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“O Zelador” de Harold Pinter O Zelador (The Caretaker) de Harold Pinter Para Vivien tradução Alexandre Tenório Tradução Alexandre Tenório 1

PINTER, Harold - O Zelador

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Pinter

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O Zelador

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O Zelador de Harold Pinter

O Zelador (The Caretaker)

de Harold Pinter

Para Vivien

traduo Alexandre Tenrio

A pea teve sua estria no Arts Theatre, Londres, numa produo associada do Arts Theatre Club, Michael Codron e David Hall, em 27 de abril de 1960.

No dia 30 de maio do mesmo ano, foi levada por Michael Codron e David Hall para o Duchess Theatre de Londres com o seguinte elenco:

MICKum homem com quase 30 anosAlan Bates

ASTONum homem com pouco mais de 30 anosPeter Woodthorp

DAVIESum velhoDonald Pleasance

A direo foi de Donald McWhinnie

A ao da pea se desenrola numa casa na zona oeste de Londres

ATO IUma noite de inverno

ATO IIAlguns segundos mais tarde

ATO IIIQuinze dias depois

Ato I

Um quarto. Na parede do fundo uma janela com a parte de baixo coberta com um saco de pano. Uma cama de ferro encostada na parede da esquerda. Sobre ela um pequeno armrio de parede, baldes de tinta, caixas cheias de porcas, parafusos, etc. Mais caixas e vasos ao lado da cama. Uma porta no fundo, direita. direita da janela uma montanha de coisas: uma pia, uma escada, um balde cheio de carvo, um cortador de grama, um carrinho de feira, caixas e gavetas soltas cheias de coisas. Atrs desse monte de bagulhos, uma cama de ferro. Na cabeceira desta, um fogo a gs. Em cima do fogo a esttua de um Buda. Na direita baixa, uma lareira. Ao redor dela, umas malas, uma cadeira de madeira cada, mais caixas, uma poro de enfeites, um mancebo, tapetes enrolados, um abajur de p, algumas tbuas pequenas, um pequeno aquecedor eltrico e uma torradeira velhssima. Em baixo disto, uma pilha de jornais velhos. Debaixo da cama de ASTON, na parede da esquerda, h um aspirador de p Eletrolux que s aparece quando for usado em cena. H um balde pendurado no teto.

MICK est sozinho no quarto, sentado na cama. Usa uma jaqueta de couro.

Silncio.

Ele olha lentamente o quarto detendo-se em cada objeto.

Olha para o teto e fixa o olhar no balde pendurado. Depois, continua sentado, imvel, impassvel, olhando em frente.

Silncio por 30 segundos.

Ouve-se uma porta bater. Ouvem-se vozes abafadas.

MICK vira a cabea. Fica de p, vai silenciosamente para a porta e sai, fechando-a sem fazer barulho.

Silncio.

Novamente ouvem-se as vozes. Aproximam-se e param. A porta aberta. ASTON e DAVIES entram. ASTON primeiro. DAVIES o segue, arrastando os ps, respirando fundo.

ASTON usa um sobretudo velho, de tweed, por debaixo, um terno usado, azul marinho, risca de giz, um pulver, gravata e camisa desbotadas. DAVIES usa um sobretudo marrom, surrado, calas deformadas, camiseta, colete e no usa camisa. Est calando sandlias. ASTON coloca a chave no bolso e fecha a porta. DAVIES olha em volta.

ASTONSenta.

DAVIESObrigado. (Olha em volta) H...

ASTONEspera. (Procura com olhar uma cadeira. V a que est perto do tapete enrolado, perto da lareira e vai peg-la)

DAVIESSentar? H... faz tempo que no me sento... No sento direito h tanto... j nem sei...

ASTON(Colocando a cadeira) Aqui.

DAVIESDez minutos de intervalo a noite inteira e no conseguia um lugar pra sentar. Um lugar. Os gregos, todos sentados. Polacos, gregos, pretos, todos eles. Os estrangeiros todos sentados. E quem dava duro era eu... Ali, quem trabalhava era eu...

ASTON se senta na cama, tira do bolso uma latinha de tabaco, seda e comea a fazer um cigarro. DAVIES o observa.

Os pretos todos sentados. Pretos, gregos, polacos, a corja toda, assim que era, no sobrava um lugar pra mim, me tratavam feito lixo. Hoje de noite, quando ele veio, eu falei pra ele.

Pausa.

ASTONSenta.

DAVIES, mas o que eu preciso primeiro relaxar, voc sabe como , o que eu preciso relaxar, voc me entende? Ele podia ter acabado comigo ali mesmo.

DAVIES d um grito, um murro pra baixo no ar, vira de costas para ASTON e olha para a parede.

Pausa. ASTON acende o cigarro.

ASTONQuer fumar?

DAVIES(Virando-se) O que? No, no. Eu nunca fumo cigarro. Mas aceito um pouco daquele fumo pro meu cachimbo, se no se importa.

ASTON(Passando-lhe a lata de fumo) Sim, claro. Pegue um pouco.

DAVIESMuito agradecido, cavalheiro. Um pouquinho s pro meu cachimbo, s um pouco. (Tira um cachimbo do bolso e o enche com fumo) Tive uma latinha igual a essa, s que... , j faz um tempo. Me roubaram ela. Me levaram ela no meio da rua. (Mostra a lata) Onde eu ponho?

ASTONMe d.

DAVIES(Devolvendo-lhe a lata) Hoje de noite, quando ele veio, eu falei pra ele. No falei? Voc ouviu eu dizendo a ele, no ouviu?

ASTONEu vi ele te dando um fora.

DAVIESMe dando um fora? E voc ficava calado? Animal escroto, um velho como eu, j comi do melhor.

Pausa.

ASTON, eu vi ele te dando um fora.

DAVIESBando de mortos de fome, meu amigo. Posso estar na rua h anos, mas sou um cara limpo. Por isso larguei minha mulher. Quinze dias casado, nem isso, pouco mais de uma semana, levantei a tampa de uma panela, sabe o que tinha dentro? Um monte de calcinha suja. Na panela da sopa. Foi a que eu larguei dela, e nunca mais vi.

DAVIES se vira, anda sem objetivo pelo quarto at se deparar com a esttua do Buda sobre o fogo, olha para ela e se vira.

J comi nas melhores mesas. Mas no sou mais garoto. Me lembro da poca que eu fazia de tudo. No deixava ningum folgar comigo. Mas ultimamente no tenho me sentido muito bem. Andei tendo uns ataques.

Pausa.

(Aproximando-se) E voc viu o que aconteceu com o outro sujeito?

ASTONS vi o final.

DAVIESEle veio com um balde de cheio de lixo e mandou eu levar pros fundos. No minha obrigao levar o lixo. Eles tm um garoto l s pra carregar o lixo. Eu no fui contratado pra carregar lixo. Minha obrigao limpar as mesas, varrer o cho, lavar a loua, tenho nada que carregar lixo!

ASTONH. (Vai at a direita e pega a torradeira)

DAVIESBem, mas digamos que sim. Mesmo assim! Mesmo que eu tivesse que carregar o lixo, quem ele pra vir me dar ordens? A gente do mesmo nvel. Ele no meu patro. No superior a mim.

ASTONEsse da era o que, grego?

DAVIESNo, escocs. Escocs seboso. (ASTON volta para sua cama, levando a torradeira, chegando l, comea a desparafusar a tomada. DAVIES o acompanha) Voc viu ele, no viu?

ASTONVi.

DAVIESEu disse pra ele o que ele devia fazer com o lixo, no disse? Olha aqui, eu disse, eu sou velho, mas fui criado num lugar onde se tinha respeito pelos mais velhos, se eu tivesse uns anos a menos... eu arrebentava a tua cara. Isso foi depois do patro j ter me mandado embora. Voc ta criando caso demais, ele falou. Criando caso, eu? Olha, eu tenho os meus direitos, eu disse pra ele. Posso morar na rua, mas ningum aqui tem mais direitos do que eu. Vamos ser justos. Eu j tinha sido despedido mesmo. (Senta-se na cadeira) Assim que era aquele lugar.

Pausa.

Se voc no tivesse segurado o escocs, a essa hora eu estaria no hospital. Ele tinha arrebentado minha cabea no cho de cimento se ele tivesse me pegado. Ah mas eu ainda pego ele. Uma noite dessas eu pego o desgraado. s eu ir l praqueles lados.

ASTON pega uma tomada numa das caixas.

Por mim no voltava nunca mais l, mas que deixei minhas coisas l, cada maldito trapo que miseravelmente ainda me resta, deixei l. Na pressa. Aposto que agora esto revirando minhas coisas.

ASTONPosso passar l um dia e pegar suas coisas.

ASTON volta para sua cama e retoma o concerto da tomada da torradeira.

DAVIESDe qualquer jeito, sou-lhe muito agradecido por me deixar... me deixar descansar um pouco, assim... uns minutos. (Olha em volta) Esse quarto seu?

ASTON.

DAVIESQuanta coisa voc tem.

ASTON.

DAVIESDeve valer uma nota, isso... juntando tudo

Pausa.

Coisa bea.

ASTON, tem bastante coisa sim.

DAVIESVoc dorme aqui?

ASTON.

DAVIESOnde, a?

ASTON.

DAVIES, bom, a no pega vento.

ASTONAqui no venta.

DAVIES, no pega mesmo. Bem diferente do lado de fora.

ASTONDeve ser.

DAVIESVentania desgraada.

Pausa.

ASTON, quando d de ventar.

Pausa.

DAVIES.

ASTONMmm...

Pausa.

DAVIESFaz muito frio.

ASTONAh.

DAVIESSou muito sensvel ao frio.

ASTON mesmo?

DAVIESSempre fui.

Pausa.

Tem outros quartos aqui, no tem?

ASTONOnde?

DAVIESDando pro corredor aqui... pra esse corredor aqui de cima.

ASTONEsto fora de uso.

DAVIESVoc ta brincando.

ASTONEsto precisando de um monte de coisas.

Pequena pausa.

DAVIESE l embaixo?

ASTONTambm est fechado. Precisa de reforma... o cho...

Pausa.

DAVIESPuta sorte a minha voc ter entrado bem naquela hora. Aquele escocs podia ter me matado. J mais de uma vez fui dado como morto.

Pausa.

Reparei que tem gente morando a na casa ao lado.

ASTONO que?

DAVIES(Fazendo um gesto) Eu reparei...

ASTON, tem gente morando em todas as casas da rua.

DAVIES, eu reparei as cortinas fechadas na casa a do lado quando a gente chegou.

ASTONSo os vizinhos.

Pausa.

DAVIESEssa casa sua ento, no ?

Pausa.

ASTONEu tomo conta.

DAVIES o senhorio, acertei? (Pe o cachimbo na boca, fuma sem acend-lo) Pois , reparei na casa ao lado as cortinas grossas quando chegamos. D pra ver pela janela que as cortinas so grossas. Pensei que tinha gente morando.

ASTON uma famlia indiana que mora a.

DAVIESPretos?

ASTONQuase nunca vejo ningum.

DAVIESPretos, n? (DAVIES de p indo de um lado para o outro) , voc tem uma puta tralha aqui. Vou te dizer uma coisa, eu no gosto de cmodos vazios. (ASTON vai na direo dele) Escuta, amigo, ser que no tem por a um par de sapatos?

ASTONSapatos?

ASTON vai para a direita baixa.

DAVIESAqueles imbecis do mosteiro me deixaram mais uma vez na mo.

ASTON(Indo para sua cama) De onde?

DAVIESL em Luton. Mosteiro de Luton... Tenho um conhecido em Shepherds Bush, que trabalha numa quitanda. A melhor quitanda da regio. (Observa ASTON) A melhor da rea. Sempre que eu ia l ele me arranjava sabonete. Sabonete do bom. Sempre tinham bons sabonetes l. nunca me faltava sabonete quando eu andava naquela rea de Shepherds Bush.

ASTON(Tirando de debaixo da cama um par de sapatos) Tenho esses marrons.

DAVIESMas ele foi embora. Sumiu. Foi ele quem me levou a esse tal mosteiro. L pros lados de Luton. Ouviu dizer que estavam dando sapatos l.

ASTONImpossvel viver sem sapatos.

DAVIESSapatos? Pra mim uma questo de vida ou morte. Fui obrigado a ir com isso nos ps at Luton.

ASTONE o que aconteceu quando chegou l?

Pausa.

DAVIESEu tive um amigo que era sapateiro em Acton. Bom sujeito.

Pausa.

Sabe o que o babaca do monge me disse?

Pausa.

Quantos pretos moram a?

ASTONO que?

DAVIESMoram muitos pretos a?

ASTON(Segurando os sapatos) V se te servem.

DAVIESSabe o que o babaca do monge me disse? (Examina os sapatos) Hum, acho que so pequenos.

ASTONVoc acha?

DAVIESNo, acho que no vo servir.

ASTONCoisa boa.

DAVIESNo d pra usar sapato apertado. Tem nada pior. A eu disse pro monge, olha aqui, eminncia, ele abriu a porta, uma porta enorme, a eu disse, olha aqui, eminncia, vim at esse fim de mundo usando isso, mostrei isso a ele, eu disse, ser que no tem a uns sapatos, um par de sapatos pra mim? Olha s pra isso, esto quase no fim, eu disse, no d mais pra usar. Ouvi dizer que vocs tavam dando sapatos aqui. Cai fora, ele rosnou pra mim. A eu disse, olha aqui, sou um homem velho, voc no pode falar assim desse jeito comigo. No me interessa o que voc . Se no sair logo eu te boto pra fora a ponta ps. No, a eu disse, escute aqui, que que isso? S estou pedindo um par de sapatos, e o senhor vem me tratando assim? Levei trs dias pra chegar aqui, eu disse pra ele, trs dias sem ver comida, acho que mereo pelo menos um pedao de po, h? A cozinha a do lado, ele disse, d a volta por fora e v se desaparece depois de comer. Eu dei a volta at a cozinha, sabe. A comida que me deram...! Um passarinho, nem te conto, um passarinho desse tamaninho, dava pra engolir de uma vez. A eles me disseram, muito bem, j fez sua refeio, pode ir embora. Refeio? O que vocs acham que eu sou, um cachorro? Tenho cara de vira lata? Ser que pareo um bicho? E os tais sapatos que vocs iam me dar? Vim de longe atrs deles. Acho que vou me queixar com a madre superiora. A veio um irlands e me botou pra fora. Peguei um atalho at Watford e foi l que arranjei um par de sapatos. Dali peguei o circular. Ainda no tinha chegado a Hendron e a sola descolou, tava andando e o sapato abriu. Sorte que no tinha jogado os velhos fora, tava com eles embrulhados, se no, tava ferrado. Bom, a, tive que ficar com isso aqui mesmo, mas ta vendo, j no do mais, no servem mais pra nada.

ASTONExperimenta esses daqui.

DAVIES pega os sapatos, tira as sandlias e os experimenta.

DAVIESNada mal esses sapatos. (Experimenta andando pelo quarto) Bem resistentes, . Bom formato. Bom couro, hem? Forte. Um dia desses um cara quis me dar um par, mas eram de pelica. Eu no aceitei. Couro no tem comparao, de jeito nenhum. Pelica acaba logo, enruga todo, voc usa cinco minutos. Couro no tem comparao. , sapato bom esse.

ASTONQue bom.

DAVIES balana os ps.

DAVIESPena que no vai dar pra usar.

ASTONH?

DAVIESNo d no, meu p muito largo.

ASTONMmmm.

DAVIESEsses sapatos so de bico fino, ta vendo?

ASTONAh.

DAVIESEstaria aleijado em menos de uma semana. Isso que estou usando uma porcaria, mas so confortveis. No prestam mas tambm no me machucam. (Tira os sapatos e devolve) De qualquer forma, obrigado.

ASTONVou ver o que posso arranjar.

DAVIESBoa sorte. Eu no posso continuar desse jeito. Pulando de um lado pro outro. Tenho que sair por a, sabe, tentar achar um lugar pra mim.

ASTONE pra onde voc vai?

DAVIESBom, tenho umas coisas em mente. Estou s esperando o tempo melhorar.

Pausa.

ASTON(Examinando a torradeira) Ser que... ser que no gostaria de dormir aqui?

DAVIESAqui?

ASTONPode dormir aqui se quiser.

DAVIESAqui? Bem, no sei.

Pausa.

Por quanto tempo?

ASTONAt... achar um lugar.

DAVIES(Sentando-se) Bem, eu, assim...

ASTONAt conseguir se arranjar...

DAVIESOh, vou achar um lugar... logo, logo...

Pausa.

Onde eu iria dormir?

ASTONAqui mesmo. Os outros quartos... no esto em condio.

DAVIES(Levantando-se) Aqui? Onde?

ASTON(Apontando para a direita alta) Tem uma cama a atrs.

DAVIESAh, sei. Bom, seria prtico. Bom, que... acho que vou aceitar... s o tempo de arranjar um lugar, sabe. Voc tem muitos mveis aqui.

ASTONFui pegando. Vou guardando. Um dia pode ser til.

DAVIESEsse fogo, funciona?

ASTONNo.

DAVIESComo voc faz quando quer tomar um ch?

ASTONNada.

DAVIESQue chato. (DAVIES v as tbuas) Est construindo alguma coisa?

ASTONDevo construir um depsito nos fundos.

DAVIESCarpinteiro, ? (Olhando para o cortador de grama) Tem gramado?

ASTOND uma olhada.

ASTON levanta o saco que cobre a janela. Eles olham para fora.

DAVIESTa precisando cortar esse mato.

ASTONCresceu muito.

DAVIESO que aquilo, um lago?

ASTON.

DAVIESTem peixes?

ASTONNo, nada.

Pausa.

DAVIESOnde est pensando em construir o depsito?

ASTONVou ter que limpar o jardim antes.

DAVIESVai precisar de um trator, meu amigo.

ASTONEu dou conta.

DAVIESCarpinteiro, hem?

ASTON(Parado) Gosto... de trabalhar com as mos.

DAVIES pega a esttua do Buda.

DAVIESO que isso?

ASTON(Pegando-a e estudando-a) Isto um Buda.

DAVIESOra.

ASTON. sim. Peguei numa... numa loja. Gostei muito quando vi. Sei l porque. O que voc acha, gosta do Buda?

DAVIESBem, eu... acho legal, no ?

ASTON, fiquei feliz de ter conseguido esse. muito bem feito.

DAVIES se vira e olha atrs da pia.

DAVIESIsso aqui a cama, ?

ASTON(Indo na direo da cama) Temos que dar um jeito nisso. A escada cabe embaixo da cama. (Eles pem a escada sob a cama)

DAVIES(Apontando para a pia) E isso aqui?

ASTONAcho que tambm cabe aqui em baixo.

DAVIESDeixe que eu ajudo. (Levantam a pia) Isso pesa uma tonelada, hem?

ASTONAqui em baixo.

DAVIESNo vai precisar disso?

ASTONNo. Vou acabar jogando fora. Aqui.

Colocam a pia embaixo da cama.

Tem um banheiro no fim do corredor. L tem uma pia. Podemos levar essas coisas pra l.

Comeam a mover o balde de carvo, o carrinho de feira, o cortador de grama e as gavetas para a parede da direita.

DAVIES(Parando) Voc no divide ele, divide?

ASTONDivido o que?

DAVIESO banheiro. Voc no divide o banheiro como os pretos, divide?

ASTONEles moram na outra casa.

DAVIESNo entram aqui?

ASTON coloca uma gaveta junto parede.

No, porque... sabe como ... cada um...

ASTONVoc viu uma mala azul?

DAVIESMala azul? Aqui, olha. Perto do tapete.

ASTON vai at a mala, abre-a. Tira um lenol e um travesseiro. Coloca-os sobre a cama.

Bom lenol.

ASTONO cobertor deve estar meio empoeirado.

DAVIESNo precisa se preocupar.

ASTON de p, pega sua latinha de fumo e comea a preparar um cigarro. Vai at sua cama e se senta.

ASTONComo voc est de dinheiro?

DAVIESAh, bem... olha, meu amigo, pra falar a verdade... estou sem nada.

ASTON tira do bolso umas moedas, escolhe algumas e d cinco shillings a DAVIES.

ASTONPegue esses trocados.

DAVIES(Pegando) Obrigado, obrigado. Que sorte. Tava precisando mesmo. Sabe, no ganhei um tosto pela semana que trabalhei. Pois , isso, ta vendo?

Pausa.

ASTONOutro dia entrei num bar e pedi uma cerveja preta. Me trouxeram numa caneca grossa. Me sentei mas no consegui beber. No consigo tomar cerveja preta em caneca. Pra mim tem que ser copo de vidro. Dei uns goles mas no consegui beber tudo.

ASTON pega a chave de fenda e a tomada que estavam sobre sua cama e continua o conserto.

DAVIES(Com grande nfase) Se pelo menos o tempo melhorasse! Eu podia ir a Sidcup.

ASTONSidcup?

DAVIESEsse tempo maldito no melhora nunca, como que eu vou a Sidcup com isso nos ps?

ASTONPor que quer ir a Sidcup?

DAVIESMeus documentos esto l!

ASTONSeus o que?

DAVIESMeus documentos esto todos l!

Pausa.

ASTONO que seus documentos esto fazendo em Sidcup?

DAVIESEsto com um conhecido. Deixei meus documentos todos com ele. Sabe como ? Posso provar quem eu sou! No d pra ficar andando por a sem eles. Eles provam quem eu sou. Voc sabe, no d pra viver sem documentos.

ASTONE por que?

DAVIESBem, sabe, o negcio que mudei de nome! J faz tempo. Tenho usado um outro nome que no o meu! Esse no meu nome de verdade.

ASTONQue nome voc tem usado?

DAVIESJenkins. Bernard Jenkins. Esse meu nome. Bom, com esse nome que me conhecem. S que no adianta nada usar esse nome. No d direito a nada. tenho aqui um carto do hospital. (Tira um carto do bolso) Aqui o nome Jenkins. V? Bernard Jenkins. Olha s. Quatro carimbos diferentes. Quatro. Mas pra que? No meu nome de verdade, se descobrem me jogam na cadeia. Quatro carimbos. Acha que paguei quanto por isso aqui? Paguei uma nota, uma puta grana. E ainda ta faltando uns carimbos, vrios, mas os safados, aqueles pretos, no tive mais tempo de ir atrs.

ASTONDeviam ter carimbado o seu carto.

DAVIESPra que? no ia conseguir merda nenhuma mesmo. Meu nome no esse. Andando por a com esse carto posso at ser preso.

ASTONQual seu verdadeiro nome?

DAVIESDavies. Mac Davies. Era esse o meu nome antes de ter trocado.

Pausa.

ASTONAcho que voc devia acertar essa histria.

DAVIESSe pelo menos eu pudesse ir a Sidcup! Estou esperando o tempo melhorar. Ele est com meus documentos, esse sujeito, est tudo l com ele, poderia provar o que eu digo.

ASTONH quanto tempo esto com ele?

DAVIESQue?

ASTONH quanto tempo esto com ele?

DAVIESIh, deve ter... foi durante a guerra... deve ter... uns quinze anos, j.

De repente repara a existncia do balde pendurado no teto.

ASTONQuando quiser... se deitar, s deitar. No precisa se preocupar comigo.

DAVIES(Tirando o sobretudo) Ah, bem, acho que vou. Estou meio... meio cansado. (Tira as calas e mostra) Posso colocar aqui?

ASTONPode.

DAVIES pe o sobretudo e as calas no mancebo.

DAVIESAquilo ali um balde?

ASTONGoteira.

DAVIES olha para cima.

DAVIESBom, deixa eu experimentar sua cama. No vai se deitar?

ASTONEstou consertando essa tomada.

DAVIES olha para ele, depois para o fogo.

DAVIESSer que no d pra tirar esse troo da?

ASTONMuito pesado.

DAVIES.

DAVIES deita-se na cama. Experimenta seu peso e tamanho.

Nada mal. Nada mal. Ah, que cama boa. Acho que vou dormir aqui.

ASTONTenho que arranjar uma cpula descente para essa lmpada. A luz muito forte.

DAVIESNem precisa se preocupar, rapaz, nem precisa mesmo. (Vira-se e se cobre)

ASTON sentado, conserta a tomada.

As luzes caem. Escurido.

As luzes sobem. Dia.

ASTON abotoando as calas. De p, prximo cama. Arruma-se. Vira-se. Vai at o centro

do quarto e olha para DAVIES. Vira-se, pe o palet, volta-se em direo a DAVIES, olha

para ele. Tosse. DAVIES se senta abruptamente.

DAVIESO quer? O que isso? O que isso?

ASTONTudo bem.

DAVIES(Arregalado) O que que isso?

ASTONEst tudo bem.

DAVIES olha em volta.

DAVIESAh, sim.

ASTON vai at sua cama, pega a tomada e a sacode.

ASTONDormiu bem?

DAVIESPuxa, e como! Pensei at que tinha morrido.

ASTON vai para a direita, pega a torradeira e a examina.

ASTONVoc... ah, estava...

DAVIESH?

ASTONSer que estava sonhando?

DAVIESSonhando?

ASTON.

DAVIESEu no tenho sonhos. Nunca tive um sonho.

ASTONNo, nem eu.

DAVIESEu no.

Pausa.

Por que ento a pergunta?

ASTONVoc tava fazendo uns barulhos.

DAVIESQuem?

ASTONVoc.

DAVIES levanta-se da cama. De ceroulas.

DAVIESEscuta aqui. Espere um instante, o que foi que disse? Que barulhos?

ASTONTava dando uns gemidos. Tentando falar.

DAVIESGemendo, eu?

ASTON.

DAVIESEu no dou gemidos, meu chapa. Ningum nunca me disse um troo desses.

Pausa.

Imagina s, eu gemendo.

ASTONSei l.

DAVIESPor que que eu ia estar gemendo?

Pausa.

Nunca ningum me disse um troo desses.

Pausa.

No era eu quem estava gemendo.

ASTON(Indo com a torradeira para sua cama) No. Voc me acordou. Achei que devia estar sonhando.

DAVIESSonhando coisa nenhuma. Nunca tive um sonho na vida.

Pausa.

ASTONVai ver, por causa da cama.

DAVIESNo, tem nada errado com a cama.

ASTONTalvez tenha estranhado.

DAVIESNo tem nada de estranho com a cama. J dormi em muitas camas. No fico gemendo s por estar dormindo numa cama. J dormi em muitas camas.

Pausa.

Vou te dizer uma coisa. Vai ver so os pretos fazendo barulhos de noite.

ASTONHummm.

DAVIES o que eu acho.

ASTON deixa a tomada e se dirige para a porta.

Aonde voc vai, vai sair?

ASTONVou.

DAVIES(Pegando as sandlias) Espera um instante, s um instante.

ASTONO que voc ta fazendo?

DAVIES(Calando as sandlias) Melhor sair com voc.

ASTONPor que?

DAVIESSim, acho melhor ir com voc.

ASTONPor que?

DAVIESBom... voc no quer que eu saia?

ASTONPra que?

DAVIESBom... quando voc estiver fora. No quer que eu saia tambm... quando voc sair?

ASTONFaa o que quiser. No precisa sair s porque eu vou sair.

DAVIESNo se importa se eu ficar aqui?

ASTONTenho cpias da chave. (Vai at uma caixa perto de sua cama e acha as chaves) Esta a do quarto, esta da porta da frente. (Entrega-as a DAVIES)

DAVIESMuito obrigado, e muito boa sorte.

Pausa. ASTON de p.

ASTONEstou pensando em dar uma caminhada. Tem... uma loja. Sabe, outro dia tinham uma serra tico-tico. Achei to bonita.

DAVIESUma serra tico-tico?

ASTON. faz muita falta.

DAVIES.

Pequena pausa.

E o que exatamente?

ASTONUma tico-tico? Bom, da mesma famlia da serra de arco. S que eltrica, entende? Tem que ser ligada na corrente eltrica.

DAVIESAh, isso mesmo. Deve fazer muita falta.

ASTON, faz sim.

Pausa.

Sabe, outro dia, fui tomar um caf. Na minha mesa tinha uma mulher sentada. Bom, a comeamos a conversar. No lembro sobre o que... as frias dela, acho, acho que era, pra onde ela tinha ido. Pralguma praia no sul. No me lembro bem. Lembro que estvamos conversando... a de repente, ela colocou a mo dela na minha... e perguntou. Que tal se eu desse uma olhada no seu corpo?

DAVIESPare com isso.

Pausa.

ASTON. Saiu com isso assim, de repente, no meio da conversa. Achei esquisito.

DAVIESJ disseram coisas assim pra mim tambm.

ASTONDisseram?

DAVIESMulheres? Ih, muitas j me fizeram mais ou menos a mesma pergunta.

Pausa.

ASTONComo mesmo o seu nome?

DAVIESBernard Jenkins o que eu adotei.

ASTONNo, o seu outro nome.

DAVIESDavies. Mac Davies.

ASTONGauls?

DAVIESH?

ASTONVoc gauls?

DAVIESBem, tenho andado por a, sabe... entende o que eu quero dizer... vivo por a...

ASTONOnde voc nasceu?

DAVIESEu nasci... ah... oh, meio difcil, sabe, dizer ao certo... entendo o que eu digo... faz tempo... tanto tempo... a gente perde a noo, assim...voc sabe...

ASTON(Ajoelhando-se perto da lareira) Ta vendo essa tomada? Pode ligar aqui se precisar. Esse aquecedor.

DAVIESCerto, amigo.

ASTON dirige-se para a porta.

(Nervoso) O que devo fazer?

ASTON s ligar na tomada, s isso. E o aquecedor funciona.

DAVIESVou te dizer uma coisa. Eu prefiro no mexer.

ASTONNo tem problema.

DAVIESNo, eu prefiro nem botar a mo no que dos outros.

ASTONDeve estar funcionando direito. (Virando-se) Certo.

DAVIESAh, o que eu quero perguntar, amigo, , e esse fogo? Ser que vai ficar vazando algum... o que acha?

ASTONO gs no est conectado.

DAVIESO negcio que, o problema que est bem aqui na cabeceira da minha cama. Fico preocupado em esbarrar num dos botes com o cotovelo, sei l, est entendendo? (D a volta para examinar o fogo pelo outro lado)

ASTONNo h com o que se preocupar.

DAVIESOlha aqui, fique tranqilo. O que vou fazer ficar de olho nos botes e verificar de vez em quando se esto fechados. Pode deixar comigo.

ASTONNo acho que seja...

DAVIES(Aproximando-se) Ah, amigo, s uma coisa... ah... ser que no me arranjaria uns trocados, prum caf, sei l.

ASTONEu lhe dei uns trocados ontem noite.

DAVIESAh, foi, deu. , deu sim. Tinha esquecido. Tinha apagado totalmente da minha cabea. Tem razo. Muito obrigado, amigo. Escuta uma coisa. Tem certeza que no se importa que eu fique aqui? Quero que saiba que no sou do tipo que gosta de abusar dos outros.

ASTONNo. Tudo bem.

DAVIESDevo ir at Wembley mais tarde.

ASTONH, h.

DAVIESTem um caf em Wembley, sabe, talvez l eu consiga alguma coisa. J tentei uma vez. Ouvi dizer que tavam precisando de gente l. Talvez estejam precisando de um empregado.

ASTONQuando foi isso?

DAVIESAh? Oh, bem, j faz... deixe ver... j vai fazer... , j faz algum tempo. Mas claro que no fcil achar a pessoa certa prum lugar desses. Devem estar querendo se livrar dos estrangeiros, sabe. Vai ver querem um ingls de verdade para atender os clientes, servir as mesas, deve ser isso o que eles querem. uma questo de bom senso, hem? Ih, venho pensando nisso h... quero dizer... ah, que... o que vou fazer.

Pausa.

Se conseguisse chegar l.

ASTONMmnn. (Vai para a porta) Ento, at logo.

DAVIESEnto ta.

ASTON sai e fecha a porta.

DAVIES de p espera uns segundos, ento vai at a porta, abre-a, olha para fora, fecha-a, pra dando-lhe as costas, vira-se rapidamente, abre-a, olha para fora, volta, fecha a porta, acha as chaves no bolso, experimenta uma, experimenta outra, tranca a porta. Olha o quarto. Vai rapidamente at a cama de ASTON, abaixa-se, pega o par de sapatos e os examina.

Bacana esses sapatos. O bico meio fino.

Coloca-os debaixo da cama. Examina a rea ao redor da cama de ASTON, pega um vaso e olha dentro, depois pega uma caixa e sacode.

Parafusos!

Ele v os baldes de tinta na cabeceira da cama, vai at l e os examina.

Tinta. O que tem aqui pra pintar?

Coloca os baldes no cho, vai para o centro do quarto e olha para o balde pendurado no teto, d um sorriso.

Tenho que descobrir pra que serve isso.

Cruza para a direita e pega um maarico.

Como esse cara tem bagulho. Olha s pra isso.

Seu olhar se detm numa pilha de papis.

Pra que que ele quer esse monte de papel? Puta monte de papel!

Vai at uma das pilhas e toca nela. A pilha balana. Ele tenta segurar.

Quieto, quietinho.

Segura os papis e empurra-os para no carem.

A porta se abre.

MICK entra, pe a chave no bolso e fecha a porta silenciosamente. Permanece perto da porta observando DAVIES.

Pra que que ele quer esse monte de papel?

Pisa sobre o tapete enrolado para pegar a mala azul.

Tinha um lenol e um travesseiro aqui dentro. (Abre a mala) Nada. (Fecha a mala) A verdade que no consegui dormir. Eu no fao barulho. (Olha pela janela) O que isso?

Pega uma outra mala, tenta abri-la, MICK vai para o fundo, silenciosamente.

Trancada. (Deixa-a de lado e desce para o centro do palco) Deve ter alguma coisa aqui dentro. (Pega uma das gavetas e comea a remexer, coloca-a de volta no lugar)

MICK desliza em sua direo.

DAVIES quase se vira. MICK agarra seu brao por trs. DAVIES grita.

DAVIESUuuhhh! Que, que que isso? O que que isso! Uuuhhh!

MICK o leva sem dificuldade para o cho. DAVIES se debatendo, lutando, gemendo, arregalado. MICK segura seu brao, pe a outra sobre os lbios, depois sobre os lbios de DAVIES. DAVIES sossega. MICK o solta. DAVIES se contorce de dor. MICK adverte DAVIES com o dedo. Depois se abaixa para observar DAVIES. Olha para ele, fica de p, olhando-o de cima. DAVIES massageia seu brao olhando para MICK. MICK d uma volta olhando o quarto. Vai at a cama de DAVIES e tira as cobertas. Vira-se, vai at o mancebo e pega as calas de DAVIES. . DAVIES tenta se levantar. MICK o empurra com o p de volta para o cho e fica pisando nele at tirar o p. Examina as calas e joga-as de volta. DAVIES permanece agachado. MICK vai lentamente at a cadeira, senta-se e observa DAVIES, impassvel.

Silncio.

MICKQual o jogo?

Cai o pano.

ATO II

Alguns segundos depois.

MICK sentado. DAVIES no cho, meio sentado, meio agachado.

Silncio.

MICKEnto?

DAVIESNada, nada. Nada.

O som de um pingo no balde pendurado. Os dois olham para cima. MICK olha de volta para DAVIES.

MICKQual teu nome?

DAVIESEu no te conheo, no sei quem voc .

Pausa.

MICKH?

DAVIESJenkins.

MICKJenkins?

DAVIES.

MICKJen... kins.

Pausa.

Dormiu aqui ontem noite?

DAVIES.

MICKDormiu bem?

DAVIESDormi.

MICKFico contentssimo. um prazer conhec-lo.

Pausa.

Como mesmo o seu nome?

DAVIESJenkins.

MICKComo?

DAVIESJenkins!

Pausa.

MICKJen... kins.

Um pingo no balde. DAVIES olha para cima.

Voc me lembra demais o irmo do meu tio. Um homem que nunca parava quieto. No saa sem o passaporte. Gostava de uma garota. O mesmo tipo fsico. Um atleta. Expert em salto distncia. Na poca do Natal costuma demonstrar diferentes formas de correr bem no meio da sala. Era vidrado em nozes. Verdade. No s nozes. Comia at no agentar. Amendoim, amndoas, castanhas, avels, s no comia o bolo de frutas. Ele tinha um cronmetro extraordinrio. Comprou em Hong-Kong. No dia que expulsaram ele do exrcito da salvao. Isso, antes de ter ganhado sua medalha de ouro. Tinha o estranho hbito de carregar um violino nas costas. Feito um pele vermelha carregando o filho. Acho que tinha sangue ndio nas veias. Honestamente, nunca entendi como ele veio a ser irmo do meu tio. Andei pensando que talvez seja o contrrio. Vai ver que meu tio que era irmo dele, e ele meu tio. Nunca chamei ele de tio. S chamava ele de Sid. Era uma coisa engraada. Ele era a tua cara. Casou com uma chinesa e foram morar na Jamaica.

Pausa.

Espero que tenha dormido bem noite.

DAVIESEscuta, no sei quem voc!

MICKEm que cama voc dormiu?

DAVIESEi, olha aqui...

MICKHem?

DAVIESNaquela.

MICKNo na outra?

DAVIESNo.

MICKEspertinho.

Pausa.

Gostou do meu quarto?

DAVIESSeu quarto?

MICK.

DAVIESEsse quarto no seu. No sei quem voc. Nunca te vi antes.

MICKSabe de uma coisa. Acredite ou no, mas o engraado que voc me lembra um rapaz que conhecia em Shoreditch. Na verdade, morava em Aldgate. Estava passando uns dias na casa de um primo meu em Camdem Town. Esse cara tinha um negcio em Finsbury Park, do lado da garagem de nibus. Quando conheci ele, descobri que tinha sido criado em Putney. Eu nem liguei. Conheo tanta gente de Putney. Mesmo que no tenham nascido em Putney, Fulham, talvez. A questo que ele no tinha nascido em Putney, s tinha sido criado em Putney. Descobri que tinha nascido na Caledonian Road, um pouco antes do Nags Head. Sua velha me ainda mora l. Os nibus passam bem na porta. Pode pegar o 38, o 581, o 30 ou o 38-A, que descem a Essex at o terminal de Dalston em questo de minutos. Agora, se ela tomar o 30, ela sobe toda a rua de cima, d a volta no Highbury Corner, desce at a igreja de St Paul, mas de todo jeito, acaba chegando ao terminal de Dalston. Costumava deixar minha bicicleta no jardim da casa dela quando ia pro trabalho. , era um negcio curioso. Ele era igual a voc. O nariz um pouco mais largo, s isso.

Pausa.

Dormiu aqui ontem noite?

DAVIESDormi.

MICKDormiu bem?

DAVIESDormi.

MICKNo precisou se levantar durante a noite?

DAVIESNo!

Pausa.

MICKQual o teu nome?

DAVIES(Tentando se levantar) Olha aqui...!

MICKQual?

DAVIESJenkins.

MICKJen... kins.

DAVIES faz um movimento para se levantar. Um urro violento de MICK o empurra de volta. MICK grita com ele.

Dormiu aqui ontem?

DAVIESDormi.

MICK(Continua violentamente) Dormiu como?

DAVIESDormi...

MICKDormiu bem?

DAVIESEi, olha...

MICKEm que cama?

DAVIESNaquela.

MICKNo na outra?

DAVIESNo!

MICKEspertinho.

Pausa.

(Calmamente) Espertinho.

Pausa.

(De novo, amigvel) Como foi sua noite naquela cama?

DAVIES(Empurrando o cho) Muito boa!

MICKNo achou desconfortvel?

DAVIES(Rosnando) Muito boa!

MICK levanta-se e vai at ele.

MICKVoc gringo?

DAVIESNo.

MICKNascido e criado nas Ilhas Britnicas?

DAVIES.

MICKO que foi que te ensinaram?

Pausa.

O que achou da minha cama?

Pausa.

Essa cama minha. Dormiu nela pra no pegar vento, hem?

DAVIESNa cama?

ASTONNo, imbecil, no teu cu.

DAVIES olha cuidadosamente para MICK, que se vira. DAVIES se arrasta at o mancebo e pega suas calas. MICK se vira rapidamente e agarra-as. DAVIES se atira para peg-las. MICK o ameaa com um gesto.

Ta pretendendo ficar aqui?

DAVIESMe d minhas calas.

ASTONTa pretendendo passar uns tempos aqui?

DAVIESMe d a porra das minhas calas!

MICKPra que? Vai a algum lugar?

DAVIESSe me der minhas calas eu vou. Vou a Sidcup.

MICK sacode as calas na cara de DAVIES algumas vezes. DAVIES recua.

MICKSabe que voc me lembra um cara que conheci na sada da passagem subterrnea de Guilford?

DAVIESFui trazido pra c!

Pausa.

MICKO que disse?

DAVIESFui trazido. Eu fui trazido pra c.

MICKTrazido? Quem que ia trazer voc pra c?

DAVIESO sujeito que mora aqui... ele...

Pausa.

MICKMentira.

DAVIESEle me trouxe, ontem de noite. Encontrei ele no caf... onde eu tava trabalhando... fui despedido... eu tava trabalhando, ele me salvou de uma surra, me trouxe pra c, me trouxe direto pra c.

Pausa.

MICKComo voc mente, hem? Est falando com o dono. Este quarto meu. Voc est na minha casa.

DAVIES dele... ele me ajudou... ele...

MICK(Apontando para a cama de DAVIES) Aquela cama ali minha.

DAVIESE aquela outra? Ento?

MICK da minha me.

DAVIESNo foi ela que dormiu ali.

MICK(Indo na direo dele) Olha aqui, meu filho, melhor parar de se fazer de engraado. Tire as mos de cima da minha me.

DAVIESEu no... no tinha...

MICKFique no seu lugar, meu chapa, vamos parar com essa falta de respeito com minha me, sujeito abusado.

DAVIESEu tenho respeito, no existe ningum que saiba mais do que eu o que ter respeito.

MICKPra de falar mentira.

DAVIESOlha, escuta, eu nunca vi voc antes, vi?

MICKNem nunca viu minha me.

Pausa.

Estou chegando a concluso que voc no passa de um ladro. Vagabundo. Safado.

DAVIESEi, espera a...

MICKOlha aqui, meu filho, ta me ouvindo? Voc fede.

DAVIESVoc no tem o direito de...

MICKTeu cheiro ruim contamina o ambiente. Seu rato velho, vai dizer que no. Nojento. No merece estar num lugar limpo como este. Voc um rato. isso o que voc . Ta fazendo o que num apartamento vazio? Se quiser posso cobrar umas sete libras por semana por ele. Tenho um interessado vindo amanh. Trezentos e cinqenta por ano, sem depsito. Sem discusso. Se estiver dentro de suas possibilidades s dizer. Fechamos negcio agora. Se quiser ficar com a moblia e os acessrios posso deixar tudo por 400, ou estudo proposta. De impostos, uns 90 por ano. gua, luz, aquecimento, no mximo uns 50 por ms. Se estiver realmente interessado, fao tudo a 850. O que acha? Quer que eu mande meu advogado preparar uma minuta do contrato? Caso contrrio, minha camionete est a fora, levo voc pra polcia e em menos de cinco minutos te boto na cadeia por invaso de domiclio, permanncia em local privado, roubo luz do dia, furto, assalto e contaminao do ar com mau cheiro. O que acha? A no ser que tenha interesse em compr-lo. Claro que antes mandaria meu irmo fazer uma decorao nova. Tenho um irmo decorador, do mais alto gabarito. Ele faria uma decorao especial pra voc. Caso precise de mais espao disponho ainda de mais quatro quartos ao longo do corredor em perfeitas condies. Banheiro, sala de estar, quarto de vestir, quarto de brinquedos. Pode fazer deste aqui seu estdio. Meu irmo, a quem me referi, est pra comear as reformas nos outros quartos. Est sim. Ento, como quer fazer? Oitocentos pelo quarto ou trs mil por todo o andar de cima. Claro, que se preferir podemos financiar. Tenho operado regularmente com uma firma da West Ham que ter o maior prazer em servir-lhe como agente de crdito. Garantia total da situao imobiliria, transparncia absoluta nas negociaes, impostos quitados, apenas 20% de comisso, 50% de depsito, um pequeno sinal na entrega das chaves, descontos no salrio famlia, bnus da casa prpria, reavaliao da pena por bom comportamento, seis meses de licena, reexame anual de fatos relevantes de arquivo, disponibilidade imediata das aes, valor garantido de revenda, liquidez instantnea, indenizao total em caso de insurgncia popular, depredao, distrbios trabalhistas, tempestades, vendavais, raios e troves, com monitoramento constante de cataclismos. Precisaramos somente de uma declarao de seu mdico particular certificando sua aptido fsica para assumir a responsabilidade, no mesmo?

Pausa.

Com que banco voc trabalha?

Abre-se a porta. ASTON entra. MICK se vira e deixa as calas de DAVIES cair. DAVIES pega e veste-as. ASTON, depois de olhar os dois vai para sua cama, coloca sobre ela a bolsa que vinha carregando, senta-se e recomea a consertar a torradeira. DAVIES recolhe-se a um canto. MICK senta-se na cadeira.

Silncio.

Ainda a goteira?

ASTON.

Pausa.

Problema no telhado.

MICKNo telhado, ?

ASTON.

Pausa.

Vou ter que passar um pouco de piche.

MICKVai botar piche?

ASTON.

MICKOnde?

ASTONNas rachaduras.

Pausa.

MICKVai botar piche nas rachaduras do telhado?

ASTONVou.

Pausa.

MICKAcha que resolve?

ASTONAcho que sim, pelo menos por enquanto.

MICKH.

Pausa.

DAVIES(Abruptamente) O que vocs fazem? (Os outros olham pra ele) O que vocs fazem... quando o balde est cheio?

Pausa.

ASTONA gente esvazia.

Pausa.

MICKEstava dizendo ao meu amigo aqui, que voc est pra comear a decorao dos outros quartos.

ASTON.

Pausa.

(Para DAVIES) Peguei sua bolsa.

DAVIESOh. (Indo na direo dele e pegando a bolsa) Oh, obrigado, cavalheiro, obrigado. Entregaram ela pra voc, foi?

DAVIES est cruzando de volta com a bolsa quando MICK levanta-se e pega-a.

MICKO que isso?

DAVIESMe d isso aqui, essa bolsa minha!

MICK(Afastando-se) J vi essa bolsa antes.

DAVIESEssa bolsa minha.

MICK(Confundindo-o) Conheo bem essa bolsa.

DAVIESComo assim?

MICKOnde foi que arranjou isso?

ASTON(Levantando-se, para ambos) Parem com isso.

DAVIES minha.

MICKTua?

DAVIES minha. Diz pra ele que minha!

MICKEssa bolsa tua?

DAVIESMe d ela!

ASTOND ela pra ele.

MICKO que? Dar pra ele o que?

DAVIESMe d essa merda!

MICK(Escondendo-a atrs do fogo) Que bolsa? (Para DAVIES) Que bolsa?

DAVIES(Movendo-se) Olha aqui!

MICK(Encarando-o) Onde que voc vai?

DAVIESVou pegar... minha velha...

MICKCuidado, rapaz! Est batendo na porta de uma casa vazia. Toma bastante cuidado. Peguei voc invadindo um domiclio particular, botando a mo no que no seu. Cuidado pra no avanar o sinal, filhote.

ASTON pega a bolsa.

DAVIESLadro safado... pilantra... deixa eu pegar minha...

ASTONAqui.

ASTON oferece a bolsa a DAVIES.

MICK pega-a. ASTON toma-a.

MICK pega-a. DAVIES tenta peg-la.

ASTON pega-a. MICK tenta peg-la.

ASTON entrega-a a DAVIES. MICK a agarra.

Pausa.

ASTON pega-a. DAVIES pega-a. MICK pega-a.

DAVIES tenta peg-la. ASTON pega-a.

Pausa.

ASTON entrega-a a MICK. MICK entrega-a a DAVIES.

DAVIES a abraa.

Pausa.

MICK olha para ASTON. DAVIES recolhe-se a um canto com a bolsa. Deixa-a cair.

Pausa.

Os outros o observam. Pega a bolsa, vai para sua cama, senta-se. ASTON vai para sua cama. Senta-se, enrola um cigarro. MICK parado de p.

Pausa.

Um pingo no balde. Todos olham para cima.

Pausa.

ASTONConseguiu chegar a Wembley?

DAVIESNo, eu no fui a Wembley.

Pausa.

No, no consegui chegar.

MICK vai para a porta. Sai.

ASTONNo dei sorte com a serra tico-tico. Quando cheguei l j tinha sido vendida.

DAVIESQuem era aquele sujeito?

ASTONMeu irmo.

DAVIESEle gosta de brincar com os outros, hem?

ASTONH.

DAVIES... brincalho ele, n?

ASTONTem grande senso de humor.

DAVIES, reparei.

Pausa.

, bem brincalho ele, d pra reparar.

ASTON, ele sempre... sempre v o lado engraado das coisas.

DAVIESGrande senso de humor, no ?

ASTON.

DAVIES. D pra notar.

Pausa.

Logo vi. Assim que entrou vi logo que ele tem um jeito particular de encarar as coisas.

ASTON se levanta, vai at o mvel de gavetas da direita, pega a esttua do Buda e coloca-a sobre o fogo.

ASTONVou coordenar a reforma do andar de cima pra ele.

DAVIESQuer dizer... ento... que a casa dele?

ASTON. Estou encarregado da decorao de todo este andar. Vamos transformar esta parte num apartamento independente.

DAVIESE ele, o que que ele faz?

ASTONTrabalha com construo. Tem sua prpria camionete.

DAVIESEnto, ele no mora aqui?

ASTONAssim que eu fizer o depsito a fora... vou poder me dedicar mais reforma do apartamento, entende? Vou poder eu mesmo fazer as coisas pra ele. (Anda at a janela) Trabalho bem com as mos, sabe. uma coisa que sei fazer. No tinha a menor noo que fosse capaz. Mas agora fao qualquer coisa com as mos. Sabe como . Trabalhos manuais. Assim que levantar o depsito a fora... vou ter minha prpria oficina. Eu... vou poder trabalhar com madeira. Coisas simples no incio. Trabalhar com... boa madeira.

Pausa.

Naturalmente, tem muita coisa a ser feita aqui. Estou pensando em, talvez faa uma divisria... num dos quartos. Acho que ficaria timo. Sabe... existem uns biombos... sabe como...orientais. Isso ou as divisrias. Eu mesmo poderia fazer elas, se tivesse uma oficina.

Pausa.

De qualquer forma acho que vou optar pelas divisrias.

Pausa.

DAVIESH, olha, tava pensando. Esta no minha bolsa.

ASTONOh. No.

DAVIESNo. Essa bolsa no minha. A minha era uma outra, totalmente diferente. J sei o que fizeram. Eles ficaram com a minha bolsa e te deram outra totalmente diferente.

ASTONNo... o que aconteceu que algum pegou a sua bolsa.

DAVIES(Levantando-se) Foi o que eu disse!

ASTONNa verdade peguei essa bolsa num outro lugar. Tem umas a... peas de roupa tambm. Cobraram barato por tudo.

DAVIES(Abrindo a bolsa) Tem sapato?

DAVIES tira da bolsa duas camisas xadrez de cores fortes. Uma vermelha, a outra verde. Mostra-as.

Xadrez.

ASTON.

DAVIES... bem, eu conheo esse tipo de camisa, sabe. Essas camisas no prestam pro inverno. , pode crer, no servem mesmo. No, o que eu preciso de umas camisas listradas, entende? Camisa grossa, com listras assim, na vertical. esse o tipo de camisa que estou precisando. (Encontra na bolsa um palet de smoking, vermelho escuro) O que isso?

ASTONUm palet de smoking.

DAVIESSmoking? (Apalpando) Isso aqui no mau. Deixe experimentar. (Experimenta) No tem um espelho, tem?

ASTONAcho que no.

DAVIES, at que cai bem. O que voc acha?

ASTONFicou legal.

DAVIESBem, acho que isso no vou dispensar.

ASTON examina a tomada.

No, no vou dispensar.

Pausa.

ASTONVoc podia ser... o zelador daqui, se quiser.

DAVIESComo?

ASTONPodia... cuidar desse lugar, se quiser. Sabe, as escadas, o corredor, os degraus da entrada, tomar conta, polir os sinos.

DAVIESSinos?

ASTONEstou pra instalar uns sinos pra servir de campainha na porta da frente. Bronze.

DAVIESZelador, ?

ASTON.

DAVIESBom, eu... nunca trabalhei de zelador antes, sabe... quero dizer... eu nunca... o que eu quero dizer que... nunca fui zelador...

Pausa.

ASTONNo gostaria de ser?

DAVIESBom, eu acho meio... bem, teria que saber... voc sabe...

ASTONQue tipo de...

DAVIES, que tipo de... sabe...

Pausa.

ASTONBom, eu acho...

DAVIESEu acho, que teria... eu ia ter que...

ASTONBom, eu podia lhe dizer...

DAVIESIsso... isso... voc sabe... est me entendendo?

ASTONQuando chegar a hora...

DAVIESAcho que, o que estou pensando que, voc...

ASTONO que talvez exatamente voc...

DAVIESTa entendendo o que eu quero dizer... o que estou pensando ... quero dizer, que tipo de trabalho eu...

Pausa.

ASTONBom, coisas assim como as escadas... e os sinos da porta...

DAVIES, mas precisaria de... no verdade... teria que ter... uma vassoura... no acha?

ASTONSim claro, iria precisar de vassoura, escovas.

DAVIESPrecisaria do material... voc sabe, material de boa qualidade...

ASTON pega um guarda-p que estava pendurado num prego na parede perto de sua cama e mostra-o a DAVIES.

ASTONVoc pode usar isto, se quiser.

DAVIES... isso bom, hem?

ASTONPra no se sujar com a poeira.

DAVIES(Vestindo) , isso evita a poeira, Com certeza. Obrigado, cavalheiro.

ASTONVou lhe dizer uma coisa, o que podamos fazer ... eu podia instalar um sino l em baixo, do lado de fora da porta, escrito: zelador. E voc ficaria encarregado de atender a porta.

DAVIESBom, a eu j no sei.

ASTONPor que no?

DAVIES que nunca se sabe quem chega na porta da frente, no ? A gente tem que ter cuidado.

ASTONPor que? Tem algum atrs de voc?

DAVIESAtrs de mim? Bem, sabe l se o escocs no ta me procurando? Vai l saber? Vamos dizer que eu oua o sino, a campainha, deso as escadas, abro a porta, dou de cara com um fulano qualquer, olha eu a fodido. Podem muito bem vir atrs do meu carto, no, olha, olha aqui, olha eu aqui, s quatro carimbos nesse carto, olha bem, oh, quatro carimbos, s o que eu tenho, tocam o sino escrito zelador e l vou eu preso, no precisam mais nada, e eu estou frito. Claro que eu tenho uma poro de outras carteiras por a, mas disso eles no sabem, nem eu posso falar nada, lgico, seno descobrem que eu adotei outro nome. Sabe como , o nome que digo que meu agora, no meu nome de verdade. O meu nome no o que estou usando, entende? outro. Sabe, o nome que estou usando agora no verdadeiro. falso.

Silncio.

Luzes caem. Blackout.

Depois uma fraca claridade pela janela.

Ouve-se uma porta bater.

Som de chave na porta do quarto.

DAVIES entra, fecha a porta e tenta o interruptor. Liga, desliga, liga, desliga.

DAVIES(Resmungando) Que que h? (Liga, desliga) Qual o problema com essa porra dessa luz? (Liga, desliga) Aaaah, no vai me dizer que acabou a luz.

Pausa.

O que que eu fao, sem essa merda de luz. No d pra ver nada.

Pausa.

O que que fao agora? (Anda, tropea) Oh, droga, o que isso? Deixa eu. Pera.

Procura fsforos nos bolsos, acha uma caixa e acende um fsforo. O fsforo se apaga. Deixa a caixa cair.

Aah! Cad? (Abaixa-se) Cad essa porra?

Algum chuta a caixa de fsforos.

Que isso? Que isso? Quem ta a? Quem ?

Pausa. Anda.

Cad meus fsforos? Caram aqui. Quem est a? Quem chutou minha caixa de fsforos?

Silncio.

Como que ? Quem voc? Quem pegou meus fsforos?

Pausa.

Quem ta a?

Pausa.

Olha, eu tenho uma faca. Pode vir. Seja quem for. Pode vir.

Anda. Tropea. Cai e grita.

Silncio.

Um fraco gemido de DAVIES.

Ta certo.

Fica de p. Respirao pesada. De repente o aspirador de p comea a funcionar. Uma figura o conduz perseguindo DAVIES que d pulos, tenta fugir mas fica sem flego.

Ah, ah, ah, ah, ah, ah! Sai fora!

O aspirador pra. A figura salta sobre a cama de ASTON.

Vem! Pode vir! Eu to aqui!

A figura tira o aspirador da tomada e nesta liga o abajur. As luzes se acendem. DAVIES se encosta na parede da direita, com uma faca na mo. MICK de p sobre a cama, segurando a tomada do aspirador.

MICKTava s dando uma limpeza. (Desce da cama) Tnhamos uma tomada para o aspirador. Mas no est funcionando. Tive que ligar na tomada do abajur. (Guarda o aspirador embaixo da cama de ASTON) Ento, o que achou do quarto? Dei uma limpeza.

Pausa.

Nos revezamos a cada duas semanas, eu e meu irmo, pra fazer a faxina. Trabalhei hoje at mais tarde, acabei de chegar. Mas achei melhor fazer logo o trabalho, j que a minha vez.

Pausa.

No que eu more aqui. No moro. Na verdade, moro em outro lugar. Mas afinal sou responsvel por isso aqui, hem. No consigo evitar o prazer de ver uma casa limpa. (Vai em direo a DAVIES) Pra que isso?

DAVIESExperimenta chegar perto.

MICKDesculpe se lhe assustei. Mas estava pensando em voc tambm. O hspede de meu irmo. Temos que pensar tambm no seu conforto, no mesmo? No queremos que a poeira lhe entre pelo nariz. A propsito, quanto tempo est planejando ficar? De qualquer forma, acho que vou reduzir seu aluguel. Sabe como , estabelecer apenas um valor simblico, at voc conseguir uma colocao, s isso.

Pausa.

Agora, se voc continuar a criar problemas, vou ser obrigado a reconsiderar toda a proposta.

Pausa.

Eh, voc no est pensando em fazer nenhuma violncia comigo, est? Voc no do tipo violento, ?

DAVIES(Com veemncia) Sou um homem controlado, rapaz. Mas se algum se meter besta comigo, fique sabendo que sei me defender.

MICKAcredito.

DAVIESE faz muito bem. J estive em tudo que lugar, sabia? Ta me entendendo, no ? No me incomodo com uma brincadeira de vez em quando, agora, quem me conhece... sabe que no tolero abuso comigo.

MICKEstou entendendo o que voc quer dizer sim.

DAVIESNo sou cabea quente mas...

MICKNo pise no meu calo.

DAVIESIsso.

MICK se senta sobre alguma coisa.

O que que voc quer?

MICKNo, eu s queria dizer que... estou muito impressionado.

DAVIESH?

MICKMuito impressionado pelo que voc acabou de dizer.

Pausa.

, realmente impressionado sim.

Pausa.

Impressionadssimo.

DAVIESEnto voc sabe do que estou falando?

MICK, sei sim. Acho que estamos nos entendendo.

DAVIESH, bom... vou lhe contar... eu queria que... voc andou a me fazendo de bobo, sabe n. Sei l porque. Nunca lhe fiz nenhum mal.

MICKNo, mas sabe o que foi? Acho que comeamos com o p esquerdo. Foi isso que aconteceu.

DAVIES, foi isso.

DAVIES senta-se ao lado de MICK.

MICKQue tal um sanduche?

DAVIESO que?

MICK(Tirando um sanduche do bolso) Toma.

DAVIES alguma brincadeira?

MICKNo, acho que voc no est entendendo. que na verdade no sei maltratar um amigo de meu irmo. Voc no amigo do meu irmo?

DAVIESBom, eu... no sei se realmente amigo.

MICKEnto no acha ele uma pessoa amigvel?

DAVIESBem, no foi isso que eu quis dizer. Quero dizer, ele no me fez nenhum mal, mas no sei se podemos nos considerar amigos. de que esse sanduche, hem?

MICKDe queijo.

DAVIESBom.

MICKPegue um.

DAVIESObrigado, cavalheiro.

MICKSinto muito em saber que meu irmo no uma pessoa muito amigvel.

DAVIESNo, ele amigvel, ele legal, eu no disse isso...

MICK(Tirando um saleiro do bolso) Sal?

DAVIESNo, obrigado. (Mastigando o sanduche) Eu no consigo ... entender ele direito.

MICK(Apalpando os bolsos) Esqueci a pimenta.

DAVIESNunca sei o que ele est realmente pensando, s isso.

MICKTinha pegado um aipo. Acho que larguei por a.

Pausa.

DAVIES come o sanduche. MICK o observa. Depois se levanta e se dirige para o proscnio.

Ah, escute aqui... ser que posso lhe pedir uma opinio? Bom, voc um homem com grande experincia de vida. Se importaria em me dar sua opinio a respeito de uma coisa?

DAVIESDiga l.

MICKBom, o negcio o seguinte, sabe, eu... ando meio preocupado com meu irmo.

DAVIESSeu irmo?

MICK... sabe, o problema com ele...

DAVIESQue?

MICK uma coisa chata de dizer...

DAVIES(Levantando-se e indo em direo a MICK) Pode dizer, no precisa...

MICK olha para ele.

MICKEle no gosta de trabalhar.

Pausa.

DAVIESContinue.

MICK isso. Ele no gosta de trabalhar, esse o problema.

DAVIESVerdade?

MICK horrvel dizer isso de seu prprio irmo.

DAVIES.

MICK, mas isso. No gosta.

DAVIESSei como .

MICKConhece o tipo?

DAVIESJ vi muitos assim.

MICKSabe, eu quero o melhor do mundo pra ele.

DAVIES natural.

MICKQuando a gente tem um irmo mais velho, a gente s quer ver ele bem, seguindo seu prprio caminho. No suporto ver ele assim, como um intil, se estragando. isso o que eu penso.

DAVIES.

MICKMas no consegue um trabalho.

DAVIESNo gosta de trabalhar.

MICKNo d pra coisa.

DAVIES o que parece.

MICKConhece gente assim, no conhece?

DAVIESEu? Gente assim o que eu mais conheo.

MICK.

DAVIESNossa, e como. o que no falta.

MICKFico to apreensivo. Voc sabe. Eu sou um cara ativo: comerciante. Tenho minha prpria caminhonete.

DAVIESVerdade?

MICKEle tinha que estar fazendo um servio pra mim... Ele fica aqui pra fazer esse servio... mas no sei... estou chegando concluso que ele lento demais.

Pausa.

Que conselho me daria?

DAVIESBom... ele um cara engraado, seu irmo.

MICK o encara.

MICKEngraado? Por que?

DAVIESBom... ele engraado...

MICKO que que ele tem de engraado?

Pausa.

DAVIESNo gostar de trabalhar.

MICKE o que que isso tem de engraado?

DAVIESNada.

Pausa.

MICKNo acho isso nada engraado.

DAVIESNem eu.

MICKNo seja intransigente.

DAVIESNo, no, no nada disso, eu no tava... s disse que...

MICKNo seja falso.

DAVIESOlha, tudo o que eu disse foi...

MICKChega. (Rapidamente) Olha! Tenho uma proposta a te fazer. Estou pensando em assumir o controle desse lugar, compreende? Acho que poderia faz-lo com total eficincia. Tenho muitas idias e timos planos. (Fixa o olhar em DAVIES). No gostaria de ficar aqui como zelador?

DAVIESO que?

MICKVou lhe falar francamente. Sinto que posso confiar em voc, que voc seria capaz de tomar conta desse lugar.

DAVIESBom, que... espere um instante... eu... que nunca trabalhei como zelador, sabe...

MICKIsso no tem importncia, o que importa que voc me parece um homem muito capaz.

DAVIESClaro que sou um homem capaz. De fato, j tive muitas oportunidades na vida, voc sabe, no estou me gabando.

MICK, deu pra ver quando voc sacou a faca, pude ver que no deixa ningum lhe fazer de bobo.

DAVIESNingum se faz de besta comigo, no senhor.

MICKVoc j serviu, no j?

DAVIESServiu o que?

MICKAs foras armadas. D pra ver pelo seu comportamento.

DAVIESOh, sim quase a metade da minha vida. Passei anos bordo... servindo... eu era...

MICKNas colnias, certo?

DAVIESFoi onde eu estive. Fui um dos primeiros a embarcar.

MICKPois isso. justamente de um homem como voc que eu estou precisando.

DAVIESPra que?

MICKZelador.

DAVIESSim, bom... olha... escute... quem o dono aqui, ele ou voc?

MICKEu. O dono sou eu. Tenho como provar.

DAVIESAh... (Decidido) Bom, eu no me importaria de ser o zelador, no me importaria em cuidar do seu prdio.

MICKNaturalmente teramos que chegar a um acordo que seja financeiramente justo para ambas as partes.

DAVIESDeixo isso nas suas mos.

MICKObrigado. S uma coisa.

DAVIESO que?

MICKPoderia me dar alguma referncia?

DAVIESH?

MICKSeria apenas para satisfazer meus advogados.

DAVIESTenho um monte de referncias. S preciso ir a Sidcup amanh. Minhas referncias esto todas l.

MICKOnde?

DAVIESEm Sidcup. No s minhas referncias, meus documentos tambm. Conheo l como a palma de minha mo. Tenho que ir l de qualquer jeito, sabe o que eu quero dizer, tenho que ir ou ento, nada feito.

MICKQuer dizer que podemos conseguir suas referncias assim que for preciso?

DAVIESEstava mesmo para ir l, estava at pensando em ir hoje... se o tempo melhorasse.

MICKAh.

DAVIESEscute, ser que no me conseguiria um par de sapatos? Estou precisando tanto de um bom par de sapatos. No possvel ir a lugar nenhum sem sapatos, no ? Acha que seria possvel me conseguir um par?

Luzes caem. Blackout.

Luzes sobem. de manh.

ASTON est vestindo as calas sobre as ceroulas. Um leve sorriso. Olha em volta, pega uma toalha na cabeceira de sua cama e sacode-a. Recoloca-a no lugar, vai at DAVIES e o acorda. DAVIES senta-se abruptamente

ASTONVoc disse pra eu te acordar.

DAVIESPra que?

ASTONPra ir a Sidcup.

DAVIES, seria bom se eu conseguir chegar l.

ASTONO dia no est l essas coisas.

DAVIES, ah, acho ento que no vai dar.

ASTONEu tive uma noite pssima de novo.

DAVIESEu dormi mal.

Pausa.

ASTONVoc no parava de fazer...

DAVIESHorrvel. Caiu uma puta chuva de noite, no foi?

ASTONChoveu um pouco sim. (Vai at sua cama, pega uma pequena prancha de madeira e comea a lix-la)

DAVIESBem que ouvi. Senti chuva na cabea.

Pausa.

Ser que no daria pra fechar aquela janela?

ASTONVoc podia ter fechado.

DAVIESPois ento, veja s. Chuva bem aqui na minha cabea, como que pode?

ASTONEu sempre preciso de ar fresco.

DAVIES sai da cama. Est usando calas, camiseta e colete.

DAVIES(Calando as sandlias) Escuta aqui, passei a vida pegando ar fresco, garoto. No me venha falar de ar fresco. O que estou querendo dizer que tem ar fresco demais entrando por aquela janela enquanto eu tento dormir.

ASTONFica muito abafado aqui dentro com a janela fechada. (Cruza at a cadeira, coloca a madeira sobre ela e continua a lix-la)

DAVIES, vou te dizer uma coisa, voc no ta me entendendo. Essa porra de chuva ta caindo bem aqui na minha cabea. No to conseguindo dormir. Daqui a pouco eu pego uma pneumonia, ainda mais com esse vento. Ta me entendendo? Se fechar a janela, ningum aqui vai correr nenhum risco de pegar pneumonia. S isso.

Pausa.

ASTONNo consigo dormir se a janela no estiver aberta.

DAVIESSim, mas e eu? O que... que que voc sugere que eu faa?

ASTONPor que no dorme ao contrrio?

DAVIESAo contrrio como?

ASTONDurma com os ps pra janela.

DAVIESPra que?

ASTONPra evitar que chova na sua cabea.

DAVIESNo, de jeito nenhum.

Pausa.

Agora que j me acostumei a dormir desse jeito. No sou eu que tenho que mudar, a janela. Ta vendo, est chovendo agora. Olha s. Olha que chuva.

Pausa.

ASTONAcho que vou dar uma caminhada at a Goldhawk Road. Tenho que falar com uma pessoa l. O cara tem uma bancada. Parece estar em bom estado. Acho que ele no deve estar precisando dela.

Pausa.

Tava pensando. Acho que vou at l.

DAVIESOlha pra isso. No vai dar mesmo pra ir a Sidcup. Que tal fechar a janela agora? Ta chovendo aqui dentro.

ASTONPode fechar por enquanto.

DAVIES fecha a janela e olha para fora.

DAVIESO que tem embaixo daquela lona?

ASTONMadeira.

DAVIESPra que?

ASTONPra construir meu depsito.

DAVIES se senta na cama.

DAVIESPor acaso no conseguiu os sapatos que ficou de descolar pra mim, conseguiu?

ASTONNo, vou ver se consigo hoje.

DAVIESNo d pra sair assim, no ? No d pra sair nem pra tomar um caf.

ASTONTem um caf aqui na rua.

DAVIESE que tenha, meu amigo.

Durante a fala de ASTON o quarto vai escurecendo.

No final da fala somente ASTON pode ser visto claramente. DAVIES e todo o resto esto no escuro. O fade out deve ser imperceptvel, lento e gradual.

ASTONCostumava ir muito l. Ah, j faz tantos anos. Mas parei. Era um lugar onde eu gostava de ir. Ficava horas l. Isso, antes de eu ter ido embora. Acho que... o lugar teve muito a ver. Eram todos... bem mais velhos do que eu. Mas sempre me ouviam. Eu achava... que entendiam o que eu dizia. Quero dizer, eu conversava com eles. Eu falava muito. Esse foi o meu erro. A mesma coisa na fbrica. Enquanto eu trabalhava, ou durante os intervalos, eu falava... sobre coisas. E as pessoas ficavam ouvindo, sempre que eu... tinha algo a dizer. Tava tudo muito bem. O problema foi quando comearam as alucinaes. No eram alucinaes, eram... eu tinha a impresso que podia ver tudo... claramente... tudo... ficava to claro... tudo ficava... ficava tudo quieto... ficava tudo to quieto... tudo... parado... e... a viso to clara das coisas... era... mas talvez eu estivesse errado. Eu acho que algum falou alguma coisa. Nunca soube o que. E a... alguma mentira comeou a circular. E essa mentira foi se espalhando. Comecei a estranhar as pessoas. No caf. Na fbrica. No tinha noo do que estava acontecendo. Ento, um dia me levaram prum hospital, j fora de Londres. Me botaram l. Eu no queria ir. Bem que... tentei fugir algumas vezes. No era assim to fcil. Me faziam perguntas l. Me botaram l, me faziam todo tipo de perguntas. E eu, bem... eu contava pra eles... quando me perguntavam... todos os meus pensamentos. Hmmm. Um dia veio... um homem... mdico, eu acho... o diretor encarregado... um homem de muito... respeito... s que eu no acreditava... Me mandou entrar. Disse... ele disse que eu tinha qualquer coisa. Disse que tinham concludo os exames. Foi o que ele disse. A me mostrou uma montanha de papis e disse que eu tinha alguma coisa, uma doena. Ele disse... Foi s o que ele disse, sabia? Voc tem... essa doena. Essa sua doena. Ento decidimos, ele disse, tendo em mente apenas o seu bem-estar, que s existe um caminho a seguir. , foi... no consigo lembrar direito... as palavras dele... ele disse, vamos fazer algo em seu crebro. Se no fizermos isso, ficar aqui pro resto de sua vida, se fizermos, haver alguma esperana. Poder sair um dia talvez e viver como os outros. O que vai fazer com meu crebro? Perguntei a ele. E ele repetiu o que j tinha dito. Bem, eu no era bobo. Sabia que sendo menor de idade, no fariam nada sem permisso. Eu sabia que precisavam da permisso da minha me. Ento escrevi pra ela dizendo o que eles estavam querendo fazer. Mas ela assinou o formulrio dando sua autorizao. Eu sei, porque vi a assinatura dela no formulrio quando pedi que me mostrassem. Naquela noite mesmo eu tentei fugir. Tinha passado cinco horas serrando as grades da janela pro ptio. Na total escurido. Vinham fazer a ronda com uma lanterna a cada meia hora, mas eu calculava o tempo precisamente. Bom, a, quando eu j tava quase conseguindo, um homem na cama do lado comeou a ter um ataque. E eles me pegaram. Uma semana depois vieram me buscar pra comear o tal tratamento no crebro. Todos daquela ala do hospital tinham que passar por isso. Eles vinham e levavam um de cada vez. Cada noite um. Eu fui um dos ltimos. Pude ver claramente o que eles faziam com os outros. Chegavam com umas... no sei como chamam aquilo... pareciam umas pinas bem grandes de onde saam uns fios, os fios eram ligados a uma mquina. Eltrica. Seguravam o cara na cama, e esse tal mdico... o mdico diretor, colocava as pinas assim, como fones de ouvido, um terminal em cada lado da cabea. Um outro homem controlava a mquina, sabe, era ele... que ligava enquanto diretor segurava as pinas na cabea do cara, uma de cada lado do crnio. Depois tiravam, cobriam o cara... e no se tocava mais nele por um tempo. Uns resistiam, lutavam, mas a maioria no. Ficavam l deitados. Quando chegou a minha vez, levantei da cama e me encostei na parede. Mandaram eu voltar pra cama, eu sabia que tinham que me deitar, porque se fizessem aquilo comigo de p, podiam quebrar minha espinha. Mas eu fiquei de p, vieram um ou dois homens, bom, eu era novo, tinha fora, eu era um cara bem forte na poca, um deles eu consegui derrubar, o outro agarrei pelo pescoo, mas de repente o diretor colocou as pinas na minha cabea, eu sabia que no podiam fazer aquilo comigo de p, por isso eu... mas fizeram assim mesmo. Finalmente eu sa de l. Sa daquele lugar... mas no conseguia andar direito. No acho que tenham quebrado minha espinha. Minha espinha tava no lugar. O problema era... eram meus pensamentos... ficaram lentos... no conseguia mais pensar... no conseguia... colocar... meus pensamentos... em ordem... uuuhhh... nunca mais... consegui... ordenar meus pensamentos. O problema que no ouvia o que os outros diziam. No conseguia olhar nem prum lado nem pro outro, tinha que ficar olhando em frente, pois se eu virasse a cabea... perdia... o equilbrio. Tambm tinha muita dor de cabea. Ficava sentado no meu quarto. Nessa poca morava com minha me. E meu irmo. Ele era mais novo que eu. Arrumei todas as minhas coisas no meu quarto, pus tudo que era meu em ordem, mas no morri. O fato que eu devia estar morto. Devia ter morrido. De qualquer jeito me sinto melhor agora. S que no falo com mais ningum. Fico longe de lugares como aquele caf. Nunca entro em lugares assim. No falo mais com ningum... como eu falava antes. J muitas vezes pensei em ir atrs de quem fez aquilo comigo. Mas antes, tenho outras coisas a fazer. Quero construir o depsito a nos fundos.

Cai o pano.

Ato III

Duas semanas depois.

MICK deitado no cho esquerda, com a cabea sobre o tapete enrolado, olhando para o

teto.

DAVIES sentado na cadeira, segurando o cachimbo. Est usando o palet do smoking.

de tarde.

Silncio.

DAVIESEstou achando que ele fez alguma coisa nas rachaduras.

Pausa.

Choveu a semana toda e no tem pingado no balde.

Pausa.

Ele deve ter colocado o piche.

Pausa.

Uma noite dessas ouvi algum andando no telhado. Deve ter sido ele.

Pausa.

Tive a impresso que estava colocando o piche nas rachaduras do telhado. No me falou nada. No fala comigo.

Pausa.

No me d resposta quando eu falo com ele.

Pausa.

No me d uma faca.

Pausa.

No me d uma faca pra eu cortar meu po.

Pausa.

Como posso cortar um pedao de po sem uma faca?

Pausa.

uma impossibilidade.

Pausa.

MICKVoc tem uma faca.

DAVIESQue?

MICKVoc tem uma faca.

DAVIESUma faca, claro que tenho uma faca. S que voc no quer que eu corte po com a minha faca, quer? No faca de po. No d pra cortar po com ela. Arranjei ela por a. Sabe-se l por onde ela passou? No, o que eu quero...

MICKSei muito bem o que voc quer.

DAVIES se levanta e vai at o fogo.

DAVIESE esse fogo? Ele me garante que o gs no ta ligado. Como que eu vou saber? Eu aqui dormindo bem do lado, acordo de noite e dou de cara com um forno! Um forno, bem na minha cara, vai l saber, se essa merda explode enquanto eu to dormindo.

Pausa.

Mas parece que ele no d a mnima pro que eu digo. Disse pra ele outro dia, viu, contei pra ele dos pretos, esses pretos a do lado, que entram aqui e usam o banheiro. Disse pra ele que tava tudo sujo l, o corrimo imundo, tudo preto, o banheiro preto. E o que foi que ele fez? No, ele no o responsvel por isso aqui? No disse nada. Nuca tem nada a dizer.

Pausa.

Faz mais de uma semana sentou a e veio com uma histria comprida... isso j tem mais de duas semanas. Uma puta histria comprida ele me contou. Depois disso no deu mais uma palavra. Ia contando a histria... no sei o que tava... nem olhava pra mim, no contava pra mim, ele no liga pra mim. Falava sozinho. No quer saber de nada. Voc no, voc chega, pede minha opinio, ele nunca faria isso. A gente nem conversa, sabia? Como pode-se viver num mesmo quarto com uma pessoa... que no conversa com voc?

Pausa.

No consigo entender ele direito.

Pausa.

Voc e eu podamos botar esse lugar pra funcionar.

MICK(Pensativo) , acho que voc tem razo. Olha s o que eu poderia fazer com essa casa.

Pausa.

Poderia transform-la num duplex. Este quarto... por exemplo. Este quarto poderia virar uma cozinha. Bom tamanho, janela, sol da manh. Colocaria... faria o cho em linleo e cobre compondo com as mesmas cores nas paredes. As bancadas de frmica fosca, em grafite. Espao aqui o que no falta pra armrios e loua. Colocaramos um armrio de parede pequeno, uns dois ou trs grandes, um armrio de canto com prateleiras giratrias. No ia faltar armrio. A sala de jantar, do outro lado do corredor. E janelas com venezianas, tbuas corridas no cho, paredes revestidas com cortia. Um tapete cru, mesa de carvalho com verniz de laca indiana, aparador com gavetas embutidas, cadeiras de madeira curvada, assentos com almofadas de tweed cor de aveia, um recami estofado em tapearia verde folha, mesa de caf com tampo branco resistente ao calor e acabamento feito com uma borda de azulejos portugueses antigos. Isso. Depois o quarto. Sim, pois o que um quarto? Um refgio. Um lugar onde se descansa em paz. Requer uma decorao discreta. Moblia de madeira nobre. Tapete num profundo tom de azul, cortinas listradas de azul e branco satine, e sobre a cama, um acolchoado estampado com minsculas rosas azuis sobre fundo branco, penteadeira com tampo mvel, equipada com espelhos e luminria de rfia branca... (MICK se encosta) No seria uma casa, seria um palcio.

DAVIESCom certeza, meu amigo.

MICKUm palcio.

DAVIESQuem moraria nele?

MICKEu. Meu irmo e eu.

Pausa.

DAVIESE eu?

MICKEsse lixo todo aqui no presta pra nada. Monte de ferro velho. S isso. Sucata. Nada disso se aproveita. Serve pra nada. Lixo. Se conseguisse vender tudo no daria mais que uns trocados.

Pausa.

Lixo.

Pausa.

O que parece que ele no se interessa por minhas idias, esse o problema. Por que voc no conversa com ele, hem? Tenta se informar?

DAVIESEu?

MICK. Voc no amigo dele?

DAVIESAmigo coisa nenhuma.

MICKVoc esta morando no mesmo quarto que ele, no est?

DAVIESEle no meu amigo. Nunca d pra saber o que ele quer. Viu, um sujeito assim como voc a gente sabe o que quer.

MICK olha para ele.

Sabe, o que eu quero dizer, que voc tem o seu jeito. um jeito prprio seu, qualquer um v. Pode ser um jeito assim, meio engraado, mas todo mundo tem seu jeito, mas ele diferente, sabia? Pelo menos voc, bem, voc ...

MICKDireto.

DAVIESIsso. Voc direto.

MICK.

DAVIESMas com ele, a gente nunca sabe o que ele ta pensando.

MICKH.

DAVIESNo tem sentimentos!

Pausa.

Viu, eu preciso de um relgio. Preciso de um relgio que marque as horas! Como vou saber as horas sem um relgio? No posso. Disse a ele, eu disse, olha aqui, o que acha de me arranjar um relgio pra que eu possa ver as horas? Um homem que no sabe as horas no sabe onde est, entende o que eu digo? Sabe ento o que eu fao? Quando saio, procuro um relgio onde eu possa ver as horas e guardo na cabea pra quando eu estiver aqui dentro no perder a noo do tempo. Mas o que adianta, passam nem cinco minutos e pronto, j esqueci. Esqueci que horas eram.

DAVIES anda pra l e pra c.

V se voc me entende, s vezes, quando no to me sentindo muito bem, me deito na cama e a, quando levanto nunca sei que horas so; se d pra sair pra tomar um ch! Sabe, a coisa no to grave assim quando estou do lado de fora, antes de entrar vejo as horas no relgio da esquina mas assim que entro... perco totalmente a noo das horas!

Pausa.

No, eu preciso de um relgio aqui dentro, s assim me restaria alguma esperana. Mas ele no me d um.

DAVIES senta-se numa cadeira.

Ele me acorda! Me acorda de madrugada. Diz que estou fazendo barulhos! Vou te contar, um dia desses ele vai levar uma boa resposta.

MICKEle no tem deixado voc dormir?

DAVIESNo me deixa dormir. Me acorda de madrugada!

MICKIsso terrvel.

DAVIESJ estive em outros lugares. Sempre me deixaram dormir. Em qualquer parte do mundo. S aqui.

MICKDormir fundamental. o que sempre digo.

DAVIESTem toda razo, fundamental. Acordo de manh um bagao! Tenho um monte de coisas pra fazer. Tenho lugares pra ir. Tenho gente pra encontrar. Tenho que me estabelecer. Mas quando levanto de manh, estou sem um pingo de energia. E o que pior, no tenho um relgio.

MICK.

DAVIES(De p, movendo-se) Ele sai, eu sei l pra onde, sai e no me diz aonde vai. A gente costumava conversar, mas no mais. Nem vejo mais ele. Sai, volta s tantas e de repente acordo de madrugada com ele me sacudindo.

Pausa.

Vou te contar! Acordo de manha... acordo de manh e ele a, sorrindo pra mim. Fica a de p, olhando pra minha cara. Eu vejo, me entende, vejo ele atravs do lenol. Ele pe o casaco, se vira, olha pra minha cama, sempre com um sorriso! De que porra ele ta rindo? Ele no sabe que eu to vendo atravs do lenol. Ele no sabe! No sabe que eu estou vendo ele, pensa que estou dormindo, mas estou de olho nele, o tempo todo por debaixo do lenol, viu? Mas ele nem sabe! Fica me olhando e sorrindo e nem sabe que eu to vendo ele.

Pausa.

(Curvando-se, aproximando-se de MICK) Agora, o que voc precisa fazer, precisa falar com ele, viu? Eu j... j tenho tudo planejado. Voc chega pra ele e diz... que a gente tem planos pra essa casa., ns podamos fazer a reforma, podamos comear um negcio. Ta entendendo, eu podia fazer a decorao pra voc, podia te dar uma mo... entre ns dois.

Pausa.

Onde voc ta morando?

MICKEu? Ah, eu tenho um lugar pequeno. No mal. Tem de tudo. Um dia desses voc podia dar uma passada l pra tomar um drinque. Ouvir Tchaikovski

DAVIESNo, o que eu acho que voc quem devia falar com ele. Afinal de contas voc irmo.

Pausa.

MICK... talvez eu fale.

Uma porta bate.

MICK se levanta e sai.

DAVIESAonde voc vai? Deve ser ele!

Silncio.

DAVIES se levanta, vai para a janela e olha para fora.

ASTON entra. Traz um saco de papel. Tira o sobretudo, abre o saco e tira um par de

sapatos.

ASTONSapatos.

DAVIESO que?

ASTONFoi o que eu consegui. Experimente.

DAVIESSapatos? Que tipo?

ASTONAcho que vo servir.

DAVIES vem at o centro, tira as sandlias e experimenta os sapatos. Anda um pouco, balana os ps, curva-se e apalpa o couro.

DAVIESNo, no vo servir.

ASTONNo?

DAVIESNo, no servem.

ASTONMmmm.

Pausa.

DAVIES, mas vou fazer o seguinte: vou ficar com estes at conseguir coisa melhor.

Pausa.

E os cadaros?

ASTONNo tem cadaros.

DAVIESNo d pra usar sapatos sem cadaro.

ASTONS consegui os sapatos.

DAVIESParece ento que o fim da questo, no verdade? Como que eu vou andar com sapato sem cadaro? O nico jeito ter que tensionar os ps, no ? J pensou em sair por a tensionando os ps? No nada bom pros ps. Pode-se pegar uma distenso. Essa histria de fazer esforo sempre acaba dando numa distenso.

ASTON d a volta at a cabeceira de sua cama.

ASTONAcho que devo ter uns por aqui.

DAVIESVoc entende o meu ponto de vista?

Pausa.

ASTONTenho esses. (Entrega-os a DAVIES)

DAVIESMarrom.

ASTON o que tenho.

DAVIESOs sapatos so pretos.

ASTON no responde.

Bem, acho que serve assim mesmo., at arranjar outro par. (DAVIES senta-se na cabeceira da cama e comea a passar os cadaros) Talvez amanh eu consiga ir a Sidcup com eles. Se conseguir chegar l vou poder comear a me estabelecer.

Pausa.

Sabe que me ofereceram um emprego. O cara que me ofereceu, ele... ele est cheio de idias. O cara tem futuro. S precisam dos meus documentos, voc sabe, querem referncias. Preciso ir a Sidcup pegar. Tudo que meu est l. O problema chegar. Esse o problema. O tempo no ajuda.

ASTON sai imperceptivelmente.

Ser que esses sapatos vo agentar? uma boa caminhada. J fui l antes. Me lembro quando voltava. Da ltima vez que estive l, era... a ltima vez... j faz um bom tempo... a estrada era pssima, no parava de chover, foi uma sorte eu no ter morrido no meio do caminho, e ter chegado. No parei, caminhei o tempo todo. Mas o negcio que no posso continuar assim, tenho que voltar l e encontrar esse tal homem...

Vira-se, olha em volta.

Meu Deus, o filho da puta nem tava ouvindo!

Blackout.

Luz fraca entra pela janela.

noite. ASTON e DAVIES em suas camas. DAVIES rosnando. ASTON se senta na cama,

levanta-se e acende as luzes, vai at DAVIES e sacode-o.

ASTONEi, d pra parar com isso? No consigo dormir.

DAVIESQue? O que? O que est acontecendo?

ASTONVoc ta fazendo barulho.

DAVIESSou velho, o que que voc quer? Que pare de respirar?

ASTON vai para sua cama, veste as calas.

ASTONVou sair pra pegar um pouco de ar.

DAVIESO que voc quer que eu faa? Vou lhe dizer uma coisa, meu amigo. No me admiro que tenham te internado. Um cara que no deixa um velho dormir, s pode mesmo ser maluco! Me faz ter pesadelos, de quem a culpa deu ter pesadelo? Se voc parasse de me incomodar eu parava de fazer barulho! Como quer que eu durma tranqilo se passa a noite inteira me cutucando? O que voc quer que eu faa? Que pare de respirar? (Joga as cobertas e sai da cama usando camiseta, colete e calas) Est cada vez mais gelado aqui dentro, tenho que dormir de calas. Nunca precisei fazer isso antes. Mas aqui assim. S porque voc no quer aquecimento aqui nessa merda! J estou de saco cheio de voc me sacudir. Fique sabendo que j vivi dias bem melhores que os seus. Ningum nunca me trancou em lugar nenhum. Eu sou um homem normal! melhor voc parar de encher meu saco. Prometo ser um cara legal se me deixar em paz. s me deixar em paz. E vou lhe dizer outra coisa, o teu irmo ta de olho em voc. Ele sabe muito bem quem voc . Aquilo que amigo, mesmo. Ele, eu sei que meu amigo. Me tratando feito lixo! Por que me convidou ento? Pra me tratar desse jeito? Vai ver que se acha melhor do que eu. Um bosta! J te internaram antes, podem muito bem te internar de novo. Teu irmo ta de olho em voc! Podem muito bem botar as pinas na tua cabea de novo, meu chapa! A qualquer instante. s falar. Te carregam pra l no ato, garoto. Vm te buscar aqui te jogam l dentro! Te botam na linha! Ligam as pinas na tua cabea e te botam na linha! Se chegam aqui e vem esse monte de tralha onde eu sou obrigado a dormir, vo saber logo que voc no regula. Sabe qual foi o erro deles? Pois , foi te deixarem sair de l. Ningum sabe o que voc faz. Voc entra e sai e ningum sabe porque, nem pra que! Ento, ningum me engana, viu! Ta pensando que eu vou fazer o trabalho sujo pra voc? Haaahhh! Pois melhor parar de pensar. Voc quer que eu faa o trabalho sujo l em baixo e aqui em cima, s pra eu merecer dormir nesse quarto fedido? Comigo no, garoto. E muito menos pra voc. Voc nem sabe o voc faz durante o dia. Voc maluco. Doente. D pra ver s de olhar pra tua cara. Algum viu voc me dando algum dinheiro? Me trata feito bicho! Nunca ningum me botou num hospcio.

ASTON faz um pequeno movimento em direo a DAVIES. DAVIES tira a faca do bolso de trs.

Fica longe de mim. Ta vendo isso aqui? Fica longe de mim. Isso aqui j furou muita gente.

Uma pausa. Eles se olham.

Olha bem o que voc vai fazer.

Pausa.

melhor no tentar nada.

Pausa.

ASTONEu... eu acho que ta na hora de voc arranjar outro lugar. Acho que a gente no ta se entendendo.

DAVIESArranjar outro lugar?

ASTON.

DAVIESEu? Ta falando comigo? Eu no, meu amigo! Voc!

ASTONO que?

DAVIESVoc. voc que tem que arranjar outro lugar.

ASTONEu moro aqui. Voc no.

DAVIESNo moro? Claro que moro. Me ofereceram um emprego aqui.

ASTON verdade... mas acho que voc no vai servir.

DAVIESComo no vou servir? Olha, tem uma pessoa aqui que acha que eu sirvo. Vou te dizer uma coisa. Vou ficar aqui como zelador! Ta entendendo? O teu irmo me deu o emprego. O emprego meu. Pois vou ficar aqui sim. Eu vou ser o zelador.

ASTONMeu irmo?

DAVIES, ele vai tomar conta do prdio e eu vou ficar aqui com ele.

ASTONOlha, se eu te der... um dinheiro, voc pode ir at Sidcup.

DAVIESVai construir teu depsito! Dinheiro! Vou ganhar meu prprio salrio aqui.Vai construir teu depsito de merda! Vai!

ASTON fica olhando para ele.

ASTONMeu depsito no merda.

Silencio.

limpo. Tudo madeira boa. Vou levantar ele sim. Sem problema.

DAVIESNo chegue perto de mim.

ASTONVoc no devia dizer que meu depsito merda

DAVIES aponta a faca.

Voc que um merda.

DAVIESO que?

ASTONO teu fedor contamina o ar.

DAVIESOlha bem o que est dizendo!

ASTONH dias. por isso que no consigo dormir.

DAVIESQue voc ta dizendo! Ta dizendo que eu cheiro mal?

ASTONMelhor voc ir embora.

DAVIESEu te furo!

Ele estica o brao, o brao treme, a faca na direo do estmago de ASTON. ASTON no se mexe.

Silncio.

O brao de DAVIES no avana. Ambos parados.

Eu te furo.

Pausa.

ASTONPegue suas coisas.

DAVIES recua a faca em direo a seu peito, respira ofegante. ASTON vai at a cama de DAVIES, junta umas coisas dele e enfia-as na bolsa.

DAVIESVoc no... no tem o direito... Largue isso a. Isso a meu!

DAVIES pega a bolsa e empurra mais as coisas que esto dentro.

Ta certo... Me deram um emprego aqui... voc vai ver... (Veste o palet do smoking) pode esperar... o teu irmo... quem vai te levar... voc disse que eu... voc disse que eu... nunca ningum disse isso... (Veste o sobretudo) Vai se arrepender de ter dito que eu... espera s pra ver o que vai te acontecer... vai se arrepender de ter dito o que disse...

Abre a porta.

Agora eu sei em quem posso confiar.

DAVIES sai. ASTON de p.

Blackout.

Luzes sobem. Anoitece.

Vozes nas escadas.

MICK e DAVIES entram.

DAVIESCheiro mal! Voc ouviu? Eu! Pois foi o que ele disse, to te dizendo. Fede! Ta ouvindo? Foi o que ele disse pra mim.

MICKTss, tss, tss.

DAVIESFoi o que ele disse pra mim.

MICKVoc no fede.

DAVIESNo mesmo.

MICKSe voc fedesse, eu seria o primeiro a dizer.

DAVIESEu disse pra ele, disse pra ele, disse pra ele... disse pra ele ver bem o que ia acontecer com ele. Eu disse, teu irmo ta de olho em voc. Disse que voc que ia levar ele. Ele no tem noo do ele ta fazendo. Fazer uma coisa dessa comigo. Eu disse pra ele, disse pra ele, ele vai vir te buscar, ele normal, no igual a voc...

MICKO que foi que voc disse?

DAVIESH?

MICKQue historia essa de que meu irmo no normal?

DAVIESO que? Eu disse pra ele que voc tinha planos pra esse lugar, fazer toda... toda a decorao, compreende? O que eu queria dizer que ele no tem o direito de me dar ordens. S recebo ordens de voc, fao meu trabalho de zelador pra voc, voc me protege... voc no me trata como um monte de bosta... ns dois podamos dar um jeito nele.

Pausa.

MICKO que ele disse quando voc falou que eu tinha te oferecido o cargo de zelador?

DAVIESEle... ele disse... disse... qualquer coisa sobre que ele mora aqui.

MICKDe certa forma ele tem razo, no acha?

DAVIESRazo! Essa casa sua, no ? Voc deixa ele morar aqui.

MICKBem eu podia mandar ele embora, talvez.

DAVIESPois o que estou dizendo.

MICK. Podia mandar ele embora. Mesmo. O senhorio aqui sou eu. Ele o que se costuma chamar de locatrio. O que nos leva a um impasse essencialmente tcnico. isso. Vai depender da classificao que se der a este quarto. Se um quarto mobiliado ou no. Ta me seguindo?

DAVIESNo, no estou.

MICKEsta vendo isso tudo aqui, propriedade dele, tirando as camas, claro. Ento, como v, apenas uma questo legal, nada mais.

Pausa.

DAVIESEu disse que ele devia voltar pra l.

MICK(Virando-se, olha para DAVIES) Voltar pra onde?

DAVIES, pra l.

MICKE onde l?

DAVIESBem... ele... ele...

MICKVoc s vezes se confunde, no mesmo?

Pausa.

(Levantando-se rapidamente) Bom, vamos ver, estou animado pra comear as reformas...

DAVIESEra isso o que eu queria ouvir!

MICKAnimado mesmo. (Pe-se na frente de DAVIES) Agora, acho bom que voc seja mesmo o que diz.

DAVIESComo assim?

MICKOra, voc no disse que decorador de interiores? bom que seja o melhor.

DAVIESComo que ?

MICKComo que o que? Decorador. Decorador de interiores.

DAVIESEu? Mas como? Nunca fiz isso, nunca fui isso.

MICKVoc nunca o que?

DAVIESNo, no, eu no. No sou decorador de nada. Sei fazer uma poro de coisas, voc sabe. Mas eu... tenho jeito pra muita coisa... s me dar algum tempo pra eu... me inteirar da coisa.

MICKSe inteirar coisa nenhuma. Eu quero um decorador de interiores do mais alto gabarito e com experincia. Pensei que fosse um.

DAVIESEu? Espera a, espera um pouco, ta falando com o cara errado.

MICKQue cara errado o que! Voc o nico com quem falei a respeito. Voc o nico pra quem contei meus sonhos, meus mais ntimos sonhos, s a voc eu contei e s contei porque entendi que voc fosse um decorador de interiores do mais alto gabarito, um profissional experiente em decorao de interiores e exteriores.

DAVIESEscuta, eu...

MICKTa querendo dizer ento que no saberia combinar um cho de linleo azul e cobre com paredes no mesmo tom?

DAVIESDe onde voc tirou...?

MICKQuer dizer que no sabe dispor uma mesa de carvalho com acabamento em lada indiana, cadeiras de tweed cor de aveia e um recami forrado com tapearia verde folha?

DAVIESEu nunca disse isso!

MICKDeus! Acho que tive uma impresso totalmente errada.

DAVIESNunca disse nada disso.

MICKVoc um canalha, um sem vergonha.

DAVIESNo vai comear a me dizer essas coisas. Voc me deu o emprego de zelador. Eu tava pensando em te ajudar, s isso, por um salrio pequeno, nunca disse nada disso... e voc comea a me dizer nome...

MICKQual teu nome?

DAVIESAh, no comea.

MICKDiz teu nome de verdade.

DAVIESMeu nome Davies.

MICKE o outro nome?

DAVIESJenkins.

MICKVoc tem dois nomes. Ser que so s esses dois? Eh? Vem c, por que me contou essa histria de decorador de merda?

DAVIESContei histria nenhuma! Ser que no entende o que estou dizendo?

Pausa.

Foi ele quem te contou. O teu irmo que deve ter inventado. Ele maluco! Fala um monte de bosta pra se vingar, ele maluco, no regula da cabea, foi ele quem te contou.

MICK caminha lentamente na direo dele.

MICKVoc chamou meu irmo de que?

DAVIESQuando?

MICKEle o que?

DAVIESEi... escuta o que eu vou te dizer...

MICKMaluco? Quem maluco?