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PODER JUDICIÁRIO ESTADO DE RONDÔNIA
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PALESTRA – CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL ENTRE PESSOAS DO MESMO
SEXO – 24.08.2012 – AUDITÓRIO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Os impedimentos para o casamento estão previstos
no art. 1.521, as causas de nulidade no art. 1.548 e as de
anulabilidade no art. 1.550, todos do Código Civil.
Em nenhum dos dispositivos referidos, a diversidade
de sexos é mencionada, isso porque a doutrina majoritária (e. g.
Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, vol. VI, pg. 126 e
Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil, vol. IV, pg. 27) alinha tal
condição como de existência do ato, ou seja, estabelece como
pressuposto de existência do casamento a diversidade sexual dos
nubentes.
O lastro legal da afirmação vem expresso no parágrafo 3º do art. 226 da Constituição Federal : “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. E no Código Civil, nos arts. 1.514: “O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os
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declara casados.”; 1.517: “... homem e mulher com 16 anos podem se casar” e 1.565: “Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família.” e no 1.723: É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.” (grifei)
A distinção sexual dos seres humanos é utilizada na Constituição Federal em quatro oportunidades (art. 3º, IV; art. 5º, XLVIII; art. 7º, XXX e 201, §7º, II) e em todas busca proteger e garantir o bem estar do indivíduo, assegurando sua inclusão social e todos os direitos a que faz jus, sem distinção de sexo, raça, credo, origem ou idade.
O legislador constituinte, portanto, em regra, utiliza o sexo como fator de igualdade e só o faz em sentido oposto, quando busca compensar ou proteger especialmente aqueles que, ordinariamente, por questão social ou cultural, são mais vulneráveis ou sofrem maior carga de trabalho.
Nesta senda o disposto no art. 3º, IV da Constituição Federal:
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Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – [...]
III – [...]
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Portanto - e nem poderia ser diferente – o legislador constituinte labora na busca do equilíbrio, do tratamento igualitário e do respeito ao indivíduo. Ao relatar a ADPF n. 132/RJ e a ADI n. 4277/DF, o Ministro Ayres Brito assentou:
“Há mais o que dizer desse emblemático inciso IV do art. 3º da Lei Fundamental brasileira. É que, na sua categórica vedação ao preconceito, ele nivela o sexo à origem social e geográfica das pessoas, à idade, à raça e à cor da pele de cada qual; isto é, o sexo a se constituir num dado empírico que nada tem a ver com o merecimento ou o desmerecimento
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inato das pessoas, pois não se é mais digno ou menos digno pelo fato de se ter nascido mulher, ou homem. Ou nordestino, ou sulista. Ou de pele negra, ou mulata, ou morena, ou branca, ou avermelhada. Cuida-se, isto sim, de algo já alocado nas tramas do acaso ou das coisas que só dependem da química da própria Natureza, ao menos no presente estágio da Ciência e da Tecnologia humanas.” (g.o.)
Pois bem, não podendo o sexo ser motivo bastante para tratamento desigual, em que repousaria o óbice ao casamento entre pessoas do mesmo sexo? A origem religiosa do casamento, positivada no direito canônico e por ele alçada a condição de sacramento não pode ser motivo bastante para tal justificativa. O Estado é laico e a persistir a tese religiosa de que o “...casamento fosse o mesmo atualmente, como o foi nos últimos dois mil anos, seria possível casar-se aos doze anos de idade, com uma pessoa desconhecida, por via de um casamento "arranjado"; o marido ainda poderia vislumbrar a própria esposa como
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propriedade e dispor dela à vontade; ou uma pessoa poderia ser condenada à prisão por ter se casado com uma pessoa de raça diferente. E, obviamente, seria impossível obter um divórcio, apenas para citar alguns exemplos.”1 A origem do instituto não poderia discriminar indivíduos, negando-lhes direitos que só o casamento confere (p.ex. adoção do patronímico do cônjuge, direitos hereditários sem possibilidade de exclusão por testamento, dentre outros), tão somente em virtude de sua orientação sexual. Afirmar que as relações homoafetivas não merecem o mesmo tratamento do Estado (casamento), pois não se destinam a procriação é, para dizer o mínimo, um equívoco fragoroso. A definição de casamento como união com o propósito de procriação já foi superada há décadas. Ou alguém já cogitou anular ou indeferir a habilitação de casamento de pessoas que se unem na terceira idade? Ou obstar o casamento de pessoas com impotência generandi?
1 CHAVES, Marianna. Homoafetividade e direito. Curitiba: Juruá, 2011, p. 199
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Por acaso os casais sem filhos - quer por opção, quer por desígnios naturais – são menos casados que os com filhos? Aqueles que adotam, por não terem procriado, são menos casados que os que procriam? Fato é que o conceito de casamento e de família mudou sensivelmente nos últimos dois séculos e essa mudança foi refletida na Constituição Federal. A propósito, destaco o seguinte trecho do voto do Min. Luiz Felipe Salomão2, secundando o Min. Ayres Brito:
“A bem da verdade, pela Carta de 88, a família foi vista por um nova óptica, um "novo olhar, um olhar claramente humanizado", cujo foco, antes no casamento, voltou-se para a dignidade de seus membros. Essa mudança foi analisada na mencionada ADPF 132/RJ: "O casamento é civil e gratuita a celebração". Dando-se que "o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei" (§§ 1º e 2º). Com o que essa figura do casamento perante o Juiz, ou
2 STJ, 4ª Turma, REsp n. 1.183.378 - RS
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religiosamente celebrado com efeito civil, comparece como uma das modalidades de constituição da família. Não a única forma, como, agora sim, acontecia na Constituição de 1967, literis: "A famí lia é constituí da pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos" (caput do art. 175, já considerada a Emenda Constitucional n. 1, de 1969). É deduzir: se na Carta Política vencida, toda a ênfase protetiva era para o casamento, visto que ele açambarcava a família como entidade, agora, na Constituição vencedora, a ênfase tutelar se desloca para a instituição da família mesma. Família que pode prosseguir, se houver descendentes ou então agregados, com a eventual dissolução do casamento (vai-se o casamento, fica a família). Um liame já não umbilical como o que prevalecia na velha ordem constitucional, sobre a qual foi jogada, em hora mais que ansiada, a última pá de cal. (grifado no original) 4.3. Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente
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de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria com os diplomas superados -, deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade. A fundamentação do casamento hoje não pode simplesmente emergir de seu traço histórico, mas deve ser extraída de sua função constitucional instrumentalizadora da dignidade da pessoa humana. Por isso não se pode examinar o casamento de hoje como exatamente o mesmo de dois séculos passados, cuja união entre Estado e Igreja engendrou um casamento civil sacramental, de núcleo essencial fincado na procriação, na indissolubilidade e na heterossexualidade.”
Não menos risível é a afirmação de que o casamento homossexual poria em risco a espécie humana, que
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deixaria de procriar. Ora, tal afirmação parte da premissa que a exceção se tornará regra, que os seres humanos tornar-se-ão todos homossexuais e que as uniões convencionais se tornarão tão raras que os 7 bilhões de habitantes que superpovoam o planeta correm risco de extinção. A peculiar afirmação não resiste ao mais superficial e singelo estudo antropológico. O ser humano, como os demais animais, são, ordinariamente, heterossexuais, sendo, a homossexualidade um comportamento francamente minoritário, de inegável exceção e assim seguirá sendo. Igualmente limitada e preconceituosa é a afirmação de que a união homossexual não pode se dar pelo casamento, pois esse pressupõe a existência de amor. Como se pode afirmar que as relações homoafetivas são permeadas por amor menor ou maior, mais ou menos genuínos que o das relações heteroafetivas? Como se pode dizer que o amor homossexual é diferente do amor heterossexual? Teremos nós, do alto de nossa heterossexualidade, condições de julgar a intensidade, a genuinidade, a sinceridade do
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amor entre dois homens ou duas mulheres? Teria a heterossexualidade nos conferido tamanha autoridade, poder e superioridade, que nos garantiria plena ciência de toda a espécie de amor? O amor é uma das principais características a nos definir como seres humanos. É sentimento involuntário, arrebatador, capaz de impulsionar o ser humano a superar limites, romper preconceitos, arrostar convenções, exatamente aquelas que os homossexuais são obrigados a enfrentar quando assumem sua condição e declaram seus sentimentos. A ausência de qualquer argumento lógico ou científico a estabelecer diferença entre esses sentimentos, a animar casais heterossexuais ou homossexuais, faz crer que o sentimento é um só, pura e simplesmente amor. Portanto, afirmar que não há amor entre homossexuais ou que esse amor é diferente do experimentado pelos heterossexuais é de uma arrogância e de um preconceito escancarados. Mais equivocado, ainda, seria evocar a moralidade, conceito cambiante, dinâmico e indissociável do seu tempo. Aliás, sobre o tema, preciosa lição do Ministro Aliomar Baleeiro, no RMS n.
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18.534/SP, cunhada nos já longínquos anos de 1960 e tão atual como se fora escrita nos dias de hoje:
“Ninguém contesta o direito de a sociedade, da qual é órgão o Estado, defender-se do obsceno e repugnante e, sobretudo, preservar de influências deletérias o caráter do adolescente e da criança. [...] Mas o conceito de "obsceno", "imoral", "contrário aos bons costumes" é condicionado ao local e à época. Inúmeras atitudes aceitas no passado são repudiadas hoje, do mesmo modo que aceitamos sem pestanejar procedimentos repugnantes às gerações anteriores. A Polícia do Rio, há 30 ou 40 anos não permitia que um rapaz se apresentasse de busto nu nas praias e parece que só mudou de critério quando o ex-Rei Eduardo VIII, então Príncipe de Gales, assim se exibiu com o irmão em Copacabana. O chamado bikini (ou "duas peças") seria inconcebível em qualquer praia do mundo ocidental, há 30 anos. Negro de braço dado com branca em público, ou propósito de casamento entre ambos, constituía crime e atentado aos bons
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costumes em vários Estados norte-americanos do Sul, até tempo bem próximo ao atual. [...] Os juízes dos tempos de nossos avós e pais, ao que eu saiba, não apreenderam nunca A Carne, de Júlio Ribeiro, hoje um clássico. Mostraram com isso compreensão acima de qualquer farisaísmo ou pressão religiosa. Não há motivo para imitarmos o puritanismo da autoridade postal dos Estados Unidos, que proibiu o tráfego de cópias coloridas da Maya desnuda , de Goya, pintada no mais católico, preconceituoso e clerical dos países. Seria o mesmo que um cache-sexe no David de Miguel Ângelo.3
Certamente a oposição ao casamento entre pessoas
de igual sexo será vista no futuro, por nossos filhos e netos, como
uma posição intolerante, obscura, mesquinha e desumana.
Exatamente como vemos hoje o apartheid mantido na África do Sul
até 1992 e a condição da incapacidade relativa da mulher até o início
do século XX, que não podia praticar uma série de atos da vida civil
3 RMS 18534, Relator(a): Min. ALIOMAR BALEEIRO, Segunda Turma, julgado em 01/10/1968, EMENT VOL-00751-03
PP-01156 RTJ VOL-00047-03 PP-00787.
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sem o consentimento marital, tendo obtido direito a voto apenas em
1932.
O que não se pode ignorar é que a sexualidade é
tão profunda quando os abissais oceânicos e tão complexa quanto a
própria existência. Definir o indivíduo por seu aparelho sexual ou
reprodutor é tão equivocado quanto definir a qualidade de um livro por
sua capa. Um homem não deixa de ser um homem por ter perdido
seus testículos nem tampouco a mulher o deixa de ser por ter
removido seus ovários.
Por motivos insondável, a natureza nem sempre
conforma os aparelhos reprodutores e sexuais à orientação sexual do
indivíduo. Questões hormonais, biológicas, sensoriais e vivenciais –
apenas para citar algumas - podem concorrer de modo contundente
para que o ser humano se incline sexualmente por outro de igual ou
diverso gênero.
Nem se diga que se trata de opção sexual, pois
opção encerra conceito de escolha e, inegavelmente, ninguém faz,
deliberadamente, escolha por ser minoria, por integrar grupo
discriminado, por sofrer preconceito.
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Quem já leu Viagem Solitária, autobiografia de João
W. Nery consegue compreender na exata medida a dor, o desespero
e a impotência de um ser humano que se vê encerrado num corpo
que não é o seu. A agonia da puberdade, impondo-lhe, dia-a-dia,
uma anatomia indesejada, a repressão de sentimentos, os conflitos
intrafamiliares e sociais, a insegurança e a frustração nas relações
afetivas, são tantos e tão intensos, que o autor prefere a mutilação
física e a alteração ilegal de sua identidade - inclusive com a perda
de sua titulação profissional, passando de professor universitário para
funcionário subalterno numa usina de cimento – que conviver com a
anatomia equívoca que a natureza lhe conferiu.
Certamente os que convivem com essa
desconformidade já sofrem o suficiente, quer seja pela inadequação
física, rejeição familiar e social, limitação de parceiros e
constrangimentos de toda sorte. Não sendo admissível que também o
Estado o discrimine.
Portanto, não parece humana e socialmente
justificável a oposição ao casamento homoafetivo, sobretudo sob o
argumento moral ou religioso.
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Ademais, o cerne da questão não reside em saber
se pessoas do mesmo sexo podem ou não se casar, mas se essas
pessoas devem merecer a mesma proteção legal do Estado, garantida
pelo instituto do casamento aos heterossexuais. A resposta afirmativa
se impõe, e sobre o tema se posicionou a 4ª Turma do Superior
Tribunal de Justiça ao julgar o REsp. 1183378, de relatoria do
Ministro Luis Felipe Salomão, de cuja ementa destaco os seguintes
trechos:
Ementa 1. [...] 2. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF n. 132/RJ e da ADI n. 4.277/DF, conferiu ao art. 1.723 do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família . 3. Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na
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adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado "família", recebendo todos eles a "especial proteção do Estado". Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria com os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade. 4. O pluralismo familiar engendrado pela Constituição – explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do STF - impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de
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proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos. 5. O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas famílias multiformes recebam efetivamente a "especial proteção do Estado", e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor protege esse núcleo doméstico chamado família. 6. Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os "arranjos" familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto.
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7. A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à auto-afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença . Conclusão diversa também não se mostra consentânea com um ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre planejamento familiar (§ 7º do art. 226). [...] 8. [...]
9.[...]
10. [...]
11. Recurso especial provido.” (g.n.)
A decisão cuja ementa se transcreve, foi proferida
cinco meses após o Supremo Tribunal Federal decidir a ADPF n.
132/RJ e a ADI n. 4277/DF, de Relatoria do Min. Ayres Brito,
ocasião em que se pronunciou pela procedência das ações e com
efeito vinculante, no sentido de dar interpretação conforme a
Constituição Federal para excluir qualquer significado do artigo 1.723
do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas
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do mesmo sexo como entidade familiar. Da ementa, destaco os
seguintes trechos:
“EMENTA: 1. [...] O sexo das pessoas, salvo disposição
constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. [...]
Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente
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tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. 3. [...] 4. [...] 5. [...] 6. [...] Ante a possibilidade de interpretação
em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.”
O art. 1.723 do Código Civil é detentor da seguinte
dicção:
“Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a
união estável entre o homem e a mulher,
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configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o objetivo de
constituição de família.”
Ora, se a Suprema Corte, a quem, em última
análise, cabe dizer o que é e o que não é constitucional, decidiu,
unanimemente e com efeito vinculante, que as uniões estáveis
homoafetivas devem ser reconhecidas como entidades familiares e
que o art. 1.723 do Código Civil deve receber interpretação conforme,
arredando do dispositivo qualquer significado que impeça o aludido
reconhecimento - que para todos os efeitos se submete as mesmas
regras e gera os mesmos efeitos da união estável heteroafetiva – é
forçoso concluir que o Superior Tribunal de Justiça nada mais fez que
dar efetividade a essa interpretação.
Portanto, se as expressões “homem e mulher”
contidas no art. 1.723 do Código Civil devem receber interpretação
conforme e serem lidas como se ali estivesse a expressão
“indivíduos”, como trilhar outro caminho que não o adotado pelo
Superior Tribunal de Justiça? Sim, porque o art. 226, §3º, da
Constituição Federal, foi praticamente reproduzido no Código Civil,
acrescendo-se que o texto constitucional já sintetiza o reconhecimento
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do Estado à união estável e orienta o legislador infraconstitucional a
facilitar sua conversão em casamento.
Art. 226. [...]
[...]
§ 3º. Para efeito da proteção do Estado, é
reconhecida a união estável entre o homem e a
mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar
sua conversão em casamento.
Assim, se as expressões homem e mulher devem
ser lidas como indivíduos, arredando qualquer interpretação que
impeça o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo
sexo e o texto constitucional ordena a facilitação da conversão da
união estável em casamento, forçoso é reconhecer que o Superior
Tribunal de Justiça somente palmilhou o único caminho possível,
prévia e deliberadamente pontilhado pelo próprio Supremo Tribunal
Federal.
E a quem sustenta que ao fazê-lo o julgador
usurpou o poder constituinte, em virtude da ausência de lei que
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autorize o casamento homoafetivo, destaco os itens n. 8, 9 e 10 da
ementa do REsp 1183378:
“8. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar. 9. Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo "democraticamente" decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa
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forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos. 10. Enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita de um Estado que somente é "democrático" formalmente, sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização dos direitos civis.”
Por derradeiro, consigno não haver nos arts. 1.514,
1.517, 1.521, 1.523, 1.535, 1.565 ou 1.723 em qualquer outro do
Código Civil ou legislação extravagante, vedação expressa de
casamento entre pessoas do mesmo sexo, decorrendo daí a
necessidade de conformar os textos infra-constitucionais para que não
haja afronta aos direitos fundamentais de primeira geração,
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constitucionalmente consagrados. Nesse sentido as palavras do Min.
Luis Felipe Salomão4:
“... não há como se enxergar uma vedação implícita
ao casamento homoafetivo sem afronta aos caros
princípios constitucionais, como o da igualdade, o da
não discriminação, o da dignidade da pessoa
humana e os do pluralismo e livre planejamento
familiar.”
Portanto, senhores, gostando ou não, os nossos
semelhantes - que por desígnios insondáveis e de forma
absolutamente involuntária, encontraram o amor no sexo igual, mesmo
as convenções apontando que este sentimento deveria ser encontrado
no sexo oposto - deverão receber do estado idêntico tratamento e de
cada um de nós o mais absoluto respeito. Pois só assim,
construiremos a sociedade justa, livre e solidária, ansiada no art. 3º
da Constituição Federal.
No dia em que a liberdade de amar entre pessoas
maiores e capazes for liberta das amarras do preconceito e vermos
4 REsp 1183378
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com absoluta naturalidade essas combinações, então saberemos que
mais um degrau foi galgado na nossa evolução social e humana.
Muito Obrigado!