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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO
Jonas Kucinski
A fusão de horizontes e o conceito de jogo de Gadamer no romance, O Jogo da Amarelinha
MESTRADO EM FILOSOFIA
SÃO PAULO 2021
PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO
Jonas Kucinski
A fusão de horizontes e o conceito de jogo de Gadamer no romance, O Jogo da Amarelinha
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Gra-duação em Filosofia do Departamento de Filosofia, Comunicação, Letras e Arte da Pontifica Universida-de Católica de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Filosofia Orientadora: Profa. Dra. Sônia Campaner Miguel Fer-rari
SÃO PAULO2021
Sistemas de Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Ficha Catalográfica com dados fornecidos pelo autor
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos a reprodução total ou parcial desta Dissertação de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Assinatura: __________________________________________________
Data: ______________________
e-mail: [email protected]
KUCINSKI, JONAS A fusão de horizontes e o conceito de jogo de Gadamer no romance, O jogo da amarelinha / JONAS KUCINSKI. — São Paulo: [s.n.], 2021. 109p. ; cm.
Orientador: Sônia Campaner Miguel Ferrari.Dissertação [Mestrado] — Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós Graduados em Filosofia.
1. Filosofia. 2. Estética. 3. Romance. I. Ferrari, Sônia Campaner Miguel. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós Graduados em Filosofia. III. Título.
CDD
Jonas Kucinski
A fusão de horizontes e o conceito de jogo de Gadamer no romance, O Jogo
da Amarelinha
Dissertação apresentada à Banca Examinado-ra da Pontíficia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em filosofia, área de con-centração Estética.
Aprovado em: ___/___/___
BANCA EXAMINADORA
_________________________________
_________________________________
_________________________________
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Sônia Campaner Miguel Ferrari, minha orientadora: pelo respeito com
que conduziu o processo de orientação desta pesquisa; pelas reflexões suscitadas e
pelos aprendizados propiciados; pelo carinho e pela amizade; por me permitir criar e
pela paciência...
À Profa. Dra. Dulce Mara Critelli: pelo apoio e incentivo à realização desta pesquisa;
pelas valiosas contribuições no exame de qualificação, que me fizeram refletir, rever
escolhas metodológicas e dar um rumo à pesquisa.
À Prof. Dr. Hélio Salles Gentil: pelas oportunidades de aprendizado; pelas valiosas
contribuições no exame de qualificação; por aceitar fazer parte da banca de defesa,
nesta reta final do meu processo de mestrado.
À Prof. Dr. Tomás Mendonça da Silva Prado: pelas oportunidades de aprendizado;
pelas valiosas contribuições na graduação; por aceitar fazer parte da banca de defe-
sa, nesta reta final do meu processo de mestrado.
Ao Marcos Aurélio de Oliveira, analista acadêmico: por me oferecer toda a ajuda ne-
cessária à realização dessa dissertação; pelo apoio e ajuda oferecidos diretamente a
mim, em muitos momentos da minha pesquisa, e por fazer da PUC-SP um ambiente
tão acolhedor e agradável.
A todas as amigas e amigos queridos que fiz na PUC-SP, dentre eles: Alexandre
Katz, Cássio Mercier.
Aos queridos amigos Sérgio Rodrigues Mariano, Eduardo Rodrigues Mariano, Pablo
Andres Olivares Cardoso, Oswaldo Gabriel Zarate Espinoza, Fabian Andree Cerda
Pastrian, Angelo Veronesi, Heloisa Cazuza Veronesi, Fernando Celso de Souza:
pelo carinho, pela amizade e pelo apoio de vocês neste processo de mestrado, prin-
cipalmente nesta reta final.
Às queridas amigas Charlene Marcondes, Chabeli Del Carmen Osório Zarate Oliva-
res, Gabriella Jimena Osório Zarate Pastrian, Laura Del Carmen Rodrigues Osório,
Elisabete Oliveira de Souza: pelo carinho, pela amizade e pelo apoio de vocês neste
processo de mestrado, principalmente nesta reta final e ao meu filho Bernardo No-
gueira Kucinski.
Aos meus pais, Bernardo Kucinski e Mutsuko Yamamoto Kucinski: pela oportunidade
da vida; pelo amor incondicional; pela educação que me deram; pelos valores que
me ensinaram; por todo cuidado comigo, nas diferentes fases da minha vida.
E, por fim, a minha noiva, Samara Muniz Kopezynski, meu grande amor e compa-
nheira de jornada: pelo apoio incondicional a todos os meus projetos; pela valoriza-
ção dos meus estudos e do meu trabalho e por toda ajuda neste processo de mes-
trado. Você, mais do que ninguém, sabe o que ele exigiu de mim, de nós...
Jonas Kucinski. A fusão de horizontes e o conceito de jogo de Gadamer no ro-mance, O Jogo da Amarelinha. 109f. Dissertação (Mestrado em Filosofia). São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo, 2021.
RESUMO
Pretende-se abordar aqui parte da produção literária de Julio Cortázar a partir
do conceito de jogo gadameriano. Este estudo buscará o desvelamento de uma
nova possibilidade de atualização da existência subjetiva à partir da obra de Cortá-
zar. Buscaremos os elementos gadamerianos na obra O jogo da amarelinha a fim de
obter uma atualização de nossa realidade; dessa forma, serão comparadas as pos-
sibilidades do romance de acordo com o conceito proposto por Gadamer para a
apreciação da obra de arte. Sabe-se que, dentro de obras textuais, existe um cami-
nhar próprio e que acaba tomando do leitor o seu próprio existencial para impor-se e
depois devolvê-lo à sua realidade, revelar uma existência possivelmente atualizada
pela obra de arte. Há, no romance de Cortázar, o que Gadamer vai chamar de fusão
de horizontes e que leva em consideração a relação do leitor como habitante do
mundo e da obra como objeto do entendimento do mundo, ou seja, a mistura entre
pelo menos duas possibilidades de mundos. Isso foi indicado pelo conceito de jogo
gadameriano ao propor o jogo próprio da obra dentro de seu caminhar.
Palavras-chave: Filosofia. Estética. Gadamer. Cortázar. Ricoeur. Romance. Conceito
de Jogo. Jogo da Amarelinha.
Jonas Kucinski. A fusão de horizontes e o conceito de jogo de Gadamer no ro-mance, O Jogo da Amarelinha. 109f. Dissertação (Mestrado em Filosofia). São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo, 2021.
ABSTRACT
It is intended to approach here part of Julio Cortázar's literary production ba-
sed on the concept of the Gadamerian game. This study will seek to unveil a new
possibility of updating subjective existence based on Cortázar's readings. Accordingly
this work will search for gadamerian elements in O jogo da Amarelinha, and compare
the novels potentialities with Gadamer's proposal for the appreciation of an art work.
It is evident that, literary narratives may envelops the reader to the point of transfor-
ming its existence, updating, so to say, its being. There is, in Cortázar's novel, what
Gadamer will call the fusion of horizons and which considers the relationship betwe-
en the reader as an inhabitant of the world and art work itself as possible means to
interpret the world, that is, an interaction between at least two world possibilities. This
was indicated by Gadamerian proposal of a game intrinsic to the narratives develop-
ment.
Keywords: Phylosophy. Aestethics. Gadamer. Cortázar. Ricoeur. Novel. Game Con-
cept. Jogo da Amarelinha.
Sumário
1 Introdução 10 .............................................................................................................
1.1 A Problemática 16 ...........................................................................................
1.2 Justificativa Filosófica 21 ................................................................................
2 A Liberação da questão da verdade a partir da experiencia da arte: A ontologia da
obra de arte e seu significado hermenêutico 44 ...........................................................
2.1 O jogo como fio condutor da explicação ontológica 44 ..................................
2.1.1 O conceito de jogo 44 ..............................................................................
2.1.2 A transformação do jogo em configuração e a mediação total 57 ...........
4 Leitura Linear 63 ........................................................................................................
4.1 Leitura prosaica (romanceada) linear 63 ........................................................
4.1.1 Elementos psicológicos da leitura linear 70 ............................................
4.1.2 Elementos empíricos da leitura linear 75 ................................................
4.2 Leitura filosófica linear 83 ...............................................................................
5 Leitura Crítica Não-Linear 90 .....................................................................................
5.1 Leitura prosaica não-linear (romanceada) 91 .................................................
5.1.1 Elementos psicológicos da leitura não-linear 95 .....................................
5.1.2 Elementos empíricos da leitura não-linear 96 .........................................
5.2 Leitura Filosófica não-linear 101 .....................................................................
6 Conclusão 104 ...........................................................................................................
7 Referências Bibliográficas 108...................................................................................
!10
1 Introdução
O intuito desta pesquisa é traçar um paralelo entre Gadamer e Julio Cortázar
ao identificar o que poderíamos chamar de elementos gadamerianos dentro da obra
O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar. A relação entre os personagens Oliveira e
Maga foi o foco de interesse, pois parecem completar um ao outro, como se um fos-
se necessário ao outro para que existissem; apresentam-se como as antípodas. É
como se Oliveira carecesse de Maga para vir a ser um Oliveira pleno, inclusive, pa-
rece que todos os outros personagens, por mais importantes que sejam, acabam de-
finindo Maga e Oliveira como um conjunto.
Pretende-se também enveredar pela obra analisando os elementos e persona-
gens sob a luz fenomênica proposta por Gadamer, que se baseia na ideia de que a
obra, como um objeto de arte, é capaz de causar certas atualizações no leitor ao ex-
pressar-se por si como um jogo. Quanto a Cortázar, os personagens com suas lin-
guagens muito específicas conseguem nos inserir dentro do romance de forma qua-
se que presencial; ele fala dos fenômenos que nos aparecem e não utiliza preceitos
linguísticos ou comuns para descrever os personagens e objetos. Numa das passa-
gens, por exemplo, Oliveira está falando dos supositórios que eram usados por
Maga para poder diminuir as dores e o mal estar de seu filho doente, Rocamadour, e
que isso o faz perceber o ânus como uma segunda boca, a que engole os remédios:
Seria interessante analisar filosoficamente essa surpreendente reivindicação do ânus, sua elevação a uma segunda boca, a algo que já não se limita a excretar, mas que também absorve e engole os perfumados e aerodinâmicos pequenos obuses cor-de-rosa, verdes e brancos (CORTÁZAR, 2015, p.138).
Podemos assimilar o mundo cortazariano à medida que ele utiliza seus perso-
nagens somados à sua percepção de mundo para descrever aos seus leitores aquilo
que ele quer que estes percebam dentro da obra. Ele se utiliza do contexto da au-
tenticidade e inautenticidade para questionar ou impor as realidades do romance
como algo pertencente exclusivamente ao romance. As revoluções linguísticas pro-
feridas pelo romance O jogo da amarelinha aparecem por vias de absurdos chegan-
do a alterar as verdades impostas pelos conformismos da linguagem.
!11
Esquecimento da realidade? De nenhuma maneira: meus contos não somente não a esquecem, mas sim a atacam por todos os flancos possíveis, buscando as veias mais secretas e mais ricas. […] Poucos duvidarão de minha convicção de que Fidel Castro ou Che Guevara tenham dado as pautas de nosso autêntico destino latino-americano; […] estamos necessitando mais que nunca dos Che Guevara da linguagem, os revolucionários da literatura mais que dos literatos da revolução (CORTÁZAR, 1970, p. 12).
As descrições e nuances das narrativas de Cortázar acabam por nos fazer
participar e adentrar no ambiente próprio do romance; a obra de arte nos aparece
dentro de um contexto que parece oferecer uma espécie de jogo próprio.
Isso nos indica a ideia de Gadamer, que introduz na hermenêutica o entender
da arte a partir do movimento identificado como “conceito de jogo”. Ele percebe que
a obra toma para si um movimento próprio: não é um jogo com regras bem descritas
e que devem ser seguidas, mas um jogo que se faz em seu vaivém, algo que acon-
tece em um ambiente fechado do próprio jogo, algo que retira do participante a pró-
pria identidade como ser que joga para si e o transforma em um ser dentro do jogo.
É aquele jogo que, após ser escrito e pensado pelo artista, acaba tendo um desen-
volvimento próprio; deixa de ser aquilo que o artista quer que ele seja para ser a
obra em si de modo a estabelecer a sua própria realidade. A obra nos leva para den-
tro de si e se desvela conforme acontece, uma obra que pode estimular a existência
subjetiva do leitor. Nesta pesquisa, o Dasein será tratado como o próprio Gadamer
propõe:
E não obstante, no comportamento lúdico não desaparecem sim-plesmente todas as referências à finalidade que determinam a existência (Dasein) atuante e cuidadosa, mas, de uma forma mui-to peculiar, permanecem em suspenso. Aquele que joga sabe por si mesmo que o jogo não é nada mais que um jogo e que se en-contra num mundo determinado pela seriedade dos fins. (GADA-MER, 2015, p.154).
Para Gadamer, nesse conceito de jogo, o existencial dos homens deve ser
paralisado e a obra de arte é quem deve tomar para si a realidade a fim de que pos-
samos fazer uma boa leitura, portanto, é preciso que deixemos de olhar para o livro
com nossa subjetividade (eu subjetivo) e passemos a assumir uma existência que
refere-se apenas ao que o romance propuser. Assim, a nossa subjetividade, que se
identifica pelo convívio no mundo, deve estar suspensa no momento em que aderi-
mos ao jogo da obra que estamos lendo.
!12
Sendo assim, o ponto de interesse desta dissertação é encontrar dentro do
texto de Cortázar esses elementos do jogo de Gadamer que demonstrem e compro-
vem que a arte pode agir como possibilidade de atualização do próprio homem. A
arte passa a ter significado de existência no mundo físico do homem após ser ab-
sorvido pelo ser que lê e participa de uma nova possibilidade de existencial.
Cortázar já prepara o leitor para o desenrolar do jogo gadameriano desde o
próprio nome de seu romance: O jogo da amarelinha. Não que o autor estivesse de
posse desse conceito, mas é fato que a ideia de um jogo na leitura de um livro foi
uma inovação para sua época e torna-se equiparável ao conceito de jogo gadameri-
ano pelo fato de ter um jogo interno que nos move juntos da obra. Um jogo que, in-
clusive, pode ser jogado de pelo menos de duas maneiras segundo a proposta do
próprio autor.
Será analisado, também, de que forma esse jogar de Cortázar pode nos tra-
zer conhecimentos. Visto que é um jogo inédito e embasado pelo seu próprio modo
de ser, deve permitir novos entendimentos utilizando-se das realidades da obra.
Também analisaremos de que forma o jogo de Gadamer vai indicar essas novas
possibilidades e revelar outras possibilidades. Sendo assim, temos grandes contri-
buições de Paul Ricoeur, segundo o qual, existe um distanciamento entre o texto e a
sua compreensão. O escrever seria de natureza diferente da nossa existência, e a
hermenêutica é quem teoricamente possibilita a compreensão dessa outra segunda
natureza que é o texto. Porém, o exercício proposto pela apreciação de uma obra de
arte literária é exatamente uma anti-hermenêutica específica, uma anti-hermenêutica
prática, anti-hermenêutica proveniente da exegese, o exercício pede nos desvincu-
lemos de nosso subjetivismo e de certos conceitos e deixemo-nos levar pelo aspecto
intrínseco da obra, pelo aspecto de jogo que a obra propõe.
Para atingir tal objetivo, foi adotada, durante a leitura, uma postura de jogador
dentro de O jogo da amarelinha, suspendendo temporariamente a subjetividade (eu
subjetivo) que nos torna meros leitores, de modo a participar do romance como o
próprio Gadamer nos propõe: com o vaivém da própria obra. Nota-se que Cortázar
nos coloca em situações que nos fazem sentir as múltiplas possibilidades de ação,
as quais, muitas vezes, não são as abordagens mais corriqueiras em nossas rela-
ções no mundo real e que, às vezes, podem também ser automatismos de nossas
relações. É o caso desta passagem, que critica a necessidade de limites ou de re-
!13
gras para o convívio; o apelo é para que não haja preceitos ou ritos de leitura, O
jogo da amarelinha tem seu próprio modo de ser: “[...] as pessoas que marcam en-
contros exatos são as mesmas que precisam de papel com linhas para escrever ou
aquelas que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta
dentífrica” (CORTÁZAR, 2015, p.11).
Aqueles que já leram O jogo da amarelinha têm a liberdade de ler esta disser-
tação sem levar em conta a ordem numérica do sumário desde que leiam antecipa-
damente o conceito de jogo de Gadamer contido nesta dissertação . Sendo assim, 1
esta dissertação tem como intuito a busca de elementos gadamerianos dentro do
romance O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, tanto quanto a expressão do
mundo do romance a partir de sua própria existência material, irei também demons-
trar como seria a leitura de uma obra de arte segundo este mesmo conceito de Ga-
damer. “[...] como transmissão de uma mensagem, mas lhe falta essa aura, essa luz,
esse som profundo que não é um som auditivo, mas um som interior que vem com
certas maneiras de escrever prosa em espanhol” (CORTÁZAR. 2015, p. 162).
Cortázar faz uso da linguagem de forma a valorizar as expressões de seus
personagens. Quando adotamos uma postura de jogadores dentro do romance de
Cortázar, podemos, muitas vezes, nos perceber reagindo aos diferentes persona-
gens. Ler um texto de Cortázar, no qual o personagem soletra algo nos faz pensar
de forma soletrada, ler algo que se mostra gritado (em caixa alta) nos dá a sensação
de uma bronca ou até mesmo uma afirmação categórica sobre algo, ler uma fala de
um personagem que utilize muitas palavras estrangeiras cria para nos uma expecta-
tiva acerca de sua nacionalidade.
O romance tem um ambiente próprio que se manifesta de sua forma mais
perfeita na língua do escritor e que, quando é traduzido, pode perder sua identidade
se o responsável não estiver inserido e participando do jogo ao qual a obra propõe.
Um tradutor que não entenda dos motivos da obra não seria capaz de traduzir corre-
tamente aquilo que o autor quis dar a entender, ou seja, uma tradução literal pode
não captar o jogo proposto pela obra. Podemos perceber que Cortázar pretende cri-
ar um ambiente exclusivo ao romance e que busca desconstruir a linguagem exis-
tencialista de sua época propondo uma nova linguagem, na qual as particularidades
do que é escrito pertencem à obra em si.
Cf. capítulo 2.1.11
!14
Esse feixe de procedimentos de construção e recursos de linguagem reforça a ambiguidade da obra cortazariana, na medida em que in-troduz a hesitação, a dúvida, no nível de própria técnica de composi-ção, ampliando os horizontes da significação e envolvendo, cada vez mais o leitor no processo de estruturação do texto. São com efeito, fatores de abertura, na acepção que dá o termo Umberto Eco . Efeti2 -vam a plurissignificação programada na poética cortazariana como “um fim explicito”, multiplicando as perspectivas de compreensão da obra, tonando-a uma rede inesgotável de relações. Aumentam, em última análise, a carga de significados sob um mesmo significante, que é o texto. (ARRIGUCCI, 1973, p. 25).
Assim, Cortázar vai nos encaminhar para o mundo do romance O jogo da
amarelinha e nos propor novas descobertas acerca de significados e significantes
que tomam novos entendimentos por estarem em um ambiente em que as regras da
linguagem existencialista não são mais essenciais. Cortázar deixou claro que sua
intenção era criar uma nova linguagem, “Como se vê, considerada no conjunto, a
obra de Cortázar aparece como uma aventura no reino da imaginação, como um de-
sejo constante de passagem para uma realidade inefável, de que se tenta apossar
com a linguagem criadora” (ARRIGUCCI. 1973, p. 28).
É neste sentido que o romance O jogo da amarelinha é capaz de nos trans-
portar para dentro de si e revelar seu modo próprio de ser, pois com esta nova lin-
guagem criadora acabamos tendo que fugir da leitura passiva, pois a compreensão
só é possível quando participamos daquilo que está acontecendo na obra e deixa-
mos de lado nossa subjetividade limitadora.
Apesar de Cortázar partir de um pressuposto em que o leitor é o ativo da leitu-
ra, parece-nos que, mesmo assim, ainda existe o jogo da obra por si, pois para po-
der escrever os capítulos o próprio autor disse não ter seguido uma ordem específi-
ca. Em um dos vídeos que narram a sua biografia (GUTIERREZ, 2013), o autor co-
menta que os capítulos foram sendo escritos conforme ele sentava nos locais e as
passagens vinham ao seu encontro, até mesmo sem levar em consideração qual-
quer tipo de ordenação cronológica. Ele também tinha o hábito de escrever partes
dos contos em diferentes papéis, o que demonstra que Cortázar não escrevia as
obras de forma comum aos demais escritores de sua época, que adotam um tema,
sentam-se em um canto de inspiração e descreviam os acontecimentos com uma
certa cronologia (VALENTINI, 2008).
Cf. Umberto Eco, L’ouverte ouverte. p.17 et seqs.2
!15
A mim ocorreu e sei que era uma coisa muito difícil, realmente muito muito difícil, escrever, tentar escrever um livro onde o leitor ao invés de ler a novela consecutivamente tivesse em primeiro lugar diferentes opções, no qual o situava em um pé de igualdade com o autor, porque o autor também havia tomado diferentes op-ções ao escrever o livro, possibilidade de eleger e deixar de ler uma parte do livro e ler outra, coloca-la em outra ordem e criar um outro mundo onde ele desempenhava um papel ativo e não passi-vo (GUTIERREZ, 2013).
Embora muitos escritores desenvolverem histórias que avançam rapidamente
no tempo ou, até mesmo, permanecem por páginas a fio sem demonstrar uma pas-
sagem do tempo, em sua maioria produzem romances que tinham começo, meio e
fim. Em O jogo da amarelinha não há essa indicação de início ou meio ou fim pois
podemos lê-lo e relê-lo de muitas maneiras segundo Cortázar: "À sua maneira, este
livro é muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros […]” (CORTÁZAR, 2015, p.5).
Podemos perceber que, ao descrever o cenário e seus personagens, Cortá-
zar consegue perfeitamente nos inserir dentro da ficção, pois ele utiliza uma descri-
ção fenomênica dos acontecimentos (em que as narrativas falam das coisas que lhe
aparecem no espírito e que acabam construindo o mundo da obra), dos persona-
gens, dos sentidos e de seus resultados, pois, para que a obra possa se expressar e
ultrapassarmos apenas descrições de itens físicos, temos de jogar com o que Cortá-
zar cria e nos ambientar dentro de seu romance. Nas narrativas cortazarianas, mui-
tos objetos sofrem transmutações que devem ser entendidas como fenômenos ex-
clusivos do romance e assim podem abrir mão de sua função real do mundo físico.
Cortázar trata seus elementos dentro da obra como se estes pertencessem ao mun-
do da obra apenas, sendo assim, é na participação do homem com o mundo da obra
que o leitor de Cortázar adquire seu entendimento, não é no mundo fora da obra
(mundo empírico) que iremos buscar as verdades da mesma.
Cortázar incita-nos a participar do jogo da obra impedindo que fujamos daqui-
lo que a própria obra propõe pela sua peculiaridade pois sua realidade só é compre-
ensível em si mesma. Na passagem abaixo notamos os personagens discutindo so-
bre o que é realidade, o que entendem por realidade, mesmo sendo uma realidade
já discutida pela filosofia; no romance, os personagens forçam um entendimento a
partir daquilo que eles vivenciam dentro da obra.
!16
— Não preciso de nenhuma palavra para sentir, para saber que estou aqui — insistiu Ronald. — É a isso que chamo de realidade. Embora não seja mais que isso. — Perfeito — disse Oliveira. — Só que essa realidade não é ne-nhuma garantia, nem para você nem para ninguém, a menos que você a transforme em conceito, e depois em convenção, em es-quema útil. O simples fato de você estar à minha esquerda e eu à sua direita faz da realidade pelo menos duas realidades, e note que não quero ir ao fundo e lembrar que você e eu somos dois entes absolutamente sem comunicação entre si, a não ser por in-termédio dos sentidos e da palavra, coisas de que devemos des-confiar se formos gente séria. — Estamos aqui os dois — insistiu Ronald. — A direita ou à es-querda, pouco importa. Ambos vemos a Babs, todos escutam o que estou dizendo. — Mas esses exemplos são para meninos de calça curta, meu filho — lamentou-se Gregorovius. — Horacio tem razão, você não pode simplesmente aceitar isso que acredita ser a realidade. O máximo que pode dizer é que você é, isso não se pode negar sem escândalo evidente. O que está incorreto é o ergo, e o que vem depois do ergo é notório (CORTÁZAR, 2015, p. 192).
Essa discussão levanta questões filosóficas acerca da própria existência dos
personagens no romance, citando questões espaciais que não são palpáveis, pois
se trata de uma obra de literatura, uma obra criada apenas por palavras e não por
um espaço físico próprio. Quando esse tipo de discussão ocorre no mundo físico, é
possível apontar espaços (direita e esquerda), pois estamos participando de um
mundo onde nossos sentidos são utilizados para diferenciar as questões de localiza-
ção espacial, mas na obra é necessário acreditarmos que há um espaço e que os
personagens também querem se localizar para poderem interagir, afinal, discursam
como se eles mesmos emitissem fonemas e verbalizassem empiricamente, como se
fossem um som referente a um cógito do mundo real.
1.1 A Problemática
A questão principal é perceber como a arte tem sua extrema importância na
relação do homem com o mundo. É graças à arte que podemos fazer aquilo que os
gregos antigos chamavam de katharsis: é pela arte que os homem são capazes de
viver outras experiências e exercitar o eu subjetivo, reciclar sua própria existência
física ao vislumbrar uma possibilidade de atualização desse eu subjetivo pelas nar-
rativas das obras de literatura que, como em Cortázar, buscam uma inovação da
!17
própria linguagem, uma revolução na ação da leitura, uma melhoria no modo de per-
ceber os romances.
A arte é um exercício de entrega do indivíduo, tanto aquele que a faz quanto
aquele que a aprecia. Para tratar da arte da escrita, foram selecionados um roman-
ce e alguns contos de Julio Cortázar para poder demonstrar como o mundo da obra
pode ser um meio de experienciar e desvelar novas percepções do leitor, pois as crí-
ticas e revoluções criadas pelo romance podem nos afetar até mesmo em nossa
existência física como atualização de nosso eu subjetivo. Para tanto, é preciso que a
própria atitude do leitor ao deparar-se com o romance seja a de entrega ao enredo.
Cortázar permite, por meio das suas construções linguísticas, que a cena nos apa-
reça diante dos sentidos, dentro de nosso espírito. O autor nos proporciona uma ex-
periência a partir da imaginação dos personagens, mesmo eles sendo meras cria-
ções para o romance e não existindo fisicamente.
Oliveira e Maga são uma representação disso: não significam nada um ao ou-
tro fora do mundo do romance: “Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da
tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão,
como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos
para desfazer tudo o que começara” (CORTÁZAR, 2015, p. 45). Nessa passagem,
Oliveira demonstra entender Maga como uma totalidade que não pode ser apreendi-
da apenas com os sentidos e as características físicas: as descrições que nos dão
um sentido tátil de Maga não parecem suficientes nem mesmo para Oliveira, pois o
próprio personagem não consegue se ater as silhuetas dela, assim como não con-
seguimos entendê-la apenas pelo que é literal. “[…] é o fato de colaborar com o que
podemos chamar de a revolução de dentro para fora; isto é, dando ao leitor o máxi-
mo de possibilidades de multiplicar sua informação […]" (CORTÁZAR, 2018, p.34). A
todo momento, inclusive nessa passagem, é exigido que entremos dentro da cena
para que possamos compreender a incompreensão de Oliveira sobre a totalidade
Maga, devemos fazer o mesmo exercício de imaginação e sensação que Oliveira faz
para poder compreender Maga; É preciso, portanto, que participemos do que está
acontecendo na obra a fim de entender o que se passa no espírito de Oliveira.
Cortázar, ao escrever o romance O jogo da amarelinha e muitos outros contos,
acabou adotando uma linguagem mais próxima do cotidiano e levou em conta en-
quanto escrevia a necessidade da participação ativa dos leitores. Levou também em
!18
consideração a realidade da época em que escreveu, o que o fez com que o livro
adotasse um conceito anti-existencialista, produzindo uma “[…] experiência muito
existencial de alguém que está em face da realidade e em face da vida e não a acei-
ta tal como querem dá-la a ele […] ” (CORTÁZAR, 2018, p.239). A obra de Cortázar
não espera que os leitores sejam meros espectadores à espera de um desfecho, os
leitores são participantes de um mundo onde é exigida uma reação a todo momento,
ele precisa de um ativismo e uma critica durante a narrativa para que o próprio ro-
mance se desenvolva, temos também as abordagens do romance cortazariano
acerca dos elementos físicos que fogem das acepções pragmáticas e físicas. Cortá-
zar exige o leitor cúmplice, aquele leitor que está participando do jogo da obra com
seus contra lances: “[…] o autor de ‘O jogo da amarelinha’ é um escritor que pede
leitores cúmplices; não quer leitores passivos, não quer o leitor que lê um livro e o
acha bom ou mau […]” (CORTÁZAR. 2018, p.239).
Cortázar entende que o romance não busca uma aferição de gosto como
meio de completude, mas sim que o próprio desenrolar é que nos mostra que há no-
vas possibilidades de entendimento; é na entrega ao romance que ele surge. Portan-
to, não poderia haver apenas uma maneira de lê-lo, neste sentido, o leitor passivo
seria aquele que lê um livro para poder terminá-lo, sem entender o que realmente
está acontecendo na construção literária daqueles personagens, do ambiente, o lei-
tor passivo ficaria sem entender o que realmente aconteceu naquele mundo propos-
to para um leitor cúmplice.
O jogo da amarelinha foi escrito de maneira que causasse uma inquietação e
fizesse o leitor precisar participar da obra, participar das inquietações quanto a reali-
dade da obra, sentir-se desconfortável quanto ao idioma e impaciente quanto aos
comportamento dos personagens. O jogo da amarelinha não é uma obra que lemos,
aceitamos e temos uma conclusão. Essa obra se apresenta a nós, leitores, como um
personagem à mercê do balanço dela mesma.
Sendo assim, quais descrições de Cortázar nos permitem encontrar e partici-
par do jogo, de Gadamer? A princípio podemos dizer que o romance de Cortázar
toma o governo por si só e mesmo que tenhamos certas preferencias e certas pré
definições O jogo da amarelinha nos leva a um mundo exímio, a um mundo de no-
vas relações e possibilidades dentro da linguagem e para fora dos moldes tradicio-
nais de sua época, é a inauguração de um novo contexto literário.
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Essa é umas das razões por que será feito um estudo da obra de arte como
possibilidade de conhecimento e também como um parcial esquecimento do próprio
eu subjetivo permitindo uma abertura para novas experiências. Para tal, devemos
anular temporariamente nosso existencial (eu subjetivo) que nos desgasta, para ab-
sorver o mundo da obra em sua leveza e liberdade no jogo. Gadamer propôs um li-
vre participação do jogador do mundo da obra.
O jogo de Gadamer sugere novas experiências partindo de uma fuga
de nossa subjetividade e de nosso mundo controlado proporcionando um relaxa-
mento das pressões do eu físico. Também está inserida nessa mesma proposta a
possibilidade de, a partir da obra literária, desvelar novas escritas, novos mundos,
novos questionamentos e, até mesmo, quem sabe, situações inimagináveis. Quanto
à possibilidade de uma anulação parcial do eu subjetivo, poderemos afirmar que en-
quanto imergido na obra, haverá um "personagem" sendo executado pelo eu físico e
não mais um leitor que faz asserções baseadas pelas suas experiências no mundo.
Quanto ao “personagem” que tomará o leitor na execução da obra, cabe a ele permi-
tir que os acontecimento e elementos das narrativas aglutinem em seu espírito a es-
sência da obra para poder emergir definitivamente como o romance em si.
No mundo físico nossa personalidade (eu subjetivo) se forma a partir de nos-
sas experiências nele, porém essas experiências nos fazem acabar induzindo certos
aspectos do dia-a-dia para nos deixar mais confortáveis quanto às decisões e esco-
lhas mais comuns. Sendo assim, podemos entender a sequência de símbolos que
formam a linguagem para assimilá-los a objetos, acontecimentos e experiências a
fim de dar significado ao que pensamos. Para tal é necessário que esses símbolos
sejam processados pelo espírito que buscam as verdades dentro de seu vocabulá-
rio, porém, na proposta de Gadamer a obra sobrepuja a experiência do eu subjetivo
para impor-se como uma nova possibilidade, para impor sua própria simbologia a
partir das experiências que a obra nos traz, sendo assim, é na leitura do texto que
este universo da obra irá se revelar.
Em O jogo da amarelinha, temos diversos momentos em que a língua portu-
guesa sofre mudanças sem nenhum pudor gramatical. Um exemplo dessas mudan-
ças é quando, no capítulo 34, os acontecimentos daquele capítulo são apresentados
com espaço entre as linha, ou seja, se estamos vindo de uma leitura cuja “regra” é
ler o texto em linhas subsequentes, quando chegamos a esse capítulo, temos difi-
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culdade de entendimento se utilizarmos a “regra" mais comum de leitura, em que o
texto segue uma sequência de linha após linha. Temos de perceber que ali houve
uma mudança no modo de leitura e, somente estando dentro do jogo da obra é que
percebemos, então, que a lógica das linhas subsequentes não se aplica mais a esse
capítulo e que deve haver algum outro tipo de leitura acontecendo ali para que pos-
samos dar nexo ao capítulo. A leitura desse capítulo leva em consideração pulos
para a segunda linha abaixo daquela que acabamos de ler. Começamos a leitura
pela primeira linha e seguimos aos pulos para a terceira linha e da mesma forma até
a página 233, em que a leitura volta a assumir seu formato tradicional de escrita.
Em setembro de 80, poucos meses depois do falecimento do meuE as coisas que lê: um romance mal escrito e, para completar, uma pai, resolvi afastar-me dos negócios, cedendo-os a outra casa lo-térica edição infecta; nem compreendo que se possa interessar por umade Jerez, de tão boa reputação quanto a minha; saldei o que me foi coisa assim. Pensar que passou horas inteiras devorando essa sopa (CORTÁZAR. 2015, p. 227).
Essa passagem nos faz perceber que, imbuídos de conceitos de uma cultura
literária tradicional, na qual as referências são empíricas, não conseguiríamos en-
tender o que está acontecendo no capítulo. Para que o jogo dê certo, temos de ab-
dicar de nossas pré-concepções acerca do mundo que conhecemos e imergir na
narrativa como participantes do jogo que a obra cria, somente assim é que vamos
assimilar esses pulos e revoluções da obra e perceber que esse capítulo e sua pri-
meira linha inicia com Oliveira lendo um livro que se encontrava na cabeceira de
Maga e a linha seguinte refere-se aos pensamentos de Oliveira acerca do conteúdo
deste livro que ele lê, ele faz críticas sobre o romance que Maga lia e assim seguirá
todo o capítulo, com linhas e idéias entrepostas. A obra de arte literária de Cortázar
constrói uma existência que só pode ser acessada ao entregar-se à obra. Cortázar
brinca bastante com esses elementos que nos possibilitam aplicar o conceito de jogo
de Gadamer e exercitar o desvelamento do mundo do romance cortazariano.
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1.2 Justificativa Filosófica
Devemos atentar bem para o tipo de jogo ao qual Gadamer se refere, não é
como um jogo de luzes, jogo da peça de uma máquina, jogo de forças. Esta disser-
tação está relacionando-se ao jogo que há quando apreciamos uma obra de arte,
não é um jogo em que entramos com pressupostos, a obra dispõe de mundo próprio
que se apresenta ao jogarmos, para haver esse jogo é necessário um vaivém de en-
trega e participação do leitor que se identifica agora somente dentro da obra, não
haverá mais um jogador jogando o seu jogo (jogar-para-si), jogar-para-si-mesmo,
haverá um jogar o jogo da obra, jogar com o universo à parte. O mundo do próprio
romance dá seu sentido de verdade àqueles que realmente jogam-no, assim nos fi-
xamos e definimos o conceito de jogo gadameriano. O jogar perde aqui seu conceito
pragmático para impor-se como uma libertação da existência física. O trecho a se-
guir do romance O jogo da amarelinha é uma forma de demonstrar que teremos que
tocar com nosso nariz no que o jogo propõe e aprender com aquilo que está aconte-
cendo no romance, muitas vezes tomando pauladas no nariz para poder entender
que aquilo que ali está pode não ter nenhuma relação com aquilo que esperávamos,
é no jogar que os acontecimentos fazem sentido.
Todos nós somos obrigados a retroceder com medo de encostar-mos o nariz em algo desagradável. Tema de dissertação: Do nariz como limite do mundo. Você sabe como é que se ensina um gato a não fazer porcarias dentro de casa? Simplesmente pela técnica de lhe esfregar o nariz no momento oportuno. Você sabe como se ensina um porco a não comer trufas? Com uma paulada no nariz. É horrível! Creio que Pascal era mais entendido em narizes do que deixa supor a sua famosa reflexão egípcia (CORTÁZAR, 2015, p. 157).
Para fugir do pragmatismo Gadamer não compreende a obra a partir de uma
subjetividade que se expressa no jogar, ele entende que a obra tem sua própria re-
gra; a leitura foge de nossas experiências, nosso ânimo não conta mais para a apre-
ciação do romance. Segundo Gadamer:
O fato de eu ter-me servido da expressão 'hermenêutica', que vem carregada de uma longa tradição, conduziu certamente a mal-en-tendidos. Não foi minha intenção desenvolver uma 'doutrina da arte' do compreender, como pretendia ser a hermenêutica mais antiga. Não pretendia desenvolver um sistema de regras artificiais capaz de descrever o procedimento metodológico das ciências do
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espírito, ou que pudesse até guia-lo. Minha intenção tampouco foi investigar as bases teóricas do trabalho das ciências do espírito, a fim de transformar em práticas os conhecimentos adquiridos (GA-DAMER 2015, p.14).
Gadamer percebeu que esse método de leitura, que se utiliza de uma herme-
nêutica para compreender a obra de arte, limita a leitura, fechando o caminho para o
que realmente a obra tem para nos dizer. Esse tipo de hermenêutica chamaremos
de hermenêutica prática e demonstraremos como a proposta de Gadamer distancia-
se dela. Não usaremos, portanto, aquela hermenêutica que advém de regras artifici-
ais que visam definir de antemão o que cada palavra dentro da obra de arte signifi-
cará, o que importa agora é libertar-se desta hermenêutica prática na obra e permitir
que o jogo se dê com suas próprias regras, em suas características, lances e contra-
lances.
É importante salientar que a proposta de Gadamer se desvincula de uma
hermenêutica puramente proveniente da exegese, ou seja, algo que dependa de
chaves de interpretação, dicionário ou enciclopédia ditando as verdade dos elemen-
tos do jogo. Aqui cabe o uso de uma hermenêutica com base no próprio mundo da
obra; Gadamer propõe um mundo da obra se mostrando na própria leitura dela, o
que, no nosso caso, possibilitaria um atualização de eu subjetivo dentro de O jogo
da amarelinha.
O que faz com que esse jogo seja interessante é a falta de aplicação prática que ele
tem fora de si, ele não nos tranca dentro de regras para retirar-nos algo, ele se torna
interessante por permitir que joguemos algo novo a cada momento. Jogamos por
uma questão lúdica que pode até nos trazer um alivio por sua leveza e falta de es-
forço, pois retira-nos o esforço da existência: “A estrutura ordenadora do jogo faz
com que o jogador se abandone a si mesmo, dispensando-o assim da tarefa da ini-
ciativa que perfaz o verdadeiro esforço da existência” (GADAMER, 2015, p. 158). No
caso de O jogo da amarelinha, e em diversos outros romances, temos mais de um
jogo acontecendo pois os personagens podem ter diversas nacionalidades, múltiplos
conhecimentos, diferentes sentimentos e estão a todo momento discutindo entre si.
Isso demonstra que o jogo contém uma seriedade dos fins nele mesmo pois as rela-
ções são dos personagens e não as nossas.
O jogar só cumpre a finalidade que lhe é própria quando aquele que joga entra no jogo. Não é a referência que, a partir do jogo, de
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dentro pra fora, aponta para a seriedade; é só a seriedade que há no jogo que permite que o jogo seja inteiramente um jogo. Quem não leva a sério o jogo é um desmancha-prazeres. O modo de ser do jogo não permite que quem joga se comporte em relação ao jogo como se fosse um objeto (GADAMER, 2015, p. 155).
Segundo Gadamer, esse conceito de jogo não leva em consideração o con-
texto da subjetividade e do comportamento do jogador, muito menos é relativo ao
ânimo daqueles que jogam, está apenas relacionado ao modo de ser da obra e a
seu mundo. A estética gadameriana não busca uma correspondência entre o que se
aprecia e o que se deve apreciar, ela nos propõe a busca dos movimentos próprios
da obra para que possamos refletir sobre seus contexto à partir deles mesmos: “Na
análise da consciência estética vimos que a contraposição entre uma consciência
estética e um objeto não corresponde ao estado das coisas. É esse o motivo por que
nos é importante o conceito de jogo" (GADAMER, 2015, p. 154).
Portanto é distinto o comportamento do jogador e o comportamento do jogo.
Quando jogamos, o que está em ação é próprio ao mundo do jogo enquanto o eu
subjetivo está em suspensão e se mostra apenas no que a obra é. “Ele queria ape-
nas dizer, que, no fundo, uma pintura como a de Klee exige um diploma dès lettres,
ou pelo menos dès poésie, ao passo que Mondrian se conforma com que uma pes-
soa se mondrianize e isso já basta” (CORTÁZAR, 2015, p. 50).
Nesse caso, para ler Cortázar só é preciso que nos cortazariemos e joguemos o que
O jogo da amarelinha nos propõe, que permitamos que o jogo do romance de Cortá-
zar tome conta de nosso eu subjetivo e, durante o jogo, nos demonstre possibilida-
des de atualização de nosso existencial físico.
Esse jogar tem uma seriedade própria do jogo e, por isso, devemos nos dei-
xar levar pela obra. Claro que o jogar não tem a mesma seriedade que nossas vidas
no mundo físico, apenas é sério para a execução da obra e que, ao seu término,
deve deixar de existir como modo de ação, mas, ao mesmo tempo, podemos assimi-
lá-lo em certos aspectos, pois os conhecimentos fornecidos pela obra causam um
enriquecimento de nosso eu subjetivo.
Devemos, portanto, adotar uma mudança de paradigma e uma mudança de
perspectiva. Segundo Gadamer, é assim que devemos ler uma obra de arte, levando
em consideração aquilo que a obra nos dá e não mais aquilo que nós mesmos so-
mos. É-nos exigida uma mudança no pensamento sobre os objetos, agora será o
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sujeito da obra que captará os fenômenos dela e interagirá a partir de seus sentidos
em seu jogo. Aqui, quem disporá a experiência do mundo é a própria obra.
Outro exemplo referente à proposta de alteração de paradigma está na exi-
gência de uma mudança no pensamento sobre os objetos assim como alguns filóso-
fos mais antigos faziam. Segundo eles, a verificação dos objetos deveria ser feita,
medida e entendida nos próprios objetos pois apenas. Agora, os sujeitos da obra é
que captarão os fenômenos e os entenderão a partir de seus sentidos no contexto
da própria obra, que dispõe das peculiaridades do jogo, portanto, é no jogar com a
agora que os objetos do romance serão entendidos.
O método de análise dos problemas passa, então, a ser uma inversão do ponto
de vista: o do pesquisado, pois ele, que acaba dando valor apenas ao que nos apa-
rece na obra, o objeto passará a ser regulado pelo personagem que joga no tempo e
espaço específico daquela obra. Inclusive, o personagem Oliveira faz esta afirmação
enquanto está conversando com Maga:
Já vivera o suficiente para suspeitar daquilo que, embora esteja debaixo do nariz de todos, poucas vezes se percebe: O peso do sujeito na noção do objeto. A Maga era das poucas pessoas que jamais esqueciam que o rosto de um sujeito qualquer influía sem-pre na idéia que esse sujeito pudesse ter do comunismo ou da civilização creto-micênica e que a forma de suas mãos estava presente naquilo que o dono pudesse sentir diante de um Ghirlan-daio ou de Dostoievski (CORTÁZAR, 2015, p. 28).
É exatamente o que Oliveira está discutindo no momento acima, está questio-
nando o fato de que nós conhecemos os objetos pelo que nós conseguimos captar
dele como sujeito subjetivo. Portanto, muitos dos objetos são alterados pelo modo
de percebê-los, coisa que no conceito de jogo não pode funcionar: uma interpreta-
ção subjetiva de um romance o adequa a nós e não revela a obra em si; não permiti-
ria que a obra aparecesse como um jogo independente de nossa subjetividade. Ao
final do livro, temos o comentário de Mário Vargas Llosa expondo essa questão da
mistura e da perda da subjetividade por conta da fusão causada pelo estilo de escri-
ta de Cortázar.
Quando O jogo da amarelinha foi publicado, em 1963, causou um efeito sísmico no mundo de língua espanhola. O romance revol-veu profundamente as convicções e os preconceitos que escrito-res e leitores tínhamos sobre os meios e os fins da arte de narrar e ampliou as fronteiras do gênero a limites impensáveis. Graças
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ao livro, aprendemos que escrever era uma maneira genial de se divertir, que era possível explorar os segredos do mundo e da lin-guagem de um jeito muito proveitoso e que, jogando, podíamos sondar as camadas misteriosas da vida vedadas ao conhecimento racional, à inteligência lógica, abismos da experiência dos quais ninguém pode se aproximar sem correr graves riscos, como a morte e a loucura. Em O jogo da amarelinha, razão e desrazão, sono e vigília, objetividade e subjetividade, história e fantasia per-diam sua condição excludente, suas fronteiras se eclipsavam, dei-xavam de ser antinomias para se confundirem em uma só realida-de, pela qual certos seres privilegiados, como a Maga e Oliveira, e os célebres pirados de seus futuros livros, podiam discorrer livre-mente. (Como muitos casais de leitores de O jogo da amarelinha dos anos 1960, Patrícia e eu também começamos a falar em glí-glico, a inventar um linguajar particular e a traduzir nossos delica-dos segredos a seus extravagantes vocábulos esotéricos) (COR-TÁZAR, 2019, p.759).
Para Vargas Llosa, o que Cortázar faz com o livro O jogo da amarelinha aca-
ba abalando e forçando uma ampliação nas fronteiras dos romances: não é mais
simplesmente uma leitura a partir de nossa subjetividade, mas sim uma leitura que
alcança os leitores pelas características próprias do romance, que acabou eclipsan-
do as fronteiras da razão e desrazão, sono e vigília, objetividade e subjetividade, his-
tória e fantasia para se mostrar como uma só realidade, a do romance. Nesse senti-
do, o entendimento toma um novo caminho, pois o interesse passa a ser de como o
objeto aparece na obra; no caso desta dissertação, como a obra de arte vai tomar
para si o próprio sujeito e aparecer através dele.
Pensando no esquema por um aspecto filosófico e analisando a partir do
princípio da fenomenologia descrita mais acima, que é possível utilizar-se do concei-
to de jogo de Gadamer. Ele serve-nos exatamente para adequar a maneira de en-
tender a obra necessária ao eu subjetivo. O jogo da amarelinha pode nos demons-
trar seu mundo próprio e fugir da compreensão de mundo baseado em nossa vivên-
cia física (hermenêutica tradicional), em que existe um conceito pré-estabelecido a
fim de entender a obra. Para tal, iremos agora abandonar a própria existência pecu-
liar (eu subjetivo) para que possamos ser absorvidos pelo jeito de ser da obra, sendo
assim, a realidade do romance se desvelará conforme a obra for acontecendo.
O entendimento segue, também, um novo caminho, pois o interesse passa a
ser de como o objeto aparece na obra e não mais como ele nos parece. No caso
desta dissertação, o objeto da obra de arte irá tomar do leitor suas possibilidades
para impor-se como um novo mundo e possivelmente atualizar o eu subjetivo. O en-
tendimento das diferentes possibilidades de leitura (o eu subjetivo que lê e que se
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identifica pelas experiências do mundo real e que aparece no mundo da obra a fim
de criar seu próprio ambiente) será adequado para abarcar o conceito de jogo de
Gadamer e recriar o entendimento a partir do mundo de O jogo da amarelinha. O
romance mostrará sua identidade sem seguir uma regra externa a ele e sem utilizar
uma existência individual (experiência de um eu subjetivo) com o intuito de criar um
universo próprio dele. Isso, porque, segundo Gadamer, é no jeito de ser da obra de
arte que reside a sua identidade, não com uma liberdade da subjetividade dos indi-
víduos mas com a liberdade da própria obra de arte, o participar do sujeito que se dá
e aparece na obra de arte e não o sujeito do mundo físico.
O primeiro passo na literatura de Cortázar é fazer uma inversão a fim de que
se possa demonstrar o quanto O jogo da amarelinha pode nos levar para dentro dele
e fazer com que assumamos vários papéis e fiquemos à mercê do próprio jogo in-
terno da obra. Identifiquemos no conto Continuidades dos parques: de início somos
meros leitores de um texto, depois de algumas linhas, contudo, percebemos que há
também um leitor dentro da história e que esse leitor passa a ser secundário e o as-
similamos.
Esse leitor-personagem não participa da estória com o mesmo papel durante
toda a narrativa, ele passa pelas variantes mais próprias a Cortázar e nós somos
carregados juntos, é como se o personagem da estória lida por nós no romance de
Cortázar nos levasse a participar de sua leitura. Ele faz com que nos percamos den-
tre as gradações da obra e dos mais diversos personagens do romance. Até mesmo
esse personagem se perde dentre as modulações da obra, por isso é que a herme-
nêutica correta para leitura do romance deve sair dele mesmo. Se queremos ler um
texto científico, o entendimento deve partir de uma hermenêutica científica para que
não haja má interpretação dos resultados e não haja espaço para conclusões dife-
rentes às do texto. Porém, a leitura de um romance deve ser feita com base no que
a própria obra oferece para sua interpretação. No caso de O jogo da amarelinha, a
leitura ocorre de forma que as bases para seu entendimento surjam somente da
obra.
Para exemplificar essa questão tão peculiar, é válido abordar um pequeno
conto Final del Juego - Continuidad de los parques, de Cortázar (2008), que nos car-
rega para seu ambiente. Utilizando-se de um jogo entre a fantasia e a realidade,
Cortázar anuncia esse mundo tão próprio que nos faz passar por vários papéis es-
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tando à mercê do próprio jogo interno da obra. Acontece o que chamamos fusão de
horizontes: nos aproximamos da realidade do romance e, ao mesmo tempo, pode-
mos experienciar certas realidades do mundo físico.
O conto Final del Juego - Continuidad de los parques (CORTÁZAR, 2008, p.
391) cria uma realidade própria, em que tudo o que acontece nos absorve cada vez
mais. A narrativa nos convida a participar do enredo e nos absorve de tal forma que
nos perdemos em sua fantasia, e chegamos ao ponto de não sabermos mais se o
interlocutor é o leitor das páginas do conto ou se somos nós mesmos, fica difícil per-
ceber se o princípio da trama inicia dentro ou fora do romance.
A estória começa descrevendo um ambiente com um personagem que inici-
almente aparece como o narrador e que fala sobre suas tarefas diárias, sobre sua
vontade de sentar-se e ler um bom livro. Porém, ele vai perdendo suas característica
como narrador e termina sendo um dos personagens do livro que ele mesmo lê.
Nós, por outro lado, estamos lendo um conto que contém um personagem que tam-
bém esta lendo um livro, portanto, começamos a perder nossa posição de meros lei-
tores; já estamos também nos misturando à obra e nos envolvendo com o conto e
nos perdendo dentro daquele movimento que a própria obra impõe. De início, somos
meros leitores de um conto, após algumas linhas percebemos que há também um
narrador dentro da história e que ele passa a ser assimilado por nós. O próprio nar-
rador do conto não mantém o mesmo papel durante toda a narrativa, ele passa pe-
las modulações da estória que ele mesmo lê e nos leva junto; é como se o narrador
do conto de Cortázar nos levasse a participar de sua leitura fazendo com que nos
percamos entre os personagens assim como ele mesmo se perde e se torna o pró-
prio personagem do livro que lê sentado na poltrona de veludo.
Essa é a exata relação que Gadamer propõe ao falar do conceito de jogo nas
obras de arte. O conceito propõe que nos percamos subjetivamente dentro da reali-
dade da narrativa: não sabemos mais se o interlocutor é o leitor da narrativa ou se
somos nós, há uma fusão de horizontes, já que também nos misturamos à narrativa,
deixando de ser apenas um leitor e nos envolvendo com o conto e nos perdendo
dentro daquele jogo que a própria obra nos propõe. Para Gadamer, esse conceito
significa o espaço "onde nenhum ser-para-si da subjetividade limita o horizonte te-
mático e onde não existem sujeitos que se comportam ludicamente” (GADAMER,
2015, p. 155). Não se trata mais de um eu subjetivo com conceitos físicos a indicar o
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caminho da obra e sim a obra tomando-lhe seu próprio eu subjetivo e criando o seu
jogo.
Cortázar quando escreveu o romance O jogo da amarelinha já tinha em mente
esse tipo de processo no qual os leitores devem participar da obra a fim de que eles
obtenham um progresso em sua própria subjetividade ao ler a obra. É um jogo em
que a entrega do leitor é necessária para que a obra tome sua dimensão real. O ro-
mance é exatamente como um jogo de interações entre autor, personagens do ro-
mance e o leitor que só podem acontecer com a entrega plena do leitor. Cortázar
fala sobre como a realidade exterior e interior da obra são utilizadas:
Fazendo as revoluções, há que fazê-las em todos os planos: já que estamos falando em três planos de um romance, há que fazê-las, sim, nos fatos, na realidade exterior; mas também há que fazê-las na estrutura mental das pessoas que vão viver essa revo-lução... (CORTÁZAR. 2015, p. 237)
Não bastaria que o leitor aceitasse a realidade como um momento e sim que
ele sofresse uma alteração na sua estrutura mental, de modo a participar dos textos
conforme o próprio texto exige; isso significa um absorver o mundo do texto e vivê-
lo. A estrutura do romance deve afetar igualmente os leitores: os níveis do romance
devem ir ao encontro dos níveis do leitor e causar uma mudança neles conforme
leem, sendo assim, é na manifestação dentro do romance que percebemos os per-
sonagens como eles se mostram e se modificam a cada instante dentro da obra, e
ao se modificarem é que darão o andamento de nossas próprias mudanças, irão al-
terar dentro de nossa subjetividade impondo-se e levando-nos a participar como
peça do jogo da obra.
Esta mistura do personagem à narrativa do romance, aparentemente faz com
que nos identifiquemos após as primeiras linhas, parece que o personagem de Cor-
tázar já não se mostra diretamente, ele já se misturou à obra de forma que nós
mesmos é que passamos a assumi-lo ou ao menos passamos a senti-lo. Vejamos
como Cortázar descreve essa mistura:
A intenção de O jogo da amarelinha é eliminar toda a passividade na leitura, na medida em que seja possível, e colocar o leitor numa situação de intervenção continua, página a página ou capí-tulo a capítulo. Para consegui-lo, a única coisa que tinha à minha disposição é tudo o que já expliquei, ou seja, o questionamento da realidade por um lado e o questionamento do idioma por outro, e
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em terceiro lugar algumas maneiras de aproximar-se do livro que lhe deram uma maior flexibilidade (CORTÁZAR, 2015, p. 240).
O próprio Cortázar escreve o romance contando com esta interação, o leitor
deve atuar juntamente com o livro, ele faz movimentos dialéticos: há negações e
afirmações, questionamento e soluções. O jogo da amarelinha foi escrito de maneira
que causasse uma inquietação e fizesse o leitor sentir a necessidade de participar
da obra, uma inquietude quanto à realidade exposta pela obra, reflexões quanto ao
uso do idioma e também a respeito dos comportamento dos personagens diante das
mais diversas questões. Não é uma leitura que se aceita e se chega a uma conclu-
são, ela exige uma intervenção do leitor como um personagem ativo da obra. Na ci-
tação abaixo percebemos que o comportamento do napolitano, personagem da
obra, causa angústia a todos, inclusive a nós; ficamos achando que há uma espécie
de loucura nessa atitude.
Em um de seus livros, Morelli fala do napolitano que passou anos sentado à porta de sua casa, olhando um parafuso no chão. De noite, pegava-o e o guardava debaixo do colchão. O parafuso foi primeiro uma simples piada, uma gozação, uma irritação comunal, reunião de vizinhos, sinal de violação dos direitos cívicos e, final-mente, um encolher de ombros, a paz, o parafuso foi a paz, nin-guém podia passar pela rua sem olhar de soslaio para o parafuso e sentir que ele era a paz (CORTÁZAR. 2015, p. 436).
Logo após essa passagem, o personagem Morelli, amigo de Oliveira, comen-
ta que, para deixar sua angústia de lado, ele entendia a atitude do napolitano como
a de um adorador de um ídolo, como se o parafuso fosse uma espécie de Deus para
o napolitano. Mas isso não nos é suficiente, continuamos achando que é uma solu-
ção demasiadamente simples para a questão do napolitano, portanto, seguimos com
a leitura em busca de uma solução mais complexa, mais pessoal, mais de acordo
com algum tipo de costume de época ou de nacionalidade.
Cortázar nos dá uma possível solução para a questão do napolitano dizendo
que pode ser que aquele parafuso não tenha o mesmo significado que nós daríamos
ao parafuso: aquele parafuso, na percepção do napolitano, poderia muito bem ser
qualquer outra coisa para além de seu uso prático, poderia ser algum objeto de um
mundo novo que ele criara. O costume nos faz entender os objetos de acordo com
nosso uso pessoal e/ou cultural, mas, para o napolitano, pode ser que o parafuso
fugisse do uso comum aos demais personagens e a nós mesmos.
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A passagem acima serve de exemplo para demonstrar como é o modus ope-
randi de Cortázar quanto à sua literatura, que visa trazer o leitor para dentro do ro-
mance fazendo-o questionar sua própria realidade e duvidar da hermenêutica utili-
zada para definir as palavras e objetos narrados, exatamente como é proposto por
Gadamer: participar do jogo da obra, anulando nossa relação subjetiva e permitindo
que a obra se mostre a nós, de modo a abdicarmos nossos conceitos do mundo físi-
co.
Nos romances de Cortázar, há momentos em que a própria definição de cer-
tos conceitos são explicados e trazem uma realidade cotidiana, mas, em outros mo-
mentos, essas explicações extrapolam a realidade cotidiana. Em Final del Juego -
Continuidad de los parques (2008), por exemplo, a montagem da obra cortazariana
é espetacularmente bem direcionada a fim de nos localizarmos como participantes
de sua obra. Afinal, os próprios personagens do conto acabam se perdendo dentro
do jogo proposto pela leitura, parece também que a noção de narrador, espectador e
personagem se misturam, já não se pode dizer claramente quem é personagem,
quem é espectador e quem é o narrador. Ao finalizarmos a leitura, olhamos ao nos-
so redor para ter certeza de que a última cena não irá acontecer conosco.
Nesse conto, podemos perceber uma fusão de realidades. Se repararmos, tudo se
inicia em uma poltrona de veludo verde e no fim do conto tudo acaba em uma pol-
trona de veludo verde. A narrativa inicia com uma descrição minuciosa do local e vai
nos ambientando; lemos uma história que enfatiza desde o início um personagem
que lê um livro recostado em uma poltrona de veludo verde, já na parte final da nar-
rativa aquele que lia sobre os acontecimentos de seu livro percebe que o próprio li-
vro narra uma poltrona de veludo verde, como se ele lesse sobre si mesmo: “La pu-
erta del salón, y entonces el puñal en la mano, la luz de los ventanales, el alto res-
paldo de um sillón de terciopelo verde, la cabeça del ombre en el sillón leyendo una
novela” (CORTÁZAR, 2008, p. 392).
Ao final da estória, percebemos que temos a mesma cena do início, com o
leitor do livro sentado em sua poltrona de veludo. Dessa, porém, vez o local narrado
no livro do personagem ao sofá se mistura com local em que o personagem inicial
lia: “Arrellanado en su sillón favorito, de espaldas a la puerta que lo hubiera molesta-
do como uma irritante posibilidad de intrusiones, dejó que su mano izquierda acarici-
!31
ara una y otra vez el terciopelo verde y se puso a leer los últimos capitulos” (COR-
TÁZAR, 2008, p.391).
A todo momento, percebemos que, com Cortázar, o jogar passa a ser um ser-
jogado, estamos participando da obra de forma quase que direta; jogamos aquilo
que a obra nos propõe e sem poder tomar as rédeas, pois o movimento da obra é
que toma para si o mundo dos acontecimentos, tanto o personagem de Cortázar
quanto nós mesmos já estamos inseridos dentro daquele ciclo que a própria obra
propõe. Nosso eu subjetivo acaba sendo mitigada para que a obra possa nos desve-
lar seu modo de ser mais próprio a partir da entrega ao jogo.
Conforme lemos as demais linhas das obras de Cortázar, mais estamos dei-
xando de lado nosso eu subjetivo, que é aquele que se mostra pelas realidades físi-
cas do mundo para assumir o universo da obra, que se constitui ao jogar-se o jogo.
O primado do jogo passa a ser relevante com a perda da consciência do eu que
joga, o jogador subjetivo do mundo físico deve se perder dentre as possibilidades
que o próprio jogo nos dá. Cortázar menciona que seu personagem deixava-se levar
lentamente pelo desenho dos personagens que ele mesmo lia, expressamente um
deixar-se jogar, um jogar descompromissado, sem finalidade, sem esforço, esponta-
neamente. O jogador tira de si a necessidade de colocar-se como existência no
mundo que vive e passa a perceber-se sem esforço indo de acordo com o jogo pro-
posto pela obra.
É interessante perceber as diversas inversões e retomadas de direção que a
obra propõe; o jogo da obra toma conta do eu da realidade física a ponto de perten-
cermos ao mundo proposto pelo jogo da obra. A realidade física já não é mais impor-
tante, pois o jogo da obra nos propõe uma nova identidade, um eu que aparece den-
tro da obra. Estamos recebendo os personagens como eles se mostram e se modifi-
cam a cada instante dentro do romance. Ao se revelarem é que darão o andamento
de nossas próprias possibilidades de mudanças, irão se alterar dentro de nossa sub-
jetividade impondo-se e levando-nos a participar como peça do jogo da obra.
Essa mistura do personagem ao conto aparentemente faz com que nos identi-
fiquemos após as primeiras linhas, parece que o personagem de Cortázar já não se
mostra mais diretamente, ele já se misturou ao conto de forma que nós mesmos é
que passamos a assumi-lo ou ao menos passamos a senti-lo. Essa revolução no
modo de percebermos os personagens, parte do conceito de jogo de Gadamer, no
!32
qual, para se entender a obra, é necessário que deixemos a obra nos levar para
dentro de si. No romance de Cortázar, há momentos em que a própria definição de
certos conceitos são explicados e trazem uma realidade física e social. Quando por
exemplo Maga exemplifica um comportamento preconceituoso de sua amiga:
Luciana era uma esnobe, defeito que a Maga não suportava em ninguém. - Que entende você por esnobe? — perguntou Oliveira, agora mais interessado. - Bem — disse a Maga, baixando a cabeça com um ar de quem já sabe que vai dizer uma burrice —, eu viajei de terceira classe, mas creio que se tivesse vindo em segunda, a Luciana teria ido despedir-se de mim.- Essa é a melhor definição de esnobe que ouvi até hoje — ex-clamou Oliveira (CORTÁZAR. 2015, p.32).
Vemos um tipo de comportamento esnobe de certos sujeitos em nossa socie-
dade na figura de uma amiga de Maga sendo identificado por ela. Segundo o próprio
Oliveira, a definição dada por Maga do que é um esnobe se faz mais eficaz do que
qualquer outro tipo de explicação.
Iremos jogar aquilo que a obra nos propõe perdendo o eu da realidade física
para assumir o mundo do jogo; tanto os personagens de Cortázar quanto nós mes-
mos estamos nos inserindo dentro daquele ciclo que a própria obra propõe, e nosso
eu subjetivo acaba sendo encoberto para que a obra possa manifestar sua atividade
a partir de nossa entrega ao jogo. Conforme vamos lendo as linhas da narrativa de
Cortázar, mais estamos deixando de lado nossa subjetividade para assumir o uni-
verso da obra e participar daquilo que Gadamer chamou de conceito de jogo.
Esse universo da literatura se mostra tão forte a nós que a leitura das obras
de arte trazem aspectos psicológicos e emocionais que, durante a leitura, tendem a
nos amargurar, felicitar, entristecer. A essa depuração e identificação das paixões
Aristóteles chamou de katharsis : 3
A tragédia é a imitação de uma acção elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da acção e não da narração e que, por meio da compaixão (eleos) e do temor (pho-bos), provoca a purificação (katharsis) de tais paixões (ARISTÓ-TELES, 2008, p.12).
É o meio pelo qual o Homem purifica seu espírito, através da representação trágica3
!33
Visando purificar o espírito daquele que lê, a obra provoca as paixões do lei-
tor fazendo com que ele expresse aquilo que está lendo e viva aquele momento den-
tro do mundo da obra para depois poder aliviar-se quando não mais estiver partici-
pando daquele universo. É nesse contexto que a leitura nos retira do mundo físico e
nos coloca à mercê de um universo totalmente novo; o conceito de jogo acaba nos
direcionando a essa nova possibilidade e que ao final proporcionará a expurgação já
mencionada por Aristóteles. A katharsis acontece fora da obra, ao deixarmos o jogo
pois não traremos para nossa existência real aqueles sentimentos e atitudes perten-
centes apenas ao mundo da obra; os sentimentos que a literatura nos incitou serão
purificados por meio da katharsis para que possamos retomar nossa realidade.
A cada linha da obra de Cortázar, somos mais absorvidos pelas características
de sua narrativa assimilando desde as mais simples atitudes até as mais complexas,
os locais e acontecimentos daquele universo independente proposto pela obra é que
vão nos direcionar pelo seu jogo. A passagem demonstra o mundo próprio de O jogo
da amarelinha, onde os objetos obtêm uma nova dimensão de entendimento: "Tinha
saltos de borracha, solas finas e, quando chovia, a água entrava-me até a alma.
Com esse par de sapatos na mão da memória, o resto vinha por si mesmo
[...]” (CORTÁZAR, 2015, p. 15). Podemos identificar e entender a agonia de quem
calça um sapato molhado, mesmo que não os estejamos calçando; o intuito dessa
metáfora (sapatos na mão da memória) é demonstrar que a memória do sapato o
faz lembrar de outras situações assim como também nos atiça a memória.
A construção do ambiente da obra tem um papel primordial na absorção do in-
dividuo pela obra, crucial no conceito de jogo de Gadamer, pois é pelos fenômenos
narrados que devemos entender o universo da obra. A citação a seguir, relacionada
a Kant, nos demonstra como é exigido por Cortázar que fujamos de uma pré-con-
cepção de verdades na tentativa de entender e classificar romances; devemos per-
mitir que os elementos dos romances se mostrem de forma que consigam até mes-
mo dominar nossas relações psíquicas e nossa subjetividade, utilizando somente o
ambiente do romance como local de relações.
Cavalheiresco licenciado! Inimigo acérrimo de Kant, insistia em “humanizar a atual filosofia do mundo”, depois do que decretava: E que o romance seja de preferência psicopsiquiátrico, ou seja, que os elementos verdadeiramente espirituais da alma constituam elementos científicos da verdadeira psiquiatria universal… (CORTÁZAR, 2015, p.469)
!34
Segundo Gadamer, para entender uma obra de arte é necessário fazer o jogo
proposto por ela, deixa-la nos tomar. O fato de a narrativa de Cortázar trazer sempre
esse sentido de absorção pode ser demostrado pelas as descrições instigantes dos
ambientes, acontecimentos e dos comportamentos dos personagens. Para ler O
jogo da amarelinha, é necessário submergir nas realidades do romance cortazaria-
no, que impõe um mundo totalmente diferente daquele que estamos acostumados.
Os personagens falam de objetos e comportamentos que nos causam estranheza já
que tratam dos elementos exclusivos da narrativa dele. Soa estranho, por exemplo,
o comportamento de associar um objeto qualquer caído ao chão à desgraça de ou-
trem.
Desde a infância, sempre que deixo cair alguma coisa no chão, tenho que apanha-la imediatamente, seja o que for, pois sinto que, se não o fizer, alguma desgraça acontecerá, não a mim, mas a alguém de quem gosto e cujo nome começa com a inicial do obje-to caído. Pior é que nada pode me conter quando deixo cair uma coisa no chão, de nada valendo que seja outra pessoa a apanhar essa coisa, porque, se não for eu, o malefício atuará da mesma forma (CORTÁZAR, 2015, p. 15).
Oliveira confessa que, às vezes, sente que não faz muito sentido para os de-
mais personagens, comporta-se como louco frente às expectativas dos demais fre-
quentadores de um café que ele costumava ir. Para demonstrar essa falta de sentido
para os demais, ele narra que certo dia estava em um café que sempre frequentava
e derrubou no chão, sem querer, um torrão de açúcar, que se afastou rolando para
longe de sua mesa.O fato de Oliveira enfatizar que o torrão afastou-se rolando faz
com que entendamos como um comportamento por parte de um objeto inanimado,
um comportamento inadequado para um objeto paralelepipédico que deveria cair ao
chão e ali permanecer, mas não, segundo Oliveira, o açúcar agiu como se fosse
uma bola de naftalina.
a primeira coisa que me chamou a atenção foi a forma como esse torrão de afastou da nossa mesa, porque, em geral, os torrões de açúcar ficam quietos logo que tocam no chão, por razões parale-lepípedas evidentes. Todavia este se comportou como se fosse uma bola de naftalina, o que aumentou minha apreensão, che-gando a pensar que, na verdade, alguém o arrancará de minha mão (CORTÁZAR, 2015, p.18).
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As manias de Oliveira e Maga parecem coincidir, pois falam sobre desgraças
que vão além do controle deles, mas que no mundo interno do pensamento dos per-
sonagens há uma lógica e uma grande probabilidade de causarem um mal fora do
pensamento deles.
A Maga e eu falávamos de patafísica até nos cansarmos, já que 4
ela também acontecia (e o nosso encontro era isso mesmo, e mui-tas outras coisas tão obscuras quanto o fósforo) cair inesperada-mente nas excessões, encontrar-se metida em casas que não eram nossas… (CORTÁZAR, 2015, p.16)
Ambos tinham um mesmo tipo de devaneio, o que os deixava próximos nas re-
lações que extrapolam a realidade física; Maga e Oliveira entendem alguns aconte-
cimentos com um tipo de misticismo. Esses comportamento de Oliveira o levam a
passar por situações constrangedoras como a do restaurante:
Tenho passado muitas vezes por louco, devido a isso, e a verdade é que estou mesmo louco quando o faço, quando me precipito para apanhar um lápis ou uma folha de papel que se escapuliram da mão, como naquela noite do torrão de açúcar no restaurante da rue Scribe, um restaurante bacana, com montões de gerentes, putas de capas prateadas e casais muito bem organizado (COR-TÁZAR, 2015, p. 18).
É nesse tipo de acontecimento que o autor mostra o mundo da obra como
algo à parte, como um universo que pode permitir que objetos inanimados tomem
vida dentro da narrativa. Nesse caso, o tipo de relação que Cortázar cria entre o
personagem e um simples torrão de açúcar faz com que o objeto, apesar de ser in-
consciente seja entendido como um novo personagem que ganha vida nas manias
de Oliveira, portanto, a construção da narrativa cortazariana permite a adição perso-
nagens ao jogo utilizando os interlocutores do romance que ultrapassam a realidade
física utilizando suas próprias concepções de realidade pertencentes apenas à obra;
eles transformam um ente em um Ser, apesar de serem simples objetos desprovidos
de vontades e movimentos.
Patafisica é uma atuação artística criada pelo escritor e dramaturgo francês Alfred Jarry e definida 4
como "a ciência das soluções imaginárias ..." no livro As opiniões de Gesta e Faustroll, pataphisic, em 1898. Nesse romance, Alfred Jarry expõe os princípios e os fins do pataphisics definindo-o como a ciência que procura estudar o particular e as exceções e explicar o universo adicional ao nosso. Hoje em dia, reafirmando os axiomas revelados pelo seu inventor, a patafisica continua a habitar, através da arte e da literatura, sobre as exceções que acompanham as teorias e métodos próprios da ciência, usando expressões que se misturam em ironia e absurdo.
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Os elementos do romance recebem transmutações que vão além daquilo que
realmente são. Um objeto inerte e sem ação própria pode aparecer como dotado de
comportamentos e, portanto, de ímpeto. O episódio do torrão rende ainda mais enti-
ficação de objetos, pois Oliveira associa sapatos inquietos debaixo das mesas do
restaurante a galinhas que se movem, como se, além de o torrão estar agindo como
algo que foge, ainda tivéssemos sapatos-galinhas atrapalhando e participando da
ação do açúcar.
Notei logo que o torrão de açúcar não estava a vista, embora eu o tivesse visto saltar na direção dos sapatos (sapatos esses que se moviam, inquietos, como galinhas). Para tornar isso tudo ainda pior, o chão era coberto por um tapete e, embora este estivesse imensamente gasto, o torrão escondera-se entre os pelos e eu não conseguia encontrá-lo (CORTÁZAR, 2015, p. 19).
O personagem passa então a procurar o torrão de açúcar entre as pernas dos
demais clientes do café e ganha até mesmo uma ajuda de um funcionário que julga
que a busca é por algo de suma importância. Nessa busca pelo torrão evasor, am-
bos acabam engatinhando sobre quatro apoios no chão acarpetado do café, e Oli-
veira diz: “já éramos dois quadrúpedes se movendo entre os sapatos-galinhas, que
lá em cima, ao nível da mesa, já começavam a cacarejar como loucas” (CORTÁ-
ZAR, 2015, p. 19); na posição em que estavam procurando o açúcar, pareciam qua-
drúpedes debaixo das mesas a causar desconforto aos demais clientes. No momen-
to em que Oliveira explica ao garçom que a busca incessante é por causa de um tor-
rão de açúcar o garçom se levanta de imediato enraivecido, no entanto, Oliveira con-
tinua a procurar o torrão até achá-lo e, ao pegar o açúcar na mão, Oliveira diz que o
torrão se vinga dele derretendo-se e misturando-se ao suor da pele.
Na busca pelo torrão de açúcar, o personagem transforma o objeto-torrão em
Ser-torrão; ele faz uma desobjetalização do torrão de açúcar para transformá-lo em
um ser-torrão. Como se houvesse uma brincadeira voluntária por trás do esconder-
se daquele Ser-objeto, como se aquele jogo de esconde-esconde entre Oliveira e o
torrão pudesse ser entendido como uma verdade plausível, ou seja, o ato de busca
de Oliveira seria justificado pelo ato de fuga do torrão, inclusive porque, quando o
torrão foi encontrado, ele derreteu-se como uma vingança do Ser-torrão; pirraçou
Oliveira, tal como faria uma criança quando perde um jogo.
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Ouvi as gargalhadas de Ronald e Etienne, enquanto eu ia de uma mesa para a outra, até encontrar o açúcar, escondido atrás de um pé de mesa Segundo Império. Todo mundo ficara furioso, até eu mesmo, com o açúcar metido na mão e sentindo como o torrão se misturava ao suor da pele, como asquerosamente se desfazia, numa espécie de vingança pegajosa, esse tipo de episódio cotidi-ano (CORTÁZAR. 2015, p.19).
Fica muito claro que há, para Oliveira, uma espécie de jogo entre ele e o torrão,
e, quem perder o jogo, pagará uma penitência. Essa punição faz sentido quando le-
mos as Aulas de Literatura, de Berkeley, em que ele fala sobre a questão da fatali-
dade em seus livros e de como isto faz com que nos identifiquemos com os perso-
nagens.
Uma das formas em que o fantástico tendeu sempre a se manifes-tar na literatura é a noção de fatalidade; o que alguns chamam de fatalidade e outros chamariam de destino, essa noção que vem desde a memória mais ancestral dos homens de como certos pro-cessos se cumprem fatalmente, irremediavelmente apesar de to-dos os esforços que possa fazer aquele que está incluído neste ciclo. O gregos falavam de ananké, palavra que os românticos franceses, principalmente Victor Hugo, recolheram e usaram muito (CORTÁZAR, 2018, p.76).
Portanto, quando Oliveira fica procurando desesperadamente o torrão de açú-
car, a fim de evitar uma fatalidade, ele está tentando fazer com que o esperado (des-
tino) não aconteça. Segundo ele, tudo o que cair no chão e não for resgatado imedi-
atamente, poderá trazer más consequências para os outros.
Os gregos tratavam o destino e a fatalidade como inerentes aos personagens de
suas tragédias e com isso incitavam o compadecimento da plateia nas atitudes dos
heróis. Dentro desse mesmo pensamento é que Cortázar acaba aproveitando esse
tipo de realidade fantástica para aproximar os leitores de seu mundo. Nesse roman-
ce, seus personagens esfregam em nossa face a necessidade de empatia; ele se dá
em um mundo fechado da obra de arte, mas que se abre para assimilar um leitor in-
teressado. “O romance é o que Umberto Eco chama de ‘obra aberta’: é realmente
um jogo aberto, que deixa entrar tudo, o admite, o está chamando, pede o jogo aber-
to, os grandes espaços da escrita e da temática” (CORTÁZAR, 2018, p.29).
Tanto para Cortázar quanto para Umberto Eco, o romance deve ser uma obra aber-
ta, dentro dos seus próprios limites, e pode ser quase infinito no estilo das novelas
aos moldes ingleses. Já o conto é como uma esfera geométrica, fechado em si
mesmo e que não se prolonga por muito mais do que um acontecimento pontual. “O
!38
conto é o exato contrário: uma ordem fechada. Para que nos deixe a impressão de
haver lido um conto que vai ficar em nossa memória, que valha a pena ler, esse con-
to será sempre algo que se encerra sobre si mesmo de maneira fatal (CORTÁZAR,
2018, p.29).
Cortázar utiliza-se sempre dessa estratégia de trazer os leitores para dentro
de suas obras e conta com o elemento da fatalidade para mesclar a realidade exter-
na ao romance, constituir a fusão dos horizontes (mundo da obra versus mundo físi-
co). A fatalidade deve ser cumprida para atingir o efeito desejado do conto.
no inicio, falamos da narrativa que se encerra em si mesma, se completa e tem algo de fatal, que termina nessa noção de esferi-cidade; no caso dos contos fantásticos, tem-se de cumprir para conseguir o efeito que o autor queria, como aconteceria em “Calor de agosto” onde o comprimento da fatalidade é absoluto e total 5
(CORTÁZAR, 2018, p.89).
Cortázar utiliza brilhantemente suas narrativas para nos levar para dentro do
universo do romance. Segundo Gadamer, é exatamente no entregar-se ao jogo da
obra que ela se completa: ”O jogar só cumpre a finalidade que lhe é própria quando
aquele que joga entra no jogo.” (GADAMER, 2015, p.155). Cortázar menciona os
mais diversos contextos de nossas experiências como uma espécie de técnica de
aproximação do leitor com suas obras, muitas vezes ele apela a questões psicológi-
cas e sensoriais para nos enveredar nas narrativas, utiliza palavras como calor, frio,
sangue com o intuito de fortalecer cada vez mais o vínculo do leitor com a obra.
Gozaba del placer casi perverso de irse desgajando linea a linea de lo que lo rodeaba, y sentir a la vez que su cabeza descansaba cómodamente en el terciopelo del alto respaldo, que los cigarrillos seguían al alcance de la mano, que más allá de los ventanales danzaba el aire del atardecer bajo los robles. Palabra a palabra, absorbido por la mordida disyuntiva de los héroes, dejandose ir hacia las imágenes que se concertaban y adquirían color y movi-miento, fue testigo del ultimo encuentro en la cabaña del monte (CORTÁZAR, 2008, p. 391).
Esse trecho, retirado do conto A continuidade dos parques (CORTÁZAR,
2008), demonstra perfeitamente a construção da literatura cortazariana: ela cria um
vínculo com o leitor ao fazê-lo adentrar o universo da obra. Pode-se perceber que, a
cada descrição e a cada linha da obra, o autor busca acalmar-nos quanto aos acon-
Do escritor ingles W. F. Harvey.5
!39
tecimentos e, ao mesmo tempo, fazer-nos sentir parte daquilo que está acontecen-
do. Em certa parte do conto, Cortázar exercita a libertação do personagem das rela-
ções de um existencial físico, mesmo que o personagem nunca tenha pertencido a
esse tipo de realidade; isso nos parece um convite a participar da narrativa com a
experiência de um mundo físico.
No romance O jogo da amarelinha, “me incomodava o fato de a Maga não ter
consciência de ser minha testemunha e de, pelo contrário, estar convencida da mi-
nha soberana autarquia...“ (CORTÁZAR, 2015, p.23), Oliveira utiliza a palavra tes-
temunha para identificar em Maga aquilo que ele mesmo experienciava através dela,
como se o mundo dos sentidos (apesar de falhos) pertencesse a Maga e como se
Oliveira vivesse melhor sendo apenas uma res cogitans, um personagem que vai se
descolando linha a linha daquilo que o rodeia. Maga, portanto, seria aquela que ex-
perimenta a realidade, incapaz de descolar-se daquilo que a rodeia. Ela participa do
romance como uma personagem que vive o momento que está sendo descrito e que
dificilmente conseguiria se afastar desse mundo pontual, já Oliveira, apesar de sua
mentalidade tacanha, ainda tenta explicar suas interações a partir de conceitos
aprendidos em sua infância ou em seu convívio com intelectuais, porém se mostra
incapaz de perceber diretamente o mundo, tem sempre de buscar a verdade nas te-
orias. Os leitores de O jogo da amarelinha acabam tentando se encontrar em meio
ao romance, como na passagem abaixo:
Os perfumes, os hinos órficos, as algálias na primeira e na segun-da acepção... Aqui, você cheira a sardônica. Aqui, a crisópraso. Aqui, espere um pouco, aqui é como salsinha, mas muito de leve, um pedacinho perdido numa pele de camurça. Aqui você começa a cheirar a você mesma. Que estranho, não é?, que uma mulher não possa se cheirar como a cheira um homem. Aqui, exatamen-te. Não se mova, me deixe fazer o que estou fazendo. Você cheira a geleia real, a mel num pote de tabaco, a algas, embora dizer isso seja lugar-comum. Há tantas algas, a Maga cheirava a algas frescas, arrancadas do último vaivém do mar. Cheirava à própria onda. Havia dias em que seu cheiro de alga se misturava com uma cadência mais espessa, e então eu tinha que apelar para a perversidade — mas era uma perversidade palatina, entende, um luxo de bulgaróctono, de senescal rodeado de obediência noturna — para aproximar os lábios dos dela, tocar com a língua aquela ligeira chama rosada que tremelicava rodeada de sombra, e de-pois, como é que eu faço agora com você?, ia afastando muito devagar as coxas dela, estendia-a um pouco de lado e respirava-a interminavelmente, sentindo como sua mão, sem que eu o pedis-se, começava a me desprender de mim mesmo como a chama
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começa a arrancar seus topázios de um papel de jornal enrugado (CORTÁZAR. 2015, p. 615).
Oliveira fala sobre os cheiros de Maga, dizendo que ela tem múltiplos cheiros
em suas diferentes partes do corpo e que os homens costumeiramente têm um só
cheiro. Quando se trata de narrar percepções dos sentidos, nós nos inserimos no
ambiente do romance: esse tipo de informação depende de um ser físico que possa
entender o que é sentir um cheiro, Oliveira nos instiga a interagir com esses diferen-
tes cheiros e passamos a imaginar esses objetos com seus cheiros, passamos a
buscar as diferenças que existem entre uma pessoa e outra, participamos com nos-
sos próprios cheiros.
Como se trata de uma obra de literatura, o máximo que conseguimos captar
são os aspectos fenomenológicos daquele universo, isto é, ao narrar as passagens
do livro é que passamos a perceber o ambiente da obra. Tudo vai se construindo
com as palavras e nos fazem sentir como participantes de um jogo independente; ler
a obra é permitir que ela demonstre a seriedade exigida para sua leitura e esse
exercício de absorção por parte da obra permite que, ao final da leitura, nos sinta-
mos sentados na poltrona narrada, nos sintamos com os cheiros em nosso olfato,
que sintamos a chicotada de um galho de árvore.
O Jogo da Amarelinha é um exercício de absorção, no qual há um velamento
de nossa subjetividade e um desvelamento do universo da obra. O conceito de jogo
de Gadamer aparece aqui como uma proposta de tomada de nosso existencial sub-
jetivo para a imposição de uma possibilidade de um existencial pertencente à própria
obra. A ideia de um outro mundo pertencente à obra se desvelando e se mostrando
na participação acaba impondo um sentido próprio a obra, nesse encobrimento do
existencial físico é que a obra nos coloca como participantes: ao lermos passamos a
fazer parte do jogo proposto pela própria obra, inclusive, fazendo bem o jogo propos-
to. Ao tentarmos sair dela, acabamos levando algum tempo para nos desvincular
daquele mundo distinto.
A realidade da obra se apresenta no desenrolar do jogo, na leitura, ou seja, a
relação que um texto tem com o leitor é que vai encaminhar o leitor à realidade pro-
posta pela leitura, mas o leitor não vira simplesmente ator da obra, ele passa a ser a
obra, ele é uma peça própria da obra. Não há uma rigidez do jogo se impondo, mas
sim uma liberação do indivíduo físico que agora irá participar de outro mundo como
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outro individuo; é no envolvimento do leitor com a obra que ele deixa sua subjetivi-
dade.
É importante ressaltar que os únicos textos capazes de cumprir com esse es-
quema de absorção e liberação do eu subjetivo são bons textos que acabam de-
monstrando identidades próprias e revelando um mundo particular, pois trazem con-
sigo todos os elementos necessários para que possamos enveredar por seu univer-
so. Ao serem escritos, já não pertencem mais nem ao autor nem ao leitor, passam a
existir como uma possibilidade independente. Os personagens da obra passam a se
desvelar dentro do mundo próprio da obra, aquele eu subjetivo que participava do
mundo existencial e com problemas empíricos passa por uma espécie de transfor-
mação operada pelo texto literário, ele vai encarregar-se apenas de participar do
jogo. O interessante nessa análise é que é a obra que vai dar as características do
leitor, dar os passos e, aos poucos, revelar algo próprio de si, nem o autor tem mais
o controle daquela, pois ela passa a adquirir uma independência própria, cada um
que a ler irá participar daquilo que lhe é proposto na leitura.
De acordo com Japiassu, na introdução à Hermenêutica e Ideologias, de Paul
Ricoeur, esse filósofo entende que a linguagem é responsável por toda a percepção
do ser por meio de sua simbologia entificadora. Assim, a linguagem é criadora nos
mais diversos sentidos, e não devemos limitá-la a nosso vocabulário pessoal, coisa
que é muito bem expressa em Cortázar.
A realidade não se reduz ao que pode ser visto. Identifica-se, tam-bém, ao que pode ser dito. Há uma síntese do visto e do dito numa filosofia do discurso, mas que só se aplica à ordem das coi-sas. [...] Para Ricoeur é o símbolo que exprime nossa experiência fundamental e nossa situação no ser. E ele que nos reintroduz no estado nascente da linguagem. O ser se dá ao homem mediante as seqüências simbólicas, de tal forma que toda visão do ser, toda existência como relação ao ser, já é uma hermenêutica. O que importa, no final das contas é que o homem não se contente com sua linguagem primária para exprimir toda a sua experiência. Ele precisa chegar a uma interpretação criadora de sentido, a essa atitude filosófica do compreender (RICOEUR, 2013, p.9).
Portanto, poderíamos verificar aqui também uma questão da própria lingua-
gem. O modo como Cortázar utiliza-se dela é capaz de nos levar à experiência com-
pleta do jogo: a linguagem é tão rica e tão complexa que de fato passamos a perce-
ber o mundo da obra participando dele, vendo-o de dentro. O eu subjetivo não as-
sume um sujeito que é objeto e sim um Ser que, no mundo da obra, é existência
!42
somente na obra. O jogo só deve ser jogado com a realidade da obra, portanto,
quando nos referimos à realidade da obra, indicamos exatamente o que Gadamer
propõe quando assumimos o jogo da obra e participamos livres de nosso subjetivis-
mo da realidade física.
Ademais, em se tratando de linguagem, podemos demonstrar o abismo que
há entre a escrita, fala e compreensão, pois todas não pertencem a uma mesma
classe. A hermenêutica prática propôs uma solução bastante simples entregando 6
uma chave de leitura que não permite destoar em nenhum local ou em nenhuma
compreensão. Mas com as obras de arte não é aceitável que o texto fique preso
dentro de uma só possibilidade de compreensão, seria o mesmo que escrever textos
científicos, ou seja, permitir apenas que algo seja descrito como inflexível. Uma obra
de arte literária necessita de uma maior abrangência quanto a seus textos, pois so-
mente assim poderá expressar suas peculiaridades, somente assim uma leitura li-
berta de conceituações poderá manifestar aquilo que realmente deseja mostrar.
É na liberdade da obra que ela irá conduzir-nos, pois não há um aprender se
não pudermos permitir entendimentos diversos. Para o próprio conceito de Gada-
mer, o permitir passa por uma alteração quando deixamos de impor nossas vonta-
des e conhecimentos. Permitir a autonomia de um texto é o que faz o entendimento
apreender o mundo da obra, é o que nos faz esquecer do eu subjetivo para assu-
mirmos o mundo da obra. Este assume uma seriedade própria que passa a ser sa-
grada em seu jogar.
É mais importante o fato de que no jogar se dá uma seriedade própria, até mesmo sagrada. E não obstante, no comportamento lúdico não desaparecem simplesmente todas as referências à fi-nalidade que determinam a existência (Dasein) atuante e cuidado-sa, mas, de uma forma muito peculiar, permanecem em suspenso. Aquele que joga sabe por si mesmo que o jogo não é nada mais que um jogo e que se encontra num mundo determinado pela se-riedade dos fins (GADAMER, 2015, p.154).
Quando Gadamer refere-se à seriedade dos fins, está anunciando que, ao
entrarmos na obra de arte e assumirmos o existencial proposto por ela, estaremos
velando nossa existência subjetiva e participando a sério da obra.
Refiro-me aqui à hermenêutica que é proveniente da exegese, que visa traduzir as palavras e pos6 -síveis dubiedades para um consenso, p. ex. a hermenêutica jurídica refere-se à interpretação de tex-tos e palavras exclusivamente relacionados a seu meio, assim relaciona as palavras com seus signifi-cados bem definidos.
!43
Na esfera estética gadameriana, o personagem apreendido na obra é que
está jogando, é nesse ponto que a própria possibilidade do existencial da obra passa
a desvelar-se e tomar para si o andamento das mais diferentes sensações e dos
acontecimentos. O exercício proposto pelo jogo de Gadamer irá nos mostrar certos
preconceitos que impedem que leiamos as obras de forma livre: ao partirmos de
uma antecipação dos acontecimento nossa participação no jogo proposto pela obra
é dificultada. Segundo Gadamer, é preciso que nos libertemos desses conceitos pré-
concebidos (subjetivos) a fim de participarmos do jogo proposto pela obra de arte e
de seu conceito. Na absorção exigida pelo conceito de jogo deixaremos que nosso
eu subjetivo participe do universo da obra. Portanto, ao lermos e jogarmos com a
obra, necessitaremos de uma leitura desapegada de nossa realidade física e entre-
gue às vicissitudes do mundo da obra.
É a abolição do caráter mostrativo ou ostensivo de uma leitura que possibilita
o que é chamado de literatura, em que toda referência que busca uma realidade físi-
ca pode ser abolida para que as obras possam criar, elas mesmas, seus universos.
É no velamento do eu subjetivo que joga para si e na participação no jogo da obra
como acontecimento independente que o conceito de jogo se baseia; os jogadores
deixam de ser sujeitos que jogam para aparecerem como uma representação atra-
vés do jogar. Assim, a próxima etapa consiste em analisar de que forma esse jogar pode
nos trazer algum conhecimento e de que forma o jogar de Gadamer vai demonstrar
essas novas possibilidades, ocultando algumas e desvendando outras. Como dito
mais acima, existe um distanciamento entre o texto e a compreensão dele, pois am-
bos são de naturezas diferentes: o texto sozinho não causa nenhuma alteração as
possibilidades de entendimento, ele necessita de um leitor para que exerça sua fun-
ção ao ser compreendido e assimilado. Nesse caso a hermenêutica é que teorica-
mente possibilitaria essa aproximação de itens tão distantes pois é ela que dará sen-
tido às narrativas. Porém, o exercício proposto por Gadamer na apreciação de uma
obra de arte literária é exatamente uma anti-hermenêutica definidora, uma anti-her-
menêutica científica, o exercício pede que nos desvinculemos de nosso subjetivismo
e de conceitos pré-concebidos e deixemo-nos levar pelo aspecto intrínseco da obra,
pelo aspecto excepcional que a obra tem.
!44
2 A Liberação da questão da verdade a partir da experiencia da arte: A on-
tologia da obra de arte e seu significado hermenêutico
2.1 O jogo como fio condutor da explicação ontológica
2.1.1 O conceito de jogo
Kant afirmou, em Crítica do juízo, que para o juízo do gosto partimos de um a
priori, e Gadamer o questiona:
Aí não se trata mais de meros princípios empíricos que deveriam legitimar um gosto abrangente e dominante, como a pergunta fa-vorita sobre as causas da diversidade do gosto, por exemplo; tra-ta-se, antes, de um genuíno a priori, que deverá justificar como tal e sempre a possibilidade da critica. Mas em que consiste este a priori? (GADAMER, 2015, p. 83)
Gadamer salienta que a própria noção de a priori de Kant pode trazer barreiras
para fundamentar essas afirmações, haja vista que esse a priori nem mesmo pode
ser definido conclusivamente, pois há diversidade nos gostos. Sendo assim, Gada-
mer afirma:
Ninguém duvida de que as questões de gosto não podem ser de-cididas através de argumentação e demonstração. Fica claro tam-bém que o bom gosto jamais possuirá uma real universalidade empírica, pois que o apelo ao gosto dominante ignora a genuína natureza do gosto (GADAMER, 2015, p. 83).
A noção de gosto em Kant, portanto, leva em consideração uma universalidade
dos gostos que nem sempre pode ser definitiva por sua multiplicidade e ao mesmo
tempo tem uma pretensão apriorística de universalidade.
É do jogo livre da imaginação e da compreensão, uma relação subjetiva idônea para o conhecimento, que apresenta o funda-mento do prazer no objeto. Idealmente, essa relação útil subjetiva é igual para todos, é pois passível de ser transmitida universal-mente e fundamenta assim a pretensão de validade universal do juízo de gosto (GADAMER. 2015, p. 84).
Gadamer afirma que o conceito de gosto em Kant gera a lei de si mesmo,
conceito que acaba por negar ao gosto qualquer significado cognitivo. Não podería-
mos aprender sobre o gosto através de nossos sentidos, ele seria uma concordância
sensorial-empírica com base nestes, a priori. "Nele não reconhece nada dos objetos
!45
que são julgados como belos; apenas se afirma que a eles correspondem a priori um
sentimento de prazer do sujeito.” (GADAMER, 2015, p. 84) Com a teoria gadameria-
na, estamos "…dissolvendo qualquer teoria universal cosmológica da beleza” (GA-
DAMER, 2015, p.91) e trazendo o sentido do gosto para as noções subjetivas espe-
cíficas dos indivíduos que jogam e são jogados na obra de arte.
Temos, portanto, em Kant um princípio de um conceito de jogo (livre Jogo das
Faculdades) que não será explorado nesta dissertação, pois a teoria kantiana segue
caminho diferente das idéias de Gadamer. Este busca uma maior autonomia das
obras de arte e não pretende uma estética, mas sim a apreciação das obras de arte.
Gadamer também se opõe à utilização de uma teoria indutivista para um juízo
de gosto, pois traria dificuldades na apreciação das obras. Para que fique claro a
que Gadamer se opõe quando fala do indutivismo, devemos pensar no indutivismo
que se apresenta na ciência, em que há uma previsão de certos acontecimentos e
ciclicidades na natureza e que serviu de base para a ciência do espírito. Desse
modo, se assumirmos regularidades, estamos também estabelecendo regularidades
na conceituação do juízo de gosto, coisa que não é de interesse para o conceito de
jogo de Gadamer. Segundo o filósofo, as teorias indutivistas de Stuart Mill resultari-
am em um problema para seu conceito, haja vista que o conceito de jogo busca
apenas a apreciação das obras de arte e não uma conceituação no juízo de gosto. A
seguir, Gadamer discorre sobre o problema que seria a utilização de regras indutivas
para a apreciação de uma obra:
A expressão "ciências do espírito" se popularizou principalmente por obra do tradutor da Lógica de John St. Mill. Num apêndice a sua obra, Mill procura esboçar as possibilidades de aplicar a lógi-ca indutiva às moral scienses. Para isso o tradutor propõe o termo "ciências do espírito" (Geisteswissenschaften) . Já à partir do con7 -texto da Lógica de Mill, percebe-se que não se trata de reconhe-cer uma lógica própria das ciências do espírito, mas de demons-trar, ao contrário, que também nesse âmbito o método indutivo, que está à base de toda a ciência experimental, tem validade úni-ca (GADAMER. 2015, p. 37).
O conceito gadameriano de jogo é livre de relações subjetivas e, portanto,
propõe o contexto da experiência da obra de arte sem as relações do ânimo do autor
ou de quem vê as obras; não há subjetividades que anunciem o que deve ser lido e
MILL, J. S. Sistema de Lógica Dedutiva e Indutiva. (Trad. Eleanora Magalhães de Gusmão). Join7 -ville: Clube dos autores, 2020.
!46
sim o modo de ser da própria obra é que deve conduzir o leitor, pois existe uma dife-
rença entre o comportamento de um jogador em sua subjetividade e o jogo em si.
Além de participarem de essências diferentes, cada um tem o seu modo de ser dis-
tinto; o mundo do texto é o mundo daquele texto e o mundo da ação é o mundo prá-
tico, efetivo que chamamos de realidade. Quem joga o jogo não leva a sério, como
indivíduo, o que está acontecendo no jogo, há apenas uma seriedade no jogar; aqui-
lo é um mero jogo e não é sério para o eu que joga. Essa passa a ser a finalidade do
jogo, libertar o jogador do peso da realidade. “Joga-se por uma questão de recrea-
ção, como diz Aristóteles” (GADAMER, 2015, p. 154).
A seriedade do jogo vem da forma como os elementos contidos na obra se
mostram em sua profundidade e efetivam a sua criação. Para tal, exige uma liberda-
de a fim de mostrar suas particularidades dentro de seu universo fechado que se dá
no jogar. Porém, para que a obra esteja liberta e demonstre sua seriedade, é neces-
sário que o jogar fique longe de conjecturas subjetivas e que faça do indivíduo leitor
um personagem de suas peripécias. Podemos observar que essa seriedade do jogo
assemelha-se à seriedade que damos ao nosso jogar quando crianças, pois qual-
quer criança que não levar a sério a brincadeira acabará desmantelando o momento
lúdico que se completa pela participação daquele jogar.
O menino nunca morreu em mim e acho que no fundo não morre em nenhum poeta, em nenhum escritor. Sempre conservei uma capacidade lúdica muito grande e inclusive tenho toda uma teoria sobre o que chamo a seriedade do jogo, que não vou elaborar agora, mas faremos uma menção de até que ponto o jogo é uma coisa muito séria, muito importante, e que em certas circunstânci-as pode ser muito dramático (CORTÁZAR, 2018, p.40).
Segundo o próprio Cortázar, dentro de um poeta sempre há um menino que
mantém sua capacidade lúdica e joga ao escrever uma obra, como se o escritor
também estivesse envolvido no jogo ao escrever o romance tornando o momento
sério pois ele está atuando na criação e o leitor atuará na representação.
O jogo era uma diversão, naturalmente, mas era uma diversão que tinha uma grande profundidade, um grande sentido para nós, a ponto de que — não sei se já disse aqui, mas em todo caso gos-to de repeti-lo — me recordo muito bem de que, quando criança, se me interrompiam por qualquer contingência num jogo solitário ou com meus amigos, me sentia ofendido e humilhado, porque me dava a impressão de que não se davam conta de quanto esse jogo com meus amigos tinha para todos nós uma importância mui-
!47
to grande. Havia todo um código, todo um sistema, todo um pe-queno mundo: o mundo de um campo de futebol ou de uma qua-dra de tênis, de uma partida de xadrez, de um jogo de baralho ou de um jogo de bolinha de gude. Desde o jogo mais complicado até o mais simples, havíamos entrado, quando brincávamos, num ter-ritório exclusivamente nosso que era importante enquanto o jogo durasse (CORTÁZAR, 2018, p.195).
A seriedade à qual Cortázar se refere é comparada aqui ao mesmo peso dos
jogos de criança acima mencionados; as crianças, quando estão participando de
algo entendem que aquilo tem uma finalidade real e que devem exercer seu papel
da melhor forma que lhes for possível a fim de completar sua missão dentro daquilo
que se espera dele caso contrário, segundo Gadamer: "Quem não leva a sério o
jogo é um desmancha-prazeres” (GADAMER. 2015, p. 155) e portanto está que-
brando o ciclo daquele jogo sério.
O jogador, apesar de saber que aquilo não passa de um jogo, sabe que no
jogar encontrará um mundo determinado pela seriedade dos fins, não cabe a ele an-
tecipar e prever esta seriedade, a finalidade do jogo só será atingida quando aquele
que joga entrar definitivamente no jogo. Não temos um indivíduo que olha de fora
para dentro e incute sua noção, ele percebe no jogar uma seriedade intrínseca ao
jogo, pertencente à obra, sendo assim, quem joga não deve se comportar como se
aquele fosse um objeto.
Não estamos, portanto, atrás de uma consciência estética que busca definir a obra
como algo concordante ou não a uma consciência universal do gosto, mas sim uma
experiência da arte que visa permitir que os elementos nos apareçam como devem
aparecer dentro do desenrolar da obra. Assim, assumiremos o modo de ser da obra,
contudo, é preciso que não nos prostremos diante da obra esperando que um objeto
se mostre a nós, somos também protagonistas e portanto a obra acontecerá conos-
co nela. A obra irá causar uma transformação naquele que a experimenta e somente
então é que poderá ser uma experiência atualizadora do sujeito. Segundo Gadamer,
é na livre participação do leitor com o jogar que ele encontrará o estado das coisas
da obra de arte, pois elas se mostram lá por si só: “Na análise da consciência estéti-
ca vimos que a contraposição entre uma consciência estética e um objeto não cor-
responde ao estado das coisas. É esse o motivo por que nos é importante o conceito
de jogo” (GADAMER. 2015, p. 154).
O que chamamos de sujeito aqui assume outra dimensão, pois não contamos
com o subjetivo daquele que aprecia a obra. O sujeito da experiência de arte nada
!48
mais é que a obra em si desvelando-se e impondo-se através do sujeito do jogo, que
demonstra sua natureza própria que não pode ser determinada por nenhum ser-
para-si da subjetividade. Este a limitaria e o sujeito não conseguiria participar do lú-
dico proposto pela obra. Os sujeitos dos jogos não são compostos pelos jogadores e
sim pelo que acabam representando no jogar que são pautados pelo próprio vaivém
interno a obra.
Devemos prestar atenção, também, nas palavras utilizadas na obra. Elas tor-
nam as abstrações capazes de uma análise conceitual própria ao romance, assim é
o pensamento do personagem que deve avaliar a aplicabilidade do que se propôs
nas narrativas. Da mesma forma, devemos pensar na relação etimológica dentro da
obra de arte, pois as palavras nem sempre permitem que conceitos e abstrações
possam ser afirmados em seu uso real, isto é, tanto as metáforas quanto a ação
etimologizante a que estamos acostumados no uso da linguagem acaba tendo de
passar pelo juízo do pensamento do personagem, afastando temporariamente o
conceito ajuizante do eu subjetivo.
Dessa forma, a palavra jogo, em seu sentido figurado mais útil, acaba incidin-
do sobre um jogo de luzes ou jogo das ondas ou até mesmo o jogo das peças de
uma máquina. Grosso modo, podemos perceber nesse tipo de conceituação que há
uma espécie de vaivém inerente ao que se propõe como jogo e que acontece inde-
pendente de quem o joga, portanto, não há um fim em seu movimento. Isso serve
para entendermos que o jogar gadameriano necessita desses movimentos próprios
independentes para configurar-se como 'conceito de jogo’.
Outra forma de utilizar a palavra jogo é nos mesmos contextos usados a pa-
lavra spielen, em alemão que, segundo Gadamer, tem um sentido de brincar, tocar
um instrumento ou representar teatro e que mostram uma participação de elementos
que jogam entre si:
O fato de o modo de ser do jogo encontrar-se tão próximo da for-ma de movimento da natureza, permite, porém, uma importante conclusão metódica. É evidente que não é assim, que os animais também brincam (spielen, em alemão, que significa tanto jogar, como brincar, tocar um instrumento ou representar teatro etc.) e que até se possa dizer, num sentido figurado, que a água e a luz brincam. Ao contrário poderíamos antes dizer do homem que ele também brinca (spielt). Também o seu jogar é um acontecimento da natureza. Também o sentido de seu jogar, justamente por ele ser, e na medida em que é natureza, é um puro representar-se a si mesmo. É assim que, no final, torna-se praticamente sem senti-
!49
do diferenciar, nesse campo, o uso próprio e o metafórico (GA-DAMER, 2015, p. 158).
O jogar não busca um alvo ou um fim, se renova em sua constante revolução
e tem como foco central seu vaivém como essência de sua existência. Exatamente
como acontece em diversas canções que repetem suas estrofes constantemente e
se fazem completas por conseguirem uma musicalidade dessa forma. A repetição
acontecerá independente de quem ou o que executa esse vaivém: o “jogo das cores
e com isso não nos referimos ao jogo de uma única cor com outra, mas estamos
aludindo ao processo ou à visão unitária onde se mostra uma multiplicidade variável
de cores” (GADAMER. 2015, p. 157). Buscamos, na verdade, o sentido mais originá-
rio da palavra, de algo está se desenrolando como jogo e algo está em jogo em um
lugar e momento determinado.
Em alemão pode-se ‘ein Spiel treiben’ (praticar um jogo), e, em holandês, ‘een spellete doen’, mas o verbo que realmente corres-ponde a isso é o mesmo que Spielen (Jogar). Joga-se um jogo. Noutras palavras: para expressar o tipo de atividade que se trata, tem-se de repetir no verbo o conceito que o substantivo contém. Tudo leva a crer que isso significa que a ação tem um caráter tão especial e autônomo que se subtrai às formas habituais de ativi-dade. Jogar não é um fazer no sentido habitual da palavra (HUI-ZINGA apud GADAMER, 2015, p. 157).
Huizinga, em seu livro Homo Ludens (Homem que Joga), fala da transforma-
ção das definições dos homens desde um principio onde a racionalidade o diferenci-
ava dos demais animais. No século XVIII, percebeu-se que a racionalidade escondia
certa ingenuidade por parte das pessoas e assim elas passaram a ser designadas
como Homo faber (homem que fabrica) ao invés de Homo sapiens.
Huizinga nos propõe que a noção racional de homem pelos seus conceitos se
aproxima muito mais do Homo ludens do que de qualquer outra tentativa de defini-
ção, pois o homem vive um jogo, o jogo da vida, que inicia com as brincadeiras de
criança e que tem um ar de realidade e durante toda a vida do homem e fazerem
surgir as civilizações. Para o autor, contudo, o jogo não é apenas uma atividade hu-
mana, os animais também o fazem quando demonstram suas alegrias ao interagi-
rem uns com os outros, respeitando-se em suas brincadeira que também têm suas
regras. Mordem sem machucar, fingem estarem zangados e se divertem uns com os
outros, porém, esse jogar dos animais não tem a profundidade criadora dos homens,
!50
portanto, é um tipo de jogo simplificado. Segundo Huizinga, também devemos en-
tender o jogo provindo da palavra spielen, que em línguas européias significam: jo-
gar/brincar:
As diferenças entre as principais línguas européias (onde spielen, to play, jouer, jugar significam tanto jogar como brincar) e a nossa nos obriga frequentemente a escolher um ou outro destes dois, sacrificando assim a exatidão da tradução uma unidade termino-logia que só naqueles idiomas seria possível (HUIZINGA,1971, p.3).
Para Huizinga, o jogo contém um aspecto fisiológico e psicológico muito impr-
tante, já que quem brinca não o faz por instinto, mas por uma espécie de imitação,
como veremos a seguir (HUIZINGA, 1971, p. 61), quando abordarmos a questão da
repetição (Wiederholung) em Freud.
Em época mais otimista que a atual, nossa espécie recebeu a de-signação de Homo Sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por compreender que afinal de contas não somos tão racionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do século XVIII nos fize-ram supor, e passou a ser a moda designar nossa espécie como Homo Faber. Embora faber não seja uma definição do ser humano tão inadequada como sapiens, ela é, contudo, ainda menos apro-priada do que esta, visto poder servir para designar grande nume-ro de animais. Mas existe uma terceira função, que se verifica tan-to na vida humana como na animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo. Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expres-são Homo ludens merece um lugar em nossa nomenclatura (HUI-ZINGA, 1971, Prefácio).
Gadamer, por outro lado, nos propõe que o jogo não está relacionado direta-
mente com o faber do homem e sim com o ludens, que ele utiliza para se desenvol-
ver em civilizações. É a partir deste principio de jogo que sua teoria irá se desenvol-
ver.
Podemos perceber que o jogar ao qual nos referimos aqui não é algo com
que estamos acostumados a nos interessar como o jogo da subjetividade e suas
formas de comportamento. Não estamos partindo de um princípio no qual o jogo se
dá pela individualidade dos participante, e sim pelo jogo que se concretiza pela inte-
ração dos jogadores com eles mesmos e com o jogo proposto pela obra. O jogo,
portanto, não contém um caráter fechado e subjetivo (do individuo). Gadamer cita
Huizinga para tratar do jogo em toda a cultura; há um aspecto tanto infantil quanto
!51
animal na palavra e em seu entendimento. Também cita os jogos sagrados dos cul-
tos que nos levam a uma consciência lúdica, embora haja uma confusa distinção en-
tra crença e descrença. “O próprio selvagem não conhece nenhuma distinção con-
ceitual entre o ser e jogar, não conhece nenhuma identidade, nenhuma imagem ou
símbolo” (HUIZINGA apud GADAMER, 2015, p.157). Os jogos sagrados das civiliza-
ções primitivas, mais conhecidos como cultos e ritos aparecem sem nenhuma distin-
ção de realidade ou falsidade, os indivíduos apenas executam os atos como se fos-
se um momento sério e necessário para determinado fim, ou seja, não executam
seus ritos levando em consideração seus sentimentos individuais, levam em consi-
deração a execução do jogo necessário ao culto.
Como dito anteriormente, dentro do jogo, há um vaivém que faz parte do jo-
gar, portanto, que não tem uma finalidade em si e muito menos intenção; não exige
esforços daquele que participa. O alívio de tensão proporcionado pelo vaivém des-
provido de esforço é a sobreposição do mundo da obra com a libertação do eu sub-
jetivo transformando-se em jogo. Esse alívio acaba refletindo na dispensa da tarefa
que perfaz o esforço da existência, nos liberando das relações empíricas da vida,
que, em muitos casos, podem ser bastante penosas. Podemos perceber também
que a chamada repetição do vaivém acaba se dando de forma espontânea no joga-
dor, como um continuo renovar-se do jogo: "I could sit right here and think a thou-
sand miles away, I could sit right here and think a thousand miles away, Since I had
the blues this bad, I carít remember the day” (CORTAZAR, 2015, p.92), como nos
refrões do jazz tocado pelos personagens de O jogo da amarelinha.
Gadamer cita Schlegel quanto ao fato de que a arte acaba sendo sempre
uma imitação distante do mundo físico que está eternamente se formando. “Todos
os jogos sagrados da arte não passam de imitações distantes do jogo infinito do
mundo, da obra de arte que se forma eternamente” (GADAMER apud SCHLEGEL,
2015, p. 159).
Devemos pensar esses vaivéns de renovação a partir da teoria freudiana da
repetição (Die Wiederholung), que diz que nosso aparelho psíquico tem a tendência
de procurar sempre um estado anterior às nossas buscas por satisfação. Qualquer
estímulo que recebemos durante nossa vida em busca da satisfação dos prazeres
(pulsões sexuais, pulsões de vida, pulsões da morte) acabará fazendo com que nos-
so aparelho psíquico, ao terminar de sofrer o estímulo, busque retomar um estado
!52
de tensão zero (estado anterior ao estímulo), um estado no qual nosso aparelho psí-
quico não esteja em tensão. Esse é o objeto de toda a pulsão, um processo de re-
miniscência que faz com que revivamos nossos traumas em busca da satisfação em
diversos momentos; até mesmo nos sonhos os acontecimentos são rememorados.
[...] à ‘compulsão à repetição’ como sendo um fenômeno apresen-tado no comportamento das crianças e no tratamento psicanalíti-co; sugere que essa compulsão é algo derivado da natureza mais íntima dos instintos e a declara ser suficientemente poderosa para desprezar o princípio de prazer (FREUD, 2020, p. 2 ).
Em Freud, o conceito de princípio do prazer significa a tentativa de buscar sa-
tisfação dos diversos desejos durante toda a nossa vida e, com isso, acabamos en-
contrando certos desprazeres durante essa busca o que faz com que nosso proces-
so psíquico ative uma reação a fim de desfazer esta sensação de desprazer, que
Fred chamou repetição. Aqui, tentamos entendê-la no sentido de um jogo que ne-
cessita de idas e vinda para concretizar-se como o jogo da obra de arte.
Freud narra sobre as brincadeiras das crianças e fala sobre um menino bem
comportado e de família estruturada, cujo jogo principal demonstrava uma interação
do prazer e desprazer:
Só que esta criança bem-comportada tinha o habito, as vezes in-comodo, de jogar para bem longe de si — num canto, debaixo de uma cama etc — todos os pequenos objetos que pegava, de modo que encontrar seus brinquedos muitas vezes não era um trabalho fácil. Ao fazê-lo, emitia, com expressão de interesse e satisfação, um alto e longo ó-ó-ó-ó, que, segundo o juizo unanime da mãe e deste observador, não era uma interjeição, mas signifi-cava “fort” [foi embora]. Finalmente percebi que aquilo era uma brincadeira e que a criança usava todos os seus brinquedos ape-nas para brincar de “foi embora” com eles (FREUD, 2019, p. 55).
Freud identificou na brincadeira do menino uma busca pela satisfação de al-
gum desejo, portanto, uma busca que causava prazer e também desprazer.
A criança tinha um carretel de madeira com um fio enrolado nele. Jamais lhe ocorria, por exemplo, arrasta-lo atrás de si pelo chão, ou seja, brincar de carrinho com ele, mas jogava o carretel com grande habilidade, segurando-o pelo fio, sobre a borda de sua caminha com dossel, de maneira que ele desaparecia dentro dela; enquanto isso, pronunciava o seu significativo ó-ó-ó-ó e então pu-xava o carretel pelo fio para fora da cama, agora saudando seu aparecimento com um alegre “da” [ai está]. Essa era, portanto a brincadeira completa, desaparecimento e retorno, da qual na mai-
!53
oria das vezes vemos apenas o primeiro ato, e este foi repetido incansavelmente como brincadeira isolada, embora o prazer maior sem duvida estivesse ligado ao segundo ato (FREUD. 2019, p. 56).
Segundo Freud, o trauma causado pelo desaparecimento da mãe do menino
culminou em um comportamento repetitivo em relação à brincadeira com o carretel
de linha, fazendo com que ele refletisse a ida e vinda da própria mãe pelas idas e
vindas do carretel.
A interpretação da brincadeira era obvia então. Relacionava-se com o grande feito cultural da criança, com a renuncia impulsional (renúncia à satisfação dos impulsos) que ela tinha realizado ao permitir que a mãe fosse embora sem opor resistência. A criança se compensava, por assim dizer, encenando ela própria esse mesmo desaparecimento e retorno com os objetos a seu alcance (FREUD. 2019, p. 57).
Era no reflexo do jogar do menino que ele conseguia lidar com a frustração da
não obtenção do prazer presencial da mãe. A sua ausência causou um comporta-
mento de imitação no jogar da criança, pois ela assimilava perda (fort) da mãe às
idas do carretel, e o retorno (da) da mãe aos retornos do carretel, como se no jogo
de imitação ele pudesse desfazer-se da perda: “[...] a criança, afinal de contas, só foi
capaz de repetir sua experiência desagradável na brincadeira porque a repetição
trazia consigo uma produção de prazer de outro tipo, uma produção mais
direta” (FREUD, 2020, p. 10). A produção do prazer obviamente vinha do retorno do
carretel, algo que simbolizava o retorno de sua própria mãe e portanto a satisfação
do processo de prazer.
Se o médico examina a garganta de uma criança ou faz nela al-guma pequena intervenção, podemos estar inteiramente certos de que essas assustadoras experiências serão tema da próxima brin-cadeira; contudo, não devemos, quanto a isso, desprezar o fato de existir uma produção de prazer provinda de outra fonte. Quando a criança passa da passividade da experiência para a atividade do jogo, transfere a experiência desagradável para um de seus com-panheiros de brincadeira e, dessa maneira, vinga-se num substitu-to (FREUD, 2020, p. 11).
A obra de arte produz esses mesmos reflexos, ao induzir o leitor a participar
de sua brincadeira, fazendo-o jogar com suas possibilidades. O universo particular
da obra permite imitar em um jogo aquilo que a obra tem como fim; o caminhar da
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obra possibilita uma satisfação do prazer do leitor quando ela o supre com seus vai-
véns. No romance O jogo da amarelinha, os personagens acabam fazendo esse
mesmo movimento de busca e de satisfação de algo, inclusive, Oliveira parece jogar
com a perda e o reencontro com Maga, pois está sempre a procurar Maga entre as
ruas e pontes de Paris, mas sempre acaba se reencontrando com ela, ou até mes-
mo encontrando-a em si mesmo. Ou seja, o jogar o leva a completar o mundo e sa-
tisfazê-lo, pois o faz recuperar algo que julgava perdido.
Estas imitações do mundo, segundo Gadamer, muitas vezes foram utilizadas
para justificar uma ciência humana (ciência do espirito) capaz de prever os compor-
tamentos dos homens (indutivismo científico). Isso também acontece com as gran-
des obras de arte, de modo que os escritores, romancistas, poetas, imitariam de
forma distinta os jogos infinitos do mundo e do homem, e que muitas vezes acabam
permitindo uma atualização do existencial subjetivo.
O jogo parte de possibilidades sérias e exige um engajamento a fim de alcan-
çarmos o que se impõe nele, sendo um dos atrativos os riscos dos contralances.
Para a liberdade do jogo, é necessário evitar decisões com bases externas que aca-
bariam retirando a sua seriedade e, portanto, seu contralances, pois quem joga deve
também ser jogado pelos contralances do jogo, não deve buscar decisões externas
a ele. Todo jogar é um ser-jogado, assim, o sujeito do jogador é o próprio jogo.
Quanto à questão do contralance, Gadamer vai dizer que, para que ele acon-
teça, é preciso o movimento do vaivém da obra de arte, pois é na participação que
haverá os lances e contralances na obra.
O vaivém pertence tão essencialmente ao jogo que em sentido extremo torna impossível um jogar-para-si-somente. Para que haja jogo não é absolutamente indispensável que outro participe efetivamente do jogo, mas e preciso que ali sempre haja um outro elemento com o qual o jogador jogue e que, de si mesmo, respon-da com um contralance ao lance do jogador. É assim que o gato que brinca escolhe o rolo de lã porque este também joga com ele; e os jogos com a bola são imortais por causa da mobilidade total e livre da bola, que também de si mesma produz surpresas (GA-DAMER, 2015, p. 159).
O ânimo do jogo não se refere ao sujeito que o joga e sim a seu próprio espíri-
to, o seu vaivém próprio e exclusivo, suas regras e disposições que compõem o es-
paço lúdico (por exemplo, o jogo das águas é o que compõe seu vaivém, que consti-
tui seu espírito). O comportamento do jogador e do escritor aparece quando eles se
!55
dispõem a participar do espaço lúdico proposto pelo jogo, assim, eles escolhem su-
bordinar-se às disposições do espírito daquele jogo: “[...] minha o obediência a uma
espécie de pulsação, a uma espécie de batida que há enquanto escrevo e que faz
que as frases me cheguem como dentro de um balanço, dentro de um movimento
absolutamente implacável [...]” (CORTÁZAR, 2018, p. 161).
O jogador subtrai-se como individuo lúdico para assimilar o lúdico do jogo que
se mostra segundo suas regras e espírito, o lúdico que delimita-se pelo seu espaço
reservado para o movimento interno. Assim como o jogo humano exige seu espaço
e delimita seu campo de jogo, igualmente também ocorre com o jogo do vaivém lú-
dico que a obra de arte propõe, um mundo fechado, longe do mundo dos fins huma-
nos e próximo dos fins do jogar e ser jogado. É como se o jogo humano não compar-
tilhasse da mesma natureza do jogo das obras de artes; as condutas tomam rumos
diferentes, mesmo tendo aspectos do lúdico na natureza do jogo da vida.
É primordial para esse jogo libertar-se da tensão do jogo humano no mundo
prático para assumir um jogar-algo que tem seu próprio mundo; cada jogo se mostra
em sua forma particular de ser, diferente de qualquer outro jogo. Aqui, os fins do
comportamento se tornam apenas os fins do jogo para o jogar, sendo assim, o re-
presentar do jogo não contém um aspecto biológico, refere-se simplesmente ao re-
presentar-se, ao auto representar-se como aspecto ontológico do jogo.
Quando pensamos no contexto do jogo humano, devemos vinculá-lo à ques-
tão de aparência, pois é assim que nos comportamos. Já no contexto do jogo como
possibilidade de entendimento da obra de arte é que reside uma autorepresentação
como meio de identificação do próprio jogo, do sujeito é parte do jogo.
O jogo não se dá apenas em um mundo fechado e escondido dos demais,
pois podemos pensar também que o representar é sempre um representar para al-
guém e isto faz parte da peculiaridade do caráter lúdico da arte. É como se, ao parti-
cipar do jogo, estivéssemos com umas das paredes do espaço fechado em constan-
te abertura, pois, mesmo que estejamos fechados naquele jogo que contém seu
próprio vaivém, há sempre outros que nos percebem naquele espaço e avistam nos-
sas interações com o lúdico do jogo. Sempre estamos no jogo representando um
jogo que exige algum tipo de plateia.
Por isso é que o jogo cultural e o teatral tomam diferentes rumos do jogo in-
fantil. Quando, por exemplo, o analisamos sob o aspecto do evidenciamento, a cri-
!56
ança que joga em suas brincadeiras está constituindo seu representar no mundo dos
jogos e está aludindo a si mesma permitindo que haja espectadores que a veja
mesmo sem a intenção de se mostrar. Por outro lado, no jogo teatral e cultural, o re-
presentar ocorre para a realização da obra de arte apenas; o jogo se dá de acordo
com a obra de arte, o representar é constitutivo da obra em si e não há uma referên-
cia direta aos espectadores.
Um bom exemplo dessa ideia de jogo gadameriano pode ser visto nos jogos
esportivos: um jogo se dá de frente para uma plateia, para espectadores atentos ao
que está acontecendo no estádio. Diante deles, os jogadores se enfrentam no cam-
po, não só no aspecto físico, mas também no aspecto de que o jogar acontece in-
dependente e sem a necessidade do espectador. A plateia se interessa de fora para
dentro pelos acontecimentos de vaivém encerrados pelas regras do jogo e ao limite
do campo de atuação dos jogadores.
Sendo assim, podemos perceber que o jogo, apesar de estar fechado em si,
abre uma de suas paredes para que haja espectadores que percebam o jogo de fora
e que indiretamente façam parte do jogo, não para o sentido do jogo em si, mas na
percepção do caráter lúdico do jogo e sua completude. O jogo acontece entre quatro
paredes e, certas vezes, uma delas cai para que os espectadores possam assistir ao
jogo sem interferir no movimento dele. Mesmo assim, não faz parte da constituição
do jogo o ser visto, mas indiretamente acaba se revelando interessante aos demais
espectadores por conta das circunstâncias de sua existência.
A própria representação de Deus nos cultos aparece como jogo, pois o culto
necessita de participantes que fazem com que o movimento de representar dele se
torne algo real; uma procissão sem fiéis não seria uma procissão, assim como sem
os espectadores da procissão não haveria sentido aquele movimento demonstrativo
da fé. A abertura para o espectador contribui para formar o caráter fechado do jogo,
pois é sob os olhares dos espectadores que o jogo se realiza como tal. O jogo atrai o
jogador para a sua esfera e o preenche com seu espírito permitindo que o especta-
dor capte a representação do jogo como um espetáculo.
Portanto, aquele que participa do jogo da obra é quem percebe a intenção
dele e torna-o mais autêntico ainda, é na representação desse jogo que ele se eleva
à sua idealidade própria. O espetáculo é onde acontece a participação do jogador
(ator), que aparece representando os atos do jogo e que se mostra para alguém
!57
(espectador), que acaba fechando a idealidade própria do jogo em sua completude.
O ator participa do jogo de forma livre e participa da obra com o espetáculo que ele
e o jogo proporcionam a um terceiro. Podemos perceber que, até mesmo no espetá-
culo, as distinções entre jogador, espectador e obra se confundem, pois é necessá-
rio que o todo aconteça corretamente e haja uma boa execução do mundo da obra,
pois somente assim haverá a possibilidade de experiência da obra.
Assim como quem faz música acaba fazendo-a para um “sair" bem, ou seja,
para alguém que a escuta, é da natureza da música o executar para ser escutado e
o tocar para permitir que a obra se mostre e ela só é completa se há os três (obra,
músico e espectador) interagindo. A obra quer ser representada e tem de ser apre-
sentada por um músico que a lê e a interpreta segundo suas modulações e o espec-
tador ou ouvinte que percebe a obra pelo interpretar e tocar do músico que se deixa
envolver pela obra, exatamente como faz um maestro ao interpretar as partituras.
Novamente não há distinção entre obra, músico e espectador no que se refere ao
jogo da música, eles são interdependentes
2.1.2 A transformação do jogo em configuração e a mediação total
O consumar do jogo humano é chamado de arte (o jogo é arte) assim, ao
modo de ver de Gadamer, é uma transformação em configuração. Configuração é o
caráter da obra que se mostra liberto da atividade representativa do jogador e se
mostra como puro fenômeno daquilo que se joga. É no repetitivo do jogar que está
sua durabilidade e seu caráter no ‘ergon' (função) e não apenas na energia própria.
O jogo não se prende ao jogador (ator) ou ao espectador com um vínculo de
necessidade, mas se mostra autônomo quando direciona ambos para dentro de si,
ele é quem configura a obra. Ator e espectador estão, sim, está vinculados à repre-
sentação do jogo tanto quanto à percepção do jogo como uma obra de arte. Como a
obra em si não é determinada pelos jogadores ou pelos espectadores, ela indepen-
de de quem a joga ou de quem a assiste. Sendo assim, a obra aparece como con-
ceito de transformação, pois ela transforma as realidades dos espectadores e dos
atores para se mostrar em sua autonomia com o jogo que contém seu vaivém inde-
pendente e interminável.
!58
Só podemos captar a importância do mundo da arte se considerarmos seria-
mente o conceito de transformação e percebermos que não estamos falando de uma
modificação (em algo que já é, adquirindo ou substituindo assim uma característica e
se mantendo em sua essência) , e sim de uma transformação que permanece como 8
anulação do ser anterior e que se dá pelo ambiente da obra de arte. Ou seja, a obra
de arte acaba anulando o ser do ator e do espectador para impor-se com seu próprio
universo de possibilidades: “Assim, a transformação em configuração significa que
aquilo que era antes não é mais. Mas também que o que é, que representa no jogo
da arte, é o verdadeiro que subsiste” (GADAMER, 2015, p. 166).
Do ponto de vista do jogador, ele não é, nem quer ser, reconhecido e, utiliza o
ator do jogo como seu disfarce, permitindo que sua identificação seja a que a obra
oferece; ele abdica do seu eu subjetivo e assume o mundo do jogo disfarçando-se.
Ele quer ser um outro que não a si para que não o reconheçam, pois somente assim
poderá assumir a liberdade da obra sem invadir o jogo com suas aflições e seus
comportamentos subjetivos. Quem joga o jogo acaba negando a continuidade de si
mesmo dentro do jogo, há uma sonegação de si para assumir um papel no jogo.
Nesse sentido, novamente, é que o jogo se mostra como uma transformação, pois a
identidade daquele que joga não continua existindo para ninguém.
A transformação em configuração acaba se dando em outro mundo, fechado
para si e se constitui como o mundo do jogo que exclui qualquer outro mundo. Não é
um mundo do jogo que se dá em outro ambiente, mas apenas como o único mundo
que existe não é medido por qualquer outra possibilidade de mundo, não se mede
com o que está fora de si mesmo. A configuração se torna içada acima de qualquer
comparação, inclusive por falar uma verdade superior, não se pergunta se tudo é
real.
É neste sentido que Platão fala da comédia e da tragédia, sem fazer uma dis-
tinção da vida e do palco (PLATÃO apud GADAMER, 2015, p. 189). Assim, essa dis-
tinção é anulada quando alguém percebe o verdadeiro sentido do jogo. "A alegria
ante o espetáculo que se oferece é em ambos os casos a alegria do
conhecimento” (GADAMER, 2015, p. 167). Para Platão, a vida e a imitação através
da comédia ou da tragédia não têm uma distinção, ambas falam sobre a vida, por-
tanto, o jogar, segundo o conceito de Gadamer, permite anular sentimentos desi-
Alloiois: Pertencente ao âmbito das qualidades / acidente da substância8
!59
guais entre o universo da obra e o Eu subjetivo do existencial efetivo do leitor. Há
uma fusão de horizontes quanto ao que é o real do mundo prático e o que é o real
do mundo da obra. Para Platão, tanto a vida cotidiana quanto a vida expressa na
tragédia ou comédia tratam de um só horizonte: o conhecimento, portanto, não pode
haver distinção. Segundo o próprio Cortázar, as obras de literatura têm de fato uma
expressão em nossa realidade física, pois se interpolam ao serem criadas, e falam
de uma mesma coisa, o conhecimento, retomando Platão.
Perante a interação e interfusão da realidade histórica com nossa produção literária, meu dever enquanto latino-americano escritor e o de por o acento nesses pontos de contato, tantas vezes deixa-dos de lado por aqueles que seguem pensando que um romance, um conto ou um poema, pelo mero fato de terem sido impressos e incorporados às bibliotecas, valem pelo que são e somente assim como obra de criação imaginativa (CORTÁZAR, 2018, p. 300).
A transformação é a transformação no verdadeiro e acaba alcançando seu
sentido pleno com a percepção daquele que joga e anula o eu. Aqui, o jogo da arte
se mostra como verdade que resgata e traz seu próprio telos, todos que jogam e en-
tendem o jogo acabam reconhecendo no mundo do jogo que assim são as coisas.
Temos, então, o modo de ser independente dessa transformação que, a partir de si,
poderá identificar-se como verdade, assim, o que chamamos de realidade acaba
aparecendo como algo não transformado e terá no jogo seu resgate pela arte, a arte
como subsunção da realidade na verdade, a antiga teoria de mimesis como base de
todas as artes se mostra claramente como jogo, pois na dança é que o divino se
apresenta. "Também a antiga teoria da arte, que propõe o conceito de mimesis, da
imitação, como a base de todas as artes, partiu aqui claramente do jogo que, como
dança, é a representação do divino” (KOLLER apud GADAMER, 2015, p. 168).
Há de se perceber que no próprio conceito de mimesis encontra-se em um
sentido cognitivo , portanto, o representado encontra-se aí com um relançar originá-
rio. A imitação é a presentificação de algo que alguém conhece e de como o conhe-
ce.
É imitando que a criança começa a brincar, confirma assim o que conhece confirmando a si mesma. Também o prazer que as crian-ças encontram em disfarçar, a respeito do que já se manifesta em Aristóteles, não é na intenção de se esconder, uma simulação a fim de que se adivinhe e se reconheça quem está por trás disso; é antes uma representação que só deixa subsistir o representado.
!60
Por nada nesse mundo a criança vai querer ser adivinhada por trás de se disfarce. O que ela representa deve ser, e, se algo deve ser adivinhado, é exatamente isso. Terá de ser reconhecido o que isto “é” (ARISTÓTELES apud GADAMER, 2015, p. 169).
Aristóteles diz mais sobre a mimesis caracterizando-a como a capacidade da
representação artística de transformar até mesmo o que é desagradável em agradá-
vel, ou seja, é na transformação que a arte mostra seu mundo e torna o aspecto
cognitivo dela como verdade diz Kant: a arte como bela representação de uma coisa
porque a arte sabe fazer parecer belo mesmo o feio. “Sabemos que já Aristóteles
destaca a representação artística que faz com que mesmo o desagradável pareça
agradável, e Kant define a arte como a bela representação de uma coisa porque a
arte sabe fazer parecer belo mesmo o que é feio” (GADAMER, 2015, p. 169).
Para que fique claro, não se está falando da execução do artista ao fazer a
obra e sim da característica específica da obra em si de fazer-se mostrar a partir de
seu próprio universo. Assim, não é o artificio e a habilidade do artista que alteram a
beleza da obra e sim a verdade que ela traz consigo quando reconhecemos nela a
verdade e nos percebemos nela.
Claro que não é simplesmente o reconhecimento de algo já conhecido, é um
conhecer no identificar algo além do que nos é conhecido. O reconhecido causa
uma iluminação do que se conhece, apresentando algo além daquilo que já conhe-
cíamos; apreendemos a essência daquilo que já nos era conhecido, longe de suas
causalidades . Por exemplo, o uso da palavra ejaculação que para nosso mundo 9
empírico significa algo derivado de um estímulo sexual, acaba aparecendo no ro-
mance de Cortázar como uma sensação musical para a qual a metáfora 'a ejacula-
ção de um sobreagudo' faz sentido se percebermos o prazer que o personagem sen-
te ao ouvir um bom jazz: “[…] e então a ejaculação de um sobreagudo, resvalando e
caindo como um foguete na noite sexual; a mão de Ronald acariciava o pescoço de
Babs […]” (CORTÁZAR, 2015, p. 66) .O sobreagudo soa e exerce um prazer sexual
dentro do ambiente do jazz. Quanto a isso Arrigucci diz:
Esse feixe de procedimentos de construção e recursos de lingua-gem reforça a ambiguidade da obra cortazariana, na medida em que introduz a hesitação, a dúvida, no nível de própria técnica de composição. ampliando os horizontes da significação e envolven-
anamnesis de Platão.9
!61
do, cada vez mais o leitor no processo de estruturação do texto (ARRIGUCCI, 1973, p. 25).
Cortázar utiliza as palavras ampliando seus significados e criando novas possi-
bilidades de uso delas; ele faz uma espécie de ressignificação das palavras como
apresentação do mundo próprio de seu romance.
Efetivam a plurissignificação programada na poética cortazariana como “um fim explicito”, multiplicando as perspectivas de compre-ensão da obra, tonando-a uma rede inesgotável de relações. Au-mentam, em ultima análise, a carga de significados sob um mes-mo significante, que é o texto (ARRIGUCCI, 1973, p. 25).
A plurissignificação utilizada por Cortázar faz com que a utilização das pala-
vras aumente a carga de significados da própria obra efetivando, assim, o que o
próprio autor logo de início propôs: "À sua maneira, este é muitos livros, mas é, so-
bretudo, dois livros. O leitor fica convidado a escolher uma das seguintes possibili-
dades […]” (CORTÁZAR, 2015, p. 5) como possibilidades de leitura, como possibili-
dade de ser muitos livros.
A imitação e representação não estão apenas se apresentando como cópia,
mas trazendo o ser verdadeiro daquilo que se apresenta. Em seu modelo originário,
se pensarmos em Aquiles, de Homero, poderemos perceber que a representação vai
além de uma narrativa sobre um homem, ela representa a essência daquele guerrei-
ro com todas as suas vicissitudes e possibilidades. Aquiles se apresenta como o
verdadeiro guerreiro grego em sua completude, não expressa apenas o homem que
é, mas traz consigo a verdadeira essência do que deve ser um guerreiro grego.
O representar não se satisfaz simplesmente como uma necessidade lúdica,
mas com um entrar no universo do romance, portanto, são possíveis recriações den-
tro de uma mesma obra haja vista que sua execução necessita de uma renúncia à
fixidez. Engessar a obra com apenas uma possibilidade de leitura é não ter compre-
endido a verdadeira tarefa de participação e não ter entendido a própria obra. Inter-
pretar se torna recriar (Nachschaffen), não no sentido de escolha de quem represen-
ta mas como seguir um sentido que encontra-se ali na obra, cada representação en-
contra na obra o seu próprio modo de ser.
Um bom exemplo dessa construção de novas realidades se dá nas narrativas
em que Cortázar recria os objetos de uso comum dando a eles outro uso: ”Recorda-
va também a pequena colher de chá, uma colher-ratoeira onde as pequenas folhas
!62
pretas se colavam, como se estivessem vivas, dentro da água fervente” (CORTÁ-
ZAR, 2015, p. 16). Como se a colher não fosse mais um simples utensílio de revol-
ver alimentos, ela age agora como uma colher-ratoeira que apreende as folhas ao
entrar em contato com elas e percebe-las, inclusive, a palavra colher-ratoeira é cria-
da como se realmente existisse uma colher que é ratoeira, que aprisiona.
!63
4 Leitura Linear
Neste capítulo, a obra e sua compreensão serão divididas de duas formas:
por um lado, a obra O Jogo da Amarelinha pode ser lida capítulo após capítulo e as-
sim captamos uma história que acontece de forma mais tradicional, uma leitura line-
ar, guiada pela adição linear e crescente dos capítulos. Por outro lado, podemos ler
o livro seguindo uma organização não crescente, uma leitura não linear, de modo
que as páginas a serem lidas seguem uma sequência pré-estabelecida por uma es-
pécie de manual dado no início do livro e que acaba transformando a primeira histó-
ria chamada de 'Leitura não-linear'. Ambas as leituras trazem elementos que possibi-
litam uma espécie de jogo e, por meio delas, é que pretendemos revelar um univer-
so próprio da obra de arte e mostrar que, mesmo em se tratando do mesmo livro, o
jogo proposto pelo autor e pela leitura, segundo os moldes do conceito de jogo de
Gadamer, podem apresentar diferentes verdades. Em um primeiro momento há um tabuleiro de direções para orientar quais as
possibilidades de jogo existem na leitura da obra. Nesse primeiro livro, a orientação
é de que se leia o romance de forma corrente (corrente, linear e crescente).
Tabuleiro de Direção À sua maneira, este livro é muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros. O leitor fica convidado a escolher uma das seguintes possi-bilidades: O primeiro livro deixa-se ler na forma corrente e termina no capítu-lo 56, ao término do qual aparecem três vistosas estrelinhas que equivalem à palavra Fim. Assim, o leitor prescindirá sem remorsos do que virá depois (CORTÁZAR, 2015, p. 5).
A instrução para a outra forma de leitura estará na segunda parte desta dis-
sertação, cujo aspecto de leitura chamamos de Leitura não-linear (não corrente) e
em que mencionamos o segundo livro que adota outra ordem dos capítulos e,, por-
tanto pode ser considerado um outro livro, que Cortázar chama de “De outros lados
(Capítulos Prescindíveis)” (CORTÁZAR, 2015, p. 403).
4.1 Leitura prosaica (romanceada) linear
Ao ler a obra de forma prosaica, acabamos caindo no sentido direto do que se
lê dos personagens, como se fosse um começo de história que surgiria neste exato
!64
momento, ou seja, sem acontecimentos que precedem este primeiro capítulo, por-
tanto, acompanhamos um início de capítulo que questiona sobre a possibilidade de
encontro com a personagem Maga e passa a descrever os locais por onde a perso-
nagem costuma transitar. Diferentes ruas e pontes são descritas como possibilida-
des desse encontro, ao final, há uma descrição de Maga e de sua silhueta que, às
vezes, se encontra caminhando pelos locais, às vezes parada e debruçada sobre
uma ponte. Aqui, podemos ver uma descrição direta sobre o encontro e o local em
que estão se passando as narrativas, nos aparecem como um local que desconhe-
cemos, mas que realmente poderia existir, pois se trata do mundo específico do ro-
mance cuja existência pode pertencer somente e ele.
Já na descrição desse encontro, é possível perceber que, apesar de ser qua-
se combinado, ambos os personagens agem como se fosse por acaso, inclusive, é
assim descrito; como uma supresa para Maga, que sorri ao encontrar o outro perso-
nagem. Marcar um encontro preciso segundo o narrador é o mesmo que cair em
uma espécie de mesmice: “[...] as pessoas que marcam encontros exatos são as
mesmas que precisam de papel com linhas para escrever ou aquelas que começam
a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta dentífrícia” (CORTÁZAR, 2015, p. 11),
como se o narrador não gostasse do que é cotidiano, muito menos das ciclicidades
da vida. Apesar de a descrição dizer que o narrador não havia encontrado Maga nos
locais descritos, ambos sabem exatamente onde cada um mora, mas preferiam en-
contrar-se de forma aleatória, sem definir exatamente onde. Única definição referen-
te à localidade é a cidade de Paris, portanto, talvez se encontrem em um café, talvez
em um cineclube.
Horácio Oliveira, personagem que narra, está ansioso por encontrar Maga e
acaba falando sobre rostos parecidos com o dela, a ponto de identificar uma pessoa
de semblante parecido carregando um guarda-chuva, que o leva a refletir sobre uma
ocasião em que Maga carregava um velho guarda-chuva que havia encontrado em
um parque. Posteriormente, acabou estragando por total em uma última tentativa de
proteger ambos da chuva em um outro parque que frequentavam. O guarda-chuva
acaba sendo enrolado e arremessado do alto de um barranco próximo aos trilhos de
trem e, segundo Oliveira, afunda nas profundezas do barranco.
!65
O narrador conta que foi a um local chamado Port dês Arts e de lá pretendia
beber um vinho em um pequeno bar próximo do local. Nesse bar havia sempre uma
senhora, Madame Léonie, que lia a palma de sua mão e falava sobre viagens e sur-
presas por acontecer. Indaga-se também que não havia levado Maga para se con-
sultar com a vidente, pois tinha medo que, de tanta afinidade que tinha com Maga,
pudesse-lhe ser revelado algo sobre ele mesmo que ainda não tivesse se dado con-
ta. “Nunca levei você para Mme. Léonie ler a palma da sua mão, pois na certa tive
medo de que ela lesse na sua mão alguma verdade sobre mim, já que você sempre
foi um espelho terrível, uma espantosa máquina de reprodução” (CORTÁZAR, 2015,
p. 13). Para Oliveira, Maga teria a capacidade de conhecer coisas nele que ele
mesmo não teria se dado conta. Ela poderia revelar um Oliveira que o próprio Olivei-
ra tinha medo de conhecer, tanto quanto aspectos de seu consciente quanto de seu
inconsciente.
Um dos maiores problemas do seres humanos é a solidão, pois faz com que
eles tenham de encarar a si. Nessa narrativa, Maga seria a solidão de Oliveira en-
carnada, presente e que seria capaz de fazê-lo entrar em contato consigo mesmo.
Existe uma metáfora bem interessante a respeito desse comportamento humano
que busca companhia e, ao mesmo tempo, as repele: é o dilema do porco-espinho,
de Schopenhauer. Quando estamos solitários, procuramos outras pessoas que nos
interessem e que nos tirem da solidão. Mas conviver com outras pessoas é sempre
muito difícil, pois elas são sempre muito complicadas, têm manias, limitam nossa li-
berdade. Portanto, essa gangorra de busca por companhia, ao mesmo tempo que a
repele, expressa o que há de mais inconsciente em nós quanto à solidão. Esta nos
força a encarar a nós mesmos, nos força a ficar diante de nossos anseios, erros e
acertos. Para Oliveira, Maga pode representar a solidão que o fazia encarar a si
como alguém desprovido de capacidade contemplativa, sem capacidade de pensar.
Como um surrealista, que rompe as barreira do racionalismo e busca, como André
Breton propôs, uma estética que rompa com a primazia da compreensão racional.
Oliveira também era incapaz de contemplar uma obra de arte sem de antemão
conter algum tipo de teoria que o fizesse entender o que iria ver.
Você parte do princípio — murmurou Maga. — Que coisa compli-cada! Você é como uma testemunha, como aquelas pessoas que vão ao museu e olham os quadros. Quero dizer que os quadros estão aí e você no museu, perto e longe ao mesmo tempo. Eu sou
!66
um quadro, Rocamadour e um quadro. Etienne e um quadro, este quarto e um quadro. Você pensa que está neste quarto, mas não está. Você está olhando o quarto, não está no quarto (CORTÁ-ZAR, 2015, p. 30).
Oliveira percebia as obras de arte como objetos rígidos, duros que não trazi-
am reflexões além daquilo que estavam expressando. Quadros que são somente
quadros, pessoas que são somente pessoas, já Maga, apesar de certa ingenuidade
intelectual, não padecia do simplismo de Oliveira quanto ao mundo, mas de explica-
ções científicas sobre determinados assuntos, embora tivesse a capacidade de per-
ceber o que Oliveira não percebia. O próprio Oliveira diz que Maga era sua testemu-
nha apesar de ela mesma não se dar conta disso: “[…]me incomodava o fato de
Maga não ter consciência de ser minha testemunha e de, pelo contrário, estar con-
vencida da minha soberana autarquia [...]“ (CORTÁZAR, 2015, p. 23). Maga supria
um sentido falho de Oliveira que, por algum tipo de certeza, não conseguia se abrir
para os fenômenos que lhe apareciam sem teorizar anteriormente; era incapaz de
perceber a si como diferente do que ele mesmo se definia.
O narrador fala sobre ter de fechar os olhos para poder ver Maga, e como era
preciso atentar ao que ele chama de mundo-Maga, que se completa em suas confu-
sões, em sua falta de jeito, mas que também leva assinaturas de Klee, circo Miró, de
modo que Maga se movia como peças de xadrez de acordo com as necessidades.
“[…] como um cavalo de xadrez que se movesse como uma torre que se movesse
como um bispo” (CORTÁZAR, 2015, p. 14).
[...] para vê-la como eu queria, era necessário começar por fechar os olhos e, então, surgiam coisas, primeiro como estrelas amare-las (movendo-se como geléia de pêssego), depois como cachoei-ras vermelhas de jovialidade e das horas, ingresso paulatino num mundo-Maga que era falta de jeito e confusão […] (CORTÁZAR, 2015, p. 14)
Maga reunia um monte de sentidos que Oliveira só conseguia entender pen-
sando em outros objetos de seu conhecimento. Porém, sozinho, não era capaz de
fazer o esse exercício de entendimento; ele era Oliveira pura e simplesmente, de
forma que: “¡Se lo digo yo, carajo!” 10
Fazendo menção ao trecho no qual há uma reunião familiar e Oliveira demonstra que a tradição 10
familiar não o permitia ir além daquilo que todos parentes tinham como certeza, a onisciência dos pa-rentes ratificando as certezas.
!67
Maga e Oliveira passeiam por Paris e param em determinados locais para
apreciar as paisagens. Quando chegam a um terreno baldio, Maga começa a canta-
rolar uma melopeia sem sentido que faz com que o narrador passe a lembrar de 11
seu passado. Suas recordações o levam a itens que no momento em que existiram
fisicamente não fizeram sentido algum, mas que, ao serem lembrados, começavam
a mostrar uma realidade esquecida. Sua memória acaba trazendo elementos que
ele não consegue quantificar, mas percebe que existiram de fato e que, repensando-
os, é possível achar algum tipo de nexo no presente.
Maga interrompe as divagações de Oliveira acerca de sua memória para que
ambos possam novamente falar sobra a patafísica. Os dois passam a pensar sobre
os itens quotidianos com os quais se deparam ao andar pelas ruas de Paris, falam
sobre suas manias, como a de Maga ao andar pelas ruas procurando qualquer obje-
to vermelho. Ao encontrar um objeto vermelho, algo terrível que deveria acontecer
será evitado, novamente tratando da fatalidade a qual Cortázar tanto almeja, a fim
de demonstrar o fantástico reestruturando a obra, dando uma nova verdade para
aquilo que normalmente não entenderíamos com um conceito físico.
Uma das formas em que o fantástico tendeu sempre a se manifes-tar na literatura é a noção de fatalidade; o que alguns chamam de fatalidade e outros chamariam de destino, essa noção que vem desde a memória mais ancestral dos homens de como certos pro-cessos se cumprem fatalmente, irremediavelmente apesar de to-dos os esforços que possa fazer aquele que está incluído neste ciclo. O gregos falavam de ananké, palavra que os românticos franceses, principalmente Victor Hugo, recolheram e usaram muito (CORTÁZAR, 2018, p. 76).
Oliveira também alude ao fantástico de Cortázar, quando se porta como um fa-
talista que está sempre à espera de algo a acontecer; está sempre interpretando
certos sinais muitas vezes desprezíveis, mas que, para ele fazem sentido em seu
mundo à parte. Com esse tipo de atitude dos personagens, Cortázar invoca o fantás-
tico no romance, uma fusão da realidade exterior à obra e uma realidade intrínseca
da obra. Cortázar também utiliza acontecimentos que são capazes de retirar a dura-
ção do tempo corriqueiro para impor uma temporalidade para além do tempo crono-
lógico e que pode perdurar por páginas e, ao mesmo tempo, expressar um minuto
de conversa no mundo da obra.
Uma dentre as seis partes que compõe a tragédia (refere-se à música).11
!68
Há tempos diferentes, embora paralelos. Neste sentido um dos tempos da chamada Idade Média pode coincidir com um dos tem-pos da chamada Idade Moderna. E esse é o tempo aprendido e habitado por pintores e escritores que recusam apoiar-se na cir-cunstância, ser ‘modernos’ no sentido em que o entendem os con-temporâneos, o que não significa que optem por ser anacrônicos; simplesmente estão à margem do tempo superficial de sua época […] (CORTÁZAR, 2015, p. 546)
O fantástico do qual Cortázar faz uso pode ser perfeitamente entendido quando
lemos uma obra de Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray. Nessa obra o tempo cro-
nológico do personagem principal é paralisado e incorporado apenas ao seu retrato
pintado.
Oscar Wilde escreveu um romance muito lido então, e que ainda se lê, O retrato de Dorian Gray. Talvez enquanto romance seja ruim; sempre me fascinou, mas talvez objetivamente seja ruim; não sei, é um pouco melodramático. Conta a história de um jovem de quem fazem um retrato, uma pintura a óleo que o mostra em toda sua beleza adolescente. Quando jovem, guarda esse retrato e, depois, algumas circunstancias da vida voa fazendo com que mude de comportamento, e ele, que era um homem bom e gene-roso, toma um caminho que o leva aos poucos à maldade, ao ví-cio. Começa a viver uma vida sem escrúpulos, uma vida da qual nada muito preciso se diz, mas que se pode imaginar como uma vida profundamente viciosa. Um dia, por acaso, entra no lugar onde estava pendurado seu retrato e vê que retrato havia muda-do. Olha o retrato e já não se reconhece quando se olha no espe-lho. O retrato envelheceu, tem marcas ao redor dos olhos: o rosto começa a refletir um pouco a vida que ele está levando, mas em seu rosto não se reflete nada (CORTÁZAR. 2018, p. 87).
A paralização do tempo cronológico de Dorian Gray acarreta na percepção
das mudanças de forma explícita, quando Dorian se vê envelhecido e desgastado
em uma pintura e diferente de suas características corporais, que não refletem o
mesmo que a pintura. Esse fantástico é o empregado por Cortázar, que joga com o
mesmo tipo de possibilidade, um mundo à parte. Ele utiliza-se de um personagem
que segue conceitos da existência real (Oliveira) e um personagem que não se ape-
ga a conceitos definitivos (Maga). Ou seja, o próprio questionamento sobre diferen-
tes realidades é fundido de maneira que o que é organizado e corriqueiro não seja
apenas uma possibilidade dentro da obra.
Maga traz consigo uma desordem que, sob o olhar do narrador, é algo que
lhe faz perceber como o mundo organizado obedece a certos conceitos quase que
!69
dialéticos. Maga vivia de forma que não era preciso uma antecipação ou preparação
dos acontecimentos: “Cheguei a aceitar a desordem de Maga como condição natural
de cada instante” (CORTÁZAR, 2015, p. 21), diz Oliveira. Como se estar no mundo-
Maga pudesse trazer novas perspectivas e novos olhares sobre um mundo já dado;
seguir a desordem de Maga seria participar de um jogo no qual os conceitos do
mundo não teriam nenhum efeito de verdade, pois como em uma dialética, sua antí-
tese acaba se provando igualmente verdadeira.
Maga surge em certa parte do romance como a possibilidade do novo, de sair
de um comportamento definido para ser um novo mundo, o mundo-Maga que irrom-
pe como uma espécie de antítese de Oliveira e se faz verdade pela sua subjetivida-
de no jogo da obra e pelo seu embasamento teórico do mundo real. O ressignificar
das palavras aparece como uma possibilidade, pois como diz o personagem Olivei-
ra, por exemplo, a própria palavra triângulo não faz mais sentido, já que poderia mui-
to bem significar qualquer outra coisa para além de uma criação da geometria. A
obra tem seu próprio modo de ser, portanto, as palavras relacionadas à práxis da
realidade física não são mais obrigatórias à obra; para Oliveira, a palavra triângulo
também pode ser ressignificada, dentro do romance, de forma que não necessite do
significante da realidade física. A hermenêutica utilizada para leitura de textos teóri-
cos ou textos mais exatos não é mais necessária aqui.
Oliveira foi criado por uma família que considerava que sempre continham a
verdade, ela partia de seus familiares; o que fosse dito pelos seus tios só poderia ser
a verdade. Mesmo assim, Oliveira tem a consciência de que tudo aquilo era imposto
a ele e que a ratificação das verdades vinham da força com a qual os tios as impu-
nham; seus tios estavam com o pensamento solidificado pelas certezas. O trecho a
seguir indica a potência da qual Oliveira refere-se quanto a certeza de seu tio:
A los diez años, una tarde de tíos y pontificantes homilías históri-co-políticas a la sombra de unos paraísos, había manifestado tí-midamente su primera reacción contra el tan hispanoítalo-argenti-no «¡Se lo digo yo!», acompañado de un puñetazo rotundo que debía servir de ratificación iracunda. Glielo dico io! ¡Se lo digo yo, carajo! Ese yo, había alcanzado a pensar Oliveira, ¿qué valor pro-batorio tenía? El yo de los grandes, ¿qué omnisciencia conjuga-ba? (CORTÁZAR, 1963, p. 18)
!70
4.1.1 Elementos psicológicos da leitura linear
O nome da obra, Rayuela (O jogo da amarelinha), faz menção a um jogo in-
fantil cujo objetivo é alcançar o céu, o desejo que move os participantes é a comple-
tude do jogo pela chegada ao céu, porém, este céu pode ser alcançado de diversas
formas, pois o jogo depende da habilidade do jogador, ao mesmo tempo que depen-
de de suas próprias características como jogo da amarelinha. Com relação à obra de
Cortázar, a leitura vai montando o livro conforme o leitor entra no espaço lúdico que
se forma na construção do romance.
Sendo assim, passear pelas ruas descritas nos aproxima da vivência dos per-
sonagens e possibilita um início de participação do jogo proposto pela obra. As nar-
rativas referentes às memórias dos personagens acabam fazendo-nos perceber que
há algum tipo de relação entre os personagens, pois há recordações de passeios
anteriores que remetem a uma proximidade antiga e duradoura. Ambos falam sobre
os objetos que conhecem juntos, momentos em que estão juntos e as experiências
que têm um com o outro. Na passagem abaixo, podemos perceber que Oliveira tem
o hábito de trazer folhas secas para casa e colocá-las no abajur para expor as ner-
vuras da planta através da luz transpassando a folha.
Por tudo isso, trago as folhas secas para o quarto e prendo-as no abajur. Ossip veio me visitar, ficou duas horas e nem olhou para o abajur. No outro dia, foi Etienne quem apareceu, sempre com a boina na mão, Dis donc, c’est épatant, ça!, e levanta o abajur, examina as folhas, entusiasma-se, Durero, as nervuras et cetera. Uma mesma situação e duas versões…. Fico pensando em todas as folhas que serei eu a não ver, o coletar de folhas secas, em tanta coisa que haverá no ar e que estes olhos não veem, pobres morcegos de romances e cinemas e flores dissecadas. Por todos lados haverá abajures, haverá filhas secas (CORTÁZAR, 2015, p. 140).
Em outro trecho, Maga faz a exposição das nervuras da folha com o processo
manual de retirada da polpa, o que demonstra que há uma relação entre Maga reti-
rando a polpa para expor as nervuras e Oliveira colocando as folhas no abajur a fim
de obter o mesmo resultado. Isso os aproxima de maneira a percebermos que as
experiências e conhecimentos de ambos vêm de um mesmo objeto, a folha e a ex-
posição das nervuras. “Depois, arrancava-lhe a polpa com grande cuidado e deixava
a descoberto as nervuras, fazendo com que um delicado fantasma verde se fosse
!71
desenhando na pele de sua mão.” (CORTÁZAR, 2015, p. 33). Essas experiências
nos revelam que Maga se refere a um objeto de uso comum como se fosse seu
companheiro e não mais um objeto simples. Retomemos o guarda-chuva, ela faz
uma desobjetificação do guarda-chuva para transformá-lo em um novo personagem
que a acompanha em diversos momentos juntamente com Oliveira. É possível iden-
tificar isso na cena que descreve quando o guarda-chuva é destruído pelas intempé-
ries e Maga o percebe como algo que contém uma vontade e uma identidade pró-
pria, sendo necessário não o abandonar como a qualquer outro objeto simples; ele
teria que morrer dignamente. Assim, esse objeto acaba aparecendo como um ser
que participa da vida da personagem, um guarda-chuva que, apesar de ser algo ina-
nimado e estar destruído, havia agido da melhor forma possível em sua função
como guarda-Maga, não mais apenas como um simples guarda-chuva. Assim, não
poderia ser tratado como um ignóbil objeto de uso e descartado como tal, ele deve-
ria ter uma morte memorável sendo jogado do barranco próximo a linha dos trens.
Por causa dessa relação de Maga com o mundo, para Oliveira, falar dela é
falar do que ele vê em Maga e de sua memória sobre Maga. Ele fala sobre um mun-
do onde Maga é quem constrói sua identidade para ele. As preferências dessa per-
sonagem acabam gerando um mundo que é só dela, um mundo-Maga que se cons-
titui também pelas memórias que todos tem dela. As viagens, os passeios e os lo-
cais que são referidos pelo narrador como locais de passagem e de experiência de
Maga refere-se inclusive a uma maneira de ela se locomover pelas ruas imitando os
movimentos num jogo de xadrez: Maga anda por Paris como capaz de mover-se
como todas as peças desse jogo, às vezes como o cavalo (em L), às vezes como a
torre (linha reta). Ela se torna uma peça do xadrez que nem sequer existe (ela incor-
pora os movimentos de todas as peças do xadrez) e isso a faz demonstrar inúmeras
possibilidades de conhecer Paris e a ela mesma. Os ambientes que Maga percorria
eram sempre os mesmos, mas eram percorridos de diferentes formas, com diferen-
tes movimentos para fazer o seu jogo permanecer conhecido e, mesmo assim, des-
conhecido, pois dentro do jogar as coisas podiam se transformar de acordo com a
personagem e seus movimentos.
Outro trecho igualmente relevante para nossas questões aqui é o evento em
que o vagalume acende sua barriga. Coloca-se sobre o inseto uma perspectiva hu-
mana que demonstra uma personalidade, como se ele tivesse algum prazer ao
!72
acender-se e perceber-se em um mundo onde os homens é que enumeram as bele-
zas. A narrativa coloca a possibilidade de o vagalume não ser apenas um inseto que
acende-se para copular de forma instintiva e sem racionalidade ou pulsão; esse in-
seto poderia ser um sujeito que, ao entender-se como indivíduo, teria satisfação no
ato de acender sua barriga, pois isso o elevaria a um nível de beleza que os demais
não seriam capazes de ter. Sendo assim é que segundo Oliveira, seria necessário
assumir o vagalume como um inseto consciente para poder entender que o vagalu-
me sentiria um previlégio ao acender sua barriga.
Não creio que o vaga-lume extraia grande petulância do fato in-discutível de ser uma das maravilhas mais fenomenais deste cir-co e, apesar disso, bastará supor que ele tem uma consciência para compreender que, de cada vez que sua barriguinha se acen-de, esse bicho de luz deve sentir qualquer coisa semelhante a uma cócega de previlégio (CORTÁZAR, 2015, p. 16).
Porém, o vagalume, para Oliveira, seria apenas luminescente e não utilizaria
seu brilho para qualquer outro tipo de interação a não ser chamar a atenção de seu
oposto, faz isso sem consequências ou exigências psicológicas apesar de ao nosso
olhar poder parecer um fenômeno divino.
Ao relacionar a desordem de Maga relativa aos comportamentos naturais dos
demais seres humanos o interlocutor está tentando mostrar que a maneira de jogar
de Maga é em sua maioria liberta de preceitos, Maga não obedece a uma lógica
comportamental, ela parece participar de um movimento surrealista que a faz ir atrás
de suas emoções com a liberdade do próprio impulso existencial dela desligando-se
em muitos momentos das teorias. Oliveira então a descreve à partir das impressões
que Maga lhe deixa:
[...] para vê-la como eu queria, era necessário começar por fechar os olhos e, então, surgiam coisas, primeiro como estrelas amare-las (movendo-se como freira de pêssego), depois como cachoei-ras vermelhas de jovialidade e das horas, ingresso paulatino num mundo-Maga que era falta de jeito e confusão [...] (CORTÁZAR, 2015, p. 14)
Perceber o mundo não deveria ter uma regra a seguir. Somos lançados ao
mundo livres e assim deveríamos viver nele, porque não podemos ouvir “[…] melo-
dias de Schubert e prelúdios de Bach, ou tolerando Porgy and Bess com bifes gre-
lhados e pepinos salgados” (CORTÁZAR, 2015, p. 21), já determinando qual a fina-
!73
lidade daquilo, podemos fazer o mesmo que Maga e assumir diferentes maneiras de
perceber um mesmo concerto.
Por que há uma necessidade de se fazer o que é esperado por todos, por que
ouvir música clássica e logo em seguida ouvir um jazz teria algum problema? Fugir
da naturalidade comportamental não é ser louco, mas encarar a vida como um gran-
de jogo que se apresenta conforme vai se desnudando. Parece-nos que para falar
em desordem prescinde-se de uma ordem, que está imposta por pré-conceitos e re-
gras subjetivas de modo que não fazer como se espera possa parecer algo desor-
denado.
[…] morto de vontade de se parecer com ela, ocorria-me, como uma espécie de arroto mental, que todo esse abc da minha vida era uma penosa estupidez por se limitar a um mero movimento dialético, na eleição de uma má conduta em vez de uma conduta, de uma indecência módica em vez de uma decência gregária (CORTÁZAR, 2015, p. 21).
Fica evidente aqui que há uma crítica às regras como limitadoras de nossas
experiências subjetivas: “[…] me custava muito menos pensar do que ser
[…]” (CORTÁZAR, 2015, p. 22). Olivera constata que para ele é mais fácil entender
a vida a partir de conceitos e métodos; é mais fácil para ele assumir uma realidade
dada do que investigar e descobrir as verdades por detrás dos objetos e aconteci-
mentos do mundo, algo já retratado por autores como Étienne de La Boetie:
Digno de espanto, se bem que vulgaríssimo, e tão doloroso quan-to impressionante, é ver milhões de homens a servir, miseravel-mente curvados ao peso do jugo, esmagados não por uma força muito grande, mas aparentemente dominados e encantados ape-nas pelo nome de um só homem cujo poder não deveria assustá-los, visto que é um só, e cujas qualidades não deveriam prezar porque os trata desumana e cruelmente. Tal é a fraqueza humana: temos freqüentemente de nos curvar perante a força, somos obri-gados a contemporizar, não podemos ser sempre os mais fortes (LA BOÉTIE, 2006, p. 5-6).
La Boétie faz uma crítica à sociedade e diz que tendemos a seguir uma or-
dem ao invés de pensarmos nas possibilidades. Sendo assim, percebemos que os
costumes nas regras impõem-se como decência e como se fizessem parte de uma
condição humana. A passagem a seguir é o típico exemplo do comportamento nar-
rado por Boétie, no qual somos os traidores de nós mesmos ao permitirmos essa
subserviência, pois até mesmo os animais não vivem sem sua liberdade e muitos
!74
morrem se encurralados. Se os animais fossem capazes de raciocinar eles mesmos
fariam sua própria regra de liberdade permanente, diferente de nós que tendemos a
acatar mais do que encontrar por conta própria. ”Morelli pensava que o parafuso de-
via ser outra coisa, um deus ou algo assim. Solução demasiadamente fácil. Talvez o
erro tenha sido aceitar que esse objeto fosse um parafuso, tão somente por ter a
forma de um parafuso” (CORTÁZAR. 2015, p. 436).
Portanto, a crítica de Cortázar com as colocações dos personagens mais intelectua-
lizados parece ser exatamente no sentido de subserviência dos personagens às teo-
rias e aos conformismos. Sendo assim, para Oliveira há um tipo de liberdade no
mundo-Maga que acaba fazendo com que ela o ensine por mais que ele seja visto
por Maga como um tutor, Oliveira sente que Maga possui os sentidos muito mais
preparados para lidar com os fenômenos do que ele mesmo. “Me incomodava o fato
de a Maga não ter consciência de ser minha testemunha e de, pelo contrário, estar
convencida da minha soberana autarquia […]” (CORTÁZAR, 2015, p. 22)
Mesmo que Maga seja narrada como desordenada, menos apta aos conhe-
cimentos catedráticos, Oliveira a vê como alguém que pode esclarecer e mostrar a
vida com uma percepção mais aguçada quanto aos fenômenos e também de forma
mais simplificada do que os entroncados conceitos teóricos e filosóficos que ele de-
tém. Maga teria mais abertura ao fenômeno, ao passo que Oliveira se prende a um
pensamento engessado. Uma mulher que sozinha fôra a Paris com um filho no colo
e nada no bolso a fim de aprender canto só poderia ter uma força muito grande, as-
sim, essa força que é desconhecida por Oliveira surge como um novo mundo, pois
seu convívio lhe deu percepções que ele mesmo não podia explicar pois lhes foram
impostas, já Maga em sua simplicidade acaba tentando enxergar as verdades en-
gessadas de Oliveira. O mundo-Maga se constrói, bem ou mal, com a observação e
percepção subjetiva do personagem no mundo da obra, ao passo que para Oliveira
as certezas apenas existem pois há alguém que as impõe "¡Se lo digo yo!, acom-
pañado de un puñetazo rotundo que debía servir de ratificación iracunda” (CORTÁ-
ZAR, 1963, p. 18) como sempre foram as atitudes dentro de sua família.
Optamos pela frase em espanhol, pois ela soa de forma muito mais vigorosa
a elocução afirmativa em espanhol do que em português; esse início de frase, co-
meçando por uma exclamação se impõe desde o princípio e fecha-se como definiti-
va ao encerrar com a exclamação.
!75
Passemos agora para o capítulo três, em que Oliveira desliga o toca discos;
um elemento que faz parte da narrativa principal para falar que, apesar de ele ter
desligado a vitrola, ela continuou rodando por inércia e isso lhe trouxe outros pen-
samentos a respeito do comportamento aleatório e sem muito sentido dos insetos e,
algumas vezes, das crianças. Isso demonstra como Oliveira tende a encontrar uma
teoria que abarque todos os fenômenos por ele vividos: “O disco continuou dando
algumas voltas, sem que nenhum som brotasse do alto-falante. Ele não sabia bem
qual razão, mas aquela estúpida inércia o fizera pensar nos movimentos aparente-
mente inúteis de alguns insetos e de algumas crianças” (CORTÁZAR, 2015, p. 26).
Oliveira insurge contra a narrativa principal, que é a história dele, sobre a ci-
dade de Paris e sobre Maga com pensamentos acerca de questões aparentemente
irrelevantes à narrativa principal. Ele interliga acontecimentos pontuais como a ques-
tão da inércia ao desligar a vitrola aos os movimentos inúteis de insetos e crianças,
como se existisse algum tipo de importância escondida nestas atitudes aparente-
mente irrelevantes, como se houvesse um jogo contínuo dos acontecimentos físicos
para com todo o resto dos existenciais humanos. A descrição da inutilidade e da
inércia aparece como que uma justificativa para a pretensa inutilidade dos movimen-
tos aleatórios dos insetos e os movimentos "aleatórios" infantis: na física, a inércia é
a quantidade de energia armazenada em um objeto para que ele se mantenha em
movimento, sem aceleração. Na inércia esse movimento é uma necessidade, da
mesma forma que esse movimento aleatório também é na obra, quanto a isso temos
uma reflexão do personagem com relação à sua própria vida, um caminhar inútil em
busca de algo perdido.
4.1.2 Elementos empíricos da leitura linear
A primeira percepção no livro é que, ao iniciarmos o primeiro capítulo, lemos
algum tipo de história sobre personagens dentro de um tempo linear. A mesma im-
pressão se mantém no capítulo segundo, sequência natural e intuitiva do capítulo
anterior; tudo ocorre aparentemente na ordem cronológica dos acontecimentos.
A linha base da obra O jogo da amarelinha está entre os capítulos um e cin-
quenta e seis (“Do lado de lá”), pois o autor considera-os imprescindíveis. Os demais
capítulos (“De outros lados”) ele denomina como prescindíveis (CORTÁZAR, 2015,
!76
p. 403). Como se o autor permitisse uma leitura romanceada em que o capítulo cin-
quenta e seis desse conta do fechamento do romance, porém, ao lermos os capítu-
los prescindíveis, podemos entender que eles completam certas lacunas deixadas
pelo texto principal (ou seja, pela leitura linear) e também tem o papel de fazer-nos
entender algumas colocações de Oliveira.
Sim, sofre-se por vezes, mas é a única saída decente. Basta de romances hedonistas, pré-mastigados, com psicologias. É preciso estender-se ao máximo, ser voyant como desejava Rimbaud. O romancista hedonista não passa de um voyeur, por outro lado, já chega de técnicas puramente descritivas, de romances ‘do com-portamento’, meros roteiros de filme sem o resgate das imagens (CORTÁZAR, 2015, p. 545).
O personagem Morelli cria certos dilemas que buscam a reconstrução do ro-
mance e, por isso, Cortázar insiste em desconstruir certos objetos fazendo-os apa-
recer como algo próprio daquele romance, sem uma ligação direta com a realidade.
Uma questão que chama atenção na leitura em espanhol do livro foi quanto
às partes do texto em que há interrogativas ou exclamativas. A língua espanhola uti-
liza um símbolo de interrogação ou exclamação invertido em todo início de frase
para indicar questionamento ou exclamação.
¿Encontraría a la Maga? Tantas veces me había bastado aso-marme, viniendo por la rue de Seine, al arco que da al Quai de Conti, y apenas la luz de ceniza y olivo que flota sobre el río me dejaba distinguir las formas, ya su silueta delgada se inscribía en el Pont des Arts, a veces andando de un lado a otro, a veces de-tenida en el pretil de hierro, inclinada sobre el agua (CORTÁZAR, 1963, p. 1).
A los diez años, una tarde de tíos y pontificantes homilías históri-co-políticas a la sombra de unos paraísos, había manifestado tí-midamente su primera reacción contra el tan hispanoítalo-argenti-no ¡Se lo digo yo! , acompañado de un puñetazo rotundo que de-bía servir de ratificación iracunda. Glielo dico io! ¡Se lo digo yo, carajo! (CORTÁZAR, 1963, p. 18)
Muitas vezes, ao lermos textos em português temos dificuldades de perceber
que a frase é uma interrogação, por isso, nossa própria leitura acaba sendo prejudi-
cada. O mesmo acontece com frases exclamativas, em que a imposição se torna
importante para o entendimento do texto. Se adotássemos em português tanto a in-
terrogação invertida quanto a exclamação invertida no início das frases interrogati-
vas e exclamativas não haveria a possibilidade de erros na entonação e na leitura
!77
das frases, pois definiu-se que tipo de entonação devemos colocar ao lê-la. Inclusi-
ve, quando temos de ler textos para outros ouvintes, seria imprescindível saber de
antemão que tipo de entonação adotar ao ler a frase.
Passemos ao livro: descrever as ruas pode fazer com que vislumbremos em
nossas memórias locais onde já estivemos ou, até mesmo, locais onde nunca esti-
vemos. As palavras têm a capacidade de fazer um ausente presente, pois, ainda que
não conheçamos os locais, as músicas e os objetos descritos podemos identificar as
características, as texturas e a sensação pelo que é descrito na obra. Temos tam-
bém certas palavras que aparecem como novidades em nosso vocabulário: verdugo,
que é conhecido vulgarmente como carrasco.
Narra-se um evento em que Maga e o narrador estavam passeando em um
parque e um guarda-chuva tornou-se sujeito de risos e indagações. O guarda-chuva
encontrado por Maga anteriormente passou a ser um sujeito que a acompanhava
durante um certo tempo e, assim, o guarda-chuva perde o contexto de simples abri-
go contra a chuva.
Temos também uma passagem em que o narrador fala sobre "[…] um Figari
com violetas ao anoitecer, com rostos lívidos, com fome e brigas nos
recantos" (CORTÁZAR, 2015, p.14); essa menção refere-se a uma obra do pintor,
advogado, escritor e politico uruguaio, Pedro Figari Solari que desenhava os aspec-
tos da vida e escreveu o tratado Arte, Estética, Ideal (Essai de Philosophie Biologi-
que), entre outros . Novamente, então, podemos identificar uma mistura de realida12 -
de física com a realidade da obra que nos proporciona uma capacidade de abertura
para os novos mundos do romance.
Certamente Maga conhece bem a cidade onde mora, tanto é que podia mover-
se livremente por todos os cantos apesar de seu jeito confuso. Ela é assimilada a
um Mondrian, pois sua cultura está sendo construída com esses passeios junto aos
personagens. "Segundo o que você diz, uma tela de Mondrian é autossuficiente.
Ergo, precisa mais da inocência do que da experiência. Estou falando de inocência
endêmica, não de estupidez” (CORTÁZAR, 2015, p.50). O casal também vai ao
cinema, anda pelas ruas com destreza, conhece Paris e seus terrenos baldios e
Maga chega a cantar músicas (melopeia) inexistentes, isto é, Maga produz certas
obras que não teriam uma ligação com o que já conhecia, ela passa a inventar me-
PEDRO Figari. Escritório de arte. Disponível em: <https://www.escritoriodearte.com/artista/pedro-12
figari> Acesso em 10/03/2020.
!78
lodias, isto faz com que Oliveira inspire-se e pense sobre questões que havia deixa-
do para trás com relação ao hospital que frequentava. Esse passeio de Oliveira por
suas lembranças fez com que ele conseguisse trazer à memória certos itens que já
havia esquecido.
Contudo, afastava-os, pois o jogo consistia em recordar apenas o insignificante, o inofensivo, o perecido. Tremendo, com medo de não ser capaz de, atacado pelo caruncho que tudo desfaz, imbecil à força de beijar o tempo, terminava por ver ao lado dos sapatos uma pequena lata de chá que minha mãe me dera em Buenos Ai-res. Recordava também a pequena colher de chá […] (CORTÁ-ZAR, 2015, p. 16)
Certamente esses passeios de Maga e Oliveira trazem memórias de fatos
ocorridos anteriormente, tais como uma lata de chá que ele havia ganhado de sua
mãe e que só pudera lembrar ao participar do jogo que era exatamente permitir que
o esquecido tomasse vida novamente.
Maga interrompe Oliveira com uma baforada de cigarro em sua face já que
ele se mostra preocupado em esquecer certas particularidades dos itens que tenta
elencar em sua memória, isso o tira do transe em que se encontrava, trazendo-o de
volta à linearidade da vida quotidiana e rompendo com a seriedade que se dava por
conta da busca de Oliveira pelos itens perecidos em sua memória, então ambos vol-
tam ao acontecimentos da vida quotidiana incluindo a conversa costumeira acerca
da patafísica.
Para a matemática, o sentido das figuras geométricas se dá por meio de sua
lógica própria e atua como uma linguagem à parte para explicar os elementos da na-
tureza pelos números. Essa ciência, e também a geometria, se provam verdadeiras
e necessárias para Oliveira confirmar suas teorias: “Por vezes, chego a me conven-
cer de que a estupidez se chama triângulo, de que oito por oito é a loucura ou um
cachorro” (CORTÁZAR. 2015, p. 25). O mundo real é explicado pelos matemáticos a
partir de certas regras e conceitos, porém, as possibilidades do romance vão além
da práxis, podem ser questionadas, e é isso que Oliveira faz ao cogitar se a geome-
tria não estaria errada, não seria uma espécie de alienação.
A passagem "O peso do sujeito na noção do objeto” (CORTÁZAR, 2015, p.
28) nos remete à ideia de Kant quanto à revolução copernicana do pensamento:
!79
para “contrapor" a teoria anterior de Francis Bacon , seria necessário passar os ob13 -
jetos pelo jugo da razão, ao invés de entendê-los através deles mesmos. Nesse sen-
tido, Bacon diz que devemos, inclusive, atormentar e torturar a natureza para fazê-la
falar e expor-se ao conhecimento humano . Com essa reviravolta passamos ter 14
uma noção de que os objetos devem ser regulados pelo sujeito e aquilo que conhe-
cemos como objeto tem seu entendimento, pois o indivíduo é que o reconhece como
tal.
A Maga era das poucas que não esqueciam jamais que a cara de um sujeito sempre influía no que ele achasse que era o comunis-mo ou a civilização creto-micênica, e que a forma de suas mãos estava presente naquilo que o dono delas pudesse sentir diante de Ghirlandaio ou Dostoiévski. Por isso Oliveira tendia a admitir que seu grupo sangüíneo, o fato de ter passado a infância cerca-do de tios majestosos, uns amores contrariados na adolescência e uma facilidade para a astenia podiam ser fatores de primeira or-dem em sua cosmovisão (CORTÁZAR, 2015, p. 28).
Temos também, na astenia de Oliveira, uma explicação da atitude passiva dian-
te da percepção do cosmos. Como se o personagem tivesse herdado de sua família
e de seus modos de vida uma percepção do mundo igual à dos demais, como se
participar de uma família com tios majestosos o fizesse perder a capacidade de
questionar, pois a verdade vinha como um fator de primeira ordem.
O importante, para Oliveira era assistir sem desanimo ao espetá-culo dessa visão Tupac-Amarú, não incorrer no pobre egocentris-mo (criolocentrismo, suburcentrismo, culturocentrismo, folclocen-trismo) que, cotidianamente, era proclamado em volta dele, sob todas formas possíveis (CORTÁZAR, 2015, p. 28).
Mais uma vez, aparece a antevisão das verdades, como se Oliveira fosse a
personificação de uma atitude passiva perante às verdades possíveis. Como se, por
causa da criação de Oliveira, sua capacidade de abstração estivesse castrada, uma
espécie de moralidade interior o inibia como descobridor de novas possibilidades.
Quanto à questão de novas possibilidades, Maga é a personagem que muitas
vezes possibilita algumas percepções. Por exemplo, quando Maga diz que alguém
Temos de adequar a razão humana aos objetos. BACON, F. Novum Organum ou Verdadeiras 13Indicações Acerca da Interpretação da Natureza. (trad. José Aluysio Reis de Andrade). Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000047.pdf Acesso em 19/05/2021.
Idem.14
!80
se portou de forma esnobe, é mais do que óbvio para ela o que ela quer dizer, mas
Oliveira pergunta o que é ser esnobe, o que lhe deixa insegura, pois, embora tenha
claro para si, talvez não consiga externar o que entende. Mesmo assim, a definição
que ela tem dá um entendimento muito mais próximo da realidade do que qualquer
teoria ou que o próprio senso comum.
- Que entende você por esnobe? — perguntou Oliveira, agora mais interessado. - Bem — disse a Maga, baixando a cabeça com ar de quem já sabe que vai dizer uma burrice —, eu viajei de terceira classe, mas creio que se tivesse vindo em segunda, a Luciana teria ido despedir-se de mim. - Essa é a melhor definição de esnobe que ouvi até hoje – excla-mou Oliveira (CORTÁZAR, 2015, p. 32).
Portanto, para Oliveira, a simplicidade do mundo-Maga é capaz de definir cer-
tas palavras melhor que qualquer antevisão ou que uma hermenêutica. As definições
sempre partem de um contexto subjetivo, cultural, de vivência, assim, as palavras
podem assumir diferentes sentidos, mas, ao dizer que esnobe foi a atitude de uma
amiga ao não ir despedir-se por conta de posição social abaixo da esperada, acaba-
se definindo esnobar como sentir-se superior e não ter empatia com aqueles que es-
tão socialmente abaixo, não identificar-se com aqueles marginalizados.
Evidencia-se, então, a importância das descrições de elementos, do contexto
e do uso das palavras de época, “[…] enquanto Oliveira saboreava seu pernod e os
olhava, […]” ( CORTÁZAR, 2015, p. 37). Pernod é o nome dado na época à bebida
comumente conhecida como absinto (bebida bastante consumida pelos europeus
antigamente e que acabou sendo proibida em alguns países pelo seu altíssimos teor
alcoólico e por poder levar a alucinações) . 15
Quando ambos chegam a um hotel de Paris, narram que aquele tipo de hotel
os levava a falar sobre crimes, como se o ambiente de determinados hotéis tivessem
uma similitude histórica. “Oliveira já contara a Maga a história da
Troppmann […]” (CORTÁZAR, 2015, p. 40). Ao contar a história de Jean Baptiste 16
Troppmann, Oliveira comenta que o assassino fora guilhotinado em 1870 e que a
execução fora assistida por um grande escritor da época, Turgueniev que acabou se
ALVEZ, L. Absinto – História e curiosidades sobre a bebida proibida. Portal R7, 27 de jul. 2020. 15Disponível em: https://segredosdomundo.r7.com/absinto/ Acessado em 19/05/2021.
Assassino de oito pessoas de uma mesma família nos anos 1869. Mais detalhes sobre a tragédia 16
podem ser encontrados em <https://murderpedia.org/male.T/t/troppmann.htm>
!81
tornando um desafeto de Dostoyevsky por não incluir Deus em suas novelas . Oli17 -
veira comenta que Maga ainda teria de ler muitos livros para poder entender os as-
suntos tratados pelas mesas de discussão intelectual que eles frequentavam (Clube
da Serpente). Essa orientação de Oliveira também vale para nós, leitores, temos de
pesquisar para entendermos quem foram Troppmann, Petiot e Weidmann, por
exemplo, e qual a relevância deles para a narrativa de crimes e os hotéis. As nove-
las costumavam ter este tipo de hotel como pano de fundo para histórias de assas-
sinatos.
Quando Maga e Oliveira propunham se encontrar, andavam pelas ruas de Pa-
ris de forma liberta, como se o destino fosse dono de seus encontros. Oliveira sem-
pre tentava alcançar os porquês de algumas decisões pessoais (por que Maga viria
pela Rua de Buci e não por outra qualquer, por que ele mesmo tomara outros cami-
nhos, por que tudo acontecia daquela forma), ao passo que, para Maga, essas bus-
cas teóricas de Oliveira interrompiam-se com simples questão lógica: não há de se
pensar nos porquês; já que aqui estamos, pensemos no agora. Novamente, a visão
prática de Maga se sobressai em relação às teorias de Oliveira, pois realmente o
que fica de importante não são os porquês das vias de encontro e sim o encontro
em si.
Aquilo que para ele tinha sido análise de probabilidades, delibera-ção inspirada ou simplesmente confiança na rabdomancia ambu-latória, passava a ser, para ela, um autêntico fatalismo. “E se você não tivesse me encontrado?”perguntava Horácio. “Não sei, o que interessa é que, agora, você esta aqui…” Inexplicavelmente a res-posta invalidava a pergunta, mostrava seus recursos lógicos (CORTÁZAR, 2015, p. 44).
O mundo prático de Maga se sobressai às elocubrações teóricas e filosóficas
de Oliveira quando se trata pura e simplesmente dos encontros, pois a questão em
si sempre foi encontrar-se e dali partir para as demais atividades e não os porquês
teóricos dos encontros. Para Maga, o que importava era que sempre se encontra-
vam e dali partia todo o resto, já para Oliveira os conhecimentos escolares e filosófi-
cos poderiam trazer algum outro elemento que potencializasse estes encontros. Po-
Para mais detalhes, ver: IN praise of superfluous men: Ivan Turgenev stands before the 17
guillotine..totalitatianism Today, 15 de maio de 2014. Disponível em:<https://alina_stefanescu.type-pad.com/totalitarianism_today/2014/05/in-praise-of-superfluous-men-ivan-turgenev-stands-before-the-guillotine.html> Acesso em 19/05/2021.
!82
rém, sem saber, Maga utiliza a lógica para irromper com pensamentos de Oliveira
acerca destas razões e motivos metafísicos.
Dentre tantas outras questões que a obra ainda levanta, o trecho a seguir
ilustra uma que vale a pena destacar; uma intertextualidade com a mitologia: "[…]
brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais perto e nossos olhos se tornam
maiores, aproxima-se, sobrepõem-se e os ciclopes se olham […]" (CORTÁZAR.
2015, p. 45). Essa passagem traz a sensação de que o próprio mito dos ciclopes
poderia nascer de descrições como essas. Claro que existem outras explicações,
mas o jogo se desenrolou desta forma numa primeira leitura. Se, de fato, reprodu-
zirmos o movimento que tornou ambos ciclopes, verificamos que, ao aproximarmo-
nos demais do rosto de outrem olhando fixamente para seus olhos, a pessoa que
olhamos transforma-se em um ciclope, pois nosso sentido da visão acaba nos enga-
nando. A proximidade do rosto a outro não permite que enxerguemos ambos os
olhos da outra pessoa.
O fato de Maga muitas vezes interromper as indagações de Oliveira com coi-
sas menos importantes, e às vezes até aparentemente burras, era o que fazia Olivei-
ra sentir uma espécie de ternura rancorosa para com ela. Ele diz que, por conta
desse sentimento a respeito de Maga, deveriam “[…] inventar uma bofetada doce, o
pontapé de abelhas” (CORTÁZAR, 2015, p. 49), como uma maneira de expressar
algo relacionado ao seu sentimento em determinados momentos. A leveza de um
pontapé de abelha ou de uma bofetada doce, ao ver de Oliveira, seria mais apropri-
ado ao sentimento que ele tinha por Maga nesses momentos; ela o completava, mas
muitas vezes o atrapalhava, e esse sentimento era difícil de ser descrito com as pa-
lavras mais corriqueiras, sendo assim, um tapa de abelha seria mais apropriado para
trazer Maga de volta à realidade das discussões.
Etienne, o pintor amigo de Oliveira diz que diante de um quadro de Mondrian
não há o que entender, basta ver os formatos e cores e perceber que há uma har-
monia em sua obra sem apelar para seres ou conceitos muito distintos, ao passo
que um quadro de Klee necessita que entendamos certos “signos mágicos”.
No capítulo sete, o tema é um beijo entre Oliveira e Maga e, por conta da mi-
nuciosa descrição do acontecimento, podemos perceber quão apurada é a participa-
ção que o personagem propõe. Os capítulos abordam momentos específicos que
nem sempre têm conexão direta com o capítulo anterior e que muitas vezes acaba
!83
nos deixando em aporia, porém, não se perde o nexo da narrativa, pois os capítulos
iniciam um tema e encerram-no, mesmo que com arestas. Essa é a proposta do au-
tor, devemos iniciar as percepções do ponto zero, sem trazer para a narrativa qual-
quer tipo de conceito anterior, portanto, encerrar alguns capítulos em aporia se torna
ideal à sua proposta, até mesmo porque eles se completam no segundo tipo de leitu-
ra proposta pelo livro (capítulos prescindíveis).
4.2 Leitura filosófica linear
Nós nos identificamos nos outros, é pelos outros que podemos perceber o
que nós mesmos somos, pela diferença com o outro. Quando há uma descrição de
um evento em que Oliveira se descobriria pela leitura das mãos de Maga, isso nos
mostra que há realmente um aspecto de desvelamento de um sujeito pelo outro,
pois é em Maga que Oliveira iria perceber certos aspectos dele mesmo e que há
muito não estavam evidentes. Assim como esses personagens que aparecem na
história vão se revelando pelos seus costumes, afinidades, gostos e romances, aca-
bamos percebendo que a criação do próprio sujeito no livro depende de um outro
sujeito dentro do livro que o vê e assim depende do espectador que lê o conto, ou
seja, um eu que lê.
É interessante frisar que Gadamer anuncia que no contexto da obra de arte
há uma perda das realidades, devemos esquecer nossa subjetividade e assumir o
mundo da obra, pois, para que o jogo se concretize, devemos entrar nele como ele
se propõe a ser, a fusão de horizontes, já comentada anteriormente. Um ótimo
exemplo desse conceito de Gadamer em Cortázar aparece no conto Final del Juego
- Continuidad de los parques (CORTÁZAR, 2008, p.391), em que a narrativa mistura
os personagens, narrador e leitor. Sendo assim, a obra depende de todos (autor,
ator, espectador) para se concretizar como espetáculo.
Nunca levei você para Mme. Léonie ler a palma da sua mão, pois na certa tive medo de que ela lesse na sua mão alguma verdade sobre mim, já que você sempre foi um espelho terrível, uma es-pantosa máquina de reprodução, e aquilo que chamávamos o nosso amor era talvez eu estar de pé diante de você, com uma flor amarela na mão e você com duas velas verdes, enquanto o tempo soprava contra nossos rostos uma lenta chuva de renuncias e de despedidas e passagens de metrô (CORTÁZAR, 2015, p. 28).
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Essa passagem foi citada mais acima com o intuito de demonstrar que Olivei-
ra sabia que Maga o conhecia bem demais. Mas vemos também que ela exemplifica
bem o contexto da leitura do livro com um olhar de espetáculo, pois é como se os
personagens fossem se desvelando uns com os outros, incluíssem a nós mesmos
como personagem do romance. Nesse caso, é por causa da afinidade de Maga com
Oliveira que ele sente medo do que se revelaria sobre ele, caso ela fosse falar com
Mme. Léonie.
A própria participação de Maga cantando uma melopeia inexistente faz com
que o narrador acesse seu próprio jogo, ele passa e perceber coisas que havia es-
quecido, ele se lembra de um pote de chá, uma colher de chá, ele se lembra aqueles
insignificantes, inofensivos e perecidos de sua memória. A experiência proporciona-
da pelos passeios e pelas observações de ambos faz com que tanto Maga quanto
os demais personagens aprendam ou relembrem de elementos que construirão o
jogo e suas possibilidades sem que ele fique engessado e estático, pois lembrar
sempre traz elementos que pareciam sem importância em um determinado momen-
to. Certas experiências que vivemos ou tivemos e que, em algum momento, parece-
ram superficiais podem reaparecer com uma valorização maior por conta do vaivém
despercebido da vida. Apesar de não podermos lembrar de tudo o que experiencia-
mos durante a vida, relembrar é sempre trazer itens que fazem parte do que somos.
Quando os personagens narram sobre suas manias, eles aparentemente es-
tão afirmando que até mesmo as manias mais descabidas são formadoras do que
eles são. Parece que, por mais que haja devaneios, eles aferem uma verdade dentro
do jogo do pensar: não é algo que nos preparamos para jogar e analisamos como
evidência de algo, mas sim um movimento que aparece para afirmar algo sobre a
subjetividade dos personagens e ao mesmo tempo surge para identificar uma simili-
tude entre eles. No caso de Maga e Oliveira, ambos têm manias parecidas quanto
aos fatalismos e às desgraças.
Uma das manias aparece na cena do torrão de açúcar. Retomemos que o
caso toma proporções desnecessárias ao senso comum, mas que ao modo de ser
do personagem é caso de vida ou morte. Ele busca o torrão perdido dentre os pés
dos clientes e acaba incomodando todo um bar-café em busca de seu ser-objeto;
nessa parte, a angústia e a sátira tomam conta de quem lê a cena, pois é uma reali-
dade possível, mas que não tem nenhum fundamento teórico a não ser na vida do
!85
personagem. Ao nos colocarmos em seu lugar percebemos como podemos ser vis-
tos como loucos mesmo que justifiquemos certas atitudes estranhas, é como se
nossas manias só tivessem um fundamento para aquele que joga nosso jogo; achar
uma verdade na mania é achar um fundamento que satisfaça a todos, no caso do
jogo, o fundamento é o apenas o jogar.
A questão do torrão de açúcar é bastante relevante, pois percebemos que, ao
buscar o torrão de açúcar que cai no meio de um bar-café, o personagem demons-
tra, e ao mesmo tempo justifica, qual é o jogo do pegar objeto caído e não deixá-lo
fugir, falando que a finalidade é evitar alguma tragédia. Para Oliveira, tanto é um
jogo que o torrão que também joga o jogo e se vinga ao perder o jogo e ser encon-
trado, lambuzando as mãos de Oliveira. Assim, essas novas possibilidades de entes
podem participar de uma verdade que nos detém enquanto há o jogo, mesmo que
aos olhos dos demais possa parecer insanidade. Nossa realidade é feita por nossas
participações do que é empírico e o que não é, nos vemos nos outros e os outros se
identificam por nós e pelo mundo, somos todos participantes de um mesmo mundo,
seja ele o mundo da obra ou o mundo real.
O mundo da obra surge como possibilidade para abertura de novas realida-
des em que o empirismo não dita regras e em que a ordenação necessária ao coti-
diano da realidade física não é essencial à existência das narrativas da obra. No ro-
mance, podemos experienciar em diversos momentos essas ressignificações de
Cortázar. Em certa parte do romance há uma associação de grandes jazzistas a cro-
codilos do tempo em menção a músicos fortes, duráveis e antigos do jazz:
Gregorovius suspirou e bebeu mais vodca. Lester Young, sax-te-nor, Dickie Wells, trombone, Joe Bushkin, piano, Bill Coleman, trompete, John Simmons, contrabaixo, Jo Jones, bateria. "Four CClock Drag". Sim, crocodilos enormes, trombones na beira do rio, blues arrastando-se, provavelmente drag, queria dizer crocodi-lo do tempo, o arrastar interminável das quatro da manhã (COR-TÁZAR, 2015, p. 56).
Cortázar, em suas interações, pôde alterar o sentido dos objetos na obra de
modo que mesmo as palavras podem ser ressignificadas. O signo a que se referia
primariamente a um determinado objeto pode ser ressignificado independente de
sua etimologia ou de sua existência física. As palavras são signos que se referem a
um objeto conhecido e portanto é a maneira pela qual lidamos com um mundo cheio
de objetos. Porém, dentro de uma obra de arte não há objetos palpáveis que pos-
!86
sam comprovar a assimilação do símbolo ao objeto descrito, sendo assim, é possí-
vel ressignificar a palavra de modo a contemplar uma nova possibilidade de mundo.
Nesse caso, na língua alemã, assim como em algumas outras, é permitido que as
palavras sejam criada a partir de suas raizes, ou seja, há uma liberdade na significa-
ção das palavras em diversas línguas e isso permite a criação de outras palavras.
A partir do contexto da novidade é que podemos dizer que nossa percepção
de mundo está ligada à forma com que lidamos com ele, à forma como percebemos
as possibilidades nele e fora dele. O próprio entendimento de quem nós somos é o
entendimento de como o mundo é: “Já vivera o suficiente para suspeitar daquilo que,
embora esteja debaixo do nariz de todos, poucas vezes se percebe: O peso do su-
jeito na noção do objeto” (CORTÁZAR, 2015, p. 28). Assim, ocorre com o mundo-
Maga que traz um ressignificado para a realidade dos personagens e para nós como
personagens também.
Oliveira apresenta-se como um sujeito de entendimento profundo, porém co-
mum aos demais de seu ambiente, já Maga aparece como uma estranha aos hábi-
tos desse conjunto e que aos olhos de Oliveira traz em si um conhecimento muito
maior sobre as questões da vida prática, mesmo que algumas vezes de forma errô-
nea. Oliveira tende sempre a estabelecer as verdades de acordo com os conceitos
pré-concebidos e discorre como qualquer letrado, apontando a verdades estabeleci-
das, já com Maga percebe-se que a compreensão de mundo depende somente dos
fenômenos e que ela, ao acabar fugindo desses conceitos pré-estabelecidos, torna
mais simples as explicações sobre o mundo em que ela vive. Sendo assim, saber
algo para Oliveira é encaixar algum ente à sua categoria (Aristóteles) e, para Maga,
é perceber os entes a partir dos fenômenos no mundo.
Outra questão relevante é sobre quanto uma obra poder elucidar dificuldades
em outras obras. Por exemplo, ao ler Cortázar conseguimos entender parte, inclusi-
ve, de algumas colocações de Tomás de Aquino (2011).
- Esta moça deixaria tonto o próprio santo Tomás - comentou Oli-veira. - Por que santo Tomás? — perguntou Maga. — Será o idiota que 18
sempre queria ver para acreditar? - Esse mesmo, minha querida — respondeu ligeira, pensando que, no fundo, a Maga tinha invocado o verdadeiro santo. Tinha a
Cortázar faz um jogo irônico entre dois santos de mesmo nome em espanhol: Santo Tomás de 18
Aquino e Santo Tomás (São Tomé, em português) N. do E.
!87
felicidade de poder acreditar sem ver, de poder formar um corpo com a duração, com o contínuo da vida. Tinha a felicidade de se encontrar dentro do quarto, de ter direito da cidadania em tudo o que tocava e em todos aqueles com quem convivia, peixe nadan-do no rio, folha na arvore, nuvem no céu, imagem no poema. Pei-xe, folha, nuvem, imagem: exatamente isso, a não ser que […] (CORTÁZAR, 2015, p. 31).
Tomás de Aquino possui uma intrincada forma de escrever. Mas, graças à leitu-
ra do livro de Cortázar, é possível entender algumas passagens de seu livro, como
esta:
Cumpre saber que, assim, como diz o Filosofo no quinto livro da Metafísica (V, 7, 1017a, 22), o ente por si se diz de dois modos: de um modo que é dividido por dez gêneros; de outro modo, signifi-cando a verdade das proposições. A diferença deste é que, do se-gundo modo, pode ser dito entes tudo aquilo do qual pode ser formada uma proposição afirmativa, ainda que aquilo nada ponha na coisa; modo pelo qual as privações e negações são ditas en-tes, pois dizemos que a afirmação é oposta à negação e que a cegueira está no olho. Mas, do primeiro modo, não se pode ser dito ente senão aquilo que põe algo na coisa. Donde. a cegueira e similares não serem entes do primeiro modo (AQUINO, 2011, p.15).
O trecho acima refere-se às categorias de Aristóteles e Tomás de Aquino rea-
firma que os entes podem ser ditos de dois modos, segundo o próprio Aristóteles:
por um lado, os entes se dizem de acordo com as categorias e se fazem entender a
partir delas passando a ser a verdade sobre a essência do ente. Por outro lado, par-
te do que nós mesmos percebemos e colocamos nos objetos para entendê-los como
entes determina que a essência dos objetos parte de um subjetivo, ou seja “O peso
do sujeito no objeto” (CORTÁZAR, 2015, p. 28).
Oliveira tem uma espécie de inveja de Maga e, ao mesmo tempo, tem prazer
no fato de poder tutorá-la e tê-la como amante, Maga já se porta como se tivesse um
amor platônico por Oliveira. Assim, o interesse de Oliveira é a simplicidade de Maga,
e o amor de Maga se direciona mais aos conhecimentos de Oliveira, mesmo assim,
ambos necessitam de jogos relacionados a seus apetites sexuais, o que destoa do
ideal filosófico de Amor . 19
Maga parece querer mais do que o ato sexual em si, comparável com o diálogo
de Platão, chamado O Banquete, em que temos a explicação do que seria o Amor
ideal para o filósofo. Nesse diálogo, Alcebiades foge do entendimento de amor
O amor pelo conhecimento (philosophia)19
!88
platônico, ao querer copular com Sócrates apenas por ele ser inteligente, o que pa-
rece bem próximo do que Maga faz com Oliveira, escambo de interesses.
Oliveira gostava muito de fazer amor com a Maga porque nada havia de mais importante para ela e, ao mesmo tempo, de uma forma pouco compreensível, estava como que abaixo do seu pra-zer, unindo-se a ela durante um momento e, por isso, aderia-se desesperadamente e prolongava o seu prazer. Era como um des-pertar e como conhecer seu verdadeiro nome; depois, voltava cair numa zona sempre um pouco crepuscular que encantava Oliveira, receoso de perfeições, mas a Maga sofria de verdade quando re-gressava às suas recordações e a tudo o que obscuramente pre-cisava pensar e não podia pensar (CORTÁZAR, 2015, p. 40).
Estar com Maga, para Oliveira, era como se ele pudesse não pensar mais
nas verdades da filosofia e pudesse libertar-se de tantos conceitos no mundo-Maga.
Como se o jogo da vida proposto pelo mundo-Maga fosse mais próximo, de forma a
permitir certos prazeres da contingência; para Maga era como se, ao unir-se carnal-
mente a Oliveira, ela pudesse acessar o mundo dele. Tanto é que ao final ela teria
de voltar às recordações que a faziam sofrer, pois era obscuro e difícil o pensar para
ela, coisa que para Oliveira era o praxe.
A descrição de Oliveira dos contornos de Maga mostram-se como elementos
empíricos dos sentidos, mas, ao fechar-se os olhos, passam a ser itens de uma
nova possibilidade de conhecimento. Fechar os olhos e afastar-se dos estímulos fí-
sicos nos fazem abstrair e pensar realmente sobre o que algo é, sendo assim, olhar
alguém é sempre um olhar a si, pois aquilo que reconhecemos como o outro está
sempre relacionado às nossas percepções de mundo. Portanto, quando Oliveira
toca o rosto de Maga e percebe de forma tátil o que o rosto dela é, com seus relevos
e texturas, não traz toda a essência de Maga, é necessário a Oliveira fechar o olhos
para Maga aparecer em sua memória com toda sua essência de acordo com a per-
cepção dele sobre ela. Assim, Maga não é apenas um contorno de boca, ela é o que
se percebe como Maga no mundo e, para Oliveira, ela tem um mundo próprio, tem
um mundo-Maga que a faz ser como é.
Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenha-la com mi-nha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro com-preender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que minha mão te desenha (CORTÁZAR. 2015, p. 45).
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Essa forma de Oliveira entender Maga acaba demonstrando o aspecto de
desvelamento do sujeito Maga pela subjetividade de Oliveira, que desenha a boca
que ele mesmo entende como ideal e que, em Maga, concretiza-se. Mais para frente
na obra, o personagem Etienne diz: “Explicar, explicar. — Vocês, quando não dão
nomes as coisas, nem sequer as veem. Isto se chama cachorro, aquilo se chama
casa, como dizia Duíno. É preciso mostrar, não explicar. Eu pinto, ergo, sou” (COR-
TÁZAR. 2015. p. 49). Assim, podemos perceber quão limitados esses personagens
são, pois sua percepção de mundo limita-se apenas pelo que pode ser nomeado e
visto, coisa que John Locke já havia dito quando nos classificou como tábula rasa.
Pode-se perceber também que o autor busca sempre utilizar uma linguagem
mais própria para cada personagem. Cada sujeito aparece de acordo com sua cultu-
ra e acaba revelando-se pelas suas falas e pelos seus hábitos, que nos mostram
quem são e de onde vieram. No caso de Oliveira, diversas vezes o personagem fala
sobre hábitos de sua nacionalidade, tal como tomar mate com a bomba (bombilla), o
que é algo tradicional da Argentina e do Rio Grande do Sul. “Quando volvió, com las
manos rojas y brillantes, Oliveira le alcanzó un mate. Se sentó en el sillón bajo, chu-
pó aplicadamente. Siempre estropeaba el mate, tirando de un lado y de ouro la
bombilla, revolviendóla como si estuviera haciendo polenta” (CORTÁZAR, 1963, p.
93).
Logo em seguida podemos confirmar a nacionalidade de Oliveira pelo seu
cantarolar e perceber que o uso da palavra bombilla faz menção à tradicional bomba
de tomar mate Argentino. "Oliveira canturreaba el tango. La Maga chupó la bombilla
y se encogió de ombros, sin miralo” (CORTÁZAR, 1963, p. 95).
Segundo Arrigucci (2015), o poeta tem a capacidade de uma ubiquidade dis-
solvente: “Esta capacidade mimética do poeta faz com que ele assuma o Ser do ou-
tro”. Sendo assim, o poeta também está nessa fusão de horizontes para criar sua
obra.
!90
5 Leitura Crítica Não-Linear
Como afirmamos no início desta dissertação, o livro permite que o leiamos de
diversas formas. No entanto, o autor nos indica duas formas principais de leitura, ou
seja, o jogo da obra de arte já se propõe de duas formas mesmo contendo sua liber-
dade no vaivém da obra, portanto segue a descrição.
O Segundo Livro deixa-se ler começando pelo capitulo 73 e conti-nua, depois, de acordo com a ordem indicada no final de cada ca-pítulo. Em caso de confusão ou esquecimento, será suficiente consultar a seguinte lista: 73 - 1 - 2 - 116 - 3 - 84 - 4 - 71 - 5 - 81 - 74 - 6 - 7 - 8 - 93 - 68 - 9 - 104 - 10 - 65 - 11 - 136 - 12 106 - 13 - 115 - 14 - 114 - 117 - 15 - 120 - 16 - 137 - 17 - 97 - 18 - 153 - 19 - 90 - 20 - 126 - 21 79 - 22 - 62 - 23 - 124 - 128 - 24 - 134 - 25 - 141 - 60 - 26 - 109 - 27 - 28 - 130 - 151 - 152 - 143 - 100 - 76 - 101 - 144 - 92 - 103 - 108 - 64 - 155 - 123 -145 - 122 - 112 - 154 - 85 - 150 - 95 - 146 29- 107 -113 - 30- 57-70-147-31-32-132 - 61 - 33 - 67 - 83 - 142 - 34 - 87 - 105 - 96 - 94 - 91 - 82 - 99 - 35 - 121 - 36 - 37 - 98 - 38 - 39 - 86 - 78 - 40 - 59 - 41 - 148 - 42 - 75 - 43 - 125 - 44 - 102 - 45 - 80 - 46 - 47 - 110 - 48 - 111 - 49 - 118 - 50 - 119 - 51 - 69 - 52 - 89 - 53 - 66 - 149 - 54 - 129 - 139 - 133 - 40 - 138 - 127 - 56 - 135 - 63 - 88 - 72 - 77 - 131 - 58 - 131 (CORTÁZAR, 2015, p. 5).
É importante perceber que há uma metamorfose dos capítulos: embora ainda
conterem uma sequência numérica, aparecem nesta segunda leitura de forma de-
sordenada "[...] eu buscava a meu modo em O jogo da amarelinha para romper mol-
des mentais.” (CORTÁZAR, 2018, p.251), ou seja, a sequência numérica acaba
sendo rearranjada e os capítulos mudam de sequência. Assim, o livro é jogado de
uma nova maneira; aqueles capítulos que, em uma primeira leitura (prosaica linear),
se desenvolviam a partir de uma sequência numéria crescente a partir do primeiro
capítulo, acabam, na segunda leitura, a ter outra organização, elencam os aconteci-
mentos e passagens com outra sequência, por exemplo, o capítulo 73 passou a ser
o capítulo 1, como se esse capítulo fosse o início de um novo livro. Quando o novo
livro inicia, os demais capítulos, apesar de sua numeração não ser alterada fisica-
mente, acabam assumindo uma sequência que os altera cronologicamente em sua
leitura.
A segunda maneira de lê-lo consiste em seguir uma espécie de salto continuo que se faz no interior do livro, que remete de um capítulo a outro e que às vezes salta de um capitulo a um anuncio de jornal, do anuncio do jornal volta a outros capitulo e do capítulo
!91
salta à citação de um poema ou de um fragmento de poema (CORTÁZAR, 2015, p. 223).
A leitura a partir desse segundo modo acaba mostrando outra versão dos
acontecimentos. Ler os capítulos que ainda não foram lidos faz com que outros ele-
mentos apareçam na história principal e acabam tornando a primeira história muito
mais completa; essa nova história se inicia com um poema, diferente do primeiro li-
vro que se abre apresentando os primeiros acontecimentos da história entre Maga e
Oliveira. É como se a leitura linear pudesse mostrar a estrutura principal do romance
e a leitura não-linear trouxesse novas características dos personagens, tirando-nos
de certas aporias causadas pela primeira leitura.
O jogo linear segue mostrando capítulo a capítulo a história principal e desve-
la um modo de ser do jogo em sua estrutura básica. Já o segundo modo de leitura
acaba adicionando uma cor aos personagens e às suas ações, era um jogo simples
que agora se torna colorido ao permitir novos movimentos pela inserção de caracte-
rísticas ainda não informadas na narrativa principal (linear). Seria como jogar xadrez
com suas regras clássicas e depois descobrir os porquês das regras e poder alterá-
las ao novo jogo.
Isso apresenta-se na primeira leitura na descrição de Maga se movendo por
Paris como as peças de xadrez (englobando todos os movimentos das peças nela
mesma): inicia-se o xadrez clássico e termina-se como xadrez transformado. Haverá
uma alteração nos movimentos definidos e rígidos, mas continuará o mesmo jogo,
pois ainda contém sua essência, suas peças, tabuleiro, objetivos, movimentos
(mesmo que estes troquem de personagem). Por exemplo, se uma torre, por defini-
ção, só pode mover-se em linha reta, após a transformação (gebilde) ela aprende a
andar transversalmente pelo tabuleiro. Se o cavalo andava somente em L, ele
aprende a correr todo o tabuleiro em uma linha reta.
5.1 Leitura prosaica não-linear (romanceada)
Nesse segundo livro iniciamos em um novo cenário, “de outros lados (capítu-
los prescindíveis)”, e o novo romance é inaugurado como um poema, em que Cortá-
zar se permitiu aparecer ante a obra falando exatamente sobre os conformismos e
!92
equações infalíveis. “[…] o capítulo salta à citação de um poema ou de um fragmen-
to de poema” (CORTÁZAR, 2018, p. 223).
Sim, mas quem nos curará do fogo surdo, do fogo sem cor que corre, ao anoitecer, pela rue de la Huchette, saindo dos portais carcomidos, dos pequenos vestíbulos, do fogos em imagem que lambe as pedras e ataca os vãos das portas, como faremos para nos lavar da sua queimadura doce que persiste, que insiste em durar, aliada ao tempo e a recordação, às substâncias pegajosas que nos retém deste lado, e que nos queimará docemente até nos calcinar? Então é melhor compactuar como os gatos e os musgos, travar amizade imediata com as porteiras de vozes roucas, com as criaturas pálidas e sofredoras que aparecem às janelas, brin-cando com um ramo seco. Ardendo assim, sem tréguas, supor-tando a queimadura central que avança como o amadurecimento paulatino do fruto, ser o pulso de uma fogueira neste emaranhado de pedra interminável, caminhar pelas noites de nossa vida com a obediência do sangue no seu cego circuito (CORTÁZAR, 2015, p. 435).
A narrativa nos mostra certa indignação quanto à questão das verdades,
quanto ao sentimento de inautenticidade que assumimos ao nos conformarmos e
simplesmente aceitarmos certas verdades. Assim, Cortázar fala das artes para de-
monstrar essa conformidade e ironiza todas elas utilizando suas terminações (litera
tura):
Tudo é escrita, ou seja, fábula. Mas para que nos serve a verdade que tranquiliza o honesto proprietário? A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, literatura, pintura, escultura, agricul-tura, piscicultura, todas as tuas deste mundo. O valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza, tura das turas (CORTÁZAR, 2015, p. 436).
A ironia utilizada por Cortázar ao associar as artes como turas nada mais é do
que dizer que o conformismo das terminações das palavras são a continuidade dos
conformismos de nossos entendimentos. Por que devemos assumir esses conceitos
e essas definições que nos limitam e que não nos permitem explorar dentro da litera-
tura um mundo novo? As turas aparecem como elementos definidos e rígidos dentro
de nossa vida cotidiana, porém, as obras de artes não devem se limitar a serem pu-
ramente invenções, elas tem um quê de verdade que vai além da mera fantasia, se-
gundo a narrativa, pois ela se dá em seu universo próprio.
Voltando à citação sobre o napolitano (CORTÁZAR, 2015, p.39), verificamos
como tudo acaba se impondo como uma verdade e caímos sempre em conformis-
!93
mos, para todos que viam o napolitano cuidando de um parafuso. A principio, senti-
am que havia uma espécie de loucura naquele tipo de comportamento, porém, com
o passar do tempo e com as diferentes críticas ao parafuso, passaram a considerar
como uma verdade diferente em suas vidas, eles mesmos eram capazes de experi-
enciar a paz. O parafuso não lhes desagradava mais tanto, as atitudes do napolitano
cuidando do parafuso já faziam parte de uma realidade que fora assumida pois os
conformismos foram deixados de lado pela insistência dele.
Esta parte do texto refere-se também ao encolher dos ombros de Maga no
primeiro livro: "Oliveira cantarolava o tango. A Maga chupou a bombinha, encolheu
os ombros, sem olhar pra ele” (CORTÁZAR, 2015, p 103). Oliveira incomodava-se
com o fato de Maga não saber usar a bombinha do mate e ter de ensiná-la, de forma
que ela encolhia os ombros em sinal de submissão, em sinal de aceitação de regras
sobre como beber o mate de Oliveira.
O livro continua narrando que o napolitano podia muito bem ser apenas um idi-
ota que olhava um parafuso, sem maiores consequências ou sem maiores percep-
ções, mas ele também poderia “[…] ter sido o inventor de um mundo. Do parafuso a
um olho, de um olho a uma estrela […] Por que entregar-se ao Grande
Costume?” (CORTÁZAR, 2015, p. 436). Essa é a forma como Cortázar trata seus
elementos durante o romance. Ele está a todo tempo tentando desconstruir a lin-
guagem literária de sua época e implantar uma espécie de nova linguagem que refe-
re-se aos objetos de acordo com o sentido que a obra pode dar, livre de conceitos e
definições.
Com ela, o autor rompe os moldes da literatura “séria”, tradicio-nalmente acadêmica, verbosa e empolada, através da abertura coloquial-irônica, de incisivos torneios populares. Aos numerosos estrangeirismos que marcam, Cortázar acrescentará ainda uma profusão de termos plurilingues, favorecido provavelmente pelos ofícios de tradutor e interprete a que se tem dedicado, bem como pela longa permanência na Europa e ampla leitura em literaturas estrangeiras (ARRIGUCCI, 1973, p. 24).
Sendo assim, Cortázar está destruindo códigos desgastados da tradição lite-
rária hispano-americana que se expressava muito bem por esta seguinte passagem
de Arrigucci: “Para se ter uma ideia, basta ler um ensaio como Lá urna griega em la
poesia de John Keats, feito dentro dos mais rigorosos esquemas universitários, ou a
introdução e os comentários que juntou à sua tradução das obras em prosa de Ed-
!94
gar Allan Poe” (ARRIGUCCI, 1963, p. 24). Arrigucci afirma que Cortázar era extre-
mamente culto, intelectualizado e conhecedor da linguagem culta da época que fôra
expressa no poema supracitado de Cortázar e que revela moldes tradicionais.
Cortázar acaba inventando novos tipos de expressar sentimentos quando nar-
ra: "Parece que seria uma boa inventar a bofetada doce, o pontapé de
abelhas.” (CORTÁZAR, 2015, p. 49) E esse trecho mostra a capacidade do autor de
inventar novas maneiras de expressar até mesmo uma insatisfação de forma ame-
na, pois um chute de abelha com certeza não causará grandes danos físicos a quem
o receber, mas é capaz de expressar uma certa indignação quanto a certos compor-
tamentos.
Após uma introdução poética e crítica sobre os moldes do conformismo, há
uma metamorfose dos capítulos. O capítulo 1 da leitura linear passou a ser o capítu-
lo 2 nessa nova leitura (não linear). Logo em seguida, Cortázar sugere que leiamos
o Capítulo 2 da leitura linear, que nessa nova possibilidade passou a ser o capítulo
3. Após este retorno a uma certa linearidade de capítulos passamos a ler o capítulo
116 da leitura linear, que passa a ser o capítulo 4 na leitura não linear e que, nas di-
retrizes de uma primeira leitura, segundo Cortázar, ainda não foi lido, pois devemos
ir somente até o capítulo 56. Morelli é citado novamente como criador de dilemas,
assim como Cortázar faz ao escrever O jogo da amarelinha, à medida que ele busca
uma reconstrução dos romances.
Sim, sofre-se por vezes, mas é a única saída decente. Basta de romances hedonistas, pré-mastigados, com psicologias. É preciso estender-se ao máximo, ser voyant como desejava Rimbaud. O romancista hedonista não passa de um voyeur. por outro lado, já chega de técnicas puramente descritivas, de romances ‘do com-portamento’, meros roteiros de filme sem o resgate das imagens (CORTÁZAR, 2015, p. 545).
Dessa forma, os romances não podem se limitar a meras descrições do coti-
diano ou meras descrições e representações do que é físico, eles têm o papel de
reinventar um mundo próprio. Agora o "Tabuleiro de Direção" (CORTÁZAR. 2015, p.
5) nos indica a leitura do 3º capítulo ('Leitura linear') e que nesta fase assume o pa-
pel do 5º capítulo deste novo livro, cuja leitura já havia sido feita em uma primeira
possibilidade de entendimento (leitura linear) mas que na leitura deste novo livro já
passou por uma reestruturação.
!95
5.1.1 Elementos psicológicos da leitura não-linear
De forma geral, os aspectos referentes aos contextos psicológicos nessa se-
gunda possibilidade de leitura são quase os mesmos, porém, em alguns momentos
sentimos que as relações existentes entre os personagens contavam com um em-
basamento que, em uma primeira leitura (por falta dos capítulos prescindíveis), não
estavam muito claros, pois, de fato, na leitura linear, parece que Maga não tem inte-
resse por grande parte dos conceitos e entendimentos de Oliveira e dos letrados do
'Clube da Serpente'. Porém, lendo a segunda história, ela traz esses conhecimentos
para um âmbito mais prático, como aconteceu na questão da folha e da exposição
das nervuras, que nos faz sentir que há, sim, na compreensão de Maga uma absor-
ção dos conceitos, porém ela tem mais afinidade com a vida prática e consegue es-
timular os demais personagens a partir de suas ações.
Oliveira começa a falar que está tão engessado que não consegue fugir daqui-
lo que já entende como conhecido. Ele sabe que há uma grande dificuldade nele de
entender as coisas por vê-las, sempre haverá um conceito por detrás daquilo que
ele vê.
O pior é que me arranha quando não está me picando e, na hora da comichão — quando eu desejaria conhecer —, tudo o que me rodeia encontra-se tanto firme, tanto situado, tanto completo e maciço e etiquetado, que chego a pensar que estava sonhando, que estou bem assim, que me defendo bastante bem e que não devo me deixar levar pela imaginação (CORTÁZAR, 2015, p.461).
Tudo está tão etiquetado, tão maciço, tão engessado para Oliveria que, quan-
do ele deveria conhecer as coisas, elas se impõem pela forma como ele já entendia.
A pulsão pelo conhecimento sobre as coisas foi extirpado dele quando ele aprendeu
que o conhecimento se impõe pela força de quem informa.
No capítulo noventa e três reaparece a questão das palavras associadas a
seres, de como, para Cortázar, as palavras corriqueiras podem tomar um novo sen-
tido “Curioso, muito curioso que Puttenham sentisse as palavras como se fossem
objetos, e até mesmo criaturas com vida própria” (CORTÁZAR, 2015, p. 484). A per-
sonagem Maga faz com que objetos inanimados se transformem em seres, em cria-
turas com vida própria como foi o caso do guarda-chuva.
!96
Maga está com Ossip Gregorovius e Oliveira no quarto escutando discos de
jazz. Ossip, que tem uma espécie de paixonite por Maga, tenta questioná-la sobre
como era a vida dela antes de conhecê-la, porém, Maga não sente intimidade ou
proximidade suficiente para expor sua infância ou coisas que a expusesse a ele. Em
sinal de decepção, Ossip acaricia a cabeça de Maga e Oliveira irrompe com uma
espécie de ciúmes demonstrando que Ossip não tem a capacidade dele de desnu-
dá-la, pois, caso fosse ele acariciando-a e escutando-a, logo teria de ir para seu
apartamento e fazer sexo com ela. Como se sua intimidade com Maga fizesse-a ne-
cessitar de conjunção carnal, coisa que com Ossip não existiria.
Gregorovius acariciou-lhe os cabelos e a Maga baixou a cabeça. “Ai está”, pensou Oliveira, renunciando a seguir as brincadeiras musicais de Dizzy Gillespie, sem rede, no trapézio mais alto. “Ai está, tinha que ser. Anda louco por essa mulher e só sabe dizê-lo daquela maneira, com os dez dedos. Como se repetem esses jo-gos! …] Todavia, se fosse eu quem lhe acariciasse o cabelo e ela me estivesse contando sagas platinas, e eu lhe manifestasse a minha lástima, então teria de levá-la imediatamente para casa, os dois um pouco bêbedos, deitá-la devagar, acariciando-a, desabo-toando-lhe a roupa, devagarzinho, devagarzinho cada botão, e ela não quer quer, não quer, esconde o rosto, tenta levantar-se, chora, abraça-nos como se propusesse algo sublime, ajuda baixar o zí-per, descalça os sapatos com os pontapés que nos parecem um protesto e nos excita até o arrebatamento. Ah! É ignóbil, ignóbil. Terei de te dar uma surra, Ossip Gregorovius, pobre amigo meu (CORTÁZAR, 2015, p. 61).
Oliveira tem certeza que, com ele, Maga teria outro tipo de comportamento.
Ela iria querer ser levada para casa e iria querer ter relações sexuais com ele, por
mais que no ritual de ambos ela mostre não querer de imediato eles acabariam dor-
mindo juntos.
5.1.2 Elementos empíricos da leitura não-linear
Enquanto na leitura linear não precisávamos nos preocupar com a ordem dos
capítulos, pois eles vinham subsequentemente um ao outro, nessa forma de reestru-
turação da obra (leitura não linear), passou a ser necessário mais atenção aos tér-
minos de capítulos, pois, ao fim de cada um deles há uma indicação entre parêntese
no canto inferior esquerdo da página para onde devemos seguir para continuar a lei-
tura, embora possamos também recorrer ao "Tabuleiro de Direção" (CORTÁZAR,
!97
2015, p.5), no início do livro. O simples fato de termos de prestar atenção à essa
nova possibilidade exige do leitor novas estratégias de leitura, para que se possa
acompanhar adequadamente as imposições do novo jogo, sem que o primeiro jogo
interfira nesse novo trajeto.
Essa nova leitura traz capítulos menores, que duram uma, duas ou três pági-
nas no máximo, exatamente como notas explicativas do que ficaram em aporia no
primeiro tipo de leitura, como anotações daquilo que era definido como uma antevi-
são imutável de Maga ou até mesmo dos demais personagens. Numa leitura linear,
às vezes precisamos voltar uma página ou um capítulo para entender de onde partiu
o raciocínio, porém, quando se trata desse tipo de leitura, basta voltar ao capitulo de
número inferior ao que estava lendo para poder captar as idéias. Já na leitura pro-
saica não-linear temos de voltar sempre ao “Tabuleiro de Direção” para verificarmos
de onde viemos a fim de retomar o raciocínio, sendo assim, adotar dois marcadores
de livros ajudam na "navegação" dos contextos da nova obra.
Outra questão que apareceu na nova leitura é quanto à ausência de um índi-
ce. Os capítulos não contêm indicação de suas respectivas páginas, por isso fica di-
fícil correr pelo 'Tabuleiro de Direção' sem alguma confusão. Eventualmente desco-
brimos que cada página tem em seu rodapé a marcação do capítulo entre colchetes,
facilitando assim a navegação pelos capítulos. Há também uma necessidade de
adequação para poder entender o sistema de determinação dos próximos capítulos
a serem lidos. Geralmente voltamos para consultar o início do livro em busca do
“Tabuleiro de Direção” a fim de nos orientarmos quanto a capítulo seguinte. Porém,
depois de um tempo, entende-se que ao final de cada capítulo há uma anotação en-
tre parênteses que dão a direção a seguir.
Ao lermos O jogo da amarelinha das duas maneiras que o autor propõe, é
possível perceber que do capítulo um ao cinquenta e seis, o narrador fala sobre a
cidade de Paris, citando passagens e memórias sobre acontecimentos na cidade.
Na segunda proposta de leitura em que devemos usar o “Tabuleiro de Direção”, os
eventos já não acontecem somente em Paris, mas misturam-se a acontecimentos de
seu retorno a Buenos Aires. Por conta disso, Cortázar chama de “De outros lados”
aquilo que acontece em Buenos Aires e de “Do lado de lá”, o que acontece em Paris.
O primeiro livro inicia as narrativas em Paris e o segundo inicia em Buenos Aires
!98
mas na segunda proposta de leitura Cortázar mescla ambas as cidades para criar
um novo romance.
A leitura de O jogo a amarelinha em português podem não satisfazer comple-
to quanto às propostas do conceito de jogo de Gadamer, principalmente por não
conter o espírito do jogo do autor argentino de forma tão fiel quanto em sua língua
mãe. Pode surgir a necessidade de acompanhar a história em espanhol para poder
captar este espírito da obra e do autor e assim entender as concepções empíricas,
psicológicas e filosóficas da obra de acordo com sua realidade.
No capítulo oitenta e quatro, Oliveira fala sobre folhas que ele coleta em Quai
dês Célestins, em Paris, o que lembra a passagem da primeira leitura do livro (leitura
linear), quando Maga arranca a polpa de uma folha, deixando exposta a nervura da
mesma e que faz com que todos os amigos de Oliveira, inclusive ele, que estava por
perto, se impressionem com aquele novo objeto. Essa passagem aparece nesse
novo livro após o capítulo 84, levando-nos a entender que Oliveira incentivou Maga
a retirar a polpa da folha, pois ele apenas via as nervuras colocando as folhas no
abajur . Se pensarmos na primeira leitura, acharemos que Maga é quem inventa o 20
exercício de retirar a polpa, pois ela estava sendo desmerecida pelos letrados, po-
rém, nessa nova leitura, podemos entender que é Oliveira quem inicia a tentativa de
expor as nervuras das folhas colocando-as no abajur. Mas ele nunca havia pensado
em retirar a polpa da folha, por isso, Maga insurge contra os deboches dos letrados
e de Oliveira mostrando na prática aquilo que Oliveira havia tentado fazer com o
abajur.
Por tudo isso, trago as folhas secas para o quarto e prendo-as no abajur. Ossip veio me visitar, ficou duas horas e nem olhou para o abajur. No outro dia, foi Etienne quem apareceu, sempre com a boina na mão, Dis donc, c’est épatant, ça!, e levanta o abajur, examina as folhas, entusiasma-se, Durero, as nervuras et cetera. Uma mesma situação e duas versões…. Fico pensando em todas as folhas que serei eu a não ver, o coletar de folhas secas, em tanta coisa que haverá no ar e que estes olhos não veem, pobres morcegos de romances e cinemas e flores dissecadas. Por todos lados haverá abajures, haverá filhas secas (CORTÁZAR, 2015, p. 458).
Portanto, a nova organização dos capítulos acaba trazendo elementos que
não apareciam na leitura linear e que fazia-nos acreditar que Maga era apenas uma
Na leitura linear, a cena da folha acontece no quarto capítulo. Na leitura não linear, porém, o capítu20 -lo quarto é, na verdade, o sétimo (Cap. 73, Cap. 1, Cap. 2, Cap. 116, Cap. 3, Cap. 84, Cap. 4).
!99
iletrada que ocupava seu tempo com futilidades tais como arrancar a polpa da folha
sem nenhum motivo aparente.
Da mesma forma que, para Oliveira, Maga está alienada quanto às conversas
do intelectuais, ele narra a visita de dois de seus amigos a seu apartamento e des-
creve como ambos se portaram diante do abajur e das folhas expostas falando so-
bre a alienação dele a respeito de determinados contextos. A alienação é uma carac-
terística relacionada ao foco de cada um.
Ossip não viu as folhas secas no abajur simplesmente porque seu limite está mais pra cá do que significava aquele abajur. Etienne viu perfeitamente as folhas, mas seu limite, em troca, não o deixou ver que eu estava amargo ele sem saber o que fazer em relação a Pola. Ossip entendeu imediatamente e mencionou-me que o nota-ra. E assim vamos todos (CORTÁZAR, 2015, p. 460).
Nessa descrição de Oliveira podemos perceber a diferença que há entre os
tipos de entendimentos, cada personagem. Ossip e Etienne partem daquilo que co-
nhecem para reagirem ao ambiente de Oliveira. Ossip está preocupado com os sen-
timentos e emoções de Oliveira, mas não está atento ao abajur que contém as fo-
lhas expostas. Por outro lado, o amigo Etienne, artista, percebe a beleza que há na
exposição das nervuras das folhas sobre o abajur, mas não percebe o amargor que
há no próprio Oliveira.
Oliveira e Maga aparecem no capítulo oito observando aquários e percebem
que aquilo é um novo mundo, que parece trazer os peixes como seres alados. Eles
nadam em uma substância que, por sua transparência, os faz ficarem sobrevoando
o local onde eles pisam, como se a água fizesse o papel do ar para os peixes, como
se aqueles peixes pudessem voar no ambiente que lhes é próprio: “[...] encontra-
vam-se esses aquários, ao sol, verdadeiros cubos ou esferas de agua que o sol mis-
turava com o ar, e os pássaros cor-de-rosa e negros, girando e dançando docemen-
te numa pequena porção de ar, lentos pássaros frios” (CORTÁZAR, 2015, p. 46) .
Os peixes-pássaros que giram e dançam docemente numa pequena porção de ar-
água podiam metaforicamente se parecer com nuvens do céu ou como cachorros de
jade ou até mesmo como uma obra de Giotto . Maga e Oliveira veem o aquário e 21
narram que aqueles seres somente são visíveis:
Pintor e arquiteto renascentista italiano (Giotto di Bondone).21
!100
[..] quando de perfil pois por conta de sua espessura, ao encara-rem-lhes acabam “desaparecendo" como integralidade somente voltando a ser o que eram ao mostrar-se lateralmente um rápido movimento da barbatana e, monstruosamente, o peixinho volta a aparecer, com seus grandes olhos […] (CORTÁZAR, 2015, p. 47).
No capítulo sessenta e oito, há uma ocorrência constante de palavras que
não fazem nenhum sentido. Na verdade, Cortázar havia criado uma linguagem cha-
mada de glíglico (jitanjáfora ) que serve para narrar os acontecimentos eróticos do 22
romance, levando em conta a sonoridade das palavras criadas, apesar não enten-
dermos de fato o que Cortázar quis dizer com as palavras que utilizou. O aspecto
sonoro em sua língua mãe dá um ar de erotismo ao capítulo, inclusive a própria tra-
dução não pode chegar a uma equivalência das palavras utilizadas por Cortázar, o
que foi feito foi uma transtradução (algo que copiou as palavras da melhor forma a
fim de mantê-las com a sonoridade requisitada por esta linguagem de Cortázar, o
glíglico).
No capítulo dez, um dos personagens fala sobre a incapacidade da gravação
de músicas de longa duração por falta do LP. Mesmo este tendo maior espaço para
a gravação de músicas, ainda carecia de grandes extensões limitando assim as ex-
tensas evoluções dos artistas da época.
A influência da técnica na arte — disse Ronald, metendo mão em um montão de discos e olhando vagamente as etiquetas. Estes caras de antes dos elepês tinham menos de três minutos para to-car. Agora, aparece um pássaro como Stan Getz e fica vinte e cin-co minutos diante do microfone, soltando-se à vontade, dando o melhor que tem. O pobre Bix tinha de trabalhar duro e, quando começava a esquentar, o disco acabava. Como deviam ficar furio-sos quando gravavam discos (CORTÁZAR, 2015, p.54).
Logo em seguida, surge um diálogo entre Maga e Gregorovius, em que eles
discutem sobre a diferença da luz de vela e a luz elétrica, como ambas agem dife-
rente sobre as pessoas e os objetos. Enquanto a vela tem um movimento e faz com
que as sombras se modifiquem, a luz elétrica petrifica as sombras, pois carece des-
ses movimentos.
- Essa luz é tão você, algo que vem e vai, que se move too o tem-po.
Enunciado linguístico constituído por palavras ou expressões que em sua maior parte carecem de 22
significados em si mesmas. Em uma obra literária, sua função apresenta-se por seu valor fônico.
!101
- Como a sombra de Horácio — retorquiu a Maga. - O nariz dele aumenta e diminui, é extraordinário! - Babs é a pastora das sombras — disse Gregorovius. — À força da trabalhar a argila, essas sombras concretas… aqui, tudo respi-ra, um contato perdido se restabelece; a música ajuda, a vodca e a amizade também… Essas sobras nos cantos: o quarto tem pul-mões, algo palpita. Sim, a eletricidade é eleática, petrificou nossas sombras (CORTÁZAR, 2015, p. 55).
O judeus costumam rezar à luz de velas e, com isso, imitam o vaivém das
chamas das velas balançando-se para frente e para trás enquanto recitam a torá,
como se o movimento da vela trouxesse vida às palavras da torá, como se fosse ne-
cessário entrar no rito através da participação do movimento da chama da vela. O
rito aparece então como um jogo entre a escritura sagrada, a chama da vela e quem
está rezando, a reza faz com que aquele balanço demonstre a devoção completa ao
rito como se todos os órgãos estivessem louvando o santo nome.
5.2 Leitura Filosófica não-linear
No capítulo oitenta e quatro, Oliveira cita um item que, na leitura linear, não
estava embasado da forma como ele define posteriormente, mas que já fazia sentido
na primeira leitura. Trata-se da questão de nos identificarmos pelos outros, quanto a
entendermos quem nós mesmos somos por sabermos que não somos os outros, ou
seja, na diferença que há entre os sujeitos.
Nesse instante, sei que sou porque estou exatamente sabendo o que não sou (coisa que ignorarei pouco depois, astutamente). […] É inapreciável: por isso dura pouco. Meço a minha defectividade, apreendo tudo o que, por ausência ou defeito, nunca posso ver. Vejo o que não sou. Por exemplo (isto veio de uma outra coisa, mas sai por aqui): existem enormes zonas às quais nunca cheguei e o que não se conheceu é o que não se é (CORTÁZAR, 2015, p. 459).
Essa discussão sobre reconhecer-nos pelas diferenças, pelo que há de dife-
rente nos outros segue até que Oliveira começa a falar de forma mais filosófica e
encadear a questão do reconhecer-se pelas experiências que vivemos.
A falta de experiência é inevitável, quando leio Joyce estou sacrifi-cando automaticamente outro livro e vice-versa etc. A sensação de falta é mais aguda em
!102
É um pouco assim: há linhas de ar em alta de sua cabeça, do seu olhar, zonas de detenção dos seus olhos, do seu olfato, do seu paladar, ou seja, você anda com seu limite por fora e você não poderá ultrapassar esse limite quando pensar que já apreendeu plenamente qualquer coisa, a coisa que é igual a um iceberg, tem um pedacinho por fora e o mostra, com todo o resto do seu volume bem para lá do seu limite e foi assim que o Titanic afundou (CORTÁZAR. 2015, p. 459 ~ 460).
De fato, Oliveira não consegue falar sobre o que não conhece, não consegue
ser o que não conhece, o que retoma o argumento de John Locke sobre sermos
uma tábula rasa, abordado no primeiro modo de leitura (leitura linear) a partir da fala
de Maga. Ela critica Oliveira quanto à incapacidade dele de libertar-se dos conceitos
e das pré-concepções, como se Oliveira levasse a cabo para sua existência o con-
ceito de tabula rasa do filosofo inglês.
Já nesse segundo modo de leitura, é Oliveira quem percebe que há limites
para o conhecimento, pois as experiências ditam a forma como ele conhece o mun-
do, haja vista que na leitura linear Oliveira encontra-se cerceado do pensar em um
determinado momento, quando seu tio bate com a mão na mesa e cala-o: "¡Se lo
digo yo, carajo!” (CORTÁZAR, 2015, p. 29), como se a experiência de seu tio criasse
um conhecimento universal.
O capítulo oitenta e um, que sucede o capítulo cinco, nessa nova proposta de
leitura faz uma boa ligação entre as narrativas, pois, no capítulo cinco, Oliveira fala
de suas relações sexuais com Maga e isso faz com que ele ache que Maga se sinta
em pé de igualdade para com ele, pois “[...] ela conseguia encontrar-se com ele, no
céu dos quartos de hotel, onde se enfrentavam iguais e despidos […]” (CORTÁZAR,
2015, p. 42). O capítulo oitenta e um se inicia falando da capacidade dos sofistas de
inventarem novas razões, como se Oliveira estivesse inventando uma razão para
Maga aparecer “[…] como se começasse a reconhecê-la, a fazê-la sua verdade, a
trazê-la para seu lado” (CORTÁZAR,. 2015, p. 42).
Para entender as narrativas que se referem-se a Paris, é necessário que per-
cebamos a Paris do romance, que percebamos que o que é narrado não depende
de um conhecimento empírico sobre a cidade de Paris e sim as descrições que os
personagens dão daquela cidade e que faz jus ao mundo que a obra constrói. Por
mais que existam elementos reais quanto à cidade de Paris, aqui, devemos largar os
!103
contextos da existência física que a cidade possa ter e entendê-la com o ideal da
Paris de O jogo da amarelinha.
Paris é um centro, entende, um mandala que é preciso percorrer sem dialética, um labirinto onde as fórmulas pragmáticas só ser-vem para se perder. Então uma breve cogitação que seja como respirar Paris, entrar em Paris, deixando que Paris também entre em nós, neuma e não logos (CORTÁZAR, 2015, p.484).
Claro que teremos muitas descrições reais da cidade de Paris, mas no ro-
mance ela aparece conforme o entendimento e as percepções dos personagens.
Como se para conhecer a Paris da obra fosse necessário enxergar através dos
olhos deles, entendê-la partir dos sentidos dos personagens.
!104
6 Conclusão
"À sua maneira, este livro é muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros” (CORTÁZAR, 2015, p. 5).
Eu tive cinco escritas diferentes, porque escrevi de diferentes ma-neiras; tenho então algum direito de propor a meu leitor pelo me-nos duas leituras. “Por isso O jogo da amarelinha diz em sua pri-meira página que à sua maneira ele são muitos livros, mas sobre-tudo são dois livros e que se pode ler de duas maneiras: a primei-ra é muito simples, é como qualquer livro só que ha que chegar até o capítulo, sei lá, sessenta, e tudo o que segue não há razão para ser lido; então aquele que goste de ler um romance como qualquer romance, linearmente, lê do princípio até esse capítulo e se esquece do demais porque se o lê depois não entende nada porque são coisas aparentemente desconexas, soltas, sem ne-nhuma relação aparente (CORTÁZAR, 2018, p. 223).
A obra O jogo da amarelinha é muitas obras, pois, mesmo que leiamos das
duas maneiras propostas, ainda teremos outras maneiras de lê-lo; há outros livros
dentro dela. Sempre há menções, mesmo que indiretas, a outros autores, composi-
tores e livros que inspiraram Cortázar nessa obra.
Cortázar (2015, pp. 36, 31, 29) faz referências a Montesquieu, Tomás de
Aquino, Helio Adriano e muitos outros, como forma de explicar a diferença entre um
conhecimento do mundo e um conhecimento dos conceitos sobre o mundo. Maga,
por exemplo, é referida como uma pessoa iletrada que aparece sempre como al-
guém que deve ser tutorada. Porém, a pseudo sabedoria de Maga sobre a vida e
seu conhecimento intuitivo tira os letrados do estado de alienação da realidade; os
sofistas que no romance se exibem como os instruídos carecem de experiência so-
bre os objetos da obra, que se apresentam a eles também como um jogo. Maga sur-
ge nesse contexto como a quebra do comodismo, quebra do determinismo e da cer-
teza que possuem os letrados.
Todas as teorias referentes à estética, a conceitos de Ser, à possibilidade de
existência se mostram vagas quando Maga aplica sua visão de suposta leiga e mos-
tra certas realidades que muitas vezes dependeriam de uma leitura aprofundada de
algum conceito filosófico.
Sobre a intuição de Maga, Oliveira diz: “‘Fecha os olhos e acerta no alvo’,
pensava Oliveira. ‘Exatamente o sistema Zen de disparar o arco. Mas acerta no alvo
simplesmente por não saber que esse é o sistema. […]’" (CORTÁZAR, 2015, p. 36),
!105
como se Maga acertasse os conceitos implícitos sem saber que eles existiam. Mui-
tas vezes, o narrador utiliza frases que partem do discurso filosófico, “Parto do prin-
cípio de que a reflexão deve anteceder a ação, sua boba” (CORTÁZAR, 2015, p.
30), pois a filosofia é o exercício da razão em prol da ação. O próprio Platão buscava
alcançar o mundo das ideias apurando sua reflexão, porém, o modo de ser-Maga é
o que dá asas aos desvelamentos da personagem e do universo da obra. Para os
filósofos, a reflexão, que parece simples para a figura de Maga, exige muitos anos,
de estudo ou seja, me parece que há um embate entre a razão instrumental (Oliveira
e os Sócios do Clube da Serpente) e a intuição (Maga), por mais que muitas vezes a
personagem erre em suas intuições e decisões.
É impossível explicar isso a você — dizia sempre Etienne. — Esse é o quebra-cabeça número 7 e você ainda está no 2. A Maga fica-va triste, apanhava um folha seca da calçada e conversava com ela, colocando-a sobre a palma da mão e acariciando-a suave-mente. Depois, arrancava-lhe a polpa com grande cuidado e dei-xava a descoberto as nervuras, fazendo com que um delicado fan-tasma verde se fosse desenhando na pele de sua mão. Etienne por sua vez, com um movimento brusco, pegava na folha e a olhava contra a luz. Era por causa desse tipo de coisas que todos a admiravam, um pouco envergonhados por terem sido tão ríspi-dos com ela (CORTÁZAR, 2015, p. 33).
Enquanto os personagens letrados da obra apreciam as teorias por detrás
dos acontecimentos, Maga os ilumina com suas ações mais práticas pois o simples
fato de ela arrancar a polpa de uma folha faz com que os teóricos passem a apreciar
algo que jamais haviam conhecido como prática, como se a alienação fosse deles e
não mais da Maga, que carece de teorias.
Maga, na verdade, chama-se Lucia. Ela teve seu nome alterado por Oliveira:
“— Vamos ver, Lucia: você sabe bem o que é a unidade? — O meu nome é Lucia,
mas você não tem de me chamar assim — disse a Maga […]” (CORTÁZAR, 2015,
p.94). Ela apresenta-se como uma espécie de antípoda de Oliveira, já que as descri-
ções a respeito de Maga são sempre as de uma mulher iletrada , ignorante e carente
dos conhecimentos teóricos e filosófico dos quais Oliveira e os frequentadores do
'Clube da Serpente' estão cheios.
O contexto do jogo de Gadamer é que possibilita que participemos do roman-
ce e percebamos um pouco de nós em tudo o que está descrito, pois, ao nos liber-
tarmos do eu subjetivo que rege nossa existência física desvelamos aquilo que se
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torna uma nova possibilidade de atualização, como se essa eu subjetivo limitasse
nosso acesso apenas ao que há no mundo físico e real. O conceito de jogo de Ga-
damer abre um acesso aos mais diversos mundos, sejam eles da literatura, da pintu-
ra, da música e até mesmo do mundo real. Ler a obra de arte como um jogo nos
moldes gadamerianos é o que possibilitou desvelar novidades dentro de um mundo
aparentemente regrado e rígido.
- Mas você ainda não entendeu que assim jamais vai aprender o quer que seja? — terminava por perguntar-lhe. - Você parece que-rer aprender tudo na rua, querida, o que não é possível. Para isso, e melhor você assinar o Reader’s Digest. - Não, essa porcaria nunca! (CORTÁZAR, 2015, p. 36)
Maga recusa-se a absorver conteúdos que não façam sentido à sua vida não
sendo importante o que se lê sobre a vida, mas sim o viver é o que importa para
Maga. O eu subjetivo dela torna-se muito mais valioso do que qualquer descrição
conceitual a respeito do que se vive; é nesse sentido que viver importa mais a Maga.
A noção de que, dentro desse intrincado labirinto cortazariano, pode haver um
mundo próprio é a proposta de Gadamer para a apreciação de uma obra de arte.
Para jogar o “O jogo da amarelinha necesária a libertação de nossa subjetividade.
Participando do vaivém contínuo da obra é que compreendemos os “capítulos pres-
cindíveis” como a abertura de uma nova possibilidade, ao mesmo tempo que os “ca-
pítulos imprescindíveis” reaparecem com novas possibilidades de entendimento, já
que acabam adicionando certos itens que não estavam tão evidentes.
Ao escrever o livro O jogo da amarelinha, Cortázar criou diversos contos e
estes contos acabaram compondo uma obra maior, cujas histórias separadas aca-
bavam se completando. Aquilo que chegava pelos capítulos e nos levava a uma
aporia foi tomando seu sentido conforme os capítulos foram sendo ligados. No livro
Aulas de Literatura, Cortázar explica que, para poder organizar o livro e seus capítu-
los, acabou espalhando as histórias pelo chão e criou uma espécie de labirinto de
modo a unir as passagem para criar uma narrativa coesa, formando assim os ro-
mances, já que podemos ler ao menos de duas maneiras aquele livro.
Este tipo de organização dos contos fez com que o livro tivesse o nome de O
jogo da amarelinha, pois o romance está organizado de maneira a nos propiciar uma
narrativa que pode tomar diferentes rumos conforme as diferentes possibilidades de
leitura propostas pela obra. Essa participação dos diferentes caminhos propostos
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pelo romance é que permitiu o desvelamento de novas possibilidades e, ao fim des-
se jogo, podemos sair aliviados, pois entendemos que tudo aquilo não passou de um
jogo literário. A atualização de nosso eu subjetivo acontece por conta dessas diver-
sas propostas de leitura contidas no romance.
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