19
DONIZETE GALVÃO ALTA NOITE coleção poesia viva CENTRO CULTURAL SÃO PAULO

Plaquete: Poemas de Donizete Galvao

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Plaquete: Poemas de Donizete Galvao

Citation preview

  • donizete galvo

    alta noite

    coleo poesia viva

    CentRo CUltURal So PaUlo

  • SobRe o aUtoRGlauco Mattoso (paulistano de 1951) poeta, ficcionista e chronista. O pseudonymo allude ao glaucoma que o cegou por completo nos annos 1990. Na phase visual notabilizou-se pelo fanzine anarchopotico que editava, o Jornal Dobrabil, mixturando dactylographicamente a graffitagem ao concretismo. Na phase cega adoptou o soneto como ferramenta formal para suas themticas sempre satricas e fescenninas, que criticam a cultura de massa e a barbarie massificada da civilizao technocrtica. Entre dezenas de ttulos de sua auctoria, citam-se as anthologias Poesia digesta: 1974-2004, Pegadas nocturnas: dissonetos barrockistas e a colleco Bibliotheca Mattosiana, em dez volumes.

    teste

  • donizete galvo

    alta noite

  • 5SilnCio De pedra ser.Da pedra tero duro desejo de durar.Passem as legiescom seus ossos expostos.Chorem os velhoscom casacos de naftalina.A nave branca chega ao portoe tinge de vinho o azul do mar.O macio de rocha,de costas para a cidadesete vezes destruda,celebra o silncio.A pedra calao que nela di.

  • 76

    JoS Ah, Anhang me fez sonhar com a terra que perdi. (Em O canto do paj, de Heitor Villa-Lobos e C. Paula Barros)

    Grito espremido.Seixo perfeitocom sono no leito do rio.Dito no dito que roaum cu de ametista.Onde o fundodeste poo de granito?Onde o infinito,a luz do sol do Egito?Tampa de pedrasobre carnes de Ren.Olhe, ainda que cego,o reino que j foi seu.

    oRCUlo Para Willy Corra de Oliveira

    dance a dana do grou diante dos labirintos o fio tecido de lgrimas e gestoso sacrifcio diante do poo

    nenhum barco a visitar em naxos nem aucenas brotaro das rochas

    dance o equilbrio do instante que o olhar de um deustransforma carne em cinzas e seu corpo estranho fruto ir pender da figueira um dia

  • 98

    aRte PotiCa

    A lngua da vacalambe com gostoo sal do cochoe se no h mais sal,a memria do sala madeira, o cocho,at que tudo fiquepolido por sua lixa.

    A lngua da vacarecolhe com agradoo restolho mijadode rato do fundo do paiole mi, remi e triturao milho e a palha dura,at que flores de espumabrotem no canto da boca,com suave perfume de leite.

    A lngua da vacalambe a cria trmula,num banho batismal,e engole o mosto,a gosma amnitica,e a lamber ainda,quando quase novilhaexibir a filhapstulas no lombo.

    oS SentidoS da PedRa

    Quem diz sim pedrae com gestos exatosaninha suas arestasno intervalo das costelas?

    Quem ainda sente nelao odor da pele humanae v o sangue pisadodas escaras dos ombros?

    Quem no percebe na pedra,fragmento de cordo umbilical,o despojo deixado pelos deusesna luta que inaugura a geografia?

    Quem diante dessa fora bruta,batida por sculos de vento,no ouve aquele primeiro soprovindo de onde ningum tocou?

  • 1110

    anel CaUCaSiano

    Olha para o anel de ferroe mantm acesa a lembrana.Lembra-te dos dez mil anosno miolo escuro do rochedo.Lembra-te, depois, da visitantee do barulho de suas asas.Lembra-te da humilhaode revelar o que era segredo.Lembra-te de tudoantes que todos se esqueam dessa histriae, mero acidente geogrfico,reste apenas a montanha de pedra.

    eSCoiCeadoS

    Meu pai e eununca subimosnum alazoque galopasseao vento.Tnhamosum burrocinza malhado:o Ligeiro.Foi apanhadode um conhecidopor ninharia.Chegou com famade sistemtico,cheio de refugos.De trote to curtoque dava dornas costelas.De certa vez,camos do burro.Meu pai e eu.Eu e meu pai.Embolados.Joelhos esfoladosno pedregulho.Levamosbons coices.Meu pai e eu.Os doisnunca subimosna vida.

  • 1312

    o gRito

    O porco guinchae sob a pata dianteirasai a golfada de sangueque enche a bacia.

    Horas depois,pronto o chourio,comemos o sangue preto,as tripas, o grito.

    RUminaeS

    Nunca sa dessa roceira Minasque nos d aflio e dor como herana.Lamaal de bosta de vacano curral bem em frente da casa.Cheiro de leite azedo nos latese de leo queimado para expulsar bernes.Jardins de dlia e coraes magoados,chs de consolda e escaldados de quirera.A av socando o arroz no pilo,preparando decoada para o saboou com rodilhas para o feixe de lenha.Compras sem um item suprfluoanotadas nas cadernetas de armazm.Terras tomadas por sap e sorocabae vendidas para pagar promissrias.Vidas acanhadas atrs de janelasna cidade que no definha nem prospera.Rancores cultivados durante anos,as mesquinharias de parentes.Amor ressabiado, apenas sugerido,abraos sem calor, corpos com arestas.Podem dar-me asas, cheques de viagem,mandar-me para velejar em Bizncio.Recolho, rumino e regurgitoa as aspereza daqueles dias.Rejeito sua rica hospedagem.Sou um estranho em suas festas.Nunca sa desse crculo de ferro.Nunca sa dessa Minas que no termina.

  • 1514

    CiSteRna

    gua parada de poo.S um feixe de luz da luavem tocar-lhe a superfcie.No mais se ouvea msica da carretilha.No mais se ouveo balde batendo nas paredes de tijolose a gua a se derramar.Ningum mais lava o rostoe a bebe com sofreguido.gua parada de poo:ambos estamos estticos,imersosno negrume da noite.

    SolitUde

    Juntos, em solitude.Cada qual com sua chaga.Cada qual com sua cruz.Dois corpos ardentes to prximos,separados pela geografiaque a mgoa desenha.Entre os braos,interpem-sedesertos, salinas e dunas.O amor morreu?No. Condenou-se.Soterrou-se em veiosde duro e negro minrio.Duas rvores cujas razestranaram-se rumo ao fundo.Que frutos falhos e sperosnessas mos antes to ntimas,que, mesmo durante o sono,permanecem bem fechadas.

  • 1716

    o SaCRifCio

    Ouve o barulho das chaves.Ouve o barulho das portas.Ouve o sapateadodos emissrios da escurido.

    Cento e sete passos e um baque.Cento e sete passos e o silncio.Cento e sete passos e seus ps pensos sobre o vazio.

    SeRenata PaRa SoPhie von Khn

    Noite alta, cu risonho.Areia da insnia nos olhos.O guarda-noturno varre as folhasamarelas que caram na rua.Quantas folhas de outonohaver ainda por varrer?Quantas vezes ir supurare cicatrizar a ferida do fgado?A cano das cerdas da vassoura,que riscam a dureza do asfalto,far desabrochar, por fim,a ansiada Flor Azul?

  • 1918

    obJetoS

    Agora,

    homens so coisas,

    badulaques pendurados

    como galinhas na peia,

    pelas feiras,

    de cabea para baixo

    espera de compradores.

    Agora,

    mercadorias tm vida prpria

    Saracoteiam quinquilharias

    diante dos homens-coisas

    que continuam

    com os ps atados

    e os bicos vidos.

    figan ta Pedia

    Somos homens de frgil arquitetura,tessitura de finos fios de vidro,renda tramada por aranhasque o trmulo de uma vozpe a perder em um segundo.Que saudade de paisagens,onde ps humanos no pisaram.A caminho de que tacabranca e rochosa nos perdemos?O mar recusou nossas oferendas.O barco nos deixou nessa praia.Essa msica que di na carne,de que tempo esquecido nos vem?Em que escarpa, cama de hospitalou priso invisvel esto os amigos?

  • 2120

    figoS

    cesta de figos maduros exatos na sua configurao

    atente-se para os veios roxos a camada de p sobre a pele

    tire a spera membrana: surge a derme branca a polpa violcea florescncia ntima secreta granulao

    a maturidade experimentobreve

    ontem a base ainda vertia leiteamanh a carne estar macerada

    devore-a agora na ltima estao

    um dia ela poder amanhecer seca nua morta

    CRinaS

    Amei um cavalo quem era? ele me olhou bem de frente, sob suas crinas. Saint-John Perse

    Amou um potro baio,bicho em cujo frmitode aguda animalidadeo vigor do sangue corria.

    Amou um cavalo cego,que teve o olho vazadopela ponta de um pregona triste hora da doma.

    Amou um cavalo morto,que, em sonho, o visita.Nos seus ombros,carrega a sina dele e do cavaleiroque j no mais existe.

  • 2322

    lieS da noite

    Antes de sair de casa,mesmo com o sol ainda alto,convm preparar a lamparina.Ench-la de querosene,subir-lhe um tanto o pavioe deix-la bem perto da porta.Antes de se ir para a cama,todo cuidado pouco:h que apagar a lamparina.Sua fumaa desenha abstraesque marcam a cal da paredee tingem de negro nossas narinas.

    Quando a luz precriae as sombras tm poderes,tateia-se pela casa a buscar a lamparina.A brevidade de sua chamae a baixa luz com que nos iluminalembram-nos de que a noite nossa sina.

    melodia Sentimental

    nessa hora em que a lua se inclina sobre os bambuse expe com sua luz o amarelo das laranjas do pomar

    nessa hora em que o vento roa as flores de manace espalha o perfume delas pelos quintais de sua casa

    nessa hora em que as vacas deitam perto dos cupinse regurgitam o capim que ser o leite bebido amanh

    nessa hora em que a neblina estende-se pelas vrzease deixa gotas de gua suspensas nas cercas de arame

    nessa hora em que os ces latem e avanam nos portese os insones ganem e procuram posies para as pernas

    nessa hora em que todo frescor j abandonou os corpose a madureza, essa ingaia cincia, transmuta-se em cela

    nessa hora em que a cabea est imersa no travesseiro,desperte e desfaa o casulo de vidro em que voc se enredou

    nessa hora em que a solido penetra na greta da janelano deixe que se misturem: ela, a noite escura, e mais eu

  • domnio da noite

    Eis sua fazenda:o reino das luzes apagadas.Quando a noite vira madrugada,quando as sombras danam no quarto,quando os corpos ressonam,as palavras chegam para visit-lo.Querem espezinhar seu corpoe fincam espinhos no colcho.Em vo, tenta pegar no sono.Inventa imagens de ips na serra,finge poses que revelem repouso.As palavras sibilam e serpenteiam.Oxum se ergue do negror dos lagos.Os chores, como xilogravuras,bebem as guas da margem.Grilos, rs, corujas e cesanunciam a hora da caada.H que pegar as palavras, acorrent-las,fazer delas um amlgama sinttico,antes que, como neblina,se desfaam sob a luz da manh.Carece embolar-se com elas,rolar no negrume da noite,deixar que, tinhosas, nos levempara ribanceiras e cavernas.Ainda que poucas restem no embornal,mesmo assim, h que bendiz-lase esper-las com a fisga afiadae a carne exposta, isca na escurido.

    SUbSolo

    Cerre os olhos e lembre-seda colnia de escorpies,com seu voltaico emaranhado de peonhas.sob a pilha de tijolos.

    Cerre os olhos e lembre-sedas formigas que devoraram a carnee deixaram o branco de ossos, cartilagens,destroos de uma ave sob a luz da lua.

    Cerre os olhos e lembre-sedos caranguejos de veludoque escalam madeiras podres,flores da estufa do poro.

    Cerre os olhos e deixeque seu corpo sobre o lenolseja levado por vinte e nove bichos.em procisso, pelos buracos da noite.

    2524

  • nigRedo

    Faro de voc uma espcie de sombra, mas uma sombra que deseja a vida e nunca morre. Cesare Pavese H muito habitasum reino escuroonde te imaginavasapenas hspede.

    Cad o jbiloao avistar o mare quando sentiaso cheiro da maresia?

    No reino escuro no h memriados dias de luzcom sol a pino.

    Entre sombrasguardas o ncleode tua ndoa,pedra de aluvio.

    No te escapasda obra em negro,purgatrio infindode suas feridas.

    26

  • 25

    SobRe o aUtoRDonizete Galvo nasceu em Borda da Mata, Sul de Minas, em 1955. Cursou a Faculdade de Administrao de Empresas de Santa Rita do Sapuca e, em So Paulo, fez jornalismo na Csper Lbero. Trabalha como jornalista e publicitrio. casado com Ana Tereza Marques e pai de Bruno (1984) e Anna Lvia (1992). Desde 1979, reside em So Paulo. Publicou, entre outros, os livros de poesia Azul navalha (Queiroz, T. A.; Editor, So Paulo, 1988. Prmio APCA de autor revelao e indicao ao prmio Jabuti), As faces do rio (gua Viva, So Paulo, 1991), Do silncio da pedra (Arte Pau-Brasil, So Paulo, 1996), A carne e o tempo (Nankin Editorial, So Paulo: 1997. Indicao aos prmios Jabuti e Ciudad de Madrid, em 1998), Ruminaes (Nankin Editorial, So Paulo, 1999) e O homem inacabado (Dobra Editorial, So Paulo, 2010).

    teste

  • SobRe o aUtoRGlauco Mattoso (paulistano de 1951) poeta, ficcionista e chronista. O pseudonymo allude ao glaucoma que o cegou por completo nos annos 1990. Na phase visual notabilizou-se pelo fanzine anarchopotico que editava, o Jornal Dobrabil, mixturando dactylographicamente a graffitagem ao concretismo. Na phase cega adoptou o soneto como ferramenta formal para suas themticas sempre satricas e fescenninas, que criticam a cultura de massa e a barbarie massificada da civilizao technocrtica. Entre dezenas de ttulos de sua auctoria, citam-se as anthologias Poesia digesta: 1974-2004, Pegadas nocturnas: dissonetos barrockistas e a colleco Bibliotheca Mattosiana, em dez volumes.

    Prefeitura de So Paulo Gilberto KassabSecretaria de Cultura Carlos Augusto Calil

    Centro Cultural So Paulo | direo geral e diviso de Curadoria e Programao Ricardo Resende diviso administrativa Gilberto Labor e equipe diviso de acervo, documentao e Conservao Mrcia Augusto Ribeiro e equipe diviso de bibliotecas Waltemir Jango Belli Nalles e equipe diviso de Produo e apoio a eventos Luciana Mantovani e equipe diviso de informao e Comunicao Janete El Haouli e equipe diviso de ao Cultural e educativa Alexandra Itacarambi e equipe Coordenao tcnica de Projetos Priscilla Maranho e equipe alta noite | Coleo Poesia viva autor Donizete Galvo Coordenao editorial Claudio Daniel (Curador de Literatura do CCSP) Conselho editorial Helosa Buarque de Hollanda, Leda Tenrio da Mota, Maria Esther Maciel, Antnio Vicente Seraphim Pietroforte e Luiz Costa Lima Projeto grfico CCSP Adriane Bertini impresso Grfica do CCSP

    Coleo PoeSia vivadistribuio: gratuita, no CCSP tiragem: 800 exemplares So Paulo, 2011 isbn: 978-85-86196-40-9

  • teste

  • R. Vergueiro, 1000 / CEP 01504-000Paraso / So Paulo SP / Metr Vergueiro11 3397 [email protected]

    WWW.CENTROCULTURAL.SP.GOV.BR