele direito subjetivo cria, tem-se configurada a figura do abuso de direito.

Conforme HELOISA CARPENA,

A doutrina evoluiu para a concepção do ato abusivo como aquele pelo qual o sujeito excede os limites ao exercício do direito, sendo estes fixados por seu fundamento axiológico, ou seja, o abuso surge no interior do próprio direito, sempre que ocorra uma desconformidade com o sentido teleológico em que se fundamenta o direito subjetivo. O fim – social ou econômico - de um certo direito subjetivo não é estranho à sua estrutura, mas um elemento de sua própria natureza (2003, 381).

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Assim, o exercício de qualquer direito está subordinado a uma finalidade

econômico-social contida na própria norma jurídica, que por exigência do

desequilíbrio no exercício jurídico passa a exigir também racionalidade, ou mesmo

utilidade no exercício de um direito considerando uma relação custo-benefício do

direito a ser exercido. Trata-se de uma exigência de razoabilidade e

proporcionalidade no exercício de direitos subjetivos.

No caso da administração pública o referido preceito é plenamente aplicável.

Já se tratou em outros pontos da relativização a legalidade como princípio do direito

administrativo e mesmo a supremacia do interesse público. Por outro lado,

proporcionalidade e razoabilidade são hoje amplamente admitidos como princípios

de atuação da Administração Pública.

Pode-se trazer como exemplos de desequilíbrio no exercício jurídico a

declaração de inidoneidade e a proibição de contratar por uma empresa em razão

de pequenas falhas, ou mesmo uma punição a um servidor público pela

administração no exercício do seu poder disciplinar que não guarda proporção com

a irregularidade cometida.

Essas figuras típicas são de grande valia para a conformação do princípio da

boa-fé, uma vez que por ser um princípio jurídico, tem um grau de generalidade

muito amplo e seus contornos precisam ser bem desenhados para que possam ser

aplicados pelo poder judiciário, ou mesmo, para que possam embasar a atividade da

Administração Pública de forma a evitar condutas reprováveis que causem prejuízos

aos cidadãos em razão da quebra da confiança.

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3.8 – Boa-fé no Direito Público como Princípio geral do Direito, Princípio

Constitucional e regra de equidade.

A boa-fé se apresenta como um princípio geral do direito, sendo a sua

aplicação conhecida nos mais diversos ramos da ciência jurídica, tanto no campo

público quanto no campo privado, sendo que especialmente nesse último enraizou-

se profundamente. No direito civil entrelaça-se com institutos como contratos, posse,

casamento e responsabilidade civil. É fator determinante para a aquisição e restrição

de direitos e obrigações. No direito comercial também encontrou terreno profícuo,

especialmente em razão das raízes consuetudinárias e pragmáticas deste ramo do

direito, que necessitava de flexibilidade em contraposição ao formalismo jurídico

herdado pelo jus commune, do direito romano. Por outro lado, através da noção de

segurança jurídica, alcançou também o direito público especialmente sob o

paradigma do Estado Social, no qual a figura estatal se fortaleceu e se tornou mais

atuante, atingindo o direito tributário, administrativo e previdenciário, entre outros.

Como princípio do geral do direito, surge da chamada analogia juris, o

procedimento de integração do ordenamento jurídico por meio da extração de

normas jurídicas gerais do sistema. Nesse sentido BOBBIO diz que “os princípios

gerais, são apenas, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema,

as normas mais gerais” (1999, 158). No entanto, cabe aqui a afirmação de que a

aplicação de princípios gerais do direito, não são cabíveis apenas no processo de

integração das lacunas do ordenamento jurídico, como faz crer o texto da LINDB

(Decreto Lei 4.657 de 4 de setembro de 1942). Nos dizeres de REALE, princípios

gerais de direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e

orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e

integração, quer para a elaboração de novas normas. Cobrem, desse modo, tanto o

campo da pesquisa pura do Direito quanto o de sua atualização prática (2002, 306).

Isso parece inclusive ficar muito claro pelo próprio status conferidos pela dicção do

Código Civil (arts. 113 e 421) ao princípio da boa-fé, bem como pela Lei Federal de

Processo Administrativo (Lei No. 9.784 de 29 de janeiro de 1999, arts. 2, IV e art. 4,

II).

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Cabe-se ressaltar no entanto, que a figura dos princípios gerais do direito não

se confundem com a figura dos princípios constitucionais. Embora não espelhem

categoria diversa, os princípios constitucionais são aqueles que estão atrelados à lei

maior, e como tal, diferem dos princípios gerais do direito, em razão da sua

superioridade hierárquica decorrente da supremacia da constituição, e em razão de

externarem os valores políticos fundamentais da nação. Claro que, em última

instância, como qualquer norma jurídica os princípios gerais do direito encontram a

Constituição como fundamento de sua validade.

Trata-se de um tema interessante mas ainda muito polêmico e que não foi

exaurido pela doutrina jurídica, sempre envolvendo discussões apaixonadas entre

jusnaturalista e positivas, e agora com o acréscimo de posições

neocontitucionalistas, mas que em razão da proposta do presente trabalho não cabe

aqui. Ademais a discussão se torna inócua no campo do princípio da boa-fé,

principalmente no caso da Boa-fé no Direito Público, posto que a doutrina

majoritariamente reconhece fundo constitucional ao princípio, vinculando-o como

princípio decorrente ao princípio da moralidade constitucional, ou, à segurança

jurídica, ao qual se reconhece valor constitucional, e em razão do caráter aberto de

nossa Constituição.

Como Princípio Geral do Direito e Princípio Constitucional, a Boa-fé pode ser

considerada como uma regra de equidade incorporada ao ordenamento jurídico.

Embora haja uma profusão de doutrinas que busquem conceituar a equidade e

analisar sua natureza, pode-se extrair de todos eles que se trata de uma fórmula

particular de atenuação da rigidez das normas. RAO conceitua equidade por

Uma particular aplicação do princípio da igualdade às funções do legislador e do juiz, a fim de que, na elaboração das normas jurídicas e em suas adaptações aos casos concretos, todos os casos iguais, explícitos ou implícitos, sem exclusão sejam tratados igualmente e com humanidade, ou benignidade, corrigindo-se, para este fim, a rigidez das fórmulas gerais usadas pelas normas jurídicas, ou seus erros, ou omissões (2004, 100).

Para ele, equidade não é direito, mas um atributo do direito. De fato,

considerando-se que o princípio da boa-fé opera entre outras situações para além

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da lei, seja criando obrigações ultra legem, seja atenuando ou mesmo excluindo do

mundo jurídico certas imposições legais, é certo tratar-se a boa-fé como uma regra

de equidade, muito embora a equidade funcione no âmbito da interpretação e

aplicação da norma jurídica em razão das circunstâncias objetivas gerais do caso

concreto e a boa-fé especificamente em razão de atos jurídicos que são ou devem

ser praticadas por alguém. A boa-fé enquanto princípio jurídico pode ser

considerada uma regra de equidade positivada no âmbito do ordenamento jurídico,

uma vez que como visto, encontra base em diversos dispositivos constitucionais e o

próprio Supremo Tribunal Federal admite sua base constitucional.

Analisados o conceito do princípio da boa-fé, seu fundamento constitucional e

a forma como vem se projetando do ordenamento jurídico, passa-se agora a análise

do princípio da boa-fé como elemento de proteção do cidadão em face do Estado,

no contexto da ocupação de áreas de proteção ambiental por população de baixa

renda, em razão da falta de controle efetivo dessas áreas pelo poder público e do

histórico problema habitacional brasileiro, já analisado no capítulo primeiro.

Essa análise enfrenta ainda o cenário de suposto conflito entre o direito

fundamental à moradia e o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado, analisados no capítulo segundo, analisando a aplicação do princípio da

boa-fé, sua função e seus efeitos.

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4. - A OCUPAÇÃO DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE E A

TUTELA DA CONFIANÇA PELO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ.

Passa-se agora a análise da situação específica que se pretende analisar: a

ocupação das APP‟s por população de baixa em renda, por falta de opções de

moradia, em contrariedade à lei.

Tratam-se de áreas em que o direito de propriedade está sujeito a restrições,

por razões ambientais e por isso, a lei traz disposição legal ordenando a

conservação da vegetação.

Para além do mero problema da legalidade, tem-se aí dois fatores

importantes a se considerar: Em primeiro lugar que a ocupação da APP se dá como

forma de obtenção e moradia, e em segundo lugar que a obtenção de moradia se dá

em sacrifício da preservação ambiental, ambos alcançados a condição de direitos

fundamentais pela Constituição Federal. Assim, não se trata apenas de uma questão

de legalidade, mas também de conflito entre direitos fundamentais no plano

concreto.

Ocorre que essas áreas são ocupadas e ali são edificadas moradas, algumas

muito precárias e o poder público, por motivos diversos, permanece inerte. Dentro

da perspectiva do dever de legalidade, a postura administrativa esperada é a

imediata remoção, não permitindo sequer a supressão da vegetação.

Mas não é o que normalmente ocorre. O comum é que essas áreas sejam

ocupadas e assim permaneçam por anos, sem qualquer conduta do poder público. E

ali as pessoas consolidam suas vidas, planejam, vivem. Em alguns casos, tem-se

mesmo a atuação descoordenada e contraditória do Estado. Não reconhece

juridicamente o espaço habitado (o que não poderia fazer em razão da ilegalidade

ambiental), mas contraditoriamente fornece-se serviços públicos e cobra tributos,

como o caso do IPTU, cujo fato gerador tanto a propriedade, quanto a posse, ou o

domínio útil, de um bem imóvel (art. 32 do Código Tributário Nacional).

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Não se questiona aqui a legalidade da cobrança do IPTU, que não é tema

deste trabalho. O fato é que a cobrança de tributos ou o fornecimento do serviço

público nessas áreas de irregularidade aponta para o conhecimento do Poder

Público, e em certa medida, o reconhecimento no plano fático, da situação do

cidadão.

Trata-se de uma conduta que termina por criar uma esfera de aparente

legalidade, ou de reconhecimento da situação, pois o conhecimento da situação pelo

Estado - aquele que tem como função precípua agir pautado na legalidade, e

presume-se, sempre o faça – exigiria a desocupação imediata, para não se dizer

que o Poder Público deveria ter mecanismos para controlar essas áreas

preventivamente, sequer permitindo que elas fossem inicialmente ocupadas. Assim

cria-se certa expectativa para os ocupantes dessas áreas de ali permanecerem.

Isso faz com que a atuação, ou a falta dela, pela Administração Pública, crie

expectativas nas pessoas – expectativas que legítimas se configurarão como

elemento de proteção da confiança – e isso se choque com a legalidade. Assim se

dá em muitos casos uma legalidade putativa na atuação da administração, ou

mesmo, há uma ilegalidade clara. Nesse último caso, o que ocorre é que, em geral,

os atos da administração pública são revestidos pelo princípio da legalidade. Ou

seja, até que se declare o contrário – autorreconhecimento pela administração ou o

reconhecimento pelo poder judiciário – mesmo os atos materialmente ilegais serão

considerados legais.

Como já dito, o conflito que se constrói no caso, não se trata apenas de uma

contraposição cidadão versus obrigação de legalidade. Mais do que isso, se tem o

conflito entre direitos fundamentais, de um lado o direito à moradia fundamental a

uma existência digna e de outro a proteção ambiental e o direito difuso ao meio

ambiente, fundamental para os processos biológicos ambientais e que redunda

também na existência digna do ser humano. Um conflito que surge e se desenvolve

como pano de fundo da debilidade do Estado de prover políticas sociais adequadas,

mormente no campo habitacional, e de outro lado, de conduzir adequadamente a

politica ambiental de controle de áreas que, por seus atributos, apresentam-se como

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essenciais ou estratégicas para a manutenção dos processos biológicos essenciais

à preservação ambiental e em última instância, à conservação da vida humana.

A solução mais frequente – e também a mais simples – que tem se observado

como iniciativa do poder público, ora feita sob a baliza do princípio da

autoexecutoriedade do ato administrativo, ora devidamente balizada por decisões

judiciárias é a solução da demolição e da remoção, sob o argumento da ilegalidade

insanável e sobre o argumento da inescusabilidade do desconhecimento da lei.

A partir disso coloca-se em questão o comportamento do Poder Público,

encarregado tanto de políticas públicas de promoção de direitos sociais quanto de

políticas ambientais, além de sua atribuição natural de zelo pela ordem social, que

implica na obrigação de cumprir e fazer cumprir a lei.

Não se pretende trabalhar aqui diretamente o direito fundamental à moradia e

o direito fundamental difuso ao meio ambiente, como fundamento para a não

demolição e a não remoção. O que tratará é a questão da legítima expectativa de

segurança da posse, criada pela administração pública com suas condutas.

Inegável, no entanto, que as soluções que se avizinharem deverão guardar

necessário equilíbrio entre ambos os direitos, conforme exigências do próprio

ordenamento jurídico enquanto sistema, e em razão da posição de centralidade que

os direitos fundamentais ocupam no ordenamento. De forma que não só a atuação

do Estado se dê pautada na realização dos mesmos, mas toda a vida da sociedade

politicamente organizada sob sua égide.

Partindo-se das premissas estabelecidas, analisa-se os efeitos práticos da

boa-fé administrativa a partir das suas construções teóricas tradicionais da boa-fé no

direito privado, considerando-se as particularidades do direito público que se fizerem

pertinentes a partir da constitucionalização do direito.

Confiando o cidadão em situação digna de confiança gerada pelo Poder

Público (de quem se espera sempre uma atuação pautada na legalidade, em razão

do próprio múnus que carrega) não é justo, que a legítima expectativa do cidadão

seja frustrada por uma mudança de posição do Estado, que venha a interferir em

toda uma cadeia de eventos que dele decorreram, mesmo que a mudança da

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postura decorra do reconhecimento de uma ilegalidade e se dê num movimento

corretivo.

Nesse sentido dispõe BINEMBOJM que:

Havendo a Administração (ou qualquer outro órgão público) concorrido comissiva ou omissivamente para a aparência da legalidade da situação, deverá honrar a legítima confiança depositada pelos particulares que orientaram sua conduta por atos praticados por esses agentes (BINEMBOJM, 2008, 184).

O que deve ficar claro ante todo o exposto é que a postura de solução da

demolição e remoção das populações pobres que ocupam APP‟s da administração

pura e simples do ato em situações em que a própria Administração Pública projeta

confiança legítima perante um cidadão e depois vem a frustrá-la não é uma medida

que se deve colocar como necessária, nem a priori. O reconhecimento de status

constitucional ao princípio da boa-fé e à proteção da confiança implica na

necessidade de ponderação entre este o princípio da legalidade, e qualquer que seja

a prevalência final no caso concreto, não se terá a fragilização do Estado

Democrático de Direito, mas a afirmação da supremacia material da Constituição.

Nessas situações o interprete-aplicador do direito deverá dentro juízo de

ponderação levar em consideração todos os elementos que confluíram para a

criação da legítima expectativa no cidadão em oposição à norma violada e de outro

lado o nível de consolidação de atos e fatos decorrentes do ato administrativo a ser

invalidado.

No antigo paradigma de Estado, o Estado Liberal, a segurança jurídica se

esgotava na contenção do arbítrio dos governantes pela Constituição, se valendo

essa de instrumentos como o princípio da legalidade, o princípio da irretroatividade

das leis, do devido processo legal entre outros. Mas, em um Estado Social que

contemple não somente de contenção do Estado, mas toda uma série de imposições

no sentido de resguardar a pessoa humana, inclusive com o estabelecimento de

prestações positivas, a noção de segurança jurídica deve ser ampliada no sentido

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proteger essa pessoa humana em face de outras ameaças que pairam sobre ela. É

nesse sentido inclusive que surge a chamada seguridade social, buscando

resguardar condições de vida digna sob a doença, a velhice, o desemprego e outros

infortúnios.

Pois a proteção da confiança deve ser concebida sob esse mesmo prisma, no

sentido de que a percepção clara e a previsibilidade da atuação estatal se colocam

como condições essenciais, permitindo ao cidadão não só o planejamento de sua

vida garantindo-lhe certa estabilidade, como a salvaguarda contra situações de

fragilidade, que coloquem em risco a sua própria existência.

A proteção da confiança, não estaria assim fulcrada em um único dispositivo

constitucional e nem se encontra expressa, mas está fundamentada em diversas

disposições constitucionais e no próprio sentido da Constituição como um todo. Se

concretiza em uma dimensão de proteção da própria dignidade da pessoa humana,

sob pena de que a criação de instabilidade nos projetos e planos de vidas das

pessoas subverta sua própria dignidade, coisificando-as em benefício da atuação da

vontade Estatal.

4.1. – A conduta da Administração Pública e a violação da Boa-fé.

Compreendida a conformação do princípio da Boa-fé e sua atuação, cabe

agora a verificação dos pressupostos da proteção da Confiança pelo princípio da

Boa-fé no cenário descrito e ante a atuação do Estado, de ocupação de Áreas de

Preservação Ambiental por moradias.

O primeiro aspecto a se considerar é a conduta inicial do Estado e se essa

conduta é capaz de gerar a chamada legítima expectativa.

Conforme demonstrado no primeiro e segundo capítulo, a história da

urbanização brasileira é uma história construída em cima de improvisos, sobre um

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modelo fundiário concentradíssimo, sem nenhuma preocupação social e com pouco

ou nenhum controle da administração do processo de urbanização.

Só muito recentemente, é que surgem as primeiras tentativas de mudança de

cenário, com a Constituição de 1988, a publicação do Estatuto das Cidades e a

criação do Ministério das Cidades. Aliás, a Constituição Federal de 1988 é pioneira

no sentido de dedicar um capítulo para a política urbana, algo que até então jamais

ocorreu em nossa história constitucional, sendo que a inserção do referido nicho na

Constituição Federal foi resultado de mobilizações que culminaram com a

elaboração de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular, subscrita por mais de

130.000 eleitores.

A história da preocupação ambiental do Brasil é bastante recente, mas o que

se percebe em matéria de bens objetos de proteção ambiental é a mesma

ineficiência na gestão e controle desses bens.

Sobre a tutela do meio ambiente, a obrigação estatal decorre do próprio

reconhecimento do meio ambiente como direito fundamental, pois em se tratando de

um direito dessa natureza, ao lado da definição da forma de Estado, do sistema de

governo e das organizações do poder, compõe a própria essência do Estado

Constitucional. Constituindo os direitos fundamentais em elemento de composição

seja da Constituição formal ou da Constituição Material, sua concretização passa a

ser tarefa contínua do Estado.

Além disso, inegável estar intimamente a própria vida humana, em razão da

dependência desta de qualidade ambiental. Por fim, basta apontar que o próprio art.

225 da Constituição Federal aponta uma séria de obrigações ao poder público para

garantir a efetividade do direito ao ambiente.

Veja-se rapidamente as competências administrativas constitucionais sobre a

questão ambiental:

O art. 21 da Constituição Federal traz a competência administrativa e

exclusiva da União em matéria ambiental para: (...) IX - elaborar e executar planos

nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e

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social; XVIII - planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades

públicas, especialmente as secas e as inundações; XIX - instituir sistema nacional

de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de

seu uso; XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação,

saneamento básico e transportes urbanos e XXIII - explorar os serviços e

instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a

pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o

comércio de minérios nucleares e seus derivados (...).

Logo a seguir, o art. 23 estabelece os casos de competência ambiental

administrativa comum entre União, Estados, Distrito Federal e Município para: III -

proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e

cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas e

VII - preservar as florestas, a fauna e a flora.

No caso do Município, tem-se o art. 30 da Constituição que estabelece como

competência: VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial,

mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo

urbano. Embora não seja uma competência especificamente ambiental, refere-se

também ao Meio ambiente na medida em que o ordenamento territorial também se

refere a questões ambientais. Nesse caso, a competência do município acaba

tratando também das áreas de APP pelo simples fato de se tratar de solo urbano

ocupado, e que por isso também demanda ordenamento, mediante planejamento e

controle do uso.

Deve se observar ainda que as APP‟s no contexto analisado no presente

trabalho atingem não só a seara ambiental, mas também a atividade urbanística do

poder público. Se a preservação ambiental é dever que se impõe ao Estado, a

ordenação dos Espaços habitáveis também o é, decorrendo da própria Constituição

Federal as imposições ao poder público para a organização do desenvolvimento e a

garantia da qualidade de vida no meio ambiente urbano. A própria Constituição

Federal impõe ao poder público a execução da política de desenvolvimento urbano,

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com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e

garantir o bem-estar aos seus habitantes (art. 182).

Observe-se as competências administrativas em matéria de urbanismo

estabelecidas pela Constituição Federal, além do previsto no art. 182. Em primeiro

momento, têm-se as competências da união em matéria de urbanismo, na forma do

art. 21: IX - elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do

território e de desenvolvimento econômico e social; XX - instituir diretrizes para o

desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes

urbanos. A seguir, as competências comuns dos entes federativos que são: VI -

proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; IX -

promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições

habitacionais e de saneamento básico, X - combater as causas da pobreza e os

fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores

desfavorecidos. Finalmente as competências dos municípios que são: VIII -

promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento

e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

Aqui se tem então o fato inicial para a análise da violação da boa-fé. O

estabelecimento das competências para a atuação estatal tanto no âmbito do direito

ambiental como na seara urbanística, não apenas delimitam as esferas de atuação

do Estado, mas determinam a faculdade e o dever da Administração Pública tanto

em uma matéria quanto em outra e permitem pressupor um controle efetivo dos

bens jurídicos objeto da regulação da competência.

Sendo a legalidade o eixo norteador de conduta da atuação estatal,

pressupõe-se que toda a atuação da Administração Pública se pautará pela

observância da lei. Assim quando o administrador público age ou deixa de agir,

supostamente o está fazendo por determinação da lei. O princípio da legalidade

inclusive está insculpido entre os direitos e garantias fundamentais (art. 5, II), como

princípio da Administração Pública (art. 37), entre outros dispositivos.

Nos dizeres de BANDEIRA DE MELLO:

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O princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis. Esta deve tão-somente obedecê-las, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no Direito brasileiro (2011, 101).

Isso posto, presume-se que toda e qualquer conduta dos agentes estatais, em

todas as esferas e em todas as funções se dá em observância a lei. De tal sorte que,

por presunção, a atuação estatal é sempre legal, mesmo que de fato não seja. É a

chamada presunção de legitimidade do ato administrativo, que decorre do interesse

público do qual é imbuída a atuação da Administração Pública. Assim, de toda

forma, haverá uma aparente legalidade na conduta Estatal: Se o Estado age,

entende-se que agiu no cumprimento da lei e se deixou de agir entende-se que

também o fez no cumprimento da lei. O próprio princípio da legalidade é portanto

fato inicial gerador de confiança.

Além disso, sendo a figura estatal a guardiã do interesse público num Estado

Democrático de Direito, o realizador do interesse público em nome do povo, tem-se

também fato gerador de confiança. Ou seja: a simples posição jurídica de custódio

do poder político exercido em nome do povo também pode ser considerada fator

inicial gerador de confiança, independentemente de qualquer conduta que tome.

Afinal, é função imanente do Estado em um regime constitucional a atuação em

persecução do interesse público.

A qualificação da confiança depositada no Estado como legítima, é a

confiança justificada, uma confiança que seja razoável diante da conduta do agente

criador da confiança e que guarde com ela uma relação direta de causa e efeito. A

presunção de legitimidade e a posição jurídica do Estado como guardião do

interesse público parecem ser suficientes para atribuir legitimidade e razoabilidade à

atuação estatal aos olhos do particular.

Se numa relação de direito privado o fato inicial gerador de confiança e a

qualificação desta como razoável ou legítima não estão necessariamente atreladas,

o mesmo não acontece com a relação de direito público, onde a simples presença

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do Estado – e sua condição peculiar de primeiro cumpridor da lei e de perseguidor

do interesse público - propicia uma aura de legitimidade e razoabilidade que não se

tem nas relações entre particulares. No polo oposto, é de se considerar a presença

do homem comum, e não de uma pessoa excepcional dotada de vasto

conhecimento ou privilegiado por uma situação excepcional. Nos dizeres de

GONZÁLEZ PÉREZ, o princípio da boa-fé toma o cidadão perante o Estado como

aquele portador de uma conduta normal:

Esta conducta habrá de ser apreciada por la comúnmente seguida por un hombre corriente, un hombre médio, lo que tradicionalmente se ha llamando un buen padre de família, en función de la circunstancia de que se trate. Bien entendido que no se trata de buscar el patrón del hombre ideal (como debería ser), sino el patrón de un ombre corriente (como es) en el momento histórico determinado. Todo ello inducido del ambiente y las circunstancias dominantes (2004, 40).

Posto isso, no caso das ocupações de APP‟s pela construção de habitações,

o fato inicial, idôneo a gerar confiança é a atuação pouco eficiente do Estado, que

adota condutas confusas, contraditórias ou mesmo omissas, capazes de gerar nas

populações ocupantes dessas áreas, o sentimento de que sua situação é de alguma

forma reconhecida.

Ora, se o Estado, aquele cujos atos devem ser pautados – e por presunção o

são – em estrita legalidade, e a quem incumbe tanto a execução da política urbana

como a proteção do meio ambiente e o zelo pelos recursos naturais tem o

conhecimento da ocupação e com ela convive, é capa de gerar, por isso, confiança

nos ocupantes das referidas áreas de que sua situação não é ilegal, ou não será

alterada.

Basicamente, considerando o histórico da atuação do Estado quanto ao

controle das APP‟s e que terminam por permitir a sua ocupação se desdobra em

duas dimensões: uma dimensão de omissão e uma dimensão de contradição.

A primeira dimensão a ser analisada é a Dimensão da Omissão – Nesse caso

tem-se como situação típica a ocupação das áreas delimitadas como APP – sobre

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as quais o Estado tem pouco ou nenhum controle - por populações pobres, sendo

que elas passam a deter ou possuir essas áreas por longo período de tempo sem

que o Poder Público tome qualquer iniciativa ante a ocupação contínua. É normal

que se passem anos, décadas sem que o Estado tome qualquer providência quanto

a essas situações, a não ser quando ocorram calamidades ou desastres.

A pergunta a se fazer aqui é: A omissão do Estado frente à contínua

ocupação dessas áreas por populações de baixa renda, que ali ficam anos e mesmo

décadas a fio, é idônea a gerar algum tipo de proteção contra a remoção forçada

com base na proteção da confiança?

Como visto, a confiança para ser legítima, deve ser razoável e decorrer em

relação de causa e efeito da conduta inicial mantida pelo Estado. Não é legítima a

confiança fundada em uma mera conjectura, em percepção errônea da realidade ou

a aposta em uma situação arriscada. O fato a gerar confiança deve ser algo razoável

do ponto de vista do homem médio e isso é que deve ser investigado no ato

Omissivo do Estado.

Tem-se aqui a presença do chamado silêncio administrativo, que é a omissão

da administração pública, quando lhe incumbe uma manifestação de caráter

comissivo. Resta saber quais consequências jurídicas podem ser atribuídas a esse

silêncio administrativo.

No direito privado, tem-se a muito solução definida. O silêncio, via de regra,

implica em aceitação tácita, considerando-se os usos e costumes normais e quando

a lei não exigir manifestação expressa (art. 111 do Código Civil).

O direito administrativo, por outro lado, não apresenta a mesma solução. O

silêncio no direito público não implica na prática de ato administrativo, pois inexiste

manifestação formal de vontade e nesse sentido sequer é um ato jurídico. Nesse

sentido, ensina BANDEIRA DE MELLO que:

Na verdade, o silêncio não é um ato jurídico. Por isto, evidentemente, não pode ser ato administrativo. Este é uma declaração jurídica. Quem se absteve de declarar, pois, silenciou, não declarou nada e por isto não praticou ato

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administrativo algum. Tal omissão é um “fato jurídico” e, in casu, um “fato jurídico administrativo”. Nada importa que a lei haja atribuído determinado efeito ao silêncio: o de conceder ou negar. Este efeito resultará do fato da omissão, como imputação legal, e não de algum presumido ato, razão por que é de rejeitar a posição dos que consideram ter aí existido um “ato tácito” (2011, 414).

Assim como visto, o silêncio administrativo não implica em um ato. Trata-se

de uma imputação legal à omissão da administração que é feita ou não pela lei. Isso

posto, a omissão da administração pura e simples não é elemento idôneo a gerar

legítimas expectativas nos particulares, posto que não há ato administrativo

verdadeiramente. De concreto existe apenas a norma legal proibindo a supressão de

vegetação das APP‟s, servindo de vinculação positiva ao Poder Público que tem

entre suas obrigações controlá-las com fito de preservação e de vinculação negativa

ao particular que deve se ater de suprimi-las ou degradá-las.

Consigne-se que de plano, é possível excluir a simples omissão como

elemento de projeção de justas expectativas pela administração nos cidadãos. Isso

se dá por uma relação de causalidade. Não há qualquer conduta do Poder Público a

legitimar o surgimento da legítima expectativa de permanência e de uso das áreas

de APP, em uma relação de causa e efeito. Até então, tem-se a legalidade como

vínculo negativo para o particular e positivo para o Estado, e, a não ser em um caso

de uma ação da Administração Pública capaz de gerar a aparência da legalidade,

não será possível falar-se em tutela da confiança nesses casos.

A efetividade jurídica do ordenamento tem entre outros pressupostos a

presunção ampla do conhecimento da lei, de forma que ninguém se escusa de

cumprimento por desconhecimento (LINDB, art. 3º). Assim, a mera omissão do

Estado, sem que haja a prática por qualquer dos seus agentes de atos que possam

revestir de certa legalidade putativa a situação jurídica da ocupação irregular, não é

possível a tutela jurídica dessa ocupação por meio da teoria da confiança e da

legítima expectativa.

Passa-se a seguir ao caso da Contradição e da Obscuridade. Nesse caso,

tem-se uma situação um pouco mais complexa. Da mesma forma que é comum a

ocupação ignorada, é comum também a ocupação de áreas reconhecidas de APP

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ignoradas parcialmente pelo Estado. Ignorada em uma esfera específica em outra

não. Ignorada no trato por um ente administrativo, mas não por outro. Irregulares em

nível de parcelamento do solo, com construções nunca submetidas ao controle do

poder público, mas com certos serviços públicos básicos: às vezes energia elétrica,

às vezes água encanada. É muito comum inclusive, com as novas tecnologias de

Geoprocessamento de dados e fotos via satélite, de um lado o reconhecimento da

ocupação de determinada área para fins tributários, sendo inclusive considerada a

posse direta para fins de tributação de IPTU, e de outro lado o não reconhecimento

da ocupação enquanto forma de parcelamento do solo, balizada na ilegalidade da

ocupação e consequentemente, impossibilitando-se o reconhecimento da posse.

Analisa-se então tal situação à luz da teoria da confiança, especialmente

acerca do chamado venire contra factum proprium.

Exige-se uma conduta inicial ou o chamado Fato Próprio. A conduta inicial do

Estado é a omissão ou tolerância do Estado que redunda na ocupação, ou,

conforme a situação ora estudada, ou a prática de certos atos administrativos que

impliquem em reconhecimento fático pelo Poder Público da situação.

Ora, existindo ao Estado o dever de agir conforme inclusive a própria

Constituição estabelece tem-se o fato inicial se dando em desconformidade com o

direito e caracterizando omissão do poder público, em razão das competências

ambientais.

Observa-se que havendo uma série de poderes-deveres estabelecidos pela

própria constituição em matéria ambiental, a simples tolerância em si de ocupação

de APP sem que haja a imediata remoção, já configura em si mesmo uma

contradição. O problema da omissão em si, como já discutido, é a obrigação de agir

conforme a lei, que atinge tanto a Administração como o Particular, de forma que a

omissão pura e simples, havendo um comando expresso em lei em sentido

contrário, não é suficiente para a criação de justa expectativa acerca da ocupação

de APP dando-lhe aparência de legalidade.

O que se opera diferente aqui é a interação do poder público com as

populações em área ocupada, que implicam no fato de que o poder público tem o

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conhecimento da situação de irregularidade e o tolera, e faz parecer aos olhos dos

ocupantes que a ocupação é permitida ou existe uma perspectiva de permissão, já

que o poder público inclusive fornece serviços públicos e tributa a área ocupada.

Mesmo que os ocupantes da área de APP tenham o conhecimento da ilegalidade de

sua situação, e embora não dominem o conhecimento dos trâmites técnicos do

reconhecimento de suas posições jurídicas, sabem que o Estado tem como

regularizar sua situação, e pelo fato de que tem conhecimento de sua ocupação e

não os remove de imediato, é justo dizer que se não se cria a expectativa de estar

em situação lícita, cria-se a expectativa legítima de regularização futura.

Nesse caso, é a própria vinculação positiva à legalidade que depõe contra a

Administração Pública, na medida em que o Estado tem a obrigação de agir

conforme a legalidade e não age. Ao tolerar certas condutas e agir

contraditoriamente ante condutas ilegais, cria a atmosfera da legalidade, mesmo que

ela não exista no plano jurídico, e incute legítimas expectativas nos ocupantes

dessas áreas.

Imagine-se a situação de uma família ocupante de APP, que durante anos

vem sendo tributada pelo município e em um dado momento se confronta com a

situação de remoção forçada. Ora, é uma conduta claramente contraditória por parte

do Estado, ter uma situação jurídica reconhecida sob certos aspectos e não

reconhecida sob outros. O Estado, ao interagir com essas pessoas em situação

irregular – na medida em que tem o dever de agir conforme a legalidade – cria a

expectativa legítima, na medida em que seus atos são presumidamente legais.

Nesse caso, é de se entender em sentido inverso ao da Omissão. Aqui se tem

sim um ato capaz de gerar legítima expectativa nos particulares ocupantes de áreas

de APP e obstar a remoção forçada. Vale dizer, houve um ato claro do Estado no

sentido de criar legítima expectativa nos particulares envolvidos diretamente na

situação. Legítima expectativa não é qualquer expectativa. É a expectativa séria

provocada por ato capaz de, consideradas as circunstâncias, parecer legal, bem

intencionado, confiável, segundo padrões de razoabilidade de um homem médio.

Ao fator tempo transcorrido desde a conduta mantida pela administração deve

ser dada importância relativa, pois ele não é essencial por si só para qualificar ou

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desqualificar a legítima expectativa criada. Servirá, contudo, como elemento

adicional a permitir reforço da expectativa ou até mesmo sua diluição. Deve se

observar também o fator tempo com relação ao grau de irreversibilidade da situação

em que se encontra o particular e os atos que foram efetivamente praticados após a

criação da legitima expectativa, e como circunstância de reparação civil, se

eventualmente o ato contraditório prevaleça, mas tenha como consequência a

reparação.

Quanto ao comportamento contraditório que frustra a confiança criada e as

providências nela fundadas, tem-se a remoção em si das populações ocupantes

dessas áreas com a respectiva demolição das moradias. Nesse caso, vale a pena

levantar aqui a questão da confiança em razão da necessidade de previsibilidade da

atuação estatal, associada ao respeito de direitos e expectativas legítimas. Se a

remoção em si é uma busca pela situação de legalidade, por outro lado é capaz de

gerar situações que colocam em risco a própria existência digna das pessoas

ocupantes dessas áreas, o que não seria admitido pelo ordenamento constitucional.

O dano decorrente da quebra da confiança se situa no plano da própria

alteração unilateral pelo Estado dos projetos de vida das pessoas que ocupam as

APP‟s depois de condutas do próprio poder público que criam expectativas de

legalidade ou de legalização. A dimensão protetiva da dignidade da pessoa humana

estabelecida como fundamento constitucional é fundamento jurídico para que as

remoções, não se realizem, ou quando se realizem, sejam feitas com um plano

alternativo de moradia, inserindo os ocupantes das APP‟s no contexto urbano, de

forma que tenham acesso às funções essenciais da cidade. A remoção pura e

simples significa o abandono pelo Estado da dignidade das pessoas envolvidas e de

seus projetos de vida, e assim, na sua própria instrumentalização – enquanto

pessoas – pela vontade estatal. Nesse caso, é de se entender que o “investimento

de confiança” não tem que ser necessariamente um investimento em bens materiais

apenas – o que de fato ocorre – mas o próprio plano de vida das pessoas que

ocupam essas áreas e, de forma abrupta, estarão privados do seu plano de vida, e,

pior, privados de uma condição fundamental para uma vida digna: um lugar para

habitar.

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Embora a jurisprudência ainda não revele uma direção clara do

posicionamento dos tribunais, a respeito da aplicação do princípio da boa-fé como

tutela da confiança, é possível perceber em alguns julgados a situação de

contradição, como elemento de motivação da decisão judicial. Para ilustrar tal

afirmação, apresenta-se texto de julgado recente do Tribunal de Justiça do Estado

de São Paulo, em que se confrontam em situação similar, Moradia e Meio Ambiente

(destaque nosso):

“...seria inadequado sacrificar totalmente o direito à moradia, como fez a r. sentença recorrida, ainda mais quando se tem em conta que a ocupação existe há muitos anos e o Estado, ao invés de debelá-la de pronto, não somente se omitiu, como ainda efetuou prestações positivas, fornecendo aos moradores do local os principais serviços de infraestrutura.”

EMENTA: Apelação – Ambiental – Ocupação irregular de APP – Sentença que condena o apelante a se abster de atividades danosas e reparar o dano, inclusive com a demolição de residência existente no local – Matéria fática incontroversa – Questão que se resolve, no entanto, parcialmente em prol do apelante – Diante do conflito entre os direitos fundamentais ao meio ambiente e à moradia, deve-se adotar a solução que promova a maior eficácia possível de ambos – Aplicação do princípio da concordância prática ou harmonização – Sentença parcialmente reformada, para excluir a ordem de demolição da residência, mantidas as demais providências de conservação e reparação ambiental – Apelo parcialmente provido.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Matéria Ambiental. Apelação No. 0004414-75.2011.8.26.0642. Relator Desembargador Souza Nery. São Paulo, SP, 24 de Outubro de 2013.

Assim sendo, por mais que a decisão judicial não mencione expressamente

os termos Boa-fé, Tutela da Confiança, Legítima Expectativa ou outra coisa, parece

indubitável que o comportamento contraditório do Poder Público no caso, foi fator de

motivação da decisão judicial, em obstar a demolição do imóvel construído em Área

de Preservação Permanente.

Isso posto, é de se entender que os pressupostos da aplicação da tutela da

confiança estão presentes no caso da atuação descoordenada do poder público, que

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interage com os cidadãos ocupantes das áreas de preservação permanente – e daí

já se deve presumir o conhecimento pelo Estado da situação de ilegalidade – o que

lhe permitirá a tutela da confiança. No entanto, não estará presente na situação de

simples inação do Estado, que se omite em exercer o poder de polícia sobre as

áreas de preservação ambiental, por faltar elemento capaz de gerar a chamada

legítima expectativa na parte, incutindo-lhe uma perspectiva de legalidade, ou de

reconhecimento jurídico de sua situação.

4.2. – A Regularização da Ocupação das Áreas de APP com base na teoria da

Boa-fé Administrativa e a ponderação entre Direitos Fundamentais.

Discutiu-se a questão da tutela da confiança pelo princípio da boa-fé como

óbice a demolição e a remoção forçada. Já se verificou que a proteção da confiança

tem fulcro constitucional e é capaz de permitir a manutenção de certos status ainda

que contra a legalidade, baseado na legítima expectativa criada. Assim, verifica-se

que a não remoção, é uma medida jurídica legítima, mesmo quando contraria a

legalidade do ordenamento jurídico.

Tratando-se a boa-fé de princípio jurídico de proteção à confiança, ele

invocará sempre a justa expectativa criada no cidadão como eixo norteador de sua

conduta, seja com viés limitativo seja com viés de imposição de condutas

administrativas.

No entanto, a situação traz o conflito entre dois direitos fundamentais, de um

lado o direito à moradia e de outro o direito difuso ao meio ambiente.

É de se considerar ainda que a simples manutenção do status quo da

habitação irregular na APP, não resguarda nem o direito à moradia, nem o direito ao

meio ambiente, na medida em que a degradação ambiental é continuada e na

medida em que não fornece qualquer segurança jurídica da posse aos moradores

das referidas áreas, que poderão no futuro estar sujeitos a novas ameaças de

remoção e de despejos. Mesmo do ponto de vista da proteção da confiança: se a

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proteção da confiança se dá em razão da proteção da previsibilidade e da

possibilidade de planejamento de vida, qual é a possibilidade de que a situação de

ocupação irregular da APP é capaz de gerar? Não custa lembrar que, como visto, é

a omissão do Estado que propicia em grande medida a situação problemática da

ocupação irregular em áreas de preservação. Como visto na primeira parte do

presente trabalho no âmbito da urbanização brasileira e no tratamento dado à

propriedade e às políticas de habitação, a história da atuação do poder público

brasileiro é repleta de idas e vindas, de decisões equivocadas, de atuação

incoerente e deficiente.

Conforme exposto retro, tanto o direito ao meio ambiente, como um direito

fundamental de toda a coletividade humana, quanto o direito à moradia, como um

direito fundamental social estão tutelados pela Constituição de 1988. Essa tutela na

condição de direitos fundamentais implica na sua centralidade no ordenamento

jurídico, como própria razão de ser do Estado Democrático de Direito, que é acima

de tudo um realizador de direitos fundamentais. Imprescindível então que o Estado,

através do poder judiciário, resolva a questão da colisão dos referidos direitos.

Na resolução desses casos não é possível que o Estado, através do poder

judiciário simplesmente opte por uma das normas, direitos ou interesses

constitucionalmente protegidos em detrimento dos demais. Vige entre nós o princípio

da unidade da Constituição segundo o qual o texto constitucional é um todo, uma

estrutura sistemática, um conjunto de normas onde nenhuma delas não pode ser

analisada isoladamente, mas no contexto das demais normas integrantes do sistema

no qual está inserida, daí decorrendo uma interdependência dessas. Daí não ser

reconhecido em nosso direito constitucional a possibilidade de hierarquia entre as

normas constantes da constituição e por isso não é possível uma escolha arbitrária

da norma ou direito que prevalecerá.

De se destacar também que o conflito entre direitos fundamentais e bens

constitucionalmente protegidos se dá apenas no plano fático e jamais abstrato, em

razão a própria unidade da Constituição. As colisões nascem a partir da detecção da

necessidade de intervenção estatal em razão do direito fundamental de uma pessoa

estar limitando o exercício de direito fundamental de outra pessoa.

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Dois são os instrumentos jurídicos para decidir sobre os casos de colisão. O

primeiro é a interpretação sistemática da Constituição, que partindo da consideração

da Constituição como um todo orgânico e partindo da análise de todas as

disposições constitucionais relacionadas ao caso concreto permitiria buscar uma

solução segundo os parâmetros do próprio legislador constituinte.

Pela interpretação sistemática, cada norma jurídica deve ser interpretada em

consideração de todas as demais, já que cada norma é parte de uma conexão com

o todo a luz do qual deve ser compreendida. Sobre a ideia da Constituição como um

sistema dispõe SARMENTO:

Os sistemas jurídicos contemporâneos, como o brasileiro, têm na Constituição não só o seu fundamento de validade, como também o seu centro de gravidade. São os valores constitucionais que, pela sua primazia, podem conferir unidade ao sistema jurídico, cimentando as suas diferentes partes. Naturalmente, a exigência de coerência e sistematicidade também se projeta sobre a Constituição. O interprete constitucional não pode, por exemplo, interpretar a garantia de propriedade privada ignorando a proteção constitucional conferida ao meio ambiente, nem vice-versa (2014, 419).

O reconhecimento da Constituição como um todo orgânico, ou mesmo do

ordenamento não é uma realidade, mas uma tarefa a se cumprir. Ele não nega a

existência de tensões entre valores constitucionais e colisões entre direitos

fundamentais, principalmente na contemporaneidade constitucional, marcada pela

inflação legislativa e pelo pluralismo de interesses juridicamente tutelados. De fato, o

resultado do reconhecimento da Constituição como um sistema é a imposição ao

seu interprete, qualquer que seja, que as colisões sejam equacionadas com base

em critérios que também encontrem fulcro no próprio texto constitucional. Assim

surge o princípio da concordância prática da constituição, que SARMENTO concebe

da seguinte forma: “desde que sejam compatíveis com as possibilidades textuais e

sistemáticas da Constituição, as soluções das tensões entre normas constitucionais

devem manter, na maior extensão possível, a proteção a cada um dos bens jurídicos

envolvidos” (2014, 440).

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190

O segundo instrumento jurídico para resolver o problema da colisão é o

critério da proporcionalidade e está ligado ao crescimento da abrangência material

dos direitos fundamentais e a necessidade de conformá-los com a atuação Estatal

em razão de interesses coletivos, já que em certas situações aqueles poderão se

configurar como verdadeiros óbices.

Nesse sentido, DIMOULIS e MARTINS definem a proporcionalidade:

Entenderemos a proporcionalidade como mandamento constitucional que objetiva verificar a constitucionalidade das intervenções estatais a um direito fundamental, mediante a avaliação de sua licitude e da licitude dos fins pretendidos, assim como a adequação e necessidade da intervenção para fomentar determinada finalidade (2014, 177).

Os autores rejeitam a visão da proporcionalidade que se dilua em uma figura

retórica, que termine por encaminhar a discussão para o campo político e moral pelo

órgão judiciário, que não tem competência para tal, conforme o art. 2º da

Constituição Federal. Partem de uma visão em que a proporcionalidade tem origem

numa construção dogmática que visava a limitação da intervenção do legislador na

esfera de proteção dos direitos fundamentais de forma a impedir o excesso de

medidas legislativas interferissem na liberdade individual. A proporcionalidade surge

então como critério de controle da discricionariedade legislativa aberta pela própria

Constituição. Assim entende-se a proporcionalidade como um limite material imposto

ao poder do Estado de restringir a área de proteção de um direito fundamental, um

limite ao poder limitador dos órgãos estatais e partindo desse pressuposto, a

decisão política do órgão judicante só pode prevalecer na medida em que a sua

escolha pela tutela de um bem jurídico-constitucional preservar o máximo possível

do direito preterido. Por isso proporcionalidade não deve ser confundida com uma

regra de equidade, bom-senso, razoabilidade, ou como um instrumento de aplicação

da ideia de justiça.

Conforme se depreende do próprio art. 5, § 1º, a vinculação da atuação do

Estado se dá ao mesmo tempo com todos os direitos fundamentais. E inexistindo

hierarquia entre os referidos direitos, isso significa que no caso de colisão entre

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191

direitos, o poder/dever de limitar os direitos fundamentais deve se dar na estrita

medida do necessário para, se possível, otimizar o seu exercício.

Isso posto, o exame das intervenções do órgão judiciário no âmbito dos

direitos fundamentais deve obedecer a dois critérios: A) A verificação do fundamento

legal da medida interventora e da sua constitucionalidade aí incluída a

proporcionalidade; e B) A ponderação concreta, procurando definir se a medida

judicial, embora baseada em normas não inconstitucionais, violam o direito

fundamental por não satisfazerem o critério da proporcionalidade (DIMOULIS e

MARTINS, 2014, 194).

A seguir, passa-se a análise da intervenção do órgão judiciário no âmbito dos

direitos fundamentais ora analisados – Direito à Moradia e Direito ao Ambiente e

proteção da confiança – considerando-se a situação da ocupação irregular das

Áreas de Preservação Permanente, considerando os argumentos colocados e a

obediência aos critérios colocados para o exame das intervenções.

Quatro são os estágios ou “passos” para a verificação a proporcionalidade no

caso concreto:

a) A licitude do propósito perseguido;

b) A licitude do meio utilizado;

c) A adequação do meio utilizado; e

d) A necessidade do meio utilizado.

Importante salientar que os dois primeiros estágios para a verificação de

proporcionalidade não dizem respeito propriamente a esse exame de

proporcionalidade onde se tem a relação e comparação entre objetos. Estão muito

mais ligados aos critérios clássicos do exame de constitucionalidade: a análise da

conduta estatal levando-se em conta os critérios de superioridade, posterioridade e

especificidade das normas jurídicas constitucionais e infraconstitucionais. Contudo,

são trazidos como elementos do exame de proporcionalidade, pois permitem uma

investigação profunda do legislador sobre licitude dos meios e propósitos. Propósitos

genéricos dificilmente permitiriam na prática um exame de adequação e

necessidade. Além disso, a verificação de proporcionalidade pressupõe a verificação

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da licitude de maneira isolada de meio e propósito. Se meio e propósito são

considerados ilícitos em si mesmos, não há razão para se realizar o exame

proporcionalidade relacionando-os.

A seguir se fará a análise de cada um desses estágios de verificação de

proporcionalidade, buscando-se definir cada um deles para logo a seguir analisá-los

à luz do conflito entre o direito fundamental à moradia e o direito fundamental ao

meio ambiente, sempre na perspectiva do princípio da boa-fé, no caso da ocupação

irregular das Áreas de Preservação Permanente.

4.2.1 – Licitude do propósito perseguido.

O primeiro passo apontado para o exame de proporcionalidade é a licitude do

propósito perseguido. A questão aqui é a justificação constitucional do ato

interventivo estatal – no caso uma decisão judicial - que limita direito fundamental.

Quer-se saber se a intervenção no direito fundamental é constitucionalmente

admitida, ou seja, não se choque com nenhum dispositivo constitucional em sentido

formal.

Propósitos ilícitos em si mesmos não podem ser perseguidos pelo Estado,

configurando-se assim a inconstitucionalidade da medida já nesse primeiro passo.

No entanto, nem sempre a ilicitude do propósito é patente. Veja-se o próprio caso

em análise. A remoção ou demolição de habitações em áreas de APP em razão da

necessidade de proteção ao meio ambiente por meio do resguardo das margens de

fluxos e olhos d‟água. Da mesma forma em que se tem a possível ilicitude em razão

de contrariar o direito fundamental à moradia, tem-se por outro lado o fim perseguido

como lícito, em se observando o direito fundamental coletivo ao meio ambiente.

Mesmo quando se coloca a questão da desocupação das margens de cursos de

água também em face da proteção da confiança, o caso não parece mais simples.

De fato, parece que quanto ao primeiro passo, muito embora a licitude do propósito

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193

seja problemática, não é possível afirmar a ilicitude do fim em si mesmo, em razão

inclusive da inexistência de hierarquia entre as normas constitucionais. A proteção

da confiança e do direito a moradia, por mais que se apresentem como objetos de

proteção constitucional, quando colocados frente a outro objeto da mesma natureza,

não são suficiente para invalidá-lo. O problema está na relação entre eles e não nos

elementos em si. Assim, o mais correto neste caso, seria afirmar a licitude e fazer a

verificação da proporcionalidade quanto aos elementos seguintes.

4.2.2 – Licitude do meio utilizado.

O segundo passo se refere a licitude do meio utilizado. Quanto a licitude do

meio, entende-se se o meio em si considerado (independentemente de sua relação

com a finalidade) não é reprovável pelo ordenamento jurídico.

A ilicitude aqui se dá no processo e não no produto conseguido. O Estado não

pode se valer de meios ilícitos para perseguir um fim lícito, muito embora aqui o

exame da licitude do meio seja deste em si mesmo e não relacionado ao propósito.

DIMOULIS e MARTINS exemplificam como situação de emprego de meio

ilícito para perseguir meio lícito, a chamada “entrega” de brasileiros natos e a

previsão de prisão perpétua, medidas expressamente vedadas pela Constituição

Federal no art. 5º, incisos LI e XLVII, mas que foram incorporadas ao ordenamento

jurídico nacional pela aprovação do Estatuto de Roma, do qual o Brasil é signatário.

Embora as medidas possam ser consideradas de propósito lícito, no sentido de que

pretendem punir aqueles que agridem direitos humanos por meio de crimes contra a

humanidade, genocídio, guerra entre outros, de fato os meios empregados são

ilícitos e encontram vedação na própria constituição (2014, 201).

Cumpre-se então analisar a intervenção em Área de Preservação

Permanente para demolição de habitações e remoção de pessoas como forma de

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fazer cessar a degradação de margens de cursos e olhos d‟água. Parece, mais uma

vez que o meio em si não pode ser considerado ilícito, já que a constituição impõe

ao Poder Público quanto ao meio ambiente o dever de defendê-lo e preservá-lo para

a presente e futuras gerações (art. 225). Em princípio, a ilegalidade se dá pelos

moradores ocupantes das APP‟s e nesse caso, o Estado, seja agindo diretamente o

poder executivo por meio de um ato administrativo de remoção, seja por meio de

uma ordem judiciária, estaria em tese buscando a restauração da legalidade. Assim,

nesse caso, deve-se entender também que o meio empregado não é ilícito por si só.

Mesmo quando se verifica a medida a luz do princípio da boa-fé, não é possível uma

mudança de cenário. Ela sempre agirá como um elemento extrínseco e não tem o

condão de tornar a medida de remoção em si ilícita.

Como dito retro, o exame de proporcionalidade no seu sentido relacional não

ocorre nos dois primeiros passos, muito mais relacionados ao exame tradicional da

constitucionalidade. De fato, em se tratando de conduta estatal que se baseia em

norma constitucional em tese, ou que pretende concretizar uma norma

constitucional, se o que se pretende é a verificação dessa conduta em razão de

outra norma constitucional que ela ao mesmo tempo supostamente viola, esses dois

primeiros passos se prestam, como já dito, ao fornecimento de subsídios ao exame

da proporcionalidade por meio da relação entre fins e meios pela adequação e

necessidade, em razão inclusive da inexistência de hierarquia – seja pelo critério da

superioridade, posterioridade ou especificidade - entre as normas ou bens

constitucionalmente protegidos em análise: moradia, meio ambiente e confiança.

Assim se deve passar as fases seguintes.

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4.2.3 – Adequação do Meio utilizado.

No terceiro passo, tem-se o exame da relação ente meio utilizado na

intervenção e o propósito por ele perseguido. “Todos os meios empregados pelo

Estado e que não implicarem essa conexão empiricamente comprovável são

considerados desproporcionais e, por via de consequência, inconstitucionais”

(DIMOULIS e MARTINS, 2014, 203). Não serão considerados adequados aqueles

meios sobre os quais não seja possível afirmar-se aptos a alcançar determinado fim.

A verificação da adequação funciona como espécie de justificação

constitucional para a intervenção estatal que se pretende e que nos permitirá realizar

o teste da necessidade. Se uma medida se mostra inadequada a obter um

determinado fim, não há que se passar ao estágio seguinte.

O exame da adequação exige não só que a medida não seja inadequada,

mas que a intervenção seja comprovadamente adequada. Assim, não se deve

pensar na medida como possível, mas como idônea a alcançar um determinado

resultado. Explica-se: se pairarem dúvidas sobre a idoneidade da intervenção, se

pode ou não pode alcançar um resultado, a medida será inadequada. Exige-se aqui

um grau de comprobabilidade, afinal tem-se a busca de justificativa de uma medida

que interferirá em um direito fundamental, restringindo-o.

Nesse sentido, não parece haver muitas dúvidas quanto às medidas de

demolição e remoção de populações das APP‟s. Tratando-se de medidas

específicas, em circunstâncias específicas, as referidas intervenções não parecem

ser inadequadas, já que é possível afirmar comprovadamente que as medidas são

eficazes para a proteção do meio ambiente. Ressalte-se que há necessidade de um

propósito específico e não genérico, já que dificilmente seria possível fazer a análise

de adequação ante um objetivo genérico.

DIMOULIS e MARTINS alertam que se deve tomar cuidados com propósitos

genéricos, sob pena de tornar-se inútil o exame de adequação e necessidade.

Nesse sentido, propósitos genéricos devem ser especificados pois, genericamente,

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propósitos como “segurança pública”, "proteção do consumidor”, “proteção do meio

ambiente”, “defesa da infância e da juventude” mesmo lícitos, dificilmente ao serem

concretizados pelo Estado seriam considerados inadequados (2014, 202). Nesse

caso, é necessário que o propósito seja identificado de forma mais precisa, por

exemplo, ao invés de indicar-se o propósito simplesmente como “proteção ao meio

ambiente”, falar-se em despoluição de um rio, ou ao invés de apresentar-se como

motivo a “proteção do consumidor”, especificar como propósito o combate a

publicidade abusiva.

Nesse sentido, considerando-se os objetivos específicos da preservação das

APP‟s, como a preservação do solo e da vegetação das margens dos cursos e olhos

d‟água, e que a remoção e desocupação seriam medidas aptas a permitir a

recomposição do estado natural dessas áreas, é de se entender que as medidas são

adequadas como parte do exame da proporcionalidade.

Por outro lado, em se considerando uma situação específica na qual a Área

não possa ser por algum motivo recuperada, a medida não seria adequada, e

portanto, desproporcional. Imagine-se, por exemplo, uma área que, ocupada

massivamente por décadas, não possa se recuperar com a demolição e a remoção

da população que ali se encontra alocada. Sendo factível uma situação como essa,

não seria adequada a medida de desocupação da área. Outra hipótese possível

seria a que a medida de desocupação não bastasse. A ocupação massiva e

continua da área provocasse um problema no solo de forma que além da

desocupação, necessário também que houvesse um projeto de investimentos e

recuperação na área degradada para a recuperação da vegetação e do solo. Nesse

caso, também seria o caso de inadequação se a remoção não for proposta

acompanhada de um projeto de recuperação da área.

Em certas situações é possível que a área protegida seja desocupada, mas

fique abandonada, e sem um plano de recuperação jamais recupere sua vegetação

se transforme em uma zona de acúmulo de resíduos e proliferação de doenças. Por

essa razão, o exame da adequação depende das circunstâncias do caso concreto.

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4.6.4 – Necessidade do meio utilizado.

A necessidade é a verificação não da idoneidade do meio utilizado para a

produção de um determinado objetivo, mas a verificação de sua imprescindibilidade.

Esse seria o critério fundamental para a aplicação da proporcionalidade, já que em

se tratando de colisão de direitos fundamentais, o meio necessário será aquele que

menos sacrificar outro direito fundamental.

A análise da mera adequação presta-se tão somente para saber se o meio é

apto a produzir certo resultado. Assim, se a análise restringir-se a ela, poderia se ter

um meio altamente eficaz para produção de um resultado, mas ao mesmo tempo

sacrificasse fortemente outro direito fundamental. Se existirem outros meios

adequados a produção de um determinado propósito, sendo eles menos gravosos a

direitos fundamentais eles serão considerados necessários, enquanto que os meios

mais gravosos serão considerados desnecessários e por isso desproporcionais. É

na necessidade que se tem o exame da proporcionalidade propriamente dito.

O critério da necessidade exige a identificação dos vários meios lícitos

considerados adequados a produzir um determinado resultado e uma análise

comparativa entre eles para que se mensuração e o desprezo dos meios

considerados desnecessários.

Mais gravosa é a opção que, para proteger determinado direito fundamental,

interfira mais em um direito fundamental do que outras, mais brandas, dentre

diversas alternativas eficazes possíveis.

De fato, o meio menos gravoso será considerado o necessário, mas embora a

necessidade seja o critério preponderante, ela não elimina a necessidade de

adequação, sendo que se deve escolher o meio menos gravoso capaz de produzir o

mesmo resultado do meio mais gravoso. Será inútil um meio menos mais gravoso

mais incapaz de produzir resultado de eficácia semelhante. É o binômio adequação-

necessidade que, em última instância, permite dar efetividade a um direito

fundamental sem extirpar do ordenamento jurídico outro direito fundamental.

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No entanto, é necessário salientar, nem sempre essa comparação entre os

meios adequações se revela fácil. DIMOULIS e MARTINS apontam três problemas:

Primeiro saber qual entre os meios propostos é o menos gravoso para o titular do direito (grau de intensidade). Segundo, encontrar formas para medir a sua relação com o fim almejado (grau de adequação). Terceiro, relacionar o problema da intensidade com o problema do investimento estatal que pressupõe a tomada de certa medida (grau de custo estatal) (DIMOULIS e MARTINS, 2014, 215).

O primeiro problema está justamente na comparação em nível abstrato de

objetos diferentes para alcançar resultados diferentes. A heterogeneidade dos

objetos não permite o estabelecimento de uma classificação linear e até a

explicitação de um critério claro. Como comparar por exemplo, dizem os autores

citados, uma pena privativa de liberdade de curta duração com uma multa de valor

muito elevado? A comparação, nesses casos, tende a depender de posicionamentos

subjetivos do avaliador e comparações casuísticas.

O segundo problema se refere ao grau de relação entre o fim almejado e o

meio utilizado. Intervenções diferentes terão impactos diferentes. Se o estágio da

adequação pressupõe a escolha dos meios aptos a produzir um fim, a aplicação do

critério da necessidade é um pouco mais complexa, já que aqui é preciso verificar

dentre todos os propósitos idôneos qual é o mais adequado – assim considerando o

que interferir menos em outro direito fundamental ou bem constitucionalmente

protegido. Por vezes, tem-se um meio que interfere pouco na esfera de proteção de

um direito fundamental, por outro lado, o resultado da intervenção também não tem

um impacto tão eficiente no direito fundamental a ser protegido. Como compará-lo

com uma medida mais eficiente na proteção de um direito fundamental, mas ao

mesmo tempo mais repressora a um outro direito fundamental? Meios diferentes, ao

mesmo tempo em que protegem direitos fundamentais de forma diferente – mais ou

menos eficazes -, intervém de forma diferente em outros direitos fundamentais –

mais ou menos repressores. Assim a doutrina fala em meios menos repressores,

mas capazes de produzir idêntico resultado, ou melhor dizendo, resultando

igualmente eficiente.

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O terceiro problema apontado diz respeito ao grau de investimento estatal

necessário para a realização das medidas interventivas. Além da questão de maior

ou menor eficiência de uma intervenção, maior ou menor restrição ao direito ou bem

colidente, tem-se aqui o custo para o Estado que cada alternativa terá, já que as

medidas mais onerosas podem repercutir direta ou indiretamente na capacidade de

custeio e investimento do Estado, podendo afetar outros direitos fundamentais, ou

até mesmo, atingir direitos fundamentais patrimoniais no campo da tributação.

DIMOULIS e MARTINS alvitram que a opinião dominante na doutrina alemã é que o

exame da necessidade deve ser feito entre meios igualmente onerosos – no sentido

de gravosidade a direitos fundamentais -, desprezando-se os meios que implicam

em maiores investimentos por parte do Estado (2014, 216).

Assim, é caso de investigar se no caso concreto, nas desocupações e

remoções a existência de meio menos gravoso de preservação da APP em questão

ou se, não é possível alcançar a referida proteção sem a desocupação das áreas

protegidas. Em certas situações além de a desocupação colidir com o direito

fundamental à moradia, uma ocupação controlada poderia ser mais eficiente, na

medida em que poderiam se impor medidas que mitigassem os danos ambientais da

área por meio de decisão judicial ou mesmo de celebração Termo de Ajustamento

de Conduta com o Ministério Público ou com a Administração Pública.

Para ilustrar as possibilidades de atuação dos tribunais nessas situações,

apresenta-se novamente parte do texto do Acórdão Proferido na Apelação No.

0004414-75.2011.8.26.0642 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,

relatada pelo Desembargador Souza Nery, já referido anteriormente também

apontado justamente para uma solução híbrida. Na referida apelação reformou-se a

sentença de primeiro grau para excluir a demolição da moradia situada em APP no

município de Ubatuba, mas manteve-se a demolição das demais edificações feitas

pelo réu, que deveria se abster de novos ao meio ambiente e recompor a vegetação.

Ao contrário, penso ser possível realizar a mencionada harmonização, excluindo-se da sentença apenas a ordem de demolição da casa onde reside o apelante, mantida a demolição das demais edificações, com a qual o próprio apelante, em manifestação ofertada no bojo do inquérito civil que deu origem à ação, demonstrou concordância.

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Com isso, o apelante tem resguardado seu direito à moradia, mas, ao mesmo tempo, permanece obrigado a se abster de causar novos danos ambientais e recompor a vegetação.

A forma com que se dará o cumprimento de tais obrigações deve ser estabelecida pelos órgãos ambientais competentes levando em consideração a necessidade de respeitar o direito à moradia, de forma que o reflorestamento não impeça, por exemplo, o acesso da residência à via pública.

Verifica-se aqui a preocupação do poder judiciário no julgado em análise em

manter o núcleo essencial de cada direito fundamental, buscando manter o direito à

moradia, ao rechaçar a demolição da construção que serve a esse propósito

efetivamente, mas não concedendo o mesmo efeito às demais construções

edificadas pelo réu e que guarneciam sua moradia, sendo que neste caso, além das

demolições, o acórdão determina ainda a proibição de novas edificações e o

reflorestamento. Buscou-se assim, ao que parece, a solução que menos sacrificasse

o direito ao meio ambiente equilibrado, conciliando-o com o direito à moradia, muito

embora o acórdão não deixe clara a construção dogmática usada para realizar a

harmonização ou a “concordância prática” dos direitos fundamentais em questão.

Outra solução possível para o caso seria a determinação da remoção da

população da APP estabelecendo-se a obrigação ao poder público para que

providencie alternativas de moradia aos habitantes do lugar.

Portanto, é perfeitamente possível a conciliação entre os direitos

fundamentais em questão, moradia e meio ambiente. Ressalte-se, é claro, que a

solução em tais casos não segue uma forma pronta e acabada. Como é da própria

natureza desses casos, a solução pela harmonização de direitos fundamentais em

conflito surgirá da análise do caso em concreto, quando só então se aplicando os

critérios de aferição proporcionalidade será possível encontrar-se alternativas de

soluções para o caso concreto.

Isso posto, é possível em se pensar tanto na remoção como na não remoção

da população ocupante de APP, como forma de solução do conflito entre direitos

fundamentais no caso concreto. Há que se considerar a extensão e o grau de

degradação provocado, seus impactos ambientais, perspectivas de recuperação a

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área, além da forma com que a ocupação se dá, o uso que a população ocupante

faz da área e a extensão dessa ocupação, considerando tanto a área ocupada em si

como o número de ocupantes, e o tempo que ocupam, valendo-se inclusive de

instrumentos como o Estudo de Impacto Ambiental e o Estudo de Impacto de

Vizinhança, para uma correta avaliação do quadro existente. Importante ainda

verificar a existência de alternativas de moradia para a população ocupante da área.

Certo é que, a remoção, para que se afigure possível, deverá vir

acompanhada de alternativa de moradia para as pessoas que até então ocupavam a

área de preservação, sob pena de limitação desproporcional do direito fundamental

à moradia, e de fragilização das mesmas em afronta a própria condição da

dignidade da pessoa humana no ordenamento constitucional. No caso de uma

análise de proporcionalidade, e verificar-se que a remoção é meio adequado a

permitir a recomposição da área, mas poderá ou não ser necessário, conforme seja

possível conciliar no mesmo local a conciliação da ocupação por meio de um plano

ordenado sustentável ou não, caso em que uma alternativa de moradia deve ser

apresentada pelo Estado.

O julgado mencionado retro opta por uma solução intermediária, em que se

mantém a moradia, mas impõe certas obrigações, que incluem a demolição de

outras construções que não a de habitação propriamente dita e recomposição de

vegetação. Nesse caso, o direito de moradia e a preservação ambiental passam a

conviver no mesmo espaço, por meio da manutenção do status quo com a

imposição de certas restrições.

A análise feita no presente trabalho não se restringe a questão do direito de

moradia versus o direito ao meio ambiente. Em se tratando do princípio da boa-fé,

necessário que se verifique também a proteção da confiança, já que ela encontra

respaldo constitucional. Isso posto, na análise que se faz não basta encontrar uma

resposta que atenda o direito à moradia e o direito coletivo ao meio ambiente, mas

também a proteção da confiança dos moradores ocupantes da área irregular.

Como princípio de azo constitucional, a Boa-fé deve-se articular no jogo de

ponderações a ser necessariamente realizado pelo intérprete do ordenamento

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jurídico à luz da constituição, articulando-a com os demais princípios, com os direitos

fundamentais e com a linguagem adotada pela Constituição Federal.

Isso posto, qualquer solução adotada, deverá articular-se também com a

necessidade de proteção das legitimas expectativas criadas em razão das condutas

criadas pela própria atuação estatal, deficiente, negligente e confusa.

Considerando-se a questão da menor gravosidade quando confrontada

também com o princípio da boa-fé, a proteção da confiança penderia por intervenção

estatal que privilegiasse a não remoção, pois, conforme já dito, além de ter seu

fundamento na previsibilidade da atuação estatal, esta previsibilidade vai mais longe,

devendo ser vista como necessidade de segurança para elaboração de projetos de

vida.

De fato, uma eventual remoção teria impacto muito maior quanto os projetos

de vida de uma pessoa, do que a não-remoção, mesmo que proporcionando-se

alternativa de moradia. Imagine-se, por exemplo, uma ocupação e APP por anos a

fio, e que repentinamente seja ordenada sua desocupação e recomposição. A

permanência nesse caso preserva de forma mais adequada os objetivos finais, da

própria tutela da confiança e da segurança jurídica.

A tese da remoção só poderá se afigurar possível ante ao caso concreto

quando existam elementos que tornem a medida de remoção como única adequada

a satisfazer o direito coletivo ao meio ambiente naquela situação específica, o que

pode acontecer em certas situações no caso concreto.

Assim, a não remoção é a medida juridicamente mais adequada e deve ser

tratada por regra, e a remoção por exceção. A remoção só deve ser considerada

quando não for de fato possível conciliar meio-ambiente e moradia, em hipóteses em

que a remoção se afigure como medida imprescindível à preservação do meio

ambiente no local em que se situe a ocupação. Isso somente será possível se

verificar no caso concreto, em razão do equilíbrio que deverá ser necessariamente

realizado entre os bens constitucionalmente protegidos em jogo.

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Deve-se colocar inclusive que casos concretos poderão surgir em que outros

bens constitucionalmente protegidos deverão ser levados em consideração, e que

poderão eventualmente interferir nessa relação entre confiança-moradia-ambiente. É

o caso por exemplo, das ocupações em áreas insalubres ou que sujeitem moradores

e seus bens a desastres, colocando suas integridades físicas e mesmo vidas em

risco. Nesse caso, o resultado dessa equação poderia ser outro, mas sempre

considerando-se o caso concreto e a aplicação do método da proporcionalidade

para a resolução da questão. Na equação que ousa-se aqui chamar de simples,

entre confiança-moradia-ambiente, os ocupantes não devem ser removidos a não

ser em situações em que: a) a remoção permitirá efetivamente a recuperação do

local (adequação); b) a remoção seja a única medida possível a permitir a

recuperação ambiental da área ocupada, sendo que deverá ser acompanha de

alternativa para moradia, como forma de sacrificar o menos possível esse direito

fundamental (necessidade).

Quando colocado o problema da comparação entre os meios adequados,

nessa análise da intervenção estatal para solução do conflito entre direitos

fundamentais não só no âmbito do direito à moradia versus o direito coletivo ao meio

ambiente, mas também levando em consideração o princípio da boa-fé, algumas

questões precisam ser colocadas.

Quanto ao problema da heterogeneidade de meios adequados,

impossibilitando uma classificação linear entre eles, tendo que analisar o requisito da

necessidade em face de três bens constitucionalmente protegidos e não dois,

provavelmente implicará na redução do rol das possibilidades. Além disso, a

justificativa da intervenção precisa ser mais bem construída e explicitada. Intervindo

em favor de um direito fundamental escolhendo um meio adequado que ao mesmo

tempo menos afete restritivamente outros dois, torna a justificativa da intervenção

mais exigente e deixa menos espaço para o subjetivismo do avaliador.

Quanto ao problema do grau de adequação, cabe aqui o mesmo raciocínio de

que a analisa em face de três bens constitucionalmente protegidos e não dois,

provavelmente implicará na redução do rol das possibilidades, ou de indecisões

pontuais entre os meios adequados.

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204

Quanto a questão do maior ou menor ônus Estatal, em primeiro lugar cabe a

crítica de que esse critério não pode ser preponderante para a escolha do meio

necessário a intervenção Estatal, sob pena de submeter-se a realização dos direitos

fundamentais a questões orçamentárias, já rechaçadas no capítulo dois. Por isso, é

de se observar que a questão do custeio só poderá ser analisada após a análise da

intervenção considerando o meio mais adequado à proteção do meio ambiente no

caso específico, considerando o meio menos gravoso ao direito à moradia e ao

princípio da boa-fé e nunca antes.

Além disso, é de considerar-se que a aplicação do princípio da boa-fé visando

preservar a legítima confiança criada nas populações ocupantes irregulares de APP,

nasce antes de tudo pela conduta Estatal, ausente, confusa, negligente, atrasada. O

princípio da boa-fé tem o condão tanto de invalidar o ato estatal abusivo quanto de

criar condições e obrigações para o Estado no sentido de preservar uma situação

jurídica que se projetou com base na confiança em sua conduta. A aplicação da

boa-fé mesmo neste caso é antes de tudo uma medida reparadora ou de

preservação, baseada num estado ideal de coisas, desenhada com base na

confiança. Assim, a parcimônia no custeio pelo Estado da satisfação de direitos não

pode ser colocada como elemento de escolha, a não ser quando satisfeita a

expectativa criada pela conduta estatal.

Prevalecendo a tese da não remoção, que parece a mais adequada tanto a

preservar a proteção da confiança, quanto direito à moradia e meio ambiente, é

preciso se pensar na regularização da posição jurídica dessas pessoas ocupantes

de área de preservação.

A simples manutenção do status fático da ocupação irregular não é capaz de

gerar nenhum tipo de segurança jurídica, que é valor fim, o motivo pelo qual se

tutela a confiança pelo princípio da Boa-fé. Por outro lado o Estado tem o dever de

legalidade, devendo não só praticar atos legais como também sanar os atos

considerados ilegais.

A Segurança da Posse, no caso da não remoção de populações ocupantes

de APP é um elemento imprescindível de realização de dignidade humana, na

medida em que, “a posse sem segurança jurídica implica o morador não ter proteção

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legal para viver com dignidade, segurança e paz, as famílias vivem sob o temor do

despejo, o que impede o planejamento familiar e obras de habitação” (SAULE

JÚNIOR, 2005, 33). Além disso, a regularização da área com o reconhecimento

jurídico da posse passível de registro no SRI, permite o estabelecimento de políticas

públicas também de natureza ambiental visando recuperar a área degradada, bem

como o estabelecimento de ônus aos ocupantes no sentido de impedir a majoração

da degradação da área, ou mesmo, o estabelecimento de medidas de recuperação

ou compensação.

Nesse sentido parece óbvio que o dever da Administração é sanar a

ilegalidade promovendo a regularização da área ocupada.

Conforme visto quando tratadas as funções da boa-fé no direito privado, sua

atuação não se limita a atuação restritiva, no sentido de coibir atos considerados

abusivos, mas também age como indutora de deveres jurídicos, os chamados

deveres implícitos ou deveres anexos, de forma a atender, da melhor forma

possível, a expectativa de comportamento criada pelo próprio Estado. A boa-fé em

sua função extensiva legitima a exigência de comportamentos não pactuados,

baseada tão somente na confiança criada pelo comportamento até então mantido

pela contraparte. Se no direito contratual a promessa e a oferta contratual vinculam

a um fazer, pela função extensiva da boa-fé objetiva, aqui o comportamento indutor

de expectativas também vincula.

A regularização dessas áreas possibilitará a realização efetiva do valor

segurança jurídica, pois se o simples óbice a remoção e demolição resolve um

problema imediato, cria outros na medida em que relega a população ocupante a

uma espécie de limbo jurídico que lhe nega qualquer dignidade. A segurança da

Posse será o elemento de segurança jurídica reclamado pela tutela da confiança

cuja exigibilidade do Estado se dá com base na admissão de deveres anexos,

necessários para a conformação da situação fática à situação de confiança criada.

O princípio da boa- fé na tutela da confiança, compreendido em sua

conformação atual é dotado de eficácia negativa e de eficácia positiva. A eficácia

negativa consiste na vedação de que uma parte (no caso o Estado) se volte contra a

legítima confiança incutida em outrem por seus próprios atos. A eficácia positiva

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206

significa justamente a adoção de medidas necessárias de forma a suprir as

expectativas criadas por essa confiança.

Certo é que qualquer regularização fundiária da área deverá ter a

sensibilidade de considerar todos os aspectos sociais e individuais envolvidos na

questão, inclusive os direitos fundamentais à moradia e ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado, se por um lado flexibilizando as exigências que obstam

o direito de construir (e consequentemente a regularização da área) de outro

promovendo estudos técnicos que apurem os impactos ambientais até então

provocados, em razão da ocupação específica de determinada APP, e apontem

medidas mitigadoras de dano ambiental ou compensatórias, fazendo uso da

Ponderação razoável dos interesses e direitos fundamentais implicados na questão.

Por outro lado, há que se compreender necessariamente a tutela da confiança

em seus efeitos positivos, que implicam numa atuação positiva no Estado no sentido

de garantir aos particulares seus projetos de vida. Assim como a boa-fé no direito

privado, que garante os chamados deveres implícitos ou anexos.

Os chamados deveres anexos decorrem da própria complexidade contratual

contemporânea. MENEZES CORDEIRO diz que

A complexidade intra-obrigacional traduz a ideia de que o vínculo contratual abriga, no seu seio, não um simples dever de prestar, simétrico a uma pretensão creditícia, mas antes vários elementos jurídicos dotados de autonomia bastante para, de um conteúdo unitário, fazerem uma realidade composta (CORDEIRO, 2001, 585).

Essa realidade composta, se observada do ponto de vista ético nos contratos,

implica muitas vezes em extrapolar os deveres dispostos no texto contratual de

forma a buscar a proteção das partes contratantes e de suas razoáveis expectativas.

A par dos deveres já explicitados no texto contratual, a boa-fé tem o papel de

ampliar as obrigações contratuais, integrando-as com obrigações instrumentais de

conservação e respeito ao direito alheio, chamados deveres anexos. “„Deveres de

cooperação e proteção dos recíprocos interesses‟, e se dirigem a ambos os

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participantes do vínculo obrigacional, credor e devedor” (MARTINS-COSTA, 2000,

439).

Esses deveres não guardam qualquer relação com a obrigação em si, não

são deveres implícitos na obrigação e nem guardam qualquer relação de

decorrência com as demais obrigações contratuais, mas decorrem do próprio

significado de boa-fé objetiva, como promotora de um Estado ideal de coisas, onde a

boa-fé atua como fonte de integração da relação jurídica, determinando sua

otimização, independentemente da regulação volitiva estabelecida. São

comportamentos que vão variam conforme a circunstância do caso concreto, e que

deverão ser adotados para a realização positiva do fim almejado pelo contrato, para

a proteção da pessoa humana e aos seus bens envolvidos na relação contratual,

guardando identidade na boa-fé, como elemento de proteção da confiança.

Assim, como se pode falar em ampliação dos direitos contratuais nas relações

privadas, é o caso de se falar na atuação positiva da tutela da confiança e da Boa-fé

no âmbito do direito público, no sentido de criar a obrigação de certos

comportamentos positivos para a administração. A eficácia positiva então preconiza

a obrigação da adoção de medidas pela Administração Pública no sentido de

garantir uma existência digna as pessoas e estabilidade nos seus planos de vida,

rechaçando que a atuação da Administração se dê de forma irrefletida. De fato aqui

se olha para o Estado de confiança não no sentido de preservá-lo mas de alcançá-lo

ou recompô-lo.

Nesse sentido MARTINS-COSTA sobre a eficácia positiva e negativa da

tutela da confiança:

Com efeito, a personalidade humana, considerada em seus aspectos existenciais, protegidos, em larga medida, no catálogo dos direitos fundamentais, mas também nas leis infraconstitucionais, é o bem jurídico fundamental por excelência. Proporcionar as condições para o seu desenvolvimento livre na vida comunitária é também dever de atuação do Poder Público. A confiança do cidadão na Administração Pública vem aí relacionada a um dever que se desdobra, que se bifurca, conferindo dois sentidos diversos a um mesmo sintagma: boa-fé – a Administração deve não apenas resguardar as situações de confiança traduzidas na boa-fé (crença) dos cidadãos na legitimidade dos atos administrativos ou na regularidade de certa conduta; deve também agir segundo impõe a boa-fé, considerada como norma

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de conduta, produtora de comportamentos ativos e positivos de proteção (2004, 114).

De forma que a tutela da confiança não se limita a estabelecer vedações à

atuação da administração pública, mas antes a impor a obrigação de agir, no sentido

de preservar ou mesmo restaurar a confiança e as legítimas expectativas criadas.

Nesse sentido, MARTINS-COSTA, analisando a decisão proferida na Medida

Cautelar No. 2.900 pelo STF, destaca a re-significação do princípio da segurança

que a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem promovido para

compreender não só a segurança jurídica como um valor ligado a imutabilidade e a

permanência de certas situações jurídicas, mas também uma significação muito

mais expressiva, que é própria da proteção da confiança legítima.

Sem desmerecer a significação da segurança jurídica como estabilidade ou fixidez jurídica, a decisão do Supremo Tribunal Federal que motiva estas notas sinaliza, contudo, também uma outra significação para aquele antigo princípio. Faz o trânsito do peso mais significativo – no arco do princípio da segurança – da legalidade estrita para a proteção da confiança, permeando-se com viés de dinamismo. Traça inter-relações entre a confiança e outros princípios, notadamente com os princípios e direitos fundamentais da personalidade humana. Indica que, por vezes, a confiança carece de ação (e não de abstenção), sob pena de ser afrontado o valor “justiça”. (2004, 114)

Para HUMBERTO ÁVILA, a qualificação da norma como regra ou princípio

depende de conexões axiológicas que não estão incorporadas no texto legal, mas

que são construídas pelo interprete na realização de seu trabalho, estando ele

limitado aos valores e fins do ordenamento jurídico. Princípios, segundo a sua

conceituação, são normas imediatamente finalísticas, por estabelecerem um fim a

ser atingido. Eles instituem o dever de adotar comportamentos necessários à

realização de um estado de coisas ou, inversamente, instituem o dever de efetivação

de um estado de coisas pela adoção de comportamentos a ele necessários. Essa

perspectiva de análise evidencia que os princípios implicam comportamentos, ainda

que por via indireta e regressiva (2004, 72).

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Assim, a adoção de comportamentos ativos pelo Estado em razão da

proteção da confiança parece apontar para uma solução de dimensão social, no

caso do problema da articulação entre direito de moradia e preservação ambiental,

no sentido de que, se por um lado, o bem ambiental é um interesse a ser

necessariamente preservado em razão da vida humana, essa mesma vida humana

se encontra como fundamento do próprio direito de moradia, pode ser fundamental

posto que a simples inação do Estado pode não oferecer proteção ou oferecê-la de

forma deficiente tanto a um quanto a outro direito fundamental.

A solução da remoção pode ser uma alternativa para atender ao direito

coletivo ao meio ambiente, se acompanhada de uma opção alternativa de moradia

digna que atenda também à proteção da confiança da relação entre Estado e

Cidadão. Da mesma forma, a eventual regularização moradia em Áreas de

Preservação Permanente devidamente acompanhada de Estudos de Impacto

Ambiental, em que esse proponha medidas mitigadoras da degradação ambiental, e

a solução da regularização – como medida de plena proteção à moradia – venha

necessariamente acompanhada dessas medidas mitigadoras e ou de medidas

compensatórias, estabelecidas como ônus da regularização. A imposição dessas

medidas mitigadoras ou compensatórias inclusive poderia propiciar de forma direta

ou indireta a descontinuidade da ocupação de áreas de proteção especificamente

contempladas com a regularização.

A confiança, dos cidadãos é um elemento de composição do próprio Estado

Democrático de Direito, como já visto. Um Estado de viés instrumental, que não tem

outro sentido na contemporaneidade que não a concreção de direitos fundamentais

e a valorização da pessoa humana como tarefa permanente. Por isso, é certo dizer

que o Estado Democrático de direito é um Estado de confiança, na medida em que a

confiança “é credito social, é a expectativa, legítima, da ativa proteção da

personalidade humana como escopo fundamental do ordenamento” (MARTINS-

COSTA, 2004, 116). Desta forma não subsiste um Estado de Direito cuja ordem

jurídica não proporcione ou que não viabilize esse Estado de confiança.

A proteção da confiança como exigência de concreção da Constituição, desta

forma, obriga a um comportamento do aparato estatal que não se limite a deveres

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de abstenção, mas também a comportamentos positivos, como meios de realização

dos direitos fundamentais e da realização das legítimas expectativas dos cidadãos.

Assim a regularização fundiária da área ocupada é exigência do princípio da

boa-fé, uma vez que não seja caso de fazer a remoção das populações ocupantes

de APP, que só seria possível em situações de exceção, não de regra.

Uma vez que seja o caso da regularização fundiária, o princípio da boa-fé

também incidirá sobre o procedimento da regularização. Se boa-fé é confiança,

exigência de previsibilidade e respeito aos projetos de vida é importante que a

regularização fundiária busque dar legalidade e urbanificar a área ocupada tomando

as medidas estritamente necessárias para isso, buscando além de conciliar a

ocupação humana com o meio ambiente, prover serviços públicos básicos, acesso,

de forma a interferir o mínimo possível na vida das pessoas ocupantes da área, e

não trazer grandes ônus a elas.

Necessário então que, nas etapas de planejamento do projeto de

regularização fundiária leve-se em consideração não apenas o que precisa ser

levado à população ocupante da APP, mas tudo o que ali já se encontra e faz parte

da vida das pessoas que ali habitam, reconhecendo sua realidade. Assim, nada

mais indicado para a efetiva proteção da confiança, e assim proteção à boa-fé, do

que permitir que a população interessada – principalmente a que habita a área e

será afetada pelo projeto de regularização e as mudanças que ele acarretar - possa

trazer suas contribuições e críticas. Seja por meio de audiências públicas com a

população local ou outros processos. Além de serem os principais afetados, com

certeza ninguém conhece mais a realidade local do que eles. É nesse sentido que

se realiza a verdadeira boa-fé: a cooperação entre as pessoas, e no caso entre

Estado e cidadãos. Esse é também o espírito do Estatuto da Cidade (Lei No.

10.257/2001) que reconhece a gestão democrática e a participação popular não

apenas como regras, mas como verdadeiros princípios da política urbana (art. 2, II e

XIII) e que, por isso, deverão permear todas as etapas da atividade urbanística.

Atualmente, a legislação comporta algumas hipóteses de supressão de

vegetação para a regularização fundiária de áreas que se situem em APP, como já

dito. É o caso do art. 3, IX, d, da Lei 12.651 de 2012, que permite a supressão de

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APP por interesse social, arrolando entre essas situações, “a regularização fundiária

de assentamentos humanos ocupados predominantemente por população de baixa

renda em áreas urbanas consolidadas, observadas as condições estabelecidas na

Lei No. 11.977 de 7 de julho de 2009”. Essa lei, sobre a questão, estabelece que o

Município poderá, com base em decisão motivada, admitir a regularização fundiária

em APPs ocupadas até 31 de dezembro de 2007.

Outra hipótese é a do art. 8º, § 2º, que admite a intervenção em ou supressão

da vegetação nativa em manguezais e restingas estabilizadoras de mangues, desde

que suas funções ecológicas estejam comprometidas, para a execução de obras

habitacionais de urbanização em áreas consolidadas ocupadas por população de

baixa renda, se estas estiverem inseridas em projetos de regularização fundiária de

interesse social.

Assim, nas últimas décadas houveram avanços quanto ao tratamento das

ocupações humanas em áreas de APP, demonstrando-se sensibilidade legislativa

com ocupações consolidadas, já que se inseriu na legislação possibilidades de

regularização fundiárias de áreas ocupadas nessas condições. O princípio da boa-fé

atuará para permitir a permanência da população em APP‟s e regularização

fundiária em hipóteses não previstas em lei, mas presentes os elementos objetivos

ensejadores da proteção da confiança legítima, ou em situações em que a lei não

contemplar suficientemente situações merecedoras da proteção dessa confiança.

Uma hipótese emblemática é a do limite temporal da lei No. 11.977 que fixado

como 31 de dezembro de 2007, para possível regularização pelos municípios de

ocupações por população de baixa renda consolidadas em APP‟s. Embora possa se

entender que a continuidade de ocupações dessas áreas comprometam o meio

ambiente, e que possam tornar o limite temporal contido expressamente em lei letra

morta, conquanto o Poder Público continue agindo descoordenadamente, se

omitindo, contradizendo-se, sem uma política de urbanização séria e sensível em

todas as esferas de poder, bem como uma política ambiental eficiente, e com isso

continue a permitir a ocupação de áreas de proteção, sem qualquer controle, criando

condições para que elas se consolidem, e travando relações jurídicas de natureza

administrativa com seus ocupantes dessas áreas, continuará criando legítimas

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expectativas nos mesmos, e por isso, criando condições para a atuação do princípio

da boa fé. Nessas situações, quando concretamente identificadas, e presentes os

pressupostos para a proteção da confiança, será forçoso entender que o limite

temporal estabelecido na lei 11.977 de 2009, não subsistirá.

Embora se reconheça que o poder público esteja buscando solucionar o

imenso problema criado ao longo de décadas de urbanização desordenada e

construída sob um regime de propriedade extremamente excludente, e que o limite

temporal tenha sido criado em razão disso, pelo princípio da boa-fé, o limite temporal

só tem sentido se a forma de agir do Estado mudar ao ponto de não mais permitir a

projeção de situações de confiança legítima em ocupações de áreas ambientais.

Afinal, o princípio da boa-fé é um meio de proteção do cidadão contra o Estado,

hábil a protegê-lo não somente contra as arbitrariedades do poder público, mas

também da sua ineficiência e da debilidade.

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CONCLUSÃO

Após analisar o princípio da Tutela da Confiança e da Boa-fé como corolários

do próprio Estado Democrático de Direito, verificou-se que o princípio, se

devidamente aplicado nas relações de Direito Público é capaz de proteger o cidadão

ante a postura do Estado, exigindo deste último tanto posturas negativas quanto

posturas positivas.

A Tutela da Confiança e da Boa-fé, tem fundamento na própria reformulação

do Estado Constitucional para Estado Democrático de Direito, em que a pessoa

humana em sua dignidade passa a condição de figura central do ordenamento

jurídico, e passa a exigir-se do Estado uma atuação reflexiva, preocupada com o

interesse público – não considerado interesse da Administração Pública, mas

sopesado em cada caso concreto, de acordo com os verdadeiros anseios sociais e

com as exigências de proteção dos direitos fundamentais – e com os impactos de

sua atuação sobre a vida e os projetos de vida dos cidadãos. Essa preocupação,

reflete a própria proteção da dignidade da pessoa humana, na medida em que

retirando-se do cidadão a segurança conferida pela confiança, corre-se o risco da

pessoa humana perder sua condição de centralidade do ordenamento jurídico,

convertendo-se num mero instrumento de atuação Estatal.

Ao analisar os direitos fundamentais à moradia e ao meio ambiente, verificada

a razão de sua incorporação ao texto constitucional por sua fundamentalidade e uma

vez verificado também o tratamento constitucional dado a ambos os direitos,

observa-se que a melhor solução para o caso de conflitos entre direitos de tamanha

importância deve necessariamente passar pela ponderação de interesses e valores,

de modo a se preservar o núcleo essencial de ambos os direitos constitucionalmente

protegidos.

Se por um lado à moradia como direito fundamental é uma conquista

paulatina advinda do surgimento do Estado Social, e construída através d e um

processo histórico em que se amplia a noção de direitos fundamentais para além

das liberdades públicas do estado liberal para atingir o atendimento de necessidades

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matérias do ser humano, por outro lado o direito ao ambiente surge da compreensão

de que a própria vida humana, o primeiro direito fundamental a ser reconhecido, está

interligada aos demais fenômenos biológicos do planeta e deles depende para a

sua continuidade. Do ponto de vista da dignidade humana como princípio

fundamental da República, ambos os direitos são de igual importância e dirigem-se

para aquele mesmo fim.

Se por um lado acelera-se a degradação ambiental do planeta, pelo uso

inadequado dos recursos naturais e pela poluição, por outro lado, o fenômeno

urbano e a desigualdade social pressionam a população de baixa renda para as

áreas marginais das cidades, onde estas pessoas sem grandes alternativas

procurarão modos de se estabelecer e morar.

Ver a ocupação de certas áreas de especial interesse ambiental como ato de

vilania, significa deixar de enfrentar a fundo o verdadeiro problema, já que a

população de baixa renda que recorre a ocupação de áreas de preservação o fazem

por falta de opção, e normalmente com a omissão ou conivência do poder público, já

que a alternativa - propiciar a todos lugar e condições dignas de morar - é muito

mais onerosa. Por outro lado, tal visão ignora a participação fundamental do Estado

na falta de políticas sociais adequadas e na falta de controle dos bens ambientais,

objetos que deveriam ser de especial proteção. Sob esse aspecto, adquire

importância também o princípio da boa-fé, como elemento de proteção da confiança

– bem que encontra proteção no próprio texto constitucional – nas relações entre

cidadãos e Estado.

Considerando-se isso, e somada a fundamentalidade dos direitos

constitucionalmente protegidos em questão, qualquer solução jurídica para o conflito

de direitos, ou para o conflito de interesses balizados nesses direitos passará

necessariamente pela ponderação de valores, de forma a resolver o problema

preservando-se o núcleo essencial de cada direito em questão, posto que como

direito fundamentais emanam deles escolhas políticas do povo, enquanto

sociedade politicamente organizada. É importante salientar que não havendo

soluções prontas para esse tipo de problema, conforme a própria doutrina aponta,

buscar-se-á a ponderação da proporcionalidade, visando a concordância prática dos

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direitos em conflito no caso concreto, de forma a não a se encontrar uma solução

que efetive um determinado direito impondo menor restrição aos direitos

fundamentais que com ele se confrontam, sem o quê não faria sentido chamá-los de

fundamentais, e acima de tudo, como postulado básico buscando manter a harmonia

e unidade da constituição.

O que deve ficar claro é que o comportamento do Estado, considerando-se

que basicamente o Estado Democrático de Direitos é fundamentalmente um Estado

de confiança, exige a racionalização da atuação do Poder Público, tendo em vista o

atendimento a interesses sociais e a preservação dos direitos fundamentais e da

pessoa humana, de forma que é inadmissível a mudança de comportamento do

Estado de forma brusca, após longo tempo, que vem fragilizar os cidadãos que nele

confiam.

Nesse sentido a própria legalidade deverá ser afastada em nome da

juridicidade, considerando-se a multiplicidade de fontes de Direito na relação do

Estado com o cidadão, tendo a Constituição como eixo norteador de ponderação em

cada caso concreto, de forma a manter a centralidade da pessoa humana e dos

direitos fundamentais no ordenamento jurídico.

Assim, a ocupação de APP‟s por populações como alternativa de moradia,

deve ser analisada não considerando a remoção ou não remoção a priori, mas

considerando que o próprio Estado teve papel fundamental na constituição do

problema e que, legítimas expectativas criadas exigirão um comportamento reflexivo

e que atenda a confiança que é justo que cidadão tenha no aparato estatal no

Estado de Direito. Não podem ser admitidas situações que subvertam os projetos de

vidas das pessoas, mesmo quando construídos sobre situações ilegais, se o próprio

Estado contribuiu com sua omissão ou descoordenação para essa ilegalidade. É

importante aqui a compreensão e que o próprio Estado, em seus atributos e

prerrogativas, pode com seus atos dar aparência de legalidade ou de

reconhecimento jurídico de certas situações, pelos próprios instrumentos que utiliza

na execução da função estatal – presunção de legalidade, autoexecutoriedade,

supremacia do interesse público – além do fato de ser fiduciário da confiança e

expectativa dos cidadãos.

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O problema de ocupação das APP‟s por moradia exige solução, e a solução

do Estado não se limitará a inação, pois a inação, em muitas situações não é

suficiente para traduzir-se em proteção da confiança do cidadão. Nesse caso, além

de medidas negativas ou de abstenção, a proteção da confiança e da boa-fé

poderão exigir comportamentos positivos, na medida em que como princípios

jurídicos, se comprometem com a promoção de um estado ideal de coisas e com o

atendimento de finalístico do ordenamento constitucional.

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