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Poética moderna - Baudelaire

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Page 1: Poética moderna - Baudelaire

 

1. Introdução

Com o advento da modernidade poética, a função intelectual do poeta suplanta as antigas idéias que associavam o ato poético a uma espécie de poder divino. Com Baudelaire, a lucidez poética se torna um instrumento chave que evidencia o trabalho penoso do artista por meio de seu intelecto. Com o presente trabalho, exporemos rapidamente como o poeta era interpretado pela visão socrática e, posteriormente, discorreremos sobre a Poética da Modernidade, em que o poeta é visto como um flâneur dos tempos modernos. Após perder sua auréola divinatória, o poeta baudelairiano, ao esgrimir sua estranha arte poética, vivencia a experiência do choque, que, de acordo com Walter Benjamin, é decorrente dos tempos modernos e das multidões. Ao abordarmos alguns temas baudelairianos, especialmente ao que se refere ao dandismo, ao artificialismo e à figura da mulher, veremos que, enquanto precursor da Modernidade na arte, Baudelaire evidencia uma poética que relativiza o conceito de belo universal e que reage contra a noção de natureza pura.

 

2. Sócrates: o poder divinatório do poeta

A arte poética sempre esteve associada a uma idéia de sublimação. O percurso poético, envolvido de enigmas e experiências sobrenaturais, só poderia ser trilhado pelo escolhido, por aquele a quem fosse concedido um poder sagrado. Nesse sentido, por meio de uma visão socrática, a manifestação poética aproxima-se da revelação religiosa, tendo em vista que ambas podem proporcionar um regresso à natureza original e à essência primitiva do homem. Como afirma Octávio Paz, a revelação poética possui um élan sagrado, uma vez que “(...) lo sagrado es el sentimiento original del que se desprenden lo sublime y lo poético” [1] (PAZ, 1992: 141). Tendo em vista esta concepção, é, portanto, por meio da revelação poética que o homem regressa à sua condição originária.

Relacionada à idéia de revelação, surge-nos a noção de inspiração que é interpretada como uma misteriosa colaboração de uma voz inexplicável que murmura no ouvido do poeta ou penetra-lhe interiormente o ser, conduzindo-o à criação poética. Para Octávio Paz, esse mistério inspirador ocorre por meio de uma “irrupción de una voluntad ajena” [2] (PAZ, 1992: 159), que ao se manifestar, é capaz de apossar-se daquele - o poeta - que será o veículo para sua manifestação. Para o crítico mexicano, a inspiração é uma revelação “porque es una manifiestación de los poderes divinos. La creación poética es un mistério porque consiste en un hablar de los dioses por la boca humana” [3] (PAZ, 1992: 161).

Essa imagem sacra do poeta, reiterada por Octavio Paz, remonta a questões seculares. No Ion, de Platão, texto cuja redação situa-se entre os anos 394-391 a.C., já se encontram discutidos os temas da inspiração e da técnica. A essência dessa obra, fundamentada no diálogo entre o filósofo Sócrates e o rapsodo Ion, recai sobre a importância concedida à inspiração poética que já pode ser observada em Homero e Hesíodo, quando esses grandes poetas fazem invocações às musas. O diálogo platônico pretende mostrar que o contato com a poiésis se dá por uma espécie de predisposição, um dom divinatório que comunica a mensagem poética. O poeta é aquele que, ao interpretar a voz dos deuses, comunica-a aos homens.

Para Sócrates o poeta é um ser inspirado que não produz belas composições em seu estado sereno, mas somente é capaz do ato poético quando penetra nas regiões da harmonia, cujo ritmo é possuído por Baco. O poeta tem sua anima alentada com o sopro divino, tornando-se leve: “Porque es una cosa leve, alada y sagrada el poeta, y no está en condiciones de poetizar antes de que esté endiosado, demente, y no habite ya más en él la inteligencia. Mientras posea este don, le es imposible poetizar y profetizar” [4] (SÓCRATES, s/d: 6). Como vimos, para compor ou para proclamar, o poeta era destituído de seu poder intelectual. Nesse sentido, o poema, para o filósofo grego, não seria uma composição humana, mas sim uma obra divina:

(...) me parece a mí que la divinidad nos muestra claramente, para que no vacilemos más, que todos estos hermosos poemas no son de factura humana ni hechos por los hombres, sino divinos y creados por los dioses, y que los poetas no son otra cosa que intérpretes de los dioses, poseídos cada uno por aquel que los domine [5] (SÓCRATES, s/d: 7).

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Como percebemos até aqui, a arte poética por muito tempo esteve submergida em uma visão socrática. A figura do poeta era envolvida por uma espécie de auréola, cujo estado de esplendor lhe concedia uma posição sublime. O desprovimento da razão frente a um estado de arrebatamento divino evidenciava que o próprio deus falava pela voz do poeta. No entanto, com a Modernidade poética, especialmente com Baudelaire, essa imagem alada do poeta passará por uma transformação e será associada ao flâneur. O poeta sairá às ruas, viverá a experiência do choque e, ainda que a poesia não perca completamente seu caráter místico, a lucidez artística evidenciará uma arte poética resultante de uma intelecção humana.

 

3. Baudelaire: O poeta perde sua auréola e sai às ruas

Com o advento da Modernidade, a revelação poética converteu-se em um problema conceitual, tendo em vista a emergência da idéia de que a inspiração promovia uma negação às forças intelectuais. O homem moderno depara-se com novas formas de pensar e sentir e encara o ato poético como algo inserido dentro de uma concepção estética que relativiza o sentimento do belo universal e que reconhece o trabalho e a ascese artística. A elaboração poética é resultado de uma técnica, de um exercício e de uma dedicação, e o poeta é aquele que trabalha com o intellectus e não mais com a inspiratio. O cantor das palavras divinas perde sua auréola.

Alguns aspectos da Modernidade poética já são encontrados em Edgar Alan Poe, quando o poeta norte-americano expõe, em “A filosofia da composição”, o seu modus operandi. Ao reconhecer que toda composição, para atingir seu acabamento e alcançar seus verdadeiros propósitos necessita do trabalho forçoso da mente, Alan Poe, explicita as etapas para a elaboração de “O Corvo”, um dos seus poemas mais famosos. De acordo com o poeta norte-americano:

Muitos escritores - especialmente os poetas - preferem ter por entendido que compõem por meio de uma espécie de sutil frenesi, de intuição extática, e positivamente estremeceriam, ante a idéia de deixar o público dar uma olhadela, por trás dos bastidores, para as rudezas vacilantes e trabalhosas do pensamento, para os verdadeiros propósitos só alcançados no último instante, para os inúmeros relances de ideais, que não chegam à maturidade da visão completa, para as imaginações plenamente amadurecidas e repelidas em desespero, como inaproveitáveis, para as cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas emendas e interpolações, numa palavra, para as rodas e rodinhas, os apetrechos de mudança do cenário, as escadinhas e os alçapões do palco, as penas de galo, a tinta vermelha e os disfarces postiços que, em noventa e nove por cento dos casos, constituem a característica do histrião literário (POE, 1944: 78, grifo nosso).

Em seu texto, Poe elenca todos os elementos por ele usados na busca da impressão ou efeito de sua técnica, a qual seria autenticada pela Beleza, que, para o poeta, é “a única província legítima do poema” (POE, 1944: 80). É dessa maneira que Poe explicará em “O Corvo” a presença de um tom melancólico, a escolha de uma extensão, a opção pela recorrência no poema de uma espécie de refrão Never more, o porquê do cenário escolhido e a causa da condição do personagem que é inserido num contexto de luto, ao ter perdido sua amada. Nesse seu texto, Poe tem por desígnio tornar manifesto que nenhum ponto da composição de “O Corvo” se refere ao acaso ou à intuição, e sim “que o trabalho caminhou passo a passo, até completar-se com a precisão e a seqüência rígida de um problema matemático” (POE, 1944: 79).

Poe, na citação acima, associa o poeta a um tipo de histrião literário, ou seja, a um tipo de comediante farsista. Entre os romanos, o histrião era aquele que representava farsas populares, de concepções simples, em que predominavam gracejos e situações que conduziam ao riso. Mas, ao mesmo tempo, a farsa está relacionada com um tipo de representação que induz a um tipo de embuste, que busca lograr por algum artifício. Esse caráter artificial é um dos aspectos que marcará a poesia moderna, que passa a ser vista por meio da imagem de um sudário, tendo em vista que o poeta passa a apresentar e expor todo o seu sofrimento intelectual.

O grande precursor da Modernidade, contudo, foi Baudelaire. Tradutor de praticamente toda a obra de Poe, muitos reconhecem afinidades em ambos, ainda que Ivan Junqueira mencione que “exagera-se quanto à influência exercida por Poe sobre Baudelaire” (1985: 52). De acordo com o crítico, Baudelaire absorve de Poe algumas noções que dizem respeito às matrizes da poesia moderna, como as que se referem: à autonomia da poesia em relação à filosofia, à moral, à história ou à política; à possibilidade de análise psicológica que um poema oferece; à economia quanto aos meios de expressão e à própria duração do discurso poético (cf. JUNQUEIRA, 1985: 54). Sobre a questão de

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duração, é importante salientar que a consideração inicial que teve Poe para compor “O Corvo” foi a da extensão. Segundo o poeta norte-americano:

Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito intensamente importante que se deriva da unidade de impressão, pois, se se requerem duas assentadas, os negócios do mundo interferem e tudo o que se pareça com totalidade é imediatamente destruído (POE, 1944: 79).

Como notamos, existem sim algumas relações entre Poe a Baudelaire, contudo, tratam-se de estéticas diferentes. De acordo com o Ivan Junqueira (1985), o êxtase hierático de Poe não tem, por exemplo, relação com o sensualismo dos impulsos místicos de Baudelaire, que se detém acima de tudo, de acordo com o crítico, nas questões que se voltam ao tormento humano. O poeta, em Baudelaire, é um ser mundano, que teve suas asas privadas do mundo das alturas e experimenta a situação do exilado, do ser expulso do paraíso e que muitas vezes sofre para adaptar-se ao mundo terreno, enfrentando uma situação de martírio:

O Poeta se compara ao príncipe da altura Que habita os vendavais e ri da seta no ar; Exilado no chão, em meio à turba obscura, As asas de gigante impedem-no de andar (“O Albatroz”)

Desprovido, portanto, de uma aura divinizada, o poeta, o então provador do manjar dos deuses, precipita-se no abismo e perde sua auréola:

(...) Ainda há pouco, quando atravessava a toda a pressa o bulevar, saltitando na lama, através desse caos movediço onde a morte surge a galope de todos os lados a um só tempo, a minha auréola, num movimento precipitado, escorregou-me da cabeça e caiu no lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder as minhas insígnias do que ter os ossos rebentados (BAUDELAIRE, 1977: 112).

Como pudemos notar, Baudelaire denota-nos um poeta que por também ser perecível à morte prefere perder sua auréola a arriscar sua vida e que ainda consegue ver uma vantagem em sua nova situação, uma vez que, como um ser humano, poderá então “passear incógnito, praticar ações vis” (BAUDELAIRE, 1977: 112) e entregar-se “à crápula, como os simples mortais” (idem, ibidem).

 

4. O flâneur dos tempos modernos e a experiência do choque

Baudelaire expõe o artista como homem do mundo, dos novos tempos e das multidões. De acordo com o poeta francês, o artista, que compreende as razões misteriosas e legítimas de todos os costumes, é movido pela curiosidade, considerada como ponto de partida de seu gênio. Nesse sentido, notamos aqui uma nova referência a Alan Poe, que em seu texto L’Homme des Foules, revela-nos um homem convalescente que “espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas” (POE, 1987: 130), detinha-se no exame minucioso dos passantes, analisando todos os tipos de classes, suas vestimentas, seus gestos e suas impressões individuais. Ao deter-se diante do semblante de um velho decrépito, cuja idiossincrasia da expressão lhe fascinava, o homem decide precipitar-se na multidão à procura do desconhecido:

Senti-me singularmente exaltado, surpreso, fascinado. “Que extraordinária história”, disse a mim mesmo, “não estará escrita naquele peito!” Veio-me então o imperioso desejo de manter o homem sob as minhas vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o sobretudo e, agarrando o chapéu e a bengala, saí para a rua e abri caminho por entre a turba em direção ao local em que o havia visto desaparecer (...) (POE, 1987: 134).

Movido pela curiosidade, o narrador de Poe insere-se na multidão a fim de seguir o velho e conhecer-lhe a vida. Assim como no conto de Poe, o poeta, para Baudelaire, precisa sair às ruas e apreciar as paisagens oferecidas pela cidade:

Quero, para compor os meus castos monólogos, Deitar-me ao pé do céu, assim como os astrólogos, 

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E, junto aos campanários, escutar sonhando Solenes cânticos que o vento vai levando. As mãos sob meu queixo, só, na água furtada, Verei a fábrica em azáfama engolfada; Torres e chaminés, os mastros da cidade, E os vastos céus a recordar a eternidade (“Paisagem”)

Da mesma maneira que o personagem londrino de Poe espreitava “a rua através das vidraças esfumaçadas”, o poeta baudelairiano fixa-se frente ao tumulto que observa de sua janela:

O Tumulto, golpeando em vão minha vidraça, Não me fará mover a fronte ao que se passa, Pois que estarei entregue ao voluptuoso alento De relembrar a Primavera em pensamento E um sol na alma colher, tal como quem, absorto, Entre as idéias goza um tépido conforto (“Paisagem”).

Ao tratarmos do tema da multidão na poesia baudelairiana, logo nos surge a imagem do flâneur que vaga pelas ruas de Paris. O homem dos novos tempos adentra-se à multidão para compreendê-la, para captá-la por meio de uma experiência empírica, frente a uma curiosidade que o impele. Contudo, tal experiência se dá, na vida cotidiana, de maneira muito abrupta, num movimento rápido dos tempos modernos, exigindo do artista maior velocidade na execução de sua arte. Diante da exigência de rapidez que exige traços fugazes, Baudelaire detém-se à arte do desenhista e aquarelista Constantin Guys, cujos croquis de costumes, revelam a originalidade de um “enamorado pela multidão e pelo incógnito” (BAUDELAIRE, 1997: 14). Constantin Guys, afirma Baudelaire, “desenhava como um bárbaro, como uma criança, irritando-se contra a imperícia de seus dedos e a desobediência de seu instrumento” (BAUDELAIRE, 1997: 15). A rapidez do mundo requer traços velozes.

Para captar as cenas do cotidiano, o artista, apaixonado pela multidão necessita fruir pelo desconhecido. Como um verdadeiro flâneur, o homem do mundo é um observador da multidão, seu verdadeiro universo:

(...) Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no movimento, no fugidio e no infinito. (...)  Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidão como se isso lhe aparecesse como reservatório de eletricidade. (...). É um eu insaciável do não-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais vivas do que a própria vida, sempre instável e fugidia. (BAUDELAIRE, 1997: 20-21, grifo nosso).

Para Baudelaire, esse flâneur, um solitário na multidão, dotado de imaginação ativa, que vaga pelo “grande deserto dos homens”, busca, no efêmero das circunstâncias, o que se pode chamar de Modernidade, que nada mais é que “o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável” (BAUDELAIRE, 1997: 25). Cabe ressaltar que, na poética da Modernidade, multidão e solidão não são termos excludentes, mas complementares.

O homem da multidão está associado, na poética baudelairiana, à temática urbana, que é notadamente explorada nos “Tableaux parisiens”, parte de As flores do mal em que o poeta debruça-se sobre os aspectos da cidade contemporânea, sobre o frenesi das novas técnicas, bem como sobre a massa caótica que forma a multidão parisiense. Em “Tableaux parisiens”, notamos algumas referências feitas por Baudelaire a um verdadeiro choque de experiências, resultante da perplexidade do contato humano que se dá na Modernidade. Tal choque também está presente no plano poético, o qual parece fornecer à visão de um verdadeiro combate:

Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros Persianas acobertam beijos sorrateiros, Quando o impiedoso sol arroja seus punhais Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais Exercerei a sós a minha estranha esgrima, Buscando em cada canto os acasos da rima, 

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Tropeçando em palavras como nas calçadas, Topando imagens desde há muito já sonhadas.

Este pai generoso, avesso à tez morbosa, No campo acorda tanto o verme quanto a rosa; Ele dissolve a inquietação no azul céu, E cada cérebro ou colméia enche de mel. É ele quem remoça os que já não se movem E os torna doces e febris qual uma jovem, Ordenando depois que amadureça a messe No eterno coração que sempre refloresce!

Quando às cidades ele vai, tal como um poeta, Eis que redime até a coisa mais abjeta, E adentra como rei, sem bulha ou serviçais, Quer os palácios, quer os tristes hospitais.

Como percebemos, duas figuras se sobressaem no poema: o sol e o poeta. Ambos têm algo em comum: ostentam as suas armas. O sol “arroja os seus punhais”, enquanto o poeta “a sós” exerce a sua estranha esgrima. Já aqui percebemos o jogo fonético que se dá entre o vocábulo sol no terceiro verso e a locução “a sós” do quinto. A relação entre essas duas figuras perpassa todo o poema, até que o sol é equiparado ao poeta, e não o contrário: “Quando às cidades ele [o sol] vai, tal como um poeta”.

No poema, depreendemos a imagem do poeta que “a sós”, ou seja, solitariamente, ou ainda, sob o sol, exerce sua estranha esgrima: a arte de poetizar. A figura do esgrimista que trava um combate com sua própria arte, já que esgrime “a sós” e sob o sol, remete a experiência de um choque. O poeta é um solitário que, em meio aos subúrbios da cidade, sai em busca de versos e rimas. Ansioso para poder manipular sua arte, o esgrimista da linguagem, só consegue o feito tropeçando em palavras ou chocando-se com imagens. Há aqui, referência à lucidez do poeta, que sob à “luz” do sol precisa trabalhar com seu material tanto concreto (palavras) como abstrato (imagens), em busca da composição poética. O poeta “topa” com imagens que precisam ser capturadas, mas a linguagem é fluida e não consegue concretizar a imagem, sempre fugidia, comum aos tempos modernos. Por isso, cabe ao poeta, vagar como um flâneur, adentrando-se, em meio à multidão, tanto em palácios, onde se depara com a beleza e a exuberância, como em hospitais, onde se esbarra com o feio e o patológico.

Notamos que Baudelaire relaciona o homem da multidão à figura do flâneur. No entanto, Walter Benjamin (1989) não concorda com tal associação, afirmando-nos que o homem da multidão não é nenhum flâneur, uma vez que “nele o comportamento tranqüilo cedeu lugar ao maníaco” (BENJAMIN, 1989: 121). Para o pensador alemão, enquanto o flâneur de Londres teve seu ambiente perdido, o flâneur parisiense encontra-se no “meio-termo”, uma vez que ainda havia na Paris de Baudelaire balsas cruzando o Sena ou ainda se apreciavam galerias onde o flâneur se subtraía da vista dos veículos, que não admitiam a concorrência com o pedestre. Como notamos, Walter Benjamin menciona o avanço da técnica como elemento que promove mudanças nos hábitos dos transeuntes e especialmente na vida do flâneur, acostumado a vagar ociosamente pelas ruas. Nesse aspecto, o filósofo alemão faz uma distinção entre o transeunte que “se enfia na multidão” (BENJAMIN, 1989: 122) e o flâneur que “precisa de espaço livre e não quer perder sua privacidade” (idem, ibidem).

De acordo com Walter Benjamin (1989), o tema da multidão se impôs com grande autoridade aos literatos do século XIX e, ao que se refere a Baudelaire, “a massa lhe é algo tão pouco exterior que nos permite seguir de perto, em sua obra, o modo como ele resiste ao seu envolvimento e à sua atração” (BENJAMIN, 1989: 115). Nesse sentido, para o filósofo alemão, a massa era tão intrínseca a Baudelaire, que o poeta não se detinha a descrever nem a população nem a cidade. Ao abrir mão das descrições, o poeta francês “colocou-se em condições de evocar uma imagem na outra” (BENJAMIN, 1989: 116). Vemos aqui a figura do poeta esgrimista, “Topando imagens desde há muito sonhadas” (“O Sol”).

Walter Benjamin (1989) afirma que nos “Tableux parisiens” encontramos a presença secreta da massa, uma espécie de “burburinho silencioso” nas ruas desertas. É o que notamos, por exemplo, na figura do poeta que adentra, movendo-se como rei, “sem bulha”, quer nos palácios ou nos hospitais. Contudo, esse mover-se pela cidade, através

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do tráfego, implicava, de acordo com Walter Benjamin, uma série de choques e colisões entre os indivíduos no estremecer de rápidas seqüências. Para o pensador alemão, Baudelaire “fala do homem que mergulha na multidão como em um tanque de energia elétrica” (BENJAMIN, 1989: 124-5). É o que depreendemos das palavras do próprio Baudelaire: “Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidão como se isso lhe aparecesse como reservatório de eletricidade” (BAUDELAIRE, 1997: 20-21).

Como então podemos perceber, a vivência do choque corresponde, no poema “O Sol”, à estranha arte da esgrima do poeta que duela, buscando a experiência poética. De acordo com Walter Benjamin, “Este elemento foi fixado por Baudelaire numa imagem crua. Ele nos fala de um duelo no qual o artista, antes de sucumbir, grita de espanto. Este duelo é o processo mesmo da criação” (apud JUNQUEIRA, 1985: 605). Notamos, portanto, que no poema baudelairiano a experiência do choque, que nos é transmitida pela condição do poeta, refere-se tanto ao plano humano, como ao plano poético. O poeta, enquanto homem do mundo, choca-se com experiências conflitantes, e enquanto artista, esgrime com palavras e imagens.

 

5. A figura do dândi em Baudelaire: o uso do artifício, a figura da mulher e a linguagem

A mudança de perspectiva frente ao fazer poético, que notamos na Modernidade baudelairiana está relacionada, como já mencionado, com a relativização da questão do belo. Até o século XVIII, a natureza era a fonte do bom, do belo e do verdadeiro. O que encontramos em Baudelaire é uma reação frente a esse estatuto universal fundamentado na natureza, vista pelo poeta francês como algo abominável. Dentre os seres naturais, o mais perverso para Baudelaire é a mulher. Para combater o elemento natural, o autor de As flores do mal faz uso do artifício, elemento que suplantará o aspecto natural. O símbolo maior desse artifício é visto na figura do dândi. De acordo com Ivan Junqueira:

Ao reagir (...) à ênfase que puseram algumas correntes do século XVIII sobre o papel da natureza enquanto fonte de todo o bem e de todo o belo, Baudelaire deixa muito clara sua posição: tudo o que é natural é abominável, incluindo-se aí a mulher, que, por ser natural, “cést-à-dire abominable” (1985: 55).

Para o crítico, a figura do dândi é a característica mais arraigada à função da máscara na poesia baudelairiana, um artifício que possibilita a passagem, em Baudelaire, da pessoa à persona. Cabe salientar que o termo persona, cuja origem etimológica significa máscara e remete àquelas máscaras fixas usadas nas tragédias gregas, também está presente na teoria psicanalítica de Jung e refere-se à personalidade que o indivíduo apresenta aos outros como sendo a real, mas, que, no entanto, é apenas uma variante daquela, podendo ser, às vezes, muito distinta da sua verdadeira personalidade.

De acordo com Ivan Junqueira (1985), o dandismo está tanto na raiz da fundamentação estética de Baudelaire como na origem e na justificação da conduta humana e social do poeta. Essa espécie de comportamento de dândi, indivíduo que se veste com elegância e requinte, diz respeito ao estilo literário ou artístico do fin-de-siècle XIX, caracterizado pelo artificialismo e pelo excesso de refinamento. Seria, de acordo com Ivan Junqueira, por meio de seu dandismo, que Baudelaire, ou fugia da dor ou a assumia, contudo sob o disfarce estético da artificialidade: “Entenda-se, pois, que a máscara do dândi, se de um lado é artifício, de outro não deixa de ser algo que se lhe aderiu à pele para sempre e tão profundamente que não mais lhe foi possível arrancá-la” (JUNQUEIRA, 1985: 56). O artifício do dandismo, portanto, seria usado a fim de corrigir a imperfeição natural.

Essa máscara, já em si algo artificial, corresponde também ao disfarce estético, aludido por Baudelaire quando ele menciona à maquiagem das mulheres, que tentam amenizar as manchas que a natureza nelas semeou. O pó-de-arroz seria usado como um artifício para dotar a pele de um tom e textura superior. Contudo, relata Baudelaire, tal artifício não seria capaz de embelezar a feiúra, servindo, portanto, somente à beleza, cuja expressão legitima a arte, mas que em si é resultado de um jogo lúdico e artificial e, tratando da mulher, de algo demoníaco, como notamos nos seguintes versos:

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Sem cessar a meu lado o Demônio se agita, E nada ao meu redor como um ar impalpável; Eu o levo aos meus pulmões, onde ele arde e crepita, Inflando-os de um desejo eterno e condenável.

Às vezes, ao saber do amor que a arte me inspira, Assume a forma da mulher que eu vejo em sonhos, E, qual tartufo afeito às tramas da mentira, Acostuma-me a boca aos seus filtros medonhos (“A destruição”).

Geralmente associada a algo macabro, a mulher, na poesia baudelairiana, é vista como um ser maldito, cuja beleza é alegoricamente associada à morte ou a algo espectral:

É uma bela mulher, de aparência altaneira, Que deixa mergulhar no vinho a cabeleira. As tenazes do amor, os venenos da intriga, Nada a epiderme de granito lhe fustiga. Da Morte ela se ri e escarnece da Orgia, Espectros cuja mão, que ceifa e suplicia, Respeitaram, contudo, em seus jogos de horror, Neste corpo elegante o rústico esplendor. Caminha como deusa e dorme qual sultana E mantém no prazer uma fé maometana Braços em cruz, inflando os seios soberanos, Com seu olhar convoca a raça dos humanos. Ela sabe, ela crê, em seu ventre infecundo, E no entanto essencial ao avanço do mundo, Que a beleza do corpo é sempre um dom sublime Que perdoa a sorrir qualquer infâmia ou crime. O Inferno desconhece e o Purgatório ignora, E quando a negra Noite anunciar sua hora, Da Morte ela há de olhar o rosto apodrecido - Sem remorso ou rancor, como um recém-nascido (“Alegoria”).

De uma grandeza elevada, altaneira, e de beleza sublime, a figura da mulher, em Baudelaire, esconde o ventre infecundo e os venenos da intriga. Notamos, portanto, que a mulher é inserida num plano poético de oposições que se fundem, cujos paradoxos fazem alusão a uma natureza abominável que é transfigurada, por meio de artifícios, em um corpo belo e encantador, o qual esconde em suas entranhas as mazelas da Morte. Nesse sentido, como o próprio nome do poema confirma, encontramos na constituição da natureza da mulher um tipo de representação alegórica, tendo em vista que, nas palavras de Walter Benjamin: “Quanto maior a significação, tanto maior a sujeição à morte, porque é a morte que grava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a physis e a significação. Mas se a natureza desde sempre esteve sujeita à morte, desde sempre ela foi alegórica (1984: 188).

A linguagem será usada também como artifício poético. Como afirma Cara “o poeta moderno sabe perfeitamente que qualquer recorte do mundo será apenas linguagem e não lhe é possível mais do que isso: o poeta moderno se vê projetado no mundo exterior, sabendo que desse mundo poderá fazer apenas uma tradução parcial” (1986: 40). A linguagem, enquanto artifício, volta-se para a interpretação de si mesma. O poeta volta-se para a compreensão de seus próprios recursos poéticos, os quais podem ser observados, por exemplo, em recursos metalingüísticos e metapoéticos, sempre embelezados por imagens ambíguas:

Depois do tédio e dos desgostos das penas Que gravam com seu peso a vida dolorosa, Feliz aquele a quem uma asa vigorosa Pode lançar às várzeas claras e serenas;

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Aquele que, ao pensar, qual pássaro veloz, De manhã rumo aos céus liberto se distende, Que paira sobre a vida e sem esforço entende A linguagem da flor e das coisas sem voz! (“Elevação”).

Encontramos, portanto, em Baudelaire, uma nova imagem do “ser alado”, já mencionado por Sócrates. Mas enquanto o poeta socrático é destituído da razão e embebido pelo poder divino, o poeta moderno, da poesia baudelairiana é aquele que “pena” em uma “vida dolorosa”, a fim de chegar a “elevação”, simbolizada na imagem do pássaro. A metáfora da pena pode ser interpretada tanto como a pena do pássaro veloz que distende aos céus, como também com a pena usada na feitura do poema, revelando-nos a imagem do poeta que pena e que sofre, tentando encontrar o inexprimível da “linguagem da flor e das coisas sem voz!”.

 

6. Considerações finais

Como vimos, Baudelaire, enquanto precursor da poética da Modernidade, promoveu importantes mudanças no ideário estético. De uma formação intelectual e literária, bem como de uma sensibilidade estética apurada, Baudelaire não se restringiu somente às manifestações românticas de sua época, ultrapassando-as e moldando as bases para um novo momento artístico. O poeta baudelairiano encontrou nas ruas seu manancial temático, esgrimindo-se com imagens e palavras em meio aos choques urbanos, denotando, dessa maneira, o duelo do poeta com a experiência dos novos tempos. Nas palavras de Walter Benjamin, Baudelaire “pagou o preço que é preciso pagar para adquirir a sensação do moderno: a desintegração da aura na vivência do choque” (1989: 145).